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IV CONGRESSO SERGIPANO DE HISTÓRIA & IV ENCONTRO ESTADUAL DE HISTÓRIA DA ANPUH/SE
O CINQUENTENÁRIO DO GOLPE DE 64
História da beleza e do vestir: as contribuições de Maria Thereza
Goulart para a moda nacional
Ivana Guilherme Simili1
Introdução
No Brasil, as narrativas para a história da beleza e do vestir nos anos 1960
revelam mudanças profundas nas práticas e representações das mulheres sobre o corpo,
as aparências e as roupas. A criação e o desenvolvimento de um mercado de bens e
produtos cosméticos e de roupas, as estratégias de propagandas em revistas
especializadas em assuntos relacionados à moda que encontraram em personagens da
vida artística e política os meios de educar o gosto e o estilo das brasileiras são faces das
mudanças observadas no período.
Entre as protagonistas dessa história esteve Maria Thereza Goulart
(23/08/1940).Como esposa de João Goulart, presidente da República de 1961 a 1964,
quando aconteceu o Golpe Militar, a primeira-dama foi uma personagem que
acompanhou e contribuiu com a história da beleza e do vestir por meio de inúmeras
práticas de significação e difusão da imagem de mulher jovem, moderna e elegante.
Ferreira (2011), biógrafo de João Goulart, auxilia no entendimento do papel que
Maria Thereza desempenhou na história do vestir e na cultura da moda dos da década de
1960. Para o autor, Maria Thereza é exemplo dos efeitos positivos e negativos que a
beleza física proporciona a uma mulher. Os atributos físicos, ao conformarem a
1 Professora da Universidade Estadual de Maringá. Email: [email protected]
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aparência de “menina”, trouxeram-lhe promoção pessoal e social na medida em que,
além de chamar a atenção das pessoas – especialmente dos homens – sobre e para si,
também a transformaram em objeto de interesse midiático. Thereza teve o rosto
estampado nas capas de revistas da época como Manchete, Fatos e Fotos, Stern e Life e
a exposição fez com que, junto à proliferação das imagens, surgissem comentários
referentes a sua vida pessoal, muitos deles classificados pelo autor como maldosos, em
particular os relacionados ao seu casamento e à sua fidelidade.
Os investimentos da primeira-dama na imagem de beleza e elegância revelam-
se por outras fontes biográficas, especialmente naquelas que retratam seus vínculos com
a moda nacional. Thereza contratou o costureiro Dener Pamplona de Abreu para
confeccionar as roupas com as quais comparecia aos eventos da vida pública e política.
Nesse sentido, a declaração de Dener encontrada em seu livro de memória é
significativa da relação de vestir estabelecida entre eles,
Eu fiz vestidos para Maria Thereza para todas as ocasiões. Para
recepções, casamentos, para funeral, para solenidades oficiais. Só não
fiz um vestido para a deposição. Porque ela não me pediu. Mas Maria
Thereza tinha roupas apropriadas. Poderia usar um tailleur marrom,
cinza grafite, ou um tailleur preto com blusa branca. Pois não é que
ela perde a cabeça, fica nervosa ou sei lá o que aconteceu... [...] Ora o
que aconteceu! O que aconteceu é que ela foi exilada de
turquesa!”(ABREU, 2007, p. 76).
De 1963 até a deposição de João Goulart, em 1964, Dener se situa como o
responsável pelas roupas e pelas aparências tornadas públicas pela primeira-dama nas
sociabilidades do poder. As visualidades da personagem, ao serem divulgadas nos
meios de comunicação que faziam as coberturas dos eventos que contavam com a
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presença da esposa presidencial, reforçavam a imagem pública de que o país tinha uma
primeira-dama jovem, bela e principalmente elegante, porque vestida por um dos
principais representantes da costura de luxo que tinha atuação ativa na criação de uma
identidade para a moda nacional.
