18
IV CONGRESSO SERGIPANO DE HISTÓRIA & IV ENCONTRO ESTADUAL DE HISTÓRIA DA ANPUH/SE O CINQUENTENÁRIO DO GOLPE DE 64 História da beleza e do vestir: as contribuições de Maria Thereza Goulart para a moda nacional Ivana Guilherme Simili 1 Introdução No Brasil, as narrativas para a história da beleza e do vestir nos anos 1960 revelam mudanças profundas nas práticas e representações das mulheres sobre o corpo, as aparências e as roupas. A criação e o desenvolvimento de um mercado de bens e produtos cosméticos e de roupas, as estratégias de propagandas em revistas especializadas em assuntos relacionados à moda que encontraram em personagens da vida artística e política os meios de educar o gosto e o estilo das brasileiras são faces das mudanças observadas no período. Entre as protagonistas dessa história esteve Maria Thereza Goulart (23/08/1940).Como esposa de João Goulart, presidente da República de 1961 a 1964, quando aconteceu o Golpe Militar, a primeira-dama foi uma personagem que acompanhou e contribuiu com a história da beleza e do vestir por meio de inúmeras práticas de significação e difusão da imagem de mulher jovem, moderna e elegante. Ferreira (2011), biógrafo de João Goulart, auxilia no entendimento do papel que Maria Thereza desempenhou na história do vestir e na cultura da moda dos da década de 1960. Para o autor, Maria Thereza é exemplo dos efeitos positivos e negativos que a beleza física proporciona a uma mulher. Os atributos físicos, ao conformarem a 1 Professora da Universidade Estadual de Maringá. Email: [email protected]

História da beleza e do vestir: as contribuições de Maria ... · estampado nas capas de revistas da época como Manchete, Fatos e Fotos, Stern e Life e a exposição fez com que,

  • Upload
    tranque

  • View
    212

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

IV CONGRESSO SERGIPANO DE HISTÓRIA & IV ENCONTRO ESTADUAL DE HISTÓRIA DA ANPUH/SE

O CINQUENTENÁRIO DO GOLPE DE 64

História da beleza e do vestir: as contribuições de Maria Thereza

Goulart para a moda nacional

Ivana Guilherme Simili1

Introdução

No Brasil, as narrativas para a história da beleza e do vestir nos anos 1960

revelam mudanças profundas nas práticas e representações das mulheres sobre o corpo,

as aparências e as roupas. A criação e o desenvolvimento de um mercado de bens e

produtos cosméticos e de roupas, as estratégias de propagandas em revistas

especializadas em assuntos relacionados à moda que encontraram em personagens da

vida artística e política os meios de educar o gosto e o estilo das brasileiras são faces das

mudanças observadas no período.

Entre as protagonistas dessa história esteve Maria Thereza Goulart

(23/08/1940).Como esposa de João Goulart, presidente da República de 1961 a 1964,

quando aconteceu o Golpe Militar, a primeira-dama foi uma personagem que

acompanhou e contribuiu com a história da beleza e do vestir por meio de inúmeras

práticas de significação e difusão da imagem de mulher jovem, moderna e elegante.

Ferreira (2011), biógrafo de João Goulart, auxilia no entendimento do papel que

Maria Thereza desempenhou na história do vestir e na cultura da moda dos da década de

1960. Para o autor, Maria Thereza é exemplo dos efeitos positivos e negativos que a

beleza física proporciona a uma mulher. Os atributos físicos, ao conformarem a

1 Professora da Universidade Estadual de Maringá. Email: [email protected]

IV CONGRESSO SERGIPANO DE HISTÓRIA & IV ENCONTRO ESTADUAL DE HISTÓRIA DA ANPUH/SE

O CINQUENTENÁRIO DO GOLPE DE 64

aparência de “menina”, trouxeram-lhe promoção pessoal e social na medida em que,

além de chamar a atenção das pessoas – especialmente dos homens – sobre e para si,

também a transformaram em objeto de interesse midiático. Thereza teve o rosto

estampado nas capas de revistas da época como Manchete, Fatos e Fotos, Stern e Life e

a exposição fez com que, junto à proliferação das imagens, surgissem comentários

referentes a sua vida pessoal, muitos deles classificados pelo autor como maldosos, em

particular os relacionados ao seu casamento e à sua fidelidade.

