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HISTÓRIA, CULTURA, TRABALHO: questões da contemporaneidade

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HISTÓRIA, CULTURA, TRABALHO: questões da contemporaneidade

Antônio Torres Montenegro | Regina Beatriz Guimarães Neto | Vera Lúcia Costa Acioli

[Organizadores]

RECIFE, 2011

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCOReitor: Prof. Amaro Henrique Pessoa LinsVice-Reitor: Prof. Gilson Edmar Gonçalves e SilvaDiretora da Editora Universitária: Profa. Maria José de Matos Luna.

Organizadores: Antonio Torres Montenegro, Regina Beatriz Guimarães Neto e Vera Lúcia Costa Acioli

Revisor de texto: Gabriel Bogossian.

Diagramação: João Dionisio

Projeto gráfico /capa: Diego Carvalho da Silva

Foto capa: Lula Cardoso Ayres. Município de Rio Formoso, c. 1945 Acervo Fundação Joaquim Nabuco

CRÉDITOS DO IV ENCONTRO – CULTURA E MEMÓRIA: HISTÓRIA E TRABALHO.

Coordenador Geral do evento: Antonio Torres Montenegro

Comissão Científica: Antônio Paulo de Morais Rezende Antonio Torres Montenegro Flávio Weinstein Teixeira Isabel Cristina Guimarães Guillen Regina Beatriz Guimarães Neto

Comissão Organizadora: Carolina Pinheiro Mendes Cahu de Oliveira Flávio de Sá Cavalcanti de Albuquerque Neto Humberto da Silva Miranda Luiz Antônio Chaves de Oliveira Taciana Mendonça Santos

Produção e Edição de Vídeo: Diego Carvalho da Silva Diogo Cordeiro da Silva

Igor Almoêdo de Assis Raphael Wellington A. dos Santos

SUMÁRIO:

Apresentação. Prof. Dr. Antonio Torres Montenegro. .....................................

1. A redução das horas de trabalho como um dos paradigmas de superação da crise econômica. Profa. Dra. Eneida Melo Correia de Araújo. (UFPE) ...

2. Agitação política e direito trabalhista nos idos de 1964. Prof. Dr. Antonio Torres Montenegro. (UFPE) .................................................................

3. Mundos e imundos de(o) trabalho: por uma crítica histórica da categoria trabalho. Prof. Dr. Durval Muniz de Albuquerque Júnior. (UFRN) ...............

4. A justiça e o direito como estratégias de resistência ao trabalho escravo em Pernambuco, da colônia à república. Profa. Vera LúciaCosta Acioli e Profa. Dra. Virgínia Maria Almoedo de Assis. (UFPE) ....................................

5. História, trabalho e política de colonização no Brasil contemporâneo: discursos e práticas. Amazônia Legal. Profa. Dra. Regina Beatriz Guimarães Neto. (UFPE) ......................................................................................

6. A pretinha do Congo: um desfile de trabalhadores. Prof. Dr Severino Vicente da Silva. (UFPE) .......................................................................................

7. O paraíso não me pertence. Prof. Dr. Antonio Paulo Rezende. (UFPE) ..

8. Linhagens literárias na representação negativa do campesinato. Profa. Dra. Christine Rufino Dabat. (UFPE) .................................................................

9. Cultura e Memória – História & Trabalho – Gestão Documental no TRT 6ª: Um apelo à História e à Memória. Profa. Dra. Marcília Gama. (UFRPE) ...................................................................................................................

10. Mocambeiros, nordestinos e seringueiros – histórias e memórias. Prof. Dr. Eurípides Funes. (UFC) ..................................................................................

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FICHA CATALOGRáFICA

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11. Uma trajetória: formação, pesquisa e narrativas. Prof. Dr. Antonio Fernando Guerreiro de Freitas. (UFBA) .............................................................

12. Memória e patrimônio no movimento negro pernambucano. Profa. Dra. Isabel Cristina Martins Guillen. (UFPE) ............................

13. O mundo do trabalho e a construção das identidades de gênero no início do século XX. Prof. Dr. Pedro Vilarinho. (UFPI) .................

14. Trabalho e doença nas minas de ouro. Profa. Dra. Sara Oliveira Farias. (UNEB) ............................................................................................

15. Trabalhadores livres, costumes comuns e práticas sociais: experiências no Recife oitocentista. Prof. Dr. Marcelo Mac Cord.(UNIABEU) ................................................................................................

16. De “Peão” a “João”: Uma ação conjunta visando a reinserção social. Prof. Dr. Vitale Joanoni Neto e Profa. Dra. Leonice Aparecida de Fátima Alves. (UFMT) .......................................................

17. Reflexões sobre o trabalho dos operários: a atuação do empresário católico Carlos Alberto de Menezes. Prof. Dr. Newton Darwin de Andrade Cabral. (UNICAPE) ...............................................

18. Cenas da Negritude: africanidades e dramaturgia negra (1944-1946). Prof. Dr. Élio Chaves Flores. (UFPB) .........................................

APRESENTAÇÃO

Prof. Dr. Antonio Torres Montenegro.

O livro História, Cultura, Trabalho: questões da contemporaneidade que trazemos ao público é uma produção que foi concebida por meio de muitas trilhas. Destacaria inicialmente o convênio entre o TRT 6ª Região e a UFPE que tor-nou possível o amplo acesso a documentação deste tribunal. Dessa maneira um número crescente de pesquisas vem sendo desenvolvidas, por professo-res, mestrandos e doutorandos do Programa de Pós-Graduação em História (PPGH) da UFPE. Há dois anos fomos contemplados pelo edital multiusu-ários da FACEPE, o que permitiu realizar um conjunto inadiável de ações de higienização, catalogação e posterior disponibilização no site – www.trt6.jus.br/memoriaehistoria – dos processos trabalhistas das décadas de 1960 e 1970 da zona da mata de Pernambuco. Dessa maneira, não apenas os pes-quisadores da UFPE e de Pernambuco têm acesso a esta vasta e rica coleção documental, que se encontra disponível no 4º andar do Centro de Filosofia e Ciências Humanas, mas também os de todo Brasil e do exterior.

Alguns textos que compõem esse livro analisam fundamentalmente as diversas dimensões do trabalho, seu cotidiano, assim como as questões rela-cionadas à justiça do trabalho. Estes foram escritos tendo como documenta-ção básica os processos trabalhistas da 6ª região. Outra trilha instituinte são as produções de professores e pesquisadores da linha de pesquisa Cultura e Memória do Programa de Pós-Graduação em História do CFCH/UFPE. Os seus textos, aqui presentes, resultam dos últimos trabalhos de pesquisa enfocando a temática da cultura e da política em sua historicidade. Nessa perspectiva, destacaríamos ainda que esses trabalhos foram apresentados em mesas-redondas com a participação de professores de outras instituições de ensino e pesquisa que, em muitos casos, têm desenvolvido projetos de pesqui-sa comuns (como o Programa de Pós-Graduação em História da UFMT com o qual temos um Procad/Capes*,1 que conta também com a participação da

* PROCAD: PROGRAMA NACIONAL DE COOPERAÇÃO ACADÊMICA que a CAPES criou para

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Dessa forma, o presente livro História, Cultura, Trabalho: questões da contempo-raneidade está organizado sob a perspectiva de diferentes projetos de pesquisa, e tem como eixo condutor os trabalhos dos professores/pesquisadores da linha de pesquisa Cultura e Memória do PPGH da UFPE em suas múltiplas parcerias com pesquisadores de diferentes IFES.

O capítulo de abertura desse livro – A redução das horas de trabalho como um dos paradigmas de superação da crise econômica – é resultado da conferência proferi-da pela professora de direito da UFPE, a desembargadora Eneida Melo Cor-reia de Araujo que, nesse momento, exerce o cargo de presidente do Tribunal Regional do Trabalho de Pernambuco - 6ª Região. Neste texto, a autora anali-sa de uma perspectiva histórica e jurídica as questões relacionadas à proteção ao tempo de trabalho, a questão da jornada de trabalho no sistema jurídico brasileiro, sua redução e a jornada dita extraordinária.

O capítulo seguinte, de minha autoria, Agitação política e direito trabalhista nos idos de 1964, apresenta uma análise histórica acerca da relação que se estabele-ce entre a justiça do trabalho e as diversas instâncias do poder militar e policial após o golpe civil-militar de 1964. Destacar como a justiça vai estabelecendo conexões com o aparato repressivo do Estado, passando as questões traba-lhistas a serem julgadas também da ótica das atividades políticas e sociais, nomeadas como subversivas, foi o meu propósito.

O Prof. Durval Muniz de Albuquerque Júnior, vinculado ao PPGH da UFRN, e também atuando como professor colaborador na linha de pesquisa Cultura e Memória do PPGH da UFPE, desenvolve em seu capítulo, Mundos e imundo de(o) trabalho: por uma crítica histórica da categoria trabalho, uma reflexão teórica sobre o tema ‘trabalho’. De forma instigante, poder-se-ia dizer que seu texto desnaturaliza o conceito de trabalho tão amplamente defendido e valorizado na contempora-neidade.

A Profa. Vera Lúcia Costa Acioli – uma das coordenadoras do projeto His-tória e Memória do TRT 6ª Região,– apresenta, em parceria com a Profa. Vir-

que universidades com programas de pós-graduação já consolidados e com conceitos 5, 6 ou 7 auxiliem outros programas de pós-graduação a se consolidar.

gínia Maria Almoedo de Assis (PPGH/UFPE), o capítulo que tem como título A justiça e o direito como estratégias de resistência ao trabalho escravo em Pernambuco, da colônia à república. O texto faz uma retrospectiva histórica, enfocando a questão das relações de trabalho escravo no Brasil e as similitudes com as condições de trabalho atuais, sem, no entanto, perder de vista as descontinuidades, rupturas e avanços.

O capítulo escrito pela Profa. Regina Beatriz Guimarães Neto (PPGH/UFPE), Cultura, Trabalho e política de colonização: discursos e práticas. Amazônia Legal, apresenta uma reflexão sobre as práticas e discursos acerca do trabalho relacio-nadas às condições históricas/políticas dos projetos econômicos denominados “de colonização”, na Amazônia Legal. Nesse texto, analisa os programas de ocupação recente da Amazônia que remetem diretamente a um conjunto de estratégias políticas de controle territorial da nação brasileira sob o regime civil--militar de 1964.

O Prof. Severino Vicente da Silva, em seu texto A pretinha do Congo: Um desfile de trabalhadores, expõe um rico relato histórico dos começos desse grupo cultural em Goiana/PE entre o final do século XIX e início do século XX. Em seguida analisa como este grupo se divide por razões políticas e culturais em 1980, apresentando uma diversificada gama de informações históricas que relativiza e problematiza al-gumas das explicações dominantes acerca das histórias desses dois grupos.

O capítulo O paraíso não me pertence, escrito pelo Prof. Antonio Paulo Re-zende, revela um instigante narrador (o próprio autor) que se constrói perso-nagem e recebe uma visitante desconhecida à procura de uma amiga, Camila, moradora do edifício em que ele próprio reside. Na sua narrativa Antonio Paulo desenvolve múltiplas reflexões que operam um grande arco de questões relacionadas à cultura, ao cotidiano, à literatura e à história, sempre acompa-nhado de muitos filósofos, literatos e historiadores.

Em Linhagens literárias na representação negativa do campesinato, a Profa. Chris-tine Rufino Dabat desenvolve uma rica reflexão acerca da influência da lite-ratura na formação de modelos culturais de percepção e na constituição de parâmetros sociais. Seguindo essa trilha, a historiadora estuda de forma deta-lhada as representações construídas sobre o trabalhador rural do Nordeste, analisando obras literárias europeias e brasileiras.

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A historiadora e arquivista Profa. Marcília Gama, em seu texto Gestão Do-cumental no TRT 6ª: Um apelo a História e a Memória, apresenta uma reflexão histórica sobre a política de gestão documental iniciada pelo governo federal em 1991 e a forma como esta vem sendo desenvolvida no TRT 6ª Região, a partir de junho de 2009. Realiza ainda uma análise arquivística aliada a princí-pios históriográficos, numa perspectiva multidisciplinar.

O historiador e professor do Departamento e da pós-graduação em his-tória da Universidade Federal do Ceará, Eurípides Funes, em seu texto Mo-cambeiros, nordestinos e seringueiros – histórias e memórias, realiza uma reflexão de seu próprio percurso de historiador. Utiliza diversas memórias, narradas por diferentes trabalhadores e trabalhadoras a partir das quais analisa a constitui-ção dos mocambos do Baixo Amazonas.

O Prof. Antonio Fernando Guerreiro de Freitas, do Departamento de História e da Pós-Graduação da Universidade Federal da Bahia, em seu tex-to, que leva o título Uma trajetória: formação, pesquisa e narrativas, apresenta o que podemos nomear de ego história; constrói uma narrativa do seu próprio percurso desde os tempos de estudante até os projetos historiográficos mais recentes.

Em Memória e patrimônio no movimento negro pernambucano, a Profa. Isabel Cristina Martins Guillen apresenta uma análise histórica da cultura afrodes-cendente, em especial os maracatus, nas últimas quatro décadas em Pernam-buco. Coloca-se como questão discutir como os maracatus, ameaçados de extinção na década de 1970, conseguiram ganhar grande visibilidade regional, nacional e mesmo internacional.

O historiador e professor do Departamento de História e da Pós-Graduação da Universidade Federal do Piauí, Pedro Vilarinho, em seu texto O mundo do trabalho e a construção das identidades de gênero no início do século XX, faz uso de obras de literatos piauienses para pensar a problemática da valorização do trabalho no final do sécu-lo XIX e XX. Analisa ainda o impacto dessas obras nas identidades masculinas e femininas.

A historiadora e professora do Departamento de História da Universidade Estadual da Bahia, Sara Oliveira Farias, apresenta o texto intitulado Trabalho

e doença nas minas de ouro. Neste, analisa como o discurso acerca da riqueza trazida pela exploração das minas de ouro da cidade de Jacobina (BA) na dé-cada de 1970 projeta um futuro de trabalho e dias melhores para toda cidade. No entanto, junto com o ouro veio a silicose provocando a morte de muitos mineiros. Narra então, a complexa luta que se desenvolve para que a empresa mineradora assuma suas responsabilidades legais pela morte desses mineiros.

O historiador e professor Marcelo Mac Cord (UNIABEU) colabora neste livro com o texto Trabalhadores livres, costumes comuns e práticas sociais: experiências no Recife oitocentista, em que salienta o papel que teve em Recife a “União Artís-tica”, idealizada por uma elite artesanal, que conheceu uma série de conflitos em seu processo de montagem.

Em o capítulo intitulado De “Peão” a “João”: Uma ação conjunta visando a rein-serção social, a Profa. Leonice Aparecida de Fátima Alves e o Prof. Vitale Joano-ni Neto, do Programa de Pós-Graduação em História da UFMT, apresentam o projeto Ação Interinstitucional para Qualificação e Reinserção Profissional dos Trabalhadores Resgatados do Trabalho Escravo e/ou em Situação de Vulnerabilidade – que resulta de uma parceria com Ministério do Trabalho e Emprego, por intermédio da Superintendência Regional do Trabalho e Em-prego de Mato Grosso (SRT/MT), Ministério Público do Trabalho através da Procuradoria Regional do Trabalho 23ª Região (PRT/MT) e Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT).

O professor e historiador Newton Darwin de Andrade Cabral do De-partamento de História da Universidade Católica de Pernambuco no capítulo Reflexões sobre o trabalho dos operários: a atuação do empresário católico Carlos Alberto de Menezes, apresenta a história deste jovem engenheiro civil, nascido no Rio de Janeiro na metade do século XIX e que se transfere para Recife. Passa a atuar primordialmente junto a indústria têxtil de Pernambuco e se torna um defensor dos princípios católicos na lide com os operários. Se torna também um responsáveis pela vinda de salesianos para Recife e a cria-ção do Colégio desta ordem nessa cidade.

Para concluir, o texto do Prof. Élio Chaves Flores do Programa de Pós--Graduação em História da Universidade Federal da Paraíba encerra o livro com a análise acerca das representações da África elaborada por intelectuais

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da negritude brasileira que se reuniram em torno do Teatro Experimental do Negro (TEN), desde sua fundação em 1944. Destacam-se entre outras, a participação de Abdias Nascimento e de Guerreiro Ramos.

O leitor tem diante de si uma coletânea cujos textos nos remetem à temá-tica do livro em suas múltiplas perspectivas, alvo de estudos e análises. São diferenciadas abordagens e leituras relacionadas também às questões da cultu-ra que permeiam as pesquisas historiográficas, apresentadas em seus diversos capítulos. Como foi dito, é mais uma produção do conjunto de professores que participam da Linha de Pesquisa Cultura e Memória do PPGH da UFPE bem como de diferentes universidades de diversas regiões do Brasil. Ao mes-mo tempo, há que se registrar, este livro está profundamente relacionado ao conjunto de ações e pesquisas que vem sendo desenvolvido no acervo do-cumental de processos findos do TRT, nesses últimos anos, em razão de um convênio entre a UFPE e o TRT 6ª Região, em que destacaríamos a participa-ção da Profa. Vera Acioli como historiadora e arquivista.

A REDUÇÃO DAS HORAS DE TRABALHO COMO UM DOS PARADIGMAS DE SUPERAÇÃO DA CRISE ECONÔMICA

Eneida Melo Correia de Araújo

Email: [email protected]

Desembargadora Presidente do TRT da Sexta Região, professora e doutora em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco

Sumário: 1. A proteção ao tempo de trabalho. 2. A redução da jornada de trabalho. 3. A questão da jornada de trabalho no sistema jurídico brasileiro. 3.1. A jornada extraordinária. 4. Conclusão.

1. A proteção ao tempo de trabalho

O trabalho é um dos instrumentos de realização das aspirações morais, fí-sicas, intelectuais, espirituais do homem. E comporta a ideia de que possa ser executado de forma a permitir o descanso e ócio, preservando a integridade da pessoa.

Para assegurar o direito ao trabalho, ao descanso e ao lazer, normas foram inseridas em todos os sistemas jurídicos do mundo, inclusive no brasileiro. Este aspecto pode demonstrar que a proteção ao tempo de trabalho é um fato social da maior importância. É indispensável à concretização das necessidades fundamentais do ser humano e para a sobrevivência da sociedade.

Na história dos homens, inicialmente, a jornada em que o trabalhador executava as tarefas não tinha qualquer limite. Trazia danos irreversíveis à saúde, às condições econômicas do trabalhador e daqueles que dele depen-

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diam, principalmente seus familiares. Essas lesões atingiam a sociedade como um todo, em face das doenças físicas e mentais, impedindo o indivíduo de usufruir de tempo razoável para dedicar-se à criação cultural ou ao convívio com os amigos e com a família. Ademais, o trabalhador, em estado de esgota-mento, produz menos. Este aspecto é desfavorável à produção, na medida em que o resultado das energias despendidas pelo empregado é um dos fatores do progresso da empresa.

O descanso tem, portanto, uma conotação histórica, a par de um aspecto de natureza moral, ética, psicológica e médica. É, enfim, um dado ínsito à natureza humana.

Carlos Garcia Oviedo ressalta que, ao lado do salário, carregado da exi-gência de uma remuneração satisfatória, a delimitação da jornada de trabalho, com o propósito de reduzi-la, sempre se constituíra em uma das principais aspirações dos trabalhadores de todo o mundo.1 No mesmo sentido é a dou-trina de Hernainz Marquez.2

A luta pela consagração de direitos decorrentes da condição de trabalha-dor, na qual se insere a diminuição do tempo diário dedicado ao trabalho, é histórica. Evidencia gradativas e crescentes conquistas, todas, contudo, rela-tivamente novas.

O intervencionismo estatal nas relações de emprego deu ensejo a que o po-der público fixasse um limite máximo de horas de trabalho, restringindo o peri-go que as jornadas excessivamente longas produzem no homem e na sociedade.

1 Garcia Oviedo, Carlos. Tratado Elemental de Derecho Social. 3ª ed. Madrid: Distribuidores Exclusivos para España y Extranjero, 1948, p. 458-459. Esclarece o autor que a redução da jornada diária de trabalho foi incluída na pauta de reivindicação dos partidos dos trabalhadores como uma das mais ambicionadas aspirações da classe trabalhadora. Os partidos socialistas fizeram uma divisão do dia em três partes, cada uma com oito horas. Tratava-se da proposta referente aos chamados “três oitos”. Era concebido, portanto, o dia, com oito horas para o trabalho; oito horas para o descanso e mais oito horas para o lazer, a cultura, o convívio com a família, etc.2 Hernainz Marquez, Miguel. Tratado Elemental de Derecho del Trabajo. 4ª ed. corr. e aum. Madrid: Instituto de estudios Políticos, 1949, p. 405. Não hesita esse autor em afirmar que a maioria dos estudiosos do Direito do Trabalho considera que, ao lado do salário, a questão alusiva à jornada de trabalho legal constituem-se em objetivos, não apenas dos trabalhadores, mas de todos aqueles que se ocuparam seriamente das questões sociais e de trabalho. E os fundamentos da necessidade dessa regulamentação dizem respeito aos aspectos culturais, religiosos, biológicos, sociais, entre outros. Tratava-se, em suma, do reconhecimento da dignidade do trabalhador, o qual não poderia ser considerado apenas enquanto produtor de riquezas.

Acrescente-se que as atividades do empregado, ao longo da história, na ge-neralidade, eram desenvolvidas também em condições agressivas à sua saúde e ao seu bem-estar, sem respeito ao mínimo de intimidade e privacidade que merece o ser humano.

Diante desses fatores, o pensamento e a ação dos trabalhadores, dos es-tudiosos das relações de trabalho e do poder público, foram dirigidos para limitar o tempo de trabalho.

Partindo do pressuposto de que o Direito do Trabalho surgiu e desenvol-veu-se com o objetivo claro de proteger o trabalhador subordinado, em face de sua hipossuficiência, dos riscos que lhe adviriam na hipótese de deixar ao empregador a fixação de todo o conteúdo contratual, é que também foi disciplinado pelo Estado o tempo máximo em que o empregado deve estar à disposição do empregador.

A proteção específica de que ora é abordada refere à duração diária ou semanal do contrato de trabalho.

Ernesto Krotoschin considera que a proteção do tempo de trabalho fun-da-se, primordialmente, em considerações de ordem cultural e higiênica.3

Seguindo a orientação de Orlando Gomes e Elson Gottschalk, a fixação de uma jornada máxima de trabalho e o consequente repouso atendem a as-pectos de ordem fisiológica, moral, social e econômica4.

3 Krotoschin, Ernesto. Instituciones de Derecho del Trabajo, Buenos Aires: Depalma, 1948, v. 2, p. 249. E explica o autor que, sob o ângulo cultural, é indispensável que o homem usufrua de um período de tempo para que o dedique às atividades que entender agradáveis à sua vida, tais como: o convívio com a família, com os amigos, com a natureza, com seu aperfeiçoamento intelectual, etc. Realça que este aspecto torna-se mais importante ainda na medida em que a atividade profissional possa ter características repetitivas e rotineiras. E, quanto ao prisma higiênico, ressalta que o tempo de trabalho e o de descanso devem ter uma correspondência capaz de permitir ao homem a recuperação das energias físicas e psíquicas despendidas, evitando-se uma perda prematura da potencialidade laboral. Desta forma, a finalidade da proteção ao período de trabalho consistiria em uma adequada distribuição do tempo que o homem dispõe para o descanso e aquele destinado ao serviço. Para que se atinja esse objetivo, é indispensável a limitação legal das horas destinadas ao trabalho, estabelecendo regras jurídicas impeditivas à exploração das energias do homem, por período superior ao necessário ou naquelas horas em que deveria desfrutar do descanso.4 Gomes, Orlando e Gottschalk, Elson. Curso de Direito do Trabalho. 6ª ed. Rio de Janeiro. São Paulo: Forense, 1975, v. 1, cit., p. 438-440.

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Do ponto de vista fisiológico, a limitação da jornada permite que o traba-lhador recupere as energias gastas quando no desempenho de suas obrigações profissionais. O excesso de trabalho conduz o ser humano à fadiga, a neuro-ses e a angústias, propiciando o aparecimento de doenças, velhice precoce, acidentes e até a morte.

No ângulo moral, o repouso leva em consideração o respeito que merece o ser humano. O indivíduo necessita de um espaço temporal em sua vida, a fim de encontrar-se em sua intimidade, preservando a sua inteireza, como expressão de sua individualidade, do respeito à dignidade e a observância aos aspectos pessoais, que o sujeito preserva.

Observe-se, ainda, que, de acordo com o aspecto social, o trabalhador também precisa de um período de tempo para executar atividades que não sejam as de sua profissão ou que digam respeito às tarefas não compreen-didas no elenco do dever funcional. O homem é um ser que se integra na comunidade, exercendo uma multiplicidade de papéis: o de ente familiar, entre amigos, na sua aspiração intelectual e de lazer.

Por fim, um suporte econômico também é visualizado na questão do re-pouso. Seria aquele refletido no fato de que a ausência de descanso, o dado de não poder o trabalhador exercitar outros atos diversos de sua atividade profissional, tende a criar um desequilíbrio físico e psicológico que impede uma adequada produção. Com isto, há um prejuízo para o empregado, para o empregador e para toda a sociedade.

As ideias de repouso e de restrição das jornadas de trabalho permitem, ademais, a realização do desejo de aumentarem-se as horas de ócio, de lazer; propiciam a redução da carga horária por vontade do trabalhador, não pres-sionado pelo temor do desemprego.

Com propriedade, diz Luigi Bagolini que a concepção de um tempo livre, dedicado pelo homem aos seus interesses pessoais, traduz uma ideia razoável de democracia, sendo, presentemente, um problema político.5

5 Bagolini, Luigi. Filosofia do Trabalho. Trad. João da Silva Passos, 2ª ed., São Paulo: LTr, 1997, p. 59-65. Corresponderia, portanto, o otium a um comportamento em que é permitido que a consciência humana se desenvolva. Realizaria ou apreciaria aspectos artísticos, filosóficos, religiosos, sem interesses culturais específicos. Essas atitudes devem traduzir um sentimento de agradabilidade ao serem repartidas com os

Com efeito, entendendo-se a vida política como aquela capaz de encerrar em seu âmbito uma série de necessidades e, entre elas, as exigências funda-mentais do viver do homem, o otium revela-se também como uma questão política. Daí porque adverte o autor supramencionado sobre a participação dos trabalhadores nas decisões políticas do pais.6

Desta forma, constata-se que o otium possui uma dimensão espiritual que ultrapassa o simples direito ao tempo livre. Não se traduz o exercício do otium por meros aspectos físicos, de tempo e de lugar. Ele tem uma carga mais abrangente. Aponta para a possibilidade de realização de tudo quanto possa ser de mais pessoal e específico à natureza humana.

Assim, as pessoas podem dispor de tempo livre e não se dedicarem ao otium. Para o exercício do otium, para a sua realização, torna-se indispensável a existência de tempo livre. Daí a necessidade de restrição das horas de traba-lho, para que os anseios mais pessoais e íntimos do trabalhador possam vir a ser realizados.

Maurício Godinho Delgado também desvenda, na natureza das normas jurí-dicas que tratam da jornada de trabalho, um revestimento que não possui apenas preocupação econômica. Assim ocorre porque, em muitas ocasiões, revelam-se como regras de medicina e segurança do trabalho, ou seja, de saúde pública.7

É de ordem pública a natureza das regras de tutela do tempo de trabalho. A duração do trabalho e da jornada são manifestações do direito de perso-

outros. Suas ações não são necessariamente ligadas às que realiza no trabalho, configurando apenas uma delas. Acrescenta o autor que, contra o eventual sonho utópico de uma total substituição do trabalho pelo otium, frente ao fato de que alguns, à diferença de outros, são constrangidos a trabalhar, parece razoável a vários autores colocar-se o problema de reduzir o mais possível o tempo de trabalho para alargar o espaço de um tempo livre em que se faça valer a dimensão do otium.6 Idem, p. 81. O autor alerta para a imprescindível participação do trabalhador nos destinos políticos do país, caso pretenda a vigência e eficácia de normas jurídicas que atendam aos seus interesses. Acrescenta que essa inserção política da classe trabalhadora auxilia a manter a coesão do Estado. Isto ocorre na medida em que pode impedir que a fraqueza do poder político leve a classe trabalhadora a ser tragada pela força da tecnoestrutura.7 Delgado, Maurício Godinho. “A Jornada no Direito do Trabalho Brasileiro”. São Paulo: Revista LTr, a. 60, n. 10, out., p. 1338-1357. Essa preocupação com a vida e a saúde do trabalhador justifica os limites rígidos que devem ser observados em tarefas insalubres e perigosas. E explica o autor poder ser compreendida a restrição da jornada de trabalho, em alguns ambientes e atividades, trata-se de fator importante para diminuir o potencial efeito insalubre, constituindo-se em medida profilática relevante na medicina do trabalho.

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nalidade, uma das vertentes dos Direitos Humanos. Trata-se, portanto, de direitos fundamentais.

Ao indivíduo, ao poder público e à sociedade é prejudicial o desgaste da saúde física e psíquica do trabalhador. Tampouco atendem aos interesses pú-blicos os riscos advindos de longas jornadas; os desajustes de ordem familiar e social que atingem o homem desprovido de um tempo razoável para o descanso e o lazer. Grandes investimentos, de natureza médica e psicológica, são exigidos do Estado para a recuperação de trabalhadores vitimados por acidentes de trabalho, doenças profissionais ou doenças de características psi-cológicas.

2. A redução da jornada de trabalho

De acordo com Robert Kurz, no século XVIII e no início do século XIX, tanto a prorrogação absoluta como a relativa da jornada de trabalho, por in-termédio da introdução da hora astronômica abstrata, foram reputadas como prejudiciais. Acrescenta o autor que, por muito tempo, os trabalhadores nas indústrias lutaram contra o trabalho realizado antes do amanhecer e após o crepúsculo, pesando sobre esse procedimento a ideia de que se tratava de uma exigência “imoral”. Prosseguindo, diz que, quando na Idade Média acontecia de os artesãos precisarem trabalhar à noite em face da exigência dos prazos de entrega dos bens produzidos, auferiam salários elevados e uma alimentação farta. Esclarece ter sido uma façanha do capitalismo transformar o trabalho noturno de um acontecimento excepcional em uma regra geral da vida hu-mana. E conclui, acrescentando nada haver mudado expressivamente com a gradual redução de jornada dos povos, desde o início da época capitalista até nossos dias. Isto porque no chamado trabalho por turnos ininterruptos as empresas ficam em funcionamento ao longo das 24 horas do dia, com pequenas pausas para troca de pessoal, manutenção e limpeza. Esta atividade ocorre não apenas nas indústrias, como no comércio, nos serviços bancários e em outras esferas da produção.8

Antes de ser fixada uma jornada máxima de trabalho, muita discussão foi travada a respeito da conveniência de sua previsão.

8 Kurz, Robert. Os últimos combates. Coleção Zero à Esquerda. Coord. Paulo Eduardo Arantes e Iná Camargo Costa. Petrópolis – Rio de Janeiro: Vozes, 1997, p. 251.

Amauri Mascaro Nascimento aponta as ideias do liberalismo econômico como um obstáculo apresentado para a não fixação de um limite de jornada de trabalho.9

O aspecto econômico pode explicar porque somente foi possível criar-se uma regulamentação sobre a jornada de trabalho, de forma genérica, para todos os trabalhadores por meio de uma discussão internacional. Importa ainda con-siderar que existiram, mesmo nessa órbita, sérios obstáculos à fixação da jorna-da sob a influência de uma legislação que ultrapassasse os limites de cada nação.

Mozart Victor Russomano também põe em relevo que todos os programas reivindicatórios da classe trabalhadora, após o apogeu da democracia liberal, im-plantada pelos ideários da Revolução Francesa, continham duas cláusulas inafas-táveis: melhores salários e redução da jornada de trabalho.109

E Miguel Hernainz Marquez destaca que, durante o período do indus-trialismo, eram frequentes jornadas de mais de 14 horas diárias de rabalho.11

As intervenções iniciais do poder público, no que concerne à jornada, tiveram como objetivo apenas limitar as horas de trabalho das mulheres e dos menores. Foi assim, nomeadamente, na Inglaterra, na França, na Alemanha e na Itália.

Conforme ensina Amauri Mascaro Nascimento, a primeira disposição de natureza civil sobre o descanso data do ano de 321, quando o imperador Constantino proibiu toda e qualquer espécie de trabalho aos domingos, salvo atividades agrícolas. A essa disposição, sucederam-se os decretos de Arcádio e Honório, imperadores do Oriente e Ocidente, e o de Teodósio II, o primeiro datado de 27 de agosto de 399. E o Concílio de Laodiceia, de 366, determinou que os cristãos descansassem aos domingos.12

9 Nascimento, Amauri Mascaro. Curso de Direito do Trabalho. 14ª ed. rev. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 630. O autor destaca que os princípios reinantes, decorrentes da economia liberal, repudiavam a intervenção estatal na limitação de um período máximo de horas de trabalho. A fixação de uma jornada máxima era entendida como uma interferência prejudicial nas relações individuais, restringindo a autonomia e liberdade das partes.10 Russomano, Mozart Victor. O Empregado e o Empregador no Direito Brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 1984, p. 483.11 Hernainz Marquez, Miguel. Tratado Elemental de Derecho del Trabajo. 4ª ed., corr. e aum. Madrid: Instituto de estudios Politicos, 1949, p. 405.12 Nascimento, Amauri Mascaro. Curso de Direito do Trabalho, op. cit., p. 643-644.

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Alice Monteiro de Barros alude ao registro histórico de um ato normativo, na Espanha, denominado de Lei das Índias, datado de 1593, prevendo uma jornada de oito horas. Lembra que na Inglaterra a primeira lei regulatória fi-xou a jornada em 10 horas; em 1847, na França, para os trabalhadores de Paris igual limite ficou estabelecido em 1848 e nos Estados Unidos, em 1868, para os empregados federais, o marco máximo foi de oito horas diárias. Na Améri-ca Latina, os primeiros países a legislarem sobre a jornada de 8 horas foram o Chile (1908), para os trabalhadores das empresas estatais e Cuba (1909) para os empregados de igual natureza, seguido do Uruguai, em 1915.13

Carlos Garcia Oviedo lembra que uma discussão pioneira acerca da tutela de âmbito internacional sobre direitos trabalhistas dirigiu-se à limitação da jornada de trabalho.14

A história revela que foram fatores fundamentais para estabelecer as re-gras de duração máxima do trabalho diário: a pregação de Ricardo Owen, nos meados do século XIX, o papel da doutrina social da Igreja, guiada pelo tra-balho de Leão XIII em sua encíclica Rerum Novarum, e a luta dos trabalhado-res, desde o Congresso Socialista Internacional, realizado em Paris, em 1889.

A primeira regulamentação genérica, ou seja, dirigida a todos os trabalha-dores, ocorreu com o Tratado de Versalhes, quando ficou delimitada uma jor-nada máxima de 8 horas. Os países em todo o mundo passaram a seguir essa orientação em seus ordenamentos jurídicos internos.

3. A questão da jornada de trabalho no sistema jurídico brasileiro

Ao longo dos anos, constata-se uma preocupação dos estudiosos do di-reito e da Organização Internacional do Trabalho com a redução progressiva das horas de trabalho. Como lembra Arnaldo Sussekind, a Recomendação n. 116, de 1962 da OIT, enfatiza a ideia da restrição gradual das horas de traba-lho, sem diminuição dos salários.15

13 Barros, Alice Monteiro de. Curso de Direito do Trabalho. São Paulo: LTr, 2005, p. 621.14 Garcia Oviedo, Carlos. Tratado Elemental de Derecho Social, op. cit., p. 57. Lembra o autor que Roberto Owen representa um marco valioso dessa idéia, posto que, já no ano de 1818, dirigiu ao Congresso de Aix-la-Chapelle um requerimento, no sentido de que aquele órgão conseguisse, junto aos governos da Europa, uma limitação legal, de caráter internacional, para a jornada de trabalho.15 Sussekind, Arnaldo e outros. Instituições de Direito do Trabalho, v. 2, op. cit., p. 785.

Nas últimas décadas, dois países vêm demonstrando, em particular, es-tar em consonância com esse pensamento da OIT. Trata-se da França e da Alemanha. Como lembra Jorge Eduardo Levi Mattoso, a França é exemplo de redução acentuada da jornada anual de trabalho. A restrição do número de horas de trabalho por semana foi visualizada como uma perspectiva para conter o desemprego.16

O Brasil também atendeu, em 1988, por ocasião da promulgação da atu-al Constituição, a esse compromisso de diminuição da jornada de trabalho semanal, ao reduzi-la de 48 horas para 44 horas, conforme dispõe o art. 7º, inciso XIII. Todavia, esse limite ainda é bastante alto, notadamente se consi-derarmos a necessidade de redivisão do trabalho disponível, como alternativa para conter o desemprego, diminuir a pobreza e permitir a inclusão social e econômica.

A. Hueck e H.C. Nipperdey cuidam dessa matéria sob a denominação de “Proteção do Tempo de Trabalho” e revelam que, mediante acordos e con-venções coletivas, tem sido fixada uma jornada de trabalho inferior àquela es-tabelecida pelo legislador, que foi a de oito horas por dia. Reconhecem existir um movimento no sentido da redução da jornada de oito horas.17

Jeremy Rifkin considera que qualquer que seja a abordagem empregada para a redução da jornada semanal de trabalho, trata-se de um acontecimento inexorável em todas as nações do mundo. Essa restrição do tempo de tra-balho permite que ocorra uma acomodação dos ganhos de produtividade, decorrentes de novas tecnologias, que trouxeram a economia de tempo e de trabalho do homem 18.

16 Mattoso, Jorge Eduardo Levi. A desordem no trabalho 1ª. reimp., São Paulo, Página Aberta, 1995, p. 112.17 Hueck, Alfred & Nipperdey, H. C. Compendio de Derecho del Trabajo, trad. Dr. Miguel Rodriguez Piñero e Dr. Luis Enrique de La Villa. Madrid: Editorial Revista de Derecho Privado, 1963, 230-231. Lembram os autores que, antes da Primeira Guerra Mundial, não havia sido fixado, no direito alemão, para o trabalhador do sexo masculino adulto, um limite máximo legal de horas de trabalho. Foi um avanço na legislação daquele país que, a partir dos finais de 1918, haja sido limitada essa jornada a 8 horas por dia ou quarenta e oito semanais. A proteção pertinente ao período de trabalho do empregado, de acordo com esses autores, expressa-se em quatro dimensões: a proteção alusiva à duração máxima de tempo diário, ou, eventualmente, semanal ou quinzenal; a tutela referente ao trabalho durante o dia, proibindo ou limitando o trabalho noturno; o amparo do trabalhador, ao serem assegurados pausas ou descansos e, finalmente, a proibição ou restrição de trabalho aos domingos e em dias festivos.18 Rifkin, Jeremy, op. cit., p. 252-253.

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No mesmo sentido é a compreensão de Manuel Alonso Olea. Diz o autor que a restrição do tempo de trabalho se apresenta como um acontecimento intensamente incentivado. E destaca que, só assim, pode entender-se que sejam temas de nossa época a reação contra o pluriemprego; a antipatia em relação às horas extraordinárias, quer proibindo-as, quer gravando fortemente as remunerações obtidas por meio delas; o não acolhimento da generalização de empregos a tempo parcial (esses, quase que exclusivamente, destinados ao trabalho feminino). A redução considerável das horas de trabalho se apresen-ta como alternativa de crescimento econômico, para reduzir o desemprego, haja vista que a diminuição do número de postos de trabalho, a ser oferecido aos indivíduos, acarreta o desaceleramento daquele crescimento, consoante ressalta o autor supracitado.19

As pretensões dos trabalhadores em reduzir o tempo de trabalho contra-tual não se alicerçam em reduções de salários, em ausência de investimentos no aperfeiçoamento profissional, nem, tampouco, na diminuição da cobertu-ra da malha previdenciária.

No Brasil, as normas de proteção alusivas à jornada diária surgiram tar-diamente. Antes de 1930, havia uma só lei limitando a jornada de trabalho. Essa norma, cujo âmbito de validade espacial estava restrito ao então Distrito Federal, dirigia-se aos menores: aos do sexo masculino era assegurada uma jornada máxima de 9 horas de trabalho por dia e, aos do sexo feminino, sete horas, conforme lição de Arnaldo Sussekind.20

Alice Monteiro de Barros lembra que em 1932 foram editados decretos limitando a jornada em oito horas para os comerciários e os industriários, sen-do estendido este parâmetro a outros trabalhadores em 1933; a Constituição de 1934 fixou o limite de oito horas.21

19 Alonso Olea, Manuel, Introducción al Derecho del Trabajo, 5ª ed., rev., ren. e ampl.. Madrid: Civitas, 1994, p. 71. 20 Sussekind, Arnaldo e outros, op. cit., p. 777. Ainda de acordo com o autor, o Decreto n. 21.186, de 1932, iniciou um processo legislativo genérico. As primeiras categorias de trabalhadores beneficiadas foram as dos empregados do comércio e da indústria. E uma outra norma, o Decreto n. 22.033, do mesmo ano, estabeleceu o regime de 8 horas para os empregados comerciários, ficando vedado o labor por mais de 8 horas nas indústrias classificadas como insalubres e nos trabalhos subterrâneos.21 Barros, Alice Monteiro de, op. cit., p. 621.

Amauri Mascaro Nascimento diz que a expressão “jornada” indica uma relação temporal. Seria, assim, a jornada de trabalho, a medida do tempo de trabalho, o período em que o empregado se acha à disposição do empregador.22

Com efeito, é este o critério adotado pela legislação brasileira, ao conside-rar, no art. 4º da CLT, o período em que o trabalhador esteja à disposição do empregador, aguardando ou executando ordens, como sendo serviço efetivo. Acrescenta o legislador que essa é a regra geral e qualquer exceção deverá ter disposição expressamente consignada.

Importa analisar a atenção que a Constituição da República atribui aos temas pertinentes ao trabalho, à cidadania e à dignidade da pessoa humana, a fim de podermos avaliar a natureza do tratamento conferido à jornada de trabalho. Isto se explica, na medida em que temos uma concepção de que a diminuição do tempo de horas de serviço é elemento auxiliar na redução dos níveis de desemprego e de garantia de trabalho para o indivíduo.

Observe-se que nossa lei maior tenta instaurar um momento novo na his-tória da República, democratizando as relações políticas e buscando uma legi-timação no seio da sociedade e da comunidade internacional.

A atual Constituição da República acha-se entre os modelos democráti-cos do mundo. Seus fundamentos e princípios assentam-se não somente em dados de soberania. Considera o pluralismo político, o respeito aos valores sociais do trabalho, a dignidade do homem e de sua cidadania. Estes elemen-tos se aliam no interior de um sistema que consagra a livre iniciativa, ou seja, a liberdade de mercado.

Paralelamente, quando o texto constitucional adota um modelo democrá-tico de direito, sustenta-se no respeito aos princípios mencionados, reputan-do-os imprescindíveis.

22 Nascimento, Amauri Mascaro, op. cit., p. 627. Esclarece o autor que, em se tratando de contrato de trabalho, cuja tônica é a de subordinação jurídica do empregado para com o empregador, deve o termo “jornada” ser considerado como o período em que o empregado se acha à disposição do empregador. E acrescenta que o empregado precisa ser remunerado por estar nessa situação de dependência jurídica em face daquele que utiliza sua força produtiva e não apenas quando, efetivamente, executa algum serviço para o empregador.

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Os direitos sociais integram os direitos e garantias fundamentais, com o inequívoco compromisso, na área das relações de produção, de resguardar a dignidade do homem, o valor social do trabalho e a cidadania.

Neste quadro, a necessidade de oferecer trabalho responde ao pressuposto de dignidade, de que se reveste o indivíduo, além de configurar-se em direito constitucional, enquanto cidadão.

Entre as projeções já delineadas, como providências possíveis para assegurar o valor social do trabalho e do direito ao emprego, acha-se a relativa às jornadas de trabalho. A classe trabalhadora e vários estudiosos do direito têm projetos para diminuí-la, como mencionamos ocorrer em outros países. Existe um en-tendimento razoável de que novos postos de trabalho possam ser criados para os trabalhadores que estejam desempregados. Importa realçar que, na Europa, particularmente na França, na Itália e na Alemanha, existe um amplo debate acerca da redução da jornada de trabalho nessa diretriz. Também Jeremy Rifkin afirma que, nos Estados Unidos, os trabalhadores procuram destruir a resistên-cia dos empregadores à semana de trabalho menor.23

Recente estudo produzido pelo Instituto de Pesquisa Econômica e Apli-cada (IPEA), datado de 29 de julho de 2009 – número 24 – e que se constitui em Comunicado da Presidência da República, intitulado “Carga horária de trabalho: evolução e principais mudanças no Brasil” aborda a questão da dis-tribuição das horas de trabalho no Brasil nos últimos tempos. Nesse estudo, os pesquisadores analisam a evolução nacional da jornada média semanal de trabalho do total de ocupados entre 1988 e 2007.

Tal documento, em sua última seção, refere à mudança na distribuição do tempo de trabalho dos ocupados no Brasil e tem como fonte de informações a Pesquisa Nacional de Amostras por Domicílios (PNAD), produzida pelo IBGE.

Em suas considerações finais, os autores esclarecem que a carga horária

23 Rifkin, Jeremy, O Fim dos Empregos. O declínio inevitável dos níveis dos empregos e a redução da força global de trabalho, op. cit., p. 257. As empresas, segundo o autor, consideram ser preciso reduzir a distância entre a abundância de bens e serviços que são produzidos e o declínio do poder aquisitivo do consumidor. E, paralelamente, haveria uma pressão pública para diminuir a semana de trabalho, como um mecanismo de distribuição mais justa do tempo disponível.

média de trabalho registra tendência de queda desde a vigência da atual Cons-tituição da República. E explica que, por decorrer a fixação da jornada sema-nal de 44 horas de um ato do legislador, dirigindo-a a todos os trabalhadores não amparados por jornadas especiais, foi acompanhado por praticamente em todas as ocupações. Acrescenta que a nova jornada estabelecida pelo le-gislador constitucional foi adotada quer no trabalho formal, quer no informal, quer na área urbana, quer na rural, seja com relação à empresa moderna ou atrasada e a região considerada rica ou pobre.

Destaca que a queda do número de horas que vem se processando, ado-tando-se jornada semanal inferior a 44 horas, não ocorreu de forma homogê-nea para todos os ocupados. Na região Sul ela teria sido maior, tendo como pessoas mais atingidas as mulheres, os trabalhadores com mais idade, aqueles cidadãos com menor escolaridade, os ocupados nas atividades agrícolas e os não remunerados.

Realçam os pesquisadores que a evolução decrescente da carga horária de trabalho de 1988 a 2007 pode esconder, contudo, realidades distintas entre as pessoas que estão trabalhando. É que teria havido, no período analisado, mudanças significativas na distribuição dos ocupados por tempo de trabalho. Registrou-se um aumento do número de trabalhadores com jornada máxima de trabalho, ou seja, realizando horas extras, e também um acréscimo no nú-mero de trabalhadores desenvolvendo suas atividades com jornada mínima (abaixo de 20 horas).

Este quadro, enfatizam os analistas que subscrevem a pesquisa, em que se constata um maior uso do número de horas extras para determinados grupos de trabalhadores e, em outro plano, ocupados com jornadas mínimas de tra-balho, pode não estar refletindo a melhora geral das condições e relações de trabalho no Brasil.

3.1. A jornada extraordinária

Contrariando as leis do progresso econômico e restringindo ainda mais os empregos, acha-se o instituto das horas extraordinárias. Sem dúvida, trata--se de um dos mecanismos mais debilitadores da resistência do trabalhador e obstativo à criação de novos postos de trabalho na empresa.

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É que as horas extraordinárias somente deveriam ser executadas de for-ma eventual ou temporária, a fim de atender às necessidades excepcionais do empregador. Aliás, é nesta linha o tratamento dispensado à matéria pela Convenção n. 1, aprovada pela Conferência Internacional do Trabalho de 1919. Hernainz Marquez igualmente realça que as hipóteses de ampliação das jornadas de trabalho devem ser restritas.24

A legislação brasileira adota o sistema que possibilita a prestação perma-nente de horas extraordinárias, desde que não superiores ao número de duas por dia e mediante a concordância expressa do trabalhador ou do sindicato, geralmente com um acréscimo salarial. É a regra contida no art. 59 da CLT.

Em nosso país, não obstante esteja a jornada extraordinária onerada por um acréscimo de 50% sobre a hora normal, há um exacerbado uso dessa modalidade de prestação de serviços, como evidencia a recente pesquisa do IPEA, acima referida. Infringe-se a legislação, que estabelece não só o limite de horas extras que podem ser prestadas por dia, como as circunstâncias para a sua legitimação.

Ademais, há momentos em que elas podem ser executadas, independen-temente de acordo entre empregado e empregador ou intervenção do órgão de classe. Essas hipóteses acham-se disciplinadas no art. 61 da CLT. Seria o caso de necessidade imperiosa; para fazer face a motivo de força maior, ou para atender à realização ou conclusão de serviços inadiáveis ou cuja inexe-cução possa acarretar prejuízo manifesto. São as denominadas prorrogações excepcionais.

Com propriedade, Arnaldo Sussekind lembra que a Organização Interna-cional do Trabalho (OIT) universalizou a limitação da duração do trabalho diário. Fixou, na Convenção n. 1, a jornada de oito horas diárias e quarenta e oito semanais. Foi este o ponto inicial da I Conferência realizada em 1919, em Washington. Informa o autor que, em 1935, o desemprego havia atingido

24 Hernainz Marquez, Miguel, op. cit., p. 415. O autor, embora admitindo ser necessária certa flexibilidade para que a duração do tempo de trabalho estabelecida por lei adapte-se a determinadas situações excepcionais, permitindo-se, assim, a prorrogação do trabalho, essas devem estar submetidas às regras quanto à extensão e modalidade especial de pagamento, tudo de acordo com um sistema restritivo, haja vista que, ao serem ampliadas demasiadamente as possibilidades de execução de horas extraordinárias, a jornada legal torna-se uma mera ilusão.

milhões de trabalhadores. Considerando este aspecto e que o progresso téc-nico da indústria justificava a redução do tempo de trabalho, a Conferência Internacional do Trabalho, mediante a Convenção n. 47, adotou a jornada se-manal de 40 horas. Todavia, esse documento não foi ratificado por um grande número de países. Acrescenta Arnaldo Sussekind que a recomendação 116, da OIT, datada de 1962, orienta na linha de uma progressiva diminuição do tempo de trabalho, até alcançar a jornada semanal de 40 horas, fazendo seve-ras restrições a prorrogações. Esta proposição da OIT alia-se ao quanto pre-conizado pela Declaração Universal dos Direitos do Homem, datada de 1948, que pugna pela limitação das horas de trabalho, consoante seu art. XXIV.25

Jeremy Rifkin, em O fim dos empregos, indica que uma pesquisa, realizada em 1993, pelo Instituto da Família e do Trabalho, concluiu que os emprega-dos norte-americanos estavam dispostos a conceder mais tempo e energia às suas vidas pessoais, ainda que esta opção pudesse traduzir-se em menores ganhos salariais. Nos Estados Unidos, de acordo com relato de Jeremy Ri-fkin, vem crescendo a oposição dos trabalhadores e dos estudiosos do direito acerca da prestação de horas extras. Citando informes do chefe de Salários e Relações Industriais na AFL-CIO, John Zalusky revela que, no ano de 1993, as horas extras nas fábricas americanas atingiram cerca de 4,3 horas, o índice mais alto registrado até então.26

E, com efeito, depreende-se que motivos de ordem física, moral, psicoló-gica, social e econômica desautorizam o uso indiscriminado de horas extra-ordinárias, sendo essas mesmas razões justificadoras da restrição da jornada diária ou semanal do trabalhador.

Observa-se, portanto, existir uma forte reação dos estudiosos do direito às jornadas extraordinárias, no sentido de proibi-las ou restringir o seu núme-ro. Condicionam sua prestação a motivos relevantes, como o de necessidade imperiosa por parte do empregador ou força maior, tornando sempre forte-mente dispendiosa para aquele a remuneração a ser paga pela execução de horas extraordinárias.

25 Sussekind, Arnaldo e outros, op. cit., v. 2, p. 776-777.26 Rifkin, Jeremy, op. cit., p. 257.

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4. Conclusão

A limitação do tempo de trabalho é o resultado de uma concepção que atende ao aspecto de dignidade do homem, a par de configurar um princípio universal de amparo ao trabalhador. Ao se proteger o empregado, considera--se um lapso de tempo em que deve estar sob as ordens de outra pessoa, inserido em uma dada atividade empresarial.

A redução do tempo de trabalho do empregado corresponde a uma pers-pectiva de melhor qualidade de vida; retarda as aposentadorias precoces; di-minui os ônus do Estado com cuidados com a saúde, o treinamento profis-sional e o desemprego.

Na esfera das relações de trabalho, a pretensão à redução à jornada pode ser enquadrada como uma busca de realização de direitos universais: o de trabalhar sem atingir a exaustão, o de repouso e o da distribuição de emprego entre os que dele se acham desprovidos. Procura-se garantir a vida, a saúde, a dignidade e a solidariedade.

A classe trabalhadora pretende a formulação de um novo contrato de tra-balho, em que a restrição da quantidade de horas de serviço observe alguns parâmetros, como, nomeadamente, os seguintes:

• manutenção dos níveis de direitos trabalhistas assegurados pelo sis-tema jurídico;

• conservação dos padrões de remuneração;

• restrição rigorosa de realização de horas extraordinárias, a fim de per-mitir novas contratações, buscando a redução do desemprego;

• proteção à sua saúde física e psíquica;

• garantia do exercício do direito ao ócio.

Essas pretensões atendem ao caráter universal dos direitos sociais. Na medida em que são evitadas as horas extraordinárias e restringida a jornada diária ou sema-nal de trabalho, preserva-se a saúde física e psíquica do trabalhador, garantindo-lhe o direito ao ócio, este delineado como uma das expressões dessas salvaguardas.

A redução da jornada de trabalho pode ser efetivada mediante um proces-so duplo: o de negociação entre os sindicatos das categorias profissionais e econômicas, bem como por intermédio de uma legislação específica. Neste quadro, o Estado poderá fornecer incentivos às empresas que, adotando a redução de jornada, criem novos postos de trabalho. Essa ação atende, ainda que parcialmente, o problema do desemprego e a necessidade de realização do ócio por parte do trabalhador. Ademais, a menor duração de horas de trabalho representa também um imperativo em torno da redistribuição dos ganhos de produtividade, visando a alcançar um real crescimento econômico.

Não se deve perder de vista que o desemprego gera a exclusão social, as-pecto desestabilizador dos grupos sociais e do próprio Estado. São consequ-ências da ausência de trabalho: a violência; a desigualdade de oportunidades; a diminuição do nível de aperfeiçoamento profissional; a perda de identidade dos indivíduos e a exclusão do homem do processo de interação.

Acrescente-se que as longas jornadas de trabalho favorecem o desgaste físico, mental e emocional, que ensejam desequilíbrio pessoal e social, a par de impedir a abertura de novos postos de trabalho.

Considere-se, ainda, o aspecto individual, estritamente humano, no senti-do de reconhecer e fazer valer o direito do cidadão de dispor de um tempo seu, livre, permitindo-lhe um equilíbrio físico e mental. É que a integridade do homem e o consequente exercício de seus direitos individuais não deve pres-cindir, estruturalmente, da existência de períodos em que possa cuidar de seus interesses pessoais, dedicar-se aos amigos, à família, aos estudos, à recreação, enfim, fazer o que desejar e lhe for possível, ou, simplesmente, nada fazer.

O propósito da Declaração Universal é o de promover o reconhecimen-to universal dos direitos humanos e das liberdades fundamentais, na mesma linha das recomendações e convenções da OIT, cabendo aos diversos países, integrantes dos organismos internacionais, inserirem em seus textos jurídicos esses direitos, fiscalizando sua aplicação e conferindo-lhes eficácia.

Ademais, são objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil a construção de uma sociedade livre, justa e solidária; a erradicação da po-breza e da marginalidade; a redução das desigualdades sociais e regionais e

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a promoção do bem de todos (art. 3º da Constituição da República). E, ao conferir aos particulares a prioridade na exploração da atividade econômica, a Constituição deles exigiu um compromisso social, ao afirmar a função social da propriedade e a busca do pleno emprego, como se vê no art. 170.

Sem dúvida que a redução da jornada poderá atender a esses objetivos, reforçando os laços de solidariedade, mediante a divisão do trabalho dispo-nível e permitindo aos empresários colaborar na erradicação da pobreza e da marginalização, reduzindo-se as desigualdades sociais e regionais.

AGITAÇÃO POLÍTICA E DIREITO TRABALHISTA NOS IDOS DE 1964.1

Prof. Dr. Antonio Torres Montenegro2 (UFPE)

Email: [email protected]

Introdução:

Quando em 2004 um grupo de professores do Programa de Pós-Gradu-ação (PPG) em História tomou conhecimento que um grande lote de pro-cessos trabalhistas iria ser incinerado e iniciou uma peregrinação pelo salva-mento dessa documentação, não seria capaz de imaginar que essa iniciativa se associaria a outros movimentos semelhantes em plano regional e nacional. Este gesto em defesa do salvamento dessa preciosa documentação da histó-ria do trabalho recente em Pernambuco e da própria história da Justiça do Trabalho no estado resultou na assinatura de um convênio entre a UFPE e o TRT 6ª Região, que na época teve o irrestrito apoio do seu presidente em exercício, Dr. Fernando Cabral. Na oportunidade, foram transferidos para o Departamento de História da UFPE 63.386 mil processos. Essa pequena quantidade de processos, se comparada aos mais de 2 milhões existentes no Arquivo Geral, na cidade de Vitória de Santo Antão,3 constituiu-se em uma documentação preciosa para mestrandos e doutorandos do PPG em História da UFPE, como também para pós-graduandos de outros programas dentro e fora desta universidade. Por meio deles foi possível adentrar, de forma mais detalhada, e com maior riqueza de informações, no âmbito das disputas tra-balhistas que ocorreram em Pernambuco a partir da década de 1940. Mas, também, se abriu um enorme leque de possibilidades de pesquisas sobre o

1 Este artigo recebeu valiosas contribuições das Profas. Regina B. Guimarães Neto, Vera Acioli e Socorro Ferraz. A elas sou muito grato.2 Professor do departamento de história da UFPE.3 A cidade de Vitória de Santo está localizada a 45 km da cidade do Recife. É atendida por uma excelente estrada – BR 232 – que permite o acesso à cidade a partir do Recife de maneira rápida e segura.

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mundo social, cultural e político, que foi sendo revelado por meio das narra-tivas que se constituíram nas peças de acusação e de defesa e nas sentenças desses processos.

No entanto, o novo desafio que tem se colocado para esse grupo de pro-fessores pesquisadores do Programa de Pós-Graduação e do Departamento de História da UFPE, juntamente com alunos da graduação, do mestrado e do doutorado, é o de higienizar, catalogar e informatizar toda essa documentação, de forma que ela se torne acessível a qualquer pesquisador. É de conhecimento público a importância da preservação da memória de uma sociedade, pois só por meio dela é possível não só aprender com o passado, mas construir outras formas de entendimento do presente. As experiências históricas vivenciadas em Pernambuco, no período contemplado por uma significativa parcela des-sa documentação do TRT 6ª Região, produziram importantes ressonâncias no campo da Justiça do Trabalho, em razão das atividades do setor portuário, do comércio e do têxtil; por outro lado, a partir de meados da década de 1950, ganharam proeminência as disputas no meio rural, lideradas pelas Ligas Cam-ponesas e que tiveram também como importante conquista a ação do estado a favor dos trabalhadores, que culmina com o conhecido acordo do campo, assinado pelo governador Miguel Arraes de Alencar, em seu primeiro mandato antes do golpe civil militar de 1964.4

Pesquisar os processos arquivados na Justiça do Trabalho é conhecer uma outra dimensão da luta que os trabalhadores desenvolveram em Pernambuco, sobretudo porque há alguns anos vimos tendo acesso a documentação do DOPS–PE, que revela a intensa perseguição policial de que os trabalhadores tornavam-se alvos fáceis, – por serem nomeados de comunistas – ao reivindi-carem seus direitos trabalhistas.5

Hoje a UFPE e o TRT 6ª Região estão juntos num movimento de pre-servação que adquire dimensões nacionais, haja vista a criação de Centros

4 ROCHA, Ítalo. In site ABKNET. Em seu primeiro mandato como governador, ampliou o programa de alfabetização de jovens e adultos pobres, estimulou a luta dos trabalhadores rurais da Zona da Mata por direitos trabalhistas, intermediando a negociação entre camponeses e usineiros, que ficou conhecido como o “Acordo do Campo”. Por esse pacto, os direitos trabalhistas dos camponeses passaram a ser respeitados, os salários da categoria foram regulamentados e ficaram acima do mínimo. 5 MONTENEGRO, Antonio T. História, Metodologia, Memória. São Paulo. Editora Contexto, 2010. P. 151/181.

de Memória dos TRTs em estados como Rio Grande do Sul e Minas Gerais, entre outros.

Entretanto, os pesquisadores da UFPE enfrentavam um grande proble-ma para realização das suas pesquisas. Os processos, por não se encontrarem preparados para uso (higienizados, catalogados e digitalizados), se constituíam numa documentação de difícil manuseio, porque exigia do pesquisador horas e dias a fio na luta para encontrar informações históricas que atendessem aos seus projetos. Além disso, devido à má conservação do papel, mergulhar naquele mundo de processos sem um mínimo de informações prévias, além do perigo da exposição aos fungos que normalmente se desenvolvem nos papéis velhos, desafiava a saúde, a paciência e a sorte do pesquisador para encontrar processos que contemplassem os temas históricos tratados em suas dissertações e teses.

Essa situação, no entanto, foi finalmente revertida quando no final de 2007 a Fundação de Amparo a Ciência e Tecnologia do Estado de Pernam-buco (FACEPE) lançou o edital Multiusuários: de Apoio para a Disponibilização para a Pesquisa de Laboratório Multiusuários e de Acervos de Interesse Científico para a Pesquisa. Ao concorrermos e sermos selecionados, os recursos então alocados possibilitaram constituir uma equipe de estudantes da graduação e do mestra-do em história para higienizar, catalogar (escrever ementas sobre o conteúdo de cada processo) e, em seguida, digitalizá-los.6 Também os recursos permi-tiram a compra de material específico para conservação, armazenagem e uso dos documentos (câmeras, estantes de aço, ar-condicionador etc.) e tornam possível triplicar o número de processos recebidos, que passou de 63 mil para aproximadamente 200 mil, hoje sob a guarda da Pós-Graduação e do Depar-tamento de História da UFPE.

Caminhos da pesquisa:

Realizadas essas considerações introdutórias, para alguns que leem esse artigo e atuam fora da área da História, a pergunta mais importante ou central, talvez, seja a que questiona: como esses processos trabalhistas atendem ao interesse do historiador?

6 A Coordenação Geral deste projeto cabe à minha pessoa e tem a professora Vera Acioli como Coordenadora Técnica.

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Para adentrar este campo de indagações, destacando o ofício do histo-riador, escolhi para esta análise histórica o processo de um trabalhador rural – Antonio Cordeiro Gomes – que interpela na justiça do trabalho o proprie-tário – Alfredo Guerra – do Engenho Serraria, em que trabalhava e era mora-dor, localizado na cidade de Vitória de Santo Antão. Admitido em 5 de agosto de 1959, foi demitido em 18 de julho de 1964. Por não aceitar a forma como o proprietário do engenho o demitiu, cobrou na justiça indenização pela de-missão, férias, 13º salário e aviso prévio. A justificativa do proprietário para a demissão por justa causa desse trabalhador e mais cinco outros empregados foi apresentada à justiça baseada nos seguintes argumentos:

Esses empregados “vinham promovendo agitações e dificultando a administração do enge-nho, inclusive levando para a sede do engenho o conhecido agitador Luiz Serafim, a fim de que este fizesse pregações revolucionárias e anticonstitucionais, tendo por ocasião da prisão de um desses empregados, outro conhecido agitador, Luiz Gonzaga, preso pela polícia e pelo próprio Exército, convidou os demais companheiros de trabalho a fazerem uma greve de solidariedade, tendo paralisado ele, reclamante, juntamente com os demais empregados demitidos, parte das atividades agrícola da propriedade do reclamado, não a paralisando, totalmente, por não haver apoio dos demais trabalhadores, que não estavam de acordo com a pretensão do reclamante e dos seus companheiros demitidos na mesma ocasião; diante disse o reclamado espera que essa MM.. Junta de Conciliação, julgue improcedente a recla-mação, por ter apoio na lei a resolução do contrato de trabalho pela falta grave cometida, e por ser, assim ilegal a presente reclamação. Espera Justiça.7

Esse trecho inicial da contestação do proprietário Alfredo Guerra ao pe-dido de indenização, férias, 13° mês e aviso prévio por parte do trabalhador Antonio Cordeiro Gomes e do grupo de cinco trabalhadores, demitido jun-tamente com ele, revela como as questões políticas do período se constituíam em argumento fundamental para a efetivação destas demissões. No entanto, as expressões ou termos de conotação política que o proprietário procura impingir aos trabalhadores só adquirem significado quando se retoma histori-camente os referenciais de esquerda e direita daquele período e, no nível inter-nacional, a Guerra Fria. Os trabalhadores são acusados de fazerem agitações

7 Processo Trabalhista da Junta de Conciliação e Julgamento de Jaboatão. Processo: 0884/64. P. 5-6.

– embora não se identifique o que efetivamente significa fazer agitações –; de convidarem outro trabalhador, também nomeado de agitador, para fazerem pregações revolucionárias – embora também o significado do termo revolu-cionário não seja apresentado –; e de terem chamado os demais trabalhadores a fazerem uma greve de solidariedade, em protesto contra a prisão pelo exér-cito de um outro trabalhador – Luiz Gonzaga – que também afirmava ser um conhecido agitador. Dessa forma, acusações de cunho político – agitação, agi-tador, pregações revolucionárias e greve de solidariedade – são relacionadas ao universo do trabalho, como se a simples associação desses termos àqueles trabalhadores justificasse o não cumprimento das obrigações trabalhistas por parte do patrão.

Surpreende, ao prosseguir a leitura do processo, como o proprietário, Al-fredo Guerra, ao ser interrogado pela Junta, diz não ter condições de afirmar se o reclamante fazia agitação com outros trabalhadores em sua propriedade, embora este tenha sido um dos argumentos centrais apresentados, para justificar a demissão por justa causa, apresentado pelo proprietário na contestação. Por outro lado, o interrogatório revela ainda como não há, por parte da Junta, um pré-julgamento das Ligas Camponesas, pois indaga ao proprietário se ele tem conhecimento de alguma proibição sobre o seu funcionamento por par-te do governo antes da revolução de 31 de março de 1964, e este responde que não sabe; e acrescenta que o delegado de polícia não proibia a atividade das Ligas Camponesas antes daquela data. Dessa forma, é possível perceber que ao interrogar o proprietário, a própria Junta de Conciliação e Julgamento aponta a atuação das Ligas Camponesas como uma atividade realizada dentro da legalidade constitucional até 31 de março de 1964, e, dessa forma, de certa maneira invalida ou minimiza o argumento do caráter político apresentado na contestação do proprietário para não cumprir com os direitos trabalhistas re-queridos pelo trabalhador Antonio Cordeiro Gomes e pelo grupo demitido.8

Em seguida foi ouvido Antonio Cordeiro Gomes, que afirma:

faz cinco anos que foi admitido nos serviços do reclamado; que foi demi-tido no dia 20 de junho do corrente ano; que o último salário foi de Cr$ 1.100,00 por dia, que era trabalhador na propriedade reclamada, traba-lhando na enxada; que o reclamado não informou ao reclamante porque

8 Idem, p. 9-10.

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motivo o demitia; que não recebeu o pagamento do 13º mês referente ao ano de 1963, com referência ao ano de 1964 nada recebeu; que não hou-ve greve na propriedade reclamada; que pertence ao sindicato rural; que uns 15 trabalhadores todos os trabalhadores da propriedade reclamada são sindicalizados; que o reclamante não provocou nenhuma agitação na propriedade reclamada; que o reclamante trabalhava 8 horas por dia; que o reclamante foi convidado a pertencer as Ligas Camponesas, chegando a dar o seu nome, mas a conselho de sua genitora não contribuiu para as Ligas Camponesas e desistiu de filiar-se a mesma; que 17 trabalhadores da propriedade são filiados às Ligas; que o administrador da propriedade reclamada, de nome Tito Ferreira, pertencia às Ligas Camponesas, sendo o 1º a filiar-se às mesmas; que o administrador não aconselhava aos tra-balhadores a filiar-se às ligas, mas não proibia tomarem parte como seus associados; que o delegado das Ligas Camponesas era o Sr. Luiz Gonzaga e o fiscal era Manoel Izídio; que após a revolução de 31 de março o re-clamante não foi preso nem chamado à Polícia; que só em junho recebeu autorização da reclamada para deixar os serviços de sua propriedade do Engenho Serraria; que trabalhava seis dias por semana; que nos primeiros 3 anos que trabalhou para a reclamada trabalhava seis dias; que depois dos 3 anos passou a trabalhar 3 a 4 dias, porque o administrador informara estar faltando serviço; que o reclamante tanto trabalhava por diária e por tarefa; que as Ligas Camponesas de Vitória de Santo Antão não estão funcionando depois da revolução e foram fechadas pelas autoridades da Polícia; que não sabe informar o motivo porque fecharem as Ligas Cam-ponesas; que apenas foi uma vez às Ligas Camponesas; que o reclamante foi acompanhado do Sr. Tito Ferreira, administrador da propriedade re-clamada e mais o Sr. Izídio, Luiz Gonzaga, Antônio Sabino; que nesta ocasião não estava presente o Sr. Luiz Serafim; que o Sr. Luiz Serafim esteve na propriedade reclamada, a fim de dispensar o reclamante e outros trabalhadores a mandado do reclamado, que não podia comparecer ao en-genho; que o Sr. Luiz Serafim ‘é um grandão do Exército’; que retificando disse que o Sr. Luiz Serafim a quem se refere é o Sr. Luiz Queiroz, uma vez que se equivocou no nome; que não estava presente quando o agitador Luiz Serafim esteve na propriedade reclamada; que não acompanhou os outros trabalhadores que invadirem o Engenho Serraria e não sabe quem tomou parte nesta invasão; que não sabe informar nada a respeito do dia em que o agitador Luiz Serafim esteve na propriedade do reclamado; que o trabalhador Manoel Izídio não foi preso, foi apenas preso o Sr. Luiz

Gonzaga; que o pagamento dos salários da propriedade reclamada eram feitos por semana, todas as sextas-feiras; que no dia em que não trabalha-va no engenho do reclamado ficava trabalhando em sua roça; que possui umas 20 contas de roça; que o reclamante, após sua demissão, ainda não desocupou a casa da propriedade porque não tem como ir morar; que não sabe que tem um prazo de trinta dias para desocupar a citada casa; que as suas lavouras foram avaliadas por um morador na propriedade reclamada em Cr$ 250.000,00, mas que diz que só pode vendê-la por Cr$ 500.000,00; que não paga aluguel do terreno ocupado pelas suas lavouras porque tinha por obrigação prestar serviço ao reclamado, trabalhando seis contas por semana; que não paga aluguel da casa que mora porque os trabalhadores também não pagam, uma vez que sendo trabalhador do reclamado tem direito de morar em casa.9

Ao ler as respostas – que o trabalhador e o proprietário deram à Junta, quando interrogados – é possível estender diversos fios que projetam sinais, signos e práticas representativas de muitas histórias instituídas a partir da re-lação proprietário, trabalhador rural, Justiça do Trabalho e as forças policiais e do Exército após o golpe civil militar de 31 de março de 1964. Opto inicial-mente por analisar as questões da sindicalização rural e da filiação às Ligas Camponesas, que neste relato se apresentam como uma prática que, ao que parece, havia se ampliado de forma significativa no meio rural de Pernambu-co, ou pelo menos em algumas áreas deste estado. Sobretudo quando se tem a informação de que os sindicatos rurais passaram a ter uma atuação mais efetiva a partir de 1962.10 Também nesse relato aparece outro aspecto muito revelador em relação às condições salariais dos trabalhadores rurais nos enge-nhos em Pernambuco: estes tinham direito a um pedaço de terra e a moradia, como parte do seu contrato de trabalho. No entanto, isto não significava que não fossem assalariados, já que tinham direito a 13º mês, férias e indenização se despedidos sem justa causa. Seus salários tanto eram calculados por dias trabalhados (regime de diárias) como por tarefa realizada. No que tange à filiação às Ligas, não são apenas os processos trabalhistas que possibilitam perceber o quanto estas penetravam no meio rural, produzindo a filiação au-

9 Idem, p. 6-8. 10 MONTENEGRO, Antonio Torres. Ligas Camponesas e Sindicatos Rurais em Tempo de Revolução; In O Brasil Republicano: O tempo da experiência democrática – da democratização de 1945 ao golpe civil-militar de 1964. P. 267-268.

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tônoma do trabalhador, pois a contribuição mensal às Ligas era voluntária. Também em documentos do DOPS-PE é possível perceber condições de tra-balho idênticas à descrita nos processos trabalhistas, em que os trabalhadores rurais são apresentados como filiados às Ligas Camponesas.11 Assim, mesmo que a Liga Camponesa mais conhecida seja a do engenho Galiléia, sobretudo pelo fato de seus membros terem conquistado a desapropriação, ainda no ano de 1959, e os trabalhadores estarem submetidos ao regime do foro rural, nos anos subseqüentes muitas Ligas foram fundadas e passaram a fazer o papel de sindicato rural. Organizavam e defendiam os direitos trabalhistas de um número incalculável de trabalhadores rurais, submetidos as mais diferentes formas de contrato de trabalho, e não apenas daqueles que arrendavam a terra – foreiros, parceiros, rendeiros, meeiros, eiteiros entre outros – como alguns autores costumam afirmar.12

Um último aspecto que quero pontuar nessa resposta do trabalhador An-tonio Cordeiro Gomes, quando interrogado pela Junta, refere-se à justificativa que apresenta por não haver desocupado a casa em que morava no engenho Serraria. Embora o direito a moradia seja uma prática comum naquela parte do estado, naquele período, a lei exigia que quando demitido o trabalhador desocupasse a casa em 30 dias. Antonio Cordeiro Gomes então afirma que não tinha essa informação, mas que ainda não havia desocupado porque não tinha onde morar. Essa resposta revela um fenômeno social de enorme am-plitude para a vida de milhares de homens e mulheres trabalhadoras. Ou seja, o processo trabalhista apresentado é revelador de um movimento de maior amplitude – como diversas outras pesquisas já haviam apontado –, ou seja, a transformação das relações de trabalho no meio rural, especialmente naquele território dominado pelo plantio da cana-de-açúcar. À medida que as relações de trabalho se estabelecem no plano da compra e venda da força de trabalho – ou seja, do estrito assalariamento – trabalhadores como Antonio Cordei-ro Gomes e o grupo com ele demitido, e, provavelmente, trabalhadores em muitos outros engenhos em Pernambuco, não terão mais direito à moradia e serão obrigados a construir barracos nas periferias das cidades ou migrar para

11 MONTENEGRO, Antonio Torres. Metodologia, História, Memória. São Paulo. Editora Contexto, 2010. P. 156-161.12 Pode-se destacar, entre outros, Antonio Callado em Os industriais da seca e os “Galileus” de Pernambuco. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1969.

viver nas favelas do Recife. Dessa maneira, a Justiça do Trabalho, que pode até protegê-los da demissão arbitrária e violenta, não oferece alternativa de moradia para o trabalhador e sua família.

A palavra das testemunhas:

A primeira das testemunhas da defesa, o trabalhador João Manoel da Sil-va, afirmou não ter visto nem ouvido que Antonio Cordeiro Gomes agitava os trabalhadores, mas que ouviu falar que ele “tirava contas corretamente” e “prestava conta de sua tarefa”, que sempre o via trabalhando “em tirar cana às margens da estrada, na propriedade do reclamado, cuja plantação era feita das margens para o centro da propriedade e que o reclamante nem parava para conversar com ele depoente”. A segunda testemunha da defesa, o tra-balhador Amaro Ribeiro de Araújo disse que Antonio Cordeiro Gomes “foi dispensado porque pertencia às Ligas Camponesas e que o mesmo entrou nas referidas Ligas porque foi iludido”, que não houve greve na propriedade do reclamado, e que ele era bom trabalhador. E mais: “que não era proibido que os trabalhadores fizessem parte das Ligas Camponesas, que não assistiu à palestra do Luís Serafim quando foi ao engenho” e “que o administrador da reclamada fazia parte das Ligas e mandava que os demais trabalhadores também fizessem parte e que o administrador mandava que os trabalhadores entrassem nas Ligas, do contrário não recebiam serviços.” Que nada mais sa-bia informar “se as Ligas Camponesas foram fechadas por atos subversivos e que o depoente não fazia parte das referidas Ligas”. E que Antonio Cordeiro Gomes saíra das Ligas a pedido de sua mãe e que não soube informar se este tinha “pleiteado os seus salários sem prestar serviço à reclamada por exercer as funções de fiscal das ligas”. A terceira testemunha disse que Antonio Cor-deiro Gomes era uma pessoa trabalhadora, e que o administrador freqüentava as Ligas Camponesas para dar o bom exemplo, e não soube informar se ele era delegado das mesmas.13

Todas as três testemunhas de defesa afirmaram que Antonio Cordeiro Gomes era um bom trabalhador, cumpridor de suas obrigações, que não era agitador e que não houve greve ou paralisação no engenho Serraria. O ele-mento novo que surge nesses depoimentos é que ser associado às Ligas Cam-

13 Processo JCJ 0884/64. Reclamante: Antonio Cordeiro Gomes. Reclamado: Alfredo Guerra. P. 10-16.

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ponesas adquire uma dimensão muito significativa. Possivelmente porque esse foi o eixo da acusação apresentada pelo proprietário do engenho Serraria para justificar a demissão de Antonio Cordeiro Gomes e mais um grupo de cinco trabalhadores. No entanto, o próprio administrador era filiado às Ligas Camponesas (como reconhecera o proprietário) e no depoimento de defesa – de Amaro Ribeiro de Araújo – este afirma que ele pressionava os demais trabalhadores do engenho para se filiarem.

Pela parte do proprietário Alfredo Guerra, apresentaram-se apenas duas testemunhas. A primeira, o trabalhador rural João de Barros Vasconcelos que reafirmou todas as acusações sustentadas pelo proprietário, sobretudo a de que Antonio Cordeiro Gomes convidara o Sr. Luiz Serafim para promover comícios e incitar greve no engenho; porém, algumas vezes entrou em contra-dição com a própria declaração do proprietário ao dizer que o administrador não era filiado às Ligas. E encerra seu depoimento afirmando que Antonio Cordeiro Gomes fora demitido apenas por pertencer às Ligas. A forma como esta testemunha respondeu às perguntas da Junta de Conciliação e Julgamento talvez tenha induzido esta a indagar se ele não tinha sofrido qualquer tipo de ‘insinuação’ por parte do proprietário, ao que o mesmo respondeu que não. A segunda testemunha, o trabalhador Amaro Carneiro, disse ter visto Antonio Cordeiro Gomes ateando fogo no canavial do engenho Serraria juntamente com outros trabalhadores. Que essa prática era do conhecimento de diversos trabalhadores. Porém, logo em seguida, no mesmo depoimento, afirma que estava enganado, ou seja, “equivocou-se ao indicar o reclamante como in-cendiário”. Não temos acesso aos autos para averiguar sobre qual a pergunta ou a razão pela qual se fez esta pergunta à testemunha, após acusar o colega de incendiário, e voltar atrás para simplesmente dizer que era um equívoco. Também informou que o administrador “filiou-se às Ligas por coerção de Antonio Cordeiro Gomes”. E que “depois da revolução este voltou a agitar” e que não foi preso porque se foragiu, evitando uma viatura da radiopatrulha que esteve no engenho procurando pelo mesmo.14

Ao se concluir a leitura do depoimento das testemunhas de acusação, é possível perceber como a motivação política é novamente a principal refe-rência utilizada para desqualificar o trabalhador Antonio Cordeiro Gomes

14 Idem, p. 17-20.

e, dessa forma, justificar sua demissão por justa causa. No entanto, ter per-tencido às Ligas Camponesas (embora nem isso tenha sido possível provar de maneira efetiva), não se constituiu como argumento aceito pela Junta de Conciliação e Julgamento para o não cumprimento das obrigações trabalhis-tas por parte do proprietário Alfredo Guerra. Afinal, como informou a Junta, as Ligas eram uma entidade civil inteiramente legal.

Em face do que se lê no processo, não foi difícil para o advogado de defe-sa, Josué Custódio de Albuquerque, desfazer qualquer relação entre seu clien-te e o adjetivo de agitador, ou que ser filiado as Ligas justificasse sua demissão por justa causa, visto que mesmo após a “revolução de 31 de março de 1964”, seu cliente continuou a trabalhar até junho do mesmo ano. Além do mais, o simples motivo de ser filiado às Ligas Camponesas, “consideradas atualmente como órgão subversivo” não constituiu justa causa, visto que o mesmo órgão era apoiado e defendido tanto pelo governo do estado como pelas autorida-des federais, e que, por fim, “não se pode atribuir ao simples trabalhador rural a agitação do campo”, concluiu o advogado.

Já o advogado do proprietário do engenho, o Dr. José Ivo de Carvalho Aroucha, reafirmou que nos autos estaria comprovado como a rescisão do con-trato do trabalhador por justa causa deveria ser mantida, pois estariam provados os reiterados atos de indisciplina e insubordinação dos trabalhadores.

Polícia e trabalho:

Concluída a etapa do julgamento, em que se ouviu as testemunhas da parte do trabalhador e da parte do proprietário, após as considerações dos respecti-vos advogados e não havendo possibilidade de conciliação, foi marcada uma nova audiência, que se realizaria no prazo de cinco dias.

Na fase do processo, em que se passou a ouvir as duas testemunhas do proprietário (João de Barros Vasconcelos e Amaro Carneiro) a Junta, que vi-nha sendo presidida pela juíza do trabalho Dra. Irene de Barros Queiroz, pas-sou então a ser presidida pelo juiz do trabalho Dr. Aloísio Cavalcanti Moreira. Não é possível avaliar se essa mudança de presidência na Junta significou alguma alteração na perspectiva de encaminhamento do julgamento, por não se ter maiores informações sobre a perspectiva ideológica desses magistrados.