Examinar a “moda Maria Thereza”, como divulgada nos meios de comunicação
em particular, nas revistas de circulação nacional que faziam as coberturas dos eventos
sociopolíticos e/ou sociabilidades do poder e da política para identificar as contribuições
da primeira-dama na construção de imagens sobre e para a beleza e a elegância da
mulher brasileira é o encaminhamento deste trabalho. No aspecto teórico e
metodológico, as edições das Revistas Manchete, publicadas com a imagem da
primeira-dama nas capas, as narrativas biográficas para os personagens envolvidos na
trama da história da moda dos anos 1960 conduziram o levantamento e as análises das
informações, especificamente dois exemplares, de 04 de maio de 1963 e 14 de março
de 1964, respectivamente, com as características descritas, com narrativas visuais e
escritas (capas e reportagens) relativas aos fazeres públicos da primeira-dama.
Diante das mudanças observadas no mercado da moda do período, inclusive
com o surgimento de revistas especializadas, caso de Manequim (1959), os periódicos
de circulação nacional continuavam a modelar as representações dos segmentos
femininos sobre beleza e elegância, caso da Manchete. Como destaca Monteiro (2007,
p. ), “[...] noticiar assuntos variados – política nacional e internacional, artes, vida
social, cotidiano, esportes, variedades e publicidade – dosando os conteúdos com
informações, formação de opinião pública e entretenimento” definiam o estilo editorial
da Revista Manchete. O estilo visual adotado pelo periódico, orientado pelo uso de
fotografias como recursos visuais na produção das notícias, era um aspecto que
facilitava a comunicação dos fatos e dos acontecimentos narrados.
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De certa forma, é possível afirmar que, e é nesse sentido que caminha a
argumentação deste texto, as imagens das capas das revistas e aquelas que
acompanhavam as descrições sobre os atos e feitos de Maria Thereza na vida pública e
política eram representações sobre aparências defendidas pelos segmentos femininos da
elite que educavam o gosto e os estilos das brasileiras. Elas incutiam práticas de
cuidados corporais e de vestir que contribuíam para movimentar o mercado da moda
nacional.
***
Maria Thereza Fontella Goulart (23.08.1940) casou-se em 1956, aos 16 anos,
com João Belchior Marques Goulart (01.03.1919 -06.12.1976), com quem teve dois
filhos: Denise e João Vicente. Quando Goulart assumiu a presidência tinha 45 anos, e
Thereza, 21.
Antes de Maria Thereza ocupar no cenário nacional a representação de
primeira-dama, houve outra jovem esposa de presidente da Republica na faixa dos 20
anos. Nair de Teffé tinha 27 anos quando, em 1913, casou-se com o presidente da
República Hermes da Fonseca, que aos 58 anos casava-se pela segunda vez.
(GALETTI; SIMILI, 2013).
Embora Nair fosse jovem como Maria Thereza, a valorização da idade, da
beleza e elegância da segunda deve ser entendida como decorrente da cultura da moda e
das aparências que marcaram o relacionamento das mulheres com o corpo e as roupas.
No período, acompanhando as transformações econômicas, sociais e culturais,
as aparências das mulheres passaram por mudanças significativas mediante a
redefinição das subjetividades femininas em torno dos valores da juventude e da beleza
como passaporte para o sucesso, o prestígio e a felicidade. É nesse sentido que as
reflexões de Denize Bernuzzi Sant’Anna (2008) caminham ao mostrar que, no final dos
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anos 1950, a política desenvolvimentista de Juscelino Kubitschek inaugurou um fato
inédito na cultura das aparências: o processo de rejuvenescimento e de modernização do
país passava pelas maneiras de ser dos brasileiros e das brasileiras.
Desde 1959, a beleza foi redefinida com suporte no conceito de que ela não era
uma benção divina ou da natureza, mas que podia e deveria ser conquistada pelo esforço
individual das dietas, ginásticas e por meio da aquisição de produtos estéticos que
solucionassem as feiúras da pele, do corpo, tais como os cremes, os xampus, as
maquiagens etc. Essa redefinição é acompanhada pela ampliação do parque industrial e
comercial relacionado ao ramo, que começou a crescer a partir do estabelecimento de
indústrias de cosméticos, da criação de uma rede de lojas e de revistas especializadas
em moda e beleza.