Os investimentos da primeira-dama na imagem de beleza e elegância revelam-

se por outras fontes biográficas, especialmente naquelas que retratam seus vínculos com

a moda nacional. Thereza contratou o costureiro Dener Pamplona de Abreu para

confeccionar as roupas com as quais comparecia aos eventos da vida pública e política.

Nesse sentido, a declaração de Dener encontrada em seu livro de memória é

significativa da relação de vestir estabelecida entre eles,

Eu fiz vestidos para Maria Thereza para todas as ocasiões. Para

recepções, casamentos, para funeral, para solenidades oficiais. Só não

fiz um vestido para a deposição. Porque ela não me pediu. Mas Maria

Thereza tinha roupas apropriadas. Poderia usar um tailleur marrom,

cinza grafite, ou um tailleur preto com blusa branca. Pois não é que

ela perde a cabeça, fica nervosa ou sei lá o que aconteceu... [...] Ora o

que aconteceu! O que aconteceu é que ela foi exilada de

turquesa!”(ABREU, 2007, p. 76).

De 1963 até a deposição de João Goulart, em 1964, Dener se situa como o

responsável pelas roupas e pelas aparências tornadas públicas pela primeira-dama nas

sociabilidades do poder. As visualidades da personagem, ao serem divulgadas nos

meios de comunicação que faziam as coberturas dos eventos que contavam com a

IV CONGRESSO SERGIPANO DE HISTÓRIA & IV ENCONTRO ESTADUAL DE HISTÓRIA DA ANPUH/SE

O CINQUENTENÁRIO DO GOLPE DE 64

presença da esposa presidencial, reforçavam a imagem pública de que o país tinha uma

primeira-dama jovem, bela e principalmente elegante, porque vestida por um dos

principais representantes da costura de luxo que tinha atuação ativa na criação de uma

identidade para a moda nacional.

Examinar a “moda Maria Thereza”, como divulgada nos meios de comunicação

em particular, nas revistas de circulação nacional que faziam as coberturas dos eventos

sociopolíticos e/ou sociabilidades do poder e da política para identificar as contribuições

da primeira-dama na construção de imagens sobre e para a beleza e a elegância da

mulher brasileira é o encaminhamento deste trabalho. No aspecto teórico e

metodológico, as edições das Revistas Manchete, publicadas com a imagem da

primeira-dama nas capas, as narrativas biográficas para os personagens envolvidos na

trama da história da moda dos anos 1960 conduziram o levantamento e as análises das

informações, especificamente dois exemplares, de 04 de maio de 1963 e 14 de março

de 1964, respectivamente, com as características descritas, com narrativas visuais e

escritas (capas e reportagens) relativas aos fazeres públicos da primeira-dama.

Diante das mudanças observadas no mercado da moda do período, inclusive

com o surgimento de revistas especializadas, caso de Manequim (1959), os periódicos

de circulação nacional continuavam a modelar as representações dos segmentos

femininos sobre beleza e elegância, caso da Manchete. Como destaca Monteiro (2007,

p. ), “[...] noticiar assuntos variados – política nacional e internacional, artes, vida

social, cotidiano, esportes, variedades e publicidade – dosando os conteúdos com

informações, formação de opinião pública e entretenimento” definiam o estilo editorial

da Revista Manchete. O estilo visual adotado pelo periódico, orientado pelo uso de

fotografias como recursos visuais na produção das notícias, era um aspecto que

facilitava a comunicação dos fatos e dos acontecimentos narrados.