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No entanto, encerrada essa fase do processo, o juiz presidente da Junta, Dr. Aloísio Cavalcanti Moreira solicitou diligências. Ou seja, uma verificação fora dos autos, que seria realizada, segundo consta no processo junto ao IV Exército, à Secretaria de Segurança Pública de Pernambuco e à Delegacia de Polícia de Vitória de Santo Antão em busca das seguintes informações: a) se qualquer inquérito instaurado em decorrência da revolução de 31 de março de 1964 apurou-se atividade subversiva do reclamante (entenda-se o trabalhador Antonio Gomes Cordeiro) no engenho do reclamado (entenda-se do proprietário Alfredo Guerra); b) se há qualquer registro de movimento subversivo no engenho Serraria, pertencente ao reclamado após a revolução de 1964 e, em caso afirmativo, em que data. Disse ainda o Juiz Presidente que, sendo notória, a participação, tanto do Exército como da Polícia Civil no combate as atividades contrárias ao regime e à propriedade privada, a resposta de qualquer daquelas autoridades será suficiente para o fim de completar a instrução processual.15

A diligência requerida pelo juiz presidente da Junta diz respeito ao que ele denomina ‘atividade subversiva’ e à existência de qualquer inquérito acerca desse tipo de atividade que tenha ocorrido após o que ele nomeia de “revo-lução de 31 de março de 1964”. Ou seja, só há interesse em investigar o que se designa atividade subversiva após o golpe civil militar de 1964. Do que se entende que, antes dessa data, as atividades nomeadas subversivas não existis-sem, ou não tivessem essa denominação. Deseja saber ainda se há registro de atividade nomeada subversiva no engenho Serraria após 31 de março do cor-rente ano. E, para finalizar, afirma o magistrado que a Polícia Civil e o Exérci-to participam do combate às atividades contrárias ao regime e a propriedade, e, portanto, que as respostas das autoridades daqueles órgãos eram suficientes para completar a instrução processual. Dessa forma, se compreende como, após “31 de março de 1964” qualquer atividade considerada contrária ao re-gime e mesmo à propriedade privada passava a ser objeto de investigação do Exército e da polícia. E mais ainda, que as autoridades daqueles órgãos do estado poderiam ‘completar’ a instrução do processo trabalhista em tela. As-sim, algum inquérito levado a efeito pelo Exército ou pela Polícia Civil deveria alterar o presente processo trabalhista.

Dessa forma, a Junta de Conciliação e Julgamento de Jaboatão encami-nhou, em 16 de fevereiro de 1965, ofícios ao IV Exército, à Delegacia de

15 Idem, p. 20.

Polícia de Vitória de Santo Antão e à Secretaria de Segurança Pública de Per-nambuco solicitando informações que atendessem à diligência do presente processo trabalhista. Na data prevista para a nova audiência (10 de março de 1965), apenas havia sido recebida a resposta da Delegacia de Polícia de Vitória de Santo Antão, na qual o major delegado afirma que nada consta naquela de-legacia acerca de atividade subversiva contra Antonio Cordeiro Gomes, bem como nenhum registro de movimento subversivo no engenho Serraria após a “revolução de 31 de março de 1964”.16 No entanto, a audiência do dia 10 de março foi adiada para o dia 30 de março de 1965, por não haver chegado as respostas do IV Exército e da Secretaria de Segurança Pública. Mas na nova data da audiência faltava ainda chegar a resposta da Secretaria de Segurança Pública, o que produziu um novo adiamento para o dia 27 de abril de 1965.

A resposta do IV Exército à Junta, depois do envio de um segundo ofício solicitando informações (o primeiro no dia 16/02 e o segundo no dia 25/02 de 1965), possibilita uma leitura que revela as relações de poder institucional que estão sendo construídas entre o Exército e outras instâncias de poder do Esta-do. O ofício resposta inicia com o Chefe do EM do IV Exército incumbindo a outro oficial responder a solicitação do juiz presidente da JCJ de Jaboatão, informando que qualquer registro nos arquivos do Estado Maior desta Grande Unidade tem finalidade de uso interno e, somente em caso de evidente interesse do Exército, será for-necido a outras organizações. No caso, parece-nos, as informações poderiam ser solicitadas à Secretaria de Segurança Pública. O IV Exército não realizou IPM específico para apurar ir-regularidades em nenhum engenho neste ou noutro Estado.17 É revelador que o Chefe do IV Exército (General Valter Menezes Paes) não responda diretamente ao juiz presidente da JCJ, mas nomeie um subalterno para fazê-lo. Por outro lado, no ofício resposta, o IV Exército informa que esta instituição não tem nenhuma relação de colaboração com a Justiça (que nomeia de organização), ou seja, as informações que por acaso detivessem apenas seriam fornecidas caso fosse do interesse do Exército. Assim sendo, se conclui que o interesse do Exército está acima dos interesses da Justiça e, portanto do próprio Estado. Mas em seguida, como se lê, instrui a JCJ a como agir nessas situações, ou seja, deveria buscar esse tipo de informação junto a Secretaria de Segurança Pública. E, por fim, in-forma que o Exército não realizou IPM em nenhum engenho de Pernambuco

16 Idem, p. 28.17 Idem, p. 30.

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ou de outro estado, o que deixa claro que a Junta não deveria buscar em defi-nitivo esse tipo de informação junto àquela Força. Dessa maneira, se encerra a colaboração do IV Exército à diligência encaminhada pelo Juiz Presidente Dr. Aloísio Cavalcanti Moreira.

A juíza Irene de Barros Queiroz reassume a presidência da JCJ de Ja-boatão, retornando à sua alçada o julgamento do referido processo. Solicita novamente à Secretaria de Segurança de Pernambuco as informações ante-riormente requeridas. No entanto, como não obtém resposta daquela Secre-taria, na audiência do dia 27 de abril, decide dar prosseguimento ao processo, considerando que as informações fornecidas pela Delegacia de Vitória de Santo Antão seriam consideradas suficientes, e, dessa forma, encerra a fase de instrução do processo. É marcada a data de 07 de maio para o julgamento. Como o proprietário nem seu representante compareceram à audiência, não houve possibilidade de conciliação.

Na audiência do dia 7 de maio, a juíza presidente, após relatar o processo e colher os votos dos vogais, pronunciou a sentença, em que por votação unânime foi julgada procedente a reclamação de Antonio Cordeiro Gomes contra Alfredo Guerra. Dessa forma, o trabalhador demitido teria direito a Cr$ 165.000.00 de indenização; Cr$ 66.000.00 de férias; Cr$ 19.250.00 corres-pondente a 7/12 avos do 13º do ano de 1964 e Cr$ 33.000.00 de aviso prévio. E mais juros de mora e custa do processo no valor de Cr$ 5.991.00 a serem pagos pelo proprietário.

O processo iniciado em 10 de novembro de 1964 tem finalmente sua pri-meira sentença proferida e em seguida publicada em 10 de maio de 1965. Em todo esse período, no qual foram realizadas oito audiências (além de duas canceladas), exigindo gastos com passagens, o envolvimento com o processo resultou no pagamento, para o trabalhador demitido injustamente, do valor total de Cr$ 283.250.00. Uma quantia bem menor do que os Cr$ 500.000.00 que afirma valer seu roçado no engenho Serraria. Ou pouco mais da metade do valor que outro morador avaliou sua roça, no valor de Cr$ 250.000.00. Se considerar-se que de Cr$ 283.250.00 ainda terá talvez ser abatido o pagamen-to dos serviços advocatícios, em torno de no mínimo 10% do valor total, res-tará então líquido a Antonio Cordeiro Gomes Cr$ 254.925.00. Normalmente estes 10% seriam pagos pelo proprietário (que foi condenado nos autos), caso

o advogado do trabalhador fosse do sindicato. No entanto, essa informação não é apresentada nos autos.

Labirintos da Justiça:

O trabalhador rural Antonio Cordeiro Gomes teve sua moradia desocupada no engenho Serraria como recomendava a lei? O processo não informa. Provavelmen-te sim. Onde passou a morar com a sua família? Também essa informação os autos não dão. Será que conseguiu trabalho em outro engenho, com direito a moradia, tendo colocado o antigo patrão na justiça? Deve ter se tornado difícil naquela região. Também não há informação se conseguiu colher sua roça e vender na feira ou a al-gum atravessador negociante. O que se tem de seguro é que se mostrou uma pessoa determinada, pois não deixou de comparecer a nenhuma audiência.

Entretanto a batalha não estava ganha. Apesar da decisão unânime da Junta de Conciliação e Julgamento de Jaboatão ter lhe dado uma sentença in-teiramente favorável, em 11 de junho de 1965, o proprietário Alfredo Guerra entrou com um recurso ordinário para o colendo Tribunal Regional do Trabalho 6ª Região, tendo em vista, segundo o mesmo, que a decisão teria sido proferida ao arrepio da prova dos autos e do direito.18

Nas razões apresentadas no recurso ordinário, o recorrente repete as mesmas acusações já apresentadas anteriormente, além de procurar respon-der a insuficiência ou a inexistência de provas, apontadas pela JCJ de Jaboa-tão. Nesse aspecto alega que: O fato de não haver registro nos arquivos da delegacia auxiliar, nem de haver inquérito contra o reclamante, não significa que ele seja bom trabalhador, que ele não tenha cometido falta grave prevista na C.L.T. ou no E.T.R., in casu. Além do mais, muitos trabalhadores que agitavam o campo, que ocupavam propriedades rurais, que impediam os companheiros de trabalhar, não foram processados, nem tiveram seus nomes envolvidos em inquéritos policiais, talvez devido as suas condições de trabalhadores rurais, sem grande influências nos governos, quando havia necessidade de processar os maiorais, os cabeças.19

O argumento inicial do recurso ordinário revela como outra vez o proprie-tário busca na motivação política a razão fundamental para justificar a demis-

18 Idem, p. 46. 19 Idem, p. 47.

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são por justa causa, embora não apresente nenhuma prova que consubstancie seu argumento, como exige a Justiça. Surpreende ainda, no recurso apresen-tado, a reprodução que realiza dos depoimentos das suas testemunhas, traba-lhadores do seu engenho, João de Barros Vasconcelos e Amaro Carneiro, que cometeram significativas contradições. O primeiro afirmando que o adminis-trador Tito Ferreira não era filiado às Ligas Camponesas, quando o próprio Alfredo Guerra proprietário do engenho Serraria tinha reconhecido perante a Junta a filiação deste. No entanto, surpresa ainda maior é este insistir em apresentar Antonio Cordeiro Gomes como incendiário de canaviais, quando sua própria testemunha – Amaro Carneiro –, que havia feito esta acusação em seu depoimento, afirmou em seguida que se equivocou e declarou que Antonio Cordeiro Gomes não era incendiário.

Em 22 de junho de 1965, foi encaminhada uma notificação a Antonio Cordeiro Gomes para, no prazo de dez dias, apresentar uma resposta ao re-curso ordinário então encaminhado ao egrégio Tribunal Regional do Traba-lho 6ª Região. Em 5 de julho o advogado Josué Custódio de Albuquerque exibe as contra razões ao recurso ordinário interposto pelo proprietário do engenho Serraria. Nas “Razões do Recorrido”, para utilizar um termo jurí-dico, foi relativamente fácil ao advogado solicitar ao tribunal a manutenção integral da sentença, pois os argumentos de indisciplina, de não cumprimento das tarefas, de incitamento a greve entre outras acusações não se sustentam em provas. Além do mais, como alega o advogado, ter pertencido às Ligas Camponesas no passado não se consubstancia em crime, pois era uma enti-dade legal.

No dia 17 de julho, o procurador regional Ruy do Rego Barros, após re-ceber os autos, dá um parecer inteiramente favorável a Antonio Cordeiro Gomes, recomendando que a sentença da primeira instância seja confirmada. Afirma ainda o procurador que o proprietário não conseguiu provar ter o trabalhador cometido faltas graves, que lhe quis imputar. Além do mais, ainda segundo o procurador, as testemunhas favorecem ao trabalhador, bem como as informações prestadas pela Delegacia de Polícia de Vitória de Santo Antão e pela Secretaria de Segurança Pública. Dessa forma, opina no sentido de que seja negado provimento do recurso interposto.20

20 Idem, p. 58.

Em 5 de outubro de 1965, o Tribunal Regional do Trabalho 6ª Região, em sessão ordinária, resolveu por unanimidade, de acordo com o parecer da Procuradoria Regional, negar provimento ao recurso para confirmar a decisão recorrida. Mas só em 16 de março de 1966 a conclusão do acórdão foi publi-cada no Diário Oficial.

Em 30 de março de 1966 o proprietário Alfredo Guerra requereu que o presente Recurso de Revista seja processado na forma da lei, a fim de que o colendo Superior Tribunal do Trabalho reconheça a divergência entre os julgados e a inobservância da lei, reformando a decisão recorrida.21

No entanto, o pedido de revista foi negado e em 27 de setembro de 1966 o trabalhador rural Antonio Cordeiro Gomes recebeu o valor de Cr$ 283.250,00 como indenização por sua demissão sem justa causa.

História, Trabalho e Justiça:

A leitura e o acompanhamento dos registros que chegam até os dias de hoje, por meio do presente processo trabalhista, possibilitam algumas refle-xões históricas. Num primeiro plano, poder-se-ia destacar como a intensa luta por direito à terra e a defesa dos direitos trabalhistas implementados por vários setores da sociedade civil até 1964, após o golpe civil militar, são nomeados de subversão e incitamento à desordem e passam a ser tratados como caso de polícia. Em outros termos, a mesma luta por direitos e a filia-ção às Ligas passam a ser nomeadas de agitação e desrespeito à ordem, como está registrado nos próprios autos transcritos neste texto; a análise histórica tem como foco primordial as relações, os percursos, as práticas, porque através do seu estudo é que se poderão construir outras formas de compreensão, que desnaturalizem a relação ou a representação que procurava associar de forma unívoca o objeto ou a coisa à palavra. Ou, ainda, como esse movimento de desnaturalizar as palavras revela um combate, uma luta na história, um desfazer de laços e armadilhas que trazem embutido o controle constante sobre a vida e o fazer dos trabalhadores pobres e, por que não dizer, de todos nós.22

É possível compreender como a Justiça do Trabalho irá, ela própria, acio-nar as instâncias da polícia e do Exército, para materializar esse novo padrão

21Idem, p. 67.22 MONTENEGRO, Antonio Torres. História, Metodologia, Memória. São Paulo. Editora Contexto, 2010. P. 19.

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de julgamento, em que a luta por direitos trabalhistas será reconhecida e no-meada de subversão e contrária ao novo ordenamento político instituído após o golpe civil militar de 1964. Ao mesmo tempo, a Justiça do Trabalho se cons-tituirá num espaço de direito que contém uma dimensão simbólica bastante significativa da resistência do trabalhador aos arbítrios patronais e mesmo das intimidações policiais, como alguns processos permitem analisar.

Porém, há ainda que se analisar como a Justiça do Trabalho e suas práticas são e não são igual para todos. A leitura do quadro abaixo, onde – em alguns anos – mais de 60% dos processos são arquivados pelo não comparecimen-to do trabalhador – reclamante –, revela as inúmeras dificuldades deste em acompanhar o longo ritual judicial, as inúmeras audiências, os adiamentos. A Justiça opera com uma representação ideal de cidadão, ou seja: uma pessoa alfabetizada, com residência fixa, conhecedor dos seus direitos e deveres. Na medida em que muitos trabalhadores não atendem a esse perfil, torna-se mui-to difícil acompanhar e fazer valer seus direitos junto a Justiça do Trabalho. É possível que esta seja uma das explicações para o abandono e o arquivamento de um número tão significativo de processos trabalhistas.

RESULTADO DO PROCESSO: ARQUIVADORESULTADO DO PROCESSO: ARQUIVADO

ANO / RESULTADO

ARQUIVADO (total de 4.052 processos)

TOTAL MOTIVO: NÃO

COMPARECIMENTO DO RECLAMANTE

Nº % Nº %

1963 70 17,54 44 65,71

1964 33 12,94 17 51,51

1965 33 13,69 22 66,66

1966 33 22,15 16 48,48

1967 25 10,33 12 44,00

1968 101 14,33 68 67,32

1969 106 12,17 81 76,41

1970 180 26,39 99 55,00

1971 73 21,60 51 69,86

1972 22 12,94 19 86,36

TOTAL 676 16,68 (do

total de 4.052)

429 63,46 (do total de 676))

Fonte: Equipe do Projeto TRT/UFPE com apoio da FACEPE e do NEAD. Coordenado pelo Prof. Antonio Torres Montenegro e pela Profa. Vera Acioli.

Registros, linguagens, relações de trabalho situam-se historicamente e emitem signos

abertos a diversas análises que se projetam em nossa contemporaneidade por meio dessa

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Fonte: Equipe do Projeto TRT/UFPE com apoio da FACEPE e do NEAD. Coordenado pelo Prof. Antonio Torres Montenegro e pela Profa. Vera Acioli.

Registros, linguagens, relações de trabalho situam-se historicamente e emi-tem signos abertos a diversas análises que se projetam em nossa contem-poraneidade por meio dessa ampla massa documental que são os Processos Trabalhistas, e que vêm se tornando hoje no Brasil alvos de uma importante memória arquivística.

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MUNDOS E IMUNDOS DE(O) TRABALHO: POR UMA CRÍTICA HISTÓRICA DA CATEGORIA TRABALHO

Durval Muniz de Albuquerque Júnior1

Email: [email protected] & [email protected]

Reinhart Koselleck,2 ao propor uma semântica dos tempos históricos, chamou atenção para o fato de que os historiadores devem tratar também historicamente o seu próprio vocabulário, devem atentar para o fato de que os conceitos, noções ou palavras que a historiografia utiliza também pos-suem uma historicidade, também emergem em dados momentos e contextos sociais, políticos e culturais e são, portanto, signos das próprias mutações acarretadas pelo tempo, nos mais variados aspectos do social, inclusive no campo linguístico. O historiador alemão propõe que qualquer pesquisa his-toriográfica comece pelo questionamento, pela crítica e pela análise histórica das próprias categorias de pensamento, pela análise da historicidade dos con-ceitos que ajudaram a formular a problemática da pesquisa e sustentaram a sua análise e sua abordagem. O historiador não deve tomar as palavras que delimitam o seu tema de pesquisa, os nomes que se atribuem a seu objeto, o léxico, a sintaxe e a semântica que constituem seu campo de estudos, como dados da realidade simplesmente, como coisas, como obviedades, como um a priori que não necessita de questionamento, como sendo de saída o referente, o fato, o real, do qual se vai falar, o qual servirá de pretexto para sua análise. A nossa relação com a empiria do mundo, com as coisas, com a realidade é mediada pela linguagem, que nos chega através de nossa capacidade de sim-bolização e metaforização. As palavras não são as coisas, elas são metáforas das coisas; têm realidade e espessura próprias; elas transportam, transforman-do, as coisas até nós. Portanto, as palavras, os conceitos, as categorias também

1 Professor do Departamento de História e da Pós-Graduação da UFRN.2 Ver: KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado. Rio de Janeiro: Contraponto, 2006.

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constituem e fazem parte da realidade do mundo, devendo ser interrogadas quanto ao papel que nele desempenham, sobre que tipo de acontecimento significam em uma dada época e situação histórica.

A vasta historiografia construída em torno da categoria trabalho, no entanto, pouco tem se interrogado sobre a historicidade semântica, sobre as mutações quanto à significação deste conceito, ao longo do tempo.3 Em boa parte desta historiografia o trabalho parece ser apenas da ordem da empiria, da vida ma-terial, do plano da realidade dita concreta, objetiva. O mundo do trabalho e do trabalhador seria, aliás, a encarnação da materialidade mais fundamental, o fundamento da própria realidade humana e social. Definida pelo marxismo como sendo a atividade humana através da qual modifica-se a natureza e a pró-pria humanização se faz, constituindo, pois, a ação ontológica através da qual o homem se constitui como humano, distinto e distante, cada vez mais, da prisão representada pelas necessidades naturais, o que por si só já é um maneira de de-finir, de conceituar, de constituir semanticamente esta categoria, o trabalho pas-sa a ser tratado pelos historiadores fundamentalmente naquilo que seria a sua materialidade, a sua realidade, o seu acontecer como fato, nas suas repercussões econômicas, sociais, políticas e culturais.4 O trabalho passa a ser tratado, numa clara incorporação das formas de pensamento surgidas com a emergência da sociedade capitalista e burguesa, como a realidade fundamental, o fundamento do próprio social, como o núcleo explicativo da própria história humana, como a essência do ser humano, como uma atividade, como uma ação no plano do material, do concreto, do objetivo que, ao mesmo tempo, confere ao saber pro-duzido em torno desta categoria a condição de um saber materialista, objetivo e sobre o concreto, sobre o referente central que confere sentido a todo existir social, tornando, por sua vez, o saber, o conhecimento produzido a partir da ca-tegoria trabalho como aquele que também gozaria de uma centralidade, de uma

3 Ver, por exemplo: HOBSBAWM, Eric. Mundos do Trabalho. 3 ed. São Paulo: Paz e Terra, 2000; CANTELE, Bruna Renata e SCHNEEBERGER, Carlos Alberto. História – De olho no mundo do trabalho. São Paulo: Scipione, 2004; LEONARDI, Victor e HARDMAN, Francisco Foot. História da Indústria e do Trabalho no Brasil. 2ª ed. São Paulo: Ática, 1991; BATALHA, Claudio Henrique de Moraes. O movimento operário na Primeira República. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000; PINHEIRO, Paulo Sérgio, MEYER, Arno J. e CASTRO, Antônio Barros de. Trabalho Escravo, Economia e Sociedade. São Paulo: Paz e Terra, 1994; CHALHOUB, Sidney. Trabalho, Lar e Botequim. 2ª ed. EDUNICAMP, 2001.4 Ver: ENGELS, Friedrich. O papel do trabalho na transformação do macaco em homem. In: MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. Obras Escolhidas. Vol. 2. São Paulo: Alfa-Ômega, s/d, pp. 267-280.

importância nuclear para o entendimento da história e para a atuação política no que seria a realidade. Entre história e trabalho passaria a haver uma espécie de tautologia, pois falar em história seria falar na própria história do trabalho, já que o trabalho humano moveria a história.5

Mas ao dar esta importância ao trabalho a historiografia moderna não estaria contribuindo para legitimar e reproduzir a própria ordem social bur-guesa, na qual emergiu, e que tem a categoria trabalho como nuclear em seu arcabouço discursivo e ideológico? A historiografia não teria participado ati-vamente do empreendimento burguês em tornar o trabalho uma atividade central na vida social, em dotar o trabalho de uma legitimidade social e moral, como ele não havia gozado até então na história? A historiografia dos mun-dos do trabalho, a pretexto de valorizar o trabalhador, de trazer para o centro da história e da vida pública a classe trabalhadora, não acabou por fazer do trabalhar um valor, não acabou por positivar o trabalhar, por fazer dele uma obrigação moral, quase religiosa? Sabemos que esta historiografia teve e tem uma enorme importância no questionamento das formas e relações de tra-balho, dos modos e relações de produção, da exploração e das condições do trabalho, das formas de inserção e dos lugares sociais e políticos destinados ao trabalhador, àquele que realiza o trabalho, em cada momento histórico, mas sua adesão a categoria trabalho, a falta de um afastamento crítico em relação ao universo conceitual que sustenta não só a historiografia sobre o trabalho, mas o próprio mundo do trabalho, não termina por ter como resul-tado a legitimação da sociedade do trabalho, da ordem social dominante, da estrutura social que é a nossa condição histórica, que é assentada no trabalho e na exploração do trabalho? Talvez por estar sustentada numa utopia em que algum dia, numa ordem social futura, o trabalho produzirá igualdade e distri-buirá justiça, esta historiografia continua reproduzindo e produzindo a adesão ao mundo do trabalho. Mas será que nossa capacidade de imaginar mundos possíveis não pode ultrapassar a condenação ao trabalho? Tudo o que nós queremos para o humano, tudo o que podemos sonhar para nosso futuro é um mundo de trabalho, no duplo significado que a língua aqui permite?

5 MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. Reflexões sobre a explicação materialista da história. In: FERNANDES, Florestan (org.). K. Marx, F. Engels: história. 2º ed. São Paulo: Ática, 1984; CROCE, Benedetto. Materialismo Histórico e Economia Marxista. São Paulo: Centauro, 2007; BUKHARIN, Bujarin Nicolai. Teoria del Materialismo Histórico. Madrid: Siglo XXI, 1974; BADIOU, Alain e ALTHUSSER, Louis. Materialismo Histórico e Materialismo Dialético. 2ª ed. São Paulo: Global, 1986.

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Ao falar em condenação ao trabalho podemos iniciar um percurso, ne-cessário para todo historiador, em torno dos significados que este conceito já conheceu, em outros momentos históricos. Fazer uma arqueologia deste con-ceito é fundamental para que, talvez, possamos sair desta situação de adesão ao mundo do trabalho; para que possamos realizar a tarefa que cabe, no meu modo de entender, ao historiador, que é a de desnaturalizar o presente pelo cotejo diferencial com o passado, que é a de fazer um uso crítico do passado, no sentido de que este deve produzir uma crise em nossa adesão ao presente, em nossa aceitação do presente tal como ele se encontra. O caráter político da historiografia não reside apenas na explicitação de um ponto de vista ide-ológico sobre o mundo, mas em sua incidência crítica em relação aos valores, ao universo conceitual e mental que sustenta e legitima a ordem social em que vivemos. A historiografia relativiza o tempo presente ao mostrá-lo como acontecimento, como devir, como contingência e não como necessidade. Ao fazermos o percurso pela história do trabalho, dele como categoria, como conceito e não apenas como atividade, como ação mecânica veremos que, nem sempre, o mundo foi do trabalho, que nem sempre o trabalho gozou desta legitimidade, desta centralidade na vida social e, inclusive, intelectual. Nem sempre trabalhar foi uma aspiração de todos, nem foi tido como aquilo que confere sentido a uma vida humana. Muito menos o trabalho foi tido como uma atividade que moraliza, que serve de possível panaceia para todos os males sociais. Se hoje indicamos o trabalho como profilaxia moral para os apenados, se hoje propomos a ocupação como terapia para loucos, velhos e crianças irrequietas e ansiosas, se hoje o trabalho nos liberta de todas as tentações, até daqueles quilos a mais, houve momentos históricos em que o trabalho degradava social e moralmente quem o praticava, que o trabalho não era uma atividade digna para certos grupos sociais, que um passado de traba-lho manual maculava toda uma estirpe.6 Ou seja, se somos a sociedade do tra-balho, se os mundos possíveis, hoje, são do trabalho, nem sempre foi assim, o que nos permite sonhar com e prever mundos que não sejam do trabalho, pelo menos no sentido em que entendemos e vivemos o trabalho hoje. Possi-velmente pensaremos e praticaremos o trabalho de outra maneira no futuro,

6 Ver, por exemplo: ATWAL, Anita. Terapia Ocupacional e a Terceira Idade. Santos: Santos Editora, 2007; LANCMAN, Selma. Saúde, Trabalho e Terapia Ocupacional. São Paulo: Roca, 2004; LOPEZ, Catellanos. Terapia Ocupacional en la Infancia. Madrid: Panamericana España, 2008; DURANTE, Noya. Terapia Ocupacional en Salud Mental. Madrid: Masson, 1998.

havendo até a possibilidade desta categoria desaparecer, sendo substituída por outra que irá nomear e qualificar de distintas formas as atividades humanas, se é que os humanos vão sobreviver ao futuro.7

Poderíamos dizer que a palavra trabalho não goza sequer de uma boa origem etimológica. Ela adviria da palavra latina tripalium, literalmente três paus, um instrumento usado para torturar escravos no Império Romano, que se constituía em três estacas fincadas no chão em forma de pirâmide. Daí ad-veio o verbo do latim vulgar trepaliare, que significava, inicialmente, supliciar alguém no tripalium, sendo o trepaliadore, palavra que daria origem à palavra trabalhador, aquele que torturava, que aplicava o suplício ao escravo.8 Esta relação entre trabalho e tortura, entre trabalho e suplício, entre trabalho e cas-tigo por uma falta, presente na origem etimológica da palavra, de certa forma também vai estar presente no pensamento cristão. O trabalho é apresentado na Bíblia como um dos castigos impostos por Deus aos homens como forma de espiação pelo pecado original. Se Eva foi condenada a parir com dor, Adão foi sentenciado a ganhar a vida com o suor do seu rosto. O trabalho indicia a saída do homem do paraíso, embora muitos séculos depois, paradoxalmente, o trabalho prometesse a redenção da espécie e fosse condição indispensável para a entrada no novo paraíso que se prometia e que se avizinhava. A cons-trução da sociedade capitalista, a construção da ordem burguesa requereu um longo e elaborado processo de reversão desta maldição lançada sobre o traba-lho e, por extensão, sobre o trabalhador. Se na Grécia antiga Aristóteles dis-cutia se o escravo era ou não humano, se o classificava na categoria de animal falante, se o trabalho manual, portanto, animalizava, aproximava o homem dos bichos, foi preciso, para se constituir uma sociedade assentada no traba-lho, uma reformulação semântica, uma ressignificação desta categoria, uma modificação na maneira de ver e dizer esta atividade. Para se definir como uma sociedade de trabalhadores, já que o burguês é alguém que também não possui privilégios de nascimento, nem seu status social se define por pertencer a uma estirpe de sangue, tendo seus recursos surgidos de uma atividade, de um trabalho, o comércio, a troca, a categoria trabalho passou por deslizamen-

7 HANSEN, Gilvan Luiz. Modernidade, Utopia e Trabalho. Londrina: CEFIL, 1999.8 Ver: CUNHA, Antônio. Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa. 2ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986; MORENO, Cláudio. Sua Língua: Curiosidades – Trabalho. In: http://198.106.73.59/02/02_trabalho.htm. Acessado em 20 de novembro de 2009.

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tos de sentido e a atividade laboral teve sua legitimidade e legibilidade social alterada.9

A obra clássica de Max Weber, A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo,10 embora tenha sido, muitas vezes, acusada de idealista, trata desta mudança histórica na forma de pensar, entender, ver e valorar o trabalho, que muito longe está de se esgotar no plano das ideias, de ser apenas uma mudança ideológica ou superestrutural, pois a constituição daquilo que seria uma ética do trabalho, a elevação do trabalho a condição de uma atividade que confe-riria dignidade ao homem perante os olhos do Criador, passaria a ser um elemento de constituição das próprias subjetividades, dos próprios sujeitos na modernidade. O trabalho deixa de ser uma atividade só realizada compul-soriamente, deixa de ser uma atividade realizada apenas por escravos e servos, que eram compelidos através do uso da força, do castigo ou das obrigações tidas como naturais para homens de sua condição, para ser uma atividade tida como voluntária, como realizada por homens livres, por homens que, não sendo obrigados ao trabalho, se obrigam, através de uma ética, a trabalhar.11 O feitor termina assim por ser internalizado, o látego que aguilhoa as costas de quem trabalha passa a ser brandido pelo próprio sujeito trabalhador. Em compensação, ser trabalhador passa a ser um valor moral positivo, que aparta certos homens pobres, que os diferencia, do mundo da vadiagem, da vaga-bundagem, da criminalidade, da libertinagem, da sedição, da desordem, da indisciplina. A constituição de uma identidade individual e coletiva em torno do trabalho se torna então possível. Tanto o burguês como o operário cons-truirão sua identidade em torno do universo do trabalho, em torno do fato de que trabalham e vivem do e para o trabalho, dando origem ao que se vai chamar de classes sociais. Só então, por volta do século XVIII, é possível o fazer-se classe trabalhadora, o constituir-se como sujeito trabalhador.12 Antes esta condição era imposta de fora, embora de alguma forma aquele que tra-

9 MERCURE, Daniel e SPURK, Jan. O Trabalho na História do Pensamento Ocidental. Petrópolis: Vozes, 2005.10 WEBER, Max. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.11 MARX, Karl. Trabalho Assalariado e Capital. In: MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. Obras Escolhidas. Vol. 1. São Paulo: Alfa-Ômega, s/d, pp. 52-82.12 Sobre a emergência da classe trabalhadora, que tem no trabalho um elemento fundamental de sua identidade ver: THOMPSON, Edward Palmer. A Formação da Classe Operária Inglesa. 3 vols. São Paulo: Paz e Terra, 2000.

balhava devesse lidar e dar sentido a este fato e a si mesmo como aquele que trabalhava, mas nunca se confundindo com o próprio trabalho. No entanto, agora ser trabalhador passa a ser aquilo que pretensamente define o ser mes-mo de quem trabalha: o trabalho passa a ser a ontologia do trabalhador, a sua verdade mais essencial. Até mesmo os intelectuais vinculados a estas classes emergentes com a sociedade do trabalho, passam a reivindicar para si a condi-ção de trabalhadores, quando durante séculos a atividade intelectual fora vista como sendo a negação do trabalho, como a atividade só possível para quem estava livre do jugo do trabalho.13

O trabalho, que fora por séculos a negação da liberdade, apanágio do ho-mem escravizado ou servil, obrigação daquele que perdera a condição de ho-mem livre e, em alguns casos, a própria condição humana, torna-se agora o fundamento de uma sociedade de homens juridicamente livres, de homens que vão buscar na liberdade do mercado de trabalho, na liberdade da oferta e procura da mão-de-obra, o seu trabalho e, com ele, o seu próprio lugar na sociedade, o seu próprio lugar no mundo. Tendo, se tornado também, poste-riormente, a base de utopias que prometiam mundos futuros onde a liberdade reinaria, onde os homens libertos do reino da necessidade viveriam confor-me suas capacidades, livres, inclusive dos patrões e do Estado, embora sem deixarem de ser trabalhadores e muito menos de trabalhar, pois estaríamos, justamente, na sociedade dos trabalhadores, na sociedade onde finalmente o trabalho reinaria sem exploração e sem dominação.14 À medida que o mundo vai se tornando mundo do trabalho, parece não haver mais lugar para aqueles que não querem se submeter a esta atividade rotineira, cotidiana e diária. O trabalho torna-se não apenas um princípio ético, um valor a ser prescrito para todos, uma categoria do pensamento e um imperativo moral a ser subjetivado no processo de socialização, mas também uma obrigação, inclusive, jurídica, já que para aqueles que, na Europa, nos séculos XVII e XVIII, resistiram a aderir a sociedade do trabalho, para os recalcitrantes ou vacilantes em entrar no novo paraíso prometido pelo mundo dos trabalhadores foram instituídas legislações que impeliam ao trabalho, que o tornavam de uma outra forma

13 GRAMSCI, Antônio. Os Intelectuais e a Organização da Cultura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979.14 Ver: MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. 14ª ed. Petrópolis: Vozes, 2008.

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obrigatório, que previam, inclusive, punições para aqueles que teimavam em não se submeter ao deleite e o prazer diário que este proporcionava.15

Nos últimos anos historiadores e outros especialistas das ciências huma-nas têm se dedicado a discutir o que chamam de centralidade do trabalho.16 Mas para minha surpresa esta discussão não se dá no sentido de pensar a possibilidade de uma sociedade em que o trabalho não seja aquilo que define a nossa condição mesma de humanos, de cidadãos e de intelectuais. Pelo con-trário, ela é feita numa chave nostálgica e reativa em que se busca por todos os meios reafirmar a centralidade do trabalho, em que se busca desqualificar qualquer autor ou obra que avente a possibilidade da existência de formas sociais, da existência de estruturas sociais onde o trabalho, seja como concei-to, seja como atividade, não tenha a centralidade que adquiriu, inicialmente, na ordem burguesa e que foi reafirmada pelo chamado socialismo real, onde, em alguns momentos e circunstâncias se retornou ao trabalho compulsório, ao trabalho como obrigação moral e política, ou ao trabalho como castigo, como punição, quase sempre tão ou mais mal pago do que nos países do ca-pitalismo central. A tendência à redução progressiva das jornadas de trabalho, a partir da pressão política das próprias organizações operárias, o surgimento de pensadores que chamam atenção para como a nossa sociedade se recusa, inclusive, a pensar no ócio e no lazer como também possíveis de constituírem momentos centrais e decisivos na vida humana, na vida tanto de indivíduos, como na vida social, leva a uma gritaria, embasada, inclusive, em pressupos-tos políticos contra o deslocamento da centralidade do trabalho, vista como uma estratégia de dominação e exclusão social dos trabalhadores, como se o discurso da centralidade do trabalho também não tivesse tido como corolário dadas formas de exploração e exclusão dos trabalhadores.17 Tudo na história é ambíguo e perigoso, não há processo histórico que não seja complexo e con-flitivo. A sociedade do ócio, se isso for possível, não será o paraíso terrestre, como as sociedades do trabalho e dos trabalhadores estiveram e estão muito longe de serem.

15 MARX, Karl. O Capital. Livro 1. Vol. 1. 23 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009.16 ORGANISTA, José Henrique Carvalho. O Debate sobre a Centralidade do Trabalho. São Paulo: Expressão Popular, 2006.17 Ver: MASI, Domenico de. O Ócio Criativo. Rio de Janeiro: Sextante, 2000; ONFRAY, Michel. A Arte de Ter Prazer: por um materialismo hedonista. São Paulo: Martins, 1999.

O que me incomoda é constatar que para muitos de meus colegas, quan-do se trata de sonhar com uma sociedade futura, quando se trata de pensar o futuro, não podemos fazê-lo se não tendo como horizonte possível um mundo do trabalho ou no máximo mundos do trabalho, no plural, talvez mais assustador ainda, pois todas as alternativas levariam ao mesmo. Eu pre-firo, como historiador e como cidadão, aventar a hipótese da possibilidade de um mundo ou de mundos em que o trabalho não tenha esta centralidade na vida e no pensamento das pessoas, em que o trabalho não seja visto como esta panaceia moral, como este imperativo ético, tal como se nos apresenta agora. Se a única alternativa for um mundo de trabalho, e olha que venho tendo um mundo de trabalho na minha vida, teremos então que ao invés de pensar num mundo pensar num imundo, ou seja, algo fora deste mundo, fora da ordem, fora da realidade, para habitarmos no futuro. Ao invés de mundos do trabalho, imundos do trabalho, afinal este é o destino de grande parte dos trabalhadores. Todos os dias, ao finalizarem sua sacrossanta e benfazeja atividade de trabalho: estão imundos, no sentido de sujos, emporcalhados, pelas tarefas que realizam. Para muitos trabalhadores, que aprenderam que o trabalho purifica, afinal a ética do trabalho surgiu com puritanos, o que a ati-vidade diária os reserva é a aspiração de todas as impurezas possíveis, é terem corpo e vestes maculados, borrados, tornados impuros, imundos por todas as cacas com as quais labutam. Se o trabalho nos foi apresentado como a ativi-dade moralizadora, disciplinadora, ordenadora por excelência, se aprendemos e subjetivamos, inclusive lendo a historiografia do trabalho, que o trabalho é o que confere um ser no mundo para os homens, se ele, inclusive, transformou o macaco em homem, se ele nos permitiu vencer a natureza, nos afastando de seu aprisionamento e nos tornando humanos, se o trabalho nos confere identidade social, cultural e política, talvez realmente viver numa realidade em que o trabalho não tenha a centralidade, a legitimidade que tem hoje, em que ele não sirva de padrão para julgamentos morais e éticos, só seja possível num imundo, no sentido de uma ordem imoral, indecente, obscena. Se até mesmo a historiografia parece, muitas vezes, não ter dúvida sobre a moralidade e a decência de uma vida que gira em torno do trabalho e que se resume em trabalhar, se deslocar por horas e pouco dormir, para voltar a trabalhar. Se o trabalhador foi elevado, muitas vezes, a condição de herói épico e não de herói trágico, muito menos de bufão sem graça. Se somos presenteados todos

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os anos por cenas de trabalho, que devem nos mover e comover, só mesmo num imundo, onde não se viva e se pense a decência de forma tão indecente, a moral de forma tão imoral, e a cena não seja tão obscena pode ainda residir a força transformadora e transfiguradora das utopias.

A JUSTIÇA E O DIREITO COMO ESTRATÉGIAS DE RESISTêNCIA AO TRABALHO ESCRAVO EM PERNAMBUCO, DA COLÔNIA à REPúBLICA

Vera Lúcia Costa AcioliEmail: [email protected]

Virgínia Maria Almoedo de AssisEmail: [email protected]

Mas a escravidão não é uma opressão ou constrangimento que se limite aos pontos em que é visível; ela espraia-se por toda parte; ela está onde vós estais; em vossas ruas, em vossas casas, no ar que respiramos, na criança que nasce, na planta que brota do chão (...). 1

A atualidade da denúncia de Nabuco orienta o objetivo das nossas refle-xões para este texto. Embora conscientes de que o passado não dilui o pre-sente, não podemos deixar de notar que a rede de infortúnios tecida pela obra da escravidão a fez chegar à contemporaneidade. Não se pode ainda deixar de observar que a Lei Áurea de 1888 foi a propulsora da mudança jurídica fundamental na vida do trabalhador no Brasil sob o regime da escravidão; institucionalmente ele passou a ser livre. E aqui cabe já uma ponderação sobre o conceito de liberdade que permeia nosso trabalho.

A concepção de liberdade comporta vários significados e para sua com-preensão se faz indubitavelmente necessária a sua historicização. Ou seja, sem considerar os dados de realidade em que o termo é posto, ele se esvazia de sentido. Nossa compreensão de liberdade para os ex-cativos não se reduz ao ato legislativo da princesa regente Isabel, a par da sua importância. Parafrase-ando o historiador Marcus Carvalho, compreendemos liberdade como uma construção coletiva. Considerando o uso do termo na atualidade, Carvalho ensina:

1 Joaquim Nabuco. O Abolicionismo, 1883.

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[S]er livre nos dias atuais, basicamente significa ter o direito de ir e vir, de falar o que se deseja, de comprar e vender bens e, de trabalhar para quem quiser. O pressuposto para o pleno exercício desses direitos, vale dizer, é ter um mínimo de propriedade. Enfim, idealmente são esses os direitos básicos da cidadania, que pressupõem a capacidade política de defendê--los. Assim, na moderna ideologia ocidental, a liberdade está intimamente ligada à noção de autonomia individual dentro de uma sociedade norma-tizada, na qual as pessoas são iguais perante a lei.2

Nessa perspectiva é preciso lembrar que pelo menos para os abolicio-nistas André Rebouças e Joaquim Nabuco, o ato da abolição do escravismo não possibilitou ao ex-cativo a liberdade. A modernidade dos seus pensa-mentos levava-os a incluir a propriedade da terra como condição para a plena vivência da cidadania que a lei a princípio delegava. Daí mostrar-se Rebouças tão cético quanto aos efeitos da lei, como se vê de um registro em seu diário, em 1889:

No meu aposento nº 72 do Hotel Bragança, visita-me o amigo Antônio Carlos Ferreira da Silva de volta da sua excursão à província de São Paulo. Narrou-me horrores da Imigração para as fazendas dos Landlords, que se ufanam de terem atrozmente lançado os africanos na estrada!! Mas, mercê de Deus, a generosa natureza do Brasil, com suas florestas e seus rios ricos de frutos, de caça e de peixes, não os deixa morrer de fome... Não sei se é lícito dizer: Deus perdoe a esses monstros de ingratidão.3

O ceticismo acrescido de melancolia também é facilmente perceptível em Rebouças quando em carta para Taunay datada de 20 de maio de 1891 afirma:

Nós tivemos uma grande ilusão a 13 de maio de 1888. Essa vitória filan-

2 Marcus Carvalho, Liberdade – rotinas e rupturas do escravismo: Recife, 1822-1850. Recife: Editora Universitária da UFPE, 1998, p. 214.3 FUNDAJ: Diários de André Rebouças, 1889.

trópica, nos fez crer que o Brasil evoluiria progressivamente sem guerras e sem revoluções. Foi um santo erro: um idílio.4

O flagrante desânimo contido nesses fragmentos de discursos, nos quais a decepção é a principal marca com os rumos do ato régio que extinguiu o sistema escravista, estavam distantes da utopia de Rebouças, que propunha reformas sociais mais consistentes como “abolição de privilégios, de mono-pólios de exploração do homem pelo abuso da força e da inteligência”.

A característica do que defendia esse abolicionista à época da emancipação foi atestada pelo amigo Nabuco para quem “Rebouças encarnou, como ne-nhum outro de nós, o espírito antiesclavagista: o espírito inteiro, sistemático, absoluto, sacrificando tudo, sem exceção, que lhe fosse contrário ou suspeito, não se contentando de tomar a questão por um só lado, olhando-a por todos, triangulando-a, por assim dizer – era uma de suas expressões favoritas – so-cialmente, moralmente, economicamente”.5

Rebouças e Nabuco foram muito severos com as suas obras, e talvez te-nham deixado de lado o papel das suas utopias para a História, pois como escreve Jorn Rusen

a utopia funciona como sonhos da consciência histórica sempre que se trata de articular conscientemente (despertas), como orientadoras do agir, representações de circunstâncias de vida desejáveis. As utopias são, pois, os sonhos que os homens têm de sonhar com toda a força de seu espírito, para conviver consigo mesmos e com seu mundo, sob a condição da ex-periência da limitação da vida.6

O ato da Abolição foi aceito pela nação, em quase sua totalidade, com deli-rante alegria, rejubilava-se em 1888 o presidente da província de Pernambuco, o desembargador Joaquim José de Oliveira Andrade. Do seu relatório consta

4 FUNDAJ: Registro de Correspondência, vol. 2, p. 275.5 Joaquim Nabuco, Minha Formação, 1900.6 Jorn Rusen, História Viva – Teoria da História III: formas e funções do conhecimento histórico. Tradução de Estevão de Rezende Martins; Brasília: Fundação Universidade de Brasília, 2007, p. 138.

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a proposta de construir um jardim ou passeio no centro do Recife, “não só como ponto de recreio para a população, como de aformoseamento e até de grande utilidade pública”, ideia que foi despertada pelo memorável aconteci-mento de 13 de maio. O que ele justificava como “meio de manter vivo no coração do povo a força do sentimento que o guiou na incruenta conquista da emancipação”. O projeto seria do engenheiro Emílio Berenger, e “as con-dições seriam aconselhadas pelo tempo”. A proposta, aceita e promulgada, resultou na construção do Parque 13 de Maio, que se preserva como espaço de lazer dos recifenses.7

O desembargador Joaquim José de Oliveira Andrade, ao tempo em que se rejubilava e procurava eternizar a memória do feito, expedia circular a todas as autoridades judiciárias da província recomendando, de acordo com a ordem do Governo Imperial, a execução imediata da lei nº 3352 de 13 de maio de 1888, aconselhava como “proveitoso e conveniente convencer os agricultores da necessidade de efetuarem quanto antes, contratos de locação de serviço com os emancipados de suas fazendas ou de outras, quando seus escravos preferissem não continuar servindo-os”.8

Esse mesmo presidente, colaborando com a obra da escravidão, talvez involuntariamente, vinculava os recém-libertos a um lugar de marginalidade, quando, nesse sentido, alertava os ex-senhores de escravos a usar de paciência e a procurar

vencer com brandura os primeiros desvios ou desculpar faltas muito aten-díveis no novo regime e, muito esperáveis de indivíduos tão mal educados, evitarão grandes dificuldades ou a miséria que a tantos ameaça, e, salvando os próprios interesses, concorrerão para a calma e pacífica transição do trabalho escravo ao trabalho livre; o que constituirá o maior título de glória para a sua pátria.9

7 APEJE – Relatório do presidente da Província de Pernambuco, 1886-1890, Relatório de 1888, Anexo B, p. 2-3 e 11.8 Idem, ibidem.9 Idem, p. 35.

O desejo da ordem e da paz social tão presente nas falas dos governantes atuais é flagrante no texto do então presidente da província de Pernambuco. Pautado pela experiência política, antevê a necessidade para os emancipados de contratos escritos:

É muito de crer que, em princípio, recusem os emancipados contratos es-critos, enxergando nisso nova e odiosa sujeição; cumpre, pois, proceder do modo mais conveniente, esperando que o tempo os leve ao conhecimento das vantagens de atos mais garantidores dos seus direitos e obrigações.10

O primado do escrito, entretanto, nem sempre garantiu a homens e mu-lheres emancipados o cumprimento do que por lei lhes era garantido. Teriam razão muitos deles de recusar os tais contratos. Foi por conta de um desses instrumentos escritos, na verdade, um acordo, que se derivou o processo tra-balhista movido por José Cosme dos Santos, rurícola, residente na Paraíba, que em 1968 entrou na Justiça do Trabalho em busca de seus direitos.

O empregador de Cosme contestou da ação dizendo que em 1967 tinha feito um acordo com o reclamante para rescisão de seu contrato, quando lhe pagou NCr$ 110,00 (cento e dez cruzeiros novos). O documento, que trazia a assinatura do presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Goiana, a época, foi anexado ao processo. José Cosme disse em audiência ter “assi-nado” o tal recibo “mediante promessa de que voltaria ao trabalho tão logo houvesse oportunidade”. Sua queixa foi avaliada improcedente por ter sido a transação considerada como “perfeita e acabada”.11

Não satisfeito com o resultado o trabalhador recorreu ao TRT para refor-ma da decisão (revista do processo). Disse seu advogado: “não há força hu-mana que possa obscurecer a estabilidade do recorrente. [...] A forjicada prova do suposto recibo não tinha a menor validade jurídica”. O documento foi “preparado” e tinha “impressões digitais duvidosas”. Qual a validade de um “documento criminoso [...] lido em voz alta”? Poderia o presidente do Sin-

10 Idem, ibidem.11 Idem, ibidem.

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dicato dos Trabalhadores Rurais de Goiana “aprovar, consentir a realização dessa monstruosidade de renunciar todos os direitos, inclusive ‘estabilidade’ pela importância de NCr$ 110,00?” O recurso de revista foi negado.

Inconformado, o autor da queixa interpôs o agravo de instrumento “vi-sando à subida do apelo” para o Tribunal Superior do Trabalho. O parecer da procuradora Norma Augusto Pinto do TST do Rio de Janeiro, em 20 de julho de 1970, considerou tratar-se

de mais um desses ‘acordos leoninos’ ocorrido sob o império de uma lei falha – a Lei 4.066 – em bom tempo já revogada. [...] Permissa vênia, entendemos que houve coação, e basta para caracterizá-la o simples fato de se tratar de um analfabeto que não tem noção do exercício de seus direitos muito menos poderá entender de sua renúncia. [...] E a coação é evidente. Encontramo-la à simples leitura dos autos. [...] O autor diz que só colocou a sua impressão digital no recibo em virtude da promessa do empregador de que ele voltaria ao serviço. [...] Houve em nosso entender coação moral [...] que, às vezes, é mais fácil de ser constatada do que a fí-sica, especialmente em nossa justiça, onde ela se encarapuça sob alegações cuja ingenuidade chega a ferir porque subestima a inteligência.12

Foi decretada a procedência da reclamação desde que fosse compensada a parcela já paga. O Tribunal Superior do Trabalho admitiu que a indenização no valor de NCR$ 110,00, por si só, “já indica ao julgador a existência dolosa de fraude à lei e ao direito de um trabalhador analfabeto. Não se argumenta estar o recibo devidamente homologado, pois isso não ocorre, o que se vê no malsinado documento é o ‘visto’ de alguém que diz ser o presidente do sindi-cato, o que vem sem qualquer prova ou mesmo carimbo ou papel do órgão”.

O empregado que vivia de biscates, “com familiares doentes” e precisando pagar uma casa que comprara, pediu encarecidamente que o juiz o autorizasse receber o depósito existente para só depois prosseguir a execução da sentença a respeito das correções monetárias e dos juros de mora. O pagamento foi

12 Idem, ibidem.

autorizado pelo juiz do trabalho. Em 10-08-1972 foi o reclamante notificado para recolher no prazo de 48 horas a despesa das custas do processo “sob pena de execução”. Não foi possível tal recolhimento por não ter sido encon-trada a residência do reclamante. Seu advogado pagou Cr$ 193,70 das custas do processo.13

Neste ponto do texto é preciso deixar claro que, ao determos nosso olhar sobre a realidade contemporânea do trabalhador rural no Brasil, com as suas similitudes com as agruras da escravidão que aqui vigorou por mais de três sé-culos, não perdemos de vista o processo histórico que moldou essa realidade, suas continuidades, rupturas e avanços.

A conformação atual da organização fundiária do Brasil pela grande pro-priedade é sem dúvida, um legado colonial. O sistema de sesmarias, adotado como forma de distribuição do solo no Brasil por Portugal, só findou efetiva-mente em 1850, com a chamada Lei de Terras. No Brasil, é possível dizer que a grande propriedade, a exportação e o escravismo formaram o tripé sobre o qual se sustentou a economia até fins do império, ainda que, com relação à escravidão, tenham concomitantemente vigorado outras formas de trabalho.

Entre as continuidades presentes na história do Brasil estão as relações entre terra e poder político, cujos desdobramentos já mereceram discussões aprofundadas da historiografia brasileira. Contudo, é de se salientar que uma pesquisa, por mais superficial, não deixaria de notar nos anais da justiça do trabalho os nomes de famílias perpetuadas no poder em Pernambuco, do período colonial até a segunda metade do século XX, como proprietárias de terras e empregadoras, alimentando o sistema exportador. Recorrentemente aparecem como reclamados nos processos do TRT – 6ª Região de Pernambu-co os sobrenomes como Albuquerque Maranhão, Cavalcanti de Albuquerque, Lins Maranhão, Martins de Albuquerque, entre outros, cujos vínculos de fa-mília formaram novos laços de poder.

Tais laços se fortaleciam pela aquisição de terras, o que trazia em si mais de um significado, como seja, mais espaço para plantação de cana, maior de-manda de braços para o plantio e corte, e ainda, maior poder político. O desenvolvimento da sucessão hereditária, ao tempo em que provocava um

13 Acervo TRT/UFPE, JCJ, Goiana, Processo nº 528/68.

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esfacelamento de propriedade, por outro lado levava à apropriação de novas porções de terras ou à agregação de minifúndios a empresas rurais, transfor-mando-as em novos latifúndios por exploração. Conformados em latifúndios ou minifúndios, mas sempre como propriedades, por vezes subexploradas mas conservadas pela família como garantia de hegemonia local e de mando sobre seus empregados e dependentes.

O antigo engenho “Guararapes”, que possuía 1.500 hectares, de início, e nos meados do século XIX foi reduzido à metade da sua área, devido aos negócios de venda e permuta realizados com o Patrimônio de Nossa Senhora dos Prazeres e ao desmembramento do engenho “Novo da Muribeca”,

nunca deixou de permanecer sob o domínio direto da nobre família dos Albuquerques, estando presentemente incorporado ao patrimônio da Usina Muribeca, pertencente ao Doutor Júlio Carneiro de Albuquerque Maranhão.14

Observe-se que tanto o nome do proprietário como a própria usina são referidos repetidamente nos processos judiciais até aqui examinados, cabendo ainda mencionar que alguns desses proprietários exerceram cargos políticos em todas as esferas do poder público em diversas gestões governamentais em Pernambuco. É o caso, por exemplo, do Doutor Josué de Albuquerque Maranhão Filho, cujo sobrenome indica claramente a ligação de parentesco com os proprietários da usina Muribeca. A par da lisura do magistrado, não podemos deixar de referir que enquanto juiz presidente da justiça do trabalho, entre os anos de 1964-1965, a referida usina teve contra si, nada menos que 755 processos trabalhistas.15

A riqueza do senhor de terras, na Colônia e Império, de onde advinha a necessidade de sua segurança e também o seu poder, levando-se em conta o direito romano tão presente nas questões de propriedade na América por-

14 João de Deus de Oliveira Dias, Sesmaria de Santo André de Muribeca, origem do engenho dos “Guararapes”. Revista do Arquivo Público, Recife: Secretaria do Interior e Justiça: 1949, Ano IV, nº VI, p. 217.15 Acervo TRT/ UFPE, Jaboatão, Processos nº 1355 e 1074/65, fl. 45.

tuguesa, levou Rebouças a considerar que a posse da terra levava à posse do homem, o que gerou uma mentalidade entre os proprietários de terras que, em muitos casos, chegou até nossos dias.

Nessa mesma direção ponderava seu amigo Nabuco ao escrever sobre a escravidão:

Ela começou por ser um regime de trabalho agrícola. [...] [E] daí resul-tou um sistema territorial, caracterizado pelo monopólio da terra e pela clausura dos trabalhadores. Tal sistema deu origem nos seus interstícios e em suas fendas apenas, à aparição e gradualmente ao crescimento de uma população livre que nada tem que possa chamar seu, sem um palmo de terra que possa cultivar por sua conta, miserável e dependente no mesmo grau que o escravo. Eis a escravidão agrícola e territorial.16

Visão premonitória a de Nabuco, quando se observa o que conta Severina Luzia da Silva, em 1969, com 49 anos de idade. Ela dizia morar há oito no Engenho Bragança de propriedade de Erasmo Duarte Falcão, no município de Vitória de Santo Antão (PE). Depois que ficou viúva, o senhor de engenho quis lhe tomar cerca de três hectares de terra onde ela cultivava mandioca e cana – portanto, continuava ela, “miserável e dependente no mesmo grau que o escravo.”

É necessário, entretanto, refletir que o Direito e a Doutrina serviram mui-tas vezes como agentes limitadores do poder régio em Portugal no Antigo Regime. Do mesmo modo, pode-se dizer que com o passar do tempo o poder dos senhores sobre seus escravos, em termos jurídicos, foi sendo relativizado. Conforme análise de Carvalho, até 1850,

aqui o cativo não era um cidadão, pois o Direito o reconhecia como pes-soa apenas quando o tornava imputável criminalmente. Para os demais atos jurídicos, era uma coisa ou, quando muito, um menor, como nos casos em que era chamado a depor na justiça, não servindo de prova o seu

16 Joaquim Nabuco. O Abolicionismo, 1884.

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testemunho, mas apenas para informar o processo. Quanto a denunciar o senhor nem pensar.17

O processo histórico que culminou com a Lei Áurea redimensionou essa relação entre o escravo e o Direito, se bem que em algumas ocasiões, ainda no período colonial, o Direito tenha servido como instrumento de garantia das conquistas individuais e coletivas dos cativos, a exemplo das cartas de liber-dade. Não se pode esquecer que a abolição da escravidão negra em Portugal se deu ainda sob o governo do marquês de Pombal, cujo debate naturalmente repercutiu no Brasil. É o caso, por exemplo, da escrava de Bartolomeu de Souza, Izabel Francisca de Souza, que em 1780, presumivelmente através de seu procurador, recorreu à rainha D. Maria I, solicitando da soberana que or-denasse ao governador de Pernambuco, José César de Menezes, para resolver o problema da sua alforria.

Diz Izabel que no exercício da sua “profissão” tinha dado muitos lucros ao seu senhor e do que recebera por seus serviços juntara a quantia de du-zentos e tantos mil réis, que entregara ao mesmo pela sua liberdade, com o que “a sua ambição não se dá por satisfeita, obrigando a que cada vez mais a miserável suplicante a que no mesmo cativeiro seja eterna, não lhe querendo dar por aquele avultado preço [...] a liberdade que pelo direito divino e natural lhe é prometida, em cujo obséquio e nos de maior caridade e pia clemência de Vossa Majestade recorre a suplicante”.18

O pleito deu resultado. Por carta datada do Recife de 2 de novembro de 1780, o governador de Pernambuco comunicou que o senhor resolvera liber-tar a escrava pela quantia de 80$000, valor inferior ao que ela havia oferecido antes, e de fato acompanha a comunicação de César de Menezes a carta da alforria da destemida Izabel, datada de 26 de novembro de 1780.19

Outro caso de vitória foi o da escrava Marcelina, esse já após a extinção do tráfico. Pela escritura de sua venda e de seus filhos Jorge (8 anos) e Luiza (6

17 Marcus Carvalho, Liberdade – rotinas e rupturas do escravismo: Recife, 1822-1850. Recife: Editora Universitária da UFPE, 1998, p. 219.18 Vera Lúcia Acioli, A Escrita no Brasil Colônia – um guia para leitura de documentos manuscritos, 2ª ed. Recife: Fundação Joaquim Nabuco, Massangana, 2003, p. 90.19 Idem, ibidem.

anos), em 30 de julho de 1874, pela quantia de 1.200$000 (um mil e duzentos réis), sabe-se que o seu marido e pai das crianças, o preto Mateus, litigava no foro de Bezerros com uma ação de liberdade contra o seu senhor. Por esse mo-tivo havia na escritura a condição, para que a venda se efetivasse, de que, caso o escravo perdesse a ação e permanecesse cativo, fosse adquirido pelo mesmo comprador pela quantia de 500$000. Compreende-se a exigência, já que o artigo 4º, parágrafo 7 da Lei 2040 de 28-09-1871 proibia, sob pena de nulidade, sepa-rar os cônjuges e os filhos menores de 12 anos do pai e da mãe.20

A mesma escrava e a filha Luiza, esta já com 11 anos e com a habilitação para o trabalho agrícola, foram novamente vendidas em sete de março de 1878 por 900$000. Não há referência a Jorge, que, agora com 12 anos, podia ser separado da mãe, mas da escritura consta ser Mateus liberto, tendo, por-tanto, ganho a causa.21

O caso descrito não é isolado. Conhecemos outras ações movidas pelos escravos contra seus senhores, a fim de lhes ser reconhecido o direito de alforria, o que nem sempre resultava a favor do requerente. O que pode ser exemplificado através da leitura da ação de embargo movida pelo senhor de Joaquim Belo Monte no Fórum de Ipojuca, entre os anos de 1880 e 1882.

Através do Curador explicava Joaquim que havia chegado ao seu conhe-cimento que o chefe de polícia recebia dos escravos pecúlio e os libertava. Tendo reunido a quantia de 100$000 e não sabendo a quem se dirigir, foi para o Recife e lá entregou o valor amealhado a um advogado, em cuja residência ficou por quatro meses. Pedira licença ao senhor para ir ao Recife e como este não a dera fora sem permissão, alegando que isso lhe era permitido por lei. Do Recife foi para Goiana, aí permanecendo por mais dois meses; de volta ao Recife soube que o antigo senhor reivindicava sua posse, por não considerar a quantia recebida como pecúlio para sua libertação.

Contra a solicitação do senhor, Joaquim argumentara que se o senhor o considerasse fugido teria anunciado sua fuga pelos jornais e pedido às auto-ridades sua captura. Por sua vez o senhor alegava que o pecúlio fora adqui-

20 Cleonir Costa e Vera Lúcia Costa Acioli, Aspectos da escravidão em Pernambuco: uma amostragem da documentação paroquial e cartorial de seus municípios, Revista de História Municipal, Recife: FIAM, ano III, nº 4, mar. 1991, p. 58.21 Idem, ibidem.

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rido durante a fuga, tendo sido obtido com trabalho assalariado. A resposta do escravo era irretocável: como poderia um escravo de mais de 60 anos e, ainda por cima valetudinário (doente) juntar em quatro meses a quantia de 100$000? Pedia que fosse reconhecido o pecúlio em poder do senhor para obter liberdade, sendo este último obrigado a pagar as custas. As duas tes-temunhas invocadas pelo escravo comprovaram que o mesmo remetera o dinheiro e que o senhor o aceitara a título de pecúlio, mas que depois se arre-pendera e não o alforriara.22

O advogado do proprietário, numa retórica ciceroniana, começa por cla-mar, em 10 de novembro de 1882, “contra o menosprezo com que era tratada a justiça no país”, procurando demonstrar que a quantia entregue pelo escra-vo não podia ser considerada pecúlio na forma da Lei de 28 de setembro de 1871.

Por essa lei ficava estabelecido que só pudesse ser formado pecúlio através de legados, doações, heranças e pelo que, com o consentimento do senhor, obtivesse de seu trabalho e economias. Como o escravo não indicara a forma como o adquirira, o dinheiro não podia ser considerado pecúlio. Em vão o Curador replicou e tentou obter provas, mas deixou claro que “força maior impedia que as testemunhas aparecessem” e apelou para que o juiz “fazendo acalmar a dor do cativeiro” auxiliasse o escravo. O juiz julgou a defesa do escravo improcedente, por não ser a fuga um meio lícito para adquirir o pe-cúlio.23 Cabe-nos imaginar apenas o que teria ocorrido a um escravo velho, alquebrado pelo serviço do campo e obrigado a voltar à posse de um senhor ressentido pela sua ausência e pela querela judicial.

As questões levantadas por Izabel Francisca de Souza e Joaquim Belo Monte remetem-nos a um ponto controvertido: o da formação de um pecú-lio pelo escravo para compra de sua liberdade. Mesmo antes da Lei 2040 de 28 de setembro de 1871, que regulamentava a formação do pecúlio, ao que parece era comum a alforria comprada por esse meio. Tanto é assim que Kos-ter comentava que os escravos tinham como grande sonho tornar-se livres e comprar a liberdade também para seus filhos. Diz o cronista que sabia ser “permitido ao escravo libertar-se, entregando ao senhor uma quantia corres-

22 Idem, p. 57.23 Idem, ibidem.

pondente ao que este pagara por ele”. Entretanto, os exemplos de recusa do senhor em libertar por esse meio eram tantos que ele próprio acabou por du-vidar da existência de uma lei nesse sentido, embora nunca tivesse encontrado alguém com semelhante dúvida ou ainda que negasse “ter o escravo direito a esse recurso”.24

Repetimos, a escravidão legalmente sancionada findou com a Lei Áurea, ao tempo que nos remetemos novamente a Nabuco ao referir-se que “ela espraia-se por toda parte; ela está onde vós estais”. Hoje, nas sociedades pós--emancipadas, o Direito a coíbe. Sua presença fere os direitos humanos, vai contra a manutenção da paz e da legalidade, mas a perversidade da sua obra persiste, sendo flagrada quase diariamente em canaviais, carvoarias e fazendas de gado Brasil afora.

Assim, é possível dizer que as práticas escravagistas atravessaram os tem-pos, embora mais uma vez precisemos reiterar nossa compreensão da diferen-ça entre a escravidão que vigorou no Brasil até 1888 e a que hoje nos dá conta a mídia e os processos que hoje integram os arquivos do TRT de Pernambu-co, pois como reflete Comparato:

hoje, a escravidão é condenada pela sociedade e proibida por lei. Por isso ela se dá por vias tortas e clandestinas, que geralmente estão relacionadas à servidão por dívidas, algo bem distante da imagem tradicional do escravo negro acorrentado na senzala. Esses servos modernos são aliciados por “gatos” que seduzem suas vítimas por meio de promessas fabulosas de trabalho e comida na mesa (...) Ao chegar ao destino descobrem rapi-damente que não conseguem fugir de um endividamento com o barra-cão, uma espécie de armazém onde adquirem comida e outros gêneros de primeira necessidade. Essa dívida substitui com eficácia a corrente de outrora.25

24 Henry Koster, Viagens ao Nordeste do Brasil, Recife: Secretaria da Educação e Cultura, 1978, p. 390.25 Bruno Kondé Comparato, “Escravos do Novo Século”. Desvendando a História, Escala Educacional, ano 2, nº 10, p. 37.

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A odiosa figura do feitor de escravos, tão retratada na literatura do século XIX, aparece transvestida na atualidade do trabalho no campo com vestes de administrador ou na terminologia própria dos trabalhadores pelo “cabo de engenho”. O exame de alguns processos trabalhistas do TRT – 6ª Região ilustra bem essa transposição. É o que se vê da ação movida em 1970 por An-tonio Henrique Barbosa e sua mulher, dita amásia no processo, Benedita Rosa da Silva, filiados ao Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Moreno, contra o engenho Serraria pertencente à usina Bulhões, que tinha como rendeiro, a essa época, Alfeu Portela Barros.26

O pleito de Antonio Barbosa era o de ser indenizado, uma vez que havia sido posto para fora pela alegação de ser “sujeito indisciplinado e brigão”, e Benedita Rosa, sua companheira, como tantas outras mulheres no campo, aju-dava-o a cumprir sua produção, daí sentir-se também prejudicada e entrar na justiça, embora a princípio seu pleito tenha sido considerado improcedente.

Segundo o processo, o problema se iniciara pelo confronto entre o recla-mante e o cabo do engenho Manoel Nunes. De acordo com Antonio Barbo-sa, ao solicitar repetidas vezes a troca de seu instrumento de trabalho – uma enxada –, uma vez que a sua estava imprestável, “somente com meio passari-nho”, foi agredido. Pelo auto de reclamação se lê que Manoel Nunes ameaçou os reclamantes chegando mesmo a atirar de pistola “bem como sacou de faca-peixeira”. Daí resultou sair levemente ferida Benedita Rosa e, com diver-sos golpes de cabo de enxada, além de um braço quebrado o cabo Manoel Nunes.27

A Junta de Conciliação propôs a readmissão do reclamante, pois apesar da briga, o mesmo era portador de estabilidade e não havia respondido a inquéri-to. O que não foi aceito, uma vez que o “motivador” do incidente continuaria trabalhando no mesmo engenho e com poder de mando. O resultado do pro-cesso se deu por acordo de conciliação entre as partes. Benedita, companheira de Barbosa, recebeu cento e trinta cruzeiros, e Antonio recebeu cinquenta; embora lhe fosse devida a quantia de cento e oitenta cruzeiros, a diferença ficou retida para cobrir sua dívida com o barracão.28

26 Acervo TRT/UFPE, JCJ, Jaboatão, Processo nº 883/70.27 Idem.28 Idem.

Uma das formas de prender e submeter o homem do campo à “clausu-ra”, que Nabuco refere para o trabalhador rural, aparece atualmente no seu obrigatório vínculo ao “barracão”, em cuja relação ele aparece como devedor, pela contração de uma dívida quase sempre impagável, haja vista precisar sa-tisfazer suas necessidades mais primárias como comer e adquirir ferramentas.

Outro problema que chama a atenção no exame dos processos é o que se refere ao cumprimento das tarefas, também conhecida por “contas”, sig-nificando a produção diária que cada trabalhador, homem, mulher ou menor precisava cumprir na sua lida diária de trabalho no campo. O cumprimento das tarefas é causa recorrente nos registros processuais. Aqui, salientamos o caso de Maria Antonia Alves.

Trabalhadora do engenho Palmeira, era obrigada a tirar cento e trinta cubos de limpa de soca, ou seja, cortar o caule subterrâneo da cana, enquanto o sindicato estipulava, por dissídio, a quantidade de cinquenta a cem cubos para cada trabalhador, o que estava na origem da sua queixa. Maria Antonia solicitava que, por não conseguir dar conta do trabalho que lhe era imposto, fosse demitida de forma indireta, ou seja, pelos termos dos artigos 87 letra A e 483 letras A e B da CLT, de modo a receber indenização, o que foi a princí-pio negado. A exploração do seu trabalho, em que ainda se incluía, conforme os autos, a participação de dois dos seus filhos na “obrigação de tirar cento e trinta cubos de limpa de soca na primeira limpa de uma vegetação de ‘gengi-bre’ que além de duro, é emaranhado, e no entendimento de quem conhece o pior a ser limpo”.29

A perícia demandada pela justiça concluiu que em mais de cinquenta por cento dos casos examinados, entre os homens, não se conseguia completar o trabalho em 8 horas; trinta por cento declararam completá-lo e vinte por cen-to declararam “terminar em cinco ou seis horas, restando tempo para cuidar das suas lavouras perto de suas moradas”. A conclusão da Junta foi a de que a reclamante “não conseguia dar conta do serviço, não por preguiça, mas sim devido as suas condições, físicas, idade e de saúde”. Condenou a reclamada ao pagamento da quantia de NCr$ 3.357,20.30

29 Acervo TRT/ UFPE, JCJ, Jaboatão, Processo nº 568/68.30 Idem.

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Celebrada a conciliação entre as partes, essa quantia foi reduzida para NCr$ 2.400,00 que seria pago em duas parcelas, condicionando-se o pagamento da segunda parcela à desocupação da casa de propriedade do reclamado, ficando o mesmo com a obrigação de providenciar o transporte dos móveis e utensí-lios. A Maria Antonia ficou ainda proibida fazer qualquer plantação ao redor da casa, podendo apenas colher os frutos das existentes.31

Será que haveria frutos? Onde buscar tempo para plantar ou forças para lutar? Sobre o plantio não sabemos, mas lutar ela bem que lutou, de que é prova a sua coragem de impetrar uma causa contra poderosos senhores de terras. As suas testemunhas, por exemplo, só compareceram para depor por intimação judicial. Um deles afirmava “ter medo do reclamado”.32

Pela mesma razão Floriano Pereira Gomes, residente no Engenho Pal-meira, moveu processo contra a usina Jaboatão, por ter sido demitido por abandono de serviço, o que ele contestava, informando que não faltava ao trabalho, mas sim que a carga diária era muito pesada e que não conseguia terminá-la em um dia, e mesmo o trabalho ficando parcialmente concluído, o mesmo não era contabilizado, sendo apontado como dia de falta.33

Como diria o poeta, a vida severina e suas dores não calou a voz nem a coragem dos trabalhadores do campo, aqui identificados, caso de Severina Luzia da Silva, já referida nesse texto, quando contou ao repórter do Diario de Pernambuco, em matéria publicada em 20 de março de 1969, sobre as atroci-dades praticadas pelo Sr. Erasmo Falcão, proprietário do engenho Bragança:

Caçula é um rapaz de 25 anos, aproximadamente, que reside no engenho. Certo dia foi amarrado debaixo de uma jaqueira onde uma casa de marim-bondo foi açoitada pelo seu Erasmo, para picar o rapaz, que ficou todo inchado. “Seu” João é outra vítima dele, pois foi aconselhado a ficar em cima de um formigueiro para curar-se de doença de olhos. Para intrigar, o homem deu veneno a um cachorro que eu estimava. Não tenho medo dele, sou do Sindicato dos Trabalhadores de Vitória, inscrição nº 2.346, onde defenderei os direitos que a lei me assegura.34

31 Idem.32 Idem.33 Acervo TRT/ UFPE, JCJ, Jaboatão, Processo nº 768/68.34 Diario de Pernambuco, 20 de março de 1969.

Com base ainda nos processos do Tribunal Regional do Trabalho, páginas e mais páginas poderiam ser escritas revelando as crueldades porque ainda passam os trabalhadores do campo que vivenciam o que se convencionou chamar de uma escravidão moderna, mas, é preciso atentar de que longe vai o tempo em que as relações de trabalho no âmbito de um engenho eram regidas por regulamentos definidos pelo seu proprietário, como no caso do que se expressa no documento produzido, ainda no século XVII, por João Fernan-des Vieira, denominado o “Regimento do Feitor-Mor do Engenho do Meio”.

Tratando-se de documento pouco conhecido de um público distante da historiografia colonial, o regimento traz preciosas informações acerca do co-tidiano de um engenho e das tarefas que lhes eram inerentes, notadamente as que diziam respeito ao papel do feitor-mor, que anteriormente, grosso modo, confrontamos com a figura do cabo ou do administrador atual dos engenhos. Não sem motivo, muitos escravos abandonaram seus antigos locais de traba-lho após a abolição, por conta dos administradores.

A súmula das obrigações do feitor que encimava o documento deixa bem claro ao que o mesmo se prestava, “Regimento que há de guardar o feitor-mor do engenho para fazer bem sua obrigação e descarregar bem sua consciência, e pelo contrário dará conta a Deus e ficará obrigado a restituição o dono da fazenda”, datado da Várzea do Capibaribe em 23 de junho de 1663.

Determina o regimento sobre cruentas passagens comuns ao modelo de escravidão no Brasil, anterior a 1888, como a que refere a limitação dos casti-gos a serem desferidos contra os escravos, recomendando que

não produzisse aleijão ou incapacidade neles: assim não se devia casti-gá-los nem atirar-se-lhes com pedra ou tijolo, mas fossem amarrados à ‘mesa’ de um carro de boi e açoitados e, depois de bem açoitados fossem golpeados ‘com navalha ou faca que corte bem’, derramando-se sobre o ferimentos sal, sumo de limão e urina e por fim, acorrentados.35

35 José Antonio Gonsalves de Mello, João Fernandes Vieira, 2 vol., Recife: Universidade do Recife, 1956, vol. 2, p. 210.

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No Regimento também está expresso o cuidado com que o feitor deve-ria tratar o escravo, o que não se pode deixar de relacionar à preservação do seu patrimônio. Ao feitor cabia, além de vistoriar todas as manhãs as senzalas,

tê-las varridas e com giraus onde dormiam os escravos e as ‘esteiras de aga-salho’ em ordem e obrigá-los a plantar suas roças nos dias santos e, nos intervalos das safras, também aos sábados. No inverno não deveria fazer levantar a gente pela madrugada, ‘senão depois de alto o dia’, alimentando--a com mel de engenho e vigiando-a de modo a evitar que comesse carne morta (com recomendação especial quanto aos bois mortos, pois poderiam sofrer de carbúnculo, que comumente se transmitia aos negros). Tudo o que pudesse ameaçar a vida ou a saúde dos negros deveria ser evitado.36

Note-se que nossos trabalhadores livres do campo têm moradas por vezes semelhantes às antigas senzalas e até piores, com condições de higiene abaixo da crítica. É, por exemplo, o que descreve o trabalhador rural Severino Higino da Silva do engenho Manassu – Jaboatão (PE) –, ao se referir a sua casa de taipa e sem reboco, chão de barro batido, coberta com telha, sem sanitário e com um só cômodo, o que sem dúvida não é muito distante da realidade das senzalas. Mas as dificuldades denunciadas por mais esse Severino não param na moradia. Ao reclamar para o administrador do engenho sobre a destruição de sua pequena lavoura, cultivada à noite, pelo gado do reclamado, foi dispen-sado, levando-o a buscar a justiça.37

Outro Severino, de sobrenome Barbosa da Silva, junto ao seu irmão João Barbosa da Silva, analfabetos, trabalhadores e residentes no Engenho Cama-rão, também recorreu à justiça contra seu empregador, que mandou destelhar a casa deles reclamantes, o que se agravava por se tratar de período invernoso, sendo os irmãos obrigados a passar mais ou menos uma semana morando na casa destelhada.

36 Idem, p. 209.37 Acervo TRT/UFPE, JCJ, Jaboatão, Processo nº 0679/63.

Para a justiça, o destelhamento da casa configurou, para além dos danos físicos – dormirem ao relento – danos morais. “Fatos como estes seriam leva-dos ao conhecimento da polícia, porém, infelizmente no campo ainda é muito comum”. O proprietário do Engenho Camarão interpôs recurso ordinário pedindo a conversão da sentença proferida, em favor de Severino, em read-missão, declarando ser essa uma “medida de maior alcance social, pelo fato de que o reclamante conservaria o seu emprego, o sítio para plantar e a casa, dos quais provém o seu sustento e morada”.38

Mais um Severino (Dionísio da Silva), reclamou na Justiça do Trabalho contra José Carlos do Nascimento, proprietário do engenho Nossa Senhora de Fátima, que contestou a ação alegando que não mantinha relação traba-lhista com o reclamante e que o mesmo não havia desocupado a casa em que residia, apesar de solicitada. O juiz entendeu ser ilegal o desconto no salário pela moradia do trabalhador, descrevendo como ilegal e desumano o sistema vulgarmente conhecido por “cambão” ou “condição”. Segundo a autoridade judicial, seria obrigação do empregador oferecer moradia e até mesmo o ter-reno para plantio de lavoura de subsistência.39

Por não se submeter ao referido “cambão”, trabalhar um dia por semana sem remuneração, Angelina Maria da Silva, trabalhadora do Engenho Boa Sorte, no município de Vitória de Santo Antão (PE), foi demitida.40

Enquanto os escravos de Fernandes Vieira eram mandados ao Recife para se curar das enfermidades a expensas do seu proprietário, nossos atuais rurí-colas, até bem pouco tempo, eram demitidos do trabalho por problemas de saúde, com a condição de só serem readmitidos quando curados.

Inaldo Faustino dos Santos, residente e trabalhador no Engenho Camas-sari, que se afastou do serviço “por motivo de doença”, enfermidade ligada a um acidente durante sua lida noturna, “sofreu um acidente de um coice de burro no queixo cambitando cana às 9 horas da noite”. Uma testemunha do reclamante explicita que o motivo do não comparecimento ao serviço, além da enfermidade adquirida, foi pela necessidade de ele fugir da ação de um tal

38 Acervo TRT/UFPE, JCJ, Jaboatão, Processo nº 0873/70 e 0874/70.39 Acervo TRT/UFPE, JCJ, Jaboatão, Processo nº 43/72.40 Acervo TRT/UFPE, JCJ, Jaboatão, Processo nº 471/66.

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“Dr. Laelson”, o administrador do engenho. “O reclamante anda escondido para não ser surrado pelo Dr. Laelson”.41

Chega a hora de voltarmos a Rebouças e à sua atualidade frente ao que acabamos de expor, quando em um dos preceitos e máximas da Confedera-ção Abolicionista, 1º Decálogo, publicados na Gazeta da Tarde de 16 junho 1885, escrevia:

É uma estultice, é inteiramente cínico, falar o escravizador em direito de propriedade, quando ele é um pirata confesso, roubador de homens, mu-lheres e crianças nas costas da África; caloteiro secular do salário de seus operários; usurpador incorrigível da propriedade mais santa: o produto imediato do trabalho de seus escravizados.42

Ao final desse trabalho não podemos deixar de remeter à luta que vários setores da sociedade brasileira vêm empreendendo na extinção do trabalho escravo, notadamente pelo que prescreve o 2º Plano Nacional para Erradi-cação do Trabalho Escravo (Brasília, 2008). Nele, nos encontramos na ação que prevê o estímulo à “produção, reprodução de literatura básica, técnica ou científica sobre trabalho escravo, como literatura de referência para capaci-tação das instituições parceiras” e ainda promover debates sobre o tema nas universidades.

Do último encontro – “Cultura e Memória: História e Trabalho” – reali-zado na UFPE de 16 a 20 de novembro de 2009, resultou o trabalho que ora apresentamos, na compreensão de que, como já disse Josué de Castro “é um dever do intelectual procurar superar a enorme distância que separa os pro-gressos materiais da ciência, do progresso moral da humanidade”.

41 Acervo TRT/UFPE, JCJ, Jaboatão, Processo nº 1616/69.42 FUNDAJ, Diários de André Rebouças, 1885, anexos impressos.

Referências bibliográficas:

Acervo TRT/ UFPE, Jaboatão, Processos número 679/63, 1355/65, 1074/65, 471/66, 568/68, 1616/69, 873/70 e 874/70, 883/70, 43/72.

Acervo TRT/UFPE, JCJ, Goiana, Processo nº 528/68.

ACIOLI, Vera Lúcia Costa. A Escrita no Brasil Colônia – um guia para leitura de documentos manus-critos, 2ª Ed. Recife: Fundação Joaquim Nabuco, Massangana, 2003, p. 90.APEJE - Relatório do presidente da Província de Pernambuco, 1886-1890, Relatório de 1888, Anexo B, p. 2/3 e 11.

CARVALHO, Marcus, Liberdade - rotinas e rupturas do escravismo: Recife, 1822-1850. Recife: Editora Universitária da UFPE, 1998, p. 214.

COMPARATO, Bruno Kondé, “Escravos do Novo Século”. Desvendando a História, Escala Educacional, ano 2, nº 10, p. 37.

COSTA, Cleonir e ACIOLI, Vera Lúcia Costa. Aspectos da escravidão em Pernambu-co: uma amostragem da documentação paroquial e cartorial de seus municípios, Revista de História Municipal, Recife: FIAM, ano III, nº 4, mar 1991, p. 58.

DIAS, João de Deus de Oliveira. “Sesmaria de Santo André de Muribeca, origem do engenho dos “Guararapes”. Revista do Arquivo Público, Recife: Secretaria do Interior e Justiça:1949, Ano IV, nº VI, p. 217.

FUNDAJ, Diários de André Rebouças, 1885, anexos impressos, e 1889.

FUNDAJ: Registro de Correspondência, vol. 2, p. 275.

KOSTER, Henry. Viagens ao Nordeste do Brasil, Recife: Secretaria da Educação e Cultura, 1978, p. 390.

MELLO, José Antonio Gonsalves de. João Fernandes Vieira, 2 vol., Recife: Universidade do Recife, 1956, vol. 2, p. 210.

NABUCO, Joaquim. Minha Formação, Rio de Janeiro: W.M.Jackson Editores, 1964.

NABUCO, Joaquim. O abolicionismo, São Paulo: Publifolha, 2000 (Grandes nomes do pensamento brasileiro da Folha de São Paulo).

RUSEN, Jorn. História Viva – Teoria da História III: formas e funções do conhecimento histórico; tra-dução de Estevão de Rezende Martins; Brasília: Fundação Universidade de Brasília, 2007, p. 138.