Na década de 1960, ampliam-se os mecanismos científicos da cosmética para
que todas as mulheres pudessem usufruir dos prestígios da beleza. Os primeiros
congressos internacionais e a evolução dos produtos de beleza pela indústria cosmética
atribuem novo significado à estética feminina, formulada pelo imperativo de que era
necessário “não ser, mas sentir-se bela”, ou seja, era preciso que as mulheres se
sentissem satisfeitas com a própria aparência. Por conseguinte, o sucesso ou fracasso
em sua vida pessoal passava a ser expressão do corpo e da beleza (SANT’ANNA,
2012), ou conforme Mara Rúbia de Sant’Anna, (2014, p. 136), “a beleza atribuindo
direitos, coroando estatutos e, acima de tudo, permitindo poderes, foi assim que
começou o estreitamento das relações entre poder e aparência”. Portanto, ser bela era
“antes de tudo um agente de significação, isto é, significante de sucesso, prosperidade e
de superioridade e constituinte de uma subjetividade que centra o seu sentido no
parecer”.
Na formação das subjetividades femininas acerca dos poderes proporcionados
pela beleza ou de uma espécie de empoderamento feminino produzido pela aparência,
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Maria Thereza é exemplar. O poder que ela passou a desfrutar na sociedade e cultura é
resultado de processos de significações midiáticas, como um dentre os muitos modelos
de beleza a serem conhecidos, reconhecidos e seguidos pelos segmentos femininos.
Portanto, os espetáculos visuais de Maria Thereza revelados nas capas da
Manchete são denotativos da fabricação de si como bela e jovem que se projetava na
memória sociovisual da época. Na relação social e visual entre imagens, o mecanismo
desenvolvido pela imprensa para fazer crer no espetáculo chamado Maria Thereza foi o
de inseri-la no mundo das estrelas e dos modelos de beleza. O uso das fotografias da
primeira-dama nas capas é indicativo do processamento dessa construção,
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Fonte: MANCHETE. Rio de Janeiro: Bloch, ano 11, n. 576, 4 de maio de 1963.
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Fonte: MANCHETE. Rio de Janeiro: Bloch, ano 11, n. 621, 14 março de 1964.
As fotografias coloridas de Maria Thereza impressas nas capas das revistas
Manchete, produtos das seleções desenvolvidas pelos fotógrafos e editores das melhores
poses como cartazes-propagandas para seduzir o público e levá-lo a comprar para saber
sobre a vida da primeira-dama brasileira, são atestados visuais para dois aspectos, a
beleza e elegância.
Maria Rubia de Sant’Anna (2014, p. 95) assinala que “A beleza feminina
aparece, quase sempre, indissociável da elegância, contudo elas são distintas”. Embora
distintas, é possível uma aproximação entre elegância e beleza se considerarmos as
imagens objetos das análises e esse comentário de Dener, costureiro oficial da primeira-
dama: “Acho muito agradável costurar para Maria Teresa. Ela possui medidas
perfeitas”, ao que acrescenta: “Seu guarda-roupa, para os diversos atos da visita, será
composto de oito vestidos, em cores claras [...] os tons que melhor combinam com seu
tipo moreno, bem brasileiro, são branco, rosa, azul-claro, verde-água, turquesa,
champanhe e dourado. O gênero será a simplicidade” (DÓRIA,1998, p. 29).
Medidas perfeitas e tipo moreno, bem brasileiro são os adjetivos por meio dos
quais o costureiro define sua cliente. Como interpretar a definição quando se tem mira o
contexto da moda brasileira em que os personagens estavam imersos e, como tais,
participaram da história da beleza e da moda que se escrevia no país?