IV CONGRESSO SERGIPANO DE HISTÓRIA & IV ENCONTRO ESTADUAL DE HISTÓRIA DA ANPUH/SE

O CINQUENTENÁRIO DO GOLPE DE 64

De certa forma, é possível afirmar que, e é nesse sentido que caminha a

argumentação deste texto, as imagens das capas das revistas e aquelas que

acompanhavam as descrições sobre os atos e feitos de Maria Thereza na vida pública e

política eram representações sobre aparências defendidas pelos segmentos femininos da

elite que educavam o gosto e os estilos das brasileiras. Elas incutiam práticas de

cuidados corporais e de vestir que contribuíam para movimentar o mercado da moda

nacional.

***

Maria Thereza Fontella Goulart (23.08.1940) casou-se em 1956, aos 16 anos,

com João Belchior Marques Goulart (01.03.1919 -06.12.1976), com quem teve dois

filhos: Denise e João Vicente. Quando Goulart assumiu a presidência tinha 45 anos, e

Thereza, 21.

Antes de Maria Thereza ocupar no cenário nacional a representação de

primeira-dama, houve outra jovem esposa de presidente da Republica na faixa dos 20

anos. Nair de Teffé tinha 27 anos quando, em 1913, casou-se com o presidente da

República Hermes da Fonseca, que aos 58 anos casava-se pela segunda vez.

(GALETTI; SIMILI, 2013).

Embora Nair fosse jovem como Maria Thereza, a valorização da idade, da

beleza e elegância da segunda deve ser entendida como decorrente da cultura da moda e

das aparências que marcaram o relacionamento das mulheres com o corpo e as roupas.

No período, acompanhando as transformações econômicas, sociais e culturais,

as aparências das mulheres passaram por mudanças significativas mediante a

redefinição das subjetividades femininas em torno dos valores da juventude e da beleza

como passaporte para o sucesso, o prestígio e a felicidade. É nesse sentido que as

reflexões de Denize Bernuzzi Sant’Anna (2008) caminham ao mostrar que, no final dos

IV CONGRESSO SERGIPANO DE HISTÓRIA & IV ENCONTRO ESTADUAL DE HISTÓRIA DA ANPUH/SE

O CINQUENTENÁRIO DO GOLPE DE 64

anos 1950, a política desenvolvimentista de Juscelino Kubitschek inaugurou um fato

inédito na cultura das aparências: o processo de rejuvenescimento e de modernização do

país passava pelas maneiras de ser dos brasileiros e das brasileiras.

Desde 1959, a beleza foi redefinida com suporte no conceito de que ela não era

uma benção divina ou da natureza, mas que podia e deveria ser conquistada pelo esforço

individual das dietas, ginásticas e por meio da aquisição de produtos estéticos que

solucionassem as feiúras da pele, do corpo, tais como os cremes, os xampus, as

maquiagens etc. Essa redefinição é acompanhada pela ampliação do parque industrial e

comercial relacionado ao ramo, que começou a crescer a partir do estabelecimento de

indústrias de cosméticos, da criação de uma rede de lojas e de revistas especializadas

em moda e beleza.

Na década de 1960, ampliam-se os mecanismos científicos da cosmética para

que todas as mulheres pudessem usufruir dos prestígios da beleza. Os primeiros

congressos internacionais e a evolução dos produtos de beleza pela indústria cosmética

atribuem novo significado à estética feminina, formulada pelo imperativo de que era

necessário “não ser, mas sentir-se bela”, ou seja, era preciso que as mulheres se

sentissem satisfeitas com a própria aparência. Por conseguinte, o sucesso ou fracasso

em sua vida pessoal passava a ser expressão do corpo e da beleza (SANT’ANNA,

2012), ou conforme Mara Rúbia de Sant’Anna, (2014, p. 136), “a beleza atribuindo

direitos, coroando estatutos e, acima de tudo, permitindo poderes, foi assim que

começou o estreitamento das relações entre poder e aparência”. Portanto, ser bela era

“antes de tudo um agente de significação, isto é, significante de sucesso, prosperidade e

de superioridade e constituinte de uma subjetividade que centra o seu sentido no

parecer”.