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HISTÓRIA, TRABALHO E POLÍTICA DE COLONIZAÇÃO NO BRASIL CONTEMPORÂNEO: DISCURSOS E PRÁTICAS. AMAZÔNIA LEGAL

Professora Regina Beatriz Guimarães Neto1 (UFPE)

Uma reflexão crítica sobre o tema do trabalho no Brasil, no âmbito da pro-blemática da ocupação recente da Amazônia Legal2, implica uma atualização constante dos conceitos e categorias que contemplam a história das relações entre trabalhadores e proprietários de terras. Mais que isso, aponta para a ne-cessidade de uma abordagem de maior densidade analítica que considere a sua complexidade social e as especificidades das atividades de trabalho no campo, tendo em vista o modelo agrário-agrícola dominante. Hoje, mais que antes, a necessidade de instituir categorias e conceitos que operem com a fluidez, a mudança e a grande diversidade, do ponto de vista econômico e cultural, que as novas experiências revelam, é um grande desafio. Uma leitura crítica e mais atenta se volta para o cuidado que se deve ter, nos mais diversos textos e discursos, a não incorrer em homogeneizações que, do meu ponto de vista, construiriam uma visão simplificada do universo social, no qual, e apenas nele, conceitos e categorias adquirem pleno significado. No caso da explora-ção agrícola e/ou agroindustrial, a partir das últimas décadas do século XX, torna-se fundamental especificar, por exemplo, sobre quais relações incide a análise a ser realizada, concedendo maior destaque àquelas que se dão entre

1 Professora do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal de Pernambuco. Pesquisadora do CNPq.2 Por meio de um dispositivo legal, a Lei 1.806 de 06.01.1953, a Amazônia brasileira passou a ser denominada de Amazônia Legal, criada pelo Plano de Valorização Econômica da Amazônia (sob a coordenação da SPVEA). Integra os estados do Acre, Amapá, Amazonas, Mato Grosso, Pará, Rondônia, Roraima, Tocantins e parte do Maranhão (oeste do meridiano de 44º). Ao fazer referência ao território amazônico, as análises neste texto operam com a representação de território na perspectiva das práticas sociais e sua dimensão simbólica, o que permite pensar o território em seu papel ativo. Ver, especialmente, SANTOS, 1996. Há uma urgência que se torna impositiva nos estudos que focalizam a Amazônia: uma leitura crítica dos esquemas interpretativos que tem como objetivo explicá-la, identificá-la. Nessa perspectiva, consultar o texto do antropólogo ALMEIDA, Alfredo W. B. de. Antropologia dos archivos da Amazônia. Rio de Janeiro: Casa 8/ Fundação Universidade do Amazonas, 2008.

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os trabalhadores sem terra e demais pequenos produtores rurais e os grandes proprietários, envolvidos com o agronegócio ou com outros investimentos empresariais (os modernos latifundiários). Além disso, abranger a reflexão e a análise da violência que impera nessas relações, mais que denunciá-la, é trilhar muitas vezes os seus obscuros caminhos e alcançar um maior nível de compreensão acerca das práticas de trabalho no Brasil. Significa, também, tatear seus contornos mais sutis lá onde não apenas se revelam assassinatos de homens e mulheres à luz do dia, mas emerge uma multiplicidade de novas e velhas práticas de exploração e expropriação de trabalhadores, emolduradas pelas tragédias cotidianas.

A complexidade das práticas sociais que envolvem o mundo do traba-lho no território amazônico sinaliza a sua diversidade em um ambiente que recepciona grupos sociais de todas as regiões do Brasil3. Pode-se relacionar aí – correndo o risco da generalização – trabalhadores assalariados e não--assalariados, classificados muitas vezes num regime de trabalho tido como temporário, facilmente flagrados sem contrato de trabalho estabelecido e/ou em condições de trabalho análogo a de escravo4. Enquadrados em diversas categorias, verdadeiras unidades classificatórias que não traduzem a diversi-dade social, são nomeados de peões, braçais, rurais, e, mesmo, “trabalhadores escravos”, entre tantas outras denominações; e as tarefas diárias aparecem envolvidas com as mais variadas atividades agrícolas, agroindustriais, extração mineral e vegetal, desmatamentos e cercamentos de terras, mas que também não expressam por completo a amplitude da pluralidade de trabalhos. O que se pode afirmar é que esse leque de atividades que se abre no campo apresen-ta mil e uma divisões e duplicações, que tendem a subsumir-se, ou melhor, a desdobrar-se ora em uma ora em outra atividade. Não é meu objetivo realizar uma análise exaustiva da questão do trabalho5, tendo como referência suas

3 Cf. ALMEIDA, 2008; PORTO-GONÇALVES, 2001.4 A imobilização do trabalhador na propriedade rural ou área de trabalho deixa de ser a única condição que caracteriza o “trabalho análogo a de escravo”, denominação que é alvo de inúmeras análises e controvérsias. Na configuração dessa situação do trabalhador, são avaliados vários aspectos que caracterizam as condições e práticas de trabalho, como a moradia, a alimentação, horas útil de trabalho empregado, trabalho não pago e endividamento, etc., que podem caracterizar o que se denomina de “trabalho degradante”: dignidade negada. Cf., particularmente, entre outras contribuições, os textos de: FIGUEIRA, 2004; GOMES, 2008; JOANONI NETO, 2009; PLASSAT, 2006, 2010. 5 Consultar, especialmente, dentro deste campo temático, as imprescindíveis contribuições dos autores que se apresentam nas publicações da Comissão Pastoral da Terra (CPT) Conflitos no Campo Brasil 2009. Goiânia:

diversas práticas compreendidas no espaço geográfico que se convencionou chamar-se Amazônia Legal.

Quero destacar, como eixo norteador deste texto, a análise histórica das práticas de trabalho de pequenos produtores rurais – pequenos proprietários, arrendatários, parceleiros –, relacionadas às áreas denominadas de “projetos de colonização”, particularmente no estado de Mato Grosso. Estes projetos resultaram de investimentos econômicos de empresários do Sul e Sudeste do país, com significativos incentivos fiscais do Estado, e liberação de recursos da SUDAM (Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia), em es-pecial6. As propostas de colonização constituíram-se, de fato, em um grande loteamento de terras, e apenas uma parte dele direcionada para pequenas pro-priedades (100 ha), que receberão o maior número de pequenos produtores7.

Contudo, foram apresentadas pelo discurso governamental como pro-postas que solucionariam política e economicamente os conflitos sociais no campo, no âmbito da questão agrária; e, assim, também como uma ação efe-tiva para a “redistribuição da população rural no espaço agrário brasileiro” que, nessa perspectiva, beneficiaria os pequenos produtores rurais, sobretudo do Sul e do Nordeste, renomeados de “colonos” na Amazônia8. Os projetos de colonização faziam parte do Plano Nacional de Integração (PIN)9, que

CPT, 2010 (e anos anteriores). Cf. também BARROZO, 2008; FIGUEIRA, 2004, 1986; CERQUEIRA, FIGUEIRA, PRADO, COSTA, 2008; ESTERCI, 1994; GOMES, 2008; GUIMARÃES NETO, 2010; JOANONI NETO, 2009; LE BRETON, 2002; ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO, 2006. PEREIRA, 2010, 2008; PLASSAT, 2006,. PORTO-GONÇALVES e ALENTEJANO, 2010; PORTO GONÇALVES, 2006a, 2006b; PRADO, 2002. SAKAMOTO, 2004, 2005; SOUZA, 2009; TAVARES DOS SANTOS, 2000; VIEIRA, ESTERCI, 2003. 6 Mato Grosso também estava coberto pelos incentivos financeiros provenientes da SUDECO (Superintendência de Desenvolvimento do Centro-Oeste).7 A divisão dos lotes nos projetos de colonização obedecia a um escalonamento a partir de 100 ha que indicava as pequenas, médias e propriedades maiores. Ver INTERMAT (Instituto de Terras de Mato Grosso). Diretrizes e Bases para Ação Fundiária e Colonização no Estado de Mato Grosso. 1979 - 1984. Cuiabá, CPA, s/d.8 Contudo, os empresários que apresentaram suas propostas ao Incra direcionaram a venda dos lotes de terras para pequenos proprietários da região Sul do Brasil. De fato, os segmentos de trabalhadores sem terra, provenientes da região Nordeste, que se deslocaram para os projetos de colonização em Mato Grosso, particularmente, não terão meios econômicos para adquirir os lotes de 100 ha, e vão constituir um grande mercado de trabalho com mão-de-obra vista, predominantemente, como desqualificada; serão alvo das mais diversas discriminações sociais. Ver GUIMARÃES NETO, 2002; 2009.9 Por meio do Plano de Integração Nacional – PIN (criado pelo decreto-lei nº 1106, de 16 de junho de 1970), o governo Médici determinou a construção de grandes rodovias, integrando um amplo eixo rodoviário com outras regiões brasileiras, destacando-se a Transamazônica e a Cuiabá-Santarém, além

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estimulava a iniciativa privada a investir no negócio da colonização de terras a fim de executar os “projetos destinados a colonização”, ou “colonização dirigida”, expressões que prevaleciam nos discursos dos órgãos dos gover-nos e setores empresariais. Tais projetos se apresentaram, portanto, na ordem desses discursos, como a opção política para a reforma agrária, fato que, na verdade, despolitizava a questão da terra no Brasil10 e que, efetivamente, fo-ram responsáveis, no momento da implantação, por um dos maiores índices de desmatamento da Amazônia Legal.

Em termos mais amplos, um conjunto de medidas governamentais, do qual faz parte o que foi designado como “projeto de colonização”, toma corpo num programa de ocupação econômica da Amazônia, levada a cabo pelo resultado do golpe de 196411. É deste tempo, marcado pelo discurso que privilegia o progresso nos quadros da internacionalização do capital, que os denominados “pólos de desenvolvimento econômico” atuariam na execução de um determinado modelo de crescimento para a Amazônia e o país12.

O grande objetivo é o controle político do território, em especial das ma-nifestações dos conflitos agrários, advindo daí a função central que assume o Conselho de Segurança Nacional, regente das ações que se implementa-vam13. Nessa trilha, o projeto político concebido para a Amazônia tinha como propósito incentivar a ocupação dirigida para diversas áreas desse território, nomeadas como “terras vazias”, em aliança com a iniciativa privada; provo-

do Plano de Irrigação do Nordeste. Também ordenou que se reservasse “para colonização e reforma agrária, faixa de terra de até dez quilômetros à esquerda e à direita das novas rodovias para, com os recursos do Programa de Integração Nacional, executar a ocupação da terra, e adequada e produtiva exploração econômica” (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA, v. 5, p. 2.208). Em 1971, através do Decreto-Lei Nº 1.164, de 1 de abril de 1971, ampliava-se a faixa de extensão de terra destinada à colonização: “Declara indispensáveis à segurança e ao desenvolvimento nacionais terras devolutas situadas na faixa de cem quilômetros de largura em cada lado do eixo de rodovias na Amazônia Legal, e dá outras providências.” Consultar sobre o tema colonização os seguintes autores, entre outros: BARROZO, 2008; GUIMARÃES NETO, 2002; HÉBETTE, 1991; IANNI, 1979; JOANONI NETO, 2007; OLIVEIRA, 1983; SANT´ANA, 2009; SOUZA, 2004; TAVARES DOS SANTOS, 1993. Especificamente sobre o sistema rodoviário na Região Norte ver o artigo de ALMEIDA; RIBEIRO, 1989; e, ainda, cf. SANTOS, 2001.10 Ver, especialmente, IANNI, 1978, 1979a, 1979b; MARTINS, 1984, 1997. 11 Sobre o aparato repressivo e controle político pelos militares no Brasil, consultar FICO, 2009; 2008; 2005; 2001; MARTINS, 1984.12 Cf. especialmente OLIVEIRA, 1997.13 Ver ALMEIDA, 1981, 1993; IANNI, 1979; OLIVEIRA, 1997; MARTINS, 1984.

car investimentos de grandes grupos econômicos na exploração dos recursos minerais e vegetais; investimentos agroindustriais e agropecuários; e realizar os projetos de construção das grandes rodovias, como a Transamazônica (BR 230) e a Cuiabá-Santarém (BR 163), entre outras.

Em consonância com este modelo, que tem no discurso da modernização produtiva do campo – e integração da Amazônia – sua força argumentativa, as-sociada à ideia de resolução dos conflitos agrários no Brasil, é que se define uma situação política específica. Nessa perspectiva, Tavares dos Santos (2000) afirma:

Existe, no Brasil Contemporâneo, um processo de resolução de conflitos pela terra que utiliza a instalação de famílias de agricultores em novas ter-ras – nos estados do Maranhão, Pará, Ro raima, Rondônia e Mato Grosso – para resolver a demanda pela terra que cresce no Sul, Sudeste e Nordeste, motivada não apenas pela consolidação de médias e grandes propriedades fundiárias, tra dicionais e modernas, como também pelo cresci mento do desemprego nas regiões metropolitanas brasileiras, em todas as regiões.

É no âmbito deste quadro histórico que se deve analisar a expansão das atividades empresariais para a Amazônia, segundo o discurso da moderniza-ção econômica da agricultura brasileira. Nele encontra-se implícita a parti-cipação da iniciativa privada, do moderno empresário que, em aliança com o governo, atuaria positivamente para a resolução dos problemas sociais no campo. A estratégia da “colonização” tem aí sua justificativa ideal. Os negó-cios da colonização privada ganhavam corpo como estratégia política dos go-vernos militares em conjunto com a iniciativa privada, com base no discurso da integração da Amazônia aos centros mais produtivos do país. Os empre-sários beneficiaram-se dos incentivos financeiros oferecidos pelo Estado e inseriram os loteamentos de terras dos projetos de colonização na dinâmica do mercado de terras, no país, estimulando o pequeno proprietário do Sul a investir na Amazônia.

Mato Grosso, dentre os estados da Amazônia Legal, foi aquele que regis-trou o maior número de projetos de colonização privada, seguido de Ron-

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dônia, com o mais alto índice de projetos de colonização dirigida oficial, ou seja, coordenados pelo INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Refor-ma Agrária). Houve, nestes estados, uma nova configuração político-espacial, cultural e econômica, com o surgimento, sem paralelo na história do Brasil, de um grande número de municípios novos. Tal conjuntura provocou a emer-gência de uma rede migratória de trabalhadores pobres sem terra (que não possuem qualquer meio de produção a não ser sua força de trabalho), e que passou literalmente a percorrer as áreas de ocupação recente, oferecendo a preços muito baixos seu trabalho. Estes espaços rapidamente abriram-se con-comitantemente à exploração mineradora, vegetal e agroindustrial e são onde, hoje, domina o moderno agronegócio; para não falar das madeireiras que tomaram conta, em várias das cidades, da paisagem que depois se constituirá.

São com esses fios, enredados a diversas tramas, que melhor se pode in-vestigar o presente – a partir de um passado tão recente – acerca do trabalho e das condições históricas vivenciadas pelos trabalhadores, nesse território. Na investigação dessa experiência social, procura-se analisar a lógica da produção capitalista que se constitui num padrão de ocupação e exploração da terra e do uso do trabalho de homens e mulheres. Além disso, é meu propósito refle-tir questões que não só acentuam as conexões entre o que acontecia na Ama-zônia e no restante do Brasil, no período do regime militar, mas sublinhar traços de continuidade, rupturas e re-criações entre o passado e o presente quando estas práticas se deram e, ainda, dão-se as mãos.

*Escolhi como percurso de estudo e análise da questão do trabalho no

campo privilegiar um aspecto que considero central e sobre ele historicizar as condições e relações de trabalho, em um projeto de colonização, Alta Flo-resta, localizado no extremo norte de Mato Grosso. Neste espaço, pequenos produtores, entre os quais pequenos proprietários, posseiros, arrendatários, parceleiros, e trabalhadores sem terra, do Sul, do Nordeste e de outras regiões do país, vivenciaram a experiência do trabalho em áreas de ocupação recente, vista como “abertura de novas terras” – embora essas “novas ocupações”, coordenadas pelas empresas de colonização, que construíam e instalavam os núcleos denominados de colonização, tivessem, muitas vezes, invadido terras ocupadas, sobretudo as terras indígenas. Em tais circunstâncias, torna-se in-

dispensável desnaturalizar a construção de um discurso que apresenta a Ama-zônia como o lugar mítico da abundância de terras, de “terras vazias”; desfiar ou desfigurar o texto de uma grande narrativa mítica14.

Com base nas pesquisas que venho realizando há mais de vinte anos, nas quais focalizo a parte norte do estado de Mato Grosso, investigo diversas prá-ticas de trabalho que nesse espaço se desenvolvem. Estas apresentam simila-ridades entre si, que não as homogeneízam, pelo contrário, esgarçam-se, mis-turam-se, combinam-se a várias outras experiências de trabalho, integradas a uma rede de deslocamento de trabalhadores pobres na região amazônica, que abrange o Pará, Tocantins, parte do Maranhão, Rondônia e outros estados que da Amazônia Legal. Os estudos, nos quais analiso o que se convencionou chamar de colonização, têm como referência o período do regime militar, sem se fechar nele, considerando, sobretudo, os anos a partir da década de 1970. É o tempo no qual está em vigor o Ato Institucional nº 5, da repressão às liberdades civis, tortura política, censura à imprensa, perseguição às lide-ranças sindicais, assassinatos de trabalhadores rurais; é o tempo das políticas públicas da SUDAM e da SUDECO com os incentivos fiscais e outros apor-tes financeiros, que beneficiam a iniciativa privada e que oferecem suporte a planos como o PIN, com o discurso da Integração Nacional, e demarca sua especificidade histórica. É o tempo que, sob o controle político dos militares e civis que comandam o Estado, manifesta-se, de forma inequívoca, a tendên-cia à privatização – com capital nacional e internacional – dos novos espaços públicos, como demonstram as cidades que têm a sua criação vinculada aos “projetos de colonização”.

Na análise desenvolvida destacarei os discursos, as práticas e as re-lações de trabalho, no espaço do núcleo de colonização Alta Floresta, coordenado pela empresa INDECO (Integração, Desenvolvimento, Co-lonização). Uma área da Amazônia Legal que, como tantas outras, passou a ser propriedade de empresários do Centro-Sul do Brasil, adquirida do próprio Estado – registrada como terra devoluta15 –, a fim de abrigar os denominados projetos de colonização. O termo colonização, adotado pe-

14 Ver ALMEIDA, 2008; GUIMARÃES NETO, 2002, 2003; JOANONI NETO, 2007; SANT´ANA, 2009; SOUZA, 2004; TAVARES DOS SANTOS, 1993.15 Sobre a questão da terra em Mato Grosso, ver o livro de MORENO, 2007, fundamental para a compreensão de sua dimensão política e econômica.

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los meios oficiais e pelas empresas que atuaram em grandes áreas de terras nos estados que compõem a Amazônia, emite signos de bravura e con-quista e se apresenta como desafio onde só os fortes triunfarão. Assim, a política de instauração de um grande mercado de terras se apresenta asso-ciada também a uma dimensão heroica. Esta, algumas vezes, aparece nos próprios relatos de memória de muitos homens e mulheres entrevistados, misturada ao sofrimento, à exploração e às injustiças que também narram. Ademais, analisar a estratégia das empresas privadas, com suporte gover-namental, da venda de lotes de terras a pequenos agricultores do Sul – os colonos – significa, fundamentalmente, compreender o processo político e econômico do controle do acesso a terra, sua distribuição e permanên-cia16, na história do Brasil contemporâneo. As empresas de colonização, que se constituíam para tais fins, coordenavam a instalação dos núcleos, onde se estabeleciam o grupo de agricultores – renomeados de colonos –, o escritório da empresa e a cidade que ia sendo construída. Essa empresa de colonização, como as demais, foi responsável por demandas de grandes áreas de terras, adquiridas por meio de licitações, a preços extremamente baixos, de fato, simbólicos. Algumas vezes, os empresários chegavam a propor dois projetos de colonização em áreas contíguas, como foi o caso da INDECO (Integração, Desenvolvimento e Colonização), que atuou em uma grande extensão territorial no extremo norte de Mato Grosso. Esta empresa conseguiu apropriar, inicialmente, 400.000 hectares de ter-ras, que foram loteados para os dois projetos, o de Alta Floresta17 e o de Paranaíta. Segundo a ótica do governo e a dos empresários, esta experiên-cia estimulava a ocupação dirigida e era avaliada como uma das maneiras da iniciativa privada participar ativamente do desenvolvimento do país;

16 Cf. BARROZO, 2008; GUIMARÃES, 2002; 2009; JOANONI NETO, 2007; OLIVEIRA, 1983; OLIVEIRA, 1997; TAVARES DOS SANTOS, 1993.17 A área total para cada núcleo de colonização somava aproximadamente 200.000 hectares. Contudo pelos dados levantados para Alta Floresta, apenas, aproximadamente, 13% a 15% da área deste núcleo foi efetivamente lançadas no mercado para recepcionar “pequenos colonos”, isto é, áreas de 100 hectares. E, ainda, considerando a pesquisa realizada, noventa por cento (90%) dos pequenos proprietários que se dirigiram à área do projeto Alta Floresta adquiriram os lotes de 100 ha. No caso desse estudo, sobre o núcleo Alta Floresta, o plano de divisão das áreas loteadas seguia a seguinte referência: Lote Tipo A – Exploração agrícola em regime de economia familiar - 100 ha; Lote Tipo B – Exploração agrícola em regime empresarial (média e pequena empresa) – 300 ha; Lote Tipo C – Exploração agroflorestal ou agropecuária de grande porte, com programação autônoma do projeto – 3000 e 6000 ha. Ver GUIMARÃES NETO, 2002.

significava efetivar a ocupação dos chamados “espaços vazios” na Ama-zônia, portando o emblema da “integração brasileira”.

Diante deste quadro é que analiso mais detidamente as práticas e discur-sos de Ariosto Da Riva, dono da INDECO durante a execução do projeto Alta Floresta; este foi considerado um dos empresários mais bem sucedidos com os negócios da colonização em Mato Grosso. De igual modo, discuto as práticas e relatos dos pequenos proprietários/pequenos produtores que para esta área se deslocaram e se conformaram e/ou confrontaram as regras da empresa a fim de se tornarem “colonos”. Deste núcleo surgiu a cidade de Alta Floresta, divulgada como uma das mais prósperas de Mato Gros-so, do ponto de vista empresarial e do próprio Estado; para não mencionar as propagandas que alardeavam a riqueza das novas terras, como as de Alta Floresta, amplamente divulgada pela imprensa nacional18. Do outro lado da moeda, vê-se que a almejada prosperidade redundou em grande pobreza para diversos agricultores que, paulatinamente, perderam as terras recém adquiri-das; e resultou também, visto em uma dimensão maior, na privatização de um espaço público. Os núcleos, onde se estabeleceram os – agora – denominados colonos e o escritório da empresa, que logo se transformaram em cidades, eram vistos como propriedade privada de uma empresa; e, os seus proprie-tários, aglutinando força política e alianças partidárias, passaram a apresentar uma proeminência muito grande no contexto estadual. Somando-se a esse quadro, as “cidades da colonização” constituem-se, ainda hoje, nos centros mais ativos do agronegócio, não apenas no estado, mas no país19.

Houve um enorme controle do acesso a terra e a riqueza, nesses espaços consagrados às áreas de colonização, por parte do Estado e da iniciativa priva-da. Os valores pelos quais esses lotes de 100 hectares ou mais eram vendidos – geralmente em parcelas mensais –, pelas referidas empresas, tornava impe-ditivo que trabalhadores pobres realmente viessem a usufruir do benefício da terra. Mesmo considerando o caso daqueles agricultores que puderam adqui-

18 Consultar, entre várias matérias: Jornal da Tarde. “Na fronteira Agrícola, uma lição de progresso”, edição de 4 de maio de l981; Jornal da Tarde. “A fronteira, onde o tempo não conta”, edição de 9 de maio de l981. Ver Guimarães Neto, 2002.19 É importante ainda anotar que, várias das áreas circunscritas aos projetos de colonização, também estavam ligadas à mineração de ouro, diamante, e outros produtos de exploração mineral e vegetal. Como foi o caso de Alta Floresta, especialmente, com a mineração do ouro.

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rir os referidos lotes, nos projetos, muitos deles ficaram impossibilitados eco-nomicamente de torná-los produtivos, e os revenderam, dirigindo-se a outras áreas agrícolas, de pecuária ou de mineração. O certo é que um novo processo de expropriação de pequenos produtores agrícolas se deu com a emergência dos projetos ditos de colonização20. Se em tal conjuntura configura-se o con-texto da ocupação recente nos estados que compõem a Amazônia Legal, nas últimas décadas do século XX, revela-se, também, a ponta do iceberg de uma situação ainda muito presente nesta primeira década do século XXI. Neste território, grandes proprietários não só exploram trabalhadores sem terra e pequenos proprietários rurais, muitos dos quais expropriados de suas terras, como procuro demonstrar neste texto; mas, em uma de suas faces mais vio-lentas, desencadeiam novas práticas de exploração, como, por exemplo, o uso crescente de trabalho análogo a de escravo21, usurpando direitos trabalhistas e direitos humanos. Como assinalam Porto-Gonçalves e Alentejano (2010), em seu excelente texto sobre “A violência do latifúndio moderno-colonial e do agronegócio nos últimos 25 anos”, o estado de Mato Grosso ocupa o primeiro lugar no ranking nacional sobre violência no campo, com base na “soma das quatro variáveis – assassinatos, famílias expulsas, prisões e famílias despejadas”. E asseveram:

Esse ranking deixa patente o dinamismo violento protagonizado pelo agronegócio. Mato Grosso [22,40] e Mato Grosso do Sul [16,68], que encabeçam este ranking, são os estados que utilizam as mais modernas tecnologias na produção deixan do patente que a mais alta modernidade se constrói reproduzindo o mesmo recurso à violência de sem pre. Mais do que de uma fronteira agrícola, estamos diante de um verdadeiro front, pois é uma verdadei ra guerra contra os posseiros, os povos originários e quilombolas, que está sendo travada e que, como vimos, vem se agravando nos últimos anos. (p. 113)

20 O brilhante trabalho de Mariano de Oliveira (1983) sobre o projeto de colonização de Sinop, Mato Grosso, instalado ao longo da Rodovia Cuiabá-Santarém, BR 163, demonstra um grande processo de expropriação de pequenos proprietários que haviam comprado lotes de terras no referido projeto – em razão do fracasso econômico das suas atividades produtivas, orientadas pela colonizadora. Sinop também é, hoje, uma das cidades mais proeminentes do estado.21 Ver conflitos no campo, 2010, CPT.

Acontecimento que não pode ser reduzido a quadros cíclicos e a explica-ções que naturalizam o desenvolvimento econômico, pois exige análise his-tórica, leituras críticas e combate político pelos direitos de cidadania e de memória.

COLONIZAÇÃO E PODER: A “CIDADE DO TRABALHO”

No âmbito dos discursos, que objetivam dotar de significado político, eco-nômico e social os espaços “destinados à colonização”, a pedra angular é a produção da ideia ou a invenção de uma “vocação agrícola” para a Amazônia. É o emblema com o qual os empresários e representantes dos órgãos estatais argumentam a viabilidade dos projetos de colonização. Tal discurso arma um jogo de linguagem no qual as experiências futuras que prometem a Ama-zônia aparecem envolvidas em uma bandeira nacionalista, numa verdadeira pregação de brasilidade, reeditando o discurso da Era Vargas, com a Marcha para Oeste22. A vocação agrícola, assim, passava a ser também associada à imagem do desbravamento da Amazônia e os futuros colonos se revelariam trabalhadores da pátria. Os aspectos mais importantes apresentados, como estímulo aos pequenos agricultores eram: 1. a qualidade da terra, como “sinal de fartura”; 2. o valor da mão de obra familiar que proporcionaria reunir no-vamente a “família no campo”; 3. o clima favorável, onde “não havia secas e nem geadas”. Na Amazônia, rezava o discurso, “plantando-se, tudo dá”, slogan que acompanhava imagens das plantações e da floresta expostos em cartazes, catálogos e diversas propagandas que circulavam, destacadamente, pela região Sul do Brasil. Nessa dimensão, a Amazônia era o lugar escolhido, a “terra pro-metida”, onde, com trabalho, disciplina e orientação racional (oferecida pelas empresas e órgãos do Estado) as lavouras do café, cacau, guaraná, pimenta do reino configurariam a terra da abundância. Os empresários mobilizavam-se, sobretudo por meio de intensas propagandas no Sul do Brasil, e direcionavam pequenos agricultores para as áreas de colonização constituindo, dessa forma, um mercado de trabalho e agregando valor à terra, isto é, às áreas do projeto de colonização.

Neste quadro onde se reúnem atores, cenas e paisagens modelares, cada qual tem seu papel delimitado. O empresariado, como “colonizador”, apre-

22 Cf. A nova política do Brasil, de Getúlio Vargas, 1943. Ver também Cassiano Ricardo, Marcha para Oeste,1970.

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senta-se imbuído de uma obra ou missão social, que era a de promover o desenvolvimento e a integração, sobretudo, do Sul e Sudeste com os “vas-tos territórios vazios” da Amazônia; ao mesmo tempo, o pequeno agricultor, como “colono”, afigura-se como um novo trabalhador, também convocado e empenhado na construção de um moderno e grande Brasil; e o espaço so-cial, denominando “núcleo do projeto de colonização”, atualiza a fundação de uma terra que carrega a semente da realização pessoal. Porém todo esse diversificado e complexo universo de novos/antigos signos era instituído por meio de regras, práticas e atribuições que estabeleciam as obrigações morais e legais para os personagens que se encontravam envolvidos com as empresas de colonização.

Para uma análise histórica dessa experiência, que se produz numa tensa relação de poder entre o colonizador que detém o monopólio das regras e os colonos que tentam assegurar seus direitos e sobrevivência, adoto dois percursos: o primeiro destaca o discurso do colonizador e procura analisar as estratégias de controle voltadas para as ações dos colonos no projeto de colo-nização; e o segundo percurso, construído por meio dos relatos dos colonos, busca apreender a estruturação desse mundo do trabalho relacionado à re-presentação da terra prometida. E, ao mesmo tempo, ao narrar os obstáculos e as adversidades que se apresentam no seu cotidiano de vida e trabalho, os colonos qualificam o espaço dito de colonização com outros atributos, não mais os do paraíso imaginado.

O cruzamento dos diferentes pontos de vista desses atores sociais nos auxilia a analisar o estatuto da desigualdade social e da exploração do trabalho, nas áreas ditas de colonização. Do mesmo modo, torna-se fundamental in-vestigar as diferentes práticas sociais e culturais que têm como finalidade não apenas assegurar a exequibilidade econômica da colonização, na relação capi-tal e trabalho, mas a construção de um espaço cultural e político que institui as bases para uma futura “cidade do trabalho”. Ariosto Da Riva, ao se construir e se apresentar como colonizador, expõe a sua lógica sobre as normas bási-cas para o funcionamento produtivo do projeto. Não deixa dúvidas de que a eficácia da sua implantação, continuidade e permanência somente seriam pos-síveis na medida em que se construísse uma ordem social voltada para o tra-balho, sob a lógica do tempo/economia de mercado associada a moralização

dos costumes, segundo seus preceitos. Os pequenos agricultores-colonos, por sua vez, revelam a sua inquietude, resistência e denunciam os rumos tomados na “terra da colonização”.

O DISCURSO DO COLONIZADOR

Ariosto Da Riva, proprietário da INDECO – como já registrei em outra passagem deste artigo –, apresenta-se com um discurso que associa com-petência empresarial e missão social23. Por meio da sua prática cotidiana, na coordenação da empresa, passa a identificar os elementos mais importantes que configuram o seu projeto como uma obra social de grande alcance. Para ele, nada deveria interpor-se como obstáculo à execução do projeto de colo-nização, e nega, de maneira veemente, a existência de crise econômica e ou conflitos sociais. Terra fértil havia – era uma condição já dada, dizia ele – e com trabalho, disciplina e confiança na iniciativa privada (“espírito de luta”), garantir-se-ia o sucesso da colonização. Ganhava corpo um discurso que, en-tre a dimensão mítica e civilizatória, apresentava a cidade do futuro na Ama-zônia Legal sob o signo do trabalho:

Eu tenho dito que Alta Floresta é uma das cidades onde mais se trabalha neste país, e todo mundo que veio pra cá tem pressa em ficar rico ligeiro, fazer sua independência econômica pelo dinheiro ligeiro! Mas nós fugi-mos do paternalismo também. Que o paternalismo se pratica, acaba pre-judicando. Você tira a pessoa daquele espírito de luta, de briga, de aceitar o desafio. Então, o paternalismo excessivo não funciona. O homem aqui, que vem pra cá, é outra medalha. Ele vem, ele paga a terra, fica devendo a prestação, vai trabalhar pra pagar aquela prestação, porque é outro elã de trabalho... Completamente diferente! É uma ciência. Você precisa deixar o desafio... E, quando está afogando você tira, levanta ele um pouquinho, dá um empurrão! E, coisa curiosa, todo sonho aqui cresce num ritmo constante, permanente. Você não ouve ninguém falar em política, nin-guém chorar, ninguém irritado. Está todo mundo contente, todo mundo satisfeito, todo mundo com aquela esperança no amanhã. Não tem aquela

23 Como aparece designado nos demais discursos dos empresários que se envolveram com os projetos de colonização, como foi o caso de Ênio Pepino, do núcleo de SINOP (ao longo da BR 163, Cuiabá-Santarém), entre outros. Cf. OLIVEIRA, 1983.

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amargura que se vê hoje em dia, não existe isso aqui! Então nos chegamos outra vez na terra prometida. Você não vê ninguém falar em crise. Essa é uma palavra que não existe aqui. Não é na cidade não, é em toda parte!24

Como se lê em seu discurso, esse deveria ser um território sem conflitos e ingerências de partidos ou entidades políticas. Tal dimensão carregava o desejo da não contestação, almejada pelos grandes empresários, agora alça-dos à condição de colonizadores. As ações dessas empresas, com o apoio e a parceria do Estado, se davam na perspectiva da privatização dos espa-ços públicos e, especialmente, na área do núcleo de colonização, o grande proprietário-empresário, reconhecendo-se “sem paternalismo”, orientava os pequenos agricultores somente a se ocuparem de seus negócios e a en-frentarem os desafios.

Nessa entrevista com Ariosto Da Riva, estava em sua companhia aquele que se apresenta como o assessor da INDECO para assuntos de educação, Senhor Benjamin, que completa e endossa as suas palavras. Oferece seu teste-munho como uma “oração de fé no trabalho”, exaltando sua virtude, que se traduz numa defesa intransigente do trabalho, como se este fosse igual para todos e, portanto, a única e segura garantia de conquista do futuro, da terra prometida, como ele próprio re-afirma:

Na região não tem carente, você sai na cidade durante a semana e encon-tra todo mundo preocupado em trabalhar, produzir; todo mundo com pressa, todo mundo querendo fazer o seu pé de meia o mais rápido pos-sível. A filosofia é essa: nós não damos colher de chá pra vagabundo aqui, entendeu? Ajudamos a todo mundo! Colher de chá pra preguiçoso, não! Trabalho! Trabalho! Trabalho! E lutar e vencer pelo trabalho! É claro que pelo trabalho uns vencem mais rapidamente... Por um pouco! Mas a luta, o valor da luta é o mesmo! O seu Ariosto, quando chega alguém aqui ele fala: - Você trabalha? - Ah, a maior virtude, a primeira virtude, a pri-meira oração do homem em Alta Floresta é o trabalho. O rapaz que aqui trabalha, tem tudo! E essa pregação foi feita com exemplo. Então, é isso

24 Entrevista concedida pelo Senhor Ariosto da Riva a mim, em Alta Floresta, no escritório da INDECO, em fevereiro de 1981.

que realmente criou esse ambiente que você chegando aqui percebe que o pessoal se sente numa terra prometida!25

Produzindo estratégias disciplinares e representando si mesmo como uma figura exemplar, Ariosto da Riva controlava o lugar da colonização. E na “sa-grada união” – família, escola e trabalho – ele informa, preparava-se o esteio de seu projeto da cidade do trabalho:

O que eu acho importante mesmo é que dei a oportunidade das famílias se reunirem aqui. Eu tinha colono com filho esparramado por este país afora, filho em São Paulo, filho no Rio, filho não sei mais aonde... E, hoje, con-seguiu arrebanhar toda a família pra cá, juntar toda a família aqui! Venho observando o homem da roça, aquele que é analfabeto e tem preocupação de dar instrução a seus filhos... Isso fez com que implantássemos um sis-tema de escolaridade rural pra ajudar a fixar o homem em seu ambiente de trabalho lá na roça, na sua propriedade agrícola. Principalmente, porque se nós estamos lutando pra manter o homem na agricultura perene, que é a que fixa o homem no solo!26

A privatização do território da colonização começava com a própria posição dominadora e centralizadora daquele que se via positivamente como o coloni-zador das novas terras. Como é possível ler no seu discurso, há uma preocu-pação em se apresentar como criador, como aquele que funda e de onde tudo parte e é concebido, pois tudo lhe pertence. Uma grande família, em prol do progresso, vingaria naquele solo fértil, comandado por ele, com a justificativa de que juntara novamente as famílias dispersas e que tudo fazia para fixar o peque-no agricultor. Embora não explicitasse, disto dependia o êxito do seu projeto. Assim, Alta Floresta não significava apenas uma “oportunidade ímpar” de terra e trabalho – “o pequeno colono florescendo na Amazônia” –, como dizia ele; mas, constituía-se no próprio símbolo da união do trabalho com a família reu-nida, no lugar em que os filhos teriam escola, trabalho e futuro.

25 Depoimento do Senhor Benjamin, que acompanhava o Sr Ariosto da Riva, na entrevista citada.26 Entrevista com Ariosto Da Riva, citada.

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O relato do assessor da INDECO, responsável pelo “sistema de escolari-dade” implantado em Alta Floresta, dizendo-se voltado para atender e esta-belecer aqueles que se tornaram os novos colonos, complementa o discurso de Ariosto Da Riva. Ele detalha a dimensão social da educação na perspectiva de valorizar o papel do empresário como um colonizador, que reforça a re-lação pai-patrão e, ainda, segundo ele, expõe a face democrática, aberta, da colonização:

As escolas foram fundadas sempre em um processo de preparação de uma comunidade, na qual o pessoal, num raio de oito quilômetros, podia se juntar no centro comunitário e sentir a mensagem do colonizador que se transformou em pai. O pessoal o trata mais como pai do que como patrão. Além disso, ninguém entendia nada de cacau, mas nessas comuni-dades os técnicos da CEPLAC (Comissão Executiva do Plano da Lavoura Cacaueira) ensinavam para o pessoal as plantagens do cacau, etc. Nessas comunidades, o pastor protestante, se houver protestante, vai fazer o cul-to, e o padre católico vai rezar missa para o pessoal. Eles se reúnem e elegem seu presidente, seu tesoureiro, seu secretário. Sentem-se unidos - foi criada outra vez a família! É o que talvez, eles já não tivessem mais lá [no Sul], judiados pela seca, pela geada, pelos interesses que estavam se desestruturando. Aqui eles encontram outra vez essa família, entendeu? Nesse espírito familiar e nesse centro eles se encontraram, onde depois também se deu a escola. Então, vamos dizer, eles saíram de um ambiente de angústia para um ambiente aberto, em que sentiram todas as esperanças humanas se transformarem numa tremenda possibilidade - terra grande, terra maior, possibilidade dos filhos estudarem. E, de repente, se ouviu falar muito em amizade, em colaboração, em família, entendeu?27.

Para o colonizador, por meio de ações, como a criação de escolas e o exer-cício da prática religiosa, era importante criar vínculos de identidade e perten-cimento entre aquelas famílias recém chegadas, o que concorreria fortemente para a sua fixação28. Sabia que o risco dos colonos retornarem para os lugares

27 Entrevista do Sr. Benjamin, assessor da empresa colonizadora para assuntos de educação. Citada.28 Ver sobre a complexa relação entre crença e colonização, em Juína, Mato Grosso, também uma cidade oriunda de um projeto de colonização, o livro, escrito com muita competência, de JOANONI NETO, 2007.

de origem ou se dirigirem para outras áreas de colonização e, até mesmo, de exploração mineral, ou, ainda, trabalho em agropecuárias, era grande. Para o sucesso da colonização, era necessário que o colono vencesse as grandes distâncias – e outros empecilhos, como o péssimo estado das estradas e cami-nhos – entre os sítios e os poucos estabelecimentos escolares para os filhos estudassem. Vigorava, nesse caso, o discurso de que o trabalho e a escola eram indissociáveis, isto é, o meio que levaria a família a se manter cultural-mente coesa e o futuro de seus filhos garantidos.

Por outro lado, Ariosto Da Riva, complementando o discurso do seu as-sessor, indicava, ainda, que na área do projeto de colonização havia soluções para tudo. Já antecipando a possibilidade de os “homens da lavoura” não con-seguirem levar adiante a produção agrícola em seu sítio (por razões externas, segundo ele), a cidade, que ali se projetava, a partir do núcleo de colonização, criaria também outras oportunidades:

Por isso é que aqui tudo dá certo, e, ainda, podemos contar com o espírito de criatividade da iniciativa privada. Eu tenho o exemplo do seu Beneti, lá da piscina. O seu Beneti era um homem da lavoura e que tinha comprado terra, mas deram o tombo nele com as terras que vendeu no Paraná, ficou sem recurso e então me procurou. Dei a idéia pra ele na época mexer com construção, e passou, a fazer tijolos de cimento. Mas, com o aumento da capacidade da cerâmica, ele sentiu que o negócio do tijolo de cimento podia fracassar. Assim, ele bolou um clube particular, com piscina. Agora tem até quadra de futebol de salão e vai inaugurar por esses dias uma de futebol suíço. Investiu tudo nesse negócio, e o clube é dele. Tem uma renda hoje de mais de 1 milhão de cruzeiros por mês, só de associados da cidade. É o espírito de criatividade! Um outro aqui, rapaz que era gerente de uma loja, em função do clima, quis colocar uma indústria aí. Ele trouxe uma fábrica de sorvete que fazia oitocentos picolés por hora, aqueles de palito, e trabalhava dia e noite! Tá rico aí, em pouco tempo! Este não é um aventureiro não!29

29 Ariosto Da Riva. Entrevista citada.

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E, de forma exultante, o apóstolo da colonização, expulsando o “aventu-reiro” do mundo do trabalho, configura a terra prometida, como o lugar da abundância:

Hoje eu posso assegurar conscientemente de que nós estamos em uma das regiões privilegiadas do café deste país. Aqueles que já tinham experiência, que plantaram o café como deve, estão tendo resultado fora de série, gran-de sucesso! Mas nós saímos com o café, aqui. Nós plantamos o café, com o IBC (Instituto Brasileiro do Café), sem o IBC e apesar do IBC. Resol-vemos provar que aqui dava para o café, quebramos com certos conceitos estabelecidos. Na Amazônia só vinga o café tipo robusta, dizia o Instituto Brasileiro do Café. Cacau só o sul da Bahia pode produzir, afirmavam os entendidos. Guaraná, ninguém duvidava, só dá em Maués, no estado do Amazonas. A INDECO experimentou essas culturas em suas terras e o resultado foi um sucesso.

Cacau é uma plantação difícil. Tem que esperar o quinto, sexto ano, até quando o cacau faz sua própria sombra, ai não nasce mato, é só colher! Até lá, é uma plantação difícil, mas a CEPLAC está esperando uma boa produção.

Agora, o Ludovico (filho e acionista) foi buscar o guaraná lá em Maués, no Amazonas. Eles acharam que o guaraná só dava lá, por ser nativo na re-gião. Guaraná pra nós está surpreendendo, porque nós estamos com uma produção até três vezes superior a Maués. Não existe um lugar no mundo que dê uma produção dessa. Eu fico preocupado com o nosso colono aqui, ficar com esta imagem do mercado de hoje. O pessoal é da roça, mas é inteligente. Eles acham que até os outros acordarem eles colheram uma ou duas colheitas. É o suficiente pra fazer a independência deles. É uma grande cultura o guaraná...

Nós testamos o hortelã, o mentol, a pimenta. Houve um resultado fora de série... O algodão, se bem que não gosto do algodão. Toda região que entra o algodão, com o passar do tempo, ela é prejudicada, exaure muito o solo e a preocupação nossa é fixar o colono à terra.

Estou com uma experiência muito boa com o dendê. Plantando o dendê, teremos uma grande produção. Em termos de pesquisa, nós temos muita

coisa. Olha, eu tenho cana de Alagoas, Sergipe, Pernambuco, São Paulo. Estamos testando toda variedade de cana, pra uma futura usina de álcool ou de açúcar. Se vierem montar mais tarde, já existe a experiência na re-gião. Usina de álcool já é viável, fora essa lavoura de arroz, feijão, milho.

O arroz é plantado no meio dos tocos, do café. O arroz aqui não é meca-nizado. Produção de milho é muito boa, feijão muito boa, em função do cacau, a produção de banana é muito grande. No ano passado saiu daqui dois milhões de hectares de banana. Mamão, temos uma indústria de papa-ína (o leite do mamão verde). Mamão aqui é praga, mamão e banana aqui é engorda de porco.

Nós estamos com outras experiências agrícolas também. O urucum aqui é praga, estamos pesquisando os corantes. Estamos pesquisando, ainda, pre-ço, mercado, exportação, porque, quando nós chegamos a indicar qualquer coisa aqui para o colono plantar, temos que ter muita responsabilidade. Uma das nossas preocupações constantes é o colono fazer sua indepen-dência econômica o mais rápido possível – as casas que os colonos fize-ram aqui já foram com o resultado da produção deles mesmos.

A terra daqui, para a Amazônia, é muito boa, não é excepcional... É que, aqui foi feito com tanta boa vontade, com tanto amor... Tudo dá certo! Pa-rece que nós temos uma luz divina que guia a gente, isso eu sinto e muita gente sente, não há dificuldades!

Você vai em qualquer sítio, não importa! Ele tem uma vaquinha, ovo, ba-nana, mamão, a horta, o porco, mandioca, a batata doce, ele tem uma fartura fora de série! Agora, ele vem de um Paraná mecanizado de soja, com veneno! Paraná não tem mais passarinho, Paraná não tem mais ga-linha... Paraná, nas represas das fazendas, não tem mais peixes, porque o veneno que eles soltam na soja, com a enxurrada, cai nas represas. Então, o pessoal que vem de uma região dessas pra uma região igual a essa nossa, região nova, onde existe essa fartura, para eles é, logicamente, uma terra prometida.30

30 Idem.

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“TEMPO É DINHEIRO”31

Alta Floresta foi descrita por Ariosto Da Riva não só como o lugar da fartura e do promissor amanhã: o arroz plantado no meio dos tocos, a maior produção de guaraná do mundo, o café que desafiou até as previsões feitas pelo IBC, um resultado fora de série com a pimenta, podendo ser também com o dendê. O mamão é praga, a banana é praga, servindo até como en-gordas de porco. O cacau é difícil, mas sabendo esperar, é só colher! A terra, admite, pode não ser excepcional, mas não importa – lá tudo foi feito com amor, tudo dá certo!

Desta terra o colonizador, em seu relato, retratou: todo sítio tem uma vaquinha, tem uma casa feita pelos próprios colonos, tem uma horta, tem um porco, tem batata doce, tem ovos. E estes sítios têm passarinhos, peixes, árvores e rios. Quem poderá dizer que esta não seja o paraíso?

Decididamente, nessa projeção, o mundo era fantástico, não se falava de dificuldades e tampouco dos sacrifícios. Os sítios eram superdotados – o ar-roz certamente crescia sozinho por entre os tocos, o mamão, a banana e o guaraná apareciam como frutos da terra da abundância. Ariosto construía a representação da terra prometida num ritmo repetitivo e procurava impedir outros discursos que também apresentassem a dura realidade do trabalho, do amanhecer ao anoitecer, que envolvia toda a família na lavoura, até mesmo as crianças. E, não se pode esquecer, havia o perigo das doenças, como a malária, que assolavam as áreas agrícolas recém abertas. As picadas dos mais variados tipos de insetos eram muito temidas, pois causavam muitas feridas, como informa uma moradora dos primeiros tempos:

E os mosquito, vige minha filha, nem sei contar outra vez, mosquito, aque-le meu molequinho quase morreu aí de mosquito, aquele moleque ali ficou com os olhos fechado, esse aí num enxergava ninguém, nem via o ar do tempo de tanto mosquito, inchou assim os braço, perna, rosto, assim in-chadinho mesmo, num vestia nem uma roupa o coitadinho. (...) tava tudo doente de mosquito, ferida num tinha aonde a senhora por uma agulha,

31 Clássica sentença do texto de Benjamin Franklin, que proporcionou a ilustração central da Ética Capitalista para Max Weber – A ética protestante e o espírito do capitalismo – 1980, p. 182.

tão ferida que tava, aí as marca, ói, ói... Tudo ficou pintado aqui de ferida... O seu Ariosto mandou o Dito ir levar eles tudo pra lá, pra tirar consulta, dei bastante remédio pra eles, pra nós tudo, tava tudo feridento. É mulher do céu! Nós já sofreu bastante aqui...”32.

O discurso do trabalho carregado de signos de bravura, senso de opor-tunismo, vontade de ascender, recompensa aos que não se deixavam abater constitui-se numa tática para apagar o sofrimento, as privações, a propaganda enganosa, as injustiças e as condições subumanas a que os colonos eram sub-metidos. Afinal, antes de aceitarem a proposta de se deslocarem para ‘as far-tas e abundantes terras amazônicas’ também lhes era dito que encontrariam todas as condições de infraestrutura (hospitais, escolas, supermercados) que se poderia encontrar em qualquer outro centro urbano. No entanto, diante da realidade que esses grupos de pequenos agricultores encontravam, a repre-sentação do trabalho como meio necessário para atingir os fins se projetava como panaceia para todo aquele trágico quadro. Invertia-se o lugar do sos-sego no paraíso para o do trabalho, enfrentando todas as dificuldades que se apresentavam. A força de Alta Floresta – como informou Ariosto Da Riva – estava na “pressa em ficar rico” ou no “ganho ligeiro do dinheiro”. Esta era a linguagem por meio da qual se associavam as ideias, programas e regras que geravam a imagem da riqueza e bem estar futuro. Alimento necessário para movimentar a maquinaria da moral do trabalho e, por extensão, a vida e o cotidiano de homens e mulheres.

Nessa ótica, a lógica da “economia do tempo” se constrói associada ao tra-balho, e este se constitui na força que determinava o fundamento sobre o qual se deveria erguer a vida de todos os que procuravam aquela terra. O lugar logo começava a se revelar com base na ordem social, em que todos deveriam estar conscientes a obedecer os preceitos morais da vida dedicada ao trabalho. E, sobretudo, fazer com que o tempo fosse utilizado em função de ganhos cada vez maiores33. Rapidamente, impregnava-se a nova comunidade de um desejo de consumir o tempo com trabalho, como a única forma possível para se chegar

32 Entrevista concedida por dona Maria, mulher do Senhor Dito, colono. Alta Floresta, fevereiro de 1981.33 Para esta análise a leitura de E. P. Thompson, sobretudo o capítulo “Tiempo, Disciplina de Trabalho y Capitalismo Industrial”, foi imprescindível, 1979, p. 239-293.

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ao fim que todos deveriam, unidos e de forma ordeira, almejar: a produção da riqueza. Tudo deveria girar em torno dessa construção imagética: o cotidiano, a esperança e o futuro. Desse modo, de acordo com uma valorização puritana do tempo, os homens teriam a obrigação de trabalhar sem cessar e viver para viver dedicado às suas famílias, unidos pela fé. “Aqui só se trabalha, o que leva a gente a pensar mais em Deus!” – dizia o colono em Alta Floresta.

Sob a lógica dessa “economia do tempo”, o trabalho era o caminho mais seguro para o prazer. Em seu nome, a diversão, o lazer, a vida sossegada, enfim, eram tidos como contraproducentes. Não apenas se constituíam em exemplos negativos, mas um sinal de perigo, ali, onde tudo deveria funcionar segundo as regras do tempo do trabalho. A representação da fartura compri-mia-se por entre as malhas irrompíveis deste tempo. Definia-se, dessa forma, também, não só uma vocação agrícola para o pequeno agricultor, mas, fun-damentalmente, uma vocação para ser colono: homem de invejável resistên-cia, infatigável na árdua labuta do trabalho no campo e, especificamente, do trabalho em uma nova fronteira agrícola. Este era o colono ideal, que sofria constantemente os estímulos da nova colonização para continuar na trilha de um mundo delineado pelo poder de uma grande articulação entre o regime civil-militar e empresas privadas.

Para esses empresários alçados a posição mítica de colonizadores era ex-tremamente importante que a invenção do trabalho ou a moral do trabalho tivesse força suficiente para neutralizar as iniciativas de desistência, no início da implantação do projeto, ou outras formas de resistência de homens e mu-lheres na área da colonização. Isto é, era preciso fazer com que os colonos acreditassem que o trabalho poderia ser a “verdadeira saída” para a pobreza e, portanto, a garantia do futuro. Desta forma, impunha-se uma racionalidade que compreendia o trabalho como o único meio eficaz para solucionar os problemas de todos. O “vagabundo” desafiava a ordem social e só o trabalho poderia conferir virtude aos homens: “O rapaz que aqui trabalha tem tudo!” E, para o “vagabundo”, o exílio sem fim: “Colher de chá pra vagabundo, não!” Portanto, para aqueles que se diziam “fracassados”, ou que o novo lugar não lhes dava sucesso, existia um código moral que os enquadrava: “Só não fica rico quem não quer, quem não trabalha!”.34 O preguiçoso, merecedor da

34 Ariosto da Riva, entrevista citada.

pobreza como castigo, não podia, por conseguinte, atingir e usufruir da terra prometida. Por entre os fios da positividade do trabalho tentava a empresa construir a comunidade de Alta Floresta. E, da “cidade onde mais se trabalha neste país”, de acordo com Ariosto Da Riva, até mesmo “os sonhos crescem num ritmo constante”.

“O FUTURO AQUI É DO PATRÃO!”

Os discursos de Ariosto Da Riva como o de seu assessor Senhor Benjamin confrontam-se, no entanto, com os problemas que aparecem narrados na fala dos colonos. Um dos grandes obstáculos que se apresentava para estes, talvez maior do que as doenças, era a maneira de lidar com as lavouras na área da co-lonizadora, predominantemente floresta amazônica. Não tinham experiência, preparo técnico, conhecimento e capital para preparar o tipo de solo que se apresentava. A mão-de-obra disponível era familiar, insuficiente para atender as demandas exigidas pelo trabalho. Além disso, a INDECO já havia deter-minado aos colonos as lavouras que deveriam ser cultivadas, especialmente, a do cacau e café do tipo mundo novo. Tal instrução, ordenando o quadro da produção agrícola, levaria à falência de muitos colonos, pois eram culturas completamente inadequadas, sobretudo para aquele primeiro momento.

– No começo, até o primeiro ano, depois que derrubamos e queimamos, plantamos café, arroz, feijão... Perdemos quase tudo, o arroz, o feijão... Mais tarde é que a gente ficava sabendo que também num plantamos di-reito o café e o cacau. Mais nós não sabia, né? Depois que os moço da EMATER vinha aí falar com a gente, mais aí já tava tudo plantado...35.

Após viverem a experiência do fracasso com as lavouras, que haviam sido definidas antes de seu estabelecimento no projeto de colonização, é que che-gavam para o colono as informações e as orientações sobre como plantar. Mesmo assim, para os próprios órgãos de orientação técnica, testes e experi-mentações com as culturas agrícolas e solo imperavam. Ficava demonstrado, por exemplo, que apenas as variedades de café conhecidas como robusta (Co-

35 Entrevista realizada, em Alta Floresta, no período de julho de 1981.

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ffea canephora) podiam resistir ao calor, às temporadas intensamente secas e ao tipo de solo da região. A mundo novo (a que os colonos, segundo eles, estavam habituados a plantar no Paraná), variedade do café arábica (Coffea arábica), não se adequava àquele solo, pois, dentre outros problemas, logo apresentava a raiz pivotante, isto é, a raiz axial descia torta e bifurcada, formando ramifica-ções sem nenhuma resistência. Desta forma, a planta, passados os primeiros anos de cultivo, não tinha profundidade suficiente para poder produzir: “– Pro café não dá, no comecinho até que sai bem, depois de um tempo seca e fica só a vara.”

A orientação que a EMATER – Empresa de Assistência Técnica e Ex-tensão Rural – havia dado aos colonos, para enfrentar a situação de perda das lavouras, era dupla: ou limpavam a área novamente e replantavam o tipo robusta ou mantinham a lavoura da variedade mundo novo, intercalando-a com a plantação do robusta.

Entretanto, os colonos se manifestavam com grande frustração e deso-lação36. Para eles, derrubar a lavoura de café, iniciar outra cultura ou mesmo replantar outro tipo de semente do café, estava fora de cogitação, pois tinham a certeza de que quatro ou cinco anos ali custaram muito trabalho, da manhã à noite:

– O que nós faz agora? Eu vim plantar o café! E agora eu olho esta terra lavrada... Todos os dias do meu trabalho, é melhor desistir! Ficamos sa-bendo de umas terras mais pra cima, no Pará, vendemos aqui e compra-mos o dobro lá!.

– Debaixo desse clima que aqui não é brincadeira não! Lutamos contra a quiçaça, contra os insetos e as pragas, que aqui é fogo! E a espera, dona? E esses anos de espera? Eu to velho, já tô com mais de sessenta! E taí... A lavoura do café prejudicada!

36 Entrevistas realizadas, em Alta Floresta, no período de julho de 1981, nos sítios dos colonos. Os nomes dos entrevistados não puderam aparecer, a fim de preservar a segurança das famílias dos colonos.

– Nós que chegamos primeiro aqui, e plantamos o mundo novo, num temo mais condição de tocar o café, tivemos muito prejuízo e nem o cacau num dá pra nós aventurar, tamo tentando agora o milhozinho. Pro café, já perdemos a esperança!

O cacau também foi uma experiência agrícola catastrófica para muitos desses colonos. Através de informações obtidas junto ao escritório da INDE-CO, oito milhões de pés de cacau foram cortados em Alta Floresta. E, para medida tão drástica, dois problemas foram aí apontados:

– A maioria não teve paciência para esperar, porque os investimentos nos seis primeiros anos é muito grande, mas, de qualquer forma, tem que es-perar! Além do mais, muitos pés de cacau foram perdidos por problemas de adaptação climática, pragas e gente que não quer trabalhar direito!37

O relato de um dos colonos, que perdera tudo com a lavoura do cacau, retrata o despreparo dos órgãos do governo e da própria INDECO, na defi-nição das lavouras e nas recomendações acerca do manejo da terra:

– Todo mundo quis plantar cacau aqui em Alta Floresta, os financiamen-tos era bons, a CEPLAC chegou e disse que dava assistência, apoio. En-tão nós achamos por bem aventurar no cacau. Aí aconteceu de ser uma lavoura muito trabalhosa, que exigia muita mão-de-obra, e a maioria daqui nunca tinha plantado cacau antes. Nunca tinha visto um pé de cacau antes, nós assim era da terra do café! Enfrentamos esses mato aí, plantamos muitos hectares de cacau. O cacau não deu nem pra cobrir os custos da produção, ficamos tudo enforcado... Então, cortamos o cacau e partimos pra outra, né?

A experiência agrícola do colono foi formada com base em conhecimen-

37 Informação do escritório da Indeco. Cuiabá, dezembro de 1982.

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tos tradicionalmente desenvolvidos em lavouras do Sul e Sudeste do Brasil. O ambiente da floresta amazônica lhe é estranho e a falta de orientação técnica, recursos econômicos e tecnologia são decisivos para levar a sua produção agrícola a resultados muito negativos. De acordo com um levantamento feito pelo Sindicato Rural de Alta Floresta, junto a trinta e cinco colonos, consta-tou-se o seguinte: 1) dos que haviam plantado cacau, nenhum tinha recebido orientação para a escolha do terreno mais apropriado; 2) com relação à época para plantio do sombreamento definitivo do cacau, oitenta e cinco por cento desses colonos consideraram-na errada; 3) a maioria respondeu que não con-seguia manter limpa a lavoura, além de que considerava o financiamento para o cacau insuficiente, devido aos custos de produção; 4) não mais podiam con-tinuar colocando recursos próprios na lavoura do cacau, porque os preços dos materiais e insumos agrícolas recomendados pela CEPLAC não eram compa-tíveis com o orçamento familiar38. Enfim, na avaliação dos colonos, os fatores que mais influenciavam o custo desta lavoura e defasavam os financiamentos obtidos eram basicamente os seguintes: uma mão-de-obra inflacionada por causa dos garimpos (que se expandiam a todo o momento); o alto custo dos inseticidas; o número elevado de capinas e o custo do replantio do cacau.

Na realidade, afigurava-se um quadro agrícola fora do controle dos colo-nos, em que as lavouras perenes exigiam recursos muito altos, capital investi-do e tecnologia. Para compreender-se as circunstâncias complexas nas quais se encontravam enredados e dimensionar a situação desigual em que viviam, no trabalho do campo, deve-se, ainda, levar em conta que os agricultores uti-lizavam a mão-de-obra familiar.

Dessa forma, depois de enormes prejuízos e de anos de insucesso, os que permaneceram em Alta Floresta aprenderam a duras penas pela própria ex-periência que deveriam mudar radicalmente os procedimentos agrícolas e op-ções de plantio. As lavouras temporárias se apresentaram como uma maneira oportuna ou mais imediata para contornar aquela situação, já que “... a terra aqui é até boa pra cereal, mais pra café não pega carga... É mais pra lavoura branca e pasto!”.

Porém, o tempo ainda haveria de demonstrar que também aí não estava a

38 Informações obtidas junto ao Sindicato Rural de Alta Floresta. Julho de 1981.

solução final: “Devido a terra ser manchada e pouco fértil, o arroz só dá bas-tante dois anos... Esse tipo de cultura só dá pra despesa.” O mesmo ocorria com o feijão, que apresentava uma produção muito pequena, e, ainda, com a praga do “mela” “...uma doença que tem atingido o feijão da gente”.

Muitos colonos afirmaram que deixavam tudo para o consumo da família e, uma pequena parte, para formar o estoque de sementes. Assim, de certa forma, poderiam garantir o sustento da família – à base de arroz e feijão – e também preparar-se para o novo ano agrícola. “Isto – diziam eles – quando não se gastava tudo pra pagar compromisso.” No caso de parceleiros e arren-datários, a condição a que chegaram era a de trabalhar para sobreviver: “O endividamento da gente aqui é até pra comer!”

Para os colonos, não havia mais lugar para sonhos, a explicação para o baixo rendimento das lavouras estava, sobretudo, na má qualidade da terra, o que exigiria investimentos na produção: “A terra é fraca, ácida e manchada.”

Sobre o resultado da nossa produção, não dá nem pra ficar contando o que a gente gasta e o que a gente ganha do trabalho, dos investimentos, a gente sai perdendo mesmo e só os comerciantes ricos ficam com os lucros... Não dá nem pra cobrir os custo!

– Aqui pro pobre não dá nada, num tem condição... Dá muita praga... No Paraná as coisas era bem mais fácil... Mas lá tinha a geada! Não tem jeito não! O negócio é esperar pelo ano que vem!

Se para os colonos que tinham seus sítios a manutenção das lavouras era quase impossível, exigindo um custo de produção muito elevado, o que não dizer dos meeiros, parceleiros e arrendatários que foram para Alta floresta na esperança de um dia poderem possuir o seu próprio pedaço de terra? Neste caso, o depoimento de um deles é bastante significativo:

– Tô vivendo o ano agrícola à custa do fornecimento do patrão, pratica-mente, não tenho alternativa, senão entregar a ele todo o produto do meu trabalho, esperando que dê pelo menos pra cobrir o fornecimento...

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O futuro aqui é do patrão!

O relato de um dos arrendatários do projeto Alta floresta não só expõe os problemas da produção insuficiente do café, das pragas e mesmo das “ter-ras manchadas”; testemunha não só o seu desalento com as lavouras; mas também qualifica a terra prometida para os trabalhadores do campo como um mundo vazio de sentido. O futuro prometido perdeu-se no passado e o presente da vida em Alta Floresta, era trabalho, um “trabalho a morrer”, conforme este relato:

– O dinheiro aqui é duro... Não é tão cara a terra aí... e nem barato! Pro pobre não é barato! Porque aí é setenta, oitenta mil o alqueire... O pobre tá com essas lavourinha boba, ora! E as despesa agora de comestível, de roupa, de médico, enfim, do ano... NÃO É MOLE! E aqui pro pobre comprar não é fácil conforme a pessoa pensa não, pode trabalhar a morrê! Faz duzentos mil, num faz! Faz sim, se fosse num lugar que plantasse soja, plantasse algodão, plantasse tudo, aí sim, aí fazia mesmo, tranquilo! Mas aqui é puramente arroizinho, o arroizinho dá mixariinha, né?... E puro e mais nada, uai, vai fazer o quê?... O caso é este! O patrão ainda queria que plantasse o café e eu resolvi a não plantar, eu pago a porcentagem mais num vou plantar o café no meio duma sementeira dessa, uma pedra des-sa!... A terra aqui tá cheia de mancha, tem lugar que num dá jeito nem de trabalhar, que é pedra demais, tem uns lugar que é até bom. Lá no Paraná eu trabalhei como arrendatário, durante nove anos, pro mesmo patrão. Lá era melhor pro trabalho, sem comparação! Que lá nós trabalhava era com animal, a terra toda bem preparada, né?

Este colono, ao ser indagado porque havia saído do Paraná, respondeu que tinha sido por causa da maneira como as pessoas falavam do lugar, de Alta Floresta, “que aqui era muito bom, que dava mais”. Porém, imediata-mente acrescentou:

– Saímos de bobagem. Mais a gente saiu de lá, não foi dizer que lá tava ruim e essa coisa não. Dois anos lá meio perigoso de seca e aí o pessoal

se aconteceu de aborrecer com aquilo e limpou o trecho, foi o que fez o pessoal sair do Paraná. Mais dizer que o Paraná é ruim, não! Eu num falo horas nenhuma do Paraná... É que o Paraná num presta, que o Paraná num tá dando mais nada, essas coisa, é mentira! Falar isso pra mim, eu falo assim: É MENTIRA! Vai lá que lá tem muito mais movimento dobrado daqui, sem comparação!!! Que o movimento daqui, o que é? É aí um plan-tiozinho de arroz, em algum lugar sai um feijãozinho, um milhozinho... Esse outro ano que passou, DEUS ME ARREPIANTE! Eu se bati aí com cento e pouco saco de arroz, no fim precisou de levar lá pro banco, que eu num achei um abençoado pra comprar o arroz aí na cidade!

Seu relato ainda destaca como, apesar da existência de terra inexplorada, circundando a cidade (com muitos hectares, também, já delimitados para ser-vir à pecuária extensiva), as condições de trabalho revelavam um alto nível de exploração:

– Eu num arrumei porque ainda não pude, tem muita terra! Muita ter-ra! Mais e o medo de entrar e depois se perder, né? Terra tem muita... TERRA ANDA SOBRANDO AÍ! SOBRANDO! E a gente trabalhando feito bobo aí, trabalha sem equipamento, pagando porcentagem, é isso aí... Num deserto desse e um retorno miserável desse, perdido aí, e a gente trabalhando de porcentagem...

A possibilidade dos trabalhadores sem terra virem a possuir um sítio se apresentava cada vez mais difícil. A terra era cara e não havia retorno algum das lavouras, nada compensava os investimentos que fizeram. A constatação de que quando “quando bate zero com zero ainda tivemos prejuízo” revelava para os colonos a situação difícil e praticamente irremediável em que se encontra-vam. Era a certeza de que todo o trabalho investido nas lavouras não reverteria em nenhum benefício que fosse além da mínima garantia de subsistência. Mais ainda, significava que o sonho de ter sua própria terra, de ser proprietário e construir com seu trabalho outra vida, não eram possíveis. A terra “andava so-brando”, mas todas tinham dono, grandes propriedades ocupavam a Amazônia.

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Este grupo social de trabalhadores rurais, particularmente parceleiros e arrendatários, acabou por se sentir pressionado a se deslocar de uma área agrícola – ou de pecuária ou de mineração – a outra, muitos deles por terem perdido ou revendido seus lotes, processo este que faz parte do movimento de expropriação pelos grandes proprietários, sempre ávidos por mais terras. Outro fator que também concorreu (e ainda concorre) para a grande mobili-zação de trabalhadores do campo no território amazônico foi a procura pelas áreas de mineração, assim como para as atividades envolvidas com a extração da madeira, que se intensificaram durante as décadas de oitenta e noventa do século XX, constituindo outras frentes de trabalho. As capitais dos estados que compõem a Amazônia Legal, como Cuiabá, em Mato Grosso, se torna-ram território de migrantes, famílias que retornaram das áreas de coloniza-ção e áreas de garimpos, especialmente39. Esses grupos sociais abandonaram sua terra, endividados no comércio local e com os financiamentos bancários, mesmo já tendo investido nas lavouras com o trabalho e as poucas reservas que haviam trazido.

Além disso, são constantes as críticas de parceleiros e arrendatários, na área do projeto Alta Floresta, denunciando outro aspecto que aprofunda a exploração social: “O patrão deixa a gente ali pra dizer que o lote está ocupado, nós ficamos a penar e a terra dele valendo mais dinheiro.” Ocorre que muitos proprietários investiram nos lotes, contratando famílias para desenvolver as lavouras a fim de valorizar a sua terra. É muito comum par-celeiros e mesmo arrendatários dizerem: “A gente acaba tirando mais da nossa conta que do bolso do patrão, fora o trabalho que aqui, nesse lugar, num é brincadeira não!”

A ESTREITEZA DA TERRA

Em curto período de tempo, o processo de ocupação na área do projeto da INDECO, Alta Floresta, tomava seus contornos mais definitivos. Haja vis-ta que os investimentos direcionaram-se predominantemente para a pecuária. Contudo, ao analisar o seu projeto de colonização, já constava lá toda uma política voltada para estimular a produção agropastoril.

39 Para esta análise consultar as excelentes contribuições das historiadoras SOUZA, 2007 e SARAT, 2010.

As terras destinadas à colonização, prevendo lotes de 100 até 300 hectares, representavam menos da metade da área disponível da gleba Alta Floresta: de um total de 211.966,05 hectares de terras, apenas 95.209,24 hectares estavam programados para a colonização. A área reservada para a agropecuária (deno-minados lotes autônomos do projeto) perfazia 112.435,03 hectares de terras40. Como se pode constatar, estes dados revelam que os objetivos designados “de colonização” estavam associados a um grande empreendimento econômico de valorização da terra, investimentos agropastoris, entre outros, que previam o poder de controle da distribuição das terras e do mercado de trabalho.

Desde que foi pensado e, mesmo em sua execução, este modelo de co-lonização já trazia embutido em seus objetivos mecanismos que tornavam praticamente inviável o sucesso do colono com pouco ou quase nenhum re-curso econômico e técnico para lidar com culturas agrícolas na Amazônia. Se atentar-se para uma análise mais detalhada do projeto, quanto à distribuição dos lotes por área, verifica-se que uma distribuição mais equitativa das terras “destinadas à colonização” estava fora dos interesses da empresa.

Os lotes programados para a colonização, registrados no INCRA, cuja área correspondia a aproximadamente 45% do total da gleba Alta Floresta, estavam assim divididos: 1) 318 lotes tipo A, de 100 ha cada um, destinados à exploração agrícola em regime de economia familiar, perfazendo 32.258,37 ha, apro-ximadamente 15% de toda a área do loteamento; 2) 206 lotes tipo B, de 300 ha cada, reservados à exploração agrícola em regime empresarial (pequena e média empresas), num total de 62.681,32 ha, correspondendo a aproximadamente 30% da área da gleba. Já os lotes destinados à exploração agroflorestal ou agropecuária de grande porte, com programação declarada como autônoma do projeto, os chamados lotes C, e que variavam entre 300 a 6000 ha, corres-pondiam a aproximadamente 53% de toda a área. Com relação à área restante, ou seja, em torno de 2%, estava destinada à instalação da cidade de Alta Flo-resta, do sistema viário às reservas necessárias.41

Esse quadro torna-se ainda mais significativo se acrescentarmos que, até 1983, de acordo com outras informações obtidas no escritório da INDECO, aproximadamente 90% dos lotes tipo A (100 ha) já estavam ocupados pelas

40 Conforme Projeto de colonização – Alta Floresta. Ver: Guimarães Neto, 2002.41 Ver Projeto Alta Floresta. Guimarães Neto, 2002.

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famílias de colonos. Quando aos lotes tipo B (300 ha.), também discriminados “para colonização”, a ocupação não chegava a 50% 42. Neste caso, a leitura ‘fria’ dos dados, não informava a complexidade que vinha atrelada àquela ocupação, pois a maioria dos ocupantes dos lotes tipo B era, na verdade, em-pregados de proprietários, que ali se encontravam para tomar conta do lote, e desmatar uma pequena área. Observa-se assim que, dentro do projeto de co-lonização, já se operavam práticas de especulação, em que o verdadeiro dono do lote criava estratégias de reserva de terra, para valorização e especulação imobiliária. É preciso observar ainda que nesses lotes podiam ser encontrados um número expressivo de parceiros e arrendatários trabalhando, cada qual, parte da mesma área, mediante acordo prévio entre os principais interessa-dos. Para os colonos desprovidos de recursos econômicos, ficava muito difícil o acesso aos lotes do tipo B da INDECO, pois além do seu preço ser mais elevado requeriam também um maior volume de capital para o investimento produtivo. Eis porque a exploração agrícola nesses lotes era apresentada e dirigida pela INDECO como um empreendimento destinado às pequenas e médias empresas. A não ser nos raros casos em que colonos mais bem guar-necidos economicamente se juntavam e compravam, de comum acordo, um desses lotes destinados à exploração agrícola, o acesso aos módulos de 300 hectares lhes era praticamente impossível.

Entretanto, o que mais importa assinalar é que, o projeto que foi registra-do no INCRA como “de colonização”, destinou, de fato, a sua menor área para os lotes tipo A, os quais recepcionaram a maioria dos pequenos agricul-tores do Sul. Além do mais, como os colonos relatam, boa parte das terras demarcadas como tipo A era “manchada”, ou seja, inapropriada para o cultivo. Sem sombra de dúvida, a “promessa da terra” se constituiu em uma estratégia altamente eficaz para atrair mão de obra e efetuar o deflorestamento, garan-tindo a reutilização produtiva das “novas terras” para outras atividades, como as agropastoris. A colonização, dessa forma, foi um instrumento de poder nas mãos dos grandes proprietários e empresas que atuaram com o negócio de terras, para incorporar valor a terra e formar um grande mercado de trabalho em território da Amazônia Legal. Esse contexto histórico se relaciona intrin-secamente com o movimento do mercado de terras hoje no país e a lógica da

42 Conforme informações obtidas junto ao escritório da Indeco – Alta Floresta, fevereiro de 1981.

expansão da agricultura moderna e empresarial, e encontra ressonância nas análises de Leonilde Medeiros:

A dinâmica da expansão da agropecuária brasileira, cerne do agronegócio, se faz num movi mento complexo que tem, de um lado, as terras em pro-dução com, ao que tudo indica, altos índices de produtividade. De outro, terras que estão sendo adquiridas, quer de produtores em crise que ven-dem sua propriedade para comprar terras mais baratas adiante, quer terras de pecuária, já deflo restadas, ‘limpas’ e prontas para a reconversão produ-tiva. Trata-se de um movimento constante, que envolve tanto o recorrente fracasso de alguns, quanto a prosperidade de outros. Esse movimento tem como um elemento de sua dinâmica a busca de novas áreas para serem incorporadas, mas que não necessariamente são colocadas de imediato em produção. Daí deriva a pressão sobre áreas de florestas, a luta por um afrouxamento nas regras de desmatamento, a crítica à delimitação de re-servas indígenas e a oposição à atualização dos índi ces [de produtividade da agricultura brasileira]. (MEDEIROS, 2010: 3)

A prática efetiva da colonização acabaria por demonstrar que o que mais interessava à empresa era a valorização/disponibilização de suas terras no mercado. Vários colonos revendiam suas áreas, abandonando Alta Floresta, e seguiam para outros projetos de colonização, que se abriam no mesmo estado de Mato Grosso43 ou em outros, como Acre e Rondônia.

No movimento de reconfiguração dos lotes no projeto Alta Floresta, pres-sionados pelas dificuldades em viabilizar produtivamente os seus sítios, os colonos começavam a vender parte dos lotes de 100 hectares. Estes seriam desmembrados, fracionados, embora tal prática aparecesse inicialmente como um “arranjamento” entre eles próprios, diante dos imensos problemas que apresentavam as lavouras, pragas, manutenção da limpeza, financiamentos/endividamentos, etc. Para uma análise das táticas e ‘brechas’, criadas pelos colonos nada melhor que o seu relato, justificando os fracionamentos dos lotes de terras:

43 Como os projetos de colonização de Colniza e Filinto Müller, situados no extremo norte do estado.

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– Pros pequenos não dá, porque os lotes são muito grandes, abrimos mui-ta terra [o desmatamento correspondia a mais de 50% da área do lote de terra]. Como vamos trabalhar isso tudo sem nenhuma condição? Serve mais pra dificultar a gente... Aqui pro pobre não dá!

Ao mesmo tempo, com a crescente valorização das terras da INDECO, a empresa passou a tomar as providências legais para obter junto ao INCRA a aprovação de uma nova área de 18.282,65 ha, a ser destinada à instalação de fazen-das agropecuárias de grande porte. Em face dessa aprovação, a empresa também recebia autorização para operar com lotes menores de até 30 hectares 44.

Na realidade, o que aconteceu foi que a INDECO acabou incorporando uma grande área ao projeto inicial, usufruindo, sem maiores custos, de uma infraestrutura já implantada. Por outro lado, a nova proposta ou a política de fracionamento da terra em lotes menores de 30 hectares, apresentados ao INCRA e aprovados, se constituiu em mais uma estratégia da empresa de colonização, de controlar um novo mercado que os colonos haviam criado, quando eles próprios subdividiam seus lotes de 100 hectares.

Nessas circunstâncias, encontrava-se, em Alta Floresta, já no início da década de 1980, um número muito grande de lotes de 100 e de 300 hecta-res fracionados. Portanto, em poucos anos de funcionamento do “projeto de colonização”, considerando-se que este havia iniciado a abertura da área, em meados da década de setenta, os pequenos agricultores, ali renomeados de colonos, vivenciavam antigas práticas, que acabavam por expropriá-los. Assim, era muito difícil garantir a sobrevivência dos sítios entre grandes pro-priedades, sobretudo entre áreas de pastos, com endividamentos crescentes, entre tantas outras pressões sociais e econômicas, das quais pensavam ter se libertado na Amazônia. E o que mais surpreende é que o fracionamento em parcelas ainda menores chegava a atingir até 12 hectares de terras, aproxi-madamente45. Não raro, como resultado dessa divisão e subdivisão da terra, acontecia de várias famílias se juntarem para comprar o mesmo lote, cabendo a um dos colonos a responsabilidade pela assinatura do contrato.

44 Projeto aprovado pelo INCRA, em 19 de janeiro de l982.45 De 13 lotes pesquisados, aproximadamente 40% já haviam sido fracionados. Ver Guimarães Neto, 2002.

Até os lotes que a própria empresa parcelou em até 30 hectares, vários de-les, foram fracionados em partes ainda menores. Em pouco tempo, portanto, a área destinada à colonização começava a viver os antigos problemas, uma simbiose entre velhas e novas situações, já bastante conhecidas dos pequenos agricultores do Brasil. Parecia inacreditável para eles, que haviam vendido os seus poucos hectares no Sul para “comprar o dobro na Amazônia”, tivessem, agora, que voltar a conviver com a escassez de terras.

A TERRA INACESSÍVEL

Tornava-se cada vez mais notório para os colonos que, em Alta Floresta, o acesso à terra, com garantia da exequibilidade da produção agrícola, exigia esforços de trabalho e recursos financeiros que se encontravam fora de seu alcance, como os financiamentos bancários para a produção agrícola que, a todo o momento, mais os endividavam. A terra tornava-se cada vez mais cara em razão da constante valorização e os custos da produção agrícola, mais elevados. Somavam-se a isto os custos da subsistência familiar, com o preço dos alimentos muito alto.

Após anos de luta, de trabalho árduo, ou seja, depois da derrubada da floresta, depois que as lavouras foram formadas, depois de incontáveis ho-ras de trabalho de sol a sol, é que se desvendava aos olhos dos colonos que, como pequenos proprietários, era muito difícil sobreviver naquela área cha-mada de colonização, e realizar o sonho da terra. Contudo, penoso mesmo era reconhecer ou avaliar a realidade a que estavam sujeitos, pois haviam feito uma transformação radical na vida de suas famílias para conseguir se estabelecer e iniciar uma nova etapa em plena floresta amazônica. Ao mesmo tempo, demonstravam uma enorme resistência física e psicológica diante do novo processo de exploração de seu trabalho e da situação econô-mica de sua propriedade. Haviam investido naquele projeto toda uma vida, e já não havia mais tempo para pensar em recuar. E, diante da ameaça do fracasso, relutantes, diziam: “Limpar a área do café para plantar outra coisa, como se pode fazer isso? E os anos que eu fiquei aí? Já tô velho...”. Com o olhar que pairava silenciosamente pelas plantações – que tinham a floresta como limite – indicavam com incisivos gestos: “Eta liberdade disfarçada! Num temo terra!”.

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Após todos esses anos de experiência, aprendiam também que não bastava ser proprietário de uma “terra mais larga” da Amazônia para se ter um futuro garantido. Sabiam, agora, que naquela área do projeto de colonização o colo-no não deveria ter investido na lavoura do café, nem na do cacau ou outras culturas que lhes foram recomendados pela colonizadora. Por outro lado, as explicações técnicas da EMATER, da CEPLAC, ou da própria INDECO, eram constantemente a de que o colono “não plantara direito”. Surpreende, entretanto, que o próprio colono muitas vezes também apresenta essa justifi-cativa – de não saber plantar direito – para indicar a inviabilidade agrícola das plantações realizadas. Certamente, acabava convencido pela autoridade que demonstravam as instituições técnicas, que desqualificavam seu conhecimen-to, passado de geração a geração, no universo do trabalho rural.

No entanto, o que deve ser alvo de análise crítica e constituir-se em objeto de debate político, não é o conhecimento impróprio do agricultor que veio do Sul, em face da sua própria experiência agrícola, mas a inadequação das culturas agrícolas que a empresa colonizadora – em conivência com o Estado – determinara como ideais para aquela “mancha fértil” da Amazônia. O pro-blema a ser questionado e denunciado é como a empresa atrelou os colonos a um quadro de produção agrícola criado e implantado artificialmente por ela. Este servia para ser apresentado como um planejamento da colonização, estimulando a vendas de terras, entre vários outros investimentos. O modelo agrícola adotado reproduzia o padrão da região Sul e de outras regiões do Brasil e era uma estratégia de mercado.

A sustentação desse quadro produtivo gerenciado pelo grande capital no campo recoloca a questão agrária, marcada pela profunda desigualdade social, na roda-viva do debate político, assinalando o crescimento da exploração e expropriação de trabalhadores rurais e o aumento dos conflitos sociais. Por outro lado, este modelo requer, por sua vez, considerando o ambiente ama-zônico – mas não apenas ele – tecnologias cada vez mais complexas para o controle da produção.