Do lado do costureiro, há que ser considerado que, ao costurar para a primeira-
dama, Dener encontrava um corpo e uma imagem para viabilizar a projeção da moda
brasileira no cenário nacional e internacional, para sinalizar que, aqui, havia uma moda
nacional, “feita pelos brasileiros e para as brasileiras”.
Para a compreensão dessa assertiva, é necessário reportar-se às transformações
nas engrenagens e funcionamento da moda. Como bem observou Lipovetsky (1989), os
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anos 1950 e 1960 marcaram a alteração no edifício da moda mediante a instalação de
um novo sistema, o que não significou a ruptura total com o modo de operar
identificado nos períodos anteriores. A irrupção do “pret-à-porter” (roupas prontas para
vestir) instituiu uma nova lógica na produção industrial e na comercialização, que
encontraram nos desfiles e nas propagandas das revistas os instrumentos para o
funcionamento de suas engrenagens
Maria Claudia Bonadio (2010), em diversos estudos, mostrou que, naqueles
anos, constituiu-se no Brasil o campo da “moda nacional”, com um mercado de
produção e consumo de roupas que teve na Rhodia, uma empresa instalada no país, um
dos ícones para o desenvolvimento do parque industrial e do setor de confecções. Entre
as estratégias da Rhodia para melhorar a produção e o consumo de roupas com os
filamentos sintéticos de que era produtora e, ao mesmo tempo, estabelecer concorrência
com os tecidos brasileiros em fibras naturais e os tecidos finos importados, esteve a
implementação de uma política de divulgação nas revistas femininas, de editoriais de
moda, reportagens e anúncios, bem como a realização de desfiles de moda.
Bonadio (2010) aponta, ainda, que para garantir a fatia de mercado entre as
confecções e indústrias têxteis, a Rhodia procurou desenvolver mecanismos que
penetrassem “no gosto dos brasileiros”. Um deles, e talvez o principal, de acordo com a
autora, foi o de tentar vender a ideia de que a empresa criava uma “moda nacional” com
qualidade internacional. Nesse projeto, para conferir “brasilidade” aos seus produtos e
marcas, a empresa produziu textos e imagens publicitárias com os “signos de
brasilidade”. Os cenários para as fotos foram buscados em elementos do patrimônio
histórico (espaços arquitetônicos, estampas e cores), os quais visavam destacar a
“riqueza e a beleza natural”, o “exotismo” e os “motivos edênicos”. O projeto de
“invenção da moda brasileira” desenvolvido pela empresa seguia, assim, o modelo da
alta-costura e envolvia, inclusive, a contratação de costureiros representantes da alta-
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costura brasileira para criar coleções de roupas para a Rhodia. Entre eles, Dener foi uma
das tônicas das estratégias.
Por conseguinte, no início dos anos 1960, a articulação da alta- costura com a
indústria têxtil e de confecções alimenta o surgimento do sistema prêt-à-porter (roupas
prontas para vestir), fenômeno observado desde fins dos anos 1950, processo que se
intensifica e fornece as bases para o investimento na criação de uma identidade para a
moda nacional, ou seja, de uma moda “feita aqui e para as brasileiras”. Acirram-se,
assim, os investimentos na criação de representações que pudessem caracterizar uma
identidade para a moda brasileira que vinha desde o fim da década de 1920. O propósito
desses investimentos era romper com as influências estético-estilísticas que haviam
marcado a história da moda no país, contaminada, durante séculos, pela cópia e
adaptação de modelos de costureiros renomados da Europa, em particular da França e, a
partir dos anos 1930, também dos Estados Unidos (NEIRA, 2008).
Os investimentos e os benefícios recíprocos na moda brasileira que se
vislumbram na configuração do encontro entre Dener e Maria Thereza, bem como os
empréstimos e as trocas simbólicas entre roupas e aparências para fazer funcionar a
moda nacional, projetando-a, divulgando-a, incentivando as mulheres da elite a se
transformarem em consumidoras do que era feito pelos brasileiros estão implícitos nos
noticiários e explícitos em comentários como esse: “Naquele ano de 1963, Maria Teresa
figurou na lista das dez mulheres mais elegantes do país, segundo a eleição rigorosa de
Jacinto de Thormes, inventor desse termômetro da moda”, (DÓRIA, 1998, p. 29).