Na formação das subjetividades femininas acerca dos poderes proporcionados

pela beleza ou de uma espécie de empoderamento feminino produzido pela aparência,

IV CONGRESSO SERGIPANO DE HISTÓRIA & IV ENCONTRO ESTADUAL DE HISTÓRIA DA ANPUH/SE

O CINQUENTENÁRIO DO GOLPE DE 64

Maria Thereza é exemplar. O poder que ela passou a desfrutar na sociedade e cultura é

resultado de processos de significações midiáticas, como um dentre os muitos modelos

de beleza a serem conhecidos, reconhecidos e seguidos pelos segmentos femininos.

Portanto, os espetáculos visuais de Maria Thereza revelados nas capas da

Manchete são denotativos da fabricação de si como bela e jovem que se projetava na

memória sociovisual da época. Na relação social e visual entre imagens, o mecanismo

desenvolvido pela imprensa para fazer crer no espetáculo chamado Maria Thereza foi o

de inseri-la no mundo das estrelas e dos modelos de beleza. O uso das fotografias da

primeira-dama nas capas é indicativo do processamento dessa construção,

IV CONGRESSO SERGIPANO DE HISTÓRIA & IV ENCONTRO ESTADUAL DE HISTÓRIA DA ANPUH/SE

O CINQUENTENÁRIO DO GOLPE DE 64

IV CONGRESSO SERGIPANO DE HISTÓRIA & IV ENCONTRO ESTADUAL DE HISTÓRIA DA ANPUH/SE

O CINQUENTENÁRIO DO GOLPE DE 64

Fonte: MANCHETE. Rio de Janeiro: Bloch, ano 11, n. 576, 4 de maio de 1963.

IV CONGRESSO SERGIPANO DE HISTÓRIA & IV ENCONTRO ESTADUAL DE HISTÓRIA DA ANPUH/SE

O CINQUENTENÁRIO DO GOLPE DE 64

IV CONGRESSO SERGIPANO DE HISTÓRIA & IV ENCONTRO ESTADUAL DE HISTÓRIA DA ANPUH/SE

O CINQUENTENÁRIO DO GOLPE DE 64

Fonte: MANCHETE. Rio de Janeiro: Bloch, ano 11, n. 621, 14 março de 1964.

As fotografias coloridas de Maria Thereza impressas nas capas das revistas

Manchete, produtos das seleções desenvolvidas pelos fotógrafos e editores das melhores

poses como cartazes-propagandas para seduzir o público e levá-lo a comprar para saber

sobre a vida da primeira-dama brasileira, são atestados visuais para dois aspectos, a

beleza e elegância.

Maria Rubia de Sant’Anna (2014, p. 95) assinala que “A beleza feminina

aparece, quase sempre, indissociável da elegância, contudo elas são distintas”. Embora

distintas, é possível uma aproximação entre elegância e beleza se considerarmos as

imagens objetos das análises e esse comentário de Dener, costureiro oficial da primeira-

dama: “Acho muito agradável costurar para Maria Teresa. Ela possui medidas

perfeitas”, ao que acrescenta: “Seu guarda-roupa, para os diversos atos da visita, será

composto de oito vestidos, em cores claras [...] os tons que melhor combinam com seu

tipo moreno, bem brasileiro, são branco, rosa, azul-claro, verde-água, turquesa,

champanhe e dourado. O gênero será a simplicidade” (DÓRIA,1998, p. 29).

Medidas perfeitas e tipo moreno, bem brasileiro são os adjetivos por meio dos

quais o costureiro define sua cliente. Como interpretar a definição quando se tem mira o

contexto da moda brasileira em que os personagens estavam imersos e, como tais,

participaram da história da beleza e da moda que se escrevia no país?

Do lado do costureiro, há que ser considerado que, ao costurar para a primeira-

dama, Dener encontrava um corpo e uma imagem para viabilizar a projeção da moda

brasileira no cenário nacional e internacional, para sinalizar que, aqui, havia uma moda

nacional, “feita pelos brasileiros e para as brasileiras”.