O crédito rural foi, nesse contexto, um dos principais instrumentos de vinculação entre a política do governo e a expansão do capital industrial e fi-nanceiro no campo, e todas as colonizadoras já se organizavam enquanto tais, associadas a esse sistema. As modificações tecnológicas que se processavam

na agricultura introduziam técnicas, em sua maioria inadequadas, nos projetos de colonização, favorecendo, na realidade, os grandes grupos econômicos e elevando o custo da produção para os pequenos agricultores. É preciso des-tacar que, por meio do café e do cacau – culturas estas voltadas para a expor-tação –, Alta Floresta integrava-se mais concretamente ao amplo circuito do sistema de crédito rural, submetendo os colonos a um padrão tecnológico que era resultado de interesses dos grandes negócios que envolvem a produção agrícola, no âmbito da internacionalização do capital. Interesses mais uma vez estranhos à vida e ao conhecimento que os pequenos agricultores, agora colonos, haviam adquirido ao longo do tempo.

A INDECO podia, até mesmo, adotar tecnologias mais sofisticadas para aplicar na empresa agrícola de sua propriedade. A Caiabi Empresa Agroin-dustrial, de onde partia grande parte das propagandas que eram veiculadas no Sul do Brasil, alardeava a alta produtividade agrícola que os lotes, na área do projeto, poderiam ter. Esta empresa instalou a fazenda com objetivo agroin-dustrial, comercial e de exportação. Segundo o Suplemento Apiacás (boletim informativo), produzido pela INDECO:

A Caiabi Empresa Agroindustrial Ltda., pelo seu departamento de expor-tações, tem vendido produtos de Alta Floresta como o guaraná, cacau, cas-tanha, café, para países como os EUA, Austrália, Nova Zelândia, Suécia, Alemanha, Japão, Itália, Dinamarca. De janeiro a outubro deste ano, essas exportações totalizaram um montante de oitocentos mil dólares.

Porém, muito já foi dito, neste texto, acerca da situação dos pequenos colonos que chegaram à área do projeto de colonização e desmataram, ini-cialmente, pelo menos 50% do lote, alguns com motosserra e outros apenas com machado, foice e enxada. Como poderiam realizar a limpeza de grandes trechos desmatados, já que a maior parte só contava com o trabalho familiar? E depois, considerando o desequilíbrio ecológico crescente, como lidariam com as pragas e doenças, como controlá-las? São perguntas que não cabe respondê-las no âmbito deste texto. Mas pode-se registrar a maneira como os colonos falam dessa situação, já alertando para a falta de água e o trabalho

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familiar que não prescindia mais, agora, nem dos braços de crianças de cinco anos nas lavouras:

– Aqui não podemos parar, as caminhadas são muitas, tamos com muita pouca gente e temos de cuidar das lavoura, senão as quiçaça invade tudo e é muito duro manter o cacau em condições e o café limpo!

Outro diz assim: – temo que pôr tudo na lavoura. Esse menino aí, de cinco anos, já é um plantador de cacau.

– No começo a gente trabalhou muito e achamos que devia ser assim mesmo, porque no começo temos de enfrentar todas as dificuldades, mais aí a gente viu que as lavouras estão sempre precisando mais de gente, num dá tempo de nada, num temo mais o que pôr nelas. E o resultado? E o que é pior, a nossa água tá secando, olha esse poço aqui da casa, a gente tinha até medo de molhar tudo por aí, nós até fazia um jeito pra ele não encher tudo por aqui, mas agora já tá difícil de ver a água, tá secando!

Desprovidos de recursos, sem apoio governamental ou mesmo da empre-sa de colonização, com os problemas se avolumando, os colonos dos primei-ros tempos – pelo menos os que se mantiveram em Alta Floresta – relatam um cenário de grande desespero, completamente distinto do discurso do “tra-balho que tudo engrandece” de Ariosto Da Riva. Depois de haver investido tudo o que possuíam na terra, desde o trabalho e o dinheiro que conseguiram – depois da venda dos poucos hectares que possuíam no Sul – e diante da im-possibilidade de saldar os novos empréstimos realizados, pois as lavouras que não produziam sequer o necessário para a reprodução da unidade familiar, os colonos não sabiam mais o que fazer para manter suas propriedades. Cafezais perdidos; pés de cacau cortados e a colheita do guaraná, que não garantia o sustento da família – como resolver esse impasse? Plantar somente arroz, feijão e “algum milhozinho”, para alimentar a família? Como comprar as mer-cadorias básicas à sua sobrevivência em um lugar onde tudo se tornava muito mais caro? Quem abastecia o mercado local eram as empresas do Sudeste e do Sul, atravessando grandes distâncias, utilizando sua frota de caminhões pela BR 163, a Cuiabá-Santarém. Essas mercadorias, muitas vezes, demoravam

semanas para chegar, o que também concorria para encarecer os produtos. Por outro lado, havia ainda os garimpos que se alastravam por todos os lados, inflacionando o comércio.

Diante de tantas adversidades, qual seria o futuro das suas famílias, dos seus filhos e filhas? Já haviam tentado. Somente com o trabalho, com o esfor-ço, pouco ou quase nada conseguiram. A “ideia da lavoura” tinha que mudar, assim afirmavam alguns dos entrevistados.

Sem capital para investir na produção agrícola, na correção do solo, em inseticidas, em técnicas caras – correndo o risco de serem inadequadas –, os colonos não vislumbravam nenhuma possibilidade para continuar com a la-voura perene, que demandava sempre uma maior utilização de mão-de-obra. Para eles, “o melhor era plantar capim“, como diziam. E, depois, havia um sinal no ar – se “os grandes estão plantando”, é porque aquela terra estava mais propícia para a plantação de capim, que visava muito mais a formação de pastos, do que para as lavouras do café, do cacau, e outras. Portanto, uma determinação muito clara passava a se fazer presente entre os colonos mais pobres: “Plantar pasto é a melhor coisa, num dá os mesmos custos da lavoura perene, os mesmo problemas com o arroz. E os grandes tão plantando!”

Assim, começaram a derrubar o café para plantar capim, e faziam ques-tão de informar também: “–Grande parte já tem pelo menos um alqueire plantado de pasto, até mesmo para alugar.” E arrematavam: “A esperança é o pasto!” Mas, por outro lado, compreendiam a complexidade de tal situação, a pecuária é extensiva, e alertavam: “A tendência é fazer pasto e aí muita gente vai ter que ir embora. Plantando pasto vai tudo pra trás!”. Os homens, mulhe-res e crianças haveriam de ceder lugar ao gado.

E, como se quisessem sempre recuperar o sonho perdido, aquele que nun-ca deixaram de acreditar, começavam a reconstruir a “velha e sempre nova história”, matéria viva de uma crônica social do Brasil, afirmavam alguns: “Mais pra cima tem terra, lá vai dar!”

*Alta Floresta começava a se configurar para os colonos sem nenhum poder

econômico como um território dos obstáculos intransponíveis. No entanto,

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quando saíram do Sul para o Norte, no tempo em que observaram e testemu-nharam que “a pobreza toda está se espichando para o norte”, como relatou um agricultor-colono, acreditavam ir à procura do “outro lado do mundo”, ao encontro de uma terra bem-aventurada. Nesta representação mítica de um “outro lado do mundo” projetava-se uma vida de realizações, em que as pessoas pudessem, como em várias histórias contadas por eles, descobrir os sinais reveladores de grandes mudanças, ao alcançarem paragens nunca an-tes vistas. A fé seria o guia mais seguro e fiel, não os abandonando jamais, a indicar-lhe sempre que mais para a frente haveria um lugar que, ao contrário deste mundo conhecido, traria abundância, sossego e felicidade.

Deste modo, para aqueles que o colonizador designara “pequenos colo-nos”, o mito do lugar da abundância ia além dos pressupostos de riqueza material, e passava, indubitavelmente, pela leitura mítica da nova terra como o lugar da salvação. Assim, descobrir esse lugar no fim da estrada – representa-ção recorrente de muitos colonos entrevistados, para indicar o encontro com Alta Floresta –, deveria fazer-lhes merecedores da recompensa, outra vida incomparavelmente melhor.

Mas, neste momento de suas vidas, Alta Floresta se transformara no obs-táculo para se chegar ao “fim da estrada”. A representação do lugar mítico não se desfazia. Apenas imaginavam que não era ali, naquela terra. Hélène Clastres (1978), ao tratar da Terra sem mal - o profetismo tupi-guarani, com beleza e maestria, aponta, talvez, a questão mais importante, a reinvenção da procura constante pelo desconhecido, pelo ‘além’ ou, quiçá, o inverso, transverso do vivido cotidiano:

Daí, sem dúvida, a necessidade do obstáculo que, se impõe um termo brusco à viagem, ao mesmo tempo é o que vem justificá-la e permitir-lhe prosseguir. O mar maléfico que não pode ser atravessado, porque obsta a marcha, garante a existência do “além”, que é o lugar do repouso. Obstá-culo portanto de duplo sentido porque, se impede o acesso à Terra sem Mal, também impede ao mesmo tempo que a fé se perca. A procura não é vã, pode-se continuar andando. (p. 114)

A PRETINHA DO CONGO: UM DESFILE DE TRABALHADORES1

Severino Vicente da Silva2

Email: [email protected]

Olhamos o litoral norte de Pernambuco como algo distante; hoje, os es-tudantes moradores do Recife são gente mais acostumada aos corredores dos shoppings centers, estabelecidos a partir do bairro de Boa Viagem, eàs cons-tantes viagens estimuladas pelo setor de turismo na direção do litoral sul, como Porto de Galinhas – para a alegria dos escravistas cujos netos ainda são proprietários de parte daquelas terras e dos votos de suas gentes. O Porto de Galinhas, local escondido para desova de escravos no século XIX, é hoje cobiçado pela juventude dourada que desconhece que, até os anos setenta do século passado, eram as praias do norte de Pernambuco que atraíam os interesses gerais. No século XIX, quando viajou pelo Brasil, Dom Pedro II fez questão de visitar Goiana e os seus barões. Os tempos mais recentes des-cobriram o litoral sul de Pernambuco ao mesmo tempo em que Ipojuca vem se tornando o porto de partida para a recuperação da economia do Estado. Quanto ao Recife, este foi definitivamente entregue aos mascates, agora não mais totalmente portugueses, turcos ou galegos, mas aqueles, que descendo da Zona da Mata Norte, dominaram os morros externos à Mauritsstad, tão decantada como atualmente despovoada dos seus defensores.

Nos anos sessenta, quando ainda o litoral norte do estado interessava a amplos setores como local de veraneio e ocorria a integração com a constru-ção da rodovia BR 101, a cidade de Goiana foi levada a uma nova atualização histórica,3 sendo obrigada a rever a sua função no quadro desenvolvi-

1 Para o III Encontro Cultura e Memória – UFPE, 2009.2 Professor adjunto da UFPE, membro do Colegiado da Pós-Graduação em História do Departamento de História da UFPE; Sócio do Instituto Histórico de Olinda, sócio fundador da Associação REVIVA. 3 Conceito tomado de Darcy Ribeiro em sua proposta de entendimento do processo civilizacional da América. Ver Teoria do Brasil.

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mentista que vinha sendo construído desde os anos dourados de JK. Além de receber em Pontas de Pedras, sua praia mais famosa, parte da elite endinheirada nos tempos de verão, Goiana, de cidade industrial no início do século XX, foi caracterizando-se como local de passagem e descanso na viagem entre o Recife e João Pessoa. Foi nos anos da déca-da de cinquenta que o Buraco da Gia4 veio a tornar-se tão importante e que algumas curiosidades, além de manifestações então conhecidas como folclore, começaram a chamar atenção, especialmente em tem-pos de carnaval. As paredes do restaurante apresentam um mosaico de fotos que traduzem o local como ponto de pouso e alimentação de artistas e políticos da época. Entre as manifestações culturais de então, se torna famoso o grupo conhecido como Pretinha do Congo, agora objeto de meus estudos, envolvido que estou na tentativa de entender os espaços culturais da antiga Capitania de Itamaracá, região de onde também veio, nos anos sessenta, a Ciranda. Desta manifestação cultural o representante maior parece ser Baracho, antigo mestre de aguardente no Engenho Santa Fé, de Nazaré da Mata, que fez a fama de Lia, a cirandeira de Itamaracá.

Origens da Pretinha do Congo

De onde teria vindo essa Pretinha de Congo? Roberto Benjamin, da Co-missão Pernambucana de Folclore, a coloca como uma rememoração das fes-tas em torno do rei e da rainha do Congo, que eram promovidas pela socie-dade escravocrata, sob a tutela da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos. Como em outras cidades do império colonial português na América, Goiana também organizou a sua Irmandade dos Homens Pretos, ao lado de outras irmandades que congregavam os homens pardos e, como não podia deixar de ser, homens brancos.5 Essa é uma origem possível. Essas irmandades foram locais de encontro das religiosidades cristão-católicas por-tuguesas e as religiosidades africanas.

Dos encontros entre estas Irmandades católicas e os cultos religiosos trazidos da África, todos acorrem a afirmar, teriam surgido os maracatus do

4 Assim é que seu Luiz, proprietário do famoso restaurante o registrou.5 SILVA, Maria de Jesus Santana. Devoção e Resistência: as irmandades dos homens pretos de Goiana (1830-1850). Mestrado em Ciências da Religião. Recife: UNICAP, 2008.

Recife e de Igarassu. Daí alguns apressarem-se a ver a relação causal entre procissões do Rosário dos Pretos e surgimento dos maracatus. Isso, contudo, não ocorreu em Olinda, onde também encontramos a presença da Irmandade do Rosário dos Homens Pretos mas só recentemente é que vêm se formando grupos de maracatus de baque virado.

Esse encontro da religiosidade de origem africana com o catolicismo en-sinado aos homens pretos na sua irmandade também existe na cidade de Floresta, no Sertão do Pajeú, onde, apesar de ainda nos dias de hoje ocorrer a coroação do rei e da rainha do Congo,6 não se tem notícia da formação de maracatus na cidade. Para o fortalecimento da historiografia que mantém a tradição de fazer imediata ligação entre irmandades dos homens pretos, coroação e maracatu, seria interessante que a Pretinha do Congo, do Baldo do Rio de Goiana, viesse a confirmar essa hipótese. Mas a Nação Africana Pretinha do Congo de Goiana não formou um maracatu, nem parece ligada umbilicalmente à coroação do rei e rainha do Congo, embora no seu desfile encontremos a presença desses personagens. O que se sabe da Pretinha do Congo, ocorrência social cultural do litoral pernambucano, é que seu percur-so histórico não ultrapassa o início do século XX.

Podemos continuar a afirmar que a manifestação cultural que assistimos desfi-lar, saindo do Baldo do Rio, é uma decorrência das festas do rei de Congo e disso tirarmos as implicações de acomodações sociais e ou de resistências, conforme o gosto ideológico do estudioso. Assim descansaremos de encontrar outra explica-ção além daquela que liga definitivamente as tradições do povo brasileiro ao pe-ríodo de dominação portuguesa; da mesma forma aceitaremos que a criatividade tenha estancado definitivamente no século XIX, tempo de domínio de relações

6 A coroação do Rei e da Rainha do Congo na cidade de Floresta, Sertão do Pajeú, ocorre nas festividades de final de ano, na festa do padroeiro da cidade, Nosso Senhor dos Aflitos. Na oportunidade ocorre a procissão de São Benedito. A festa tem início na casa do Rei, que vai buscar a Rainha em sua casa, de onde ambos se dirigem, acompanhados por um séquito, para a Igreja de Nossa Senhora do Rosário, onde assistem a uma missa celebrada pelo Bispo diocesano. Rei e Rainha sentam-se em tronos, diante do altar. Após a missa, o casal real é levado para a sua casa, acompanhado por uma banda musical e valetes que dançam com espadas. Em casa é servido um lanche para os convidados, ou seja, todos os que acompanharam o séquito. Fiz uma descrição desse festejo, publicado na Revista eletrônica “Tamborete”, e meu artigo foi tomado como base para definir a Confraria de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos da Igreja de Nosso Senhor dos Aflitos como patrimônio vivo da cultura pernambucana. A importância desse artigo para a concessão do título foi informação que recebi, posteriormente, da professora Isabel Guillen, uma das relatoras do processo.

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de trabalho escravo; podemos continuar afirmando que nossa capacidade criativa vem apenas de africanos escravizados, e continuaremos negando a inteligência cultural aos brasileiros que nasceram após o final do século XIX, quando se rom-peram as correntes da escravidão e se pôs fim à monarquia. Neste texto quero discutir uma outra explicação para a Pretinha do Congo, refletindo a respeito da relação entre o trabalho e o grupo, que manifesta a criatividade de homens e mu-lheres livres, embora apenas 42 anos após a 13 de maio de 1888.

A explicação comum: a coroação do rei do Congo e o Candomblé

Vamos partir do que se tem repetido a respeito dessa criação cultural. Muito do que se diz hoje da Pretinha do Congo está ligado à figura do baba-lorixá Heleno, morto no dia 6 de setembro de 1992. A partir daí, veio crescer a ideia de que a Pretinha do Congo é totalmente “um povo do santo”, cultiva-dor da religiosidade vinda da áfrica. Embora não seja razoável negar a forte presença da tradição africana no atual desfile da Pretinha do Congo, também não se pode negar que o grupo existiu e desfilava muito antes do nascimento de Heleno, ocorrido em 1945. Ou seja, o babalorixá Heleno não é o criador da Pretinha do Congo. Antes do mais famoso babalorixá goianense tomar a responsabilidade pelo desfile, havia uma tradição a que ele deu continuidade e modificou, uma vez que o fenômeno cultural não é estático. A maior parte das explicações e referências que são encontradas na pequena historiografia sobre a agremiação é centrada na figura do Heleno, nascido década e meia após os primeiros desfiles. Devemos ir um pouco mais longe que a vida de Heleno.

1936: esta data está escrita na bandeira da Nação Africana Pretinha do Congo, que tem sua sede no Baldo do Rio. 1930: é a data de fundação escrita na bandeira do Bloco Africano de Carne de Vaca, também em Goiana. Te-mos, olhando as duas bandeiras, que, atualmente, não há apenas uma, mas duas Pretinhas do Congo. Historiadores mais cuidadosos deveriam atentar a essa circunstância e procurar entender, não repetir simplesmente o já dito pelas autoridades do folclore. Chama atenção o fato de que nenhum dos dois grupos, entretanto, busca uma antiguidade maior que essa tornada pública em suas bandeiras; nenhuma liderança busca mostrar-se mais antiga do que a Revolução de 1930.7

7 SILVA, Severino Vicente da. Culturas do açúcar em Pernambuco. In Clio, 26.2, 2008. Clio Revista de

As bandeiras utilizadas pelas duas Pretinhas do Congo de Goiana indicam suas origens para o período da existência e de maior prestígio da Fabrica de Tecido de Goiana, estabelecida naquela cidade na última década do século XIX, nos anos seguintes à abolição da escravatura. É na periferia da cidade de Goiana, com pessoas que trabalhavam na fábrica de tecidos, que surgiu a Pretinha do Congo que deu origem aos dois grupos atuais. Seja quem for seu fundador, ele estava ligado ao mundo do trabalho moderno, industrial, pois vivia no bairro operário de uma indústria. Os símbolos postos na bandeira criada para o seu grupo, que saía no carnaval, lembram o trabalho agrícola e a existência e o fim do sistema escravocrata. Ali está, de um lado, um homem preto com correntes; e de outro, um outro homem preto sem correntes, enxa-da na mão e, entre eles, uma mulher preta, dançando com uma maraca. Estão representados assim o trabalho escravo e o trabalho livre.

Ora, afirmar que a Pretinha do Congo surgiu em um bairro industrial não significa, de imediato, afirmar a inexistência de ligação daquele lugar, e das pes-soas que a formaram, com o passado escravocrata; a escravidão ocorreu em todo o Brasil desde o tempo em que o país era colônia do Império Português, e ainda no período imediatamente anterior à República. Mas devemos estar aten-tos para não reduzirmos a história ao Brasil ao episódio da escravidão, embora essa relação de trabalho tenha sido fundamental na formação da mentalidade dos brasileiros, seja dos escravos ou dos proprietários de escravos e seus res-pectivos descentes. Disso já nos alertava Joaquim Nabuco. Entretanto, homens livres descendentes de escravos foram criadores da Pretinha do Congo, exer-cendo a criatividade em uma sociedade livre, como estava acontecendo com outros grupos sociais, em Pernambuco e em outras regiões do Brasil. Assim nos conta a história do carnaval, das escolas de samba, dos maracatus de baque solto e tantos outros brinquedos de homens e mulheres livres.

Quando se conversa com dona Carminha, que é a líder da Pretinha do Congo sediada na praia de Carne de Vaca, distrito de Goiana, ouve-se sem-pre ela dizer que seu pai, trabalhador na fábrica, recebeu de alguém que ela lembra chamar-se Manuel de Miguel, o brinquedo que ele comandava. E esse fato, na lembrança de dona Carminha, ocorreu no fim do ano de 1935. Não

Pesquisa histórica, Programa de Pós-graduação em História, Departamento de História, UFPE, 2009 [p. 95-110].

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conseguimos ainda determinar quem foi esse Manuel de Miguel que, após entregar o brinquedo, sumiu de Goiana. Quando ocorreu esse episódio, dona Carminha tinha apenas cinco anos de idade, mas ela sabe que, em 1936, seu pai desfilou com a Pretinha e no ano seguinte (1937) ela, dona Carminha, já estava desfilando entre as “escravas”. Na memória dos desfiles de sua infância e juventude, não havia menção à religião, mas ao trabalho e a louvação ao dia 13 de maio. Aliás, a introdução da questão religiosa, mais especificamente do candomblé, foi o motivo da separação divisão do grupo, ocorrida nos anos setenta. Por não aceitar o comando que Heleno começava a imprimir à Preti-nha do Congo, dona Carminha dele separou-se.

A alegria pelo fim da escravidão só sente quem a sentiu

A historiografia recente, especialmente a que vem sendo escrita desde os anos 80, tem posto em esquecimento, ou ao menos em dúvida, a Lei Áurea, assinada pela princesa Isabel, após ser aprovado o projeto do ministro João Alfredo. Con-siderando, um pouco como Joaquim Nabuco, uma decepção que a lei não tenha sido seguida por iniciativas que favorecessem a inclusão social dos novos homens livres na sociedade, quase não se percebe que as primeiras gerações desses ho-mens e mulheres vibraram, cantaram e dançaram porque então já eram livres. Fa-la-se que as festas duraram sete dias. É assim que cantam as Pretinhas do Congo:

13 de maio o galo cantou

Catarina tava sambando

Quando a policia chegou

Samba nego, branco não vem cá

O feitor me batia

Sem dó e sem paixão

Agora acabou-se a escravidão

Acabou-se, acabou-se a escravidão

Feitor me batia sem dó e sem paixão.8

8 Ouvido cantar por Mestre Val em entrevista concedida a este autor.

A alegria do fim da escravidão não deixa esquecer o sofrimento vivido, mas a afirmação é que em “13 de maio o galo cantou”. Não, não foi o Galo de Esculápio que cantou, mas o Galo que anuncia um novo dia, o dia da liber-dade, um dia de dança e sem polícia.

Mas olhemos novamente a bandeira da Pretinha do Congo, liderada hoje por Mestre Val,9 que é Pai Santo, curandeiro, atualmente responsável pela organização e pelo desfile da Pretinha do Congo do Baldo do Rio. A imagem descrita acima é encimada pela frase: Nação Africana Pretinha de Congo. Esta bandeira é uma louvação ao trabalho livre, ao trabalhador e não a um rei; é uma louvação a uma nação de trabalha-dores que antes eram escravos que agora são trabalhadores livres. Aqui, nesta bandeira, não há nenhum simbolismo explícito de alguma forma de religião. O que une e forma essa nação é o trabalho, antes escravo e, agora, livre.

Entendendo as duas Pretinha do Congo

De acordo com as palavras de dona Carminha, a Pretinha do Congo nas-ceu na periferia do bairro industrial de Goiana, na década de 1930. A indústria começou a ser instalada na cidade em 1894, seis anos após a publicação da Lei João Alfredo, assinada pela princesa Isabel e mais conhecida como Lei Áurea. Boa parte dos trabalhadores daquela fábrica, especialmente os de serviços menos qualificados – limpeza, transporte manual das mercadorias –, deve-ria ser realizada por homens e mulheres recentemente livres da escravidão. A fábrica criou uma vila para os operários mais qualificados e para os seus gerentes, buscando seguir as orientações da encíclica Rerum Novarum do papa Leão XIII.10 Havia, inclusive, uma área de recreio para esses operários e funcionários de escritórios. Aos menos qualificados, restava, para morar, o Trás do Carmo11 e a Vila Galante12 e, para diversão, as brincadeiras de ruas, especialmente o carnaval, que então tomava corpo em todo o Brasil, escapan-

9 Mestre Val, Valdemar, é irmão mais velho do Babalorixá Heleno.10 Publicada em 1891.11 Hoje é um bairro da cidade que fica por trás do Convento do Carmo e do Colégio, donde lhe vem os nomes Atrás do Carmo ou Atrás do Colégio. Na região, até os anos quarenta havia ali uma olaria que pertencia aos padres carmelitas.12 Essa vila, que já não mais existe, ficava para além da pista da BR 101.

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do dos clubes e assumindo as ruas.13 Era nesse espaço social em criação, que substituía o entrudo, que desfilavam as Pretinhas do Congo, sempre em frente à Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos.

Se atualmente há duas Pretinhas do Congo, é que cada uma delas tem um universo simbólico diferente, uma postura de vida. A separação desses grupos, que desfilavam juntos até os anos 80, deve-se a questões religiosas e políticas.

A divisão

Após a morte do pai de dona Carminha, Antonio Pirixiu, as Pretinhas do Congo conseguiram se manter com a ajuda de Heleno, babalorixá famoso na-queles anos, que recebeu auxílio de um grupo político. Heleno, segundo dona Carminha, introduziu novidades no desfile, tornando-o mais espetacular e, também, mais voltado para a religião dos Orixás. Aqueles anos, de luta pelas liberdades democráticas, da disseminação dos desfiles das escolas de samba pela televisão – que começava a ter uma rede nacional – foram também o mo-mento do nascedouro das defesas étnicas e culturais, inclusive com a criação do Movimento Negro Unificado, que liderou uma corrente de africanização dos candomblés brasileiros.14 Ou nas palavras de Isabel Guillen:

A atuação dos movimentos negros nas manifestações da cultura afro-descendente prin-cipalmente sua participação no Leão Coroado e Elefante, bem como as estratégias que redundaram no apoio à criação de afoxés no Recife, e no abandono da atuação junto aos maracatus, é central para entendermos esse processo. Ao mesmo tempo é importante destacar que foram nesses anos que os candomblés sofreram um processo de reafrica-nização.15

13 A esse respeito ver a dissertação de mestrado Entre a ponto de pé e o calcanhar: reflexões de como o frevo encena o povo, a nação e a dança no Recife, de Valéria Vicente, defendida na UFBA; ARRAIS, Raimundo Pereira Alencar. Recife: as culturas e confrontos, as camadas urbanas na campanha salvacionista de 1911. Natal: Edufrn, 1998.14 A entrada da religiosidade, especialmente o xangô, na Pretinha do Congo, pode ser resultado de uma estratégia montada a partir dos movimentos negros que realizaram uma “reafricanização” dos candomblés, segundo Isabel Guillen. A esse respeito ver meu trabalho “As Culturas do açúcar em Pernambuco”, publicado na Revista Clio 26.2.15 “Os Maracatus-nação do Recife e a espetacularização da cultura popular (1960-1990)”. Isabel Cristina Martins Guillen; Ivaldo Marciano de França Lima, in LIMA, Ivaldo Marciano de França. Cultura Afro-descendente no Recife: Maracatus, valentes e catimbós. Recife: Edições Bagaço, 2007, p. 49.

Ora, Heleno era um famoso babalorixá e uma alma de artista, além de ser pessoa muito bem relacionada com o mundo social e político goianense, também por suas habilidades culinárias. A morte do pai de dona Carminha ofereceu a oportunidade para que Heleno, que também era morador do Baldo do Rio, viesse a se tornar mentor da Pretinha do Congo. Entretanto, ele resolveu incrementar o desfile com alegorias e explicitar a religiosidade afro-brasileira.

Não concordando com o direcionamento religioso dado por Heleno, pois, diz dona Carminha, seu pai não admitiria a presença do xangô, ela passou a desfilar segundo a tradição que teria recebido dele: uma Pretinha do Congo que prefere cantar o mundo do trabalho livre e não o mundo religioso. Daí veio o surgimento da Pretinha do Congo de Carne de Vaca.

Mestre Val tem consciência disso. Em suas conversas ele sempre realça: só existe uma Pretinha de Congo, mas que são duas porque eu dou mais força na religião enquanto ela é mais ligada à cultura. Essa divisão simples no pensamento de Mes-tre Val é uma realidade mais complexa. Mas é uma admissão de que a filha do segundo organizador da Pretinha do Congo não faz relação do grupo com a religião, pois não aceita que haja relação o brinquedo que herdou do seu pai com a umbanda ou com o candomblé. Essa é uma outra tradição.

Quase concluindo

As pesquisas que estou realizando não deixam dúvidas de que a Pretinha do Congo é filha de uma região periférica de uma sociedade em industriali-zação; que nasceu durante a República, que seus fundadores eram trabalha-dores, homens e mulheres livres, embora vivessem em condições deploráveis. Quando dona Carminha, desgostosa com a introdução de temas religiosos no desfile do Baldo do Rio, se afasta e cria o desfile na praia de Carne de vaca, escolhendo a data de 1930 para a bandeira de seu grupo, está afirmando mais que uma data. Ela escolhe uma tradição. Uma data escolhida, uma cronologia proposta por um grupo expressa mais que a seriação numérica, e nos interes-sa por estar inserida em um processo histórico, no caso ligado ao processo de industrialização de uma região de Pernambuco, exatamente a mesma que pôs a cabo a escravidão dois meses antes de maio de 1888.

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Quando Manuel de Miguel, o fundador, da Pretinha do Congo, entregou seu grupo ao pai de dona Carminha, era o final do ano de 1935. Ele parece ter sido um operário que foi também um animador cultural da comunidade; então resolveu sumir de Goiana, mas quis que se mantivesse o grupo cultural reunido em torno de uma bandeira que lembrava aos brincantes serem eles trabalhadores livres, embora no passado seus avós houvessem sido escravos. O fundador da Pretinha do Congo parece que tinha a religião da liberdade e teve que sumir da cidade nos meses seguintes à chamada Intentona Co-munista. A Fábrica de Goiana pretendia praticar os ensinamentos da Rerum Novarum, e a atuação religiosa católica deveria ser grande para não perder os fiéis operários, muitos deles anteriormente trabalhadores na cana, ou sitieiros nos engenhos.16 Importante lembrar que o padre José Távora organizou, anos depois, um Congresso Operário em Goiana, ganhando a atenção do Cardeal Sebastião Leme, que o convocou para o Rio de Janeiro. Mais tarde, esse padre veio a ser conhecido como o bispo dos operários.17

É no mundo do trabalho livre que encontramos os brincantes da Pretinha do Congo entre trabalhadores, talvez os mais simples, os menos afeitos ao tra-balho burocrático, ainda que o Mestre Val diga que seu pai tenha trabalhado no setor de contabilidade da fábrica. O pai do Mestre Val morreu ainda jo-vem, no ano de 1945, com idade de 34 anos. Val, que passou a sua vida como pescador na maré da foz do Rio Goiana, é morador do Baldo do Rio, jamais tendo trabalhado na fábrica de tecidos de Goiana. A Companhia Industrial Fiação e Tecidos de Goiana S/A fechou em 1957, reabriu em 1963, como Fiação e Tecidos de Goiana S/A e encerra suas atividades definitivamente em 1997, como ocorreu com muitas fábricas de tecidos existentes em Pernambu-co, na época do aproveitamento do algodão, definitivamente substituído pela lavoura canavieira com o Proálcool. Foi o fechamento dessa fábrica que levou à pobreza a Pretinha do Congo do Baldo do Rio, após o período de encanta-mento sob a liderança do babalorixá Heleno.

16 A esse respeito ver PALÁCIOS, Guilherme. Campesinato e escravidão no Brasil: agricultores livres e pobres na Capitania Geral de Pernambuco (1700-1817). Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2004.17 NASCIMENTO, Isaias. Dom Távora, o bispo dos operários: um homem além do seu tempo. São Paulo: Edições Paulinas, 2009.

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O PARAÍSO NÃO ME PERTENCE.

Prof. Dr. Antonio Paulo Rezende.

“Alguns homens nascem póstumos”

Nietzsche

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Alguém bate na porta, acanhadamente. Um ruído sutil, quase imperceptí-vel. As portas são objetos históricos presentes em quase todas narrativas, des-de os tempos dos paraísos perdidos ou mesmo das lendas religiosas de gran-de valor simbólico. Suas formas são variadas, distintas, representam marcas de poderes ou astúcias de esconderijos. De uma materialidade, muitas vezes, majestosa, mas também articulada com os interiores da subjetividade. Seus significados simbólicos são múltiplos. Podemos nomeá-las como fronteiras, às vezes inúteis, porém fazem parte das paisagens que vivemos ou ocultamos. Abrir a porta é como abrir uma história. É o anúncio de um futuro. Quem chega, quem trará as novidades, o abrir a porta pode ser um deslumbramento, por isso a abrimos com cuidado. Movimento-me, deixando todas essas cogi-tações vagando. Abro a porta e espero a história que me aguarda. É cedo, me acordei sem direção e meio suspeito com o dia. Tenho me arranhado muito com as insignificâncias. Sempre estou, portanto, na espreita de algo que me arranque de certas lembranças ou expectativas que mascaram tédios labirínti-cos. Contemplo a pessoa que me olha espantada. Não nos conhecíamos. Ela estava em busca da moradia de uma amiga que eu também desconhecia. Nos edifícios nós pouco nos encontramos. Nem sempre sabemos o que parecia óbvio para o outro.

A situação fica plena de perplexidade. A alternativa é convocar o portei-ro, fornecer-lhe alguns detalhes que ele decifrará os mistérios. Os famosos porteiros de prédios são narradores especiais. Deveriam ter suas histórias publicadas. Suas memórias desafiam qualquer tratado de Ricoeur e suas es-

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peculações sobre os moradores são dignas de um Gabriel García Márquez. Portanto, nada como seguir as sabedorias de quem vive o cotidiano, na sua fenomenologia mais simples. Além de tudo, minha visita não tinha certezas de quem, efetivamente, procurava. Segredava. Falou-me de uma Camila e me lembrei do livro Pergunte ao Pó, de Fante. Despertou-me a curiosidade, con-tudo nada sabia e resolvemos juntos interrogar o porteiro, dispostos a escutar suas histórias. Nada mais certo. Camila morava no quinto andar, fazia já um bom tempo e segundo o depoente era solteira e comunicativa. Tudo resol-vido? O dia seguiria mesmo que nada fosse resolvido. É o tempo correndo, cercando a vida. E tem mais. Camila não se encontrava no seu apartamento, o que deixou o visitante decepcionado e não causou espanto ao porteiro. A história assumia outros rumos.

Segundo ele, Camila era uma navegadora, gostava de conhecer portos e não se fixava. Fazia do apartamento mais um porto, no qual chegava nas horas inesperadas e pouco ligava para os comentários gerais. Era alegre e parecia uma professora primária. Seu “bom dia”, quando passava pelos outros moradores, era sonoro, de quem acreditava que bastava a palavra para fabricar o encanto. Foi o que sintetizei da longa explicação do narrador e é minha maneira de in-terpretar os devaneios da figura em foco. Muita metáfora para avivar o texto e engraçar-me com o jeito de Camila. Uma hermenêutica de quem passou a noite lendo alguns aforismos de Nietzsche sobre a verdade e o poder de transformá--la. Mais ainda, de alguém que se achava despossuído de verdades, precisando de inventá-las para divertir-se e não para sistematizar uma ética.

A fala do porteiro atiçava minha curiosidade. Camila era minha vizinha e eu nem havia me dado conta, num descuido de percepção imperdoável. Acedi meu arquivo cinematográfico e muitas imagens desfilaram. Viajei por Antonioni, Scola, Tarantino, Chaplin, numa mistura surpreendente. Queria fotografar Camila e nada como os sonhos trazidos pelas telas. O visitante mal se despediu, nem mesmo um sorriso de agradecimento. Era um desencontro matinal, uma fantasia quebrada, com testemunhas anônimas. O silêncio to-mava conta de todos os cantos do ambiente. Um domingo cinzento, daquele que pede recolhimento e paciência para pacificar as desilusões. E o que fazer? Voltaria aos meus deslocamentos limitados, sem pretensão de criar nada de especial para desenganar a melancolia que se anunciava. Restava pensar, dei-

xar o instante fluir, assuntando sobre o que aparecesse na mente. Assim criava uma ludicidade que silenciava a solidão e me entregava ao pensamento, sem resistência. Táticas ou estratégias? Certeau saberia responder sem vacilação.

O que mais tem me assustado são as reviravoltas do tempo. Fico sempre desencontrado entre as lembranças do passado e o que fazer para significar o futuro, além do fantasma aventureiro de que nos assombra proclamando que há um destino. Os deuses do Olimpo e Agostinho fazem conjecturas sobre o tempo de forma, às vezes, assustadoras. Sobre a trajetória do passado, con-sigo fabricar minhas miçangas. Percebo que pulei muros, apostei numa sorte mágica e me dei bem em tanta coisa que não tenho o que reclamar. O que me intriga é o que está mais perto, um passado que é quase presente, cheio de ar-madilhas nas suas veredas. Contemplo o acaso dos enredos da vida, das coisas que nos fogem do controle, mas não me esqueço dos momentos cartesianos, onde a clareza se faz presente, sem inquietações. Há coincidências, na vida, que alimentam as histórias e que as transformam em algo objetivo. Ficam fora de nós com existência própria. Há desmantelos, porém, que desmancham qualquer sentido, qualquer metafísica pós-moderna.

Se Camila, por exemplo, surgisse no momento em que conversávamos com porteiro, como ficaria a situação? Ou se ela ousasse me procurar por su-gestão do porteiro? Meu dia seria herança do inesperado, pois o que poderia acontecer sobre o nosso encontro foge do controle. Lembro-me das pesqui-sas históricas, como o historiador se segura nas fontes e teme o inesperado. Quantos não insistem que a história não tem nada que se ligar com o presen-te, pois ela é uma representação do passado, ou mais, ela é uma ciência que precisa de provas para assegurar seu espaço nas hierarquias do saber? Portan-to, não é fácil enquadrar as palavras e fixá-las com significados, para garantir a verdade do relato. Se a verdade é curva, então resta duvidar da teimosia da ordem dos que naturalizam qualquer acontecimento.

Mas não vivemos sem arquitetar nossas narrativas. Elas também se consti-tuem em projetos. Antes da vida se mostrar, construímos especulações sobre as trilhas que iremos seguir. Nossas narrativas proféticas são importantes, pas-samos a existir a partir delas, mesmo que estejam compostas de gestos e não de palavras. O mundo da narrativa é o mundo dos significados. Penso nas elucu-brações de Freud para chegar à invenção da psicanálise. Como foi dando signi-

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ficado aos seus sonhos e armando uma teia complexa para compreender seus próprios desejos. A aventura de Freud é exemplar, como também suas astúcias para decifrar o inconsciente, sem deixar de afirmar nossa constante e incômoda incompletude. Criam-se hermenêuticas, alfabetos velozes, para que as pontes entre as pessoas sejam fortalecidas e a sociabilidade sempre reanimada.

Assim, desenhamos experiências, fazemos conexões temporais, vagamos por frustrações e olhamos as paisagens como se fossem espelhos dos nossos olhos. Enfim, sobrevivemos, mesmo que Camila seja, apenas, uma ficção que John Fante inventou para amar, na escuridão mais íntima da sua interioridade. É um desafio precisar cada coisa e seus cantos. O cosmos é um esconderijo amplo, mas meu pequeno mundo também não se mostra com a transparência de um traço simples. Voltando à psicanálise, quantos traços invisíveis compõem as fantasias que elaboramos? E os exílios, as fugas, o faz de conta, tudo en-volto em turbulências que aquietamos com lágrimas ou um Lexotan guardado no fundo de alguma gaveta. Quantas teorias e quantos intelectuais, divagando numa aceleração sem tamanho? Não é à toa que Terry Eagleton escreveu um livro intitulado Depois da Teoria e Baudrillard outro, chamado A Troca Impossível.

Se os significados acompanham os bordados da cultura, os intelectuais são nomeados para segui-los e interpretá-los. Lá estão eles: Peter Gay, perseguin-do as educações do sentido com a ajuda de Freud; Nietzsche, mergulhado em tantas ousadias que até hoje não conseguimos entender; Drummond com poemas, dialogando com sentimentos inusitados; Picasso riscando figuras, saudando cores, esvaziando tradições. Então, não seria exagero afirmar que os intelectuais se balançam em trapézios, muitas vezes, com medo da distân-cia que os separa do chão. Há formas variadas de circo. Há circos sem lonas, que o céu cobre como um manto e sua platéia se distrai com qualquer queda do palhaço ou rugido de leão quase morto. A nomeação dos intelectuais é polêmica. Muitos se sentem indignados, preferem se ausentar, o ar da aca-demia lhes provoca náuseas. Outros se enternecem com as suas chamadas especializações, se vestem com uma objetividade tecida por regras. Seculari-zam sua santidade, pois arrastam suas verdades como se fossem a revelação da unidade divina. O porteiro do prédio, a possível dama do quinto andar, a visita inesperada, são descasos e nem assuntos dignos de uma academia. Afinal, não temos concepções de mundo que nos alimentam, mesmo que elas

não tenham pertencimentos com os princípios da ciência? Para que serviria pensar nos anjos ou se distrair com as aventuras de um anônimo que ouvimos na padaria da esquina?

A questão é a contabilidade e não o significado. O número na sua di-mensão mais restrita, os lugares do poder. A sociedade se hierarquiza, no sentido da acumulação, embora existam muitos intelectuais que não gostem de acumular. Afinal de contas, os laços entre saber e poder, na contempora-neidade, se estreitam e justificam as medidas dos projetos. O pragmatismo não guarda lugar para utopia. O esforço do intelectual ganha a geometria do espaço do poder, quando seus pares se congratulam com suas descobertas e atribuem significados que estão distantes de uma tarde de domingo ou do prazer de abrir uma caixa de Mentos para expulsar aquele gosto enjoado de uma refeição apressada. Tudo atravessado por polêmicas, por detalhes, mas sedimentado por consensos indispensáveis para afirmar a intelectualidade. Se nos camarins o juízo é outro, morda a maçã e não esqueça do pecado original e da serpente de metamorfoses traiçoeiras. O paraíso nunca teve portas, por isso que Adão construiu a história, com Eva significando cada ação, sacudin-do os sentimentos para não submergir na culpabilidade eterna.

A cultura possui a vestimenta da transgressão, embora não se desligue das ordens. Institui, mas depois corre o risco de não querer se desfazer de instituições disciplinadoras. O labirinto da cultura está repleto de controles e os intelectuais não se cansam de remontá-los. O jogo é permanente, a linha é remendada, as precariedades assumidas ou disfarçadas. Os intelectuais nem sempre são os mesmos, pois os saberes se multiplicam. Por isso, há uma cor-rida para a ascensão funcional. A cultura é uma resposta, o ponto final, uma figura gramatical, portanto os significados se modificam, pois as leituras do mundo não cessam, mesmo que as ordens totalitárias busquem expurgá-las. Já se foi o tempo de se guardar escatologias como certezas invioláveis. Os intelectuais se parecem com os antigos sacerdotes do Egito, não se escondem do faraó e o faraó necessita de seus favores ou dos seus discursos. Mas como a diversidade está compondo cada peça do quebra-cabeça, não estruturemos subordinações definitivas. Entre Heráclito e Parmênides existem desejos de compreender o ser que, ainda, sobrevive, mesmo depois de tantos séculos e tantos cenários incendiados.

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O território da história não se aliena das relações sociais. O historiador narra acontecimentos, mas também valoriza o passado com olhos nos es-pelhos do presente. No entanto, todos contam sua história e zelam pela sua continuidade. Benjamin lamentou a morte do narrador ou a chegada de outra forma de narrativa? Não poderia conhecer Guimarães Rosa, nem Mia Couto, nem tampouco assistir a um filme de Angelopoulos ou Fellini. O importante é que a escuta não signifique o encerramento do que está sendo contado. Isso assegura que as histórias atravessem o tempo, independente da vontade dos intelectuais escolhidos para selecionar as que são verdadei-ras. Em cada canto do mundo, há alguém falando, buscando sentido, não importando se sua trajetória reverencia os saberes acadêmicos. Cultura e história estão enredadas, enquanto o Eu e o Outro não elegermos a solidão como finalização dos sentimentos maiores da vida. Se há sempre o que di-zer, a surpresa não está sepultada, o significado se restaura, mesmo diante da massificação que nos cerca.

Traço os rascunhos do dia que mal aparecia e a falta de ação me entrega a uma preguiça pouco comum. Mas há muito que pensar. Essa incompletude permanente nos puxa para viagens sem tamanhos definidos. É um exercício intelectual. Alonga as possibilidades das fantasias, se interliga nos projetos que, na prática, se desmanchariam no ar. Novamente, a figura de Freud me vem, inquieto com seus sonhos e com a beleza da sua mãe. Mal sabia que seu incômodo não morreria como uma onda lenta. Tocou fogo em muitos preconceitos, confessando seus encantos com a ciência e sua tristeza diante da capacidade humana de produzir violência. Depois de tantas invenções, as guerras não cessavam, nem as barbáries fugiam do mundo. As pulsões de morte sobreviviam, os prazeres eram atraentes, sem, contudo, conseguirem a soberania. Muitas ambiguidades e pouco tempo para conhecê-las. Freud ainda conviveu com as ousadias perversas de Hitler e confessou que havia um mal-estar na cultura constante. Mesmo que Marcuse, mais tarde, tentasse reanimar as utopias, socorrendo-se de algumas teses marxistas, o mundo ti-nha medo de sorrir e se deitar acalentando as mais sedutoras esperanças. As soluções não conseguem permanecer, brincam de orbitar em tapetes mágicos, sem esperar a madrugada. Freud, que tinha um dia a dia sistemático, lançou fios imaginários de um social turbulento. Castoriadis que o diga.

Interessante como os personagens intelectuais nos visitam. Ficamos mes-mo entre a história e a cultura, porque tudo isso nos pertence na solidão ou na solidariedade. No meu relato, distração para atravessar as curvas do coti-diano, há divagação até mesmo nas regras gramaticais. Apresento-me como espectador, porém, de repente, me envolvo com quem pode estar me lendo. Há uma gratuidade que me provoca, porque a sociabilidade do consumo tem uma dinâmica veloz. Posso construir escolhas, nomear sensações, desconhe-cer a proximidade e apostar na distância. Ora sou eu falando do que experi-mento, ora me junto a um conjunto abstrato de pessoas, para sentir que sou parte de uma humanidade, para muitos, inexistente. Vivencio-me em tempos diversos, como nos encantamentos de Macondo ou os acasos dos livros de Paul Auster, sem me esquecer dos delírios que trouxeram a leitura de Istambul de Pamuk. As semelhanças não impedem as diferenças, às vezes, conjugam--se nos mesmos lugares, o que se transfere é a vontade de fabricá-las para se apossar do espaço e sentir fôlego para não sucumbir. O mundo se transfor-mou num grande arsenal de mercadorias, como afirmou Marx no século XIX. O capitalismo caminha, malgrado as crises. Estamos em plena pré-história, os amantes da utopia seguram seus desejos, suspeitando que os abalos vividos não fundam a comunhão dos corpos.

Tanta aventura, no espaço estreito do apartamento. O dia poderia ser outro. Sempre as possibilidades, feitas para que a vida busque sentido e as recordações se reatualizem. O movimento independe da minha força física, é agitação da fantasia, das páginas dos livros que abro, para conversar com outros que termi-nam por me conhecer. Todos nos tocamos, mas temos medo de falar de magia, porque as fugas não alicerçam qualquer permanência definitiva, desde que o amor perfeito nunca brote para se fixar no jardim que tenha só beija-flores, com lençóis de arco-íris e uma beleza preguiçosa e esguia complete o ciclo do eterno retorno. Tenho o sentimento que algo se perdeu, em algum momento da histó-ria, e não visualizamos as imagens para descrever essa perda. Sigo Octavio Paz nas suas tergiversações feitas n‘O Labirinto da Solidão. É aí que a narrativa falha. O mito do paraíso reaparece, com uma sedução incomensurável, para evitar as lacunas. Há um passado que não foi dito e que se esconde.

Na contemporaneidade, os intelectuais talvez persigam essa magia, acre-ditando estar próximos de uma verdade pós-humana, mas sem registros de transcendências divinas. A cultura nos provoca uma ilusão de que podemos

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tudo, não se confunde com os destroços, o que na solidão de cada um não pode ser substituído. Hannah Arendt nos alerta para essas questões no seu livro de ensaios Entre o Passado e o Futuro. O poder das criações culturais com certeza nos confunde e, às vezes, nos intimida, daí a solidão que nos acompa-nha, desde os primórdios, ganhar um outro conteúdo. Busquemos nos obje-tos alívio para nossas dores, entrando numa rede afetiva diferente e provoca-tiva. Celulares, televisões, computadores, convivem mais conosco do que as pessoas. Alguns chegam a nomeá-los, com carinho, e ficam perturbados caso adoeçam, com ataque de vírus, numa pandemia que apavora.

Por isso, estou aqui descrevendo tantas preocupações, alternando solu-ções, arguindo autores, caindo na memória sem censura visível. A solidão está aqui, por descuido ou poesia especulo sobre as navegações de Camila, me alimento de inúmeros desandares, cercado por invenções sofisticadas que me ligam ao mundo ou me escondem dele. Minha história, minha cultura, meu lugar e lá fora muita agitação sendo oferecida, para comprar, presentear, admirar e jogar fora. Essas histórias de dentro que costuro fazem parte do mundo intelectual. Ele reforça meu poder de viajar em naves particulares e subjetivas. Tenho opção até de disfarçar a solidão e transformá-la numa es-colha, para desfrutar um dia de domingo, cheio de ruídos que atravessam as ruas, de gentes comendo nos shoppings centers, adormecidos nas suas diversões, contando o que fizeram, sem desconfiarem de como sociedade da liberdade é administrada nos mínimos detalhes. Os frankfurtianos já fizeram essas de-núncias e os escritos de Kafka são narrativas amargas, mas quem não viveu uma metamorfose ou se perdeu num processo sem fim?

A dúvida não habita qualquer corpo, nem tampouco a suspeição consolida qualquer ato. A capacidade humana de inventar traz a diversidade e a incerte-za. É a convivência social que nos faz ver que não somos únicos. Relativizar o fim possível de cada travessia adianta as horas e desadormece a contagem dos dias. É impossível narrar tudo. Os entre-lugares são tantos e os olhares variam diante de cores e alfabetos que são fabricados cotidianamente. Como dizem, tudo passa por ressignificações e não custa compreender que o retor-no absoluto permitiria viver a vida como uma obra de arte. Os valores podres não permitem descanso, mas atenção para que o direito de sonhar ganhe um amplo território para animar cada canto.

A complexidade ganha com o crescimento da tecnociência. Fala-se no pós-orgânico, numa pós-história, na instalação de uma tradição fáustica, num desafio, antes, considerado incomensurável. Com as invenções e descober-tas no campo da genética, a invasão da informática em todas as áreas no conhecimento, cogita-se outra dimensão para o humano. Desculpem, para, o pós-humano. Muita exaltação da cibercultura e o fim de outra tradição, a prometeica. Um assunto de controvérsias acirradas que desmantela os re-ligiosos, alterando verdades consagradas e planejando futuros inesperados. Outras sintonias que fariam desse domingo algo impensável e transforma-riam o intelectual ao formular questões éticas profundas com relação à vida. A sociedade do controle avança suas estratégias e o que será do sentimento diante de tantas programações genéticas? O corpo passando por metamor-foses gigantes e nós transtornados com tantos desafios. Os intelectuais estão sendo formatados com todas essas mudanças, embora as garantias de seus êxitos mereçam meditações.

O dia passa, e eu vou fluindo, pois nada resta a fazer. Cercado de livros, sem fogo para ir para mundo, vou especulando, sem olhar para o relógio ao lado. Isso é do cotidiano. Tingido de significados, seus instantes aprisionam involuntariamente, como um papel perdido no lixo orgânico. A cultura é uma invenção de todas as gentes, mas sobra muito de específico para o intelectual, até mesmo uma arrogância que disfarça outras frustrações. São abstrações, devaneios, desejos que cada um pinta com as tintas que lhe pertencem. Du-rante muito tempo se insistiu que os intelectuais são os organizadores da cul-tura e não se cogitava revoluções sem as elaborações teóricas sobre o modo de produção de cada nação. Caíram por terra sonhos e sentidos. Parece que há perda de religiosidade frequente que atinge a política. Talvez, sejam outras leituras dos rabiscos da história, sem apocalipses, com o momento presente sendo o paradigma mais atuante. Saber e poder possuem intimidades, mas mudam de lugares. Foucault que o diga.

Por aqui, porém, o domingo já não é dia, é noite, segundo os manda-mentos da cultura e a claridade de uma sedutora lua cheia. O movimento no apartamento ao lado anuncia a provável chegada de Camila. Uma bela ficção de Fante para balançar os corações e as tristezas de quem se perde no afeto. Minha curiosidade se desmanchou. Foram tantas distrações que a manhã ficou distante. Histórias de dentro, pontes com filosofias, vontade de

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ver o tempo passando desfilando ideias e lembranças, tudo como um manto mágico que assegura a sobrevivência, mesmo que o movimento do corpo seja silencioso e quase imóvel. Agora, é sentir o cheiro do café e assistir aos jogos emocionantes da televisão. Os intelectuais também comem pipoca e acreditam em propagandas, enquanto a pós-história não toma conta de todos os territórios e intimida minha subjetividade sonolenta, do tamanho de um travesseiro. Afinal, somos tecidos pelos artesãos da culpa e do paraíso, pela utopia, pelo desamor, pelo pão que ainda se ausenta de tantas mesas, pela per-da da autonomia, pelo medo de que as lágrimas terminem sendo apenas um registro da dor. De todos os cantos, os ruídos orquestram inquietações. Na esquina de qualquer rua pode haver alguém vendendo uma verdade. Pergunte o preço e siga em frente.

Muitas profecias alimentaram expectativas sobre uma sociedade onde o la-zer seria soberano e o trabalho seria passageiro, sem a carga dos horários e das chefias. Vivemos, no entanto, discutindo soluções para crises econômicas, enfeitiçados pelas manobras das bolsas de valores, pelo cinismo das empre-sas e dos políticos. É difícil se apropriar do futuro. A história não dispensa as surpresas, não adianta ficar preso a verdades intermináveis. Conviver com as incertezas parece a trilha mais visível para nossas andanças pelo mundo. Os intelectuais decodificam, interpretam, advinham, buscam lugar no espetáculo de uma sociedade de tantos atores. Perdem-se quando se anunciam objetivos e indiferentes à sensibilidade e à beleza. Contam a vida com os dedos da mão, mi-nimizados pela ânsia de conhecimento amplo que esgote o controvertido real.

Um dia, talvez, a inutilidade dos alfabetos exclusivos seja consolidada. A leitura seja com olhos de atenção e cuidado com o toque que não assuste o querer dos outros, porém institua a autonomia de comungar ideias e delas se desfazer, sem angústia das armas e dos segredos das minorias. Para isso fo-mos feitos, para viver os domingos, na mais vasta vagabundagem, pensando no cogito das teorias acadêmicas, no perfume das nossas divas e nos números mágicos das loterias. Encante-se com sutileza travessa da Imaculada Con-cepção de Breton e Éluard e siga seus conselhos: observe a luz dentro dos espelhos dos cegos e escreva o imperecível na areia. Grato e bom domingo.

Prof. Dr. Antonio Paulo de M. Rezende.

LINHAGENS LITERÁRIAS NA REPRESENTAÇÃO NEGATIVA DO CAMPESINATO

Christine Rufino Dabat1

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“A história cultural, tal como entendemos, tem por principal objecto identificar o modo como em diferentes lugares e momentos uma determinada realidade social é construída, pensada, dada a ler.”2

O peso da literatura na formação de modelos culturais de percepção e na constituição de parâmetros sociais ocupa muitos estudiosos, tanto na análise literária quanto na histórica. Estas ideias constituem, no Brasil, linhagens mui-tas vezes transatlânticas, na medida em que o referencial privilegiado pela clas-se dominante situa-se no ocidente do Velho Mundo. Ou seja, as metrópoles coloniais prolongaram, na América Latina, uma época finda na sua dimensão propriamente política que permaneceu como influência para traços culturais perenes.

Neste contexto, os canavieiros do Nordeste brasileiro, frutos da globaliza-ção europeia quinhentista, sofrem não apenas as manifestações mais duras de sua exploração na atividade sacaricultora, como formas mais sutis de discri-minação e opressão – embora articuladas e se reforçando mutuamente – no campo das representações. Obviamente, a proximidade da escravidão pesa de maneira ainda insuficientemente avaliada. Mas talvez a herança desta ‘institui-ção peculiar’, segundo a expressão de Stampp,3 tenha sido apoiada por outra

1 Departamento de História da UFPE. Este texto é dedicado a meu avô paterno, Henri Dabat, camponês, quase sem terra, embora, por mero acaso da história (duas guerras mundiais) fosse forçado a esperar a aposentadoria para realizar seu sonho de dedicar-se à agricultura, da uva, no caso. Grata a Espedito Rufino de Araújo pela revisão do texto.2 CHARTIER, Roger. A História Cultural, entre práticas e representações. Rio de Janeiro: s. d., p. 16-17.3 STAMPP, Kenneth M. The Peculiar Institution. New York: Vintage Books, 1956. Tradução minha, como

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tradição de subalternidade mais ampla e seminal no ideário ocidental: aquela dos homens e das mulheres do campo.

O professor Mintz estuda o assunto a respeito dos canavieiros de Porto Rico e mostra a evolução das percepções a respeito do trabalho braçal.

Acho que os trabalhadores qualificados são admirados agora principal-mente no esporte e atividades de lazer; e o trabalho bruto como cavar canaletas, carregar coche de pedreiro não é, de modo algum, admirado. Esta mudança envolve também mudanças de percepção e atitude, mas não posso tratá-las agora, apenas especular a respeito. Desconfio que há um endurecimento da conexão percebida entre tarefas específicas e a identi-dade social daqueles que as efetuam, por parte daqueles para os quais elas são realizadas.4

A relação com os arquivos que pesquisamos5 está num detalhe aparen-temente tipográfico. Trabalhamos6 centenas de processos oriundos de Juntas de Conciliação e Julgamento de Escada, Palmares e Jaboatão que abrangem geograficamente um elenco maior de municípios, na medida em que, no período estudado (os anos de 1963 a 1966), ainda havia poucas de tais instâncias na zona canavieira de Pernambuco.

Em grande número de processos, encontra-se um documento impresso relativo à homologação da rescisão de contrato. Na época, ainda sem as facili-dades de computadores e impressoras pessoais, o fato de imprimir um docu-mento significava várias operações que eram muito especializadas e requeriam maquinário e competências dificilmente acessíveis ao comum dos mortais.7 A autoridade judiciária, autora desses impressos, tinha meios para tanto. Supõe--se então que ela quisesse o formulário em grande quantidade e que o conte-

para os demais textos em línguas estrangeiras.4 MINTZ, Sidney. “Caribe: História e Trabalho”. In: MINTZ, Sidney. O poder amargo do açúcar. Produtores escravizados, consumidores proletarizados. Org. e trad. Christine Rufino Dabat. Recife: Editora Universitária da UFPE, 2003, 2ª edição revista e ampliada em preparação.5 A Professora Maria do Socorro de Abreu e Lima e eu, nossos alunos, assim como outros colegas do Departamento.6 Destaca-se a contribuição dos alunos Michel Cavassano Galvão e José Marcelo Marques Ferreira Filho.7 Daí, por exemplo, a importância do cartão de visita como elemento distintivo, em termos de classe.

údo permaneceria constante por tempo considerável, isto é, necessário para esgotar os milhares de exemplares. Por sua vez, isto indicava que não havia dúvida quanto ao conteúdo, ao valor inquestionável da redação do texto.

Além de outros aspectos interessantes – floreios retóricos como: “assina-do do próprio punho” quando a maioria dos trabalhadores rurais, privados de estudo formal, só podiam usar da impressão digital – um detalhe aparece in-trigante: a inexistência de espaço previsto no formulário para o nome dos re-clamantes – estes trabalhadores majoritariamente rurais da zona canavieira. À primeira vista, parece haver um centímetro de largura, enquanto que o nome do reclamado – o empregador em quase todos os casos – pode ocupar uma li-nha inteira e mais. Uma desigualdade métrica, em suma. Mas uma observação mais cuidadosa mostra que o centímetro é destinado apenas a especificar o gênero do/a reclamante! “Compareceram a Requerente, [espaço de uma linha e meia] e Requerid( )..., portador... da Carteira Profissional número... série....”. O trabalhador é nomeado na capa do processo, e não do próprio instrumento de homolo-gação de rescisão de contrato, na medida em que – literalmente – não haveria espaço para colocar nome de batismo e patrônimo do reclamante. Não que estes fossem longos, em geral. Sabe-se que no âmbito cultural nordestino, o tamanho do nome (quantidade de componentes) e as implicações de certos patrônimos ou sua grafia mesma (i ou e no fim, num exemplo famoso) são consideráveis: eles situam seus detentores na escala social.

Raras vezes (sobretudo para ferroviários ou outros empregados não ru-rais), datilografou-se o nome, espremendo-o entre as linhas impressas. Ape-nas o número da carteira de trabalho estava previsto no formulário, alterna-tiva ligeiramente injuriosa – pensando-se em outras instâncias históricas em que algarismos foram usados para designar pessoas – em vez do nome do cidadão brasileiro, livre e criador de riqueza, empregado na maior atividade econômica da região, e reconhecido pelo Estado na medida em que podia re-correr à Justiça. Ademais, no período estudado, os anos 1960, grande número de assalariados agrícolas permanentes não dispunha de carteira de trabalho assinada pelo empregador. A proclamação do Estatuto do Trabalhador Rural, em março de 1963, com aplicação a partir de julho do mesmo ano, era muito recente e o golpe de 1964 veio ainda limitar as possibilidades de pressão dos trabalhadores através de suas organizações para exigir este registro.

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Seguindo Roger Chartier, esta observação minúscula leva, entretanto, a indagações quanto às condições ideológicas que presidiram a tal decisão: pre-ver de tal modo, quase que anônimo, o registro de representantes de uma categoria tão vasta e importante na região, inclusive na própria atividade da instituição judiciária, já que eles formavam a grande maioria dos usuários da Justiça do Trabalho. Donde a pergunta: será que as representações literárias do campesinato na tradição ocidental dominante têm algo a ver com este “es-quecimento” do espaço para o nome do cidadão/ã brasileiro/a que recorreu à justiça por direitos finalmente concedidos/conquistados após quatro séculos e meio de contribuição forçada ao bem comum?

As percepções do social não são de forma alguma discursos neutros: pro-duzem estratégias e práticas (sociais, escolares, políticas) que tendem a impor uma autoridade à custa de outros, por elas menosprezados, a legiti-mar um projecto reformador ou a justificar, para os próprios indivíduos, as suas escolhas e condutas.8

Neste sentido, poder-se-ia testar algumas ideias sobre a origem do des-prezo pelo homem do campo que esta disposição tipográfica revela. Ela se combina com outros indícios que ilustram a mesma tendência no ideário do-minante, veiculando a subalternidade intrínseca de quem trabalha a terra. Nas linhas a seguir, esbocei apenas algumas associações que incitam à reflexão.

O que pode levar as elites (no caso não apenas econômicas, embora da mesma classe) de uma sociedade a considerar tão mal grande parte da mão--de-obra responsável pela produção definidora não apenas de um setor mais de uma civilização, a ponto de nem nome reconhecer a seus integrantes, num âmbito – o judiciário – pretendido sinal de avanço societal? Mais ainda, numa sociedade que tem em alta consideração o escrito: a lei, mas também a litera-tura. Esta comporta relativamente poucas obras retratando os trabalhadores rurais da região, excetuando o Ciclo da Cana-de-açúcar, que será evocada adiante. De forma convergente, a iconografia da Zona da Mata conta raras representa-ções dos trabalhadores rurais. Além das belas (mas poucas) pinturas de Cícero

8 CHARTIER, Roger. A História Cultural, entre práticas e representações. Rio de Janeiro: s.d., p. 17.

Dias, algumas xilogravuras da literatura de cordel (sobretudo no tempo de Ju-lião), o levantamento parece mais um resultado de arqueologia antiga, de tão esparsas, parciais que são estas imagens, pelo menos até a retomada das lutas coletivas do Movimento Sindical dos Trabalhadores Rurais, a partir de 1979.

Procurando as linhagens desta curiosa constatação, ou seja, para entender o silêncio persistente sobre camponeses ou trabalhadores rurais9 na zona canavieira, pode se considerar o conjunto de elementos que definem o que merece destaque, admiração: a distinção, segundo a definição esmiuçada por Bourdieu em obra famosa.10 Neste particular, o medievo europeu tem um papel de destaque, apesar de sua situação no ultramar, portanto remoto no tempo e no espaço.

Embora de fama, às vezes, desagradável, como sinônimo de trevas, atraso, crueldade etc, na definição herdada das Luzes, o período permanece no hori-zonte do ideário dominante como fonte de nobreza, e não apenas no campo religioso. A Idade Média, no pensamento ocidental dominante, constitui o momento em que supostamente foram estabelecidos alguns dos elementos definidores daquilo – comportamentos, visual, competências etc... – que é nobre, desejável, admirável, invejável, isto é, um modelo.

Na literatura ocidental, obras dos séculos XI a XV têm inspirado mui-tos artistas inclusive na América, e particularmente no Nordeste brasileiro. Procura-se analisar, por exemplo, as raízes medievais de festas populares ou obras de autores famosos como Ariano Suassuna. Tristão e Isolda,11 o rei Ar-thur e seus cavaleiros, cruzados ou outras figuras famosas, estão presentes no horizonte cultural como referência positiva, prestigiosa, enobrecedora.

A arquitetura vem ilustrar, por assim dizer, esta tradição: um castelo su-postamente medieval tomado pelo Banco do Brasil como temática de solidez para cartazes publicitários, e o neogótico, particularmente nas construções religiosas ou museus, como marca de beleza, têm propósito simbólico. As ameias que enfeitam tantos muros nos bairros de Recife, longe de qualquer

9 Não será tratada aqui a questão do uso privilegiado de um termo ou outro.10 BOURDIEU, Pierre. La Distinction. Critique Sociale du Jugement. Paris: Éditions de Minuit, 1979.11 Ver, por exemplo o artigo de Elaine Cristina Gomes da Cunha: “A Glorificação da Paixão”: em busca do mito de amor de Tristão e Isolda em Fernando e Isaura de Ariano Suassuna. In: Cadernos de História. Oficina da História. Espaços Medievais. N. 5, Ano 5. Recife: EDUFPE, 2009, p. 225-250.

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propósito bélico, como seus modelos de origem, significam a nobreza dos donos do terreno assim circunscrito. De maneira mais ampla, as origens de instituições prestigiosas, além da própria universidade, são traçadas a partir do seu alfa medieval. Assim o código de cavalaria inspirou em parte o Direito Humanitário Internacional, até hoje um dos referenciais mais evocados nos conflitos desde 1864, data de promulgação da Primeira Convenção de Ge-nebra. Ou ainda, o amor cortês, criação das terras occitanas no século XII, divulgado pelas cortes europeias, informa as modalidades das relações amo-rosas e mais amplamente, a conduta reputada educada dos membros masculi-nos da sociedade, ao ceder seu lugar, abrir a porta etc. aos membros do sexo ora tido como ‘fraco’.

Hollywood, entre os meios modernos de diversão, repercute estes valores e repete adaptações do ciclo arturiano, de Robin Hood, do Corcunda, ou das cruzadas. Até jogos de computador, RPG’s e histórias em quadrinhos se ren-dem às seduções de heróis medievais, ampliando o público familiar com suas características: todos são dotados de qualidades destacadas como a coragem, lealdade e equipados de espadas meio mágicas, com vida, senão nome pró-prio. Aliás, a espada de Rolando era chamada Durandal...

Leitores, espectadores e jogadores acompanham assim Lancelote, Percival ou Galahad em aventuras fantásticas contra dragões ou mais genericamente as forças do mal, procurando o Santo Graal. Pois essas figuras são arquetípi-cas e suas qualidades de coragem, competência, distinção sempre realçadas e louvadas: pessoas belas, nobres, moral e fisicamente dignas de apreço servem de modelo para os jovens. Suas façanhas são militares e diplomáticas, mas também culturais. Nos romances de Chrétien de Troyes, Lancelote e seus companheiros da Távola-redonda, bem como Guinevere e as damas de sua corte, estabelecem arquétipos. Eles e elas leem, cantam, dançam, são convi-viais, inteligentes, dão vazão a mil e um talentos. Seus peitos abrigam emoções nobres, intensas, dignificantes, até mesmo na traição ou na maldade. Suas riva-lidades adotam contornos dramáticos, suas ambições dimensões épicas. Seus sentimentos são explorados pelos romancistas e examinados com esmero, há séculos, por leitores e eruditos.12 A poesia trovadoresca magnifica todas essas

12 BITTENCOURT, Lucas. “Literatura Épica e História”. In: Cadernos de História. Oficina da História. Espaços Medievais. N. 5, Ano 5. Recife: EDUFPE, 2009, p. 141-162.

facetas de sua alma e seu coração. Tudo o que os envolve é digno de admira-ção, ou pelo menos de atenção.

Mas, no seu contexto histórico, representam apenas uma pequena parte da sociedade medieval. Diminutos em termos numéricos no mundo real que regiam, eles são gigantes, quase hegemônicos na literatura, na representação, frente a uma classe muito mais numerosa e essencial em termos econômicos na sociedade me-dieval, como em tempos subsequentes: os camponeses. Estes produziam toda a riqueza socialmente apropriada pelos cavaleiros e clérigos nobres. No entanto, estão praticamente ausentes da multidão de obras literárias acima evocadas.

As três ordens: naturalização das desigualdades sociais “pela graça de Deus”

A sociedade que criou e se espelhou inicialmente nessa literatura cortês e cava-lheiresca é muito peculiar. Feudal, na descrição de Marc Bloch, era tida pelas suas elites como sendo um corpo social equilibrado: comportava três ordens entre os homens, modo de organização que era bom e devia ser mantido, porque era dese-nhado por vontade divina. Assim, o bispo Eadmer de Cantuária, transmitindo os ensinamentos de Santo Anselmo, no início do século XI, pregava:

Exemplo dos carneiros, dos bois e dos cães.

A razão (de ser) dos carneiros é fornecer leite e lã; a dos bois é lavrar a terra; e a dos cães é defender os carneiros e os bois dos ataques dos lo-bos. Se cada uma destas espécies de animais cumprir a sua missão, Deus protegê-la-á. Deste modo, fez ordens, que instituiu em vista das diversas missões a realizar neste mundo. Instituiu uns – os clérigos e os monges – para que rezassem pelos outros e, plenos de doçura, como as ovelhas, sobre eles derramassem o leite da pregação e com a lã dos bons exemplos lhes inspirassem um ardente amor a Deus. Instituiu os camponeses para que eles – como fazem os bois, com o seu trabalho – assegurassem a sua própria subsistência e a dos outros. A outros, por fim – os guerreiros –, instituiu-os para que mostrassem a força na medida do necessário e para que defendessem dos inimigos, semelhantes a lobos, os que oram e os que cultivam a terra.13

13 In: LE GOFF, Jacques. A Civilização do Ocidente Medieval. Vol. II. Lisboa: Estampa, 1983, p. 10.

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Camponesas e camponeses, os laboratores, alimentam e provêm toda a sociedade: “bois” cuja presença esculpida nas torres da catedral de Laon é interpretada por Georges Duby14 como homenagem, já que boa parte das riquezas financiando “o branco manto de catedrais”, nas palavras de Raoul Glaber, provinha sobretudo do trabalho dos camponeses. No entanto, o medievalista ilustre deduz de maneira otimista uma atitude que não aparece nas fontes. O silêncio a respeito dos homens e das mulheres do campo é apenas entrecor-tado por descrições animalescas na literatura e tratamento depreciativo nos outros textos – do judiciário, ou então descrevendo conflitos e revoltas – já que é a visão dominante entre os letrados – clérigos, oriundos ou a serviço da aristocracia – sobre mais de noventa por cento da população.

Geralmente os textos, como a iconografia, são mudos a respeito dos cam-poneses, de suas condições de vida, de trabalho, quanto mais de suas aspira-ções ou sentimentos. Pouquíssimas são as referências ou descrições de cam-poneses na literatura cortês. As mais conhecidas são extraídas de duas obras. Na canção de gesta Garin, o Lorrain, um pouco posterior à mais famosa Canção de Rolando, encontra-se a seguinte descrição de um camponês cujo nome é mesmo mencionado, fato raro:

Vê avançar para eles Rigaud, o filho do vilão Hervis. Ele tinha membros fortes, braços, rins e ombros fortes, os olhos separados um do outro de uma mão-travessa; não se poderia encontrar em sessenta países um rosto mais rude, e desagradável. Tinha os cabelos eriçados e as faces negras e curtidas; havia seis meses que não lavava a cara e a única água que lha molhara tinha sido a chuva do céu.15

Na ‘Chantefable’ (do fim XII ou início do século XIII), Alcassino e Nicoleta, o herói, à procura da sua amada, encontra um camponês na floresta. Embora a obra tenha ousadias, como a participação ativa ou mesmo decisiva de Ni-coleta no enredo, a descrição do jovem camponês é absolutamente conforme aos preconceitos da época:

14 DUBY, Georges. O tempo das catedrais. A arte e a sociedade, 980-1420. Lisboa: Estampa, 1993. 15 LE GOFF, Jacques. A Civilização do Ocidente Medieval. Op. cit., p. 58.

Ele era grande, extraordinário e horrivelmente feio. Ele tinha uma cabeça mais negra do que carvão, com mais ou menos o espaço de uma mão--travessa entre os olhos; ele tinha bochechas enormes e um grande nariz achatado, com as narinas largas e os lábios grossos, mais vermelhos do que carne grelhada, e grandes dentes amarelos e feios; ele calçava sapatos de couro de boi, amarrados por cordas feitas com casca de tília até em cima do joelho, e ele usava uma capa e apoiava-se numa grande maça. Alcassino encontrou-se bruscamente frente a ele e teve muito medo quando o viu.16

Ambos trechos têm muitos pontos em comum. É realçada a feiúra dos jovens agricultores, particularmente do rosto. Procura-se rebaixá-los por alusões a traços fisionômicos, induzindo o leitor a os assemelharem a ani-mais: a distância que separa os olhos, longe de qualquer verossimilhança; a palavra usada, no segundo extrato, para ‘cabeça’, ‘hure’, ou seja cabeça peluda como a de um javali. As suas cores também são depreciativas, parti-cularmente o preto, que aparece como predominante, numa sociedade que valoriza – sobretudo na beleza feminina, a mais amplamente descrita – a alvura e loirice das heroínas. Mas há também o vermelho dos lábios, o ama-relo dos dentes.

Além desses traços, é também explícita a ideia que tais seres – embora só-lidos e capazes de esforço físico – são pouco civilizados. Sujos, não se lavam, usam vestimentas assim como armas muito primitivas. Essas são também implicitamente feias, ou causadoras de uma impressão desagradável à vista, sobretudo quando se pensa na insistência dos romances arturianos em des-crever as belas roupas dos cavaleiros, suas esplêndidas armas e armaduras acompanhando a moda do momento.

Na literatura, então, os camponeses são geralmente ignorados, e, quan-do mencionados, descritos sob os piores traços. A única exceção pode ser o gênero de “Pastourelle”, que reitera com poucas variações as tentativas (exi-tosas ou não) de tal cavaleiro seduzir uma jovem e bela pastora. Como já o descreveu Bédier, isto era apenas um “jogo aristocrático, uma moda de sociedade (...) uma moda de salão”.17 Talvez uma maneira de tornar mais palatável à sociedade

16 Aucassin et Nicolette. Paris: Garnier Flammarion, 1984, p. 115-116.17 PICOT, Guillaume. La poésie lyrique au moyen âge. Tomes 1 et 2. Paris: Larousse, 1975, p. 138.

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áulica o assédio sexual/estupro de jovens camponesas tão banalizado que deu nascimento à lenda do jus primae noctis.18

No resto da considerável literatura medieval, os camponeses, quando mencionados, são feios, abjetos, repulsivos. Giovanni Cherubini confirma: “A sátira anticamponesa constitui uma corrente importante e fácil de identificar na li-teratura europeia”.19 Os trabalhadores do campo são tratados com desprezo: “Não são apenas explorados pela sociedade feudal, são também ridicularizados”,20 ex-plica Frantisek Graus. As acusações mais frequentemente formuladas são de covardia (segundo os senhores) e desonestidade (segundo os citadinos); mais geralmente a sátira “enfatiza muitas vezes, junto com a sujeira, a pobreza das roupas e a falta de sofisticação dos alimentos, algo como uma selvageria do camponês que parece, às vezes, colocá-lo a um nível quase que intermediário entre os animais e os homens. ”21

Ridícula e desprezível, a suposta feiura física está portanto associada a uma abjeção moral. Hostilidade com o ser moral do camponês que se manifesta, por exemplo, pela falta de representação no panteão cristão: no século XIII ainda não há um santo camponês, (embora já haja um mercador).22

Os livros didáticos repetem esta tradição: não há ofício (corporação) de camponês, sinal de progresso, como para as outras profissões, embora os estudiosos tenham mostrado que as franquias conquistadas/compradas dos senhores feudais começaram no campo, bem como as associações de ajuda mútua, tendo depois seus equivalentes urbanos. Mas sempre é lembrado o di-tado “Stadtluft macht frei nach einem Jahr und einem Tag”,23 como se o meio urbano

18 BOUREAU, Alain. Le droit de cuissage. La fabrication d’un mythe XIII-XXe siècle. Paris: Albin Michel, 1995.19CHERUBINI, Giovanni. “Le paysan et le travail des champs”. In: LE GOFF, Jacques. L’homme médiéval. Paris: Seuil, 1989, p. 153.20 In: LE GOFF, Jacques. A Civilização do Ocidente Medieval. Op. cit., p. 59.21 CHERUBINI, Giovanni. “Le paysan et le travail des champs”. Op. cit., p. 153.22 Em consonância com a etimologia comum, na língua francesa, de «païen» (pagão) e «paysan» (camponês): paganus, ou seja o habitante do pagus, uma simples circunscrição administrativa no baixo império romano; “paysan (païsenc, -sant, XIIe x.; fém. païsante, - ande, en anc. fr.), dér. de pays, proprem. “homme d´ un pays” (sens fréquent en anc. fr.). - Dér.: paysannerie: (1829, Boiste; - anterie XVIe s.). “pays” (païs, Xe s., aussi “patrie” en anc. fr.), du bas lat. pagensis (VIe s. Grégoire de Tours), habitant d´un pagus (subdivision de la cité), par ext. le pagus lui-même; a repris le sns “originaire d´un même pays”, pop. (1683, Boursault; fém. payse, XVIIIe s., JJ Rousseau). DAUZAT, Albert. Dictionnaire étymologique de la langue française. Paris: Larousse, 1938, p. 454.23 O ar da cidade torna livre após um ano e um dia.

estivesse a salvo do peso das relações feudais, ideia enganosa que medievalis-tas como Jacques Le Goff24 parecem rechaçar em vão.

Obviamente, “é impossível, vista a pobreza e o aspecto tendencioso da documentação, conhecer os sentimentos e as aspirações da maioria da população.”25 Tratados pela classe dominante como animais de carga, repugnantes, os camponeses prefiguram outras categorias de seres humanos, rebaixados porque sua capacidade de trabalho é útil à sociedade. Isto provocou sua revolta, como testemunhou Froissart, em 1381, na Inglaterra: “Somos homens feitos à semelhança de Cristo, e tratam-nos como bestas selvagens.”26

O poder das palavras

As próprias palavras designando as populações rurais comportam cono-tações negativas, como o mencionou Leroy Ladurie no seu estudo de uma aldeia, Montaillou.

A palavra camponês ou rústico (rustice!) é considerada um termo de in-júria em Montaillou; no entanto, essa aldeia é povoada por agricultores e pastores. Um moribundo da região de Aillon, para insultar um padre que lhe traz a Eucaristia, interpela-o justamente nesse estilo: “Rústico fétido e vil” (t, 231). Ao tratar por rústicos, em uma conversa com Béatrice, seus concidadãos de Montaillou, o cura pretende, então, a uma só vez, rebaixá--los e diferenciar deles sua própria família.27

Se a palavra ‘rústico’ tem conotações negativas no francês do período me-dieval, toda a família de palavras derivadas evoca, ainda hoje, a força, mas também a violência, a ferocidade, a grosseria: assim, ‘rusticidade’ significa “falta de delicadeza; impolidez, rudeza ainda que sem estupidez”, além de “simplicidade de extremo agrado”. Este segundo sentido parece equilibrar o campo semântico, mas a antonímia retorna ao aspecto preponderante: rusticidade é o contrário

24 LE GOFF, Jacques. O Apogeu da Cidade Medieval. São Paulo: Martins Fontes, 1992.25 CHERUBINI, Giovanni. “Le paysan et le travail des champs”. Op. cit., p. 152.26 LE GOFF, Jacques. A Civilização do Ocidente Medieval. Op. cit., p. 59.27 LEROY LADURIE, Emmanuel. Montaillou. Cátaros e católicos numa aldeia francesa (1294-1324). São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 79.

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de ‘delicadeza’.28 Quanto ao adjetivo, além do óbvio “relativo ao campo, à zona rural; próprio da vida no campo”, os demais sentidos fazem referência à falta de sofisticação – “que nasce naturalmente e não requer cuidados especiais para crescer (diz-se de planta, pomar, jardim)” – antes de descambar para algo mais negativo: “sem acabamento; que aparenta simplicidade; rude, gros-seiro”, “sem erudição; ignorante; inculto” para enveredar pelo sentido mais pejorativo: “sem civilidade ou polidez; pouco educado. incivil, impolido, rude”. Novamente o sinônimo proposto é significativo: sugere-se que seja o mesmo de “tolo”,;29 assim como para ‘camponês’ e ‘campônio’.

Mesmo permanecendo nas versões mais habituais da família de palavras, o português não desmente o viés do vocabulário.

camponês (1794): ad. 1. relativo ou pertencente ao campo; campestre. s. m. 2. aquele que vive e/ou trabalha no campo; campônio. p. op. a corte-são. 2.1. aquele que pertence a um grupo social formado por pequenos fazendeiros e trabalhadores rurais de baixa renda. 2.2. fig. pej. indivíduo rústico, rude; campônio. Etim. campo sob a fo. rad. campon. de campan. com base no lat. campanus, a, um (...) sin. de bronco e campestre. Ant. ver antonímia de tolo.

campônio. s.m. (1789) 1. aquele que vive e/ou trabalha no campo, cam-ponês. 1.1. fig. pej. indivíduo rústico, rude; camponês. (...) sin. bronco; ant. ver antonímia de tolo.30

“A linguagem expressa também uma prática”, segundo Foucault, lembra An-tônio Montenegro.31 Na época da ascensão dos movimentos sociais no campo – Ligas Camponesas e Sindicatos de Trabalhadores Rurais – na

28 HOUAISS, Antônio e VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001, p. 2484.29 Ibidem.30 Idem, p. 590.31 MONTENEGRO, Antônio. “Ligas Camponesas e sindicatos rurais em tempo de revolução”. In: FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucília de Almeida Neves (Org.). O Brasil Republicano. Vol. 3. O tempo da experiência democrática da democratização de 1945 ao golpe civil-militar de 1964. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 254.

zona da mata de Pernambuco, houve também guerra em torno das palavras: ‘rurícola’, em vez de ‘camponês’, palavra de eco político, ideo-lógico. Nota-se o caráter recente do vocábulo: “rurícola (1874) 1. que ou aquele que vive no campo; camponês. 2. que ou quem trabalha a terra; agricultor, lavrador. Et. lat. ruricola, ae ‘que cultiva os campos; que mora no campo’”.32

Julião conta o episódio tomando o cuidado de enfatizar o sentido polí-tico, justificando assim os termos ‘Ligas Camponesas’ que escolheu para a organização dos trabalhadores rurais, embora aquela que o havia convidado tinha como intitulado SAPPP: Sociedade Agrícola e Pecuária de Plantadores de Pernambuco.