A projeção era evidência necessária às subjetividades das mulheres,
constituindo-se em selo de garantia de que, vestidas com as roupas nacionais, elas
poderiam ser tão chiques e elegantes como as mulheres de outros países, de que podiam
ser tão glamorosas e sedutoras quanto Maria Thereza. Esses foram aspectos marcantes
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da cultura da moda nos anos 1960 que condicionaram a relação de consumo de bens e
produtos como cosméticos e roupas.
O resultado dos investimentos recíprocos entre Dener e Maria Thereza na moda
nacional pode ser encontrado na biografia do costureiro:
Eu criei a moda brasileira, um estilo próprio e nosso, que fez com
que nossas grandes senhoras não precisassem se vestir na Europa. Eu fiz
os brasileiros acreditarem na moda, e figurinista passou a ser assunto.
Lancei uma imagem e hoje ninguém tem vergonha de dizer que se veste
no Brasil. Antes de mim, para ser elegante, precisava usar etiqueta de
fora. Lembro-me de uma senhora que só usava Cardin, que não lhe
fazia senão cópias baratas de Courrèges, o que, aliás, é o seu forte.
Usavam cópias importadas e com grandes assinaturas, só porque a
etiqueta era francesa (ABREU, 2007, p. 99).
Fato é, também, que, se considerarmos a avaliação de Dener sobre os avanços na
moda brasileira dos anos 1960, podemos concluir que os mecanismos desenvolvidos no
período, com o apoio de Maria Thereza, foram fundamentais para que a estética das
roupas brasileiras agradasse as mulheres da elite, alterando os comportamentos de seu
consumo e dos segmentos femininos consoante ao modelo de influência de “cima para
baixo” (SIMMEL, 1998; CRANE, 2011), ou seja, aquele proveniente das camadas
dominantes e as subsequentes apropriações, assimilações e acomodações geradas por
imitações feitas pelos outros segmentos sociais de mulheres.
Devemos considerar, ainda, os estratagemas desenvolvidos pela moda nacional
no que tange à estética das roupas, ou o que podemos denominar recursos empregados,
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de modo que ela fizesse sentido para as mulheres como portadora de diferencial quando
comparada com o que era produzido em outros países. Nesse aspecto, Maria Thereza
foi peça-chave.
Destarte, os adjetivos empregados por Dener para qualificar Maria Thereza
como uma mulher que tinha “medidas perfeitas e tipo moreno” transformam-se em
signos da beleza morena ou a morenice da brasileira, que projetam significados para a
sensualidade das formas. Essa é a definição que promove a moda nacional e contribui
para fabricar os processos de identificação entre as roupas feitas por brasileiros e para as
mulheres e, por conseguinte, uma grife e uma identidade para a moda do país, fazendo
transitar significados entre beleza e elegância.
A partir dos anos 1963, os princípios de uma moda brasileira, defendidos desde
os anos 1920, que propunham a criação de uma estética e de uma estilística capaz de
contemplar a realidade brasileira e romper com as influências internacionais ganha
força entre finais dos anos 1950 e durante os 1960, com o intuito de “revelar os aspectos
vivos de nossa cultura” e “[...] estimular a autonomia de nossa moda como expressão
das reais necessidades populares ” (NEIRA, 2008). Nesse contexto, no corpo de uma
personagem são encontrados os símbolos necessários para configurar representações da
brasilidade das mulheres e das roupas.