Para a compreensão dessa assertiva, é necessário reportar-se às transformações

nas engrenagens e funcionamento da moda. Como bem observou Lipovetsky (1989), os

IV CONGRESSO SERGIPANO DE HISTÓRIA & IV ENCONTRO ESTADUAL DE HISTÓRIA DA ANPUH/SE

O CINQUENTENÁRIO DO GOLPE DE 64

anos 1950 e 1960 marcaram a alteração no edifício da moda mediante a instalação de

um novo sistema, o que não significou a ruptura total com o modo de operar

identificado nos períodos anteriores. A irrupção do “pret-à-porter” (roupas prontas para

vestir) instituiu uma nova lógica na produção industrial e na comercialização, que

encontraram nos desfiles e nas propagandas das revistas os instrumentos para o

funcionamento de suas engrenagens

Maria Claudia Bonadio (2010), em diversos estudos, mostrou que, naqueles

anos, constituiu-se no Brasil o campo da “moda nacional”, com um mercado de

produção e consumo de roupas que teve na Rhodia, uma empresa instalada no país, um

dos ícones para o desenvolvimento do parque industrial e do setor de confecções. Entre

as estratégias da Rhodia para melhorar a produção e o consumo de roupas com os

filamentos sintéticos de que era produtora e, ao mesmo tempo, estabelecer concorrência

com os tecidos brasileiros em fibras naturais e os tecidos finos importados, esteve a

implementação de uma política de divulgação nas revistas femininas, de editoriais de

moda, reportagens e anúncios, bem como a realização de desfiles de moda.

Bonadio (2010) aponta, ainda, que para garantir a fatia de mercado entre as

confecções e indústrias têxteis, a Rhodia procurou desenvolver mecanismos que

penetrassem “no gosto dos brasileiros”. Um deles, e talvez o principal, de acordo com a

autora, foi o de tentar vender a ideia de que a empresa criava uma “moda nacional” com

qualidade internacional. Nesse projeto, para conferir “brasilidade” aos seus produtos e

marcas, a empresa produziu textos e imagens publicitárias com os “signos de

brasilidade”. Os cenários para as fotos foram buscados em elementos do patrimônio

histórico (espaços arquitetônicos, estampas e cores), os quais visavam destacar a

“riqueza e a beleza natural”, o “exotismo” e os “motivos edênicos”. O projeto de

“invenção da moda brasileira” desenvolvido pela empresa seguia, assim, o modelo da

alta-costura e envolvia, inclusive, a contratação de costureiros representantes da alta-

IV CONGRESSO SERGIPANO DE HISTÓRIA & IV ENCONTRO ESTADUAL DE HISTÓRIA DA ANPUH/SE

O CINQUENTENÁRIO DO GOLPE DE 64

costura brasileira para criar coleções de roupas para a Rhodia. Entre eles, Dener foi uma

das tônicas das estratégias.

Por conseguinte, no início dos anos 1960, a articulação da alta- costura com a

indústria têxtil e de confecções alimenta o surgimento do sistema prêt-à-porter (roupas

prontas para vestir), fenômeno observado desde fins dos anos 1950, processo que se

intensifica e fornece as bases para o investimento na criação de uma identidade para a

moda nacional, ou seja, de uma moda “feita aqui e para as brasileiras”. Acirram-se,

assim, os investimentos na criação de representações que pudessem caracterizar uma

identidade para a moda brasileira que vinha desde o fim da década de 1920. O propósito

desses investimentos era romper com as influências estético-estilísticas que haviam

marcado a história da moda no país, contaminada, durante séculos, pela cópia e

adaptação de modelos de costureiros renomados da Europa, em particular da França e, a

partir dos anos 1930, também dos Estados Unidos (NEIRA, 2008).