‘Camponês’ era o termo utilizado pelos movimentos marxistas, e definia uma classe fundamental na luta contra o feudalismo de maneira a assegurar a mudança de modo de produção e o avanço no sentido do progresso.

Proscrita, como fora, outrora, a palavra abolição, que valeu a Joaquim Na-buco, o monarquista liberal apaixonado pela causa do escravo negro, os epítetos mais duros e ofensivos. Quem a pronunciasse ou a escrevesse, caía no índex, atraindo a ira dos poderosos, dos donos do País, do latifún-dio sem fim, e o desprezo dos seus sequazes, corifeus, escribas e intransi-gentes defensores.33

Julião, eleito para a Assembleia Legislativa do Estado, conta em “Cambão” como foi interpelado a respeito.

Quando passei a pronunciá-la na Assembleia Legislativa de Pernambuco, a partir de 1955, sentia o mal-estar que causava entre os demais deputa-dos, na sua quase totalidade, senhores de grandes extensões de terra, a tal ponto que a única mulher eleita para a legislatura que se iniciara naquele ano, uma professora da rede pública de ensino, fez-me um apelo para que a substituísse por uma outra menos contundente. E como eu indagasse

32 HOUAISS, Antônio e VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Op. cit., p. 2484.33 JULIÃO, Francisco. Cambão. A face oculta do Brasil. Recife: Bagaço, 2009, p. 93-94.

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dela o sinônimo que julgava mais apropriada para o seu uso no recinto da Assembleia, animou-se a sugerir: ‘Rurícola!’34

Após uma troca de réplicas com a deputada, que dizia temer pela segu-rança física de Julião, caso ele insistisse em usar o termo ‘camponês’, este (no próprio relato) afirmara que por uma questão de “princípio”, reivindicava seu uso:

A palavra camponês transportava uma carga ainda mais rica. Não era uma simples designação ou um tranquilo qualificativo, mas uma palavra ideoló-gica. Sua menção, apenas, trazia a lembrança de associações, movimentos e lutas organizadas contra outros senhores de terras, em outros países e outras épocas.35

Com o golpe de 1964, os jornais seguiram a orientação enunciada pela deputada: rurícola, para os trabalhadores do campo. A censura do governo militar propunha ‘campônio’ e ‘rurícola’, indicando ‘trabalha-dor rural’ como mais neutro. E para os ameríndios, ‘silvícolas’.

Questões de nomenclatura parecem ter maior importância em momentos de re-pressão, após o grande medo provocado pela momentânea rebelião destas massas de trabalhadores do campo, sejam eles medievais europeus ou nordestinos do século XX.

Neste momento [1356], os nobres, para caçoar dos camponeses, chama-vam-nos de ‘Jacques Bonhomme’:36 é por isto que, naquele ano, aqueles que tomaram armas nas revoltas camponesas, objetos de gozação e des-prezo, receberam o nome de Jacques Bonhomme e perderam o de campo-neses. E este nome, foi, em seguida, por muito tempo, o nome dado aos camponeses, tanto pelos franceses quanto pelos ingleses.37

34 Idem, p. 94.35 Idem, p. 95.36 Alusão irônica a um tipo de casaco curto (jacque) usado pelos camponeses. O episódio é conhecido como a Grande Jacquerie, uma das maiores rebeliões camponesas do período.37 ROUX, Maxime. Textes relatifs à la civilisation matérielle et morale du Moyen Âge. Paris: Nathan, 1958, p. 174-175.

Migrações semânticas indicam a mesma tendência depreciativa a respeito dos camponeses. Assim, ‘vilão’ é inicialmente apenas o habitante de uma villa (villanum), isto é, um latifúndio romano; daí passa a ter o sentido de cam-ponês dependente (villein38 em inglês; vilain39 em francês) durante a época medieval. Em francês, como adjetivo, tem também o sentido de fisicamente feio, daí moralmente feio, isto é, mau caráter, sentido que permanece até hoje.

vilão. adj. e s. m. (XIII) 1. que ou o que reside em vila ... 2. que ou o que não pertence à nobreza; plebeu... 3. fig. que ou aquele que é indigno, abjeto, desprezível (comportamento v.) ... 4. que ou aquele que não tem generosidade, é avarento ... adj. 5. fig. que é rudimentar, rústico, sem arte 6. p. ext. fig. que é descortês, grosseiro... 7. p. ext. fig. de aparência desa-gradável; feio, disforme. s. m. 9. camponês medieval que trabalha para um senhor feudal, mas tinha o direito de abandonar a gleba. p. opos. a servo. 9. o personagem que representa o lado mau, nas peças teatrais, novelas e filmes....40

O paradoxo é que ‘villa’, ou seja o grande domínio rural, também constitui a origem de “ville” e “vila”, espaços citadinos, ‘cidade’, tendo esta, por sua vez, parentesco semântico com civilização.

Assim, o morador do grande domínio do final do império doravante está associado à vilania, que quer dizer fealdade moral.

38 “Villain [ME vilain (...)] 1. villein. 2. a person of concouth mind and manners (...) 3. a deliberate scoundrel or criminal 4. a scoundrel in a story or a play. Villein [ME vilain (...)] 1. a free common villager or village peasant of the feudal classes lower in rank than the thane 2. a free peasant of a feudal class lower than a sokeman and higher than a cotter 3. an unfree peasant standing as the slave of his feudal lord but free in his legal relations with respect to all others”. Webster´s Seventh New Collegiate Dictionary. Springfield, Mass.: Merriam Company Publishers, 1966 p. 992. Nota-se que a ortografia diferencia ambos sentidos mas que o segundo – vilein – abrange praticamente todos os camponeses. 39 “vilain n.m. et adj (XI) paysan, manant, homme de basse condition 2. adj. laid moralement (Wace); 3. laid physiquement. Vilanel, n.m. XIII Paysan. vilenaille n.f. e vilonaille n.f. ramassis de vilains, de gens de rien; vilener v. e viloner, traiter avec mépris, injurier. 2. agir cô um vilain, faire une chose vile; vilenage n.m. tenure de vilain ou pays chargée de cens et de prestations; vilenie n.f. action, conduite, vile, bassesse; 2. conition de vilain.” Dictionnaire de l’ancien français – Le Moyen Âge, Paris, Larousse, [1979] 1994, p. 620.40 HOUAISS, Antônio e VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Op. cit., p. 2861.

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1. atributo ou caráter do que é vil ou vilão, vilanagem, vileza (todos conde-naram a v. de seu ataque. 2. afronta que se dirige a alguém. ofensa, ultraje (dizer vilanias a alguém) 3. ato indigno; baixeza, vileza (praticar vilanias) 3. extrema falta de magnanimidade, avareza, mesquinhez (gesto de v.) Etim. vilão sob a f. rad. vilan + ia. hist. s. XIV uilania s. XV vilania. ... sinon. indignidade.41

vilanesco. adj. 1. relativo a ou próprio de vilão (falava com grosseria v.) 1. que não se aperfeiçoou; rudimentar, tosco,primitivo (instrumentos v.). Etim. vilão sob. a f. rad. vilan + esco.42

A negatividade é tão afirmada que permitiu por contaminação a associa-ção com outra família de palavras, sem relação etimológica:

vil. adj. (s XIII) 1. que tem pouco valor, não presta; reles, ordinário (pes-soa v., objeto v., comércio de mercadorias v.) 2. que custa pouco; que se compra por preço baixo (parecia ouro, mas era um metal vil). 3. que ins-pira desprezo, não tem dignidade. abjeto, desprezível, indigno,infame (v. traidor). 4. que tem pouco importância; insignificante humilde, medíocre, miserável (num palácio ou num v. casebre, todos são irmãos). 5. pessoa desprezível, repugnante, infame. Etim. lat. vilis.43

Assim, as conotações pejorativas até mesmo do próprio vocabulário medieval, numa sociedade guerreira que não valoriza o trabalho efetuado para sustentar a sociedade, permaneceram. Geoffroy de Troyes, embora da classe dominante, fornece um retrato comovido pela sua condição.

Os camponeses que trabalham para nós, que se cansam sob todo tempo e em todas as estações, que se entregam a obras servis, desprezadas pelos

41 Ibidem.42 Ibidem.43 Ibidem.

seus senhores, estão incessantemente sobrecarregados, e isto para acorrer à vida, ao vestuário e às frivolidades dos outros (...). São perseguidos pelo incêndio, a rapina e a espada; são metidos em prisões e postos a ferros e depois são obrigados ao resgate, ou então são mortos violentamente pela fome, são entregues a todos os gêneros de suplícios (...).

A má fama, junto com a aparência feia e repugnante dos camponeses na literatura cortês, criou um mote que foi mantido ao fio dos séculos. Inúmeros autores poderiam ser citados aqui. Uma ínfima mas significativa amostra re-vela esta permanência, num contexto de extraordinárias mudanças sociais de todos os tipos. Talvez a representação do campo fosse assim construída para evidenciar o “progresso” do seu oposto: o mundo urbano. Assim, no século XVII, Jean de La Bruyère (1645-1696) descreve a sociedade com perspicácia. Seus “caracteres” são famosos por retratar com agudez seus contemporâneos. Ele denuncia também a injustiça social, mostrando “o luxo insolente dos ricos como uma injúria à pobreza dos camponeses”.44

Vê-se no campo certos animais desconfiados (farouches), machos e fême-as, pretos, lívidos, e todos queimados de sol, ligados à terra que escavam e revolvem com invencível tenacidade; eles têm algo como uma voz arti-culada e, quando ficam de pé, mostram um rosto humano; com efeito, são homens. Eles se recolhem de noite a suas tocas, onde vivem de pão preto, água e raízes. Eles poupam os outros homens do trabalho de semear, arar e colher para viver, e merecem que este pão que semearam não lhes falte.45

Comparado com seus antecessores medievais, o tom de La Bruyère é mui-to mais favorável aos camponeses, lamentando a sorte que lhes é reservada. No entanto, as imagens são muito parecidas com as citações anteriores. Se as ideias do Iluminismo prometiam perspectivas positivas para os não-aris-tocratas, redundando na abolição dos privilégios da nobreza, no entanto, não houve um movimento revalorizando os camponeses, lembra Chartier. “Para

44 LAGARDE et MICHARD. XVIIe siècle. Paris: Bordas, 1985, p. 418.45 Idem, p. 419.

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os letrados das Luzes a leitura camponesa é uma leitura perdida, ocultada na cidade pelos ritmos desenvoltos de leitores demasiado ávidos.”46 Até mesmo espíritos considerados radicais, como Jean Meslier, “defensor do proletariado rural e dos pequenos agriculto-res” revelam-se impotentes para

definir um programa positivo tão original quanto sua denúncia, e se vê sem surpresa o quanto a classe social da qual ele se fez o veemente porta--voz permanecia ainda incapaz de formular uma ideologia que lhe fosse própria: obrigada, ao contrário, de nutrir suas próprias raivas de temas tomados emprestados daqueles dos quais seriam certamente a presa.47

Assim, apesar do interesse dos fisiocratas e algumas páginas de autores como Voltaire que, entre outros comentários mais técnicos e demonstrando um interesse que ele colocaria em prática em Ferney, lembra: “Se os voluptuosos moradores das cidades sabiam o quanto custa de trabalho para lhe oferecer o pão, eles fica-riam horrorizados.” �

Até mesmo o abade Gregório, deputado na Assembleia Nacional durante a Revolução Francesa, que queria promover um modelo progressista e para tanto lançara um questionário “relativo ao patois e aos costumes das gentes do campo”, tinha uma visão pouco amistosa para com a cultura dos agricultores, sobre-tudo a maioria que não usava a língua francesa. Régis Meyran assegura que, outrossim conhecido por posições políticas avançadas na época, por exemplo contra a escravidão, ele

inaugura uma concepção da identidade nacional ligada à questões de língua e costumes, o que vai conduzi-lo a uma reflexão a respeito da tradição. Não está sem ambiguidade, pois lança um questionário sobre os dialetos (patois) e costumes das pessoas do campo, o que resultará num relatório.48 Isto

46CHARTIER, Roger. A História Cultural, entre práticas e representações. Rio de Janeiro: s.d., p. 141.47EHRARD, Jean, L’idée de nature en France dans la première moitié du XVIII siècle. [1963] Paris: Albin Michel, 1994, p. 520.48 Contre les patois. Rapport et projet de décret sur les moyens d’améliorer l’agriculture en France, par l’établissement d’une maison d’économie rurale dans chaque département, présentés à la séance du 13 du 1er mois de l’an IIe de la république

tem um propósito ideológico. Trata-se de eliminar os dia-letos das várias regiões na França, os diferentes “países”, para impor-lhes a língua da Razão, o francês. Por meio deste questionário, ele transforma o camponês num tipo de bárbaro do interior, o apresenta como um ser atra-sado e de algum modo perigoso. Tem, no entanto, uma vantagem neste questionário, porque consiste numa das primeiras ferramentas intelectuais para pensar a questão das tradições, isto é, a religião, a agricultura, as práticas, ou seja, os modos de vida dos franceses.49

Como Chartier o notou, perguntas distintas estavam inseridas no questionário de 1790, a respeito das leituras dos camponeses em francês e em outras línguas. Aliás, o título do relatório e projeto de decreto é “Contra os ‘patois’”, ou seja, contra as línguas que os camponeses franceses falavam: em casa até hoje ou época re-cente; na vida pública, até pelo menos a Primeira Guerra Mundial, cujos soldados haviam maciçamente sido alfabetizados nos moldes estabelecidos pela III Repú-blica: escola pública, laica, gratuita e obrigatória... em francês. Até a metade do século XX, a repressão ao uso dos idiomas regionais – bretão, catalão, provençal, alsácio, basco, etc... – continuava nas escolas onde se podia ler cartazes: “Proibido cuspir no chão e falar ‘patois’”.50 Ou seja, a cultura camponesa encontrava-se reprimida e desvalorizada até nas suas manifestações mais profundas, como a língua.

Mas o desprezo não era apenas com os idiomas regionais – embora algu-mas delas fossem escritas e portadoras de grandes obras, como a língua de oc, veículo dos trovadores. Lavisse, grande estadista republicano e modelador da história da França, na linha do “romance nacional”, expressava, nas suas diretrizes curriculares, uma visão dos seus conterrâneos rurais que tem certos pontos de aproximação com a atitude das mesmas autoridades frente às po-pulações do vasto império colonial francês da época.

française, au nom des comités d’aliénation et d’instruction publique, par le citoyen Grégoire. Imprimés par ordre de la Convention nationale. Paris: Impr. nationale, 1794, in-8°, 30 p. 49 Régis Meyran, (HESS Antropologue) autor de Le mythe de l’identité nationale. Paris: Berg international, 2009. Transcrição de sua participação no programa La nouvelle fabrique de l´histoire no canal France Culture 05.12.09 http://sites.radiofrance.fr/chaines/france-culture2/emissions/fabriquenew/50 DUNETON, Claude. Parler croquant. Paris: Stock, 1973.

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O homem do povo, na França, o camponês sobretudo, o homem o mais prosaico no mundo (...). É um mundo ocupado de matéria, em busca per-pétua dos meios para evitar os deveres que ele não compreende e para quem qualquer sacrifício é uma corveia, uma usurpação, um roubo. É preciso verter nesta alma a poesia do homem. Contamo-lhe os gauleses e os druidas, Rolando e Godofredo de Bulhões, Joana d´Arc (...) e todo estes heróis da França antiga antes de falar-lhe dos heróis da França nova. Mostramo-lhe (...) que existem legitimidades sucessivas ao longo da vida de um povo e que pode se amar toda a França sem faltar com suas obriga-ções em relação à República.51

Com as sociedades metropolitanas coloniais se urbanizando e industriali-zando, o modelo de progresso divulgado tornava eventualmente o campo um referencial valorizado, mas apenas como refúgio temporário da aristocracia, como no modelo inglês brilhantemente analisado por Williams, que realça que a brincadeira bucólica se chocava com a “realidade rural”.52

Talvez se possa encontrar também no Brasil ecos deste arquétipo firmado na literatura medieval e prolongado em diversas instâncias da cultura domi-nante, que convergem para manter a subalternidade intrínseca atribuída aos homens e às mulheres do campo, do mesmo modo que, no outro polo social, o modelo define a distinção.

Por exemplo, a respeito dos trabalhadores rurais da zona canavieira no Nordeste brasileiro, José Lins do Rego divulgou alguns dos estereótipos mais negativos do século XX. Em seus seis romances do Ciclo da Cana-de-Açúcar, o famoso autor enfatiza as características cujas implicações racistas afloram sem disfarce. Contemporâneo e amigo de Gilberto Freyre, ele não defendia os mesmos horizontes de miscigenação desejável.53

51 LAVISSE, Ernest. [1881]. “L´enseignement historique en Sorbonne et l´Education nationale”. In: DELACROIX, C., DOSSE F. et GARCIA P. Les courants historiques en France XIXe - XXe siècle. Paris : Gallimard, [1999] Edition revue et augmentée, 2005, p. 156-7.52 WILLIAMS, Raymond. O Campo e a Cidade na História e na Literatura. São Paulo: Cia das Letras, 1989, p. 197.53 Alguns aspectos foram detalhados em: DABAT, Christine Rufino, Moradores de Engenho. Estudo sobre as relações de trabalho e condições de vida dos trabalhadores rurais na zona canavieira de Pernambuco, segundo a literatura, a academia e os próprios atores sociais. Recife: Editora Universitária da UFPE, 2007, cap. II.1. A visão da ‘morada’

Os qualificativos habituais associados aos camponeses são exatos parale-los daqueles encontrados em obras europeias: eles se caracterizem pela sujei-ra, falta de competência/inteligência, feiura, proximidade com o mundo ani-mal. Os trabalhadores rurais, nunca assim chamados – mas “cabras”, “negros”, até mesmo “negrinha”54 “moleques”,55 “mulatas”56 “matuto”57 ou outro termo parecido – são assimilados aos outros meios de produção sob o controle do senhor de engenho, como o solo:

Terra e cabras não faltavam. Elas e eles, nas mãos de um homem, dariam muito. Cabras bons eu tinha, e terra para tudo, várzeas que se perdiam de vista, caatingas de barro vermelho cobertas de capoeira grossa. E não me parecia coisa do outro mundo fazer esta terra e estes cabras trabalharem.58

A diferença entre eles e os proprietários – os “homens” – é a mais manifesta. É uma questão de classe. Mas, vez por outra, aparece um traço mais específico entre rural e industrial, embora ambos situados no campo. Desta vez, edifica--se a oposição clássica, combinando-a com a eugênica e de classe. “Lá em cima estava uma gente que se chamava operário” e José Lins do Rego continua marcando a distância campo-indústria, atribuindo a discriminação à usina, cuja mão-de--obra industrial, diferentemente do tempo do engenho, teria manifestado

desprezo ao povo do engenho. Aquilo para eles não era gente. E não queriam que os filhos e as filhas saíssem de casa para se misturar com os filhos de cabras da bagaceira. (...) Olhavam para eles como se fosse para estrangeiros, gente de outras terras, de outro sangue. Pretos e cabras como eles, e no entanto separados, tão diferentes.59

na obra de José Lins do Rego e de Gilberto Freyre.54 REGO, José Lins do. Menino de Engenho. [1932]. 8a ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1965, p. 15.55 Idem, p. 20.56 Idem, p. 34.57 Idem, p. 61.58 REGO, José Lins do. Bangüê. [1934] Rio de Janeiro: José Olympio, 19a ed. 2000, p. 233.59 REGO, José Lins do. Usina. [1936] Rio de Janeiro: José Olympio, 1993, p. 126.

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A naturalização infligida aos trabalhadores rurais na obra de José Lins do Rego diz respeito tanto a homens quanto a mulheres e crianças. Elas são ex-plicitamente associadas a animais, seja pelos apelidos substituindo os nomes, como “Andorinha, Macaxeira, Periquito”,60 seja pelo comportamento, comparados a “cachorrinhos pequenos”.61 É

assim que ele descreve, literalmente, Josefa: “coitada, não tinha sido mais que um bichinho que me lambesse os pés”.62

O autor procede conforme os preconceitos vigentes: os filhos dos traba-lhadores rurais são feios, sujos, “[d]ois meninos com medo correram para outra casa de perto. Depois foram se chegando para nós, desconfiados como cabritos, sujos e de barriga grande.”63 Eventualmente algum reconhecimento merecem na medida em que servem aos netos do senhor de engenho, colhendo frutas: “Mas, quando o meu primo quis um jenipapo maduro, um deles trepou pelo pé-de-pau numa ligeireza de macaco.”64 Mesmo assim, como na literatura medieval, o autor não dispensa a implicação negativa de uma comparação com um aspecto zoológico.

Gente esfarrapada, com meninos amarelos e chorões, com mulheres de peitos murchos e homens que ninguém dava nada por eles – mas uma gente com quem se podia contar na certa para o trabalho mais duro e a dedicação mais canina.65

Associa o autor os dois traços mais comuns nesta literatura anticampone-sa: utilidade dos trabalhadores, mas numa posição inferiorizada pela proximi-dade aludida ao mundo animal. Ou seja, reencontram-se os bois.

O trabalho no canavial, como para os camponeses europeus, não tem nada de enobrecedor; ao contrário, é afetado por um desprezo intrínseco tam-bém herdado da escravidão: a “indignidade do eito”66 contagiava essencialmente aqueles que não conseguiam fugir dele. José Lins do Rego utilizou diversas vezes esse tipo de expressão, como se o trabalho agrícola fosse um tipo de

60 REGO, José Lins do. Doidinho. [1933] Rio de Janeiro: José Olympio, 19a ed. 1979, p. 110.61 Idem, p. 110-111.62 REGO, José Lins do. Bangüê. Op. cit., p. 51.63 REGO, José Lins do. Menino de Engenho. Op. cit., p. 22.64 REGO, José Lins do. Menino de Engenho. Op. cit., p. 22.65 Idem, p. 3166 Idem, p. 88.

condenação, contendo igualmente um elemento moral negativo, passível de envergonhar quem a ele era obrigado.67

O costume de ver todo dia esta gente na sua degradação me habituava com a sua desgraça. Nunca, menino, tive pena deles. Achava muito natural que vivessem dormindo em chiqueiros, comendo um nada, trabalhando como burros de carga. A minha compreensão da vida fazia-me ver nisto uma obra de Deus. Eles nasceram assim porque Deus quisera, e porque Deus quisera nós éramos brancos e mandávamos neles. Mandávamos também nos bois, nos burros, nos matos.68

Como já o explanara São Laud de Angers:

Deus quis que, entre os homens, uns fossem senhores e outros servos, de tal maneira que os senhores estejam obrigados a venerar e amar a Deus, e os servos estejam obrigados a amar e venerar o seu senhor.69

67 Ver, por exemplo, em Bangüê, o reencontro com os antigos “moleques”: “cabeça baixa”; eles são “todos degradados no eito”. REGO, José Lins do. Bangüê. Op. cit., p. 123.68 Idem, p. 88.69 In: FREITAS, Gustavo de. 900 Textos e Documentos de História. Lisboa: Plátano, 1977, p. 45.

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CULTURA E MEMÓRIA – HISTÓRIA & TRABALHOGESTÃO DOCUMENTAL NO TRT6: UM APELO à HISTÓRIA E à MEMÓRIA

Profa. Dra. Marcília Gama.

Email: [email protected]

Os arquivos como celeiro de informações são essenciais ao funciona-mento eficaz da administração, seja no setor público ou no privado, além de constituírem legítimos registros da memória institucional e da história de um povo. Nas últimas décadas, vêm desempenhando um papel imprescindível na sociedade, mas ao mesmo tempo são objeto de preocupações e práticas equivocadas, que têm levado na maioria das vezes ao descarte indiscriminado, pondo em risco a memória administrativa e social.

A Lei Federal 8.169 de 08 de janeiro de 1991 conceitua no art. 3º: “Con-sidera-se gestão de documentos o conjunto de procedimentos e operações técnicas referentes à sua produção, tramitação, uso, avaliação e arquivamento em fase corrente e intermediária, visando a sua eliminação ou recolhimento para guarda permanente.”

Nessa perspectiva, o planejamento em arquivo pressupõe uma política de gestão que contemple a preservação da produção ao controle documental, seja em suporte papel ou em meio eletrônico, nas fases corrente, intermediá-ria e permanente.1

O Tribunal Regional Federal da 6ª Região, criado em 1941, tem por missão “Solucionar os conflitos decorrentes das Relações de Trabalho, no âmbito de Pernambuco, de forma rápida e eficaz, contribuindo para o fortalecimento da Cidadania e Paz Social”. Ao longo de sua trajetória a serviço da sociedade, tem desempenhado uma importante função na sua área de competência, re-presentada na sutil tarefa de dirimir os conflitos decorrentes da relação ca-

1 PAES. Marilena Leite. Arquivo: Teoria e Prática, Ed. Contexto, RJ, 2000.

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pital/trabalho, primando, sempre que possível, pela equidade, transparência, isenção e pela aplicação justa dos dispositivos permitidos pela lei, à revelia de quem será contemplado.

A produção documental é o reflexo dessas ações, relevante por registrar uma jurisprudência, que, quando não está posta, nem dada, se constitui. É a representação das soluções postuladas na esfera da Justiça do Trabalho, cujas práticas são, por sua vez, constituídas ao sabor da história, influenciadas pelas tendências de distintas épocas, sendo, portanto, a materialização das questões que permeiam o social de forma diferenciada. E são esses conteú-dos informacionais, considerados pela arquivologia e pela história, como de alta densidade, por representar a memória institucional e social, passíveis de preservação.

O movimento pela preservação da memória da Justiça do Trabalho é re-cente, data do início do século XXI; nesse curto espaço de tempo, muitos avanços são apontados como forma de enaltecer a importância da causa, quando a tendência é lamentavelmente a eliminação dos processos, motivada pelo argumento de que é preciso enxugar o volume do acervo, pela necessida-de de espaço e o pelo gasto administrativo com sua guarda.

Em Pernambuco a preocupação com a preservação da memória teve iní-cio nos idos de 2007, atingindo o auge em 2008, com o Encontro promovido pelo TRT6 do III Encontro Nacional pela Preservação da Memória da Justiça do Trabalho, realizado nos dias 4 e 5 de setembro, acontecimento que marcou o calendário da Justiça do Trabalho, como um marco lembrado efusivamente por servidores e por outros tribunais.

Nesse encontro algumas ações ficaram marcadas, como a criação do selo da memória – com a inscrição “Tema Relevante” –, uma recomendação dis-ponível aos usuários da Justiça do Trabalho (magistrados, procuradores, ser-vidores, advogados e partes), que poderão valer-se desta insígnia para mar-car a capa do processo ou peça judicial ou documental que julguem merecer especial cuidado na posterior preservação, impedindo seu descarte. Pode-se encontrar os selos nas varas e demais unidades judiciais, e também em as-sociações, como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), a Associação dos Advogados Trabalhistas de Pernambuco (AATP), sindicatos e outros.

Paralelo a isso, a sociedade toma conhecimento de forma mais ampla dos primeiros resultados advindos do Convênio de Cooperação Técnica firmado entre o TRT6 e a UFPE, através do Programa de Pós-Graduação em His-tória, que apresenta as pesquisas e trabalhos envolvendo o acervo da Justiça do Trabalho em Pernambuco, produzidos pelos corpos docente e discente da referida pós-graduação. De lá para cá, muito foi feito pela preservação dos autos findos da Justiça do Trabalho de Pernambuco (além dos de outros estados, como Rio Grande do Sul, Minas Gerais, Fortaleza (CE), Campinas (SP), Paraíba), sobretudo após o suporte da Fundação de Apoio à Ciência e Tecnologia (FACEPE), do Núcleo de Estudos de Agricultura e Desenvolvi-mento (NEAD) e do IICA.

A realidade arquivística encontrada no TRT6 em junho de 2009 foi um tan-to desafiadora, sobretudo pelo volume documental e pela falta de espaço para acondicionar o acervo, podendo ser descrita em sua amplitude apresentada na forma de diagnóstico após visitação realizada a partir do dia 25/06/2009.

Diagnóstico

Em todas as situações observadas em relação à produção e arquivamento dos documentos gerados, o problema maior se traduz na falta de espaço para acomodar o acervo de forma adequada, o que tem comprometido seu fluxo e seu gerenciamento administrativo, criando um problema em cadeia: no Arquivo Geral, que não comporta mais os processos provenientes das varas, nos espaços existentes nas próprias varas, que atingiram seu limite na guarda dos processos, nos arquivos setoriais administrativos, que não com-portam mais os papéis produzidos em cada diretoria, também um problema administrativo, pois os recursos direcionados na locação de novos espaços vêm onerando o orçamento a cada ano. Tudo isso é motivado pela ausência de uma política interna de Gestão Documental, que tem acarretado a inter-rupção do fluxo documental, dificultando os trâmites dos processos e, o que é mais grave, a preservação da memória administrativa do órgão, que se traduz mormente na história da Justiça do Trabalho em Pernambuco.

Por outro lado, verifica-se como aspecto crítico a inexistência de um método científico de arquivamento e de controle informatizado, o que acarreta, muitas vezes, dificuldades de localização dos documentos.

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Arquivo Geral

O arquivo geral utiliza predominantemente alguns tipos de suportes para acondicionamento dos documentos:

Lotes de processos amarrados com cadarço de algodão;

Livros;

Pastas A-Z, caixas poliondas e de papelão.

Quanto ao acondicionamento do acervo:

Está armazenado em estantes, arquivos de aço, nas mesas e armários, em estantes improvisadas e palletes de madeira, totalizando aproximadamente cerca de 1.700.000 (um milhão e setecentos mil processos). O Arquivo Geral apresenta problemas referentes à não observância das normas vigentes para arquivo, como o uso de procedimentos desatualizados de acondicionamento, a ausência de instrumento de pesquisa, catalogação e da tabela de temporali-dade. Verifica-se também a falta de mecanismos de controle para localização dos documentos arquivados, bem como o baixo número de pessoal alocado para desempenhar o serviço técnico especializado. A situação apresentada fa-vorece a falta de gerenciamento dos documentos, que é agravada pela inexis-tência de uma política interna de gestão documental que garanta o controle da pro-dução documental da sua origem até a guarda definitiva e o acesso aos autos.

Quanto ao pessoal:

Pessoal não qualificado em conservação e gestão;

Quantitativo de pessoal insuficiente;

Inexistência de treinamento específico em conservação;

Grande volume documental para tratar.

Quanto aos métodos e procedimentos:

A tabela de temporalidade existente na instituição é genérica e não

adotada como instrumento de gestão documental, na avaliação e descarte, pelos gestores responsáveis pelos arquivos setoriais administrativos e pelo Arquivo Geral;

Inexistência de manual de procedimentos internos para o Arquivo Geral;

Falta de fixação, no Arquivo Geral, de descritores de localização;

Inexistência de sistema informatizado de gerenciamento do arquivo;

Inexistência de um programa de gestão, que execute a organização do acervo e o controle documental.

Remessa de documentos para o Arquivo Geral executada de forma indevida, tanto no que tange ao controle no sistema SIAJ (identificação/tramitação) quanto ao acondicionamento e transporte;

Inexistência de uma política de preservação do acervo documental permanente e do que é produzido na atualidade.

Inexistência de um sistema de indexação e descrição arquivista para o acervo;

Após o levantamento da situação existente e elaboração do diagnóstico, partimos para pesquisa na legislação em vigor, analisando normas, resolu-ções e regulamentos para o Judiciário, em especial da Justiça do Trabalho, e fizemos a contextualização da história do Tribunal Regional do Trabalho nos arquivos, onde foi feita uma coletânea de informações sobre a trajetória do órgão e sua intervenção no social. A Coordenação de Gestão Documen-tal e Memória apresentou no IV encontro da Memória, ocorrido em Belo Horizonte nos dias 05, 06 e 07 de outubro de 2009, os primeiros resultados referentes à gestão documental pensada para o TRT6, onde era preciso, antes de mais nada, encontrar na ciência histórica o argumento que respaldasse a importância da preservação da história da Justiça do Trabalho em Pernambu-co e posteriormente convencesse os que fazem aquela Corte da mudança de perspectiva em relação ao destino do seu acervo documental.

Quando se trata de gestão documental, espera-se a adoção de procedi-mentos teórico-metodológicos, numa perspectiva (inter e) multidisciplinar,

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associando conteúdos da arquivologia, da ciência da informação e da tecno-logia da informação e, sobretudo, da história. Aqui pensada na definição de Hanke, parafraseada pelo autor Jörn Rüsen, (Brasília, 2007, p. 18),

[a] história distingue-se das demais ciências por ser, simultaneamente, arte. Ela é ciência ao coletar, achar e investigar. Ela é arte ao dar forma ao colhido, ao conhecido e ao representá-los. Outras ciências satisfazem-se em mostrar o achado meramente como achado. Na história, opera a faculdade da reconstituição. Como ciência, ela é a aparen-tada à filosofia; como arte, à poesia.

Ancorada nessa perspectiva, nos inspiramos para, através da coleta e da investigação, retirar do limbo a história esquecida, registrada no acervo, até então relegado à destruição, passando a agregar-lhe uma valoração impres-cindível à sua manutenção no órgão, tarefa possível graças aos primeiros re-sultados apresentados pela equipe de historiadores da UFPE, que através do convênio mencionado anteriormente permitiu a devassa nos autos findos e a partir daí pôde retirar-lhe o que tinham de mais precioso para o conhecimen-to sobre a saga dos trabalhadores que buscaram um dia a justiça atrás de seus direitos – isso é história, isso é memória, isso é a tentativa de compreender nossa trajetória enquanto autores, agentes da história, sendo, portanto, maté-ria de interesse social.

Assim, a gestão documental, para além das técnicas da arquivística mo-derna, foi ancorada numa reflexão entre a história e a memória, procurando estabelecer conexões até então pouco pensadas para os arquivos e jamais dis-cutidas com o corpo funcional no tribunal. Nessa perspectiva, foi feito um curso de capacitação para os servidores administrativos, corregedoria e equi-pe técnica, grupo que vem trabalhando no Projeto de Preservação da Memó-ria do Trabalho na UFPE, mediante o convênio – e que durante uma semana ouviu sobre gestão documental, sobre história e memória e a importância do respeito à relação do passado com o fazer no presente. O objetivo do curso era tentar expor a representatividade que têm os arquivos, como registro dos feitos e da transitoriedade dos próprios funcionários inseridos nesse proces-so, enquanto agentes produtores dos documentos, que deixam com sua práxis

e experiência a marca indelével de um poder-saber, construído na prática, no exercício pleno das funções e atribuições ao longo da trajetória administrativa institucional, destacando ao mesmo tempo, a importância para a sociedade da preservação desse acervo, enquanto direito, na consolidação da cidadania.

Mas isso tudo não foi suficiente, e mostrou-se necessária uma política interna, mais arrojada, na aplicação de ações integradas de planejamento, pre-servação e acesso, ancoradas em normas e procedimentos a serem adotados em relação aos arquivos, como: a criação de uma infraestrutura física adequa-da ao volume documental, à captação de recursos materiais e à manutenção dos arquivos, além da estruturação de um quadro de pessoal capacitado, a adoção de novas tecnologias da informação e de gerenciamento eletrônico de documentos, associada à elaboração e uso da tabela de temporalidade e, sobretudo, à disseminação de uma nova política de fomento à pesquisa, vi-sando o acesso ao patrimônio documental institucional produzido ao longo da trajetória do órgão.

A situação encontrada no TRT6 não foi diferente de tantas realidades vi-venciadas em muitos órgãos da administração direta e indireta do Estado, particularmente nos tribunais, onde o volume documental é muito grande. Mas procuramos argumentar que até isso é sintomático, pois é proporcional ao aumento das demandas do social – e da sua complexidade – e ao aumento populacional. O crescimento de um arquivo está diretamente ligado ao cresci-mento e complexidade alcançados pela sociedade – especialmente na Justiça do Trabalho – e ao consequente maior número dos conflitos trabalhistas.

O que mudou foi o despertar para a necessidade de intervir e administrar essa realidade. Assim, o desafio ao se deparar com a situação acima identifi-cada se traduziu mais do que em um compromisso, mas em uma necessidade.

Consciente da importância de uma intervenção técnica especializada, o Tribunal do Trabalho em Pernambuco partiu para adotar ações internas de caráter emergencial, numa linha mais arrojada, como a criação da Coorde-nação de Gestão Documental e Memória, bem como a meta de inserir esta gestão no planejamento estratégico – subentendida a dotação orçamentária destinada a ela –, com algumas atividades prioritárias a serem desenvolvidas até 2015, como o gerenciamento de seu acervo documental – seja em meio fí-

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sico ou eletrônico –, visando organizar, acondicionar, preservar e racionalizar a produção documental da instituição, sem pôr em risco a memória.

Associado a estas diretrizes, o TRT-6ª Região, através do Convênio de Cooperação Técnica com o Programa de Pós-Graduação em História da UFPE, assinado desde 2004, resolveu ampliar a parceria, apoiando as ativi-dades referentes à pesquisa e preservação do acervo. Por meio do convênio, tem empreendido uma nova política de preservação e acesso aos conteúdos da Justiça do Trabalho, ao promover a organização, catalogação, higienização, digitalização, acondicionamento e o acesso via site específico dos processos trabalhistas com conteúdo histórico, que cobrem o intervalo de 1941 aos anos 90, disponibilizando os documentos à comunidade acadêmica para funda-mentar estudos e monografias, dissertações e teses.

Por outro lado, esforços estão sendo empreendidos nacionalmente para criação de um instrumento de avaliação que fundamente a elaboração da Ta-bela de Temporalidade para toda Justiça do Trabalho, iniciativa que está sendo encaminhada pelo Conselho Superior da Justiça do Trabalho com a criação da Comissão de Juízes em cada TRT e do Conselho Nacional de Justiça, visando produzir novos parâmetros de avaliação e guarda processuais, o que norteará a produção e disciplinará o descarte desordenado, baseado em critérios mais precisos, respaldados na lei, e sobretudo, em uma análise rigorosa dos conte-údos pertinentes aos documentos da atividade-fim, ampliando os prazos de guarda – cuja definição atualmente pende para a eliminação –, evitando assim o descarte aleatório.

Paralelamente, o TRT6 realizou o Fórum Regional de Arquivos Judi-ciais, em parceria com o Tribunal Regional Federal 5ª Região e o Tribunal de Justiça de Pernambuco, com a presença de profissionais renomados do Poder Judiciário de outros estados, tendo sido reforçado em suas moções o compromisso com a memória. O importante evento permitiu ainda a troca de experiência, onde pudemos verificar o avanço empreendido por outros tribu-nais em relação ao compromisso com a História. Este é um relevante passo na mudança de mentalidade dos tribunais, no sentido de salvaguardar os autos findos, o que representa um forte apelo à preservação do acervo. Todas essas ações mostram um novo momento pensado para Justiça, em especial a do Trabalho. Apontam para uma tendência que vem se consolidado no âmbito

do Poder Judiciário, quando se percebe uma necessidade fundamental em revisitar a história, voltar ao passado e ligar os fios com o presente, olhando para o futuro.

Os tribunais estão redescobrindo sua importância cívica e social, ao se sensibilizarem para a guarda dos conteúdos documentais que tratam de sua história. O resultado é a febre pela preservação, tão bem traduzida nas pala-vras da desembargadora Magda Biavaschi de Barros ao destacar a importância de “amar o perdido”, trazendo à tona conteúdos que haviam sido preteridos ou relegados à destruição. O acervo trabalhista enquanto fonte documental busca trazer à tona um passado desconhecido da sociedade, cujo teor é muito mais do que um registro dos conflitos sociais entre capital /trabalho ao longo da História; eles representam conteúdos que têm a ver com a cidadania, com o direito, com a ética em construção, remetendo à jurisprudência do passa-do, que contraria preceitos instituídos, cristalizados pelas classes dominantes numa ordem de práticas cujos benefícios atendiam massivamente aos seg-mentos poderosos da sociedade e que de forma excepcional vão se moldando com o tempo, vão constituindo, incorporando novas práticas judiciais que irão contemplar as classes humildes, fazendo das decisões da Justiça do traba-lho um instrumento na promoção da cidadania e Justiça Social.

Nesse sentido, o despertar para a memória parece ser uma tônica das orga-nizações judiciárias. Isto permite buscar o que foi esquecido e silenciado nas estanterias dos arquivos, promover a equidade social quando a exploração e a má fé dos proprietários parece ser a práxis adotada. É no veio dessa senda que a história se respalda e a historiografia se constitui, ao revisitar, questionar e interrogar o que não ficou claro, o obscurantismo das ações humanas e a ambiguidade de discursos e práticas.

Nesse universo, os acervos documentais colocam-se como uma referência para a análise. Daí a necessidade de preservar tais conteúdos como legítimos registros do fazer das organizações, por serem mais que isso; por serem, os documentos, a materialidade da identidade de um povo – é por meio deles que as instituições se reconhecem e a sociedade constrói a ideia de pertenci-mento, um dos requisitos do patrimônio cultural e da cidadania; por serem, antes de tudo, o meio para se conhecer o passado, a história de um povo, e por conseguinte o instrumento de compreensão de nossa própria identidade.

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Os acervos documentais são o elo que liga o passado e o presente e, como tal, uma ferramenta para elucidar o acontecido, revisitar a memória e reescrever a história.

Após anos de descaso com esse passado, o Poder Judiciário, e em especial a Justiça do Trabalho, assiste ao descortinar de um novo horizonte; pela pro-messa de que esse movimento surgiu e veio para criar raízes, surge uma mo-bilização crescente de implantar no judiciário uma política de preservação e acesso. É significativo o número de memoriais que estão sendo criados pelos tribunais, com o intuito de cuidar de sua memória e disponibilizar o passado registrado nos documentos à sociedade.

Sobre isso registramos o relevante papel do Fórum Permanente pela Pre-servação da Memória do Trabalho, que através de vários encontros ocorridos em diferentes estados tem reforçado a todos os participantes a importância da preservação dos acervos, tendo como bandeira de luta a questão da cidadania e o direito à história e à memória.

Iniciativas endógenas e exógenas aos tribunais, no sentido de preservar o patrimônio documental, são aclamadas como necessárias e urgentes, e nesse movimento destacamos o papel imprescindível que adquire o historiador, e a responsabilidade que paira em suas costas, ao despontar como o profissional que propiciará ao judiciário a importante tarefa de reparar o esquecimento, de fazê-lo encontrar seu passado, corrigir as lacunas da memória, revisitar o perdido e trazer o que foi silenciado, esquecido e mitigado. É por esse lugar na história que observamos o árduo trabalho que o historiador tem a enfrentar. O sucesso e o desempenho dessa investida caberá ao futuro saber e à socie-dade julgar.

É importante pensarmos qual o ganho que se tem ao defender a causa da preservação? Em primeiro lugar, o país, por sua curta existência, ou pouca idade enquanto nação (pouco mais de 500 anos), se comparado ao Oriente e/ou aos países do velho continente, está ainda na primeira“idade”, com uma peculiaridade: embora em sua tenra idade, convive contraditoriamente em um tempo múltiplo ou “tempo tríbio” (como afirmava Gilberto Freire, 1985), no qual sua trajetória econômica, política e social, é de certa forma uma fusão de vários tempos precocemente, o que transforma nossa experiência enquanto

povo e nação extraordinária cujo desenrolar dos fatos e acontecimentos suge-rem uma multifacetada profusão de vivências e interferências , abstraídas ao longo do processo de formação econômica e social, fruto da fusão dialética de povos, em diferentes estágios culturais de desenvolvimento compondo a base da formação do povo brasileiro. O que significa em termos históricos uma situação atípica, enriquecedora e culturalmente instigante. Sobretudo se pensarmos que aprendemos, exercitamos nossa experiência de vida, por meio de “atalhos”, ou melhor, escolhas que remetem à construção da própria ideia de nação (e consequentemente à ideia que fazemos de nossa cidadania), tendo como base caminhos e soluções alternativas. Nossa práxis, enquanto povo, nação, é focada em ações e práticas alternativas; aqui, tudo se faz “queimando etapas”, num exercício permanente de adaptação – a partir do conhecimento e da experiência alheia – na construção de nossa própria história. O resultado é que nosso fazer se traduz numa síntese de várias experiências, vivenciadas num espaço temporal pequeno. Tal como num filme, projetado de forma ace-lerada, assim são os anos e os fatos de nossa trajetória. A rapidez com que se dá a profusão de acontecimentos que envolvem nossa existência, bem como a absorção das influências externas, nesse processo, faz a nossa experiência histórica única.

Nesse sentido, pensando sobre a Justiça do Trabalho – especialidade re-lativamente nova, surgida em 1946 – e observando os avanços empreendi-dos na noção dos direitos fundamentais ao trabalhador, constatamos que em pouco mais de 47 anos passamos rapidamente da experiência de um estado escravista para um estado de direito que contempla a fixação de uma jornada máxima de trabalho em 8 horas – um entre os diversos preceitos dispostos na CLT (Consolidação das Leis do Trabalho), que é a principal norma le-gislativa brasileira referente ao Direito do trabalho e ao Direito processual do trabalho.2 Se compararmos este percurso à trajetória do trabalhador na Inglaterra, observaremos quão longo foi o processo de exploração a qual foi submetida a classe trabalhadora e de conquista de melhores condições de vida e trabalho. Isto não significa que o processo no Bra-sil foi menos sofrido, apenas que conseguimos criativamente transfor-

2 Criada através do Decreto-Lei nº 5.452, de 1 de maio de 1943 e sancionada pelo então presidente Getúlio Vargas, a CLT unificou toda legislação trabalhista então existente no Brasil e serve até hoje de parâmetro na solução dos conflitos pertinentes ao trabalho.

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mar nossa história, absorvendo aspectos novos, num curto espaço de tempo.

Nessa perspectiva, reforçamos a ideia de preservar os autos findos da Jus-tiça do Trabalho com a percepção de que, como as mudanças em alguns segmentos se dão numa velocidade muito rápida, os processos, as demandas neles contidas, representam um momento específico de nossa história, um olhar diferenciado do judiciário quando emitiu a sentença, influenciado talvez por ideais externos, que logo se diluíram, por visões equivocadas, que foram revistas, por aspectos do direito revisitado e atualizado, formando uma ju-risprudência única a respeito de um fato, num curto espaço de tempo. Tais considerações levam-nos a questionar: como podemos eliminar algo que não conhecemos? Como podemos decidir sobre conteúdos que não foram pro-fundamente analisados? Que critérios referendam o descarte aleatório dos processos judiciais? Qual o tempo que se teve para analisar todos os proces-sos e saber que eles não tinham densidade e logicamente não representavam nada? Essas e outras questões devem constar no cerne dos profissionais que irão avaliar e eliminar os autos findos. Sabendo que, mesmo que não tenham mais valor para a administração, tais processos são matéria de interesse da sociedade, na medida que são documentos públicos e por isso de excepcional interesse para a compreensão de nossa formação, enquanto povo, enquanto nação. E, por conseguinte, para a construção de nossa própria identidade e história.

Marcília Gama – Dra. em História, Especialista em Arquivo/

Coordenadora de Gestão Documental e Memória do TRT-6ª e Profª adjunta do DEHIST-UFRPE.

MOCAMBEIROS, NORDESTINOS E SERINGUEIROS – HISTÓRIAS E MEMÓRIAS

Eurípedes Funes1

Email: [email protected]

No dia 4 de novembro de 2009 estive em Rio Branco – AC, participan-do de um seminário promovido pela Biblioteca da Floresta, sobre “Diálogos Entre Saberes”, onde ouvi duas frases interessantes e instigantes. Uma delas proferida por uma professora indígena, da nação Arara, que disse: “O conhe-cimento científico é muito difícil de conhecer a gente.” A outra foi proferida por uma liderança da nação Ashaninka: “Eu me lembro de histórias de mim.”

Afirmativas que me fizeram pensar: no diálogo que mantemos com aque-les que escolhemos para serem sujeitos de nossas investigações; em nossos métodos e metodologias de abordagens quando procuramos adentrar mun-dos que não nossos; nas escolhas dos narradores, interlocutores, durante a busca da compreensão de um processo histórico. Momentos em que o in-vestigador, uma autoridade, empoderado pelo saber acadêmico, em muitas ocasiões pode se tornar e/ou ser percebido como autoritário, principalmente quando trilhamos os caminhos da história oral.

Frases que me fizeram refletir sobre este evento onde se discute “Cultura e Memória” e, em particular, sobre a temática a ser considerada nesta mesa – teoria e prática da pesquisa: experiências narrativas. O que falar? Narrativas de um pesquisador que tem ancorado seu no olhar na história oral, enquanto conjunto de possibilidades metodológicas? Como juntar experiências de dois segmentos sociais, com os quais tenho mantido diálogos, ambos marcados pela exclusão social – mocambeiros e seringueiros? Como juntar estes dois sujeitos num mesmo texto, numa mesma fala?

1 Professor do Departamento de História e da Pós-Graduação da UFCE.

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Na prática do diálogo comigo mesmo, na busca de uma melhor saída para estas questões, simples, me lembrei do malinês Hampaté Bá, que disse: “Não faz a oralidade nascer a escrita, tanto no decorrer dos séculos como no pró-prio individuo? Os primeiros arquivos ou bibliotecas do mundo foram o cé-rebro dos homens. Antes de colocar seus pensamentos no papel, o escritor ou o estudioso mantém um diálogo secreto consigo mesmo. Antes de escrever um relato o homem recorda os fatos tal como lhe foram narrados ou, no caso de experiência própria, tal como ele mesmo os narra”. (Hampaté Bá, 1982, p. 181-182).

Foi então que me lembrei do Sr. Damião de Sousa, natural da Taquara, hoje um bairro de Maracanaú, na região metropolitana de Fortaleza. Traba-lhador braçal de um mercado de cereais próximo à catedral da Sé, onde nos idos de 1945 fora abordado por um agente recrutador de “soldados da bor-racha” que o convidou para ir para Amazônia. A fim de evitar contrarieda-des, e impedimentos, por parte de sua mãe, Damião simplesmente partiu, deixando para trás a mãe, irmãos, uma companheira e um filho, que nunca mais viu. Sujeito esperto, quando desceu em Belém, na espera de reembarque para Manaus, adquiriu vários produtos facilmente comercializáveis entre os embarcados, como cigarro, sabonete, bombons, cigarro, etc. Na parada em Óbidos, desembarcou para repor seu estoque, e na demora acabou perdendo o barco que partira levando a sua margem de lucros que havia deixado em mão de uma namorada, arranjada durante a viagem. Com ela foram, também, seus documentos pessoais.

Logo a guerra acabaria e Damião, sem lenço e sem documento, para so-breviver ajustou-se com alguns “patrões” para trabalhar nos castanhais do rio Curuá, indo parar no Pacoval, onde o encontrei em 1991, casado com D. Ma-ria da Cruz de Assis, Cruizinha, líder da comunidade quilombola do Pacoval e descendente dos velhos Assis, moradores do mocambo do Inferno, que em 1876 foram presos e levados com mais de uma centena de quilombolas para o presídio de São José, em Belém.

O ano de 1876 é emblemático, prisão dos mocambeiros do Inferno – úni-co momento de êxito do governo provincial sobre os mocambos do Baixo Amazonas e ano do início da grande estiagem que assolaria o sertão nordes-tino, em especial do Ceará, entre 1877 a 1879, empurrando para Amazônia

milhares de desterrados da seca, que na busca de melhores condições de vida, de “enricar”, acabaram por cair nas teias das estradas de seringa, amarrados ao barracão através do sistema de aviamento, vivenciando condições de tra-balhos análogas à escravidão.

Se para os escravos que se embrenhavam nas matas, nos altos dos rios, rompendo com a sua condição de cativo, construindo seus espaços onde ser livre era possível, a floresta era a representação de um paraíso possível, para aqueles retirantes da seca a Amazônia representava o principio da redenção de uma vida sofrida em um inferno calcinante, um paraíso que se revela um inferno verde. Vejamos de perto um pouco da história destes sujeitos que no emaranhado dos rios e das matas foram construindo seus espaços e seus vín-culos com a terra, o sentido de pertença e de territorialidade.

Desde os primeiros passos deste estudo foi preciso perceber o necessá-rio diálogo com diferentes campos do conhecimento, em especial entre a antropologia cultural, a geografia cultural e a história social, cujas fronteiras tornam-se tênues, permitindo aos estudiosos da história circular por territó-rios vizinhos, sem comprometer o olhar, o foco de investigação, a perspectiva de análise e a construção de sua narrativa historiográfica. Há neste sentido um elemento comum, marco de interlocução possível, a noção de cultura.

No entanto, como afirma E. P. Thompson: “não podemos esquecer que cultura é um termo emaranhado, que, ao reunir tantas atividades e atributos num só feixe, pode na verdade confundir ou ocultar distinções que precisam ser feitas. Será necessário desfazer o feixe e examinar com mais cuidado seus componentes: ritos, modos simbólicos, os atributos culturais da hegemonia, a transmissão do costume de geração para geração e o desenvolvimento do costume sob formas historicamente específica das relações sociais e de traba-lho” (Thompson, 1998, p. 22).

Um conceito de cultura que abarque as práticas de resistência diante do poder, resistência que se manifesta tanto na ação política quanto nas formas ocultas e práticas culturais que têm também um forte viés identitário. “O povo aparece como um todo provido de uma cultura comum que o separa das camadas sociais que possuem o poder social e cultural. É importante aqui a ideia de que “os homens fazem a sua própria história”, que os homens não

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são objetos passivos de algumas configurações de si mesmos. Cabe-nos bus-car e analisar as formas simbólicas – palavras, imagens, instituições, modos de comportamentos – com cuja ajuda os homens de qualquer lugar se represen-tam, perante si mesmos e perante aos demais” (Iggs, 1998, p. 85).

Considerando a memória um “porto de partida para navegantes com desejo de vento e profundidade,” (Neves, 2000, p.109) por aí fiz essa “via-gem”, procurando situar, num pri meiro momento, o espaço da pesquisa e as formas pos síveis de abordagem, tomando a memória, os depoimentos e as lem branças como fontes orais que abririam caminhos ao pas sado, revelando fatos e significados até então invisí veis ao historiador. Aspecto que se tornou mais interes sante na medida em que foi possível estabele cer um diálogo entre fontes orais e escritas, de forma a evitar fissuras na montagem desse grande quebra-cabeça.

Através da história oral, consciente da diversidade nas identidades que se analisa, busca-se, e se encontra, não só o que une os sujeitos entre si, suas ex-periências de trabalho, senão também aquilo que os separa e que os diferencia entre si e dos outros (Sandioca, 2004; p. 368).

No diálogo com os narradores a língua vai se soltando, as palavras vão saindo, configurando os elos entre o presente e o passado. Vou conta o que me contaram, o que meu pai contou pro meu pai, o que minha mãe contava, isso se passou assim num sabe, não conto o que não sei, é assim a história. Ali não há uma história avulsa. Mesmo quando há a expressão ‘se lembra de mim’, pois é um lembrar de uma história comunitária, do eu, mas também dos outros. São narrativas carregadas de experiências vividas, ou assimiladas, colando à sua história as histórias de seus anteriores.

Analisando a constituição dos mocambos no Baixo Amazonas, percebe-se que ali o processo de fuga, individual ou coletivo, dos escravos geralmente ocorria em épocas de festas e mais especificamente no pe ríodo de cheias: dezembro a maio. Nesta região as festas, em especial as dos ciclos natalino e junino, coincidem com o tempo de inverno e da castanha. O editorial do Baixo Amazonas, de Santarém, do dia 8-01-1876, afirmava ser “aflitivo e ver-dadeiramente ameaçador em que [condições] ve mos o direito de propriedade neste municí pio, relativamen te aos escravos, [...] levas abandonam seus se-

nhores para se refugiarem nos soberbos quilombos que nos cercam. Todos os dias registram-se muitas fugas de escravos e de vez em quando uma leva de 10, 12, 20 e até 30 escravos [...] como as que se deram nas noites de 28 de dezembro do ano findo e 3 deste mês [...]. De janeiro a maio [período] em que enche o Amazo nas é tempo que os escravos julgam mais apropriado para fugirem. Neste tempo o trânsito, que é todo fluvial, facilita-lhes poderem navegar por atalhos que conhecem ou por onde são conduzidos, sem receio de serem agarrados.”2

Tempo de festa, tempo de cheias, tempo da castanha – era es te o tempo da fuga.

Conhecer o meio ambiente era fundamental para o su cesso das fugas, já que a natureza tornava-se cúmplice natural. No tempo das cheias, capinzais crescem às margens dos la gos, formando tapagens, obstruindo os igarapés que os in terligam entre si e aos rios, dificultando a passagem e ca muflando os “caminhos”. Segundo o mocambeiro Benedito, preso em 1811, que tentou levar consigo alguns companheiros para chegar ao mocambo “tinha que atra-vessar um tabocal, passando por um igarapé e depois de atra vessar gasta-se andando três dias para lá chegar.”3

Segundo Raimundo da Silva Cardoso, Donga, da comunidade Tapagem no Trombetas, “foi depois que eles fugiram dos senho res, que eles foram fazê a aldeia deles lá muito dentro das ca choeiras do Turuna e Ipoana. A primeira foi Maravilha, a se gunda, quando foram atacados, foi no Turuna, daí foram pro Ipoana, lá os homens não chegaram mais.”4

Ao conseguirem romper com a escravidão, fugindo do con trole dos se-nhores, superando as dificuldades e adversida des, os escravos iniciaram uma nova etapa de sua história. “Chegaram lá foram fazê o acampamento deles”; “Fizeram as aldeias”, “Construíram as casas e foram buscá a família”; são frases que os narra-dores sempre repetem ao se referirem ao momento em que os quilombolas

2 Arquivo particular de João Santos. Jornal Baixo Amazonas. Santarém, 08-01-1876.3 Arquivo Público do Estado do Pará (APEP). Corres pondência de Diversos com o Governo, 1804-1846. Auto de Interrogatório do escravo Luiz, pertencente a João Ignácio Rabello, 6-02-1811. Auto de interrogatório realizado em Santarém. Documentos em caixa.4 Raimundo da Silva Cardoso (Donga). Comunidade da Tapagem – rio Trombetas, entrevista realizada em julho de 1993.

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encontraram o espaço ideal para se estabelecer, apontando para o modus viven-di dos mocambos do Baixo Amazonas, marcado pela forte interação com o meio ambiente – floresta, rios e lagos, de onde tiravam, e tiram, o sustento.

Essa relação é sentida até hoje na fala dos mais velhos, como na de Rafael Printz Viana, morador da co munidade da Abui no alto Trombetas, para quem “a floresta é como nós chamamo essa música – nossa mãe cachoeira – assim nós chamamo, também, nossa mãe floresta, nossa mãe porque dela tiramos pode-se dizer de um tudo, desde a saúde [...]. Então quer dizer nossa mãe floresta é vida”.5

São aspectos como o “puxirum”, a facilidade de se conseguir alimentos junto à natureza, permitindo uma “vida tran quila”, que fazem com que no imaginário dos descenden tes, o mocambo pareça uma “terra sem males”, a “cidade maravi lha”. “Lá eles viviam felizes, não tinha quase maldade ne nhuma, senão era festa que eles faziam, aquelas festas de bandei ras, de caixa, de santos [...]. Faziam aque las festas por lá. Era uma cidade que não era lumiada com luz elétrica [...] era fogo de candeia, fogo de fogueira, pelos dias dos santos faziam aquelas fogueiras grandes, alu-miavam o ter reiro. Fa ziam aquelas luminárias de paus aí eles colocavam as can deias de barro, com 4 bicos, naquele mourão, com banha de pirarucu, óleo de castanha, com esses óleos as sim. Aquilo lu miava a noite inteira as festas deles e aquilo era uma mara vilha lá.”6

Mocambos que estão vivos no imaginário de seus descendentes, enquanto tempo de liberdade, de fartura, diante de um hoje marcado por dificuldades so-ciais vivenciadas pelas comunidades negras ribeirinhas, o não respeito aos mais velhos e, mais do que a discriminação racial e o preconceito, a luta pela terra.

Hoje, recuperar esse passado tem um duplo sentido: afirmação de uma identidade e legitimação de uma luta pela titulação da posse da terra. Nesse sentido, as práticas culturais, por serem lugares de memórias, constituem os pilares basilares do ser remanescente, ser mocambeiro e o sentido de perten-ça. Na relação com a terra está outra marca da ancestralidade destes descen-dentes de quilombolas.

Por sua vez, os milhares de retirantes da grande seca que chegaram à flo-resta Amazônica, a partir de 1876, traziam a esperança de liberdade e da far-

5 Rafael Viana Printz. Comunidade do Abui, rio Trombetas, entrevista realizada em junho de 1992.6 Donga, entrevista realizada em julho de 1993.

tura, de encontrar o El Dorado do ouro negro. Pouquíssimos o conseguiram. A maioria viu o sonhado paraíso se desfazer nas brumas que envolvem as madrugadas da mata, revelando, sob o impetrável teto de árvores, o inferno verde que sufoca e oprime. Ali o brabo amansa, como disse o seringueiro Francisco Prata, da serra de Baturité: “eu tive que me domesticar. Para se ganhar dinheiro é preciso sacrifício. Custa muito, porque a vida aqui é muito doida. Tudo que é imaginação ruim persegue a gente nos primeiros tempos. Quem vive no inferno se acostuma com os cães.” (Benchimol, p. 176).

João Pinto de Souza, natural de Canindé, que em 1942 partia pela quarta para os seringais, afirma: “Nós somos mesmo gente teimosa. Não viemos de bonito. Veio tudo pela necessidade. Lá está tudo sem recursos, sem ganho, sem trabalho, a vida está arruinada... Quero mais voltar não. Estou quase dizendo como o outro a bordo: ‘tenho sofrido tanto que seu morrer por essas bandas a minha alma não terá vergonha se voltar para o Ceará’”. (Benchimol, p. 303).

Entre os anos de 1942 a 1945 uma nova leva de nordestinos são “estimula-dos” a ir para a Amazônia, pela seca de 42 e pela necessidade de “mais borracha para a vitória” da pátria, mas que pátria? São os soldados da borracha, os ari-gós, novos brabos a ser amansados, como o Sr. Damião. Homens que, termina-da a guerra, continuaram a cair nas trincheiras da vida, abatidos pelas doenças, pela fome, pela exploração do patrão, pelo abandono do Estado e pela saudade.

Manoel Terto (Galego)7 O que eu senti mais saudade de Alagoas foi de pai, mãe, meus avós, minha família. Ficou tudo lá. Eu deixei minha família até no dia de hoje. Nunca mais voltei. Tenho saudade, muita. Muitos já morreram e foi se embora a saudade.

Não estranhou a comida? Tudo geralmente, tudo eu estranhei. Ainda hoje eu não estou acostumado não. O que mais faz é o paladar. É tudo. Nós lá temos o milho, tem o queijo, come caça, feijão, arroz, a buchada, o pitu e o caranguejo, tudo que é bom, e aqui não tem.

José Tavares Filho8 nasceu em 1922 em Alto Santo, CE. Veio para o Acre em 1942. Fui alistado lá, juntamente com mais 3 irmãos. Foi um doutor, mais duas pessoas num carro, andavam nesse tempo, ou se alistava pra vim pro Acre, pra trabalhar, ou então se ia pra guerra. Então eu me alistei lá.

7 Manoel Terto – morador de Assis Brasil (AC), entrevista realizada em julho de 2008.8 José Tavares Filho – morador de Assis Brasil (AC), entrevista realizada em julho de 2008.

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Por que o senhor preferiu vir pro Acre? Acho que foi uma tolice minha, devia ter ido pra guerra mesmo. Mas graça a Deus tô bem. Nós alistamos lá, 51 rapazes, por que só era rapaz. Mesmo que fosse homem a família num ia nesse meio.

Saiu de Alto Santo, foi para Fortaleza, onde passou um mês, ficou no poso do Passaré.

O que faziam lá em Fortaleza? Nada. Só passava mal. Toda semana dava 15 real pra gente compra cigarro, essas coisas. Direito pra saí, só sai com calça de mescla e uma camisa branca. Eles tinha medo que fugisse né. Aí passamo quando apareceu transporte nós pegamos transporte pro Pará. Pegamos por terra, rodando pela serra grande, até o Maranhão, onde pegamos navio para o Pará. Era o SENTA. Pegamos um trem de carga, pra chegar aonde tinha que pegar o navio pra Manaus.

Em Belém passemos um mês, sem transporte. No tempo de guerra num tinha comboio pros navios ficavam esperando os comboios, até que chegava. Andando a noite inteira, no escuro, num tinha direito de fumar, num vê tocha no navio, que o comandante dizia logo que ia pro porão, e entregava na cidade pra polícia. Até que passasse o perigo, a tal de Salinas. Ai a viajava com mais calma.

Ai quando chegamos em Manaus, foi questão de 4 dias. Ninguém foi na rua não, baldiamos pro navio gaiola.

Vocês sabiam pra onde vinham? Bem a gente vinha pro seringal Netariopeá, do coronel Umbelino, no rio Purus, a dois dias do Boca do Acre.

No navio gaiola, uma viagem vagarosa, daí passamos pra uma chatinha, aí melhorou, aí chegamos no porto aonde nós ia.

No seringal o governo pagava alguma coisa pra vocês, ou era por conta do patrão? Ele dava a despesa de lá pra cá. Rede, roupa, essas coisas, bem tratado, tinha hospital. Agora no seringal, não. Aí já não, era mais duro.

Agora com o direito do patrão dá as estradas abertas, fazê barraca, tudo. Aí tinha duas aviação por mês, por quinzena, faltava nada, não.

Quando foi pra a colocação foi só? Não fui eu mais meus 3 irmãos. Lá levantava a barraca com a madeira da capoeira mesmo, assoalho com madeira redonda roliça, coberta de palha. E aguentamos bem. Os meus irmãos saíram logo, na minha frente pro Ceará, já adoeceram e tal. A doença lá é feridas braba, sezão, bereberé, tifo que as pernas num vale nada, peguei ela ai.

Quando eles voltaram pro Ceará o governou pagou a passagem deles? Não. Eles levavam um dinheirozinho. Eles viviam doentes, mas eu me lembro pra um eu dei 200 real, cruzeiro, sei lá, 200 pro outro e pra outro não dei. Eu fiquei. Eu sempre tive saldo avultado, então eu disse eu não vou não. Vão vocês. Aí foi o tempo que chegou 45, aí a guerra acabou eu fui embora.

Quando cheguei aqui o que mais senti foi saudade de meu povo.

A gente saía, vinha, porque vinha mesmo. A gente não tinha saída pra canto nenhum. Senti o coração da gente fica trespassado, né. Deixa pai, mãe. Mas depois que a gente começou a trabalhá, ficou interessado em volta, fazê alguma coisa e a gente ia esquecendo mais ou menos.

O patrão era de Alto Santo mesmo, o Coronel Umbelino Bezerra. Era ruim pra cabra ruim, que não gostava de trabalho, cabra arruaceiro. Num matava não, mas tinha lá um tronco. Aqui homem que trabalha tem tudo, mas cabra ruim é para aquele tronco que vai, era uma forma de dizê, com 40 lapada de umbigo de boi.

Como foi pra aprender? Quando foi pra levanta barraca, ele mandava gente dele e quando foi pra cortá, que ninguém sabia nada, tudo brabo, ele mandava a pessoa ensinar e em poucos dias a gente pegava o sistema.

Fazia uma barraca longe uma da outra, com 3 horas, e a gente ia acostumando na mata.

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Eles chamavam a gente de arigó. É só uma partezinha aí. Não tinha direito de planta, colocar roçado, vendê só a borracha mesmo. Mas não faltava nada, pirarucu. Mas era comprado no barracão.

Quando dava mais saudade do Ceará?

Anoitecendo. A gente fica ali naquela calma pra dormi, se lembrá dos pais, dos irmãos, dos amigos, também, agora das outras coisas não.

Não tem vontade de voltar pro Ceará?

Agora quase não tenho. O pai faleceu. Tenho 3 irmãos no Ceará [eles eram em 8 irmãos].

Dá sofrimento. Era sofrimento vê do jeito que nós viemos.

O senhor já ouviu cantar aquela música do Luiz Gonzaga. Aquilo é uma coisa penosa, bem tirada. Tudo verdade aquilo. Tudo. O que ele canta ali eu passei. Triste partida.

Quando o pessoal vinha de viagem pra cá, coisa bem tirada. Só um poeta mesmo tira uma coisa daquela. Triste partida. Pois só quando ouvia canta aquilo o coração [coloca a mão sob a camisa e faz gestos das batidas do coração].

É senti mesmo o que ele dizia. Triste partida!!! Aquilo era homem danado, tinha veia poética.

Saudade do sertão, nos versos de um poema que junta dois grandes mestres das letras e da música – Patativa do Assaré e Luiz Gonzaga, que cantam a dor da partida e a esperança da volta.9

Na arte de se tornar seringueiro, o triste deserdado, ou esperançoso, do

9 Sobre estes soldados da borracha, suas vidas na fronteira do Brasil, Peru e Bolívia, ver (LUCENA, BARBOSA, FUNES et alii 2009).

nordeste vai moldando sua vida à nova realidade, de brabo passa a manso, aprende a domar uma outra montaria, a canoa, e as pegadas do rio são marcas do tempo. Sua alma torna-se tão profunda quanto os rios: vivazes, agitados, inquietantes como as águas das superfícies, onde as imagens do macrocosmo refletem no microcosmo das águas, constituindo uma imagem indivisível, um todo único.10 Mas silenciosos, taciturnos, contidos em seus sofrimentos como a profundeza dos rios de águas turvas que cruzam o Acre. Calados quando necessário. Um silêncio que não é a ausência da fala. No interior da selva, constroem seus diálogos e a hora de soltar os gritos.

Ali, no mundo da floresta, onde muitos quilombolas tornaram-se também soldados da borracha, estes dois deserdados vivenciam experiências seme-lhantes. Ambos praticam o extrativismo, presos aos patrões e aos aviadores. Tecem novas relações com o meio ambiente e erguem na floresta os seus espaços, seus territórios e suas identidades de amazônidas – um remanescente de quilombos, outro seringueiro, que juntos aos caboclos, com os quais se confundem e são confundidos, e os índios, outrora inimigos, tornam-se po-vos da floresta, frente ao sulista (paulista) e em especial o capitalista, que tem a terra e a natureza como uma mercadoria, beneficiados pela política desenvol-vimentista dos anos 70, na ditadura militar, que impôs novas formas de luta e enfrentamentos para esses sujeitos, os quais, ainda que de forma separada e com estratégias distintas, enfrentaram e enfrentam o mesmo inimigo – o Estado e o grande capital.

As áreas ocupadas por esses trabalhadores extrativistas, seringais do Acre e castanhais do Pará, foram atingidas diretamente pelas políticas desenvol-vimentistas implementadas pelo governo brasileiro, propugnando um de-senvolvimento para Amazônia e provocando fortes impactos ambientais e tensões sociais. Em princípio dos anos oitenta aumentou consideravelmente, no Acre, a destruição da floresta Amazônica, no mesmo ritmo em que se desenvolvia a atividade pastoril. Este processo começa a atrair a atenção dos movimentos ambientalistas, nacionais e internacionais. Os trabalhadores da floresta se organizam, buscando novas formas de luta, constituindo, no dia a dia, estratégias de resistência frente ao inimigo. Na defesa da floresta estava a

10 OLIVER, Elide V. A Terceira Margem do Rio – fluxo do tempo e paternalismo em Guimarães Rosas. In Revista USP, N.º 49, mar/abr/mai. 2001.

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defesa da vida. A luta pela terra adquire, assim, conotações ecológicas. A ideia do progresso iniciada nos anos setenta passa a ser contestada de forma incisi-va pela sociedade. A partir de determinados discursos, o inferno verde se trans-forma, agora, num paraíso que deve ser preservado. Segundo Chico Mendes:

Nós entendemos, os seringueiros entendem, que a Amazônia não pode se transformar num santuário intocável. Por outro lado, entendemos, também, que há uma necessidade muito urgente de se evitar o desmatamento que está ameaçando a Amazônia e com isto está ameaçando até a vida de todos os povos do planeta (Paula, 2005: 185).

A morte de Chico Mendes não foi em vão. Nascem no Acre as reservas extrativistas, garantindo a milhares de famílias seringueiras o direito de con-tinuar a viver na e da floresta. Todavia, a luta pela Amazônia e a defesa de um desenvolvimento sustentável ainda movem sentimentos, colocam novos desafios e novos enfrentamentos.

No que se refere às comunidades remanescentes de quilombos do rio Trombetas, o impacto desta política governamental se deu tanto pela che-gada dos grandes projetos de mineração, extração de bauxita, quanto pela criação de áreas de proteção ambiental – reserva biológica do Trombetas e a floresta nacional Saraca-Taquera. A implantação desses projetos implicou o cerceamento das comunidades às atividades econômicas que secularmente desenvolviam – o extrativismo, a pequena agricultura e a pesca. Muitas famí-lias foram expulsas de suas terras, várias delas sem nenhum tipo de indeni-zação, e sofreram repressões físicas e psicológicas. Para estes atores sociais, não soava bem a ideia de que, para preservar a natureza, o seu meio ambiente, tornava-se necessária a sua expulsão da terra, do seu espaço de convívio e de trabalho. Novos desafios foram colocados para estas comunidades – a defesa de seu território, constituído por seus ancestrais, os mocambeiros do Trom-betas, gerando uma situação de conflito muito bem expressa na fala de alguns moradores das comunidades negras deste rio.

O Sr. Pedro Viana da Cruz, Pedro Barulho, 70 anos, nascido no Arrozal, em um depoimento, por ocasião do IV Encontro Raízes Negras, realizado na Tapagem em julho de 1992, expressou bem o sentimento das comunida-des do Alto Trombetas que vivenciaram momentos desagradáveis em relação à chegada das políticas governamentais, no tocante ao desenvolvimento e à

preservação do meio ambiente, propugnada para aquela área. Diz ele: “No tempo que me criei, a vida era tranquila, ninguém tinha perseguição, e vivia muito bem, sem companhia hidrelétrica, sem essas outras consequências que está acontecendo agora no meio de nós. Meus pais me contavam certos passados deles que eles viviam. Contavam também de nossos antepassados que eram escravos, isto já passou, ontem, já ficou. Sou vou falar de hoje. Mas a gente vivia uma vida boa, ninguém tinha perseguição nenhuma. Eu estou com 59 anos, depois de eu estar com 40 anos, mais ou menos, começou a aparecer no nosso município esse tipo de exploração, de coisas ruins prá nós. Primeiro chegou a onça que foi a mineração Rio do Norte, depois chegou o tigre, que foi a Cruz Alta (onde era para ser instalada a ALCOA), finalmente chegou, tá quereno chegá o leão, que é o mais brabo, que é a ELETRONORTE, quereno formar essa grande barragem; e ainda tem outro mais forte a cascavel, que foi o IBDF (IBAMA) que chegou no nosso meio.”11

A fala do Sr. Barulho pode ser considerada como uma síntese do senti-mento destes atores sociais frente às políticas públicas impostas pelo Estado nos tempos do milagre econômico, em que o lema para a Amazônia era: “integrar para não entregar”.

Se num primeiro momento as comunidades quilombolas estavam sob a ameaça constante das expedições punitivas, posteriormente, estiveram sob a su-jeição, o controle e arbitrariedades praticadas pelos regatões, aviadores, mesmo “quando patrões bons” e, finalmente, à ação violenta praticada pelos órgãos go-vernamentais, em particular nos anos de 1980. O que leva esses mocambeiros a terem, no tempo dos avós, um tempo de fartura, de bondade e o quilombo o espaço de liberdade. Um sentimento vivo na fala de D. Maria Francisca dos Santos (D. Popó), nascida no Alto Trombetas, e que, por ocasião do IV Encon-tro Raízes Negras, junho de 1992, estava com 81 anos. Diz ela: “O que eu lamento e fico sentida é de ver nossa mesa tomada pelos outros, e nós ficamos olhando, com fome, sem podê comê. Isso eu lamento muito. Que no tempo dos meus avós, que eu me criei, isso aqui tudo era liberto, nós não tinha preocupação: ‘Ah! Não tem comida? Pega um peixe, pega uma tartaruga e nós vamos comê.’ [...] Hoje em dia, nós temos saudade. Se nós pega uma tartaruga, nós temo que comê escondido, senão vamo preso, vamo surrado, aqui dentro de nossa terra. Tenho bastante saudade do tempo de liberdade, tempo que passou.”

11 Sr. Pedro Viana da Cruz, Pedro Barulho, morador da comunidade da Tapagem, no rio Trombetas, entrevista realizada em julho de 1993.

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Libertar a terra tornou-se a representação do direito de ser livre e de pos-se do espaço vivido. Na constituição dos mocambos estava a concretização da liberdade em relação à escravidão e na terra liberta está a concretude das comunidades negras remanescentes dos mocambeiros. Este movimento tem ganhado força substancial através da organização de associações dos quilom-bolas, que têm conseguido o título de posse das terras ocupadas a mais de um século por aqueles que forjaram na luta o direito de ser livre. Como afirma o Sr. Roxinho, morador do Pacoval: “Liberta a terra pra nós trabalhá.” 12

Este sentimento de pertença, de lutar pela posse e titulação definitiva de sua terra, amparada em dispositivos legais, como artigo 68 das Disposições Constitucionais Transitórias, da Constituição Federal, de 1988, e o artigo 322, da Constituição do Estado do Pará, mas, sobretudo, na ancestralidade destas comunidades, na historicidade de suas lutas frente às diferentes formas de re-pressão, em particular aquela praticadas pelo Estado nas décadas de 1980, le-vou estas comunidades a se organizar na luta por seus direitos enquanto des-cendentes de quilombolas, de ex-escravos, mas sobretudo enquanto cidadãos.

Como resultado desta luta, em 1995 foi concedido o primeiro título de posse de terra a uma comunidade quilombola, no Brasil, a de Boa vista, no rio Trombetas. Em 1996 foi a vez das comunidades negras do Pacoval e Água Fria receberem os títulos. Hoje naquela região somam-se 10 títulos de posse coletiva da terra concedidos, contemplando as reivindicações de centenas de comunidades afro-amazônidas, descendentes dos quilombos que ali se for-maram no século XIX.

Todavia, outros desafios se colocam, há outros direitos a serem conquista-dos, e novos confrontos se delineiam com a chegada de novos sujeitos àque-les espaços: os capitalistas do sul, que vivem da especulação fundiária e do uso desordenado das florestas. Há em processo um grande desmatamento para venda, às vezes ilegal da madeira, implementação da pecuária em larga escala, plantio da soja e em menor escala de arroz, principalmente na região de Santarém e Alenquer, cultivos que até então não faziam parte daquele ce-nário, hoje brutalmente transformado pelo uso indevido das áreas de várzeas e os grandes desmatamentos e o consequente encolhimento das terras dos

12 Sr. Roxinho, morador da comunidade do Pacoval, no rio Curuá, entrevista realizada em junho de 1992.

mocambeiros que ali vivem há mais de um século. Um processo de ocupação desordenado e desastroso, tanto para as populações tradicionais quanto para a natureza, mas que retrata bem a lógica destes novos migrantes em relação ao meio ambiente, ao uso e valor da terra, amparados pelas políticas de in-centivos governamentais em todas as esferas, como fica claro nesta matéria veiculada no Jornal do Brasil, de 21/10/2004, página 19, da qual transcrevo alguns trechos:

‘Ouro Verde’ muda a face do Pará – oeste do estado é a nova frontei-ra dos produtores de soja. Autoridades temem expansão desordenada.

“Caetano Vendruscolo, há um ano na região, diz que Santarém é a Cuiabá dos anos 80. Só que aqui tem tudo para as lavouras avançarem mais rápido ainda – ressalta, sem dó da mata. Onde é plano, temos que derrubar tudo. A floresta em pé não presta pra nada.”

“Eldorado para novos negócios.” De acordo com o promotor geral da República no Pará, Felício Pontes, “o oeste do Pará começa a ter os mesmos problemas registrados no sul do Estado, como concentração fundiária, grila-gem de terra e desaparecimento se trabalhadores rurais. Para ele é preciso dis-cutir o tipo de desenvolvimento que se quer para a Amazônia. A monocultura da soja avança a passos largos sobre a região. Santarém, às margens do Rio Tapajós, é o centro da produção. Mas outros municípios do entorno, como Belterra, estão atraindo os plantadores, que atravessaram o Rio Amazonas e estão em Alenquer, Monte Alegre, Prainha e Juruti. E também se instalaram às margens das rodovias Santarém-Cuiabá (BR 163), Transamazônica (BR 230) e Santarém-Curuá-Uma (PA-370).”

Um dos fatores que favorece este processo é “o baixo custo da terra. De acordo com a Secretaria de Agricultura de Santarém, há cinco anos o hectare era vendido a R$ 25,00. Com a chegada dos “gaúchos”, os plantadores de soja, o preço supera R$ 1 mil. Outro atrativo é a instalação, pela Cargil Agrí-cola, de um terminal graneleiro em Santarém e, por fim, a possibilidade da pavimentação da BR 153.”

As restrições ao uso das várzeas e das terras de serra fazem com que as comunidades negras, já atingidas por este processo, se sintam “espremidas”,

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com um encolhimento de suas terras. Uma situação que tem se agravado pela dificuldade no uso comum do meio ambiente, em decorrência do cerco das águas e da privatização de açaizais e de outros bens naturais, mas, também, pela quebra da lógica do tempo de trabalho e da forma de lidar e vivenciar os seus espaços.

São momentos em que se confrontam duas concepções de valor da terra: terra de trabalho, sentimento de ‘nosso’, versus terra de negócio, especulação fundiária, implicando novas formas de organização e de enfrentamento por aqueles que se sentem ameaçados pelos “de fora”. Momentos em que se afir-ma a identidade negra, quilombola, afro-amazônida, frente ao outro, que os vê com olhares de estranhamentos.

Terras que simbolizam o direito de ser livre. Terra nutridora, raiz, bem ex-pressa nas fala de D. Maria, moradora da comunidade quilombola do Silêncio, em Óbidos, que traz vivas as prédicas de sua avó Ana, a “chefe lá da cabe-ceira”, que disse: “Que não venha mais o terror que minha avó contava, que passava. Ela dizia: Deus livre minha filha, olha nós comemo farinha de milho, comemo farinha de suruí, vocês não comeram, nós comemo aquela farinha fininha que vinha, chamamo farinha suruí, que era igual açúcar fininha, nós comemo. Nós ganhamo pirão pra 10 pessoas comê, colocava aquele caldo de peixe, comia um pedaço de peixe, quando era pra outro cadê, não tinha mais, era só aquele caldo sujo no prato. Já a gente bibia aquele caldo. Por isso, eu digo vamo ismerá em nosso trabalho, fazê nossa roça, que isso é o pão de cada dia que Deus deixo. Porque quando ele foi pro céu, ele dissera: plante prego e nasce ouro. Porque de fato se você corta um pedaço de maniva, desse tamanho, sai aquele leite, você cobre com aquela terra, aquele leite vai espalhando,vai espalhando, vem a chuva, olha aquele fiapo, daquele fiapo, vai engrossando a raiz, nasce o ouro que ele deixou.”13

Da terra nasce o ouro, mas para plantar é preciso não perdê-la.