Importa destacarmos que a crítica aos modelos de beleza importados que
definiam a estética feminina mediante a valorização da mulher loira, por meio da qual a
influência europeia e norte americana se fazia sentir sobre os comportamentos das
brasileiras, foi objeto da reflexão de Gilberto Freyre (1987, p. 34), levando-o a
reivindicar por modas que se “[...] ajustem a forma e cores de mulheres bronzeadas pelo
sol de Copacabana, à revelia de modas puramente européias ou puramente ianques. Ou
puramente albinóide”. Logo, é de se pensar que a definição de um modelo de beleza
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fixado a partir de um ponto, isto é, da “morena” Maria Thereza Goulart foi crucial para
que a estética feminina da mulher brasileira começasse a ser valorizada pela moda.
O argumento revela-se plausível quando consideramos outros investimentos na
estética nacional. Em meados dos anos 1960, em plena efervescência do mercado da
moda nacional, a Estrela, uma empresa nacional de brinquedos, cria a boneca Susi. No
cenário internacional, em particular, norte-americano, a Barbie surgiu em 1959,
configurando a estética da mulher loira.
Dois modelos de beleza são nítidos no caso de Susi e Barbie. A primeira,
morena, cintura fina e coxas grossas, padrão de beleza e da estética feminina
preconizada e difundida pelas revistas, como estética e estilística feminina da brasileira
e da brasilidade das mulheres (SANT’ANNA, 2012). A segunda, padrão estético norte-
americano da mulher branca e loira, cujas influências sobre os segmentos femininos são
históricos e nítidos em decorrência da difusão desse padrão por meio de atrizes do
cinema norte-americano, caso de Marylin Monroe, Brigite Bardot, entre outras.
Dessa forma, é se nos anos 1960 a criação do mercado nacional de moda teve
como um de seus motores de funcionamento o envolvimento de costureiros/as e de
empresas para criar e divulgar a estética e a estilística nacionais de modo a romper com
as influências estrangeiras, em particular a estadunidense sobre as brasileiras, o
aparecimento da Susi como uma boneca brasileira se constituiu em recurso de
propaganda e marketing da nacionalidade que contribuíam para a formação de imagens
e representações junto aos segmentos infantis do que era ser brasileira mediante a
valorização da morenice dos cabelos e dos traços corporais.
Diante do exposto, concluímos que a história da beleza e do vestir nos anos
1960 foi fabricada por múltiplas estratégias desenvolvidas pelo mercado da moda para o
consumo de valores estéticos – de beleza e de roupas. Nesse âmbito, o encontro e a
parceria entre Dener e Maria Thereza (e vice-versa) foi um dos pontos de apoio das
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políticas da moda brasileira e da cultura das aparências para definir o nacional,
especialmente a beleza da mulher brasileira e os modos pelos quais as roupas podiam
contribuir para sua valorização. O que o figurinista e a cliente comunicam são imagens
de roupas feitas por brasileiros e usadas por brasileiras que se tornam estratégicas no
mundo de imagens de moda e na formação das subjetividades femininas prêt-à-porter,
ou seja, na maneira como as brasileiras passaram a se olhar e a se ver.
Em suma, o que as roupas de Dener usadas por Maria Thereza sinalizam é que a
moda brasileira podia destacar e valorizar a beleza da mulher brasileira, que as roupas
feitas por brasileiros podiam tornar as mulheres tão elegantes quanto aquelas que viviam
e se vestiam em outros países. Era uma moda feita aqui, para a mulher daqui, com os
teores da brasilidade. Esse era o diferencial com o qual Maria Thereza concordava e
alimentava, porque se vestia com a moda Dener.
Destarte, Maria Thereza não apenas vestiu as roupas de Dener, mas, com elas,
viabilizou e disseminou um projeto de moda nacional brasileira, com as noções de
corpo, beleza e elegância que contribuíram para modelar as subjetividades das mulheres
e a memória visual de uma época. Se a diplomacia é inerente ao poder e à política, o
guarda-roupa de Maria Thereza transformou-se em modelo diplomático na promoção da
mulher e da moda brasileira tanto no cenário nacional quanto no internacional.
Portanto, se em algum momento Dener disse “Eu sou a moda brasileira”, Maria
Thereza respondeu: “Eu sou a mulher brasileira” ou uma representação da beleza e da
elegância feminina.
Referências
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