Os investimentos e os benefícios recíprocos na moda brasileira que se

vislumbram na configuração do encontro entre Dener e Maria Thereza, bem como os

empréstimos e as trocas simbólicas entre roupas e aparências para fazer funcionar a

moda nacional, projetando-a, divulgando-a, incentivando as mulheres da elite a se

transformarem em consumidoras do que era feito pelos brasileiros estão implícitos nos

noticiários e explícitos em comentários como esse: “Naquele ano de 1963, Maria Teresa

figurou na lista das dez mulheres mais elegantes do país, segundo a eleição rigorosa de

Jacinto de Thormes, inventor desse termômetro da moda”, (DÓRIA, 1998, p. 29).

A projeção era evidência necessária às subjetividades das mulheres,

constituindo-se em selo de garantia de que, vestidas com as roupas nacionais, elas

poderiam ser tão chiques e elegantes como as mulheres de outros países, de que podiam

ser tão glamorosas e sedutoras quanto Maria Thereza. Esses foram aspectos marcantes

IV CONGRESSO SERGIPANO DE HISTÓRIA & IV ENCONTRO ESTADUAL DE HISTÓRIA DA ANPUH/SE

O CINQUENTENÁRIO DO GOLPE DE 64

da cultura da moda nos anos 1960 que condicionaram a relação de consumo de bens e

produtos como cosméticos e roupas.

O resultado dos investimentos recíprocos entre Dener e Maria Thereza na moda

nacional pode ser encontrado na biografia do costureiro:

Eu criei a moda brasileira, um estilo próprio e nosso, que fez com

que nossas grandes senhoras não precisassem se vestir na Europa. Eu fiz

os brasileiros acreditarem na moda, e figurinista passou a ser assunto.

Lancei uma imagem e hoje ninguém tem vergonha de dizer que se veste

no Brasil. Antes de mim, para ser elegante, precisava usar etiqueta de

fora. Lembro-me de uma senhora que só usava Cardin, que não lhe

fazia senão cópias baratas de Courrèges, o que, aliás, é o seu forte.

Usavam cópias importadas e com grandes assinaturas, só porque a

etiqueta era francesa (ABREU, 2007, p. 99).

Fato é, também, que, se considerarmos a avaliação de Dener sobre os avanços na

moda brasileira dos anos 1960, podemos concluir que os mecanismos desenvolvidos no

período, com o apoio de Maria Thereza, foram fundamentais para que a estética das

roupas brasileiras agradasse as mulheres da elite, alterando os comportamentos de seu

consumo e dos segmentos femininos consoante ao modelo de influência de “cima para

baixo” (SIMMEL, 1998; CRANE, 2011), ou seja, aquele proveniente das camadas

dominantes e as subsequentes apropriações, assimilações e acomodações geradas por

imitações feitas pelos outros segmentos sociais de mulheres.

Devemos considerar, ainda, os estratagemas desenvolvidos pela moda nacional

no que tange à estética das roupas, ou o que podemos denominar recursos empregados,

IV CONGRESSO SERGIPANO DE HISTÓRIA & IV ENCONTRO ESTADUAL DE HISTÓRIA DA ANPUH/SE

O CINQUENTENÁRIO DO GOLPE DE 64

de modo que ela fizesse sentido para as mulheres como portadora de diferencial quando

comparada com o que era produzido em outros países. Nesse aspecto, Maria Thereza

foi peça-chave.

Destarte, os adjetivos empregados por Dener para qualificar Maria Thereza

como uma mulher que tinha “medidas perfeitas e tipo moreno” transformam-se em

signos da beleza morena ou a morenice da brasileira, que projetam significados para a

sensualidade das formas. Essa é a definição que promove a moda nacional e contribui

para fabricar os processos de identificação entre as roupas feitas por brasileiros e para as

mulheres e, por conseguinte, uma grife e uma identidade para a moda do país, fazendo

transitar significados entre beleza e elegância.