São estas lutas que nos levam a entender que a percepção identitária des-tes grupos se dá a partir dos próprios grupos, na busca de suas raízes, dos “troncos velhos”, dos quais são os galhos, os ramos. Ramos impregnados de historicidade, de práticas culturais, de sentimentos e de uma relação com a terra, que lhes permitem se perceberem, mocambeiros, seringueiros, Povos

13 Dona Maria Ribeiro Nazaré, moradora na comunidade Silêncio, região dos lagos em Óbidos, entrevista realizada em julho de 1998.

da Floresta. Vinculado a este sentir descendente está o sentido de liberdade e o direito de ter a posse da terra. Na busca das raízes está a afirmação de suas identidades e de pertenças ao território, no qual estão fincadas.

Todavia, para esses sujeitos, afirmação de suas fronteiras étnicas e terri-toriais, passa por desafios novos e novos enfrentamentos se colocam. Pois assim, como o tempo não para, o circulo não se fecha, a história não tem fim. É assim a História.

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UMA TRAJETÓRIA: FORMAÇÃO, PESQUISA E NARRATIVAS

Prof. Dr. Antonio Fernando Guerreiro de Freitas1

Email: [email protected]

No início a história encontrava-se distante, apesar de ter sido sempre apreciada, pelos seus temas, problemas e curiosidades, que nos lançavam ao encontro do passado. Não que os livros didáticos fossem atraentes. Longe disso. Fatos e mais fatos, em geral desconectados, dispostos entre fotografias e imagens, que representavam a face dirigente, alguns tidos como heróis.

A falta de experiência e a ausência de clareza do que desejava para o fu-turo colocaram o jovem de 17 anos dentro de uma Faculdade de Medicina. Três longos anos foram suficientes para retirá-lo daquele local e lançá-lo no mundo das humanidades, no interior da qual a opção escolhida seria o estudo da história. Que troca! Nos anos sessenta, deixar a carreira de médico pela de professor de história, pois essa era a visão que se tinha quanto ao destino dos que ingressavam nas faculdades de filosofia para estudar história, era incom-preensível para a maioria das pessoas. Entre desequilibrado e sonhador quase nada faltou.

A formação realizada nessas faculdades certamente reforçava essa visão. A grande maioria dos professores tinha se graduado nas primeiras turmas de licenciados e carregava o peso, ainda forte, de uma visão positivista da História. O fato sempre em primeiro lugar, nada podia ser dito ou escrito sem sustentação documental. Tinha-se a pretensão de encontrar e divulgar a verdade. Uma minoria divergente, vinda do exterior ou que por lá tinha passa-do, não era muito considerada. Apesar de não ser tida como herege, era vista com desconfiança, como espécie de inventores, propagadores de novidades de fins duvidosos.

1 Professor do Departamento de História e da Pós-Graduação da Universidade Federal da Bahia

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Poucos frequentavam arquivos e um número ainda menor escrevia. Era até compreensível, pois salvo os livros didáticos, as editoras não davam im-portância à produção historiográfica. As narrativas cansavam pela insistência em divulgar o fato histórico, como se ele sozinho carregasse todas as expli-cações possíveis. Era pecado mortal identificar o dedo ou o pensamento do autor, já que qualquer mergulho subjetivo não era aceito, sequer discutido.

Numa conjuntura política marcada por uma ditadura, é claro que toda novidade era vista com desconfiança. Mas, para os jovens, era só um desafio a mais. Os grupos de estudos, o convite para trabalhar com professores (os minoritários) como auxiliares de pesquisa, os seminários semanais com visitas a arquivos nos aproximavam de um outro mundo, tão importante quanto a educação universitária formal. Através dele, chegávamos, inicialmente com alguma desconfiança, mas, depois, com toda garra, ao universo das fontes e da documentação seriada e suas exigências, aos conceitos de estrutura e longa duração, às exigências e desafios teóricos do materialismo histórico, das ide-ologias, do quantitativismo, quase nos fazendo sentir dentro de uma sala de aula francesa, dirigidos por algum formulador dos Annales.

Na licenciatura só escrevíamos trabalhos escolares, mas já demonstráva-mos preocupação em fazer sentir ao leitor que tínhamos uma vida paralela, que tentávamos aprender além dos bancos da universidade. Lembro-me de uma rica experiência: escrever um relatório de pesquisa sobre a história da arte na Bahia nos séculos XIX e XX. Da mesma lavra: transformar os textos de avaliação da disciplina “Filosofia da História” em instrumento de provo-cação a um professor considerado tomista e agostiniano. Bons tempos, sem dúvida.

Mas a chance de fazer chegou mais cedo do que pensado. Antes mesmo de terminar o curso já estava contratado profissionalmente para, juntamente com outros pesquisadores, todos mais experientes e reconhecidos, escrever a história da região cacaueira da Bahia. Imprevistos e projetos pessoais fizeram com que a responsabilidade final terminasse apenas nas mãos de dois, sendo um deles, naquela ocasião, um recém-formado. Foi um desafio enorme, mas terminou por criar uma identidade com aquele objeto, que perpassou duas pós-graduações, a viagem pelo imaginário literário, além do gosto pela histó-ria oral, momentos que serão detalhados mais adiante.

Foi um trabalho sob encomenda de um órgão público, o que trouxe vários ensinamentos, o maior deles referente aos limites dados para a narrativa e pu-blicação, das pesquisas financiadas por entidades públicas e privadas que não sejam as agências de fomento à ciência. A narrativa permanecia presa, não se soltava. Privilegiava-se a exploração dos números, via dados econômicos, como se eles garantissem isenção e reforçassem no leitor o sentimento de estar diante de uma escrita séria, imparcial, carregada de certezas. Em outro sentido, o limite era dado pela preocupação de como tratar o contratante, que, afinal, também já fazia parte da história. Essa última preocupação tinha toda procedência e o futuro evidenciaria: alguns anos mais tarde, aquela instituição proibiria a publicação de um trabalho desses dois autores.

Passados os anos, percebe-se claramente que a inexperiência alimentava os procedimentos adotados. Estávamos diante de um objeto rico, de temática variada, mas nos deixamos diminuir diante dos desafios postos pelo desco-nhecido. Foi uma vivência contraditória. Por um lado, era voz comum consi-derar quase como um privilégio ter uma oportunidade profissional antes de concluir a licenciatura; por outro, retirava a oportunidade de exercitar uma construção narrativa crítica, engajada, tão admirada e solicitada naqueles tem-pos. Mas foi uma experiência admirável pela variedade de fontes, pela riqueza das leituras dos documentos, enfim era o prazer da novidade, do ter a chance de dizer para si mesmo: eu sou capaz!

Como já foi dito acima, a variedade temática era enorme e dela resultariam livros, artigos e comunicações, o que criaria para o autor uma identidade de especialista (tão jovem) em alguma coisa. Pela primeira vez, chegava a sensa-ção de ser dono, sentir o gostinho de inovar, explorar o processo narrativo, perguntar sobre o gosto dos leitores potenciais, fugir a algumas regras consa-gradas, a maioria delas de inspiração no fato, no evento.

Praticamente no decorrer de um ano, três caminhos se abririam: a docên-cia universitária, o curso de pós-graduação (mestrado) e um emprego público no estado da Bahia. A sorte continuava no caminho, pois em todos houve a oportunidade de trabalhar com a pesquisa histórica e com o ensino de maté-rias ligadas ao Brasil e à Bahia.

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A primeira, que acabou de completar 33 anos, continua sendo a maior, entre todas, das experiências. É um aprendizado constante, o convívio com diferentes gerações, seus problemas, anseios e desejos, o acompanhamento, as orientações e avaliações, os estímulos e críticas, enfim um ambiente de permanente troca, um gostoso vai e vem. Mas não é sobre esse assunto a demanda posta.

O segundo, no caso o curso de mestrado, forneceu a primeira real impres-são de propriedade acadêmica. Do projeto à escrita da dissertação. A escolha do tema – não foi difícil no universo cacaueiro –, a construção da problemáti-ca (começava a virar moda e ser cobrada), a pesquisa em si, atividade que me fazia sentir ainda mais dono, pois sabia eu que pouquíssimos encontrariam o conteúdo da documentação concernente. Meu desafio era uma novidade na historiografia local até então: a formação da burguesia cacaueira baiana, classe social responsável pela produção da maior riqueza agrícola do estado, ao longo do século XX.

Sentia-me à vontade com meu tema, apesar de ter cometido alguns desli-zes ou excessos imperdoáveis. O problema advinha da impressão de que sabia muito e tinha que contar tudo. Com isso abandonei um valor fundante da narrativa historiográfica: a síntese. Até um capítulo apareceu além da conta. A dissertação, apesar da referência que se tornaria por ser uma novidade, tem uma narrativa demasiadamente vinculada à documentação, com reflexões su-márias do autor, longas séries quantitativas, perfeitamente dispensáveis diante do já publicado. O texto tem também passagens que lembram um libelo de denúncias, mais próximo do cotidiano dos advogados que dos historiadores modernos. Quando anos mais tarde, relia os chamados romances regionais de Jorge Amado, pensava que ali poderia estar a narrativa, pelo menos mais atraente, da história social do cacau da Bahia.

A terceira oportunidade – o emprego público – criou uma chance de ex-plorar a interdisciplinaridade, principalmente em razão da presença de inúme-ros profissionais, das mais variadas formações, que constituíam o ambiente de trabalho. A prioridade era fazer o planejamento agrícola do estado e a história entrava como conhecimento (mais ou menos valioso) a ser considerado.

Foi um longo aprendizado, que descortinou uma Bahia profunda, distante

dos canaviais do Recôncavo e das atrações da capital. Não era tarefa fácil para um historiador, diante dos critérios, prazos e demandas do setor pú-blico. Voltávamos às limitações das narrativas oficiais, a história vista (pelo menos por alguns) como um adereço, espécie de lustro introdutório para os problemas que deveriam ser enfrentados e, se possível, resolvidos. Assim, ficávamos presos ao que se denominava linguagem técnica, ou seja, neutra, isenta. Buscavam-se respostas para a realidade de determinada região, mas sem a permissão para muitos alongamentos, para um todo, como seria o caso do estado da Bahia ou mesmo do Brasil. Os temas eram postos – estrutura fundiária, comercialização de alimentos, intervenção do Estado, etc. – e tanto pesquisa quanto narrativa deveriam estar circunscritos ao mesmo, dentro de determinado tempo histórico e com espaço de relato limitado.

Apesar das dificuldades, foi um grande aprendizado. Fontes e séries do-cumentais foram descobertas e viriam, posteriormente, a ser exploradas. Um conjunto de relações apareceu, novas portas se abriram, inclusive de organis-mos financeiros estrangeiros, contratos de consultoria foram firmados. Esses últimos conduziram o autor ao campo da história oral.

A documentação escrita de duas áreas selecionadas do sertão da Bahia não parecia substantiva e a aposta, em 1982, foi caminhar com o apoio da memória de depoentes muito especiais. Para a época uma ousadia, mas que significou muito: a narrativa começou a ficar mais livre, menos pesada, mais fácil de compreender. O dever nos impunha superar preconceitos, talvez sal-tar etapas. De novo fomos aprender, fazendo.

A segurança veio pouco a pouco. A escrita e a fala se tocavam, diziam muito de uma mesma realidade, estavam referidas a uma dinâmica social vi-vida pelos mesmos sujeitos. A memória dos depoentes recordava inúmeros registros encontrados na documentação escrita. Mas, uma grande diferença chamava atenção: com a primeira dialogávamos, tínhamos oportunidade de esclarecer dúvidas, de conferir informações já obtidas, mas que não eram totalmente claras.

A impressão que se tinha então era que estava na hora de buscar o douto-ramento. Ao contrário do que ocorre nos dias atuais, há vinte anos passados, essa titulação estava reservada prioritariamente aos maduros, raramente aos

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noviços. A oportunidade de estudar numa universidade estrangeira colocava muitos desafios, dos pessoais aos profissionais. Talvez, o maior de todos tenha sido posto pelo próprio autor: estudar a história de duas regiões baianas no período republicano muito longe de casa, muitos quilômetros no além-mar.

A intenção era clara: não jogar fora a experiência acumulada na pesquisa histórica sobre o cacau e duas áreas sertanejas. Teria chegado a hora de se dei-xar levar pelo desafio da síntese? Ou, então, realizar uma análise comparativa dentro de um mesmo tempo histórico? Acredito que não se chegou a uma coisa nem outra, embora tenhamos nos aproximado mais da segunda alterna-tiva. Quanto à narrativa, encontramos as limitações formais de um trabalho de tese e as regras ainda muito rigorosas sobre o que e como dizer. Ir ou não além da documentação, cujo conjunto era por si só monumental.

A autonomia e a liberdade alcançadas com o uso das fontes orais não tiveram espaço, naquele momento. Essas últimas deviam ser consideradas enquanto produtoras de informações complementares, aquelas que não car-regassem algum peso substantivo, jamais para evidências consideradas funda-mentais para a compreensão do objeto. Na maior parte dos dois volumes da tese, o leitor encontrará uma narrativa limitada pela força numérica da história econômica, que terminou por contaminar, inclusive, as abordagens claramen-te de inspiração social, política ou cultural. No entanto, o capítulo inicial trazia uma novidade, que foi incorporada a partir de então: o uso da literatura na elaboração do trabalho historiográfico.

Muitas vezes na busca de solução de problemas, descobrimos caminhos inspiradores. Como apresentar aos examinadores estrangeiros duas regiões do interior da Bahia (e nenhuma delas era o Recôncavo açucareiro), das quais, se tanto, poucos tinham ouvido falar. Autor e orientador foram encontrar, no romance regional de Jorge Amado e Wilson Lins, a alternativa que se mos-trou, ao final, acertada e convincente, diante dos comentários emitidos. Vinte anos depois, vejo uma tese composta de duas partes distintas, percebíveis por qualquer leitor pela própria narrativa. O contar impregnado de economia de seis capítulos e um sozinho, por sinal o primeiro, leve, fluido, cheio de arma-dilhas (casos, vivências, cotidianos, imaginários, etc.), que atraíam e ganhavam o leitor.

De novo, o gosto claro da opção acertada, uma segunda libertação encon-trada na narrativa inspirada na literatura. Escrever, contar, sem uma preocu-pação direta com o que diziam as fontes documentais. Um personagem, uma passagem qualquer, que fosse festa ou enterro, um comício, o recitar de uma poesia, permitia a construção de expressões escritas representativas de uma época, de uma sociedade, de uma região, estado ou nação.

A vida profissional seguiu nas duas décadas seguintes marcada por esse aprendizado, o que repercutiu intensamente no ensino, na pesquisa, nas orientações, publicações e debates. A tese produziu sucessivos filhotes, todos eles inspirados no original, mas com outra autonomia narrativa. Linguagem, expressões, referências e citações foram reescritas, na busca de leitores não examinadores. Afinal, vale a pena perguntar, alguém encontra prazer na lei-tura da maioria das teses? Cumpre-se um ritual, acatam-se as regras, mas se as editoras publicassem as teses como elas nascem, viveríamos uma profunda crise de divulgação do trabalho historiográfico, no Brasil e no mundo.

Nos últimos anos, partimos ao encontro do trabalho com a memória. Acervos institucionais foram criados e organizados em função da necessidade de identificação, guarda e conservação. E as publicações realizadas registram dois momentos especiais, porém distintos no resultado para o público.

O primeiro, a história de vida de um tabelião, cuja memória era explorada dia-riamente, de colegiais fardados à mídia internacional. Era impressionante a aten-ção e interesse que dedicava a todos, apesar de ouvir quase sempre as mesmas questões, para as quais não podia, logicamente, variar as respostas. Resolvemos transformar em livro, uma longa conversa entre ele e o historiador, cujo resultado aproxima-se mais das reportagens de fundo, publicadas por revistas e jornais de circulação nacional, só que com mais de trezentas páginas. A preocupação nar-rativa foi de informar, preservar um arquivo vivo, o que se revelou providencial, por motivo do falecimento da testemunha, dois anos após o lançamento do livro.

O segundo, tornado público no corrente ano, constrói a trajetória de vida de uma baiana centenária, cidadã líder e admirada em todo país e até no ex-terior, também mãe de artistas famosos e muito lúcida, apesar dos cem anos de vida. Diferentemente da anterior, a obra, dividida em sete partes, registra a presença viva da depoente, mas também do historiador.

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A primeira conta sua história de uma forma coloquial, preservando-se o máximo possível o depoimento original, as expressões, prioridades, interrup-ções, risos e exclamações. Ao segundo coube contextualizar, contar ao leitor sobre os diferentes espaços e suas transformações ao longo de um século. Duas narrativas, enfim, que se complementam, se encontram ao falar de um mesmo tempo histórico: a primeira pelo que pode guardar, o segundo pelo que a bibliografia divulgou.

A experiência de narrar, contar, sem dúvida é um aprendizado constante. Por ela passa desde a opção do autor até um conjunto não exclusivamente historiográfico de discussões de ordem teórica e metodológica. O auxílio e exemplos de outros campos do conhecimento nos ajudam, e às vezes até nos consolam. Por mais que reclamemos, e esse é um direito ao qual não devemos renunciar, é inegável o avanço da divulgação do conhecimento historiográfi-co, e uma das explicações para o sucesso são as narrativas dos autores.

Títulos, capas, ilustrações e material gráfico são importantes, porém o en-canto maior vem da forma como se conta. Redescobrimos, sem necessaria-mente voltar aos gregos, que narrar pode ser uma atividade prazerosa, tanto para os que escrevem, como para os que leem. Guerras, tragédias, crimes passionais, seca ou fome podem ser sentidos e apreciados tanto quanto a boa e farta mesa, as correspondências de amor, as festas ou algum dos inúmeros “barracos” de famílias poderosas ou anônimas.

Para os que já experimentaram (e viveram), uma felicidade em dobro: o ato de fazer e o de poder transmitir, ajudar e ensinar a fazer aos que encon-tram dificuldade ou aos que desejam descobrir como aproximar os contem-porâneos dos segredos e mistérios, das dúvidas e certezas escondidos nas clareiras e brumas do passado.

MEMÓRIA E PATRIMÔNIO NO MOVIMENTO NEGRO PERNAMBUCANO.

Isabel Cristina Martins Guillen1

Email: [email protected]

No início dos anos setenta, a Noite dos Tambores Silenciosos, criada pelo jornalista e militante negro Paulo Viana, era uma das únicas manifestações em que a cultura afrodescendente conseguia alcançar visibilidade na cena cul-tural recifense. Neste evento, realizado sempre na segunda-feira de carnaval, um grupo teatral encenava o Lamento Negro, de autoria do próprio Viana, enquanto grupos de maracatu se apresentavam em frente à igreja de Nossa Senhora do Terço, no pátio de mesmo nome.

Quem se dedicar a ler os jornais entre os anos de 1970 a 2000, no período carnavalesco, constatará que esta cerimônia passou por profundas transfor-mações. Se nos anos setenta encontramos com facilidade reportagens narran-do as dificuldades em se realizar o evento, seja pela falta de apoio governa-mental, seja pela exiguidade de grupos de maracatu que se apresentavam, ou mesmo pela falta de público, no início do século XXI a Noite dos Tambores Silenciosos já tinha se tornado uma referência obrigatória sobre as “tradições africanas” ou afro-pernambucanas.

Como explicar esse processo? O que possibilitou aos maracatus alçarem a cena cultural como símbolo da pernambucanidade, se também no início dos anos 1960 se profetizava seu rápido desaparecimento? Não obstante esse prognóstico, essa morte anunciada, existem hoje na cidade mais de vinte gru-pos de maracatu. Como explicar essa revitalização cultural? A historiografia contemporânea sobre os maracatus e a cena cultural recifense tem atribuído ao movimento mangue grande parte da responsabilidade pelo crescente su-

1 Professora do Departamento e da Pós-Graduação em História da UFPE.

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cesso dos maracatus, não apenas na cidade, consubstanciado pelo show de abertura do carnaval conduzido pelo músico Naná Vasconcelos e um número sempre maior de maracatus, mas também pelo surgimento de grupos percus-sivos de maracatu em várias outras cidades do Brasil e do mundo, a exemplo de São Paulo e Rio de Janeiro, Nova York ou Londres. Eu mesma já escrevi a respeito da importância de Chico Science e Nação Zumbi que, com suas an-tenas fincadas no mangue espalharam a batida do maracatu por todo o globo. Também já discuti sobre a importância crescente dos grupos percussivos e grupos parafolclóricos, como o Maracatu Nação Pernambuco, para que uma manifestação considerada sinônimo de pobreza e marginalidade fosse aceita por grande parte dos jovens de classe média do Recife. Hoje, ser recifense, ser pernambucano, como afirmou Katarina Real, é sentir o maracatu.

Não obstante reconhecer a importância da dinâmica da cena cultural contemporânea para o sucesso dos maracatus, seu crescente processo de es-petacularização e aceitação, alguma coisa nessa explicação me deixava pro-fundamente insatisfeita, pois retirava dos maracatuzeiros todo o poder de ar-ticulação e atribuía a uma conjuntura cultural a responsabilidade pelo sucesso dos mesmos. Foi para investigar, portanto, a ação dos próprios maracatuzei-ros e outras manifestações culturais afrodescendentes ou negras, como quei-ram, que desenvolvemos o projeto Ritmos, cores e gestos da negritude pernambucana. Memória e História (1970-1990), financiado pelo FUNCULTURA.

O projeto tinha como foco a memória e a história dos movimentos negros em Pernambuco, bem como as relações construídas por seus militantes com a cultura negra nas décadas de 1970-1990. O propósito foi, a partir de fontes jornalísticas e entrevistas com lideranças masculinas e femininas dos movi-mentos negros e movimentos culturais afrodescendentes em Pernambuco, contribuir para colocar em circulação outra história, memória ou olhar sobre a cultura que se fazia na cidade, o viver dos negros e das lutas sociais trava-das na época. Trata-se de um período significativo, de consolidação de uma identidade negra, de um modo de ser negro, consubstanciado, sobretudo, na denúncia da existência do racismo e da ideologia da democracia racial. Ivaldo Lima, em seu artigo Negro, mostra sua cara! Movimento negro em Pernambuco e suas expressões culturais, enfatizou a ausência de estudos acadêmicos sobre o movi-mento negro pernambucano, não só localmente mas sobretudo nacionalmen-

te, como se neste estado nunca tivesse havido movimento negro organizado. Ao apontar para as razões que explicariam essa ausência, Lima destaca que a ideologia da democracia racial ainda se faz presente cotidianamente, e os estudos acadêmicos não poderiam deixar de refletir estas questões políticas.2

A Noite dos Tambores Silenciosos não é mais o único acontecimento a tornar visível a rica cultura produzida pelos negros e negras no Recife. A Terça Negra, evento organizado pelo Movimento Negro Unificado (MNU) e com apoio da prefeitura municipal, toda semana propaga no Pátio de São Pedro diversos grupos culturais, de maracatus a afoxés, de samba reggae ao coco. Hoje, mais de trinta grupos de afoxés se apresentam ao longo do ano na Terça Negra, com público garantido toda semana. Assim sendo, suspeitá-vamos que a legitimidade que a cultura negra alcançou nos espaços culturais recifenses não se fez de uma hora para outra, e foi palco de intensas disputas politicoculturais.

Práticas culturais (simbólicas) estão no centro desta luta política. A cul-tura negra tem sido muitas vezes reificada, apresentada como um repertório inerte de tradições, como se não estivesse enraizada em processos culturais dinâmicos. Por outro lado, essa mesma cultura tem sido apresentada pelos movimentos negros como espaço de luta política em que significados domi-nantes são solapados, e em que novos significados emergem, a partir desta luta, com outros valores. Pensar a cultura negra é acima de tudo estar atento a estas questões, a esse fluxo e refluxo da luta política, muitas vezes invizibili-zada, não perceptível tanto para aqueles que a produzem como para aqueles que a consomem. E não é assim que se faz história, como campo aberto de possibilidades? É nesse sentido que este projeto se propôs a pensar a história de diversas manifestações, como maracatu-nação, afoxés e grupos de teatro na cidade do Recife, durante as décadas de 1970 a 1990, imersos numa com-plexa luta política para estabelecer o poder de significar as práticas culturais afrodescendentes. Defendemos a tese de que o movimento negro provocou um deslocamento nesse campo, possibilitando que práticas reificadas como tradição ganhassem novos sentidos, que fossem apreensíveis em sua dinâmica

2 LIMA, Ivaldo Marciano de França. Negro, mostra sua cara! Movimento negro em Pernambuco e suas expressões culturais. In: GUILLEN, Isabel Cristina Martins; GRILLO, Maria Angela de Faria. Cultura, cidadania e violência. VII Encontro Estadual de História da ANPUH de Pernambuco. Recife, Ed. UFPE, 2009, p. 157-176.

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cultural e em seu campo político. Da mesma forma, foi capaz de criar e/ou ressignificar práticas culturais “estrangeiras” ao estado de Pernambuco, sem que isso significasse perda de identidade ou subalternidade cultural. Referi-mo-nos principalmente aos afoxés, considerados por muito tempo como ma-nifestações baianas e, portanto, intrusões no universo cultural pernambucano.

Nesse sentido, pensar a história das diversas manifestações culturais de negros e negras, como o maracatu-nação e os afoxés, é estar atento à com-plexidade das relações que estas manifestações estabelecem com os poderes públicos que normatizam o carnaval e o transforma em objeto de turismo, os folcloristas e intelectuais que promovem a “defesa” da cultura popular contra suas descaracterizações, e a indústria cultural que promove sua espetaculari-zação. No entanto, esse processo não pode ser pensado sem se considerar a própria história dos grupos culturais, seus integrantes, e suas relações com as comunidades de negros e negras, bem como com o poder público. Este é o período em que assistimos a consolidação e legitimação de diversos movi-mentos negros que colocaram em pauta não só a luta contra a discriminação racial, mas também a negritude, em que as manifestações culturais exerceram papel central na formação de uma identidade negra.

O objetivo mais imediato do projeto foi registrar a memória de homens e mulheres negras que, durante as décadas de 1970 a 1990, militaram nos movi-mentos negros organizados em Pernambuco, bem como participaram e fize-ram diversas manifestações culturais, a exemplo de maracatus, afoxés, grupos teatrais, dentre outros. Dessa forma, objetivava-se produzir uma importante documentação acerca da história da cultura afrodescendente, suprindo uma lacuna existente na historiografia pernambucana, e ao mesmo tempo contri-buir para se reconstituir a polifonia existente na cena cultural local.

Essa polifonia em torno da cultura afrodescendente será a responsável para que, no jogo de identidades, maracatus e afoxés possam ser símbolo da africanidade sem aparentes conflitos. Um estudo em tal direção é de suma importância, tanto do ponto de vista acadêmico, devido à exiguidade de estu-dos sobre a cultura afrodescendente (e os maracatus em particular) no Recife, notadamente no período em questão, quanto de se produzir uma memória que dê visibilidade à diversidade de experiências culturais. O pouco que se escreveu sobre maracatus, afoxés e a cultura afrodescendente, salvo raras ex-

ceções, está balizado por um saber consagrado, em que prevalece uma pers-pectiva folclorizante, perpassado por questões ideológicas, no qual o processo histórico é naturalizado. O projeto apresentado se insere portanto numa pers-pectiva que visa apontar a necessidade de incorporar ao debate historiográfico pernambucano a cultura afrodescendente e seus sujeitos, não com o objetivo de acentuar a participação cultural, mas sim de discutir essas práticas em seu sentido político e identitário, como criação de possibilidades para a vivência de uma cidadania.

Identidade Negra, história, memória e patrimônio.3

É inquestionável que o patrimônio imaterial, ou intangível, tem estado em evidência na contemporaneidade. Alicerçado em uma concepção antropoló-gica de cultura, ele é também o resultado de um longo e complexo debate, tanto nacional quanto internacional, acerca da noção de patrimônio, e no alargamento do seu sentido. Por patrimônio cultural entende-se o conjunto de bens culturais e simbólicos criados por um grupo social ao longo de sua histó-ria, e que o identifica em relação a outros grupos. Esse patrimônio é responsá-vel pela sua projeção cultural, além de ser definidor de identidade. A definição de patrimônio incorpora a ciência, tecnologia, arte, tradições, monumentos, costumes e práticas sociais de matizes diversos. Nas relações sociais e cultu-rais estabelecidas entre os homens e com a natureza, o conhecimento desse patrimônio é indispensável, pois permite que a sociedade continue existindo, tal qual foi caracterizada por sua cultura e história. Apesar de, tecnicamente, se fazer uma distinção entre o patrimônio material do intangível, Manuela Carneiro da Cunha observou com maestria a indissociabilidade entre o ma-terial e imaterial.4

De acordo com a Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultu-ral Imaterial da Unesco (2003), o patrimônio imaterial é constituído pelas práticas, representações, expressões, conhecimentos, habilidades, assim como instrumentos, artefatos e espaços culturais associados, que as comunidades, grupos, e em alguns casos os indivíduos, reconhecem como parte de seu

3 As reflexões deste tópico foram desenvolvidas também em GUILLEN, Isabel Cristina Martins. África e Cultura afro-brasileira. Imbricações entre história, ensino e patrimônio cultural. Clio. Revista de Pesquisa Histórica, n. 26, vol. 02, 2008, p. 341-362.4 CUNHA, Manuela Carneiro da. “Introdução”, Revista do Patrimônio, n. 32, p.15-27, 2005.

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patrimônio, transmitido de geração a geração, constantemente recriado em resposta à interação com a natureza e a história e proporcionando, como já referido, sentido de identidade. Ainda de acordo com a convenção da Unesco, o patrimônio imaterial se manifesta de diversas formas, agrupando tradições e expressões orais, expressões artísticas, mitos, lendas e rituais nos quais a ora-lidade desempenha um papel fundamental, interconectando e transmitindo esse saber. Nesse sentido, o registro ou documentação desse patrimônio ima-terial exige a transposição desse saber para outros suportes que não os usados tradicionalmente por quem os detinha. Ao mesmo tempo, não há como dei-xar de apontar para as ambiguidades que o processo de patrimonialização têm criado, pois o campo do patrimônio “é um campo de representações e, neste sentido, não se confunde com a realidade onde se movem os agentes em suas práticas sociais. Não temos como proteger a realidade, nem como conter seus movimentos, seus embates, suas forças de vida.”5

Este é um dos grandes paradoxos com que as políticas públicas sobre o patrimônio imaterial têm se deparado: a necessidade de criar salvaguardas para que a oralidade como forma de transmissão do saber continue a existir num mundo cada dia mais globalizado, em que os meios de comunicação produzem registros em mídias diversas. Walter Benjamin já tinha apontado há décadas atrás que não se contava mais histórias com o mesmo espírito das comunidades tradicionais, pois “acabou o tempo em que o tempo não vem ao caso”.6 Agora, mais do que nunca, o registro documental e as políticas de salvaguarda para inú-meras manifestações culturais são urgentes. Dependendo da oralidade para sua transmissão, encontram-se em séria dificuldades para fazer com que as novas gerações tenham acesso ao saber-fazer que lhes dão suporte, encontrando-se ameaçadas ou em perigo de deixarem de existir em função da fragilidade das forma de transmissão do saber-fazer em questão, diante das formas de comu-nicação do mundo globalizado. Não há aqui intenção de se fazer uma apologia da “preservação” cultural, ao modo dos folcloristas do século XIX e início do XX, que viam as manifestações culturais “tradicionais” em constante perigo de desaparecimento. Entende-se a cultura como dinâmica e histórica, e nesse

5 ABREU, Regina. Patrimônio e cultura: novos desafios na era do intangível. Anais do Museu Histórico Nacional, vol. XXXVII, 2005, p. 54-68. Ver também: ABREU, Regina; CHAGAS, Mário. Memória e Patrimônio. Ensaios contemporâneos. Rio de Janeiro, DP&A, 2003.6 BENJAMIN. W. O narrador. In: Obras Escolhidas. São Paulo, Abril Cultural, 1989, p. 63.

sentido a discussão efetuada por Salhins contribui para dirimir quais dúvidas quanto aos desejos de “preservação” cultural.7 Não obstante, seria ingenuidade achar que os novos meios de comunicação podem fazer o mesmo papel que a oralidade, e que as novas formas de transmissão não modificarão substancial-mente as formas de expressão que dependiam de um saber-fazer que tinha na oralidade seu grande suporte. Podemos citar como exemplo a história recente dos maracatus-nação que alcançaram sucesso, e cujos mestres têm sido convi-dados a ministrar oficinas para ensinar a tocar os instrumentos que compõem o batuque, enquanto que o cortejo não recebe as mesmas atenções da mídia. Processo semelhante ocorre com o boi do Maranhão, cujo auto não encontra nos espetáculos o mesmo espaço que a música. É evidente que nem por isso essas formas de expressão podem ser consideradas “ameaçadas” de desapareci-mento, mas é inegável que o processo de espetacularização provocou mudanças significativas, estudadas por Lima e Guillen.8

A essas formas de transmissão oral se associa a memória, como uma com-binação indissolúvel. Memória e patrimônio se relacionam, e devem estar no centro de nossas investigações, não para “preservar” a cultura, congelando-a, mas como um dos direitos esseciais para o exercício de uma cidadania plena. Muito já se escreveu na historiografia brasileira sobre o silenciamento e o ocultamento de diversos grupos sociais na história. Tendo em perpectiva uma noção de história aberta para o futuro, viva, respondendo às questões polí-ticas e culturais do presente, por se tratar de uma forma de conhecimento e referência sobre a experiência social, o direito das gerações futuras à memória e a seu legado deve ser garantido pelas políticas públicas que objetivam lidar com o patrimônio cultural.9

É nesse sentido também que Gonçalves alerta para a constante objetifi-cação cultural, na qual não se discute, ou sequer se percebe, que aquilo que tomamos como um dado, tal como tradição ou civilização, pode muito bem

7 SALHINS, Marshall. O “pessimismo sentimental” e a experiência etnográfica: por que a cultura não é um “objeto” em via de extinção. Mana, Abr. 1997, vol. 3, n. 1, p. 41-73; Out. 1997, vol. 3, n. 2, p. 103-150.8 LIMA, Ivaldo Marciano de França; GUILLEN, Isabel Cristina Martins. Cultura afro-descendente no Recife: maracatus, capoeiras e catimbós. Recife, Bagaço, 2007.9 CHAUI, Marilena de Souza. Cidadania cultural. O direito à cultura. São Paulo, Fundação Perseu Abramo, 2006; PAOLI, Maria Célia. Memória, história e cidadania: o direito ao passado. In: FENELON, Dea Ribeiro (org.) O direito à memória: patrimônio histórico e cidadania. São Paulo, DPH, 1992.

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ser apreendido como “um conjunto de metáforas produzido coletivamente e usado segundo determinados propósitos.”10

Não poderia deixar de ressaltar que, neste campo, a dimensão política da noção de patrimônio emerge com toda força. O campo do patrimônio não é um “lugar de apaziguamento”, pois expressa disputas e conflitos. Como podem os povos indígenas legar um patrimônio em que o saber sobre o mun-do natural é fundamental se o meio ambiente encontra-se ameaçado de des-truição? O que dizer dos direitos de tantas músicas tradicionais que ainda hoje são gravadas e reproduzidas como “domínio público”? E outros tantos exemplos que poderíam ser citados, estendo-nos muito nessas ambiguidades entre a produção cultural dos grupos tradicionais, e a garantia de retorno dos benefícios econômicos que são gerados a partir do momento em que essas expressões culturais adentram o mercado.

As políticas públicas existentes no Brasil sobre o patrimônio imaterial seguem as tendências internacionais, bem como os ditames propostos pela Unesco, desde 1989, quando lançou o programa de salvaguarda das culturas tradicionais que, diante do crescente processo de globalização, necessitariam de proteção, seja porque se encontravam em processo de desaparecimento, ou porque tornavam-se objeto de cobiça no mercado cultural que passou a de-finir as manifestações culturais simplesmente como “bens”. Estes se encon-tram a cada dia mais valorizados pela possibilidade de ampliar esse mercado cultural com a criação de novos bens de consumo, através de turismo cultural ou mesmo com a produção de bens comercializáveis.

As políticas públicas em âmbito mundial têm como escopo, portanto, a preocupação em criar mecanismos que protejam as culturas tradicionais da espoliação de seu capital cultural diante da ampliação do mercado cultural e da inserção das manifestações nesse mesmo mercado, sem que isso traduza ou se reverta em benefício de quem produz efetivamente os bens culturais ou os grupos e povos que são detentores desse saber-fazer. Tais políticas de-mandam portanto ações de salvaguarda e registros dos bens culturais a serem patrimonializados.

10 GONÇALVES, José Reginaldo Santos. A retórica da perda. Os discursos do patrimônio cultural no Brasil. Rio de Janeiro, Ed. UFRJ, 2002, p. 134.

Uma reflexão fundamental tem surgido desse debate: “a escolha do que constitui o patrimônio de uma nação – seja ele material ou intangível – é uma das operações políticas mais importantes para a consolidação de uma deter-minada história, memória e cultura comuns.”11

As questões suscitadas em torno do debate do patrimônio são extrema-mente complexas e não têm uma resposta pronta e rápida, já que estão sendo construídas na prática, no fazer-se das manifestações culturais e em sua rela-ção com as instituições governamentais e com o mercado. Mas o que importa para nossa discussão é destacar que estamos sendo obrigados a repensar a ideia de patrimônio nacional, e que este não é constituído apenas de monu-mentos, igrejas e prédios antigos. Temos a oportunidade de constatar que estamos diante de novas políticas da memória, e de novas formas de admi-nistração institucional do passado. Destaca-se o fato de que as novas políticas da cultura têm nos dado a oportunidade de criar novas culturas políticas para a construção da identidade, memória e história nacional. Diferentes grupos sociais estão tendo a oportunidade, pela primeira vez na história do Brasil, de registrar uma memória do seu passado, fundamental para a definição das identidades. E são aqueles grupos, em sua maioria considerados como tradi-cionais, e que foram em grande medida silenciados na construção da memória nacional, dentre os quais se destacam os afrodescendentes e indígenas, os que mais podem se beneficiar disso. Têm sido criados novos canais de expressão cultural e oportunidade ímpar de colocar em discussão as políticas de cons-trução da memória nacional. Esse processo não se dá, evidentemente, sem tensões, conflitos, resistências e adesões, e é pleno de ambiguidades. O que não se pode, a meu ver, é banalizar nem o processo, nem as manifestações culturais de têm sido objeto de discussão, registro e inventário.

Tanto no âmbito federal, quanto no estadual, diversas políticas públicas têm sido formuladas para fomentar o registro dos bens da cultura imaterial e a produção de documentação sobre esses bens vem sendo ressaltada como medida fundamental para que o patrimônio imaterial possa ser transmitido para as gerações futuras. Essas medidas têm facilitado o registro dos bens, ao mesmo tempo em que o processo de globalização colocou esses mesmos bens em contato com um mercado cada dia mais voraz quando se trata de

11 ABREU, 2007, p. 353.

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produzir e consumir novos bens culturais. A tensão presente entre a vontade de conservar as manifestações e muitas vezes sua relação mercantil que as transforma num bem conflita essas políticas públicas a ponto de incongruên-cias poderem ser apontada amiúde.

Foi tendo como pano de fundo as questões acima formuladas que de-senvolvemos o projeto Ritmos, cores e gestos da negritude pernambucana, visando produzir uma documentação escrita e oral com o intuito de que a memória e a história dos movimentos negros em Pernambuco possam ser não apenas preservadas, mas gerem novos conhecimentos e com isso novas práticas de cidadania. Em grande parte, foi com este sentido que muitos militantes ne-gros e negras investiram suas vidas, conforme pudemos apreender na docu-mentação coletada e que passamos a discutir brevemente a seguir.

Campo de possibilidades temáticas.

Uma série de temas tem chamado a atenção na documentação coletada, não apenas em relação à história das manifestações culturais específicas, mas ao esforço do movimento negro em redefinir essa história num campo polí-tico mais amplo, dentro da própria história nacional, na medida em que bata-lharam por tornar públicas e notórias suas lutas sociais. A história se tornou um campo de luta política, que necessitava ser ressignificada, a exemplo das datas comemorativas e dos heróis nacionais. Não vou aqui me dedicar a dis-cutir o papel de Zumbi nesse processo, porque isso já foi feito.

Mas em relação às datas nacionais, uma discussão sobre o 13 de maio e o 20 de novembro merece uma análise mais cuidadosa em seus múltiplos significados e enquanto estratégia política de inserção do movimento negro no cenário local e nacional. A partir do final da década de 1970 e início de 1980 percebe-se, acompanhando-se as notícias que foram publicadas nos jor-nais desse período, todo um esforço político do movimento negro para, em primeiro lugar, definir que o 13 de maio não era dia de negro, e sim o 20 de novembro. Se até os anos 1978-1979 o leitor dos jornais sempre poderia ler notícias sobre o 13 de maio e a vinculação dos negros à escravidão e à mag-nificência da princesa Isabel ou de Joaquim Nabuco, no início dos anos 1980 encontra-se notícias das intervenções do movimento negro no sentido de politizar a discussão sobre as datas comemorativas. É nesse sentido que o dia

da morte de Zumbi é proposto como o dia da consciência negra, dia de luta contra o racismo ainda existente. Se o 13 de maio aparece como uma data referente a um passado, pronto e acabado – a abolição da escravatura, ainda que se contestasse os sentidos da abolição – o 20 de novembro era posto não como uma data a ser celebrada, mas como um dia de luta. E não se pode negar que o movimento negro conseguiu fazer essa mudança no calendário das datas nacionais.

Um aspecto bastante interessante que se sobressai na documentação é uma política para o corpo, proposto pelo movimento negro, em graus e vari-áveis múltiplas, pois vão desde discussões sobre saúde e gênero, mas também se dedicam a pensar o corpo em sua dimensão identitária. A valorização da cor (negro é belo) e da autoestima passou por uma série de medidas políticas de cunho bastante significativo, a exemplo da Noite do Pixaim, evento que visava valorizar um modo negro de se vestir, pentear e estar no mundo. Nesse sentido se inserem também uma série de concursos de beleza promovidos para escolher as mulheres negras mais bonitas, ou os melhores penteados, etc.

É fundamental destacar que não se trataram de medidas esporádicas, mas sistemáticas, que apontam para uma efetiva política que relacionava corpo e identidade na valorização da beleza negra. Um aspecto extremamente inte-ressante que merece uma análise mais cuidadosa, e para a qual há material documental suficiente para tal.

Em suma, gostaria de mais uma vez ressaltar a importância do projeto desenvolvido, da documentação levantada e desejar que muitos outros temas possam emergir em teses e dissertações, para fazer justiça não só ao esforço político do movimento negro em ressignificar sua história, mas acima de tudo para que a polifonia dessa história possa se insurgir contra seu silenciamento.

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O MUNDO DO TRABALHO E A CONSTRUÇÃO DAS IDENTIDADES DE GêNERO NO INÍCIO DO SÉCULO XX.

Pedro Vilarinho Castelo Branco1

Email: [email protected]

No presente artigo utilizaremos a escrita de literatos piauienses para pen-sar a problemática da valorização do trabalho na sociedade brasileira, no final do século XIX e início do século XX, bem como para avaliar o impacto des-sas propostas nas identidades masculinas e femininas2.

Os referidos literatos nos falam de um mundo em conflito, em transição, onde o ordenamento social tradicional vinculado ao trabalho compulsório, ao mundo da oralidade e da vida rural começava a ruir diante de novas propos-tas. A palavra escrita, a escola e a vida urbana, com novas formas de sociabi-lidades, procuravam impor outro ordenamento social, com valores e formas de convivência diferentes. No Piauí, o mundo rural continuava hegemônico, e no entanto alguns núcleos urbanos, como Teresina e Parnaíba, principiavam a experienciar novas formas de sociabilidades mais próximas do mundo mo-derno.

Na pesquisa trabalhamos com textos literários, registros de memórias e crônicas publicadas em jornais, em que podemos perceber um esforço dos literatos em valorizar o trabalho, em defini-lo como algo dignificante e neces-sário na construção de uma sociedade moderna. No que diz respeito às iden-tidades de gênero, observamos como os literatos, no trabalho de redefinição desses modelos, utilizam a escrita para construir de forma positiva a relação entre trabalho e masculinidade, ao tempo em que instauram intenso confli-to, no que diz respeito à inserção das mulheres, particularmente dos grupos médios, em atividades produtivas remuneradas. São as escritas dos literatos

1 Professor do departamento, da pós-graduação em história e tutor do Pet/história da UFPI.2 Sobre a historicidade das identidades de gênero ver SCOOT, Joan. Gênero uma categoria útil de análise histórica. Educação e Realidade. Porto Alegre, n. 20, v. 2 p. 71-99, jul/dez 1995.

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redefinindo as identidades de gênero na relação com o mundo do trabalho que buscaremos problematizar.

Direcionaremos o foco da nossa análise para os grupos sociais médios,3 que, nesse momento histórico, iniciavam um lento mas continuo processo de migração das áreas rurais. O caminho da cidade e da escolarização dos filhos e das filhas parecia o percurso a ser seguido. O desenvolvimento das atividades tipicamente urbanas fazia com que a vida na cidade apresentasse possibilida-des novas a essa população, como, por exemplo, empregos no setor público, no comércio e nas atividades de ensino. Contudo, a ocupação dessas funções exigia o aprimoramento da habilidade no uso da palavra escrita, fazendo do acesso à escola algo inevitável para aqueles que almejavam viver nas urbes mantendo certo padrão de respeitabilidade social.4

Iniciaremos a construção do argumento pela análise dos discursos que problematizam as identidades femininas e, em seguida, as práticas das mulhe-res, particularmente dos grupos médios, na busca de inserção no mundo do trabalho. Nesse percurso, buscaremos responder algumas questões que nos incomodam: como os literatos constroem a relação entre a inserção feminina em atividades remuneradas nos espaços públicos e a feminilidade? Quais os espaços ocupados por essas mulheres no mundo do trabalho? O que leva a sociedade a aceitar a inserção feminina em atividades remuneradas? Em seguida, passaremos a problematizar a forma como os homens inventam o trabalho como traço identitário masculino, e as indagações que procuraremos responder são: como os literatos constroem o trabalho como atividade pri-mordial masculina? Qual a relação entre inserção no mundo do trabalho e a construção da autoestima masculina?

É importante que deixemos claro que as mulheres sempre trabalha-ram, sejam as provenientes das camadas populares ou as dos grupos sociais que contavam com melhores recursos; no entanto, o trabalho

3 No presente trabalho definimos como grupos médios as pessoas vinculadas aos pequenos fazendeiros, comerciantes, funcionários públicos, professores, guarda-livros. Esse grupo de pessoas mantinha laços de consanguinidade com as elites, mas se posiciona num escalão intermediário na sociedade, principalmente nessa transição da vida rural para a vida urbana. 4 Para obter maiores informações sobre a economia e a sociedade piauiense no início do século XX ver: QUEIROZ, Teresinha. A importância da borracha de maniçoba na economia do Piauí: 1900-1920. Teresina: EDUFPI / APL, 1994.

das mulheres na sociedade brasileira teve, até o final do século XIX, um caráter essencialmente doméstico. Era no espaço da casa que elas produziam grande parte do que seria consumido na subsistência das famílias. Administrar a casa, cuidar das crianças, dos doentes, produzir os alimentos necessários à subsistência da família sempre foram tare-fas femininas. Por outro lado, a inserção das mulheres em atividades remuneradas fora dos espaços domésticos provocava conflitos, pois assumia caráter transgressor aos padrões familiares, que vinculavam as mulheres ao serviço da casa, assim como apontava para a construção de processos de individuação feminina, o que para muitos era algo pe-rigoso e desagregador das relações familiares.5

Com o início da industrialização e o crescimento das cidades, processo que se acentua na segunda metade do século XIX e início do século XX, as in-dústrias e os novos serviços oferecidos, como os de hospitais e escolas, acaba-ram por tirar das famílias uma série de atividades que eram tradicionalmente executadas por elas, o que, de certa forma, favoreceu a liberação das mulheres para o exercício de atividades produtivas nos espaços públicos.6

Muitas mulheres procuravam um lugar no mundo do trabalho como for-ma de viabilizar a sua subsistência e da família; outras objetivavam comple-mentar as finanças domésticas adicionando algum dinheiro ao salário do ma-rido; outras, ainda, ocupavam posições no mercado de trabalho como forma de realizar-se em uma profissão que lhes satisfizesse e, claro, lhes desse algum dinheiro. Diferentes são as histórias das mulheres que resolveram ou foram obrigadas a abandonar o espaço doméstico e enfrentar o trabalho nas fábri-cas, escolas e outros lugares.

A movimentação das mulheres à procura de ocupar espaços no mercado de trabalho provocava reação de muitos homens, que percebiam nessas mu-danças comportamentais um perigo para o equilíbrio familiar e para o orde-namento social. Tais preocupações se fazem presentes em artigos de literatos, como Clodoaldo Freitas,7 que, no início do século XX, usava da pena para

5 PERROT, Michelle. Mulheres Públicas. São Paulo. UNESP. 1998.6 PENA, Maria Valéria Junho. Mulheres e trabalhadoras – presença feminina na construção do sistema fabril. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1981, p. 85-94.7 Clodoaldo Severo Conrado Freitas. Nasceu a 07 de Setembro de 1855, na cidade de Oeiras, e faleceu a 29

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argumentar contra as práticas femininas que não se enquadrassem no restrito exercício de atividades domésticas e familiares, como expressa no seguinte trecho:

Eu só admiro a mulher na santidade do seu lar, tratando da família. Quan-to maior o número de filhos que uma senhora cria com desvelo e solicitu-de, mais a considero sábia e santa. Adoro a esposa, a mãe, a irmã, a filha; mais olho sempre com prevenção invencível para essa espécie de macho, que não quer se conformar com os deveres do seu sexo. 8

Para Clodoaldo Freitas, as mulheres deveriam reservar-se às funções fa-miliares, principalmente porque a sua conformação orgânica era diferente da masculina. Não tendo o mesmo vigor físico do homem, não poderiam com-petir com ele nos espaços púbicos, no mundo do trabalho. A argumentação de Freitas se pautava na ciência, mostrando as diferenças orgânicas entre ho-mens e mulheres, evidenciando a partir das peculiaridades físicas como elas podiam se adaptar mais facilmente aos espaços domésticos, onde contariam com a proteção masculina. Os homens, por seu lado, teriam maior capacidade física, a qual seria utilizada para vencer as dificuldades do mundo e ganhar, com o trabalho, a subsistência da família. Além disso, eram mais racionais e inteligentes, o que os tornava mais aptos a participarem das disputas verbais, da luta renhida no esforço cotidiano de conseguir o sustento familiar.

A mulher não tem o vigor muscular do homem. A natureza conformou-a, diversamente de nós, para a maternidade. Fisiologicamente, histologica-mente de conformação diferente da nossa, a mulher tem gostos, aptidões diferentes das nossas. Ainda não apareceu uma sábia, uma maestra, uma pintora comparável aos sábios, maestros e pintores. Joana D’arc, a maior guerreira, si faz uma exceção no gênero pela sua evidente loucura, não

de Junho de 1924 em Teresina. Estudou no seminário das Mercês em São Luiz do Maranhão e bacharelou-se em direito pela faculdade do Recife em 1880. Ocupou vários cargos públicos no Piauí, Maranhão e Pará. Aposentou-se como Desembargador do TJ do Piauí. Sua obra literária conta com obras de ficção e crônicas de assuntos variados. É fundador da Academia Piauiense de Letras.8 FREITAS, Clodoaldo. Em roda dos fatos. Teresina: Tipografia Paz, 1911. p. 73.

entra no quadro dos grandes guerreiros e foi heroina com o mesmo título que Antônio Conselheiro foi herói.9

Outra característica da visão de Clodoaldo Freitas era a de que o papel fundamental da mulher era educar os filhos para a grandeza da pátria. A ela cabia a função de ensinar-lhes o amor pelo solo pátrio. Prepará-las para essa missão patriótica deveria ser o principal objetivo da escola, de onde as moças deveriam sair preparadas física, moral e intelectualmente para exercer as fun-ções de mãe educadora.10

O discurso de Clodoaldo Freitas vincula a própria percepção de feminili-dade ao exercício da maternidade e ao devotamento às atividades domésticas. Sair de casa, exercer atividades remuneradas, seria, para Freitas, assumir o risco de masculinizar-se, de perder a doçura, a delicadeza que seriam traços caracterizadores do feminino. Freitas aponta ainda para a total inabilidade do feminino em exercer as mesmas funções masculinas, por questões biológicas; seria a própria fisiologia feminina, os músculos, os tecidos, o organismo femi-nino que limitariam e impossibilitariam as mulheres de exercerem funções em concorrência com os homens.

Mesmo com discursos contrários à inserção feminina em atividades pro-dutivas remuneradas, alguns campos de trabalho, como o magistério, foram, no século XIX, ganhando legitimidade como espaço de ação feminina.

O magistério passava, nesse período, por acelerado processo de feminiza-ção. Na medida em que a industrialização e a urbanização criavam melhores possibilidades de trabalho remunerado aos homens, esses abandonavam as salas de aula, abrindo espaços para as mulheres. Some-se ao argumento ante-rior a crescente demanda por professores e toda a construção discursiva de teóricos e pensadores da educação sobre a aptidão feminina para o magistério primário, e estão postas as justificativas necessárias para explicar a crescente presença das mulheres no ofício de ensinar.

9 FREITAS, 1911, p. 74.10 TRINDADE, Etelvina Maria de Castro. Clotildes ou Marias. Mulheres de Curitiba na Primeira República. Curitiba: Fundação Cultural, 1996.

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A ideia da educação primária como área de atuação da mulher conquista adeptos em todo o mundo. Os argumentos geralmente baseavam-se na vo-cação feminina para ensinar crianças, na sua ternura, como armas infalíveis para cativar os alunos para o aprendizado. Matias Olímpio, político e intelec-tual piauiense, que se mostrava preocupado com as questões educacionais, no livro A instrução pública no Piauí, fez algumas colocações defendendo a su-perior aptidão feminina para o magistério primário. Para ilustrar e dar maior confiabilidade à sua argumentação, o autor recorreu a vários intelectuais e pedagogos que compartilhavam da mesma opinião sobre o assunto discutido.

A propósito da superioridade da mulher como educadora assim se ex-primiu Greard, em sua obra L’Ensignement primaire à Paris et dans le Depart de la Seine: (...) A mulher entesoura em si o instinto da educação. Sua firmeza impregnada de ternura, cativa o menino (...) assenhora-se sem esforço, ou por um esforço amorável, de todos os impulsos do seu espí-rito e do seu coração. Opulenta em recursos, engenhosa, inventiva, sabe variar os seus meios de atividade.(...)

O eminente Pedagogo italiano, André Angiulli apoiado em Renan diz que a educação sem o concurso da mulher é impossível.

(...)

Enfim, é verdade incontrastável, hoje, essa da importante função da mu-lher como educadora (...).11

Em 1910, quando foi criada a Escola Normal Oficial, objetivando formar um quadro de professores qualificados que potencializassem a educação na sociedade piauiense, a clientela escolhida para formar o seu corpo discente foi a feminina. A escola tornou-se grande formadora de professoras, que saíam com o dever de educar grande número de crianças analfabetas e melhorar o nível educacional do Piauí e do Brasil. Esta era uma missão patriótica da qual as mulheres não podiam se esquivar.

11 OLÍMPIO Matias. A instrução pública no Piauí. Teresina: Papelaria Piauiense, 1922, p. 62-63.

Na mensagem apresentada pelo governador do Estado em 1910, ele pró-prio explica as razões para a escolha preferencial das mulheres na composição do corpo discente da Escola Normal:

Duas razões principais atuaram no meu espírito para semelhante preferên-cia. A primeira e a mais poderosa foi a natural aptidão para desempenhar melhor esta função, que a mulher possui, mais afetiva que o homem, ela está, por isso, muito mais apta, a ensinar crianças e acompanhar-lhes os primeiros albores da inteligência.

A segunda razão foi a exiguidade dos vencimentos que o Estado oferece aos professores. Com a carestia atual de vida, é absurdo pensar em obter preceptores dedicados ao magistério, pagando os minguados ordenados do orçamento. A mulher porém, mais fácil de contentar e mais resignada, e quase sempre assistida pelo marido, pelo pai ou irmão, poderá aceitar o professorado e desempenhá-lo com assiduidade e dedicação, não obstante a parcimônia da retribuição dos serviços.12

Para Maria Cândida Reis, a questão dos baixos salários pagos às professo-ras estava ligada aos papéis tradicionalmente desempenhados pelas mulheres na sociedade. A elas estavam reservadas as funções reprodutivas no espaço doméstico; por isso, exercer funções remuneradas fora do lar caracterizava uma transgressão, ou seja, a mulher como trabalhadora assalariada estaria fora do seu lugar, e isso justificaria os baixos salários.13

Ensinar deveria ser muito mais que uma profissão; era uma missão que a sociedade conferia à mulher; ela deveria fazer da escola continuação do lar e com afeto cativar as crianças e induzi-las ao bom aproveitamento nos estu-dos. Educar os futuros cidadãos era a prova de patriotismo que a mulher daria ao país; seria sua cota de esforços e sacrifícios no soerguimento do Brasil e no fortalecimento da República.

12 FREIRE, Antonino. Mensagem apresentada à Câmara Legislativa do Piauí, no dia 1º de junho de 1910. Teresina, Tipografia do Piauí, 1910.13 REIS, Maria Cândida Delgado. Crescer, multiplicar, civilizar – destino de mulher nas orientações educacionais disciplinares (São Paulo anos 20 e 30). Revista Brasileira de História. Vol. 09, nº 19, set. 1989-fev. 1990. São Paulo, p. 81-113.

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Cristino Castelo Branco, intelectual piauiense e professor da Escola Nor-mal de Teresina, no seu discurso de paraninfo das normalistas de 1928, deixa evidente que o trabalho de professora primária era, antes de tudo, um sacer-dócio a ser assumido pelas mulheres, uma escolha de vida, tão digna quanto a do casamento. Ser professora constituía, para Castelo Branco, assumir a maternidade do ponto de vista espiritual, seria dedicar-se igualmente à glorio-sa tarefa de formar os futuros cidadãos da pátria: “A escola e o lar são dois centros formadores da nossa nacionalidade”.14

O discurso de Cristino Castelo Branco15 fazia coro às propostas de Matias Olímpio, que no início da década de 20 começou acalorada discussão so-bre a incompatibilidade entre a inserção das mulheres no magistério e a vida conjugal. Matias Olímpio era um dos principais defensores da proibição do casamento para as professoras e defendia mesmo a demissão daquelas que contraíssem matrimônio. A argumentação de Matias Olímpio, que objetivava demonstrar essa incompatibilidade, é a seguinte:

Dividida entre o lar e a classe, a casada tem de sacrificar um dos dois sacer-dócios: ou cuida dos filhos ou da escola. Se prefere os primeiros será uma mal funcionária. Optando pela última não causa menores prejuízos à pá-tria, porque descura da prole justamente quando mais necessária à mesma é a sua assistência. A lei piauiense teve em vista a eugenia da espécie. Quer gerações fortes e sadias e daí julgar inconveniente ao desenvolvimento do embrião, num clima esgotante como o nosso, a ausência do lar durante cinco horas diárias no labor de desasnar os nossos pró-homens. O feto desenvolvido por entre as aperturas de um colete viria ao mundo raquítico e deformado (...). 16

14 CASTELO BRANCO, Cristino. Discurso proferido pelo Dr. Cristino Castelo Branco, paraninfo da Colação de grau das professoras, na Escola Normal, a 14 do corrente. Revista da Academia Piauiense de Letras. Ano XI, n. 12. Jan. 1928. Teresina, p. 128. 15 Cristino Couto Castelo Branco nasceu em 24 de Julho de 1892 em Teresina e faleceu em 25 de fevereiro de 1983 no Rio de Janeiro. Bacharel em Direito no Recife em 1911, foi juiz de direito e desembargador, diretor da Instrução Pública, professor do Liceu Piauiense e da Escola Normal em Teresina. Colaborou em vários jornais e revistas na imprensa de Teresina. Membro da Academia Piauiense de Letras.16 OLÍMPIO, Matias. Op. cit., p. 127.

No entender dos intelectuais que defendiam o celibato para as professoras primárias, havia clara incompatibilidade entre os dois sacerdócios colocados às mulheres, que eram o da maternidade e o do magistério. Ambos exigiam dedicação total, de corpo e alma. A discussão deixa transparecer os limites da autorização para o exercício de atividades remuneradas pelas mulheres dos grupos médios. O magistério, que não aparecia como uma atividade profis-sional, mas como um sacerdócio, não seria exercido em iguais condições de trabalho e de remuneração por homens e mulheres; a elas, menores salários, maiores restrições. Aos homens estaria reservado o exercício do magistério nas séries secundárias e superiores, nas quais os salários seriam mais vantajo-sos, o que permitia que continuassem por muito tempo hegemônicos.

As fontes deixam claro que a participação das mulheres no magistério seria muito mais percebida e dita pelo discurso masculino como uma contribuição fe-minina ao engrandecimento da pátria, mão de obra qualificada e barata, entretan-to extremamente útil e necessária na construção da nação moderna. A sua função continuava a ser a maternidade, agora espiritual. As mulheres continuariam a não ser percebidas, de certa forma, como trabalhadoras, como profissionais do ensino.

Discursos à parte, as mulheres foram progressivamente assumindo espa-ços no magistério. Em Teresina, segundo nossas fontes, as primeiras moças a se ocuparem com o magistério surgiram na década de 60 do século XIX. Eram professoras particulares de primeiras letras que, com licença dos pais, recebiam alunas em suas residências ou trabalhavam em escolas particulares. Mulheres como Maria Emídia Castelo Branco são prova do que analisamos. Ela começou trabalhando como adjunta da diretoria do Colégio Nossa Se-nhora do Amparo; depois, em 1882, passou a lecionar aulas de primeiras le-tras para meninas e a trabalhar com seu pai, Miguel de Sousa Borges, proprie-tário do colégio de Nossa Senhora das Dores.17 O caso de Maria Emídia não era isolado e em nossas fontes encontramos outros anúncios de professoras que se colocavam à disposição da clientela feminina para aulas particulares.

17 O Colégio Nossa Senhora das Dores funcionou regularmente em Teresina entre os anos de 1882 e 1889. Era um colégio de instrução primária e secundária, aceitava alunos de ambos os sexos e funcionava como externato, semi-internato e internato. As crianças do sexo feminino ficavam sob a responsabilidade da filha do diretor, a professora Maria Emídia Castelo Branco. Para obter maiores informações, consultar: QUEIROZ, Teresinha. Notas sobre a educação no Piauí. Imperatriz: Ética, 2008. p. 47-56.

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Além dessas aulas particulares, algumas mulheres já ocupavam vagas na rede pública de ensino primário em Teresina e em cidades do interior. Elas eram, em parte, professoras formadas na extinta Escola Normal que funcio-nou na década de 80 do século XIX. Entretanto, a maioria dessas mulheres não tinha formação adequada e ensinava as alunas a ler, a escrever, a conhecer os números, a fazer contas com as quatro operações fundamentais de aritmé-tica, princípios de moral e religião, além de trabalhos de agulha.

No início do século XX, os anúncios de aulas particulares continuavam com as mesmas características do final do século XIX. As mulheres que se de-dicavam ao magistério eram as solteiras atrás de alguma ocupação e também de algum dinheiro para ajudar no orçamento doméstico; mas também eram viúvas que pareciam se dedicar ao trabalho como forma de sustentar a casa e provavelmente os filhos, na falta do esposo. Este pode ser o caso de Severa de Castro Marques que, ficando viúva de um professor, passou a anunciar aulas particulares de primeiras letras. O magistério se firmava como saída honesta para a mulher suprir suas necessidades financeiras, principalmente na falta do pai ou marido que o fizesse.

Em 1913, formou-se a primeira turma de normalistas. Eram 20 novas pro-fessoras que foram, em parte, absorvidas pelo governo do estado para ocupar vagas na instrução pública. O critério de escolha foi, segundo o próprio go-vernador Miguel Rosa, o nível de aproveitamento das alunas.

A Escola Normal, logo nos seus primeiros anos de existência, começou a receber alunas originárias de Teresina, como também de outras cidades e vilas, como Parnaíba, Amarante, Floriano, Oeiras, São Raimundo Nonato e muitos outros lugares. Essas alunas, ao voltarem formadas para suas cidades, deveriam trabalhar pelo melhoramento do ensino no Estado do Piauí como um todo.18 Elas ocupariam os cargos de professoras nas escolas públicas que ofereciam ensino gratuito às crianças em idade escolar. E ao colocarem em prática os novos métodos ensinados na Escola Normal, revolucionavam as antigas práticas pedagógicas dos velhos mestres-escolas.

Antes de finalizar a discussão sobre a inserção das mulheres nos espaços de trabalho remunerado, é importante discutir de forma mais detida uma últi-

18 Diário do Piauí. Ano I, nº 23, Teresina, 23 de março de 1911, p. 1.

ma questão: se havia tantos discursos contrários à inserção das mulheres dos grupos médios em atividades remuneradas, o que levou as famílias a aceitar essa nova prática feminina no início do século XX? Sobre essa questão, Eric Hobsbawn nos dá em seu livro A era dos impérios algumas pistas:

(...) [C]erto grau de emancipação feminina era, provavelmente, necessário para os pais de classe média, pois nem todas as famílias dessa classe e praticamente nenhuma da classe média baixa, era, sob qualquer aspecto, suficientemente rica para manter suas filhas com conforto, quando elas não casavam ou não trabalhavam. Isso talvez explique o entusiasmo dos homens de classe média pela educação das filhas, no sentido delas alcan-çarem alguma independência.19

A análise de Hobsbawn nos ajuda a entender que dentro das condições da oferta de serviços e bens de consumo que o mundo moderno colocava à disposição das famílias, ficava cada vez mais difícil que apenas o trabalho masculino suprisse todas as demandas. As famílias precisavam que as filhas mulheres ou casassem ou assumissem atividades remuneradas que aliviassem o fardo das despesas. Dessa forma, a busca pela escolarização feminina seria o meio de torná-las, caso isso fosse necessário, aptas a ingressar no mercado de trabalho em atividades que fossem consideradas dignas para uma moça de família, ou seja, um cargo de professora primária ou de música, um cargo de funcionária pública ou ainda de enfermeira.

A professora Jandira Campelo, no discurso de colação de grau na Escola Normal, nos mostra qual a percepção que muitas mulheres tinham da relação feminina com a escola e com o mundo do trabalho:

Este é o nosso caso. Seria, realmente, para apavorar a cena lembrada e iné-dita se daqui não saíssemos aparelhadas para lutar e vencer. Outro intuito aliás não tem esta escola. O casamento é uma hipótese.

19 HOBSBAWN, Eric. A era dos impérios (1875 – 1914). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988, p. 285.

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Daí a necessidade de armar a mulher para triunfar pela inteligência, se as suas graças, as suas virtudes, formosura com que Deus a dotou e distin-guiu não conseguirem domar o coração masculino. Felizmente passou o tempo em que se punha em dúvida o intelecto feminino.20

Como a professora Jandira Campelo bem expressa, o casamento era ape-nas uma hipótese, provavelmente, para muitas a mais desejada e esperada; no entanto, era preciso estar preparada para a eventualidade do não casamento, o que acarretaria dificuldades para a subsistência feminina nas áreas urbanas.

Bugyja Brito,21 no livro Narrativas autobiográficas, nos relata a trajetória de Maria Stela Brito, sua tia, que ao migrar para Teresina em 1915, teve providen-ciado seu ingresso na Escola Normal, assumindo quando formada a cadeira de primeiras letras na cidade de Porto, no norte do Piauí. A providência, se-gundo expressa o autor, seria fundamental, devido às dificuldades financeiras da família e à necessidade da moça conseguir meios de prover o seu sustento na falta de um casamento.

Em outros relatos de memória, encontramos trajetórias femininas onde a inserção no mundo do trabalho é fundamental, no sentido de conseguir a ren-da suficiente para suprir as demandas familiares na falta das figuras masculi-nas, ou na impossibilidade dos mesmos conseguirem auferir ganhos suficien-tes para atender às despesas familiares. Em síntese, as nossas fontes parecem corroborar com a ideia de Hobsbbawn de que a inserção das mulheres dos grupos médios no mundo do trabalho se deu pela impossibilidade das figuras masculinas assumirem com seus ganhos o ônus de sustentar os membros femininos que não conseguissem casamento.

Outro ponto que consideramos relevante é o fato de ocorrer um relativo empobrecimento das pessoas ao migrarem de áreas marcadamente rurais para cidades, onde o modo de vida urbano moderno já se fazia presente de forma mais consistente; no nosso entendimento, esse seria outro fator a estreitar

20 ESCOLA Normal. O Piauí. Teresina, Ano XXXVII, n.17, p. 4, 20 jan. 1925.21 Antonio Bugyja de Souza Brito nasceu a 21 de maio de 1907 em Oeiras e faleceu no Rio de Janeiro em 03 de dezembro de 1992. Bacharel em direito pela Universidade do Brasil em 1933. Foi co-fundador do jornal O lábaro (1926) e do Cenáculo Piauiense de Letras (1927). Colaborou ainda em O Piauí, A imprensa, Gazeta, e A revista de Teresina. Membro da Academia Piauiense de Letras.

ainda mais os ganhos familiares nesses grupos sociais médios, pressionando os homens e as mulheres a aceitar a inserção feminina em atividades remu-neradas.

Diante das razões expostas anteriormente, podemos entender que as mu-lheres foram conquistando progressivamente o direito de ingressar no mer-cado de trabalho; no entanto, as restrições aos comportamentos femininos, particularmente nas famílias que seguiam os padrões de classe média, teriam continuidade. Trabalhar em uma profissão respeitável, digna de uma mulher de família, não significava o direito de transitar livremente pela cidade sem restrições, e era fundamental que certa autovigilância, nas práticas dessas mu-lheres, se fizesse presente no ambiente de trabalho e fora dele.

Os modelos de masculinidade no mundo tradicional apontavam para a força física, para a potência masculina como fatores definidores dessa identi-dade. Dos homens era esperado e mesmo cobrado certo ar de independência, de superioridade, era preciso saber dar ordens, saber mandar, e até saber, se fosse necessário, usar de certa violência com o objetivo de fazer impor sua vontade aos que se colocavam sob sua proteção.

Esse padrão de masculinidade tradicional foi questionado, à medida que o mundo fundamentado na oralidade e na vida rural foi sendo progressiva-mente deslegitimado por novos padrões de ordenamento social modernos, vinculados à cultura escrita, à racionalidade científica e ao viver urbano.22

Os homens, para se enquadrar nos novos modelos de masculinidade, de-veriam abdicar de seu padrão senhorial e assumir o comando da família e a pa-ternidade. Nessa função, caberia a eles conseguir com o trabalho produtivo os recursos para o sustento material da casa. O seu lugar geográfico de ação seria principalmente os espaços públicos onde se engajariam no mundo do traba-lho produtivo. Os homens seriam escriturados como ordeiros, produtivos, conhecedores de suas posições na sociedade e resignados diante das funções que lhe caberiam. A sua dignidade estava vinculada à sua relação com o mun-do do trabalho, mesmo que a sua atividade fosse um simples ofício manual.23

22 Sobre os padrões de masculinidades tradicionais ver: CASTELO BRANCO, Pedro Vilarinho. História e masculinidades. Teresina: EDUFPI, 2008. 23 GAÊTA, Maria Aparecida Junqueira Veiga. A Deus, à Igreja e à Pátria: Os estandartes da Igreja Católica do século XIX. História, São Paulo n.11. p. 243-258, 1992.

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O trabalho nas sociedades modernas ganha fortes vínculos identitários com a masculinidade,24 pois os homens, desde a infância, percebem a inserção no mundo do trabalho como um fator central na construção da masculinidade. A ideia é que, através do trabalho, eles se tornarão independentes da família, conseguirão os recursos financeiros necessá-rios para alcançar autonomia, para formarem um patrimônio, ou ainda se engajarem, de forma consistente, como consumidores de bens e ser-viços ofertados no mercado.

Conseguir boa posição no mundo do trabalho, auferir daí os recursos ne-cessários para formar patrimônio, consumir, tornar-se capaz de prover finan-ceiramente as demandas familiares, são fatores que se tornaram centrais na elevação da autoestima masculina e na percepção de que foi bem sucedido na sua tarefa de construir-se como homem.

O trabalho tem também para os homens uma dimensão cartográfica no sentido de que é fundamental, para eles, desenvolver a divisão do mundo em espaços públicos e privados. Definindo práticas e comportamentos a partir dessa divisão dos seus espaços existenciais, a casa, espaço privado, lugar da família, de criação dos filhos; os espaços públicos, por seu lado, lugar mascu-lino por excelência, no qual os homens desenvolvem as atividades produtivas, mas também onde se dão as sociabilidades masculinas, o exercício do poder político, das disputas, onde são autorizados a circular e a usar da sua liberdade.

Algumas das ideias colocadas anteriormente aparecem nas escritas de Hi-gino Cunha25 e Clodoaldo Freitas. Higino, ao construir sua narrativa au-tobiográfica, expressa a importância da relação entre a masculinidade moderna e o mundo do trabalho. Na construção da sua trajetória como homem, descreve a relação com o trabalho produtivo, a boa conduta como funcionário ainda na juventude, como fatores fundamentais na sua trajetória bem sucedida. No modelo de masculinidade que procura impor a si próprio, ser homem significava ser capaz de engajar-se no

24 NOLASCO, Sócrates. O mito da masculinidade. Rio de janeiro: Rocco. 1993.25 Higino Cícero da Cunha. Nasceu em 11 de janeiro de 1858 em São José das Cajazeiras, hoje Timon (MA), e faleceu em Teresina em 16 de novembro de 1943. Bacharel em Direito pela faculdade do Recife em 1885. Trabalhou em vários cargos públicos, foi professor do Liceu Piauiense, da Escola Normal e da Faculdade de Direito do Piauí. Foi um dos fundadores da Academia Piauiense de Letras.

mercado de trabalho, de suprir as necessidades materiais daqueles que estivessem sob sua tutela e responsabilidade, após o casamento, e de constituir um patrimônio que trouxesse tranquilidade e estabilidade fi-nanceira à família que pretendia formar.

Higino Cunha, ao narrar suas memórias já no fim da vida, expressa na sua argumentação que não foi bem sucedido, não conseguiu, na trajetória de vida, auferir os melhores postos e os ganhos financeiros que lhe dessem a tranquilidade almejada inicialmente. As razões apre-sentadas por ele para esse relativo fracasso foram as escolhas erradas que fez em determinados momentos, e as interferências da família da esposa na sua vida conjugal, obrigando-o a abdicar de uma promissora carreira de juiz de direito.

Se, por um lado, Higino Cunha se mostra decepcionado com a não realização de seus melhores sonhos no aspecto financeiro, por outro enfatiza que conseguiu com seu trabalho, em outros empregos públi-cos, e com o exercício da advocacia, auferir os ganhos necessários para exercer com dignidade suas funções masculinas de provedor familiar, e ainda dar a formação necessária para os filhos.

Diante de certo insucesso financeiro, Higino Cunha sustenta a sua autoes-tima masculina em outros aspectos, que também estão vinculados ao mundo do trabalho. Refirimo-nos ao seu desempenho como jornalista, como literato. É no sucesso alcançado nessa atividade que Higino vê seus melhores frutos, o envolvimento com a política, a disputa pelo poder, o uso da palavra escrita, a capacidade de articular as palavras de forma ácida ou conciliadora, depen-dendo da ocasião. Os ganhos simbólicos alcançados com esse trabalho, os postos de prestígio intelectual obtidos, como o de membro fundador e pre-sidente da Academia Piauiense de Letras, são para ele troféus que ajudam a lustrar a sua masculinidade e que estão diretamente vinculadas ao mundo do trabalho e ao exercício de ofícios intelectuais, que, se não dão dinheiro, dão prestígio, respeito, reconhecimento, pois são ganhos simbólicos valorizados no seu grupo social.

Clodoaldo Freitas, nos seus escritos, utiliza alguns personagens ficcionais, para também definir a relação entre homens e trabalho como um fator de

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afirmação da masculinidade. No romance Memórias de um velho, o trabalho é apresentado como fator de regeneração de um homem moralmente decaído, à beira da marginalidade. Através do personagem Milo, Clodoaldo enaltece o vínculo com o trabalho como algo dignificante e constitutivo da masculini-dade. Milo, após sofrer vários infortúnios, como a perda de toda a família, a doença e ainda o abandono pela noiva, que viaja para a Europa, entrega-se ao mundo dos vícios, incorpora-se a um grupo de ciganos e passa a ter vida errante, até que, se dizendo chamado pelos valores de família e de respeito ao trabalho aprendidos com a mãe, resolve mudar de vida.

Compreendi que devia arcar nobremente contra os revezes da sorte, e que só podia triunfar pela virtude e pela tenacidade na resistência e no traba-lho porfiado. Entendi salvar-me com as minhas mãos e amassar a minha tortura com o suor de meu rosto. [...] Sentia que dentro de mim, um altar iluminado, velava a imagem santa de amor de minha mãe, a lembrar-me de meus deveres de homem e a responsabilidade do nome honrado que usava. Compreendi que devia lutar energicamente, para não ser tragado novamente pela onda do infortúnio. Tomada a resolução, precisava acertar na escolha de uma profissão honesta que me subministrasse o pão.26

O trabalho seria o meio disponível ao personagem de Clodoaldo para res-taurar a autoestima, incluir-se na sociedade, reafirmar sua masculinidade. Essa capacidade de cair socialmente, de entregar-se a uma vida marginal, desvin-culada dos valores familiares, do mundo produtivo, dos quadrantes da ordem estabelecida, e conseguir soerguer-se, através do trabalho, surge, nos escritos dos literatos, como característica exclusivamente masculina. As mulheres são sempre tratadas como seres moralmente frágeis, incapazes de tal movimenta-ção social sem a tutela de um homem. Na escrita dos literatos a queda moral feminina seria o prenúncio de queda social.

A verdade do discurso dos literatos sobre os homens ganha corpo tam-bém quando analisamos as margens, quando observamos os comportamen-tos masculinos condenáveis. A principal condenação que os literatos faziam

26 FREITAS, Clodoaldo. Memórias de um Velho. Imperatriz: Ética. 2009, p. 26.

aos homens era a frequência nos vícios do álcool e do jogo.27 Quando se entregavam ao vício do jogo tomavam caminhos contrários aos que eram colocados pela sociedade como padrões aceitáveis.

Envolvidos com o jogo, os homens acabam por ver no merecimento, no esforço, na economia, na preservação, coisas fictícias, estranhas, hostis, acabam por confundir o sudário divino dos mártires do trabalho com a pobreza exprobatória em que a ociosidade amortalha os desclassificados de todas as profissões.28

O vício do jogo levaria os homens a inverter valores caros à sociedade, a buscarem a riqueza fácil, adquirida numa noite de sorte, num lance fortuito e não no trabalho produtivo, sério, na economia dos ganhos, na perseverança em acreditar no trabalho honesto. Para uma sociedade que saíra havia pouco de um sistema de trabalho servil, seria necessário criar uma imagem positiva do trabalho, vinculá-lo ao enriquecimento lícito, à dignidade do ser humano. O vício do jogo vinha subverter esses valores e, ainda mais, viria a colocar em risco as economias domésticas, pois era o dinheiro para o sustento da casa, ou ainda, o patrimônio familiar que se tornava capital para apostas em mesas de bilhar.

O vício em bebidas alcoólicas, companheiro muitas vezes do jogo, tam-bém era escriturado pela Igreja como fator de risco e de desagregação da família. Os homens viciados no álcool descuidavam do trabalho produtivo, gastavam os recursos financeiros que seriam utilizados no sustento da casa, além de trazerem mau exemplo aos filhos.

Os literatos constroem a ideia de que muitos males advindos dos maus comportamentos masculinos, e que influenciariam negativamente na família, podem ser minimizados pela ação eficaz e decidida da mulher. No caso dos vícios especificamente tratados aqui, a Igreja parece estar mais preocupada com a manutenção da ordem social, da positividade do trabalho produtivo, da

27 MATOS, Maria Izilda Santos de. Meu lar é o botequim.São Paulo: Companhia Editora Nacional. 2001.28 BARBOSA, Ruy. O apóstolo, Teresina. 08-03-1908 . Nº 42, p. 2.

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disponibilização das energias masculinas para a movimentação das máquinas, das ferramentas e das forças produtivas da nação. Essa parece ser a principal razão do discurso de combate aos vícios. No entanto, é evidente que a Igreja não minimiza o papel do homem como provedor dos recursos materiais à família; essa seria sua função familiar, e para isso estava livre para transitar nos espaços públicos e no mundo do trabalho.

Contudo, muitos homens teriam ainda dificuldade de adequar-se ao traba-lho urbano. Mentalmente ligados ao mundo patriarcal e suas práticas, relutam em adaptar-se às sociabilidades urbanas modernas, aos novos valores que de-veriam estar presentes nos comportamentos masculinos. Muitos viriam a ter dificuldade em adaptar-se ao meio social de trabalho no qual possivelmente assumissem posições subalternas, sendo assim obrigados a obedecer. A he-rança patriarcal havia ensinado esses homens a dar ordens, a ser obedecidos e não a obedecer.29 O exemplo do pai de Bugyja Brito é ilustrativo desses homens do início do século. Eles têm resistência aos empregos, às fun-ções em que recebem ordens. “Os empregos tinham chefes e, portan-to, qualquer funcionário estaria sujeito à obediência regulamentar [...] quer-se ser obedecido, mas não se quer ser obediente”.30

No caso relacionado do pai de Bugyja Brito, o que se destaca é a dificuldade de alguns homens em conseguir adaptar-se ao meio urbano. Obedecer a um superior seria, para esses homens, uma prática servil, e, deste modo, incompatível com sua formação. Por sua vez, o pai de Bu-gyja Brito é despedido do emprego da Farmácia Collect, pois não con-cordava com as exigências feitas pelo sócio do patrão. Outros homens não se subordinarão à rigidez de horários, às cobranças dos patrões, preferindo trabalhar como autônomos na atividade de guarda-livros, ou ainda abrir pequenos negócios de venda de alimentos e bebidas, sendo assim proprietários de seu próprio negócio. Essa foi a escolha do Sr. Antônio Nogueira Castelo Branco, originário de áreas rurais do Piauí, que migrou para Teresina por volta de 1910. Ainda menino, aprende com familiares a prática comercial, assumindo, em seguida, a função de guarda-livros. Torna-se depois proprietário de seu próprio negócio, um

29 ALBUQUERQUE JR., Durval Muniz. A invenção do falo. Maceió: Catavento. 2003, p. 56. 30 BRITO, Bugyja. Narrativas autobiográfcias. Rio de Janeiro: Folha carioca, 1977.

pequeno comércio de gêneros alimentícios e bebidas. Sobre o referido comerciante, os registros da memória familiar o apresentam como um homem que conseguira ter seu próprio negócio, que se vangloriava de ser pobre, mas não ter patrão, não receber ordens de ninguém, não ter horários a cumprir.31

Ao finalizar a nossa análise, podemos dizer que os literatos, homens es-colarizados, vinculados a uma cultura escrita, e logo marcados por valores burgueses, procuravam criar nas suas escritas as balizas, os marcos definidores de comportamentos femininos e masculinos, que seriam aceitáveis para uma sociedade que se colocava o desafio de romper com um passado escravista e rural, ao tempo em que procuravam difundir princípios e valores de uma so-ciedade moderna e capitalista. Na rápida construção que fizemos, buscamos mostrar como essas preocupações aparecem na escrita dos literatos piauien-ses, como se problematizava a vinculação das mulheres com as atividades pro-dutivas e como o trabalho foi construído para se tornar atividade central na construção das masculinidades modernas. Os conflitos vividos pelos homens, nesse processo, também se revelaram ao longo da análise.

31 O Sr. Antônio Nogueira Castelo Branco residiu em Teresina na primeira metade do século XX, e entre seus descendentes encontra-se o Senhor José Ferreira Castelo Branco, que nos transmitiu oralmente essas informações.

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TRABALHO E DOENÇA NAS MINAS DE OURO

Sara Oliveira Farias1

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As histórias sobre trabalho quase sempre centralizam a tensa e desigual relação entre trabalhadores e seus patrões. Múltiplos foram os enfoques e as perspectivas teóricas dos estudos sobre o mundo do trabalho, tema conside-rado clássico pela história e outras áreas do conhecimento.2 Ao analisar e narrar essas histórias pode-se refletir sobre o significado das práticas do trabalho, destacando-se as redes de relações sociais que a engendram, bem como discutir as estratégias, as artimanhas e os interesses que são traçados pelos atores personagens do que se nomeia como história do trabalho e dos trabalhadores.

Durante o período de 2003 a 2007, desenvolvi uma pesquisa que teve como objetivo analisar os variados significados das relações entre trabalhadores e a empresa multinacional Jacobina Mineração e Comér-cio S/A (anteriormente nomeada como Morro Velho) durante o pe-ríodo de 1980 a 1998, na cidade de Jacobina, município do Estado da Bahia.3

1 Professora Adjunta da Universidade do Estado da Bahia (UNEB/campus IV) e do programa de pós-graduação em História Regional e Local. (UNEB/Campus V). Doutora em História (UFPE)2 Entre outros títulos destaco. ANTUNES, Ricardo. Adeus ao trabalho? Ensaios sobre as metamorfoses e a centralidade do mundo do trabalho. São Paulo, Cortez, 1995; BOITO Jr. Armando. O sindicalismo brasileiro nos anos 90. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991; COSTA, Márcia da Silva. “O sistema de relação de trabalho no Brasil; alguns traços históricos e sua precarização atual.” Ver. Bras. Ci.Soc.v.20, n. 59, São Paulo, 2005; GOMES, Ângela de Castro Gomes. A invenção do trabalhismo. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2005 e SANTANA, Marco Aurélio. “Trabalhadores em movimento: o sindicalismo brasileiro nos anos 1980-1990.” In: FERREIRA, Jorge: DELGADO, Lucilia de Almeida Neves. O Brasil Republicano v. 4. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.3 Jacobina localiza-se no centro norte do Estado da Bahia, localizada a 330 km da capital Salvador.

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Os fios que engendram esta história conduziram-me a investigar como foram construídas essas relações, focalizando sobretudo os significados da prática do trabalho de perfurar rochas para extração de minério e as relações de força construídas pela mineradora. Destas relações, pode-se tentar compreender

como muitos trabalhadores contraíram uma doença letal e sem cura: a silicose.4

Os caminhos metodológicos para esta investigação indicavam que era ne-cessário conhecer um pouco da trajetória destes trabalhadores. Nesse sentido, tentei traçar alguns dos trajetos percorridos por eles, focalizando sua luta e a do sindicato em provar a associação trabalho/doença. Luta de muitas trin-cheiras, construídas por meio de fios que teceram alguns aspectos da relação trabalhadores e mineradora, cujo fio condutor era provar e vencer na justiça as questões sobre o trabalho que levou muitos trabalhadores à morte. Antes de analisar esse aspecto, é preciso conhecer um pouco do cenário onde a tra-ma dessa história foi produzida.

O cenário do ouro

Nos anos de 1970, a cidade de Jacobina vivenciou a possibilidade de um novo ciclo de desenvolvimento econômico, a partir de pesquisas exploratórias que tinham como foco a atividade mineral, reeditando dessa forma “os discur-sos sobre riqueza e progresso que tiveram destaque nas décadas anteriores.”5 Essa fase estava muito associada a um dos contextos da época, “o milagre brasileiro”, que tinha entre outras metas elevar as taxas de crescimento, crian-do e acelerando condições para garantir o crescimento econômico.6

4 A silicose é classificada pela Organização Internacional do Trabalho – OIT como doença ocupacional, adquirida no ambiente de trabalho, decorre da exposição agressiva a agentes químicos como gases e poeira. Cientificamente é uma fibrose pulmonar produzida pela inalação de poeira.5 FARIAS, Sara Oliveira. Enredos e Tramas nas minas de ouro de Jacobina. Recife. Ed. Universitária UFPE, 2008, p. 43. Na literatura existente, destacando desde os clássicos da historiografia baiana como ACCIOLY & AMARAL, Braz. Memórias históricas e políticas da província da Bahia. Salvador, vol. 2, 1928; COSTA, Afonso. “Minha terra: Jacobina de antão e agora.” Anaes do 5º Congresso Brasileiro de Geografia. II Volume. Bahia, 1918 até os trabalhos de memorialistas da cidade como LEMOS, Doracy Araújo. Jacobina. Sua história e sua gente. Jacobina, 1995 associam o povoamento de Jacobina à exploração do ouro, juntamente com a agricultura e a pecuária. 6 BRUM, Argemiro. Desenvolvimento econômico e brasileiro. Ijuí, UNIJUÍ, 1999, p. 322; PRADO, Luiz Carlos Delorme; EARP, Fábio Sá. “O milagre brasileiro: crescimento acelerado, integração internacional e concentração de renda (1967-1973)” In: FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucília de Almeida Neves. O Brasil Republicano (vol. 4) O tempo da ditadura; regime militar e movimentos sociais em fins do século

O discurso do desenvolvimento encontrou ressonância em Jacobina, que começava àquela época o reinício das atividades de mineração. Em 1973, a empresa Unigeo Geologia e Mineração Ltda., que era uma associação entre a empresa ICOMI e a Anglo América do Sul Africana no Brasil, iniciou o estudo e a pesquisa de viabilidade econômica no município. A chegada à cida-de dessa empresa causou uma certa euforia, fazendo produzir discursos que associavam mineração e desenvolvimento como sinônimos. Assim, relatava um dos jornais do local:

Jacobina será altamente beneficiada, pelo que se espera, quando a UNIGEO passar da fase de pesquisa para o da exploração definitiva das reservas aurí-feras existentes nas nossas serras, devido ao grande número de pessoas que terão emprego certo. Atualmente já são muitos os trabalhadores que ocupa no serviço de campo. Além disso, reside nesta cidade um grande número de funcionários vindos de outras plagas que, de certo modo, estão contribuin-do economicamente para o desenvolvimento do nosso comércio.7

Esse discurso propagado pela imprensa pode ser pensado na perspectiva do cenário econômico nacional e internacional daquele período, que focalizava a ati-vidade da mineração como um dos vetores de desenvolvimento e riqueza para fortalecimento econômico do Brasil. Em Jacobina, apesar da instalação da mina não ter sido concretizada, os trabalhos para sua operacionalização contribuíram para uma certa movimentação financeira. Em 1982, quase uma década depois do início das atividades, a empresa multinacional começou a produzir ouro.

Nesse período, múltiplos foram os discursos de alguns segmentos da so-ciedade, uns favoráveis, que apresentavam a cidade de Jacobina como pro-missora e que trilhava o caminho do progresso, e outros mais reticentes em relação à exploração aurífera. Esses discursos selecionados, elaborados e con-trolados foram redistribuídos para instituir verdades produzidas dos interes-ses e das redes de relações dos diversos segmentos da sociedade.8

XX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 241.7 A Palavra, n. 34.01 junho 1974, p.1. In: FARIAS, op. cit. p., 49.8 FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso, 9 ed. São Paulo: Loyola, 2003, p. 9.

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Dessa produção discursiva, pode-se compreender que as desigualdades dos sujeitos parecem desaparecer. Assim, passa a ser um “consenso” a cidade possuidora de uma vocação natural para a atividade aurífera, encontrando es-paço para legitimar a ideia de que o ouro produzido nas minas de Jacobina se-ria distribuído para toda a sociedade. Por outro lado, esse discurso encontrou resistência entre alguns segmentos da cidade, sobretudo da oposição política ao prefeito. Estes argumentavam quase sempre que a exploração era realizada por empresa multinacional. Deste confronto discursivo, pode-se apreender que, de um lado, o caráter nacional é reeditado, em parte vivido por alguns segmentos, como o das autoridades municipais, e, de outro, o discurso coloca em foco as redes de interesse e as forças que ditam as regras do jogo político.

É nesse espaço discursivo que a mineração como promotora do desenvol-vimento do lugar vai ganhando força, transformando-se em poder hegemô-nico, seduzindo muitos moradores e atraindo uma parcela das comunidades da microrregião e de outras localidades da Bahia e do Brasil que procuravam condição de vida mais digna, uma vez que a cidade passou a ser considerada um polo de emprego e desenvolvimento. Assim, o discurso sobre a cidade do ouro vai se fortalecendo, transformando-se em verdade, atraindo homens, como Javan Sousa Rios, que procuravam outras formas de viver diante da experiência da pobreza:

[...] Depois de casado eu vim para a região de Jacobina, era uma época de seca, as coisas meio difícil, a influência da mineração aí eu vim, procurei emprego e encontrei na mineração. Naquele período só falava em mine-ração. Na época trabalhavam mais de dois mil funcionários, não existiam outras firmas.9

O emprego em larga escala ofertado pela empresa multinacional, aliado à penalização da estiagem da região e outros fatores, foram fundamentais para compreender o deslocamento dos homens e suas famílias em busca de dias e vidas mais dignas. Mas esse discurso de promotora do desenvolvimento, ao lon-

9 Javan Sousa Rios foi um dos entrevistados da pesquisa que realizei sobre trabalho e mineração. Sobre esse depoimento ver FARIAS, op. cit., p. 69.

go da década de 1980, e sobretudo nos anos de 1990, vai se confrontando com outras práticas: as denúncias de que a empresa colocava em risco a saúde dos trabalhadores e da população do lugar, sobretudo dos distritos que abrigavam a mineração. Provavelmente, as pressões da comunidade, bem como os interesses em jogo e os mais diversos motivos contribuíram para que os problemas causa-dos pela atividade mineral fossem denunciados pelo poder público municipal.

Os episódios que colocavam em risco a saúde da comunidade local, in-cluindo os trabalhadores da mineradora, instituíram outros significados para a relação entre empresa e população do lugar. Outros discursos são produzidos – como, por exemplo, a preocupação com meio ambiente e saúde dos mora-dores da cidade – que terminavam encontrando ressonância nos debates da época sobre reforma sanitária que focalizava, entre outras temáticas, a saúde e o trabalho. É com esse cenário que se pode compreender como, nos anos de 1990, as condições de trabalho na mineradora se transformariam no foco dos órgãos públicos da saúde e vigilância do trabalhador.

As doenças produzidas: o campo discursivo

Nos relatos orais de memórias, percebe-se como os trabalhadores foram se enredando no discurso do emprego, como vivenciaram aquela experiência de perfurar rochas em condições precárias, em razão da mineradora ser a úni-ca empresa a oferecer emprego em larga escala. No discurso construído, que priorizava a mineradora como promotora do desenvolvimento, pode-se ten-tar compreender os discursos que, por quase uma década, tornaram invisível a associação trabalho/silicose, fazendo com que uma parcela de trabalhadores contraísse uma doença letal e sem cura nos túneis das minas.

As estratégias discursivas para isentar a empresa multinacional da respon-sabilidade de proteger seus trabalhadores foram múltiplas, entre elas afirmar que o trabalhador adquirira a doença por conta de sua fragilidade orgânica, deslocando assim o foco das condições perigosas do trabalho nas minas e fazendo surgir um outro argumento: o de que o mineiro fora responsável pela sua própria doença, uma vez que já tinha uma predisposição genética para adquirir a silicose. Assim, a causa da doença é afastada do seu referente, fazendo ecoar o discurso aparente e coerente de que o trabalhador não se cui-dara, naturalizando deste modo as condições precárias do trabalho ofertado.

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Detalhar as etapas da luta travada entre trabalhadores, mineradora, sindi-cato, médicos e órgãos de vigilância e saúde pública se faz necessário, para se tentar compreender como os discursos são tramados e as redes de poder tecidas, para escamotear as práticas do trabalho no interior da empresa Morro Velho.

Os depoimentos de ex-trabalhadores, viúvas, sindicato, advogados e rela-tórios médicos oficiais, emitidos pela Secretaria de Saúde do Estado da Bahia, mostram como o caminho da descoberta da doença e sua associação ao traba-lho foi longo. Em um primeiro momento, nos depoimentos orais, sobretudo dos mineiros e viúvas, pode-se destacar que apesar dos sintomas da silicose (febre, tosse, cansaço, dificuldade de respiração) aparecerem, muitos deles in-clusive sentidos no ambiente da mina, a Morro Velho pouco se importou com a saúde de seus empregados.

O trabalhador, em muitos casos, comparecia ao ambulatório da empresa e fazia exames, mas estes não eram entregues ao paciente ou então era anun-ciada outra doença. Nesse sentido, os discursos sobre as doenças do aparelho respiratório, sobretudo a tuberculose, ganhavam força para escamotear a rea-lidade construída nos túneis de ouro. Afonso Caldas Goiana, ex-marteleteiro, recorda que, no final da década de 1980, “morria muita gente, mas você dizia que era tuberculoso, a empresa nunca chegava para você (...) [e] dizia, rapaz, você tá doente disso.”10

A dissociação do trabalho com a doença foi produzida em Jacobina dentro de uma lógica que favorecia os mais diversos interesses dos segmentos do lu-gar, sobretudo os da empresa mineradora. Assim, é perfeitamente compreen-sível que, ao começar a sentir os primeiros sintomas, o trabalhador procurasse o médico da empresa e este os associasse a outra doença, negando ser pro-vocada pelo tipo de trabalho exercido. O discurso médico ali, segundo uma parcela significativa dos relatos, tentou ocultar essa associação, evitando que os trabalhadores reivindicassem seus direitos e que denunciassem as práticas do trabalho ofertadas pela empresa, que tinha como discurso hegemônico promover o desenvolvimento social e econômico. Assumir que a mineradora pouco se importava com a saúde dos trabalhadores é construir um outro

10 FARIAS, op. cit., p. 155.

discurso, muito diferente daquele produzido e propagado pela Morro Velho, autoridades municipais, imprensa e outros segmentos da sociedade dos perí-odos anteriores.

Nesse sentido, o serviço médico existente nas empresas no Brasil seguia a lógica dos patrões, delimitando o campo de forças produzido na relação social do trabalho e reduzindo assim a prática do trabalho ao discurso da pro-dutividade, o que encontrava espaço em um país nomeado como promissor e em pleno desenvolvimento industrial. Nos anos de 1970, a discussão sobre saúde e trabalho na América Latina veio a se constituir em área específica “de saberes e práticas”, construindo “metodologias e ações programáticas no campo da saúde pública, em contraposição com a medicina do trabalho e a saúde ocupacional.”11

O movimento nomeado como reforma sanitária pretendia elaborar um outro modelo de organização sobre a saúde do trabalhador, enfatizando sobretudo a dimensão social do processo saúde-doença. Assim, foi impor-tante a luta dos movimentos sociais ligados à saúde e ao trabalho no Brasil no final dos anos de 1970 e início dos anos de 1980.12 Na Bahia, a criação do Centro de Estudos da Saúde do Trabalhador (CESAT)13 permitiu arti-cular ações de promoção e assistência à saúde do trabalhador, incluindo a parceria com os sindicatos de trabalhadores, a exemplo do sindicato dos mineiros de Jacobina.

Foi através do CESAT que os trabalhadores conseguiram relatórios médi-cos, atestando que estavam expostos a condições perigosas e haviam contraí-do doença letal e sem cura. Em Jacobina, o Núcleo Regional de Saúde do Tra-balhador (NUSAT), criado pela Secretaria do Estado da Saúde, encaminhava os mineiros para realização de exames como radiografia, exames clínicos e espirometria, que indicavam ou não se o trabalhador havia contraído silicose. Entretanto, essas ações só ocorreriam de forma intensa apenas na década de 1990, quando muitos já estavam doentes e outra parcela já havia falecido.

11 VILELA, Rodolfo Andrade Gouveia. Desafios da vigilância e da prevenção de acidentes do trabalho. São Paulo: LTr,2003, p. 86.12 Sobre a reforma sanitária ver: BERLINGUER, Giovani; TEIXEIRA, Sonia Maria Fleury; CAMPOS, Gestão Wagner de Souza. Reforma Sanitária. Itália e Brasil. São Paulo: HUCITEC, 1988.13 Atualmente a sigla CESAT significa Centro Estadual de Referência em Saúde do Trabalhador.

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Nesse período, frequentemente, a empresa mineradora foi denunciada pelo sindicato com o respaldo do CESAT e de outras instituições públicas ligadas ao trabalho e a saúde do trabalhador, mas estas denúncias pareciam ter efeito de poder reduzido, uma vez que no período de 1988 a 1995, o CESAT registrou 98 casos de silicose, e em agosto de 1995 havia registro de 114 pacientes, o que revela um progressivo aumento. A empresa, apesar de notificada, continuava descumprindo as normas de segurança e o número de trabalhadores doentes aumentava.14

Nesse complexo mosaico das relações e interesses sociais estava em jogo a vida de muitos trabalhadores e chefes de famílias. Como então tornar a sili-cose visível? Como fazer ecoar o discurso de que o mineiro contraiu a doença trabalhando? Essa foi uma trajetória longa e que se desenvolveu em várias frentes, em busca “da verdade” sobre o trabalho nas minas de ouro.

As relações de força traçadas pela empresa, aliadas aos interesses dos seg-mentos locais, são significativas para se pensar a dificuldade e a lentidão de as-sociar o trabalho divulgado como promissor e fundamental para o desenvol-vimento do lugar e das pessoas como responsável pela doença e pela morte dos trabalhadores. Afinal de contas, aceitar esse argumento poderia significar a desconstrução de um outro enunciado, a prática do trabalho na minerado-ra em parte não implicaria necessariamente em desenvolvimento, progresso, bem estar, dignidade de vida e dias melhores.

Nesse sentido, percebe-se o quanto a luta travada pelos trabalhadores, sindicato, médicos do CESAT e também pela empresa se fundamentou no campo da linguagem. Mineradora e trabalhadores, de maneiras diferentes, compreendiam como era determinante tornar invisível/visível uma prática que centralizava as relações sociais do trabalho e a dimensão produzida por aquela realidade. Era preciso deslocar o nome da doença e o que se dizia dela para outro referente.

Foi assim que o trabalhador quando procurava o serviço médico da em-presa e outros médicos da cidade, estes, em sua maioria, atestavam que o pa-ciente tinha tuberculose, asma, bronquite, doenças do aparelho respiratório.

14 CESAT/COVAP. Relatório sobre a situação das minas de João Belo e Itapicuru e dos casos de silicose em trabalhadores atendidos no CESAT. Período 1988 a maio de 1995. Ver também FARIAs, op. cit., p. 165.

O campo de luta produzido pelo discurso que dissociava trabalho/silicose foi fundamental. Retardar o enunciado sobre o a silicose significava entre outros aspectos eximir a empresa sobre saúde e segurança dos seus funcionários. Aliado a esse aspecto podemos acrescentar outros, como a dificuldade dos trabalhadores, sobretudo do sindicato, em compreender e analisar o com-plexo e multifacetado mundo do trabalho, sobretudo se considerarmos que nesse período a prática sindical lentamente começava a ser delineada.

Assim, é possível compreender que as doenças adquiridas nesse tipo de trabalho não fossem conhecidas e muito menos debatidas entre os trabalha-dores. Os depoimentos analisados indicaram que o movimento sindical dos mineiros em Jacobina começou a se desenvolver com mais força na segunda metade da década de 1980. Para alguns dirigentes, a doença não existia na-quele período, porque não existiam notícias de pessoas que adoecessem ou morressem por conta do exercício do trabalho. O que confirma a dissociação construída pela empresa, “prática eficaz produzida para burlar a vigilância no ambiente laborativo, evitando a conscientização do quanto e como as práticas de trabalho eram responsáveis pelo afastamento dos mineiros da atividade produtiva, deslocando-os para outro lugar na sociedade, o da exclusão”.15

Somado a esse, um outro argumento, afirmando que o trabalhador não utilizara de maneira adequada os equipamentos de segurança, foi amplamente enfatizado. Diferente do que a empresa pregava, o que se pode apreender, através da documentação consultada, é que as condições do trabalho oferta-das pela multinacional eram perigosas. Como afirma um dos relatórios médi-cos do Centro de Saúde do Trabalhador:

[...] A história ocupacional do paciente é de exposição a altas concentra-ções de poeira com alto teor de sílica, [pois] trabalhou como marteleteiro na mineração subterrânea de ouro, na empresa Jacobina Mineração e Co-mércio, durante seis anos [...] [C]oncluímos que o paciente é portador de silicose acelerada.16

15 FARIAS, op. cit., p. 133-134.16 16ª DIRES. Arquivo Nusat. Ficha 0084/1992.

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Como foi afirmado anteriormente, os relatórios médicos fornecidos pelo órgão oficial serviram para comprovar que o trabalhador contraíra doença no trabalho, constituindo em documento legal para exigir indenizações, mas sobretudo como estratégia de luta para revelar as condições insalubres das mi-nas. Além do CESAT, outros órgãos ligados ao trabalho já haviam, na década de 1980, notificado a empresa por conta dessas condições. Assim, afirmou a Delegacia Regional do Trabalho (DRT):

Nos dias 10, 11 e 12 de novembro de 1986, inspecionando as dependên-cias da mineração, [...] verificamos o seguinte: trabalho de subsolo: a ati-vidade extrativa propriamente dita ocorre em passagens, túneis e galerias subterrâneas, em diversos níveis de profundidade, [...] a ventilação e exaus-tão são precárias, principalmente nas frentes de lavra, onde, inclusive, paira uma intensa atmosfera contendo poeira de sílica em suspensão [...].17

As denúncias públicas de instituições como a DRT e os relatórios médicos do CESAT ajudaram a retirar da invisibilidade uma prática que ocorria desde o início dos anos de 1980, período em que a produção de ouro foi iniciada. Os argumentos da empresa então foram outros. Ao invés de dizer que o trabalha-dor tinha características genéticas e fragilidade orgânica que o predispunha a contrair doenças do aparelho respiratório, naturalizando assim as condições perigosas do trabalho nas minas, outros discursos começavam a ser produzi-dos para tentar trazer à tona os modos e maneiras do trabalho.

Nos anos de 1990, o medo e o pavor dos trabalhadores de contrair a silico-se eram constantes. Muitos procuraram o NUSAT, em Jacobina, queixando-se de alguns sintomas e muitos procuraram o médico, outros médicos da cidade, médicos particulares sobretudo quando foram demitidos; outros procuravam o médico do NUSAT, porque estavam com receio de “estar com silicose e por causa da incidência de casos em seus colegas de galeria.”18 Mas uma outra par-

17 DRT 10843/1986 e 4056/1987. Esse e outros termos de notificação encontram-se anexados em vários processos cíveis movidos pelos trabalhadores contra a empresa JMC S/A. Ver processos cíveis na 3ª vara cível da comarca de Jacobina. Fórum Pedro Calmon.18 FARIAS, op. cit., p. 171.

cela de trabalhadores, mesmo sabendo sobre a silicose, demorou a procurar ajuda médica, devido a variados motivos, entre eles por estarem enredados no discurso do emprego e da garantia de uma vida estabilizada. Um dos aspectos que se pode apreender daquela realidade é que muitos só procuravam o mé-dico, sobretudo o CESAT, quando não aguentavam mais trabalhar, quando estavam rendidos diante da silicose e sua capacidade laborativa limitada, res-tando apenas garantir o futuro da família através da aposentadoria e, em caso de morte, da pensão para a esposa e os filhos.

Nesse sentido, os relatos desses trabalhadores e de suas esposas centraliza-vam quase sempre o problema social da existência, construindo o argumento de que precisavam sobreviver e sustentar a família, deslocando os conflitos das relações sociais do trabalho e “focalizando como único problema a preo-cupação com a família, criando a ilusão de haver opção de procurar ou não o médico do CESAT.”19

Entretanto, aquela realidade se mostrava bastante complexa, ultrapassan-do a questão de procurar ou não o médico e confrontando os limites de ser reconhecido como doente, o que implicaria ter sua capacidade laborativa re-duzida, além de seu salário diminuído – questões significativas para se tentar compreender a experiência de ter contraído uma doença em decorrência do trabalho.

Analisar a associação trabalho/doença significou destrinchar o mundo do trabalho nas minas de ouro da empresa Morro Velho, percorrendo alguns caminhos para escrever aspectos da narrativa histórica, com foco nas micro relações estabelecidas naquele espaço. Em destaque, a vida de homens que se dedicaram a extrair o ouro das minas, a doença contraída em decorrência do trabalho e a luta – em primeiro momento no campo da linguagem, poste-riormente na justiça – para provar que o trabalho na mineração levou muitos trabalhadores a adoecer e morrer, o que instituiu significados para a prática daquele ofício. As experiências do trabalho nas minas de ouro foram múlti-plas e levantaram novas/antigas questões para estudo e análise, não somente em Jacobina, mas em muitas cidades e localidades do Brasil contemporâneo.

19 FARIAS, op. cit., p .256.

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TRABALHADORES LIVRES, COSTUMES COMUNS E PRÁTICAS SOCIAIS: EXPERIêNCIAS NO RECIFE OITOCENTISTA

Marcelo Mac Cord1

Email: [email protected]

Entre as décadas de 1850 e 1870, o Recife testemunhou o crescimento exponencial de seu contingente de trabalhadores livres. Três fatores contribu-íram para que a cidade experimentasse tal mudança: o tráfico interno (a maior parte dos escravos pernambucanos que foi revendida para as províncias do sul saiu da capital e de fazendas desvinculadas do mercado externo),2 a luta dos cativos por maior autonomia3 e o grande contingente de migrantes que vinha do hinterland (a “modernização” dos processos de produção do açúcar desempregou muita gente).4 Tendo em vista este quadro, existiu, no Recife, entre os trabalhadores livres, uma cada vez maior e mais acirrada disputa por serviços urbanos. Neste sentido, a capacidade de organização, o grau de coe-são e a articulação política de certos grupos oriundos das classes subalternas eram fundamentais para sua sobrevivência cotidiana, pois lhes garantia maior competitividade no e pelo mercado de trabalho. As pesquisas que realizei no mestrado e no doutorado fundamentam tal afirmativa.

Defendida em 2001, minha dissertação de mestrado analisou a Irman-dade de Nossa Senhora dos Homens Pretos da freguesia de Santo Antonio. Através da Coroação do Rei do Congo (que deveria ser um destacado con-

1 Pesquisador Colaborador e Pós-Doutorando CECULT-IFCH-UNICAMP. Bolsista FAPESP.2 Robert W. Slenes, The Demography and Economics of Brazilian Slavery, tese (Doutorado em História) – Stanford University, 1976, p. 214.3 Marcus J. M. de Carvalho, Liberdade: rotinas e rupturas do escravismo, Recife, 1822-1850, Recife, Editora Universitária UFPE, 1998.4 Peter Louis Eisenberg, Modernização sem Mudança: a indústria açucareira em Pernambuco, 1840-1910, Rio de Janeiro/Campinas, Paz e Terra/UNICAMP, 1977.

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frade negro, livre e com alguma posse), a entidade leiga controlava uma sé-rie de serviços urbanos. O soberano de referência centro-africana tinha um séquito de “Governadores de Pretos” que coordenavam diversas categorias profissionais, como carregadores de caixas de açúcar, canoeiros, capoeiras e boceteiras. No terceiro quartel do Oitocentos, o Rei do Congo Dom Anto-nio de Oliveira Guimarães e seus aliados construíram profundas relações de compromisso com alguns membros do Partido Conservador. Os Guabirus precisavam do apoio das “hierarquias negras” para dialogar com determina-dos grupos de votantes e conseguir mão de obra livre comprometida com a ordem pública. Em contrapartida, os irmãos e patenteados de cor recebe-ram favores e empregos de seus patronos, alijando assim seus competidores mais diretos.5

Os estudos e as pesquisas para o mestrado permitiram que eu travasse contato com a Irmandade de São José do Ribamar, que congregava carpin-teiros, pedreiros, tanoeiros e calafates. Diferentemente da congênere do Ro-sário, os confrades do Santo Carpinteiro estiveram reunidos em uma irman-dade embandeirada. Ou seja, a entidade leiga também era uma corporação de ofício. Fossem nacionais ou estrangeiros, os mestres daquelas quatro artes mecânicas tinham o privilégio de controlar seus mercados e a aprendizagem de suas profissões. No Livro de Matrícula da confraria, ainda encontramos artífices com outros níveis de especialização, fossem escravos ou livres. En-tretanto, a outorga da Constituição de 1824 extinguiu o monopólio que era usufruído pelos referidos artífices. Segundo Gilberto Freyre, os carpinas e pe-dreiros forjados na tradição corporativa sofreram outro duro golpe em finais da década de 1830. Os “melhoramentos materiais” promovidos pelo Barão da Boa Vista trouxeram para o Recife quase 200 operários alemães, que teriam desempregado os mestres de obras locais e suas equipes.6

Insatisfeito com o “sumiço” dos carpinas e pedreiros da Irmandade de São José do Ribamar dos canteiros de obras recifenses, desenvolvi meu pro-

5 Marcelo Mac Cord, O Rosário dos Homens Pretos de Santo Antônio: alianças e conflitos na história social do Recife, 1848-1873, dissertação (Mestrado em História) – UNICAMP, 2001. A pesquisa contou com financiamento da FAPESP e foi orientada pela professora Silvia Hunold Lara. Logo após receber a primeira menção honrosa do Concurso Silvio Romero/IPHAN, e sob os auspícios da FAPESP, o trabalho foi publicado com o título O Rosário de D. Antônio: irmandades negras, alianças e conflitos na história social do Recife, 1848-1872, Recife, FAPESP/Editora Universitária UFPE, 2005.6 Gilberto Freyre, Um Engenheiro Francês no Brasil, Rio de Janeiro, Livraria José Olympio, 1940.

jeto de doutorado com o intuito de rastreá-los e explicar aquela repentina derrocada (ao menos aparente) de um grupo de artesãos que possuía forte identidade corporativa e compartilhava costumes comuns. Em 2004, comecei a desenvolver minha tese, que foi defendida no início de 2009. Esse trabalho pôde demonstrar que, apesar do fim das corporações de ofício e da chegada dos alemães, os confrades de São José do Ribamar reinventaram suas tradi-ções e mantiveram bons níveis de empregabilidade.7 Em 1838, as autoridades pernambucanas aprovaram o novo Compromisso da entidade leiga, que ain-da respeitava as hierarquias artesanais (entre outros artigos, o regulamento determinava que somente os mestres poderiam ocupar os principais cargos da Mesa Regedora). Entretanto, duas novidades surgiram no documento: a proibição da matrícula de escravos e a exclusiva eleição de peritos nacionais para as funções deliberativas.

As novidades do Compromisso dialogavam com as conjunturas do pe-ríodo em quadro. Cada vez mais, os escravos eram considerados “ineptos” para o trabalho, por conta de sua “má vontade” e “falta de inteligência”.8 Para serem respeitados profissionalmente e conseguirem serviços em uma cida-de que se “modernizava”, os irmãos que eram artífices precisavam dissociar sua imagem do “mau trabalhador”. Por sua vez, o veto aos estrangeiros na Mesa Regedora era uma forma de valorizar o artífice pernambucano, prete-rido na condução das obras de “melhoramentos materiais” da cidade do Re-cife. Concorrentemente, no comércio a retalho também havia uma crescente campanha contra os “marinheiros” (ou seja, portugueses), que “roubavam” os empregos dos nacionais. Em 1843, no bojo destes conflitos, dissidentes do Partido Conservador e do Partido Liberal fundaram o Partido Nacional de Pernambuco (mais conhecido como Partido da Praia). Apoiado pelas cama-das médias urbanas, uma de suas principais propostas era nacionalização dos postos de trabalho.9

7 Marcelo Mac Cord, Andaimes, Casacas, Tijolos e Livros: uma associação de artífices no Recife, 1836-1880, tese (Doutorado em História) – UNICAMP, 2009. A pesquisa foi financiada pelo CNPq e orientada pela professora Silvia Hunold Lara. No mesmo ano da defesa, a tese foi classificada em 5º lugar no Prêmio Arquivo Nacional.8 Bruno Augusto Dornelas Câmara, Trabalho Livre no Brasil Imperial: o caso dos caixeiros de comércio na época da Insurreição Praieira, dissertação (Mestrado em História) – UFPE, 2005, p. 35.9 Izabel Andrade Marson, O Império do Progresso: a Revolução Praieira em Pernambuco (1842-1855), São Paulo, Editora Brasiliense, 1987, p. 209.

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No seio da Irmandade de São José do Ribamar, um pequeno grupo de mes-tres carpinas e pedreiros (pretos e pardos livres, nascidos em Pernambuco)10 resolveu aprofundar a reinvenção de seus costumes. Em 1841, os peritos fun-daram uma associação que somente seria composta por homens de mesmo perfil socioprofissional. Na nova entidade, eles exercitariam práticas de auxílio mutuo e, através de aulas noturnas, buscariam maior nível de “aperfeiçoamen-to” possível. A partir de suas próprias experiências e expectativas, mas rein-terpretando convenientemente o discurso “modernizador” das elites letradas e proprietárias, o grupo que surgia construiu uma interpretação alternativa de “progresso” e “trabalho disciplinado”. A proposta de morigeração, inteligên-cia nos ofícios artesanais e mérito realmente sensibilizou os políticos locais. Em 1844, uma ajuda financeira anual foi votada em favor da agremiação que dava seus primeiros passos. Ela foi justificada pela falta de estabelecimentos escolares profissionalizantes, por seu baixo custo aos cofres públicos e pelo bom exemplo que poderia suscitar.

Na década de 1850, o fim do tráfico de africanos escravizados e a Exposição Universal de Londres foram fundamentais para o fortalecimento da associação. Ela era uma das poucas referências locais para os legisladores pernambucanos pensarem em políticas de controle da mão de obra livre. Não por acaso, a lei provincial que previa a montagem de uma Escola Industrial acabou dialogando com a experiência dos sócios. Por mais que este estabelecimento tenha ficado somente no papel, o grupo de artistas mecânicos conseguiu conquistar a função de mantenedor do empreendimento. Ao comemorar seu décimo aniversário, a associação mudou de nome e reformou seu estatuto. De “Sociedade das Artes Mecânicas”, ela passou a ser reconhecida como “Sociedade das Artes Mecâni-cas e Liberais”. Neste momento, os artífices construíram ligações mais efetivas com membros das elites letradas e proprietárias, abriram suas matrículas para toda a “classe artística” e reafirmaram com mais ênfase o uso da inteligência nas artes mecânicas. Por todas estas razões, conseguimos encontrar muitos de seus mestres pardos e pretos trabalhando em diversas obras públicas e frequentando escolas primárias e secundárias do Recife.

10 Em minhas pesquisas de mestrado e doutorado, percebi que, em Pernambuco oitocentista, o termo “preto” também era usado para se referir aos indivíduos que tinham a pele escura, haviam nascido na Província e eram livres. No Rio de Janeiro, o termo “preto” era associado ao africano escravizado. Marcelo Mac Cord, O Rosário de D. Antônio. Marcelo Mac Cord, Andaimes, Casacas, Tijolos e Livros.

O crescimento do prestígio da associação criou muitas tensões com a Ir-mandade de São José do Ribamar, que levaram a uma ruptura entre elas. Até meados da década de 1860, as duas agremiações estiveram sediadas na Igreja de propriedade da confraria. A insistência da Sociedade em ocupar mais espa-ços físicos e simbólicos no templo devotado ao Santo Patriarca criou grandes atritos entre facções de irmãos e sócios (antes e depois do rompimento insti-tucional, já que muitos confrades permaneceram sócios e vice-versa). Expulsa da Igreja de São José do Ribamar por causa destes conflitos, a então “Socie-dade dos Artistas Mecânicos e Liberais” passou por momentos institucionais bastante críticos. Desalojado e com seus pertences guardados em depósito público, o grupo de artífices teve sua existência ameaçada pelas contingências. Contudo, as redes de clientela da associação permitiram que os artífices se re-organizassem em um novo endereço, mesmo que as aulas noturnas tivessem sofrido fortes abalos. Foi neste período que diversos políticos e empreiteiros passaram a integrar seus quadros, como sócios honorários e beneméritos, en-quanto o mercado de edificações públicas recrudescia algumas práticas mais liberalizantes.

A presença das elites letradas e proprietárias no Livro de Matrículas da Sociedade aumentou ainda mais em princípios da década de 1870. Não é coincidência o fato de a Sociedade ter conquistado, nesse período, o privi-légio de administrar o futuro Liceu de Artes e Ofícios e ostentar o título de “Imperial”. A entidade artística fundada e controlada por artistas mecânicos de pele escura entrava definitivamente para o establishment pernambucano, pois assumiu a missão de participar das políticas nacionais de “instrução popular”. Muitos artífices alijados das benesses advindas do consórcio entre Sociedade e Liceu ficaram descontentes e romperam com o grupo. Contudo, um pequeno número de artistas mecânicos de cor conseguiu capitalizar muitas vantagens e escapar da crescente “proletarização” que se espalhava pelos canteiros de obras da cidade do Recife. Apesar da presença marcante da “boa sociedade” nas vivências da “Imperial Sociedade dos Artistas Mecânicos e Liberais”, os artífices que eram descendentes de (ex-)escravos continuaram a ser os prota-gonistas desse espaço institucional, profissional e de sociabilidades.

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Novas Experiências Políticas Fundamentadas em Costumes Comuns

Como se pode observar, as pesquisas que realizei tornam evidente que, no Recife do terceiro quartel do século XIX, as classes subalternas conhece-ram múltiplas experiências organizativas. Sem dúvida, o mundo do trabalho foi algo central nestas vivências. Como acontece com muitos historiadores, a investigação que agora começo a desenvolver surgiu quando preparava mi-nha tese. No início da década de 1870, alguns mestres de cor da “Imperial Sociedade dos Artistas Mecânicos e Liberais” planejaram a criação da “União Artística”. A entidade em gestação teria duas metas. A primeira delas, promo-ver a fusão das sociedades mutualistas que reuniam os trabalhadores especia-lizados da capital pernambucana, que assim disporiam de maior representa-tividade para lutar pela “classe dos artistas”.11 A segunda meta era que seus membros conquistassem espaços políticos strictu sensu, estratégia que deveria ser coroada com a chegada dos artífices “à representação nacional”.12 No bojo deste debate, Marc Hoffnagel afirma que o grupo em formação também queria pleitear “uma mudança na legislação eleitoral que elevaria os votantes ao status de eleitor”.13

É importante sublinhar que ambos os objetivos da “União Artística” encontravam sustentação programática nas próprias conjunturas imperiais e pernambucanas. Na oportunidade em que o novo projeto associativo era discutido, outras importantes categorias profissionais recifenses já estavam organizadas em grupos de auxílio mútuo.14 Entre eles, além da própria “Im-

11 Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP), Recife, Biblioteca/Coleções Especiais, Série Liceu de Artes e Ofícios. Livro de Atas do Conselho Administrativo da Imperial Sociedade dos Artistas Mecânicos e Liberais, 1872-1880, fl. 58v.12 Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano (APEJE), Recife. Hemeroteca, “União Artística”, O Echo Artístico, 25/1/1876.13 Marc Jay Hoffnagel, “Rumos de Republicanismo em Pernambuco”, In: Leonardo Dantas da Silva (org.). A República em Pernambuco, Recife, Fundação Joaquim Nabuco/Editora Massangana, 1990, p. 166.14 No Recife da década de 1870, o significativo número de associações vai ao encontro de uma tendência observada em outras cidades. A corte testemunhou a fundação de diversas mutualistas “em fins dos anos 1860 e ao longo dos anos 1870”. Cláudio H. M. Batalha, “Sociedades de trabalhadores no Rio de Janeiro do século XIX: algumas reflexões em torno da formação da classe operária”, Cadernos AEL: sociedades operárias e mutualismo, v. 6, n. 10/11, 1999, p. 59. Em São Paulo, várias mutualistas também foram criadas a partir de 1872. Tânia Regina de Luca, O Sonho do Futuro Assegurado: o mutualismo em São Paulo, São Paulo/Brasília, Contexto/CNPq, 1990, p. 9.

perial Sociedade dos Artistas Mecânicos e Liberais”, encontramos a “Filan-trópica dos Artistas”, a “Tipográfica Pernambucana”, a “União Beneficente dos Artistas Seleiros” e a “Filantrópica Beneficente dos Artistas Alfaiates”.15 As mutualistas em foco foram constituídas ou reorganizadas a partir de 1860, quando aprovadas pelo poder central a Lei de número 1.083 e o Decreto de número 2.711. Estas regras preconizavam uma forte vigilância sobre a livre iniciativa nas vidas financeira, econômica e associativa do país.16

No tocante às reivindicações eleitorais, os idealizadores da “União Artís-tica” também estavam atentos ao que ocorria à sua volta. Entre os anos de 1860 e 1875, os círculos de três deputados gerais pretendiam ampliar a repre-sentação das minorias no parlamento imperial, mas “desde que não fosse afetado o papel mediador das elites nacionais”.17 Os círculos fortaleceram o poder local nas decisões do governo central, permitindo que as províncias tivessem maior ressonância parlamentar na Câmara.18 No alvorecer da década de 1870, segundo Marc Hoffnagel, setores das “classes laboriosas” recifenses foram motivadas a participar deste intrincado e tenso jogo político.19 Neste sentido, acredito que os discursos de maior representatividade político elei-toral tenderam a ecoar nos grupos de trabalhadores livres que apostavam em sua organização formal e melhor sistematizavam suas mais diversas reivindi-cações sociais.20

15 Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano (APEJE), Recife, Setor de Documentos Impressos, Falla com que o Exm. Sr. Commendador Henrique Pereira de Lucena abrio a Sessão da Assembléa Legislativa Provincial de Pernambuco em 1º de março de 1874, Pernambuco, Typographia de M. Figuerôa de Faria & Filhos, 1874, p. 71.16 Francisco Iglésias, “Vida Política, 1848-1866”, In: Sérgio Buarque de Hollanda (dir.), História Geral da Civilização Brasileira: o Brasil Monárquico, tomo 2, volume 5, 8ª edição, São Paulo, Bertrand Brasil, 2004, p. 99. Ronaldo Pereira de Jesus, “História e historiografia do fenômeno associativo no Brasil Monárquico (1860-1887)”, In: Carla M. de Carvalho; Mônica Ribeiro de Oliveira (orgs.), Nomes e Números: alternativas metodológicas para a história econômica e social, Minas Gerais, Editora da UFJF, 2006, pp. 285-304. Paula Christina Bin Nomelini, Sociedade Humanitária Operária: o mutualismo o estudo da classe operária, Campinas, IFCH/UNICAMP, 2004, p. 96.17 José Murilo de Carvalho, A Construção da Ordem: a elite política imperial; Teatro de Sombras: a política imperial, 2ª ed. rev., Rio de Janeiro, Editora da UFRJ/Relume-Dumará, 1996, p. 365.18 Christian Edward Cyril Lynch, O Momento Monarquiano: o Poder Moderador e o pensamento político imperial, tese (Doutorado em Ciência Política) – IUPERJ, 2007, p. 234.19 Marc Jay Hoffnagel, From Monarchy to Republic in Northeast Brasil: the case of Pernambuco, 1868-1895, Tese (Doutorado em História) – Indiana University, 1975, pp. 128 e seguintes. Marc Jay Hoffnagel, “Rumos de Republicanismo em Pernambuco”, op. cit., pp. 157-179.20 No Rio de Janeiro da década de 1870, por exemplo, grupos de trabalhadores livres e organizados haviam começado a se mobilizar no sentido de formar um partido

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A análise do planejamento da “União Artística” permite que cheguemos a uma importante conclusão: no Recife da década de 1870, determinados traba-lhadores especializados fortaleciam uma identidade coletiva que extrapolava os costumes de ofício, atitude que permitia que pleiteassem conquistas polí-ticas mais amplas. Entretanto, apesar de tentar instituir relações horizontais mais sólidas, o paternalismo marcou o processo de fundação da entidade e, em meados daquela década, o posicionamento pró-Partido Conservador da “Imperial Sociedade dos Artistas Mecânicos e Liberais” mobilizou seus ad-versários. Além disso, em 1876, a mutualista perdeu sua centralidade quando da fundação da “União Artística”. Segundo O Echo Artístico, essa entidade de classe iniciou suas atividades no dia 23 de janeiro daquele ano.21 O primeiro encontro ocorreu no escritório da própria folha, que tomou para si a condu-ção da ideia que circulava no Recife. A comparação dos nomes dos mesários e comissários da “União Artística” com os dos principais membros da “Impe-rial Sociedade dos Artistas Mecânicos e Liberais” confirma a distância entre as duas organizações.22

O afastamento institucional entre “Imperial Sociedade dos Artistas Mecâni-cos e Liberais” e “União Artística” dialogou com conflitos partidários. O Echo Artístico era uma folha que vinha sendo impressa na tipografia d’A Província, que possuía íntimas relações com o Partido Liberal.23 Outra peculiaridade que caracterizava o jornal oposicionista era o apoio que recebia de José Mariano.24 O pernambucano abraçava ideias “estranhas ao Trono” e esteve diretamente vinculado a alguns conflitos ocorridos durante a “Questão Religiosa”.25 Ha-

político. Marcelo Badaró Mattos, Escravizados e Livres: experiências comuns na formação da classe trabalhadora carioca. Rio de Janeiro, Bom Texto, 2008, p. 116.21 Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano (APEJE), Recife, Hemeroteca, “União Artística”, O Echo Artístico, 25/1/1876. 22 Nenhum dos primeiros mandatários da “União Artística” fazia parte daquela mutualista. O presidente escolhido foi H. Clorindo Taylor. José Pereira Monteiro Pessoa foi o primeiro secretário. A segunda secretaria foi ocupada por Manoel Antonio Azevedo Pontes. Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano (APEJE), Recife. Hemeroteca, “Reunião Artística”, O Echo Artístico, 25/1/1876. 23 Luiz do Nascimento, História da Imprensa de Pernambuco, volume 2, Recife, Editora Universitária UFPE, 1966.24 Idem, ibidem.25 A “Questão Religiosa” ganhou projeção a partir de maio de 1872, quando Dom Vital foi nomeado bispo de Olinda e Recife. A nova autoridade eclesiástica questionava o regalismo, pois acreditava na supremacia do poder espiritual sobre o secular. Tal pensamento estava em comunhão com o “ultramontanismo”, que primava pela obediência às normas ditadas por Roma e pelo combate a laicização do Estado. Os

via, portanto, sólidas alianças entre a recém fundada “União Artística”, O Echo Artístico, os liberais radicais e os republicanos. Sendo assim, é compreensível que os mandatários da “Imperial Sociedade dos Artistas Mecânicos e Liberais” estivessem excluídos dos lugares de poder da “União Artística”. Entretanto, por mais que os grupos hegemônicos da mutualista estivessem sem legitimidade or-ganizacional para falar em nome da “classe artística”, as disputas pela liderança dos trabalhadores mais ou menos especializados continuaram agitando a cidade do Recife.

No dia 3 de janeiro de 1877, o Diario de Pernambuco publicou uma convo-catória intitulada “Manifestação Popular”.26 Às 4 horas da tarde do dia 7, “um grande número de artistas” prometia se concentrar na Igreja de São Pedro dos Clérigos.27 Em seguida, os idealizadores do evento pretendiam caminhar até o Palácio da Soledade e presentear Dom Vital com “uma pena de ouro e uma escrivaninha de prata”.28 Na perspectiva dos organizadores, esta se-ria uma forma de demonstrar solidariedade ao religioso e compensá-lo dos constantes ataques políticos que recebeu na “Questão Religiosa”. As fontes disponíveis são imprecisas quanto ao número de manifestantes que apoia-ram o bispo de Olinda e Recife. Entretanto, no dia 11, o Diario de Pernambuco publicou um abaixo-assinado com 131 signatários. O documento exaltava o sucesso da festividade ocorrida no domingo e contava com o aval de diversos Sócios Efetivos da “Imperial Sociedade dos Artistas Mecânicos e Liberais”. Entre eles, merecem especial menção Felix de Valois Correia, Pedro Paulo dos Santos, Antonio Basílio Ferreira Barros e José Vicente Ferreira Barros Junior.29 Para estes homens, defender Dom Vital também era uma forma de atacar as lideranças da “União Artística”, os liberais radicais e os republicanos.

“ultramontanos” também pregavam a infalibilidade da Igreja Católica, desprezavam os valores da Modernidade e criticavam os “modos de sentir dos homens do século XIX”. João Camilo de Oliveira Torres, História das Idéias Religiosas no Brasil, São Paulo, Grijalbo, 1968, pp. 105-112. Para uma discussão mais minuciosa sobre a “Questão Religiosa”, ver: Marcelo Balaban, Poeta do Lápis: a trajetória de Angelo Agostini no Brasil Imperial, São Paulo e Rio de Janeiro (1864-1888), Campinas, Editora da Unicamp, 2009.26 Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano (IAHGP), Recife, Hemeroteca, “Manifestação Popular”, Diario de Pernambuco, 3/1/1877.27 Idem, ibidem. 28 Idem, ibidem. 29 Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano (IAHGP), Recife, Hemeroteca, “Ainda a manifestação artística”, Diario de Pernambuco, 11/1/1877.

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No próprio dia 3, a mesma convocatória publicada no Diario de Pernam-buco também saiu no Jornal do Recife.30 Entretanto, junto dela, a folha trouxe outra nota. Um grupo que dizia representar os carpinteiros e marceneiros retrucou o texto intitulado “Manifestação Popular”, ao ironizar o tal “grande número de artistas” que reconhecidamente apoiava os “jesuítas”.31 No dia seguinte, o Jornal do Recife ainda divulgou o manifesto “Audácia Jesuítica”, que afirmava “que a nobre classe artística desta província era indiferente à mani-festação que em seu nome engendram fazer alguns impostores”.32 No dia 5, foi a vez dos tipógrafos declararem que “não foram consultados nem pres-tam apoio à manifestação que em nome da classe artística se acha anunciada para domingo”.33 Na mesma edição, outras categorias também protestaram: ourives, cabeleireiros, chapeleiros, seleiros, armadores, ferreiros, serralheiros, maquinistas, charuteiros e cigarreiros.34 Parece evidente que o antijesuitismo destes trabalhadores caminhava junto com o questionamento da liderança pretendida pelos artífices ligados aos conservadores.

Tendo em vista as peculiaridades que marcaram a montagem e fundação da “União Artística”, três argumentos apontam para a pertinência de se apro-fundar seu estudo. O primeiro deles é a possibilidade de se analisar a cons-trução de uma identidade de classe mais ampla, mesmo que os idealizadores e primeiros membros da nova entidade, que eram artífices especializados, fossem seletivos e excludentes. Nos corações e mentes destes homens existia a crença de que eram diferentes e desiguais dos indivíduos que trabalhavam compulsoriamente ou sem qualificação. Prova contundente da “dignidade” que os pioneiros da “União Artística” acreditavam possuir é seu projeto polí-tico de conquistar cidadania plena, direito usufruído pelos membros das elites letradas e proprietárias. Compreender as complexidades supramencionadas somente é possível quando questionamos a categoria “classe” como algo mo-delar. Ou seja, parafraseando E. P. Thompson, a “classe artística” recifense não pode “ser descrita como ‘fragmentária’ ou ‘incompleta’” porque descon-

30 Fundação Joaquim Nabuco (FUNDAJ), Recife, Setor de Microfilmes, “Manifestação Popular”, Jornal do Recife, 3/1/1877.31 Idem, ibidem.32 Fundação Joaquim Nabuco (FUNDAJ), Recife, Setor de Microfilmes, “Audácia Jesuítica”, Jornal do Recife, 4/1/1877.33 Fundação Joaquim Nabuco (FUNDAJ), Recife, Setor de Microfilmes, Jornal do Recife, 5/1/1877.34 Idem, ibidem.

siderava uma irrestrita solidariedade horizontal.35

O segundo argumento que demonstra a pertinência de se estudar a “União Artística” é o combate que certos grupos de trabalhadores especializados travaram, entre si, para controlá-la. Como vimos, os jornais indicaram que esta disputa extrapolou os muros da entidade recifense. No bojo destas ten-sões, cada conjunto de artífices que esteve envolvido com a nova organização queria impor sua própria perspectiva do que seria a “legítima” identidade da “classe artística”. Entendo que tal conflito talvez fosse motivado por rixas étnicas, nacionais e profissionais, além das conhecidas divergências de cunho político-partidário. Neste sentido, pensar sobre a construção da “classe ar-tística” pernambucana também permite que encontremos algo concorrente às clivagens entre trabalhadores considerados “respeitáveis” e “vis”. Apesar de os primeiros se alinharem como iguais em finais do Oitocentos, é possível observar que alimentavam muitas diferenças, o que reforça a noção de que a categoria “classe” surge “como processo e relação e não como um lugar estrutural”.36

Por fim, em meio às disputas pelo controle da “União Artística”, é relevan-te destacar como os grupos de artífices rivais capitalizaram as disputas parti-dárias de seus patronos. Na entidade de classe que pretendia conquistar novos direitos para seus filiados, os acordos entre grupos de artífices e membros da “boa sociedade” permitiram que fossem estabelecidas mais dissensões do que parecia ser inicialmente o mesmo. Enquanto estava no campo das ideias, o pro-jeto da nova associação era capitaneado pela “Imperial Sociedade dos Artistas Mecânicos e Liberais”, simpática aos membros do Partido Conservador. Em 1876, ano de sua fundação, os cargos diretivos da “União Artística” ficaram sob o controle dos trabalhadores que eram aliados de republicanos e liberais mais exaltados. A partir destas peculiaridades, por exemplo, parece que meu novo objeto de estudo permitirá que relativizemos a absoluta manipulação dos “de baixo” da pirâmide social nos processos eleitorais.37 De fato, por mais que o voto censitário fosse excludente, acredito que seja muito simplista a

35 E. P. Thompson, “As Peculiaridades dos Ingleses”, Textos Didáticos, v. 1, n. 10, 1998, p. 31. 36 Marcelo Badaró Mattos, op. cit., p. 21.37 Entre outros trabalhos que minimizam a ativa participação política dos votantes, ver: José Murilo de Carvalho, op. cit. Richard Graham, Clientelismo e Política no Brasil do século XIX, Rio de Janeiro, Editora da UFRJ, 1997.

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ideia de que os artífices em foco sempre estivessem submetidos às demandas dos cidadãos que podiam eleger e ser eleitos.

Considerações Finais

No transcorrer deste texto, o leitor pôde observar que a “União Artísti-ca” foi idealizada por uma elite artesanal (composta fundamentalmente por mestres de pele escura) e conheceu uma série de conflitos em seu processo de montagem e fundação. E no tempo, o que ocorreu com a entidade de classe pernambucana? A simplicidade desta pergunta provoca muitos outros ques-tionamentos, que orientarão as pesquisas que pretendo aprofundar. Na dia-cronia, de fato, qual foi a importância do novo grupo para a organização dos trabalhadores especializados que viveram no Recife? Teria a “União Artística” mantido a tendência de representar uma parcela dos artífices qualificados? Os conflitos horizontais e as solidariedades verticais continuaram marcando a vida cotidiana dos mestres de ofício associados? Quais teriam sido as estra-tégias utilizadas pela “União Artística” para que seus representados conquis-tassem o voto direto e o direito de pleitear cadeiras legislativas? Por fim, até quando a entidade de classe foi um espaço que deu visibilidade às demandas (de parcela ou da totalidade) da “classe artística”? Como as ações do grupo de trabalhadores em foco foram percebidas pelo conjunto da sociedade re-cifense? Elas influenciaram mudanças históricas no campo da cidadania e da participação política?

Na década de 1870, período em que a “União Artística” foi organizada e deu seus primeiros passos, os discursos racistas que começavam a circular nos meios acadêmicos brasileiros (em especial, nos recifenses) propuseram que o “negro” era um entrave tanto para o desenvolvimento, quanto para a “civilização” do país.38 Nas esferas mais cotidianas, a referida categoria racial, de cunho cientificista, remetia o grande público às figuras do escravo e do liberto sem clara ocupação profissional, na medida em que ambos representavam sérias ameaças à ordem estabelecida.39 Como demonstrei em minha tese de

38 Lilia Moritz Schwarcz, O Espetáculo das Raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil, 1870-1930, 3a reimpressão, São Paulo, Companhia das Letras, 2001, p. 149. 39 Célia Maria de Azevedo, Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das elites, século XIX, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987.

doutoramento, os sócios pretos e pardos da “Imperial Sociedade dos Artistas Mecânicos e Liberais” entendiam que o “negro” era o outro. É coerente que os mestres de ofício da “União Artística” também pensassem da mesma forma, até mesmo porque sua entidade de classe estava ancorada na liberdade jurídica, na cidadania, na valorização do trabalho especializado e na participação mais efetiva no processo político strictu sensu. De fato, no Oitocentos, tais práticas e valores passavam ao largo da vida cotidiana daqueles que a categoria “negro” pretendia representar.

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DE “PEÃO” A “JOÃO”.UMA AÇÃO CONJUNTA VISANDO A REINSERÇÃO SOCIAL.

Prof. Dr. Vitale Joanoni Neto

Email: [email protected]

Profa. Dra. Leonice Aparecida de Fátima Alves

Email: [email protected]

O presente artigo tem o propósito de apresentar aos leitores o projeto denominado Ação Interinstitucional para Qualificação e Reinserção Profissional dos Trabalhadores Resgatados do Trabalho Escravo e/ou em Situação de Vulnerabi-lidade resultante de uma parceria entre Ministério do Trabalho e Empre-go (MTE) por intermédio da Superintendência Regional do Trabalho e Emprego de Mato Grosso (SRT/MT), Ministério Público do Trabalho através da Procuradoria Regional do Trabalho 23ª Região (PRT/MT) e Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) através do Grupo de Pesqui-sa História, Terra e Trabalho.

Antes de apresentarmos o projeto propriamente dito apontaremos alguns elementos que julgamos indispensáveis para a compreensão do seu propósito, quais sejam: limites e possibilidades da educação formal com especial ênfase na possibilidade de autonomia dos indivíduos no atual contexto e o fenômeno do trabalho escravo contemporâneo, especialmente no que diz respeito a proposições que impeçam ou minimizem a situação de vulnerabilidade social que tem propiciado o aliciamento dos trabalhadores. A escolha por esses pressupostos decorre da nossa compreensão de que são esses os vetores centrais para o entendimento da proposta contemplada no projeto antes referido.

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As discussões acerca do binômio ensino/educação desde muito têm ocu-pado estudiosos principalmente da sociologia, filosofia e pedagogia, via de regra, divididos em dois grupos distintos, cuja aproximação parece até o mo-mento um tanto difícil, além do fato de que essa dicotomia tem servido mais para paralisar as ações do que para propor alternativas efetivamente compro-metidas com algum nível de transformação.

A escola, juntamente com a família, a religião, a política e a economia, é identificada como uma das cinco instituições sociais de suma importância no processo de socialização/mediação dos indivíduos entre si e com a sociedade.

A priori a escola é percebida como um espaço de transmissão de conhe-cimentos e normas comportamentais, em grande parte determinados pela cultura de um dado grupo. Nesse contexto ganha destaque a percepção do ensino/educação oriunda dos paradigmas positivistas e comportamentais, fundados no estímulo/resposta, que concebe as práticas educacionais como pragmáticas e condicionadoras, visto que a escola é pensada como o propósi-to único de reproduzir as relações de produção.

De outro lado temos uma crítica bastante sistematizada a essa percepção, elaborada pelos estudiosos de educação popular no Brasil e na América Latina, com especial ênfase na produção de Paulo Freire, que propunham uma edu-cação que transcendesse o espaço escolar e que pudesse ser identificada como ‘prática da liberdade garantidora de um futuro autônomo para aqueles que constituem o objeto de sua ação.’ (1980, p. 23)

Como bem assevera Ferreira (2001, p. 207): “Entender e orientar a ativi-dade social da educação para além da mera transmissão, significa encaminhá--la para a possibilidade real de indivíduos e sociedades se emanciparem de sistemas e relações pessoais e institucionais de dominação opressivas de uma vez por todas”.

Embora a inegável importância dessas reflexões, bem como a atualidade e a necessária ressignificação de muitas delas, no momento em que vivemos, pensamos importante considerar seu caráter amplo e, portanto, generalista. Em outras palavras, pensar a “atividade social da educação” implica consi-derar a priori a que sociedade nos referimos e mais, a quais grupos sociais

voltaremos nossa ação. Não é concebível pensar a “possibilidade real de indi-víduos” sem antes um diagnóstico acerca do grupo social em questão: se rural ou urbano, se economicamente mais ou menos abastado, se remanescente de quilombo ou pertencente a alguma nação indígena; enfim, há que se conside-rar necessariamente sua história. A partir desse quadro, as estratégias podem variar muito.

Para o caso do projeto acima citado, identificamos como público alvo indivíduos predominantemente do sexo masculino, adultos, tanto de áreas urbanas quanto rurais, que têm em comum baixa ou nenhuma escolaridade, habitando áreas urbanas ou rurais periféricas e economicamente frágeis e de-sassistidas socialmente pelos poderes públicos.

Cumpre notar, no entanto, que esta não é sua característica distintiva mais marcante. Bauman1 caracteriza o indivíduo pleno no mundo contemporâneo como consumidor; esse seria dotado de cidadania. Aquele que não tem ple-namente essa condição – o autor denomina “consumidor falho” – seriam os “redundantes”. É certo que o autor inclui nessa categoria aqueles que não têm lugar nesse mundo, os prescindíveis, ou, nas palavras do próprio autor, o lixo. Por hora, estas primeiras observações sobre esta tese de Bauman são suficien-tes. Mais adiante voltaremos a ela. A característica distintiva mais marcante do público alvo deste projeto está no fato de que aqueles que o compõem foram objetos de uma exploração tão exacerbada que os fez perder a condição de consumidores falhos, ou seja, foram guindados à condição de não humanos, tornados mercadoria, ferramentas de trabalho.

Essas considerações feitas nos levam a afirmar que encaminhá-los para uma possibilidade real de emancipação “de sistemas e relações pessoais e ins-titucionais de dominação opressivas” não se fará em uma única etapa, mas ne-cessariamente em fases sucessivas. Desde sua libertação pelos Grupos Móveis de Fiscalização do MTE, passando por ações pontuais dos poderes públicos (da emissão dos documentos pessoais às ações judiciais cabíveis), sendo a elevação do nível educacional e a formação profissional uma dessas etapas.

Feitas essa considerações, passamos a pensar a escola como um espaço possível de apropriação de conhecimento acumulado pela humanidade, de tal

1 BAUMAN, Zygmunt. Vidas desperdiçadas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005.

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sorte a possibilitar aos seus egressos elementos indispensáveis para propiciar a leitura de mundo. Cumpre ressalvar, nesse contexto, a necessária percepção dos educandos como sujeitos que podem efetivamente atribuir significados diversos ao conjunto de conhecimentos disponibilizados pelo aparato educa-cional, visto serem possuidores de conhecimentos vários, independentes do acesso aos sistemas de ensino, contrariamente do que pensam os signatários da escola positivista/comportamental cuja concepção – acerca dos educan-dos – pressupõe que os mesmos não disponham de nenhum conhecimento prévio ao ingresso na escola.

Guareschi (1984:21), acerca de uma educação que efetivamente possa – juntamente com outros elementos – potencializar a emancipação dos indiví-duos, afirma que: “A educação supõe, pois, que a pessoa não é uma ‘tábula rasa’, mas possui potencialidades próprias, que vão sendo atualizadas, coloca-das em ação e desenvolvidas através do processo educativo”.

Devemos ressalvar ainda que a atividade educativa na contemporaneida-de é percebida como um elemento necessário para o acesso ao mercado de trabalho, condição essa indispensável para a própria sobrevivência dos indiví-duos, sendo evidentemente o ponto de partida para um pensar próprio e au-tônomo que permita a esses indivíduos poder escolher, de per si, os caminhos a percorrer.

Feitas essas considerações passamos agora a disponibilizar ao leitor algu-mas reflexões acerca do trabalho escravo contemporâneo.

O passado escravista do Brasil tem sido utilizado por alguns como argu-mento para explicar o fenômeno atual, por outros para negá-lo, em ambos os casos equivocadamente. A superexploração do trabalhador juridicamente livre pode ser encontrada no país em diferentes momentos. Na Fazenda Ibicaba, de propriedade do Senador Vergueiro – em meados do século XIX – colonos europeus trazidos para trabalhar em sistema de parceria foram aprisionados por dívida, sofreram humilhações e todo tipo de violência.2

A pesquisa no jornal Terra Livre entre 1954 e 1964 nos traz dezenas de casos semelhantes. Trabalhadores recebendo vales em lugar de salários, jorna-

2 DAVATZ, T. Memórias de um colono no Brasil. (1850). São Paulo: Livraria Martins, 1941.

das abusivas, violência armada, endividamento nos armazéns da empresa. Al-guns exemplos: “Na fazenda Santa Alice (Paraná) ainda impera a lei da escravidão”; “Para construir piscina e cassino implantou a escravidão da fazenda”.3

Percebe-se nestes casos que a palavra está sendo colocada para dizer da superexploração do trabalho juridicamente livre. O termo foi reapropriado.

O Brasil utilizou a mão de obra escrava de modo institucional até 1888. A palavra “escravidão” ganhou espaço definitivo no vocabulário do país e passou a ser usada para designar práticas muito distintas e mesmo situações cotidianas.

A elaboração de uma Convenção sobre a Escravidão em 1926, na Liga das Nações, nos mostra que, apesar do uso comum da palavra, o conceito ainda estava muito próximo daquele encontrado no século XIX, embora fosse pos-sível notar sinais de mudança em seu sentido: “escravidão é o estado e a condição de um indivíduo sobre o qual se exercem, total ou parcialmente, alguns ou todos os atributos do direito de propriedade”.4

Em 1940, novamente apareceu o conceito, dessa vez no Código Penal Brasileiro: “reduzir alguém a condição análoga à de escravo” e na exposição de mo-tivos do Decreto-Lei n.2.848/40, diz-se “não é desconhecida sua prática entre nós, notadamente em certos pontos de nosso hinterland”.5

O que se quer é demonstrar que apesar do termo aparecer na imprensa sindical, conforme exposto acima, e ele é usado propositadamente pela sua capacidade impactante dada pelo lastro histórico que a palavra contém; as interpretações conceituais afastaram-se daquela praticada no século XIX e que encontramos no documento da Liga das Nações de 1926. O acréscimo da palavra “análoga” ao conceito “escravo” e a forma como foi redigido o texto da lei dificultavam sua aplicação, mesmo com o explícito reconhecimento de tal prática.

Segundo Koselleck, todo conceito só pode enquanto tal, ser pensado e

3 Terra Livre, respectivamente, Ano XI, edição 95, 1960, p.1 e 1958, sem menção à edição, p. 2.4 Citado por FIGUEIRA, Ricardo R. Pisando fora da própria sombra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004, p. 36.5 RODRIGUES Jr., Hélio de Souza. A polêmica em torno da necessidade ou não de uma definição do que seja “Trabalho Escravo”. Disponível em www.mpt.br, acessado em novembro de 2005.

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falado/expressado uma única vez. Ou seja, sua formulação teórica abstrata relaciona-se a uma situação concreta que é única. Novos conceitos, articula-dos a conteúdos, são produzidos/pensados ainda que as palavras empregadas para designá-los possam ser as mesmas.6

O conceito de escravidão, em processo de construção e ressignificação, quer indicar o conjunto de práticas sociais presentes em determinadas áreas do Brasil. Devemos partir teoricamente da possibilidade de que em cada uso pragmático da linguagem, que é sempre sincrônico, e relativo a uma situação específica, esteja sempre contida uma diacronia. Toda sincronia contém sem-pre uma diacronia presente na semântica, indicando temporalidades diversas que não se alteram. Podemos pensar que em cada utilização específica de um conceito, estão contidas forças diacrônicas sobre as quais não temos nenhum poder e que se expressam pela semântica. As mudanças nesse campo são mui-to mais lentas do que no campo do uso pragmático da língua.7

Hoje os discursos sobre direitos trabalhistas, a legalidade, estão incorpora-dos e fluem com facilidade em qualquer conversa com empreiteiros ou pro-prietários rurais, mesmo que as operações dos Grupos Móveis continuem a encontrar todos os problemas aqui tratados.

Os principais traços dessa forma de exploração de trabalho são: a pre-dominância de seu uso pelo setor privado, no Brasil pelo setor primário; o endividamento induzido como método de coação; a precariedade da situação jurídica de milhões de pessoas em todo o mundo, expressa no Brasil pela falta de certidão de nascimento; verifica-se mundialmente a ausência de leis mais eficientes para coibir e punir tais crimes, a começar pela dificuldade em se definir essa categoria de trabalho considerada banida pelo senso comum e ineficiente do ponto de vista econômico pelo mesmo sistema dentro do qual ela persiste.

A relação de trabalho análogo ao escravo é caracterizada por um conjunto de fatores:

6 KOSELLECK, Reinhart. Uma História dos Conceitos: problemas teóricos e práticos. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 5, n. 10, 1992, p.134-146. Disponível em http://www.cpdoc.fgv.br/revista/arq/101.pdf, acesso em 08 out. 2007.7 KOSELLECK, Reinhart. Uma História dos Conceitos: problemas teóricos e práticos.

1 - ausência de salários dignos – o assalariamento remete a uma rela-ção de trabalho dentro dos moldes de desenvolvimento capitalista. Bons ou maus salários implicam na livre venda da força de trabalho para o mercado, que se apropria do excedente de produção através da mais-valia, o que não condiz com a situação aqui analisada;

2 - condições de trabalho insatisfatórias – é comum que se diga entre os proprietários rurais nas regiões pesquisadas que o Ministério do Trabalho não aceita que trabalhadores fiquem “debaixo de lona”, uma alusão aos alojamentos nas diferentes frentes de trabalho, seja no desmatamento, na demarcação de terras, ou mesmo entre os proprietários de lotes, até que se consiga a construção da casa. Essa simplificação nada tem de casual ou produto do desconhecimento. É sim uma prática discursiva que desvirtua as ações dos Grupos Móveis e que reduz a uma imagem extremamente comum nestas regiões e, portanto, naturalizada, toda uma relação de trabalho que envolve, entre outras coisas:

a) alojamento e alimentação inadequados e pagos;

b) fornecimento de mercadorias (ferramentas para o trabalho, equi-pamentos de proteção individual, alimentos, fumo, calçados, me-dicamentos, peças de vestuário) pelo empreiteiro, o gato, ou pelo proprietário da empresa a custos maiores que os praticados nos mercados locais e, não raro, em sistema de caderneta, ou seja, os produtos adquiridos são anotados em um pequeno caderno que fica em poder do contratante e que ao final da empreita é apre-sentado ao trabalhador, somado e debitado daquilo que ele tem a receber;

c) péssimas condições sanitárias e de higiene. Frequentemente a água utilizada é a de um córrego próximo e nesse caso será dessa água que tirarão para beber, cozinhar, banhar e lavar suas roupas ou levada para a frente de trabalho em recipientes que ficam durante todo o dia expostos ao sol à disposição

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dos trabalhadores; os alimentos ficam expostos às ações de insetos e no caso da carne esta é mantida em varais para secar sem nenhuma proteção;

d) cerceamento da liberdade de ir e vir, que pode se dar por meio de isolamento geográfico (frentes de trabalho distantes de vilas, povoados, cidades), aprisionamento por dívida contraída no comércio de mercadorias pelo empregador, apreensão dos documentos pessoais do trabalhador feitos no momento do início da empreita sob a alegação de necessidade de controle ou suposto registro em carteira – coisa que raramente ocorre – pelo uso de vigias armados que impedem que os trabalhadores deixem a propriedade.

O conjunto de fatores expostos acerca dessa relação de trabalho, impli-ca em grave violação dos direitos humanos, muito mais do que o frequen-temente alegado pelas defesas dos acusados. É compulsório, pois é obtido sob ameaça de uma pena que vai do não recebimento do valor acordado, até aquelas que envolvem a integridade física do trabalhador. É levado a cabo de forma involuntária, uma vez aliciados e nas frentes de trabalho restam poucas opções àquelas pessoas além de realizar as tarefas exigidas.

As relações econômicas que possibilitam a exploração deste trabalhador – cuja mão de obra é tomada como subqualificada – que encontramos no Brasil contemporâneo não podem ser equiparadas àquelas existentes nos períodos colonial e imperial.

Há que se considerar, no entanto, que mesmo naquele Brasil no qual o escravismo vigorava como meio legal de utilização de mão de obra, tal qua-dro não resultava inteiramente de relações econômicas no sentido estrito. Se-gundo Fragoso (1990, p. 135), a extorsão do trabalho era mais resultado de relações de poder que de relações econômicas.

Essa importante reflexão nos permite supor um traço de permanência que, se não se liga diretamente aos modelos de exploração econômicos vi-

gentes na contemporaneidade, permite sim observar que estas relações de dominação referidas acima, que ainda segundo o autor, conferiam “às relações sociais de subordinação um papel dominante”, (Fragoso, 1990, p. 135); mantiveram--se vivas e são elemento constitutivo, extraeconômico, das relações de explo-ração vigentes no Brasil atual.

Esterci, ao tratar das formas de escravidão contemporâneas, afirma que no mundo rural brasileiro, existem situações nas quais “o exercício da dominação está baseado na legitimidade que lhe conferem os próprios dominados” (Esterci, 2001, p. 265). Frequentemente tais mecanismos envolvem trabalhos contratados oralmente sob a forma de empreita,8 com ênfase nos compromissos mútuos assumidos.

Tais relações envolvem temporalidades diferentes, lugares sociais distan-tes, o encontro de diferentes fronteiras. De um lado os incluídos, que par-ticipam deste mundo contemporâneo e usufruem das relações econômicas como protagonistas. De outro, os excluídos, os redundantes, nas palavras de Bauman (2005, p. 20), pessoas que não têm lugar no mundo contemporâneo e a quem não se reconhece sequer o direito ao direito. Participam das relações econômicas como coadjuvantes.

Rosa Luxemburgo (1985, p. 271 e ss.) propôs que o capitalismo sucumbi-ria por falta de áreas não capitalistas em seu entorno, das quais ele precisaria para incorporar como condição para sua sobrevivência. Bauman propõe uma “atualização” dessa tese. Segundo ele, a modernidade não pode mais reas-similar nem suprimir pessoas ou áreas. Este mundo seria formado por um conjunto reduzido de consumidores plenos e por outra parte, a maioria, de gente descartável (Bauman, 2005, p. 89), que não conta como trabalhadores, nem consequentemente como consumidores.

São essas pessoas, sem lugar nesse mundo, ou a quem cabe apenas o não lugar, os alvos dessas relações de exploração que vão muito além da apro-priação da sua força de trabalho. Uma menina levada para um cabaré para ser explorada sexualmente ou um trabalhador aliciado para uma derrubada ilegal não são vitimas de infrações trabalhistas. São seres humanos expropriados de suas vidas e com a agravante de, por serem considerados prescindíveis,

8 Forma de contratação de trabalho envolvendo a execução de tarefas com preço previamente combinado.

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valerem bem menos que um escravo no século XIX (Bales, 2001, p. 26). O que os atinge é uma violação aos direitos humanos, fenômeno, portanto, de dimensão universal.

Essas pessoas foram levadas da condição de não inseridas, por viverem em áreas pré-capitalistas, para a condição de excluídas. Descartadas por serem herdeiras da miséria social e econômica que afligiu boa parte da sociedade brasileira ao longo dos séculos, vivem do mínimo necessário, desenvolveram estratégias para se relacionar com as “autoridades” com as quais se encon-tram, seja a do empreiteiro, do fazendeiro, do policial, do padre, ou outra qualquer. O reconhecimento ou atribuição dessa autoridade é parte dessas estratégias de sobrevivência.

Em áreas periféricas, essas autoridades representam o poder do incipiente Estado que os alcança, então tomam para si a prerrogativa da violência legí-tima, ou seja, de ações sociais intencionalmente desenvolvidas para negar a alteridade humana, legitimada pela cumplicidade do Direito (Ruiz, 2009, p. 91 e ss.).

Dom Pedro Casaldáliga, quando divulgou sua primeira Carta Pastoral (denominada Uma Igreja da Amazônia em conflito com o latifúndio e a marginalização social) como Arcebispo da Prelazia de São Félix do Araguaia, no ano de 1971, impôs um desafio aos estudiosos da sociedade brasileira a medida que, num contexto de acelerado crescimento econômico, especialmente no estado de Mato Grosso, denunciou a existência do trabalho escravo no Brasil.

Nestas áreas da fronteira amazônica, a modernização proporcionou mais que o desenvolvimento do agrobusiness, gerou a acumulação e a concentração da riqueza, que alija de modo diretamente proporcional na medida de seu avanço. Os números fantásticos da produtividade da soja mato-grossense, a riqueza dos garimpos, o potencial madeireiro, tiveram e ainda têm em seu avesso uma acentuada desigualdade. Um grande contingente de migrantes foi reduzido à condição de excluído, e outros tantos continuam a chegar na região atraídos pela ilusão do Eldorado.

A fronteira construída em nome da modernidade, símbolo do avanço da frente de expansão do capital faz uso indiscriminado de relações de trabalho

excludentes. O Brasil tem sido denunciado internacionalmente por anos se-guidos pela quantidade de trabalhadores submetidos à condição de escravos contemporâneos. Os casos recentes de aviltamento de direitos, já citados, são na verdade permanências.

Antes de descrevermos o projeto denominado Programa de qualificação e reinserção social dos egressos do trabalho escravo e de trabalhadores em situação de vulne-rabilidade sócio-profissional no Estado de Mato Grosso, cumpre referir que o mesmo encontra-se em fase inicial de execução, tratando-se de um projeto piloto, cujos resultados poderão subsidiar a elaboração de futuras políticas públicas que versem sobre a matéria.

Inicialmente faremos um breve relato acerca do tratamento despendido à temática pelo poder público no estado do Mato Grosso, de modo a evidenciar a importância da matéria não só para a sociedade civil quanto para as agências governamentais.

No ano de 2004 foi criado o Fórum Estadual para a Erradicação do Tra-balho Escravo em Mato Grosso, com a edição do Decreto nº 985 de 07/dez/2007, que criou a Comissão Estadual para a Erradicação do trabalho Es-cravo (COETRAE). No ano de 2008, foi apresentado o plano de ações para a erradicação do trabalho escravo para o estado de Mato Grosso, materializado no Decreto nº 1.545 de 29 de agosto daquele ano, sendo importante referir que naquele mesmo ano foi aprovada a Agenda Estadual Para o Trabalho Decente, cujo propósito era erradicação do trabalho escravo e infantil, além da redução de acidentes de trabalho.

É importante informar que até agosto de 2009 o Ministério do Trabalho e Emprego, através da Superintendência Regional do Trabalho e Emprego/MT, realizou 13 operações em 29 fazendas, atingindo um total de 4.636 tra-balhadores; 262 registros em Carteira de Trabalho e Previdência Social assi-nadas; 154 trabalhadores foram resgatados do trabalho escravo; 247 autos de infração foram aplicados totalizando um montante de R$ 1.326.405,25 em indenizações.

Acerca dos resgatados podemos afirmar – com base nos dados do seguro desemprego – que: 201 declararam residir no MT (75%); dentre os 257 que

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declararam a naturalidade, 120 nasceram no MT (46,7%); 259 informaram grau de escolaridade, sendo 62 não alfabetizados (23,9%); 64 não comple-taram as séries iniciais do fundamental (24,65%); 23 tinham as séries iniciais do fundamental completo (8,8%); 90 deles tinham as séries finais do ensino fundamental incompleto (34,9%); 12 deles tinham séries finais do ensino fun-damental completo (4,6%); 4 tinham o ensino médio incompleto (1,5%) e 4 com o ensino médio completo (1,5%).

A faixa etária da maioria dos regatados pode ser identificada da forma que segue: 20 a 30 anos (31%) e 30 a 40 anos (25%).

O projeto tem um prazo mínimo de execução de 12 meses, de tal sorte a proporcionar a avaliação dos resultados, sendo seu principal objetivo ofertar elevação educacional e/ou formação profissional aos trabalhadores resgata-dos ou em situação de vulnerabilidade ao trabalho escravo; seus recursos são resultantes de Termos de Ajustamento de Conduta sob a responsabilidade do MPT/MT, além de sentenças judiciais provenientes da Justiça do Trabalho do estado do Mato Grosso.

A operacionalização do mesmo está sendo feita pelo Ministério do Tra-balho e Emprego por intermédio da Superintendência Regional do Trabalho e Emprego; Ministério Público do Trabalho através da Procuradoria Regio-nal do Trabalho 23ª Região – PRT/MT e Secretaria de Estado de Trabalho, Emprego, Cidadania e Assistência Social (SETECS). O monitoramento do mesmo esta sob a responsabilidade da Comissão Estadual para a Erradicação do Trabalho Escravo (COETRAE). Cumpre informar ainda que foi firmado um Acordo de Cooperação Técnica entre o Ministério Público do Trabalho através da Procuradoria Regional do Trabalho 23ª Região – PRT/MT, Ministério do Trabalho e Emprego por intermédio da Superintendência Regional do Tra-balho e Emprego (MTE) e Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) e a Fundação de Apoio e Desenvolvimento da UFMT – Fundação Uniselva, sendo os objetivos dessa parceria:

Elaborar e implementar Metodologia de Abordagem que propicie identificar, entre resgatados do trabalho escravo e trabalhadores em situação de vulnerabilidade, pessoas dispostas e aptas a participar dos cursos de formação técnico-educacional ofertados por programas no Estado de Mato Grosso.

Apoiar as ações de elevação técnico-educacional que atendam ao perfil dos trabalhadores identificados no item anterior.

Acompanhar a formação e a reinserção profissional desses trabalhadores de tal forma a verificar a efetiva elevação de renda e da qualidade de vida.

Sobre a abordagem, devemos destacar que a mesma deverá permitir a realização de um Estudo do Perfil Sócio-Profissional (EPS) dos egressos e do público em situação de vulnerabilidade ao trabalho escravo para a poste-rior busca da identificação de programas e projetos que atendam a demanda estudada, daí resultando as ações integradas entre a Seção de Inspeção do Trabalho da SRTE/MT, Sistema Nacional de Emprego (SINE) e Centros de Referência em Assistência Social (CRAS).

Tal trabalho ocorre por meio de ações integradas de assistentes sociais e psicólogas (CRAS) com auxílio da Coordenação de Fiscalização Rural da SRTE/MT, a fim de propiciar a abordagem adequada dos trabalhadores para motivá-los a participar do projeto. É importante destacar ainda a necessária sensibilização das empresas privadas com objetivo de aderirem ao programa, além do envolvimento gradual de instituições que desenvolvem políticas de qualificação em conjunto com as demais políticas públicas de trabalho, em-prego e renda, de tal sorte a proporcionar aberturas de vagas em cursos de qualificação profissional e educacional junto aos órgãos governamentais, em emprego direto em empresas privadas e em programas de geração de trabalho e renda.