A partir dos anos 1963, os princípios de uma moda brasileira, defendidos desde

os anos 1920, que propunham a criação de uma estética e de uma estilística capaz de

contemplar a realidade brasileira e romper com as influências internacionais ganha

força entre finais dos anos 1950 e durante os 1960, com o intuito de “revelar os aspectos

vivos de nossa cultura” e “[...] estimular a autonomia de nossa moda como expressão

das reais necessidades populares ” (NEIRA, 2008). Nesse contexto, no corpo de uma

personagem são encontrados os símbolos necessários para configurar representações da

brasilidade das mulheres e das roupas.

Importa destacarmos que a crítica aos modelos de beleza importados que

definiam a estética feminina mediante a valorização da mulher loira, por meio da qual a

influência europeia e norte americana se fazia sentir sobre os comportamentos das

brasileiras, foi objeto da reflexão de Gilberto Freyre (1987, p. 34), levando-o a

reivindicar por modas que se “[...] ajustem a forma e cores de mulheres bronzeadas pelo

sol de Copacabana, à revelia de modas puramente européias ou puramente ianques. Ou

puramente albinóide”. Logo, é de se pensar que a definição de um modelo de beleza

IV CONGRESSO SERGIPANO DE HISTÓRIA & IV ENCONTRO ESTADUAL DE HISTÓRIA DA ANPUH/SE

O CINQUENTENÁRIO DO GOLPE DE 64

fixado a partir de um ponto, isto é, da “morena” Maria Thereza Goulart foi crucial para

que a estética feminina da mulher brasileira começasse a ser valorizada pela moda.

O argumento revela-se plausível quando consideramos outros investimentos na

estética nacional. Em meados dos anos 1960, em plena efervescência do mercado da

moda nacional, a Estrela, uma empresa nacional de brinquedos, cria a boneca Susi. No

cenário internacional, em particular, norte-americano, a Barbie surgiu em 1959,

configurando a estética da mulher loira.

Dois modelos de beleza são nítidos no caso de Susi e Barbie. A primeira,

morena, cintura fina e coxas grossas, padrão de beleza e da estética feminina

preconizada e difundida pelas revistas, como estética e estilística feminina da brasileira

e da brasilidade das mulheres (SANT’ANNA, 2012). A segunda, padrão estético norte-

americano da mulher branca e loira, cujas influências sobre os segmentos femininos são

históricos e nítidos em decorrência da difusão desse padrão por meio de atrizes do

cinema norte-americano, caso de Marylin Monroe, Brigite Bardot, entre outras.

Dessa forma, é se nos anos 1960 a criação do mercado nacional de moda teve

como um de seus motores de funcionamento o envolvimento de costureiros/as e de

empresas para criar e divulgar a estética e a estilística nacionais de modo a romper com

as influências estrangeiras, em particular a estadunidense sobre as brasileiras, o

aparecimento da Susi como uma boneca brasileira se constituiu em recurso de

propaganda e marketing da nacionalidade que contribuíam para a formação de imagens

e representações junto aos segmentos infantis do que era ser brasileira mediante a

valorização da morenice dos cabelos e dos traços corporais.

Diante do exposto, concluímos que a história da beleza e do vestir nos anos

1960 foi fabricada por múltiplas estratégias desenvolvidas pelo mercado da moda para o

consumo de valores estéticos – de beleza e de roupas. Nesse âmbito, o encontro e a

parceria entre Dener e Maria Thereza (e vice-versa) foi um dos pontos de apoio das

IV CONGRESSO SERGIPANO DE HISTÓRIA & IV ENCONTRO ESTADUAL DE HISTÓRIA DA ANPUH/SE

O CINQUENTENÁRIO DO GOLPE DE 64

políticas da moda brasileira e da cultura das aparências para definir o nacional,

especialmente a beleza da mulher brasileira e os modos pelos quais as roupas podiam

contribuir para sua valorização. O que o figurinista e a cliente comunicam são imagens

de roupas feitas por brasileiros e usadas por brasileiras que se tornam estratégicas no

mundo de imagens de moda e na formação das subjetividades femininas prêt-à-porter,

ou seja, na maneira como as brasileiras passaram a se olhar e a se ver.

Em suma, o que as roupas de Dener usadas por Maria Thereza sinalizam é que a

moda brasileira podia destacar e valorizar a beleza da mulher brasileira, que as roupas

feitas por brasileiros podiam tornar as mulheres tão elegantes quanto aquelas que viviam

e se vestiam em outros países. Era uma moda feita aqui, para a mulher daqui, com os

teores da brasilidade. Esse era o diferencial com o qual Maria Thereza concordava e

alimentava, porque se vestia com a moda Dener.

Destarte, Maria Thereza não apenas vestiu as roupas de Dener, mas, com elas,

viabilizou e disseminou um projeto de moda nacional brasileira, com as noções de

corpo, beleza e elegância que contribuíram para modelar as subjetividades das mulheres

e a memória visual de uma época. Se a diplomacia é inerente ao poder e à política, o

guarda-roupa de Maria Thereza transformou-se em modelo diplomático na promoção da

mulher e da moda brasileira tanto no cenário nacional quanto no internacional.

Portanto, se em algum momento Dener disse “Eu sou a moda brasileira”, Maria

Thereza respondeu: “Eu sou a mulher brasileira” ou uma representação da beleza e da

elegância feminina.

Referências

IV CONGRESSO SERGIPANO DE HISTÓRIA & IV ENCONTRO ESTADUAL DE HISTÓRIA DA ANPUH/SE

O CINQUENTENÁRIO DO GOLPE DE 64

ABREU, Dener Pamplona de. Dener - o luxo. 3. ed. Ver. SP: Cosac Naify, 2007.

BONADIO, Maria Claudia. As modelos negras na publicidade de moda no Brasil dos

anos 1960. In. 6º. COLÓQUIO DE MODA. São Paulo, Anhembi-Morumbi, 2010. Cd

room.

CRANE, Diana. A moda e seu papel social: classe, gênero e identidade das roupas.

Tradução de Cristiana Coimbra. São Paulo, Senac, 2006.

DORIA, Carlos. Bordado da fama: uma biografia de Dener. SP: editora Senac, 1998.

FERREIRA, Jorge. João Goulart: uma biografia. 4. ed. RJ: Civilização Brasileira,

2011.

FREYRE, Gilberto. Modos de homem & Modas de mulher. 2ed. RJ:Record, 1987.

GALLETI, Camila H.; SIMILI, Ivana G. Mulheres, casamento e política. Cadernos de

Pesquisa do CDHIS, Revista do Centro de Documentação e Pesquisa em História/

Universidade Federal de Uberlândia, Minas Gerais, ano 26, n. 1, p. 129-152, jan/

jun.2013.

LIPOVETSKY, Gilles. O império do efêmero. A moda e seu destino nas sociedades

modernas. SP: Cia das Letras, 1989.

MANCHETE, Rio de Janeiro, ano 11, n.576, 04 maio 1963.

IV CONGRESSO SERGIPANO DE HISTÓRIA & IV ENCONTRO ESTADUAL DE HISTÓRIA DA ANPUH/SE

O CINQUENTENÁRIO DO GOLPE DE 64

MANCHETE, Rio de Janeiro, ano 11, n. n. 621, 14 mar. de 1964.

NEIRA, Luz Garcia. A invenção da moda brasileira. Caligrama. Revista de estudos e

pesquisas em linguagem e mídia. V. 4, n. 1, Jan./Abr. 2008. Disponível em: <

http://www.eca.usp.br/caligrama/n_10/04_neira.pdf>. Acesso em: julho 2013.

SANT’ANNA, Denise B. de. Consumir é ser feliz. In: OLIVEIRA, Ana Claudia;

CASTILHO, Kathia (Org.). Corpo e moda: por uma compreensão do contemporâneo.

SP: Estação das Letras e Cores, 2008. p. 57-66.

SANT’ANNA, Mara Rúbia. Elegância, beleza e poder na sociedade de moda dos anos

50 e 60. SP: Estação das Letras e cores, 2014.

SIMMEL, G. La moda. Milano: Mandadori, 1998.