Até o momento destacamos as parcerias entre os Centro de Referência em Assistência Social (CRAS), o Sistema SESI/SENAI, SENAR, Organização Internacional do Trabalho (OIT) e Associação Matogrossense dos Produto-res de Algodão (AMPA). Em razão dessas parcerias já foram ofertados cursos de qualificação que seguem descritos:

• Eletricista de Manutenção Industrial e elevação de escolaridade (ensino fundamental) em razão de parceria entre o projeto e o SESI/SENA no programa Educação Básica e Educação Profissional (EBEP), sendo que os aprendizes recebem bolsa no valor de um

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salário mínimo mensal, além de alimentação, transporte e hospedagem na Pastoral do Migrante em Cuiabá. O curso tem duração de um ano, tendo sido iniciado em outubro de 2009;

• Curso de Eletricista de Distribuição (03 meses/início 25/09), em Cuiabá.

• Curso de Operadores de Máquinas Agrícolas (16 dias/início 06/08), em Querência.

• Cursos de Corte e Costura Industrial e Mecânico de Motos (02 meses/início 13/10), no município de Pontal de Araguaia;

• Curso de serigrafia e abertura de um telecentro para viabilizar a inclusão digital, atividades essas em parceria com a Central Única das Favelas (CUFA) e com o Banco do Brasil, no município de Poconé.

Devemos referir ainda que de fevereiro até abril de 2010 já foram realiza-dos diligências em 10 municípios do Estado, tendo sido abordados um total de 159 egressos e/ou vulneráveis, com o propósito de identificar o perfil dos mesmos para posterior propositura de cursos e/ou atividades que possam resultar na sua qualificação profissional. Ademais, se tem a previsão da aber-tura de uma nova turma no mês de maio próximo, com a oferta de um curso profissionalizante aliado à elevação de escolaridade, curso esse ainda em fase de elaboração.

Existe a proposta ainda para 2010 da oferta de um curso multisseriado organizado a partir de três grandes eixos, quais sejam: cidadania, legislação trabalhista e empreendedorismo, curso esse que totalizaria 300 horas.

É importante ainda referir que foram aplicados recursos oriundos das TACs na Pastoral do Migrante, para reforma e adequação das instalações para o recebimento de beneficiários do projeto, que também é discutido em ofici-nas técnicas entre parceiros garantindo uma maior aproximação de equipes e ações concernentes ao projeto.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O projeto aqui analisado visa resolver uma das questões centrais no que concerne à erradicação do trabalho escravo contemporâneo, qual seja, agir sobre os fatores que levam estas pessoas a se sujeitar a tais relações de tra-balho. Ao longo destes últimos 15 anos, muitos relatos foram coletados, compondo um rico acervo sobre os trabalhadores resgatados. Não são pou-cos os casos de reincidência e encontramos mesmo declarações de pessoas afirmando migrar por anos seguidos em busca de trabalho, intermediadas por empreiteiros ou levadas pelas notícias que de boca em boca atraem trabalhadores para determinadas áreas do país. As razões pelas quais essas pessoas migram invariavelmente convergem para a busca de trabalho e di-nheiro para sustentar a família, o que impõe o seguinte desafio: a melhor forma de evitar seu aliciamento e envolvimento com o trabalho escravo contemporâneo é propiciar condições mínimas de trabalho, emprego e ren-da no local de sua moradia.

Durante anos esse propósito ficou como meta dificilmente executável em razão do mapeamento das redes de exploração desses trabalhadores nos mostrarem que sua origem estava em outros estados, majoritariamente Ma-ranhão e Piauí. O quadro mudou quando no levantamento de 2009, onde encontramos 75% dos trabalhadores libertados em ações dos Grupos Móveis declararem residir no Mato Grosso. As causas dessas mudança de perfil são igualmente importantes, mas não cabem nesse artigo. Essa informação trazia uma mudança no perfil dos atingidos e tornava possível uma ação dentro do estado. A formatação do projeto considera como início dos trabalhos as ações da SRTE/MT e é seguida pela abordagem dos resgatados, após o que, ouvidas suas expectativas, tem início a implantação das ações de elevação educacional e profissional.

Negar a esses indivíduos o acesso a escola formal em razão do papel con-dicionante que a mesma possa cumprir pode agravar, até de forma irrevo-gável, a possibilidade de qualquer tipo de inclusão, por mais incipiente que a mesma possa ser, pois no nosso contexto a ausência de escolaridade pode segregar de forma absoluta os indivíduos, o que somente reforçaria sua con-dição de vulnerabilidade social.

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Consideramos correta a análise de que ações como essa, que não negam a cidadania, pelo contrário, abrem caminho para sua conquista. Foi Rosa de Luxemburgo quem disse que há entre a Revolução e Reforma não um abismo, mas pequenas reformas que podem precisamente causar revoluções. Podem também ser reacionárias se ficarem como um fim em si.9

É preciso suplantar a visão paradigmática presente nestas posições polí-ticas que veem o mundo a partir do passado, sem diacronia, e pensar não o trabalhador como ferramenta para ser usada como massa de manobra dos ilu-ministas políticos de qualquer posição, mas de novo apreender o que ele traz, na sua dor, resistência, na acomodação sisifiana com que tece os fios de uma transformação para além dos mecanicismos políticos, e das únicas coisas que atribuímos, em voo estratosférico, de considerá-lo escória, lixo, incapacidade política, por não se deixar dominar. Como afirmou Baudrillard em seu texto “Às sombras das maiorias silenciosas”, os setores populares seriam como buracos negros da astrofísica, que não “refletem” a luz, mas também “não absorvem” o que vem da exterioridade – seja com que sentido for – que não se enquadre no respeito à sua autonomia.

O segredo de compreender as pessoas, essas, inclusive, é ouvi-las, o que implica um silêncio político-religioso de que as representações que dali sur-gem são expressões tocadas por nós, apenas com as pontas dos dedos, porque não somos capazes de dominar um ser humano e torná-lo “instrumento ”. Nosso compromisso primeiro não é o de agradar os que rompem com este respeito e esta ética, com as melhores racionalidades do mundo, mas dar oxi-gênio, direito a quem não o tem, de fazer o que acha que possa vir a fazer com a liberdade que puder conquistar com a humanidade que está desde antes construindo. E finalmente,

estou mais do que convencido de que se não partimos da condição de igualdade prévia, entre seres humanos, entre a gente e eles, não se irá superar a desigualdade que nós mesmos aceitamos como se fosse real e substantiva entre pessoas. Tenho dito continuamente, que a cidadania não é uma condição exterior a ser alcançada, mas a condição prévia a quem nasce sob pele humana neste mundo.10

9 Agradecemos ao Prof. Dr. Luiz Augusto Passos, filósofo e educador, pelas preciosas contribuições na elaboração desta discussão.10 PASSOS, Luiz Augusto. Comunicação pessoal. 04, fev. 2010.

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REFLEXÕES SOBRE O TRABALHO DOS OPERÁRIOS: A ATUAÇÃO DO EMPRESÁRIO CATÓLICO CARLOS ALBERTO DE MENEZES

Dr. Newton Darwin de Andrade Cabral

Professor Adjunto IV da Universidade Católica de Pernambuco

As relações sociais têm ocupado lugar significativo nos ensinamentos da Igreja, ao longo do processo de estruturação do seu pensamento social. No nível da revelação, que é o fundamento da sua doutrina – inclusive da doutrina social –, tal preocupação também vem sendo paulatinamente elaborada: inicia pelos profetas do Antigo Testamento, passa pelos Evangelhos e pelos Padres da Igreja, até atingir os escritos dos Pontífices. Não constitui, todavia, apenas um projeto, e não deve ser concebida como fruto de uma mera cultura do espírito. É um pensamento comprometido. Visa modelar estruturas e com-portamentos sociais a partir das ideias que anuncia.1

Foi assim quando o problema social passou a ser, em muitos países, o pro-blema dos operários, quando a situação de angústia e miséria na qual foram mergulhados homens, mulheres e crianças, emergiu como ponto para análise e construção de uma possível e necessária superação.

A elaboração da doutrina social da Igreja não é voltada para uma atuação intraeclesial. Muitas vezes tem ressoado em pessoas que buscam vivenciar uma identidade cristã católica em atuações comprometidas com suas exigên-cias, a partir das preocupações por ela anunciadas e assumidas como as urgen-tes nos contextos históricos determinados.

Nesta realidade, insere-se a figura de Carlos Alberto de Menezes, empre-sário católico, nascido no Rio de janeiro, em 1855, e falecido em Pernambu-co, em 1904. Ele graduou-se, em 1878, pela Escola Politécnica Fluminense,

1 Cf. BIGO, Pierre. A doutrina social da Igreja. São Paulo: Loyola, 1969. p. 16.

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escola onde recebeu “formação profissional altamente qualificada de enge-nheiro (civil), categoria que então estava na vanguarda do desenvolvimento no Brasil”.2

Possivelmente por influência da Politécnica, ingressou na Sociedade de São Vicente de Paulo – os vicentinos. Tal grupo, também chamado de Con-ferência, foi fundado em 1833, por Antonio Frederico Ozanam junto com alguns de seus colegas universitários da Sorbonne, objetivando elaborar in-terpretações e análises através das quais pudessem responder aos frequentes ataques que, na Universidade, eram feitos ao catolicismo. Para expandir suas atividades além da esfera intelectual, os vicentinos passaram a ajudar os po-bres da cidade de Paris. O historiador Ferdinand Azevedo chama a atenção para o fato de o trabalho caritativo ter assumido dimensão e fama tão grandes, que tornaram praticamente desconhecida a origem da atuação dos vicentinos no ambiente universitário.3

Os vicentinos difundiram-se com rapidez pela Europa e demoraram a chegar à América Latina, onde começaram pelo Uruguai. A primeira Con-ferência Vicentina no Brasil foi criada no Rio de Janeiro, em 1872. Naquele período, estava sofrendo transformações a maneira de ser de um cristão culto no país. Dessa forma, os vicentinos se apresentavam, para os profissionais com identidade cristã, como uma possibilidade de exercerem uma atuação social sem estarem vinculados às irmandades.4

Tal perspectiva estava em sintonia com a que foi posta pelo processo de romanização, iniciado no pontificado de Pio IX (1846-1878), o qual visava a deslocar, no caso brasileiro, o catolicismo da dependência da Coroa lusitana para a Cúria romana:

Nesse processo, foram elementos importantes a introdução de devoções de origem europeia, novos santos cujo culto se incentivava e cujas festas passaram a ser organizadas pelos vigários. Esses aproveitavam tais ocasi-

2 AZEVEDO, Ferdinand. Introdução. In: MENEZES, Carlos Alberto de. Ação social católica no Brasil: corporativismo e sindicalismo. São Paulo: Loyola, 1986. p. 11.3 Cf. AZEVEDO, 1986, p. 12. 4 Cf. Ibid., p. 13.

ões para ir introduzindo uma espiritualidade de cunho mais sacramental. Além disso, em substituição às antigas irmandades e confrarias, eram pro-postas outras entidades, quase sempre ligadas a uma das novas devoções, todas fundadas e dirigidas por padres, pois a tutela clerical – o poder nas mãos dos vigários – era um ponto chave no processo de romanização.5

Simultaneamente, naquele período, no Brasil, parcela significativa dos in-telectuais se guiava pelo positivismo, o que conferia elevada importância à engenharia, então percebida como a profissão que, de forma mais adequada, simbolizava o progresso. Vale salientar que, a partir da Conferência fundada no Rio de Janeiro, já referida, foi fundado o primeiro Conselho Superior da Sociedade de São Vicente de Paulo no Brasil (1878), por influência do profes-sor Inácio da Cunha Galvão, diretor da Politécnica Fluminense, escola em que Carlos Alberto de Menezes estudara.6

Em 1881, Carlos Alberto veio para Pernambuco. Acontecia, na época, a expansão da malha ferroviária no país, o que contextualiza sua vinda, uma vez que ia trabalhar na Comissão de Fiscalização da Estrada de Ferro Central de Pernambuco, ligando o Recife a Caruaru. Amizades aqui travadas o conduziram de volta ao Rio de Janeiro, onde trabalhou em diversas atividades e, outra vez, contribuíram com o seu retorno a Pernambuco, em 1886, desta feita para exer-cer o cargo de diretor-gerente da Companhia Ferro Carril – a Companhia dos Bondes. Em Pernambuco, foi membro dos vicentinos e, por iniciativa do Con-selho Central dos Vicentinos, sempre preocupados com a juventude, foi criada a Obra do Patrocínio; daquela obra que não obteve o êxito esperado inicialmen-te, surgiu a ideia de criação do Círculo Católico, cujo fracasso foi atribuído, por Carlos Alberto, segundo Ferdinand Azevedo, à falta de um capelão. Em 1891, ele foi candidato a deputado pelo Partido Católico: não foi eleito e não mais participou da vida político-partidária, preferindo dedicar-se aos trabalhos dos vicentinos e às suas atividades profissionais, como, por exemplo, à fundação da Associação Beneficente dos Empregados da Companhia dos Bondes.7

5 CABRAL, Newton Darwin de Andrade. Memórias de um cotidiano escolar: Universidade Católica de Pernambuco, 1943-1956. Recife: Fundação Antônio dos Santos Abranches, 2009. p. 162. Entre as devoções estimuladas figurava a do Coração de Jesus.6 Cf. AZEVEDO, 1986, p. 11-3.7 Cf. Ibid., p. 14-6.

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Um amigo de Carlos Alberto – o industrial Adolfo Pereira Carneiro – re-cebeu, como pagamento de uma dívida, a Usina João Alfredo, no município de Goiana, e o convidou para ser o gerente; a oferta, porém, não foi aceita. O mesmo Pereira Carneiro, posteriormente, junto com alguns sócios, fundou a Companhia Industrial de Pernambuco, agregando à usina aludida a Fábrica de Tecidos Camaragibe, no município de São Lourenço da Mata. O convite para ser diretor-gerente da Fábrica de Tecidos foi aceito por Carlos Alberto que, fazendo uso de sua amizade com o industrial referido, conseguiu incluir, nos estatutos da nova Companhia, um parágrafo garantindo um tratamento mais cristão para seus futuros operários. A Companhia Industrial de Pernambuco foi fundada em 23 de janeiro de 1891 e a encíclica Rerum Novarum foi lançada em 15 de maio daquele mesmo ano. Para F. Azevedo os estatutos daquela, no tocante às condições dos operários, representaram uma antecipação do documento papal.8

No mesmo ano de 1891, Carlos Alberto foi encarregado, pela Companhia Industrial, de viajar ao Rio de Janeiro e à Europa para colher informações sobre fábricas de tecidos e para cuidar do maquinário necessário à futura fábrica. Na Europa, pôde verificar, in loco, a experiência bem sucedida de ge-renciamento cristão da fábrica de Leon Harmel, na França. Esse industrial transformara a fábrica que recebera como herança de seu pai em uma cor-poração cristã, na qual os operários participavam da gerência, e colocara uma capela no centro dos prédios da indústria. A família de Leon Harmel morava no mesmo terreno do estabelecimento, junto com as famílias dos operários.9

Por intermédio de Harmel, Carlos Alberto conheceu o padre João Leão Dehon, fundador da Congregação dos Sacerdotes do Sagrado Coração de Jesus, que “nasceu sob a égide da Rerum Novarum. [...] Na doutrina de Leão XIII, o Pe. Dehon buscou o sentido para a atuação dos sacerdotes do Sagrado Coração de Jesus”.10

8 Cf. Ibid., p. 16-8.9 Cf. AZEVEDO, 1986, p. 18.10 OLIVEIRA, Marlon Anderson de. “Esculpindo na alma do povo a imagem viva de Cristo”: a ação do Pe. Francisco Geraedts, S.C.J. Recife; UNICAP, 2009. p. 57. Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião) Universidade Católica de Pernambuco, Recife, 2009.

Dr. Carlos Alberto ficou entusiasmado com a organização social e religio-sa da fábrica, onde, desde 1887, o padre Charcosset, S.C.J. e seus colegas estavam trabalhando como capelães, seguindo a doutrina social e religiosa da Encíclica “Rerum Novarum”, propagada pelo Pe. Dehon. Léon Har-mel formava, com o Conde de Mun e o padre Dehon, a vanguarda da aplicação da “Rerum Novarum”, de Leão XIII, na França.11

Além do Pe. Dehon, ainda na Europa, Carlos Alberto fez contato com a Superiora da Congregação das Irmãs da Sagrada Família. De ambos conse-guiu a promessa do envio de um padre da Congregação do SCJ para o Re-cife e da vinda de algumas religiosas para educar as filhas dos operários. Para educar os filhos dos operários, convidou, depois, os Irmãos Maristas, que já atuavam no Brasil. Na mesma viagem, ele buscava um técnico para a fábrica em Pernambuco. Ao encontrar identificação entre os princípios cristãos do seu pensamento e os do jovem engenheiro francês Pierre Collier, convidou-o para vir para o Brasil. Ganhou, então, um entusiasta colaborador e propagan-dista da sua visão cristã, além de um genro, pois Pierre Collier casou com a mais velha das filhas do empresário brasileiro.12

No período, o movimento político em torno do Partido Católico, no Bra-sil, não conseguiu lograr êxito. Todavia, no vazio deixado por aquele insuces-so, ganhou força, no país, no processo de disseminação de uma experiência bem sucedida registrada na Europa, a realização dos Congressos Católicos. Carlos Alberto participou ativamente do Primeiro Congresso Católico brasi-leiro, realizado em Salvador, em 1900, e do Segundo, realizado no Recife, em 1902:

No Congresso da Bahia, Carlos Alberto falou com muita propriedade so-bre a questão operária no Brasil, pelo fato de suas idéias já terem sido postas em prática em Camaragibe. No Congresso de Pernambuco, propôs a criação de uma Federação Operária Cristã que já tinha seu terreno prepa-rado. Não surpreende, pois, que a federação tenha sido fundada no mesmo

11 POLMAN, Jorge. Missão de esperança: história dos sacerdotes do Sagrado Coração de Jesus no Norte do Brasil. Recife: Edição da Província Brasileira, 1986. p. 16.12 Cf. AZEVEDO, 1986, p. 16-9.

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ano de 1902, em junho. Entre suas atividades, a federação estabeleceu um dos primeiros grupos de estudos sociais no Brasil, em 1903. Carlos Alber-to entendeu que a maneira de assegurar o seu sonho de benefícios para os operários, seria através de uma legislação favorável aos trabalhadores. Por isso, consultou o deputado federal da Bahia, Joaquim Inácio Tosta, sobre como conseguir, no Congresso Nacional, a aprovação de propostas nesse sentido. Tosta respondeu, dando as diretrizes necessárias. Carlos Alberto efetivamente preparou e enviou a Tosta “Notas e subsídios para confecção de um projeto de lei sobre sindicatos profissionais.13

Em seu discurso no Primeiro Congresso Católico (Salvador, 1900), falan-do com a autoridade peculiar aos que teorizam a partir de exemplos concre-tos, apresentou aos líderes da Igreja no Brasil exemplo de como uma fábrica pode contribuir para melhorar as condições materiais e espirituais da vida de seus trabalhadores. Carlos Alberto afirmou que a questão operária no país se apresentava como resultado da deplorável situação moral e material do prole-tariado, na qual perdurava, ainda como herança da organização escravocrata, o rebaixamento geral dos espíritos e dos costumes, a partir da situação que a escravidão criara:

A ausência absoluta do sentido de si e da sua dignidade de homens; a ani-quilação da idéia de família, que o escravo não podia formar; o conseqüen-te desapego dos filhos que, como entre os animais, só lhes pertenciam enquanto não podiam dispensar os cuidados maternos, se esses mesmos não lhes eram roubados para fazer de suas mães amas de leite; a maior animalidade estabelecida em suas relações sexuais; a mulher considerando sua virgindade em pequeno valor, a negociar com o primeiro pretendente, se os olhos do senhor não a tinham marcado com o estigma de sua pre-ferência; a ignorância arvorada em condição de existência; a ausência de sentimento religioso que não fosse uma grosseira e supersticiosa devoção; nenhuma preocupação de futuro, nenhuma aspiração moral.14

13 Ibid., p. 22.14 MENEZES, Carlos Alberto de. Ação social católica no Brasil: corporativismo e sindicalismo. São Paulo: Loyola, 1986. p. 36.

Acrescentou, no discurso, desdobramentos do quadro supracitado, para destacar que, transcorridos doze anos do fim da escravidão, poucas eram as mudanças, uma vez que, a seu ver, como herança genuína da escravidão, ainda observava que:

A idéia da perpetuação da família unida e forte não existe nem pelo lado moral, nem pelo material. Pelo moral, porque não há compreensão desse ideal santo e elevado; pelo material, porque os pais não se preocupam absolutamente do futuro coletivo da família, pela aquisição de um patri-mônio, pela formação de uma pequena herança, um pedaço de terra, uma casa de habitação, uma instituição de montepio ou seguro de vida, nada que represente a preservação do futuro da prole.15

Sumariando as três grandes ocupações que, para ele, eram então existentes no Brasil: a agricultura, os pequenos ofícios e a grande indústria, discorreu, na continuidade de sua fala, naquele Congresso, sobre a terceira categoria – a grande indústria –, posto que, sobre ela – afirmou – podia dizer algo de útil a partir de sua experiência. Para ele, “as grandes fábricas modernas são centros de uma imoralidade infrene”. Citou, em seguida, características daqueles am-bientes para concluir que, embora os trabalhadores das grandes fábricas for-massem a aristocracia do proletariado brasileiro, a situação deles era cheia de perigos, constituindo um quadro propício à atuação, movida pela caridade de todos os que se interessam pela sorte e pela felicidade das classes operárias.16

Em sua análise, o primeiro dentre todos os remédios para combater tal quadro seria tornar todos os patrões e industriais convictos de que o único meio existente para moralizar as classes baixas é a religião, cujo alcance vai além do que pode ser conseguido através da educação e do simples sentimen-to de honra e dignidade:

15 Ibid., p. 38.16 Cf. Ibid., p. 39-41. Neste ponto do discurso, elencou como evidências de imoralidade o ajuntamento promíscuo, nos ambientes fabris, de muitas pessoas, sem distinção de sexo e idade, em uma intimidade que se prolonga fora, resultando em “raparigas perdidas, mulheres casadas corrompidas, além do jogo, das danças imorais, de toda sorte de vícios”.

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Sob esse ponto de vista, há um inteiro trabalho de propaganda a realizar. Patrões e diretores de fábricas existem que são católicos, e que não com-preendem a necessidade que têm desse poderoso e único elemento de mo-ralização, para não falar no dever imperioso que lhes assiste de cuidarem do bem religioso dos homens que conservam sob sua direção.

Que a tal respeito não se iludam os industriais católicos: nós temos cargo de almas; nós temos que responder perante Deus por essas almas, como temos de responder pelas almas de nossos filhos.17

Após ter destacado o grande remédio, enumerou os meios decorrentes e necessários para a sua eficácia. Na visão de Carlos Alberto, tais meios são: 1. o padre; 2. a capela; 3. a missão dos patrões ou chefes das indústrias; 4. as escolas. Após explicitar cada um dos meios que chamou de ‘superiores’, citou os de ação direta sobre os operários, neles destacando as associações, por ele divididas em três categorias: a) para o desenvolvimento e aperfeiçoamento moral e religioso das diversas classes; b) para o interesse material; c) de pas-satempo e distração.18

Finalizando o discurso, Carlos Alberto apresentou o exemplo da Compa-nhia Industrial de Pernambuco, citando e comentando, pormenorizadamente, o que nela existia, a partir dos pontos antes abordados ao longo do discurso:

1. capelães contratados na Europa (com salário e casa para moradia); serviço religioso permanente; uma capela em cada uma das fábricas; manutenção de escolas – para o sexo masculino e para o feminino – diurnas e noturnas; patrões habitando com suas famílias nas fábricas, cuidando das questões referentes aos operários, inclusive de suas vi-das particulares; celebração comum de todas as festas do ano.

2. Quanto às associações, começando pelas que objetivavam os desen-volvimentos moral e religioso, citou: o Apostolado da Oração, para todos; Conferências de São Vicente de Paulo, para os homens; Círcu-lo Operário de São Miguel, para os moços; Associação de São Luiz Gonzaga, para os pequenos; Associação de Santa Filomena, para as meninas; Associação dos Santos Anjos, para as raparigas de 10 a 15

17 MENEZES, 1986, p. 41-2.18 Cf. Ibid., p. 42-8.

anos; Filhas de Maria, para as moças, até o casamento; Associação das Mães Cristãs, para as senhoras casadas.

3. Quanto às associações para o interesse material: Associação Coopera-tiva de Consumo, sociedade anônima de capital variável, da qual des-creveu a composição do capital inicial, a participação da Companhia, o processo de compra das ações pelos operários, suas atividades e forma de direção; Pequena Economia Escolar; a Sociedade de Socor-ro Mútuo (como essa última estava ainda em estruturação, descreveu a forma como a Companhia buscava suprir a lacuna).

4. Quanto às associações para divertimento: um Clube Musical, com uma banda de música; um Clube Dramático, responsável pela apre-sentação periódica de espetáculos19.

5. Uma vez que a existência do padre e da capela foram postos, entre outros, como essenciais para os operários e suas famílias, podemos entender a preocupação de Carlos Alberto de Menezes de promover a vinda de religiosos e religiosas para o Brasil. Não havia dúvidas em seu pensamento: “Não pode haver religião sem a prática dos deveres que ela prescreve, sem a palavra de Deus e, mais do que tudo, sem os sacramentos. Nada disso pode haver sem o padre”.20

Tal percepção, seguida da ação consequente, estava em sintonia com a romanização. “Através do processo de romanização, todo o aparelho religio-so passou a ser controlado pela estrutura eclesiástica. Além do modelo, a Santa Sé também forneceu os agentes, com destaque para as Congregações Religiosas”.21

Alicerçado em tais convicções, em seu discurso no Primeiro Congresso Católico, já referido, criticou a postura de patrões católicos que não hesitam em contratar, por qualquer preço, os mestres, engenheiros e especialistas de que as suas fábricas necessitam, fazendo com que venham da Europa, apre-

19 Cf. MENEZES, 1986, p. 49-53. Muitos dos elementos aqui arrolados foram apresentados por Carlos Alberto com os seus respectivos números. 20 Ibid., p. 42. Ver a este respeito o texto correspondente à nota de número 5.21 OLIVEIRA, Pedro Ribeiro de. Religião e dominação de classe: gênese, estrutura e função do catolicismo romanizado no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1985. p. 291-3.

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sentando-lhes vantagens e suportando seus vícios. Em contrapartida, não têm atitude similar para adquirirem capelães para as mesmas fábricas.22

A partir de tal pensamento, além dos religiosos citados anteriormente, na mesma viagem realizada à Europa, em 1891, estabeleceu contato com o Padre Miguel Rua, que sucedera a Dom Bosco na administração geral da Sociedade de São Francisco de Sales, para solicitar, em nome da Conferência Vicentina Central do Recife, da qual era presidente, a abertura de um Colégio Salesiano na capital pernambucana. Seu pleito encontrou boa acolhida. Para facilitar a vinda dos primeiros salesianos, entregou ao Pe. Rua generosa quantia em dinheiro para as despesas da viagem.23

A Congregação dos Salesianos foi fundada na cidade de Turim, em 1859. Naquela época, o norte da Itália vivenciava um surto de desenvolvimento in-dustrial, com os seus consequentes problemas sociais. Daí a atenção de Dom Bosco para com jovens vivendo em situações de desamparo. Meio século de-pois, era similar àquela a realidade social de muitos jovens da cidade do Recife.

Conhecedor da origem e da especificidade da atuação dos salesianos, Car-los Alberto manteve contato permanente com o Reitor-Mor dos Salesianos, após seu regresso a Pernambuco. Seu esforço para a vinda daqueles religiosos ganhou força quando, em janeiro de 1892, D. João Esberard assumiu a Dio-cese local e difundiu entre os diocesanos um “Apelo para a fundação de um Colégio Salesiano”. No documento, o bispo recomenda à benevolência de todos a “benemérita comissão” (à frente da qual estavam Carlos Alberto de Menezes e os vicentinos), que recolhe doações para a realização da obra tão esperada.24

Essa Comissão conseguiu arrecadar a importância necessária para com-prar a Chácara de nº 153, da Rua Visconde de Goiana – o conhecido Palácio do Mondego – onde morou o Capitão General Luiz do Rego, último gover-nador português de Pernambuco, destinada ao futuro Colégio Salesiano. De-pois de tantos preparativos, aos 10 de dezembro de 1894, chegaram ao Recife

22 Cf. MENEZES, 1986, p. 42.23 Cf. OLIVEIRA, Luiz de. Centenário da presença salesiana no Norte e Nordeste do Brasil: Dos primórdios até 1932. Recife: Escola Dom Bosco de Artes e Ofícios, 1994. v. 1, p. 25-6.24 Cf. Ibid., p. 26. Quando os salesianos chegaram ao Recife, o arcebispo era Dom Manoel dos Santos Pereira. Dom Esberard fora transferido para o Rio de Janeiro.

os seis primeiros salesianos. Foram recebidos, a bordo, por um padre lazarista e por Carlos Alberto de Menezes, que os trouxeram de lancha até o cais, onde estavam os demais membros da Comissão.25

A amizade de Carlos Alberto com os salesianos durou até o fim da sua vida. No Colégio, estudaram alguns de seus filhos e os alunos faziam frequen-tes excursões à Fábrica de Tecidos de Camaragibe.26

Em seu pensamento, estava clara a existência de atitudes que considerava erradas. Para ele, eram erros dos patrões e industriais: o esquecimento dos princípios de justiça e caridade; a exploração injusta do trabalho do homem; a ganância; o desprezo pela dignidade moral do homem. Desse último resulta-vam dificuldades para manter o espírito de família, educar os filhos e ter liber-dade para cuidar de suas almas. Tais questões seriam minoradas se o domingo fosse concedido para repouso e santificação e se essa concessão significasse tempo para o operário cuidar da sua vida moral na família e na sociedade.27

Por outro lado, considerava erros dos operários

o esquecimento do princípio de conformidade com a sua situação, sobre o qual repousa toda a economia divina; o abandono do terreno calmo, de justa e santa reivindicação de seus direitos conculcados, para se atirarem nos braços do socialismo, com todo o seu cortejo de princípios falsos e práticas violentas: a negação do direito de propriedade, o nivelamento social, o esquecimento do princípio de autoridade; os assassinatos, as re-voluções, as greves barulhentas para reclamar o justo e o injusto.28

Salientamos que, para Carlos Alberto, os erros dos operários eram conse-quências dos erros dos patrões e industriais. A análise desse elenco de erros permite conduzir à conclusão de que se tratava de uma atuação que, em-bora podendo trazer benefícios aos operários, significava a manutenção de

25 Cf. Ibid., p. 28. Os aspectos característicos da romanização se fizeram presentes em mais uma recorrência: a instituição fundada recebeu o nome de Colégio Salesiano Sagrado Coração.26 Cf. AZEVEDO, 1986. p. 11.27 Cf. MENEZES, 1986, p. 33.28 Ibid.

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um contingente de trabalhadores amarrados em um esquema de submissão e passividade. O contexto não permitia outros avanços. Sua atuação, no final do século XIX e início do XX, estava sintonizada com a ação assistencialista da Igreja, que defendia o combate ao comunismo e a qualquer alteração do quadro e da ordem social vigentes.29

Apesar dessas limitações, sua atuação foi um contributo para a formação de sindicatos profissionais, cuja necessidade era, para ele, tão evidente que chegou a enviar proposta a um parlamentar no sentido de a legislação brasilei-ra contemplar tal organização, conforme já referido, o que somente aconteceu após sua morte. Este aspecto permite o combate a eventuais interpretações que afirmem ter sido a sua atuação, sobretudo, uma tentativa de contenção de possíveis reivindicações por parte dos operários.

A espiritualidade vicentina foi a fonte que consolidou seu ideal de em-presário católico comprometido com as exigências cristãs explicitadas na Doutrina Social da Igreja. Em sua visão, sintonizada com o esboçado pelos vicentinos, “os pobres odeiam os ricos quando ostentam luxuosamente o seu dinheiro”. Por isso, era essencial, no seu pensamento, estabelecer uma vincu-lação entre riquezas materiais e uma moralidade baseada na vivência religiosa. Como decorrência dessa vinculação, a posse dos bens devia ser direcionada à geração de benefícios para a coletividade.30

A atuação de Carlos Alberto de Menezes esteve inserida no contexto do catolicismo romanizado, embora sua nítida e consequente preocupação social tenha atingido abrangência tão ampla que o superou.

29 Cf. AZZI, Riolando (Org.). A vida religiosa no Brasil: enfoques históricos. São Paulo: Paulinas, 1983. p. 20.30 AZEVEDO, 1986, p. 26.

REFERêNCIAS

AZEVEDO, Ferdinand. Introdução. In: MENEZES, Carlos Alberto de. Ação social católica no Brasil: corporativismo e sindicalismo. São Paulo: Loyola, 1986. p. 11-27.

AZZI, Riolando (Org.). A vida religiosa no Brasil: enfoques históricos. São Paulo: Pau-linas, 1983.

BIGO, Pierre. A doutrina social da Igreja. São Paulo: Loyola, 1969.

CABRAL, Newton Darwin de Andrade. Memórias de um cotidiano escolar: Universi-dade Católica de Pernambuco, 1943-1956. Recife: Fundação Antônio dos Santos Abran-ches, 2009.

MENEZES, Carlos Alberto de. Ação social católica no Brasil: corporativismo e sindi-calismo. São Paulo: Loyola, 1986. p. 32-53.

OLIVEIRA, Luiz de. Centenário da presença salesiana no Norte e Nordeste do Brasil: Dos primórdios até 1932. Recife: Escola Dom Bosco de Artes e Ofícios, 1994. v. 1.

OLIVEIRA, Marlon Anderson de. “Esculpindo na alma do povo a imagem viva de Cristo”: a ação do Pe. Francisco Geraedts, SCJ. Recife; UNICAP, 2009. Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião) Universidade Católica de Pernambuco, Recife, 2009.

OLIVEIRA, Pedro Ribeiro de. Religião e dominação de classe: gênese, estrutura e função do catolicismo romanizado no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1985.

POLMAN, Jorge. Missão de esperança: história dos sacerdotes do Sagrado Coração de Jesus no Norte do Brasil. Recife: Edição da Província Brasileira, 1986.

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CENAS DA NEGRITUDE: AFRICANIDADES E DRAMATURGIA NEGRA (1944-1966)

Elio Chaves Flores1

Email: [email protected]

Para a casta itamaratiana não há negros nem negritude entre nós. O drama profundo de nossos ancestrais trazidos em navios negreiros da áfrica não deixou rastro nem lembrança. Não teve continuidade, não encontra eco na alma do negro contemporâneo. (...) Nós, os negros brasileiros, artistas, poetas, intelectuais, músicos, nós, os exclusos fisicamente de Dacar, não nos sentimos ausentes. (...) Somos testemunhas oculares, pois nosso rosto está impresso para a eternidade nas máscaras que se exibirão. Somos a Negritude. E a Negritude é a própria onipresença para aqueles que a assumem e a amam. Sobre as diferenças de idiomas, acima das distâncias territoriais e das nacionalidades, os veios da diáspora, em movimentos concêntricos, se reintegram no grande mar escuro dessa mágica Negritude que nos manteve no espaço e no tempo unidos e irmãos.

Abdias Nascimento, Carta Aberta ao Primeiro Festival Mundial das Artes Negras, 31 de março de 1966.

1 Professor Adjunto do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Paraíba (PPGH/CCHLA/UFPB). Esse trabalho é resultado do projeto de pesquisa, desenvolvido com o apoio do CNPq, Visões da África e Práticas Emancipatórias dos Intelectuais Afro-Brasileiros (1944-1988).

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Onde estavam os negros no decorrer do Estado Novo (1937-1945)? Te-riam comemorado o cinquentenário da Abolição em 1938? Acaso se veriam nas saudações de Getulio Vargas como “trabalhadores do Brasil”? Ainda expressariam a malandragem domesticada pelo regime do trabalho? O que pensavam sobre a África, o continente de seus ancestrais? O que sabiam a respeito da África contemporânea e de suas lutas emancipacionistas? Quais seriam suas artes cênicas com o interdito racial aos atores negros? São ques-tões que ainda precisam de muita pesquisa para que possamos efetivamente respondê-las à luz dos procedimentos historiográficos, com poucos estudos sobre representações dramatúrgicas.2 Entretanto, parece evidente que, no contexto de abertura do Estado Novo, a tensão entre classe e raça vai ga-nhando força com as iniciativas dos intelectuais afro-brasileiros. Isso não impede que se crie, ainda no ano de 1944, uma instituição que seria o reduto mais expressivo do “jacobinismo negro brasileiro”.3 Refiro-me ao TEN - Teatro Experimental do Negro, onde a participação de Abdias Nascimento seria decisiva na formação de atores e atrizes negras para as artes cênicas nacionais.

Abdias Nascimento nasceu em Franca, no interior de São Paulo, no ano de 1914. Neto de escravos - filho de mãe doceira e pai sapateiro - participou, ainda jovem, da Frente Negra Brasileira e, em 1938, foi um dos organizado-res do Congresso Afro-Campineiro. Daí por diante sua presença seria uma constante no protagonismo da negritude brasileira. Ele mesmo afirmou, no documentário de Antonio Olavo, sobre o seu protagonismo negro: “Eu não vim para trazer a calmaria das almas mortas, das inteligências petrificadas, dos que não querem fazer onda à flor das águas, eu não vim para fazer esse tipo de trato social”.4

2 O estado da arte, mas onde não consta o teatro negro, pode ser apreciado em PATRIOTA, Rosângela. O Historiador e o Teatro: texto dramático, espetáculo, recepção. In: PESAVEENTO, Sandra Jatahy. (Org.). Escrita, Linguagem, Objetos: leituras de história cultural. Bauru: Edusc, 2004, pp. 215-51. Na crítica especializada, ver MICHALSKI, Yan. Reflexões Sobre o Teatro Brasileiro no Século XX. (Organização e Introdução: Fernando Peixoto). Rio de Janeiro: Funarte, 2004.3 FLORES, Elio Chaves. Jacobinismo Negro: lutas políticas e práticas emancipatórias. In: FERREIRA, Jorge e REIS, Daniel A. (Orgs.). A Formação das Tradições (1889-1945). Vol. 1 (As Esquerdas no Brasil). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, pp. 493-537.4 Depoimento consta em OLAVO, Antonio (Direção). Abdias Nascimento: memória negra. Cores. 94 minutos. Salvador, 2008. Portfolium. Laboratório de Imagens [Documentário].

O pensamento de Abdias Nascimento pode ser analisado nos seus escritos políticos, dramatúrgicos e autobiográficos. Os textos políticos estão reunidos nos editoriais do jornal Quilombo (1948-1950) e nos livros O Negro Revoltado (1982, com primeira edição em 1968); O genocídio do negro brasileiro (1978); O Quilombismo (1980); Sitiado em Lagos: autodefesa de um negro acossado pelo racismo (1981). Os textos dramatúrgicos foram publicados a partir da década de 1950 e estão assim apresentados: Sortilégio: mistério negro (escrito em 1951, a primeira apresentação foi em 1957 e publicado em 1961); Dramas para Negros e Prólogo para Brancos (1961); Sortilégio II: mistério negro de Zumbi redivivo (1979). A dimensão autobiográfica pode ser encontrada em Teatro Experimen-tal do Negro: testemunhos (1966), coletânea por ele organizada para fixar a memória de seus companheiros de dramaturgia e, num trabalho mais recente, escrito com Éle Semog, Abdias Nascimento: o griot das muralhas (2006).5

No que concerne aos pressupostos dramatúrgicos, Abdias Nascimento parece ter seguido o princípio que W. E. B. DuBois (1868-1963) formulou para o teatro negro num artigo publicado na revista Crisis, dos Estados uni-dos, em 1926. Nesse artigo, o autor de As Almas da Gente Negra (1903), apon-tava para uma dramaturgia profunda que seria, sob qualquer prisma, coletiva-mente negra:

Sobre nós: revelar a vida do negro como realmente é; Por nós: escrito por autores negros que entendam o que significa ser um negro; Para nós: dirigido primordialmente a platéias negras; Perto de nós: localizado nos subúrbios, próximo à massa das pessoas comuns.6

5 Uma síntese sobre o pensamento quilombista de Abdias Nascimento pode ser visto no prefácio de Carlos Moore, “Abdias Nascimento e o surgimento de um pan-africanismo contemporâneo global”, publicado no livro O Brasil na Mira do Pan-Africanismo (Salvador: Edufba, 2002, pp. 17-32), que reuniu, numa segunda edição, as obras de denúncia, O genocídio do Negro Brasileiro e Sitiado em Lagos, de 1978 e 1981. 6 Essas e outras referências ao teatro negro-africano constam em NASCIMENTO, Elisa L. O Sortilégio da Cor: identidade, raça e gênero no Brasil. São Paulo: Summus, 2003, pp. 324-36.

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Na verdade, a trajetória de Abdias Nascimento se confunde com o próprio Teatro Experimental do Negro. Mais do que um grupo de teatro, o TEN vai se constituindo, nos anos seguintes, num movimento político que trabalhava pela valorização social do negro, através da educação, da cultura e da arte. A luta por uma segunda abolição era ligada à defesa de associação das empre-gadas domésticas e à criminalização do racismo. No ano de 1945, as lutas pareciam unificadas com a criação do Comitê Democrático Afro-Brasileiro, envolvendo a União Nacional dos Estudantes, lideranças e intelectuais comu-nistas. Constava no seu manifesto reivindicações de classe e de raça, entre as quais se destacam: reconhecimento do direito de greve, autonomia sindical, assistência ao trabalhador rural, direito de sindicalização para as empregadas domésticas, liberdade de culto às religiões afro-brasileiras, punição às empre-sas que faziam seleção racial e de cor, abolição das seleções raciais e de cor na diplomacia, abolição da seleção de cor nas escolas militares, participação do negro nos assuntos de colonização e imigração. A agenda da segunda aboli-ção, a partir do TEN, também constrangia muitos intelectuais das vanguardas modernistas e as grandes redes jornalísticas. Abdias Nascimento assim recor-daria o ano de 1944:

Pela resposta da imprensa e de outros setores da sociedade, constatei, aos primeiros anúncios da criação deste movimento, que a própria denomina-ção surgia em nosso meio como um fermento revolucionário. A menção pública do vocábulo negro provocava sussurros de indignação. Era previsí-vel, aliás, esse destino polêmico do TEN, numa sociedade que há séculos tentava esconder o sol da verdadeira prática do racismo e da discrimina-ção racial com a peneira furada do mito da democracia racial. Mesmo os movimentos culturais aparentemente mais abertos e progressistas, como a Semana de Arte Moderna, de São Paulo, em 1922, sempre evitaram até mesmo mencionar o tabu das nossas relações raciais entre negros e bran-cos, e o fenômeno de uma cultura afro-brasileira à margem da cultura convencional do país.7

7 NASCIMENTO, Abdias. Teatro Experimental do Negro: trajetória e reflexões. In: Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. N.º 25. Brasília, 1997, pp. 71-81.

A reação virulenta, e não menos cínica, das forças conservadoras, assim como as dificuldades de setores das esquerdas em admitir a questão racial le-variam muitos intelectuais e trabalhadores negros a radicalizarem o ideário da negritude. No decorrer da década de 1940 essa agenda histórica apenas se ex-pandiria em várias direções da luta política antirracista: a Convenção Nacional do Negro (São Paulo, 1945; Rio de Janeiro, 1946), a Conferência Nacional do Negro (Rio de Janeiro, 1949), o Instituto Nacional do Negro (Rio de Janeiro, 1949) e o Primeiro Congresso do Negro Brasileiro (1950). A predominância dos eventos na cidade do Rio de Janeiro explica-se pela influência política e cultural do Distrito Federal numa república muito pouco federativa. O prin-cipal dessas organizações e eventos não foi apenas discutir a questão racial no Brasil, mas a constituição de um despertar da África no Brasil com a conse-quente valorização da matriz africana na formação brasileira. Pode-se dizer que a intelectualidade jacobina do movimento negro volta-se para as raízes da negritude como forma de superar o colonialismo e a discriminação racial. O Teatro Experimental do Negro partia da compreensão de que o processo de libertação da massa dos homens de cor devia se assentar na educação para a vida livre se efetivar. Esse jacobinismo partia de um “marco zero” com “au-las de alfabetização e iniciação cultural” para operários, trabalhadores e em-pregadas domésticas. O próprio Abdias chamaria esse programa, cinco anos depois, de “um campo de polarização psicológica, onde está se formando o núcleo de um movimento de vastas proporções” a partir das “sobrevivências paideumáticas subsistentes na sociedade brasileira e que se prendem às matri-zes culturais africanas”.8

A criação do jornal Quilombo (Vida, Problemas e Aspirações do Negro), editado entre 1948 e 1950, permitiu a crítica à democracia racial no Brasil bem como a adesão aos ideais da Negritude e da descolonização da áfrica. Maté-rias e artigos assinados referentes à negritude e à áfrica seriam frequentes nas páginas do jornal de Abdias do Nascimento. No primeiro editorial isso apare-ce com o propósito da defesa de uma “cultura com acentos africanos” e com a crítica contundente contra a situação política na África do Sul e o avanço de um Estado segregacionista dos negros em solo africano. A primeira meta dos editores, de um total de cinco, publicada em todos os números, seria exata-

8 Quilombo. 1949, p. 11.

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mente esta: “colaborar na formação da consciência de que não existem raças superiores nem servidão natural conforme nos ensina a teologia, a filosofia e a ciência”.9 O jornal mantinha correspondência e traduzia importantes maté-rias da revista Présence Africaine, porta-voz dos jacobinos negros das colônias francesas na África e no Caribe. Também publicava com frequência artigos sobre acontecimentos em Uganda, Congo, Abissínia, Haiti, Cuba e sobre o problema racial nos Estados Unidos. Artigos como “Racismo, a herança de Hitler” (maio de 1949), “Século da Questão Racial” (fevereiro de 1950), ma-térias como “Nossos irmãos da Abissínia” (junho de 1949) e “Sob os céus etiópicos” (julho de 1949) explicitam esse interesse pela conjuntura africana e a crise do colonialismo depois da Segunda Guerra Mundial.

Dois meses depois, na décima edição de Quilombo, seria publicado o artigo de Guerreiro Ramos, Apresentação da Negritude, uma espécie de manifesto dos afro-brasileiros, numa temporalidade ainda ardente em função do racismo intrínseco da brancura. Guerreiro Ramos, que se tornaria um dos grandes pensadores da negritude brasileira, começa se apropriando da expressão “de-mocracia racial” para exigir que ela se cumpra historicamente “pela cultura e pela educação”. Admite que o Teatro Experimental do Negro era um movi-mento vanguardista de “elevação cultural e econômica dos homens de cor”, com intelectuais capazes de construir “uma metodologia genérica de trata-mento de questões raciais”. Com efeito, o autor evoca a prática da negritude e toda a sua carga simbólica: “A negritude, com seu sortilégio, sempre esteve presente nesta cultura, exuberante de entusiasmo, ingenuidade, paixão, sensu-alidade, mistério, embora só hoje por efeito de uma pressão universal esteja emergindo para a lúcida consciência de sua fisionomia. É um título de glória e de orgulho para o Brasil o de ter-se constituído no berço da negritude a doce e estranha noiva de todos nós brancos e trigueiros”.10 Portanto, essas apro-priações circulantes de uma negritude jacobina, posto que transformadoras da condição do ser negro no Brasil, não deixam de ser instituintes de outra história, a do protagonismo negro na república.11

9 Quilombo. N.° 1, dez. 1948, capa e p. 3.10 Quilombo. N.° 10, jun/jul, 1950, p.11.11 A importância da Frente Negra Brasileira (1931-1937) e do Teatro Experimental do Negro (1944-1968) para esse protagonismo negro é analisada por Petrônio Domingues em estudos recentes: “A FNB e o TEN cooperaram para elevar a auto-estima dos descendentes de africanos, na medida em que impulsionaram seu espírito de solidariedade e união. Foram dois fulgurantes agrupamentos do movimento social negro

Com essa perspectiva é que a Conferência Nacional do Negro, realizada no Rio de Janeiro, em maio de 1949, resolveu, na sessão de encerramento, convocar o I Congresso do Negro Brasileiro, entre os dias 26 de agosto e 04 de setembro de 1950, “comemorativo ao centenário da abolição do tráfico de escravos”. O temário aprovado constava de seis grandes temas: história, vida social, sobrevivências religiosas, sobrevivências folclóricas, línguas e estética. O tema “História” foi dividido em sete tópicos que expressam a historicidade do negro. Destaco apenas as chamadas de cada tópico: os elementos negros importados; castigos de escravos; os quilombos e as revoltas de escravos; contribuição do negro à abolição e à campanha abolicionista; o valor do es-cravo, na África e no Brasil; os Terços de Homens Pretos; e, por último, fi-guras eminentes de negros. Na república, incluído no tópico seis, consta João Cândido e a revolta da Armada e o Negro e a FEB. Os seis tópicos do tema “Estética” são importantes porque dizem respeito ao tratamento referencial da Negritude: o negro e a criação estética; o negro e a escravidão como temas de literatura, poesia, teatro e artes plásticas; particularidades e sobrevivências emocionais do negro; integração e participação do negro e do homem de cor na evolução geral das artes no Brasil; a literatura, poesia, teatro, artes plásticas a serviço da causa abolicionista; e, por último, as artes em geral como meio de valorização social do negro e do homem de cor. O documento é assinado por Guerreiro Ramos, Édison Carneiro e Abdias Nascimento.12

A realização do I Congresso do Negro Brasileiro visava ser um evento sem precedentes para a história do homem de cor. Desde o início a ideia carregava uma crítica intrínseca aos dois primeiros congressos, realizados em 1934 e 1934, no Recife e em Salvador, respectivamente. Assim, para os orga-nizadores, “o negro passaria da condição de matéria prima de estudiosos para

em suas respectivas épocas e marcaram a entrada desse movimento como força política organizada no concerto da nação. Finalmente, vale registrar que tanto a FNB como o TEN colocaram em xeque - ainda que de forma ambivalente - o mito da democracia racial e, em certa medida, conseguiram pautar nos meios de comunicação de massa e na agenda nacional o debate sobre o racismo à brasileira. A despeito do malogro, esses dois agrupamentos representaram mais um acúmulo de forças do protagonismo negro no país”. DOMINGUES, Petrônio. A Nova Abolição. São Paulo: Selo Negro, 2008, p. 94. Em outro trabalho desenvolvo a hipótese de continuidade de três gerações do ativismo negro: frentenegrinos, negritudinistas e unionistas. Ver FLORES, E. C. Gerações do Quilombismo: crítica histórica às mitografias da casa-grande. In: BITTAR, Eduardo e TOSI, Giuseppe. (Orgs.). Democracia e educação em direitos humanos numa época de insegurança. Brasília: SEDH, 2008, pp. 107-122.12 Quilombo. N.° 3, junho, 1949, p. 7.

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a de modelador da sua própria conduta, do seu próprio destino”. Enfatizava--se que o Congresso discutiria “problemas práticos e atuais da vida da nossa gente de cor”. Guerreiro Ramos acreditava que a negritude brasileira seria um apelo ao mundo no “grande jogo democrático da cultura”. Abdias Nas-cimento apostava na radicalidade organizativa do povo negro: “o Congresso dará uma importância secundária, por exemplo, às questões etnológicas, e menos palpitantes, interessando menos saber qual seja o índice cefálico do negro, ou de se Zumbi suicidou-se realmente ou não, do que indagar quais os meios que poderemos lançar mão para organizar associações e instituições que possam oferecer oportunidades para a gente de cor se elevar na socieda-de. Deseja o Congresso encontrar medidas eficientes para aumentar o poder aquisitivo do negro, tornando-o assim um membro efetivo e ativo da comuni-dade nacional”.13 As posições realistas e práticas dos intelectuais da Negritude iriam se confrontar com a teoria da luta de classes dos intelectuais marxistas no decorrer do próprio Congresso e marcar profundamente as relações dos dois grupos até, pelo menos, o traumático ano de 1964.

A sessão de encerramento e a declaração final do I Congresso do Negro Brasileiro geraram a cisão entre os jacobinos negros e os intelectuais marxis-tas. Os trabalhos foram presididos pelo senador Hamilton Nogueira, que em seguida passou a palavra a Guerreiro Ramos, que fez a leitura da “Declaração de Princípios” aprovada em plenário anteriormente. O documento seguia a linha dos manifestos do Teatro Experimental do Negro, condenava o “exclu-sivismo racial” e a exploração política da discriminação de cor. Recomendava o estímulo ao estudo das “reminiscências africanas” e as formas de superação das dificuldades dos “brasileiros de cor”. No preâmbulo e no parágrafo final é que aparecia uma espécie de apropriação do discurso da democracia racial, tal como entendiam as elites brancas, exigindo-se a incorporação das massas negras na vida republicana. Uma cidadania racial a partir da igualdade jacobi-na: “Os problemas do negro são apenas um aspecto particular do problema geral do povo brasileiro, de que não será possível separá-los sem quebra da verdade histórica e sociológica”.14

13 Quilombo. N.° 5, jan., 1950.14 NASCIMENTO, Abdias. O Negro Revoltado. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982, p. 401.

No plano externo, os intelectuais da Negritude vão se somar às grandes lutas internacionalistas de autodeterminação dos povos. A Semana de Es-tudos, de 09 a 13 de maio de 1955, realizada na Associação Brasileira de Imprensa, emitiria uma declaração de princípios nesse sentido. Alertava para os perigos sociais de definir “em termos raciais as tensões decorrentes das relações metrópole-colônia e capital-trabalho”. Considerava que o Brasil era, de fato, “uma nação ocidental em que prepondera o contingente populacio-nal de origem negra”. E declarava desejável que o governo brasileiro parti-cipasse da “liderança das forças internacionais interessadas na liquidação do colonialismo”.15 Essas reivindicações não soariam vazias porque o Brasil, em que pese as contradições da sua política externa, teve de reconhecer-se institu-cionalmente como “o mais africanizado dos Estados americanos”. Guerreiro Ramos foi um dos poucos intelectuais acadêmicos a dialogar, ainda na década de 1950, com os principais escritores e políticos da descolonização africana, como Cheik Anta Diop, Leopold Senghor, Aimé Césaire e Abdoulaye Ly. Ao olhar para a África e para os negros brasileiros escreveu que “a autoconsciên-cia coletiva e a consciência crítica são produtos históricos. Surgem quando um grupo social põe entre si e as coisas que o circundam um projeto de existên-cia”. Para o autor, seria o “momento fichtiano” do pensamento africano ao concluir o seu artigo, “A consciência crítica da realidade nacional”, apontando para a universalidade das lutas anticoloniais da década de 1950:

Esses quadros, de que são representantes Diop, Césaire e Ly, vivem um momento que poderia ser considerado fichtiano. Sentem-se convocados a um empreendimento de fundação histórica, e procuram contribuir, pelo esclarecimento, para que as comunidades a que pertencem venham a cons-tituir personalidades culturais diferenciadas no nível da universalidade. Por isso, falam em nação, que é a mais eminente forma contemporânea de exis-tência histórica, e em condição humana para as massas afro-asiáticas, ainda estigmatizadas por estrema pauperização. Finalmente, o termo discurso utilizado por Aimé Césaire, que, além de político, é poeta, evoca a atitu-de fichtiana, atitude surgida episodicamente na história alemã, embora seja

15 RAMOS, Guerreiro Alberto. Introdução Crítica à Sociologia Brasileira. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1995, pp. 249-51; NASCIMENTO, Abdias. O Negro Revoltado. Op. cit., pp. 104-6.

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verdadeiro modelo de postura intelectual para todo homem de pensamen-to que vive uma hora incerta de sua comunidade.16

Nos diálogos com pensadores africanos, Guerreiro Ramos percebeu as tensões nas ciências sociais no Brasil entre as perspectivas de mentalidade co-lonial ou reflexa e o pensamento interior, crítico, que ele gostava de designar como “autenticamente nacional”. Os vigorosos ensaios de Guerreiro Ramos em muito contribuíram para aquilo que Jocélio Teles dos Santos, ao analisar o período em estudo, definiu como “o renascimento africano na sociedade brasileira”.17

A experiência com o teatro continuaria vigorosa. Abdias do Nascimento tinha escrito, em 1951, a peça Sortilégio (mistério negro). A obra, que trata do drama marginal do negro entre duas culturas, a latina e a africana, foi encena-da em agosto de 1957 e, finalmente, publicada em livro no início da década de 1960. O drama envolve Emanuel, advogado negro, apaixonado por Efigênia, mulher negra que se prostitui para galgar a carreira artística, e Margarida, mulher branca, que se casa com Emanuel para se proteger no casamento, cuja virgindade fora perdida noutra relação. As Filhas de Santo interditam a ironia popular em relação a esse tipo de solução moralizante: “Branca quando casa com preto está tapando algum buraco”. Depois de casada, Margarida passa a trair Emanuel e ainda provoca um aborto por receio de parir um filho negro. Estimulado pelo ódio racial de Efigênia, que acusa Margarida de “mãe assassi-na do próprio filho”, Emanuel acaba estrangulando a esposa e, antes de fugir, também esbofeteia Efigênia, acusando-a de “prostituta de corpo, prostituta de alma”. Antes de se entregar ao sacrifico e ser atravessado com a lança de Exu pelas Filhas de Santo, o advogado negro fala da morte como libertação de sua racialidade: “Sonhei com um filho de face escura. Escuridão de noite profunda. Olhos pretos como abismo. Cabelos duros, indomáveis. Pernas ta-lhadas em bronze... punhos de aço para esmagar a hipocrisia do mundo bran-co. Brancura que nunca mais há de me oprimir, estão ouvindo? Está ouvindo,

16 RAMOS, Guerreiro. A Redução Sociológica. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1996, pp. 46, 50.17 SANTOS, Jocélio Teles dos. O Poder da Cultura e a Cultura no Poder: a disputa simbólica da herança cultural negra no Brasil. Salvador: Edufba, 2005, pp. 27-75. Para o pensamento sociológico de Guerreiro Ramos, ver OLIVEIRA, Lúcia Lippi. A Sociologia do Guerreiro. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1995.

Deus do céu? Quero que todos ouçam. Venham todos, venham”.18

A peça, ignorada pela imprensa e criticada pelos que eram contra a existência de um “teatro de negros”, foi saudada por Nelson Rodrigues, um dramaturgo muito próximo do Teatro Experimental do Negro. Ele publicou a crônica “Abdias: o negro autêntico” no jornal Última Hora, do Rio de Janei-ro, no dia 26 de agosto de 1957, na qual destaca o poder de vida da peça: “Na sua firme e harmoniosa estrutura dramática, na sua poesia violenta, na sua dramaticidade ininterrupta”. E arremata: “nada impedirá que o mistério ne-gro entre para a escassa história do drama brasileiro”.19 A peça receberia uma segunda versão no ano de 1979 cujo final diferenciado para a personagem Efigênia expressaria uma nova etapa da dramaturgia abdisiana.20

Também publicada pelo Teatro Experimental do Negro, em 1961, e or-ganizada por Abdias Nascimento, a antologia intitulada Dramas para Negros e Prólogo para Brancos reúne nove peças em que se misturam autores negros e personagens negras criadas por autores brancos. As peças foram escritas e encenadas entre 1947 e 1961 pelo Teatro Experimental do Negro e outras companhias. No artigo, “Prólogo para Brancos”, escrito especialmente para a introdução da antologia, Abdias Nascimento esclarece a intensidade dra-mática da vida social do negro: “Ser e viver como negro não é uma peripécia comum na vida ocidental. Raça e cor diferenciam-nos e tornamos a sensibili-dade específica, desenvolvida no século da Negritude”. Nesse mesmo prólo-go o autor informa que estava em preparação um segundo volume com peças contendo temáticas negras, como Orfeu da Conceição (Vinicius de Morais), Um Caso de Kelê (Fernando Campos), O Cavalo e o Santo (Augusto Boal), Orfeu Negro (Ironides Rodrigues), Gimba (Gianfrancesco Guarnieri) e O Processo do Cristo

18 NASCIMENTO, Abdias. Sortilégio: mistério negro. In: ____ Dramas para Negros e Prólogo para Brancos. Rio de Janeiro: TEN, 1961, pp. 159-97.19 Citado em NASCIMENTO, Elisa. O Sortilégio da Cor. Op. cit., p. 344. Estudos e críticas a dramaturgia negra somente apareceram na década de 1980. Ver, em especial, MÜLLER, Ricardo Gaspar. (Org.). Dionysios. N.º 28. (Edição especial sobre o Teatro Experimental do Negro). Rio de Janeiro: Minc/Fundacen, 1988; MAUÉS, Maria Angélica M. Da ‘branca senhora’ ao ‘negro herói’: a trajetória de um discurso racial. In: Estudos Afro-Asiáticos. N.º 21. Rio de Janeiro: CEAA/UCAM, 1991, pp. 119-29; DOUXAMI, Christine. Teatro Negro: a realidade de um sonho sem sono. In: Afro-Ásia. N.º 25-26. Salvador: CEAO/Edufba, 2001, pp. 313-63.20 NASCIMENTO, Abdias. Sortilégio II: mistério negro de Zumbi redivivo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.

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Negro (Ariano Suassuna).21 O segundo volume prometido nunca foi publi-cado, mas a polêmica da representação de um Cristo negro se transformou numa questão racial sem precedentes na história republicana.

Um dos eventos marcantes que levou a questão para os órgãos de im-prensa foi o concurso de artes plásticas para a elaboração do Cristo Negro, no ano de 1955. Para os organizadores, a justificativa para o evento denunciava a sistemática reprodução de um Cristo ariano, eurocentrado, loiro e de olhos azuis. Confrontando com os padrões estéticos enraizados da brancura, os intelectuais do Teatro Experimental do Negro afirmavam que esse procedi-mento seria, na verdade, uma “alienação estética”. Pela reação da imprensa, especialmente da imprensa democraticamente conservadora, a simbologia de um Cristo Negro não seria tolerável num ideário de cristandade católica, apostólica e romana. Parece ser sintomático que um dos jornais mais lidos da década de 1950, o Jornal do Brasil, considerado o mais avançado jornalismo da capital federal, no dia 26 de junho de 1955, ao contestar um Cristo Negro advindo também de uma genealogia herdada da africanologia, mãe negra, pai negro, enfim, o filho redivivo da maldição de Cam, solicitasse uma enérgica censura a essa manifestação estética negra: “Essa exposição que se anuncia deveria ser proibida como altamente subversiva. Tal acontecimento realizado às vésperas do Congresso Eucarístico foi preparado adrede para servir de pe-dra de escândalo e motivo de repulsa. (...) As autoridades eclesiásticas devem, quanto antes, tomar providências para impedir a realização desse atentado feito à Religião e às Artes. O próprio povo brasileiro se sentirá chocado pela afronta feita”.22

As tensões transitaram ao contrário do que pregava o articulista, pois a participação dos artistas plásticos brancos foi expressiva; mais de oitenta tra-balhos foram inscritos e setores da igreja acabaram apoiando a iniciativa do Teatro Experimental do Negro, como o bispo D. Hélder Câmara, através da revista Forma.23 A artista vencedora do prêmio foi Djanira da Motta e Silva

21 NASCIMENTO, Abdias. Dramas para Negros e Prólogo para Brancos. Op. cit., pp. 9-10, 25. O mesmo prefácio também consta em Sortilégio II: mistério negro de Zumbi redivivo. Op. cit., pp. 17-34. 22 Citado em NASCIMENTO, Elisa. O Sortilégio da Cor. Op. cit., p. 301.23 Na produção de 1955 sobre a temática do Cristo negro temos conhecimento das seguintes obras: Cleoo. Cristo Negro. Óleo s/ madeira, 79x116. Rio de Janeiro, 1955; Lucette Laribe. Cristo Negro. Óleo s/ tela, 107x90. Rio de Janeiro, 1955; Otávio Araújo. Cristo Favelado. Óleo s/ tela, 70x50. Rio de Janeiro, 1955; Quirino Campofiorito. Sudário. Óleo s/ tela de cânhamo, 55x66. Niterói, 1955. O próprio Abdias

com a tela Cristo na Coluna. A responsabilidade de conduzir o concurso sobre o Cristo Negro ficou a cargo do sociólogo Guerreiro Ramos, que também dirigiu a Semana do Negro, outro evento de 1955 de caráter político e peda-gógico destinado à população negra. Dois anos depois, em 1957, Guerrei-ro Ramos escreveria crítica demolidora sobre a “Patologia Social do Branco Brasileiro”. Ele parte de um artigo de Gilberto Freyre, publicado no jornal O Globo, na edição de 03 de maio de 1955, em que o sociólogo pernambucano, no artigo “O Brasil e a Mãe Preta”, apresentava “Joanas, Marias e Beneditas” como abnegadas babás dando de mamar ao filho branco e ao filho preto, os “peitos maternalmente gordos” e, dando de comer, também aos dois, “do mesmo pirão amolengado por suas doces e sábias mãos negras”.24 Para Guer-reiro Ramos, não havia mais condições históricas para que os brancos, espe-cialmente os horrorizados com o Cristo Negro, amolecessem o passado es-cravista e sustentassem “suas atitudes arianizantes” no presente pressionado pela transformação. Para ele, as batalhas culturais e simbólicas da negritude brasileira estavam mudando a situação nacional: “A tradição da brancura que ainda sobrevive, entre nós, terá de ser ultrapassada por outra tradição, tradi-ção que estamos assistindo nascer e que representa novas condições objetivas da vida brasileira”.25 Assim, a “concepção de um Cristo de cor” migrou das telas e entrou em cena através de dramaturgos que dialogavam com o Teatro Experimental do Negro.

Nascimento pintou o seu Cristo Negro. Acrílico com veículo plástico s/ tela, 70x50, em 1968. Algumas dessas telas foram expostas na Exposição Abdias Nascimento 90 Anos – Memória Viva, nas cidades do Rio de Janeiro, Brasília e Salvador nos anos de 2004, 2005 e 2006. Ver IPEAFRO. Catálogo da Exposição Abdias Nascimento 90 Anos – Memória Viva. Rio de Janeiro: Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros, 2006, pp. 70, 72-73, 98-99. 24 Esse mesmo argumento é repetido na obra Ordem e Progresso, no final da década de 1950, que finaliza a trilogia do Gilberto Freyre, iniciada com Casa-Grande & Senzala, em 1933. Na “Tentativa de Síntese” está escrito sobre menino ou menina, entre as últimas décadas do século XIX e as três primeiras décadas do século XX: “Crescia mimado pela mãe e quase sempre também pela ama, que de ordinário era quem lhe dava de mamar do seu peito preto ou pardo, além de gordo e opulento; quem lhe dava à boca os primeiros mingaus; quem lhe canta as primeiras cantigas para o fazer dormir; quem lhe fazia os primeiros medos; mais tarde, quem lhe tirava dos pés os primeiros bichos; quem às vezes lhe catava os primeiros piolhos; quem lhe dava os primeiros banhos; quem o vestia; quem o despia; quem o calçava”. FREYRE, Gilberto. Ordem e Progresso. 4ª ed. Rio de Janeiro: Record, 1990, p. CLV. Torna-se também importante destacar que, no início da mesma década, Gilberto Freyre realiza contatos com “Orientes e Áfricas”, que, para ele, confirmam “critérios de estudo e audácias de generalização esboçadas”, constantes no seu livro publicado originalmente em 1953. Ver FREYRE, Gilberto. Aventura e Rotina: sugestões de uma viagem à procura das constantes portuguesas de caráter e ação. 2.ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1980. 25 RAMOS, Guerreiro Alberto. Introdução Crítica à Sociologia Brasileira. Op. cit., pp. 235.

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O que se sabe da prometida publicação da obra de Ariano Suassuna, O Processo do Cristo Negro, é que o texto foi reescrito sob o título Auto da Virtude e da Esperança, que acabou se transformando no terceiro ato da peça A Pena e a Lei, escrita e encenada no ano de 1959, cujo principal personagem é o negro Benedito. Entretanto, foi na peça Auto da Compadecida, cuja escrita foi conclu-ída em setembro de 1955, que Ariano Suassuna representou o Cristo negro. A peça foi montada pela primeira vez e estreou no Teatro Santa Isabel, no Recife, em 1956 e, no ano seguinte, foi publicada em livro. A crítica teatral da época, como a que apareceu no jornal O Estado de São Paulo, talvez ainda presa ao universo da brancura, se referia ao “Cristo mulato” que julgava todos, bis-pos e sertanejos, padres e cangaceiros, fazendeiros e pobres.26

Ainda antes do final da década de 1950, pouca importância se deu ao fato de que o personagem Manuel, o Cristo negro, foi encenado pelo ator negro baiano Mário Gusmão, na montagem de 1959. Para Jeferson Bacelar, autor da biografia cênica de Mário Gusmão, a presença de um Cristo negro na peça, ao estilo das telas do Salão do Cristo Negro, organizado pelo Teatro Expe-rimental do Negro, não deixava de transparecer a ambiguidade da própria democracia racial admitida pelo dramaturgo: “Suassuna, na linha de Gilberto Freyre, apostava no nacionalismo, mas, a partir de uma perspectiva regional, com grande tom de nostalgia e conservadorismo. Contrapondo ao Centro-Sul cosmopolita, superficial e alienado, o decadente mais autêntico do Nordeste, a peça se inspirava nos romances e histórias populares nordestinos, enrai-zados na tradição medieval européia”. Mas Jeferson Bacelar também nota a singularidade da representação do Cristo negro em relação às tradições estéti-cas da república: “Entre outras formulações originais, Ariano Suassuna apre-sentou um Cristo negro, o que oferece lugar a uma discussão popular obre a questão racial, além da própria perspectiva do autor, admitindo a pertinência da democracia racial. Mais: ele expunha o ideário presente em todo o Brasil republicano, ou seja, racistas eram os americanos. Porém, embora o Cristo ressalte que tinha nascido branco, não deixava, naquele momento, de ser uma ousadia e uma provocação, em relação à Igreja e aos valores sócio-raciais esta-

26 PRADO, Décio de Almeida. Teatro em Progresso: crítica teatral, 1955-1964. São Paulo: Perspectiva, 2002, pp. 42-45. Sobre o Teatro Experimental do Negro, ver PRADO, Décio de Almeida. Apresentação do Teatro Brasileiro Moderno: crítica teatral de 1947-1955. São Paulo: Perspectiva, 2001, pp. 187-89.

belecidos na sociedade brasileira, apresentá-lo como negro”.27

A análise de Jeferson Bacelar se baseia no diálogo entre João Grilo e o Cristo negro, no ato em que todos são julgados, quando o primeiro fica sur-preendido ao se deparar com a negrura do segundo e comenta que esperava vê-lo “menos queimado”. Então o Cristo negro ironiza a frase de João Grilo que, segundo depoimentos do próprio ator Mário Gusmão, fazia a platéia rir muito: “Muito obrigado, João, mas agora é a sua vez. Você é cheio de preconceitos de raça. Vim hoje assim de propósito, porque sabia que isso ia despertar comentários. Que vergonha! Eu, Jesus, nasci branco e quis nascer judeu, como podia ter nascido preto? Para mim, tanto faz um branco como um preto. Você pensa que eu sou americano para ter preconceito de raça?”. Entretanto, ao sentir que o Cristo negro se dirigia rispidamente ao Bispo, dizendo que o “tempo da mentira já passou”, João Grilo, “o amarelo mais amarelo” que o cangaceiro Severino teria a honra de matar, dirige ao Cristo negro um elogio capcioso de rescaldo popular e raciológico: “A cor pode não ser das melhores, mas o senhor fala bem que faz gosto”. Na entrada do Cristo negro em cena, o autor buscava a seguinte caracterização: “É um preto retin-to, com uma bondade simples e digna nos gestos e nos modos. A cena ganha uma intensa suavidade de iluminura”. Esse seria Manuel, Emanuel, o Leão de Judá, o Cristo negro de Ariano Suassuna.28

O depoimento de Ariano Suassuna, cinquenta anos depois de escrita a peça em que aparece o Cristo negro, mesmo devendo ser relativizada pela subjetividade da memória e pela própria verve oralística do dramaturgo, não deixa de situar historicamente um evento cênico de enorme significação para a dramaturgia negra. Na entrevista, publicada numa revista eletrônica, no ano de 2007, Ariano Suassuna fala de seus projetos recentes, admite a sua admi-ração pela narrativa “raciológica” euclidiana e explica a arqueologia do seu Cristo negro:

27 BACELAR, Jeferson. Mário Gusmão: um príncipe negro na terra dos dragões da maldade. Rio de Janeiro: Palllas, 2006, p. 75.28 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2005, pp. 124-27. Ver BACELAR, Jeferson. Mário Gusmão. Op. cit., p. 85, notas 44 e 45.

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Qual sua prioridade na Secretaria de Cultura?

É o projeto A Onça Malhada, a Favela e o Arraial, que vai percorrer Pernambuco levando dança, teatro, música, canto e literatura ao público. As apresentações acontecerão em um circo itinerante. O nome do projeto, eu explico de trás para a frente. O arraial é uma homenagem a Canudos, o episódio mais significativo da história brasileira. Já a favela é por que lá moram os que também precisam de cultura, como eu e você. Quanto ao fato de a onça ser malhada, trata-se de um mea-culpa que fiz sobre o jeito como classificava o povo brasileiro.

Que jeito era esse?

Eu tinha aprendido com Euclides da Cunha que nós éramos pardos. Gilberto Freyre, por sua vez, dizia que éramos morenos. Até que no censo de 1980 voltou a pergunta sobre a cor das pessoas. Deu uma polêmica danada. Vieram me ouvir e eu dizia que todo brasileiro era mestiço, influenciado por Sylvio Romero. Quando a dúvida ficou insuportável, só uma frase do padre Vieira me salvou. Ele diz: ‘Quem quiser acertar em história, em política ou em sociologia deve consultar as entranhas dos sacrificados’.

E o que o senhor fez?

Deixei de ouvir todos e até a mim mesmo e fui consultar o movimento negro do Recife. Me disseram que todos esses termos (pardos, morenos, mestiços) atrapalhavam a vida e eles só queriam ser vistos como negros, simplesmente. Por isso eu passei a não representar mais o povo brasileiro pela onça castanha, a mestiça, e sim pela malhada, aquela que tem as cores misturadas e, de certa forma, representa todas as nossas tonalidades de pele.

Então, ao escrever o Auto da Compadecida, em 1955, o senhor ainda não tinha consciência do problema racial brasileiro?

Isso mesmo. Tanto que na primeira versão o Cristo era branco. A mudança na cor da pele foi um momento de indignação meu motivado pelo comportamento dos americanos. Tinha visto na revista Life a foto e a notícia de um comício contra a inclusão das primeiras crianças negras nas escolas brancas dos Estados Unidos. Em primeiro plano na foto tinha uma mulher segurando um cartaz que dizia: ‘Deus foi o primeiro segregacionista ao criar raças diferentes’. Atribuir a Deus uma coisa tão odiosa quanto o racismo me deu uma raiva tão grande que na mesma hora mudei o texto e transformei o Cristo num negro.29

29 SUASSUNA, Ariano. Entrevista a Revista Eletrônica Educar Para Crescer. abril.com, em 01 de junho de 2007. In: http://educarparacrescer.abril.com.br/leitura/entrevista-ariano-suassuna-401751.shtml, acessado em 10 de novembro de 2009. A entrevista foi realizada pelo jornalista Paulo Araújo e também está disponível em outras publicações eletrônicas da Abril.com

As metáforas da Onça Malhada (povos negros e brancos) e Onça Castanha (povos morenos) usadas por Ariano Suassuna já aparecem no prefácio, “A Farsa e a Preguiça Brasileira”, que ele escreveu em 1966 para responder aos críticos da peça Farsa da Boa Preguiça, escrita em 1960 e montada, pela primeira vez, em 1961, pelo Teatro Popular do Nordeste. Ver SUASSUNA, Ariano. Farsa da Boa Preguiça. 7ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2009, pp. 19-34.A íntegra do pensamento do padre Antonio Vieira consta nessa citação: “Não há lume de profecia mais certo no mundo que consultar as entranhas dos homens. E de que homens? De todos? Não. Dos sacrificados: consultem-se as entranhas dos que se sacrificaram e dos que se sacrificam, e o que elas disserem, isso se tenha por profecia. Porém consultar as entranhas de quem não se sacrificou nem se sacrifica nem se há de sacrificar é não querer profecias verdadeiras, é querer cegar o presente, e não acertar o futuro”. Entre as inúmeras edições, ver VIEIRA, Pe. Antonio. Sermões. Vol. I. Porto: Lello & Irmão, 1959, pp. 215-42.

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A crítica de teatro, ao longo das décadas, parece colocar as coisas como se o autor de o Auto da Compadecida tivesse a mesma opinião sobre a formação católica brasileira e o seu entendimento sobre a questão negra no Brasil. No ano de 1993, Sábato Magaldi, no importante ensaio, “O teatro social no Brasil contemporâneo”, se posiciona nos seguintes termos: “Pela formação católica, o Brasil não poderia deixar de ter um dramaturgo que exprimisse o melhor de um autêntico sentimento religioso. É ele Ariano Suassuna e sua revelação, em 1956, com o Auto da Compadecida, fundindo o drama medieval e vicentino e o populário do Nordeste, toma o partido dos humildes e combate a simonia e o preconceito racial, ao colocar em cena um Cristo negro”.30 Com efeito, parece não haver dúvida de que as demandas e os agenciamentos do Teatro Experimental do Negro não deixaram de contaminar intelectuais sensíveis à questão racial no Brasil da metade do século 20. Ariano Suassuna seria uma expressão singular na dramaturgia.

Pode-se dizer que, entre as décadas de 1950 e 1960, o africanismo (negro e negritude), além de ser escrito, estava na cena da dramaturgia brasileira. Os intelectuais negros, ao olharem para a África, estavam construindo uma refi-nada matriz cultural negro-africana para os afro-brasileiros, agora exigentes de uma segunda abolição. Abdias Nascimento, concordando com Jean-Paul Sartre, sugere que a radicalidade da negritude integra uma ética e uma estética nas quais o homem branco não poderia ter uma experiência interior. Depois de repassar historicamente o teatro negro brasileiro, os teatros africano, afro--francês, afro-cubano e negro norte-americano, Abdias Nascimento discorre sobre o negro no teatro brasileiro. Ele encerra suas considerações numa de-finição madura de negritude, da qual fora um dos principais protagonistas:

Sem dúvida, estamos assistindo ao encerramento da fase do caos para o negro ex-escravo. Assumindo, no Brasil, as conseqüências e as implicações que a negritude contém, ele afia os instrumentos da sua recusa, engendra-da na espoliação e no sofrimento: recusa da assimilação cultural; recusa da miscigenação compulsória; recusa à humilhação; recusa à miséria; recusa à servidão.

30 MAGALDI, Sábato. O teatro social no Brasil contemporâneo [1993]. In: ____ Teatro Sempre. São Paulo: Perspectiva, 2006, p. 99.

O Teatro Experimental do Negro é isto: um instrumento e um elemento da Negritude. Seu único valor absoluto é a sua generosidade.31

Tratava-se, pois, de uma esperança de que os valores da negritude e as aspirações dos negros brasileiros se fizessem valer na construção da demo-cracia. Os primeiros anos da década de 1960 passariam em transe, ricos em debates culturais e projetos políticos para o Brasil, onde os intelectuais negros também não deixaram de se situar entre as direitas e as esquerdas. O próprio Abdias Nascimento, ao lembrar-se dos sortilégios dos anos de 1960, afirmou que o teatro era sempre vibração humana e social: “ao falar muito de política, estou falando de teatro, assim como, ao falar muito de amor e de morte, eu estou falando muito de teatro, porque tudo que é profundo, e essencial, e importante para o ser humano e para vida social e cultural, é teatro”.32 En-tretanto, com o golpe civil-militar no ano de 1964 as coisas começaram a se tornar dramáticas para as organizações negras que, ainda no mesmo ano do golpe, organizaram cursos de introdução ao teatro negro e às artes negras nos meses de outubro e novembro. No Seminário Internacional sobre o Apartheid e o Racismo, promovido pela Organização das Nações Unidas, em Brasília, no ano de 1966, os organizadores do TEN lançaram o livro Teatro Experimental do Negro: testemunhos, onde firmam a memória de um teatro sobre negros, por negros, para negros e perto de negros, na acepção duboisiana.

Com efeito, no ano de 1966, o governo militar, ao formar a comitiva bra-sileira para representar o país no Festival Mundial das Artes Negras, a ser realizado em Dakar, capital do Senegal, vetou a participação de vários artistas e intelectuais negros, muitos deles ligados ao Teatro Experimental do Negro, ao Teatro Popular Brasileiro e a Orquestra Afro-Brasileira. Os protestos co-meçaram a denunciar o racismo velado do Ministério das Relações Exteriores. O manifesto mais enfático foi a “Carta Aberta ao Primeiro Festival das Artes Negras, Dacar, Senegal, 1966”, datado do Rio de Janeiro, no dia 31 de março do mesmo ano. Nessa carta encaminhada ao governo do Senegal, à UNES-CO e à Sociedade Africana de Cultura, sediada em Paris, o presidente do Te-

31 NASCIMENTO, Abdias. Dramas para Negros e Prólogo para Brancos. Op. cit., p. 25.32 SEMOG, Éle e NASCIMENTO, Abdias. Abdias Nascimento: o griot e a muralhas. Rio de Janeiro: Pallas, 2006, p. 156.

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atro Experimental do Negro, Abdias Nascimento, denunciava os “exclusores do Itamaraty” pela “ideologia da brancura” e de apenas admitirem o “negro aculturado e assimilado”. Além de inverter a dimensão política da expressão democracia racial afirmando-a como “a garantia do direito do negro continuar sendo negro, do branco ou do amarelo continuar sendo branco ou amarelo, se assim o desejar”, Abdias Nascimento formulava as bases epistemológicas da revolta do negro brasileiro contemporâneo:

Irmãos:

A diáspora negra foi o acontecimento mais trágico da histó-ria do homem. Fomos arrancados pela violência do coração da áfrica - de nossos deuses, costumes, de nossos afetos - e vimos habitar o Brasil, Cuba, Venezuela, Porto Rico, Hai-ti, Estados Unidos. A história guarda nossa história nesses quatro séculos e, hoje [1966], convocados pelo Senegal livre, por nossa Mãe-África libertada, realizamos a ansiada viagem de volta. Desde cidades tentaculares como Nova York ou São Paulo, dos canaviais cubanos, dos bananais da América Central, dos cafezais colombianos, do fundo das minas, dos poços petrolíferos, das usinas, ou dos mistérios da Bahia e Porto Príncipe, regressamos com nossas lágrimas e nosso riso. Enrijecidos na experiência de sangue, de força, de luta, de sofrimento - construímos um mundo novo, uma civili-zação nova -, comparecemos a esse 1.º Festival Mundial das Artes Negras para confirmar nossa fidelidade às origens que estes quatro séculos de escravidão não conseguiram anular. Fomos negros ontem, somos negros hoje, seremos negros amanhã.33

Podemos dizer que seriam o embrião de novas idéias que o autor desen-volveria como pan-africanismo e quilombismo nas décadas seguintes, espe-cialmente nas andanças de exílio, pela África, Antilhas e Caribe e Estados Unidos, depois de 1968, quando o Teatro Experimental do Negro definha

33 NASCIMENTO, Abdias. O Brasil na Mira do Pan-Africanismo. Op. cit., pp. 331-32.

como experiência de uma dramaturgia negra. Com efeito, as raízes dessa “má-gica negritude” não poderiam deixar de estar encravadas na existência de “um teatro negro de arte e um teatro popular de negros”. Para a historiografia, que trabalha com a violência intrínseca da dimensão racial, nunca é demais repetir as palavras do padre Vieira recuperadas por um dramaturgo como Ariano Su-assuna: “Quem quiser acertar em história, em política ou em sociologia deve consultar as entranhas dos sacrificados”.

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HISTÓRIA, CULTURA, TRABALHO: questões da contemporaneidade

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