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História das Ciências para o Ensino – Atas do Colóquio II

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Livro de atas do colóquio II - História das Ciências pelo ensino. Edição do Departamento de Ciências da Terra, Faculdade de Ciências e Tecnologia, Universidade de Coimbra.

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História das Ciências para o Ensino – Colóquio II

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Título

História das Ciências para o Ensino – Atas do Colóquio II

Editores Celeste Romualdo Gomes Ana Rola

Isabel Abrantes Capa Luísa Beato Edição

Universidade de Coimbra Faculdade de Ciências e Tecnologia Departamento de Ciências da Terra ISBN 978-989-98914-1-8 Ano 2014

História das Ciências para o Ensino – Colóquio II

2

COMISSÃO ORGANIZADORA Celeste R. Gomes, FCTUC

Isabel Abrantes, FCTUC

Clara Vasconcelos, FCUP

Fernando Carlos Lopes, FCTUC

Isilda Rodrigues, UTAD

Pedro Callapez, FCTUC

Ana Rola

Armando Rocha

Aida Duarte

Anabela Morgado

Carla Maleita

Carla Marques

Carlos Barata

Clara Vieira dos Santos

Ivânia Esteves

Joana Torres

Maria João Palma

Sara Moutinho

COMISSÃO CIENTÍFICA

António Almeida, ESE, Lisboa

Celeste R. Gomes, FCTUC

Clara Vasconcelos, FCUP

Fernando Carlos Lopes, FCTUC

Gina Pereira Correia, CITEUC

Isabel Abrantes, FCTUC

Isilda Rodrigues, UTAD

João Paulo Cabral, FCUP

História das Ciências para o Ensino – Colóquio II

3

ÍNDICE

O EXTRAORDINÁRIO COCO DAS MALDIVAS (SEYCHELLES). LENDAS, MITOS E REALIDADES DA HISTÓRIA NATURAL NOS SÉCULOS XVI-XVIII

THE EXTRAORDINARY MALDIVES’ (SEYCHELLES) COCONUT. LEGENDS, MYTHS AND REALITIES OF NATURAL HISTORY IN THE 16-18TH CENTURIES

João Paulo S. Cabral .......................................................................................................................... 5

BENJAMIN BLOOM E OS DOMÍNIOS DA APRENDIZAGEM

BENJAMIN BLOOM AND LEARNING DOMAINS

Paula Nogueira Faustino, Celeste Romualdo Gomes & Isabel Abrantes ........................................ 30

HISTÓRIA DA CIÊNCIA NOS MANUAIS ESCOLARES DE BG 10.º ANO: O PALEOMAGNETISMO NO ESTUDO DOS MÉTODOS INDIRETOS DA GEOSFERA

HISTORY OF SCIENCE IN TEXTBOOKS OF THE 10TH BG FORM: THE PALEOMAGNETISM IN THE STUDY OF INDIRECT METHODS OF GEOSPHERE

Gina Pereira Correia & Celeste Romualdo Gomes .......................................................................... 37

O TERRAMOTO DE 1755: UM ACONTECIMENTO QUE MUDOU A HISTÓRIA

THE 1755 EARTHQUAKE: AN EVENT THAT CHANGED THE HISTORY

Fernando Carlos Lopes, Isabel Sousa, Susana Custódio & Celeste Romualdo Gomes ................. 56

RECONSTITUIÇÃO DA BAIXA POMBALINA APÓS O TERRAMOTO DE 1755: CONTRIBUIÇÃO DE MANUEL DA MAIA E COLABORADORES

RECONSTITUTION OF BAIXA POMBALINA AFTER THE EARTHQUAKE OF 1755: MANUEL DA MAIA AND HIS COLLABORATORS CONTRIBUTION

Joana Costa, Joana Torres, Sara Moutinho & Clara Vasconcelos ................................................... 61

REVISITANDO “MAN AND NATURE” DE GEORGE PERKINS MARSH, O PIONEIRO DO AMBIENTALISMO

REVISITING "MAN AND NATURE" of GEORGE PERKINS MARSH, THE PIONEER OF ENVIRONMENTALISM

António Almeida, Joana Faria & Clara Vasconcelos ........................................................................ 86

APLICAÇÃO DE UM PROGRAMA DE INTERVENÇÃO EM HISTÓRIA DA CIÊNCIA DIRIGIDO A ESTUDANTES DO MESTRADO EM ENSINO DA BIOLOGIA E DA GEOLOGIA

HISTORY OF SCIENCE, MODELS AND NATURE OF SCIENCE: AN INTERVENTION PROGRAMME APPLIED TO PRESERVICE BIOLOGY AND GEOLOGY TEACHERS

Joana Torres & Clara Vasconcelos ................................................................................................ 105

História das Ciências para o Ensino – Colóquio II

4

HISTÓRIA DA GEOLOGIA E NATUREZA DA CIÊNCIA: EXEMPLOS PARA EXPLORAR NAS AULAS DE CIÊNCIAS

HISTORY OF GEOLOGY AND NATURE OF SCIENCE: GEOLOGICAL RESOURCES TO EXPLORE IN SCIENCE CLASS

Clara Vasconcelos, António Almeida & Raquel Pinto ..................................................................... 126

HISTÓRIA DA CIÊNCIA EM MANUAIS ESCOLARES: OS SISMÓGRAFOS E O DESENVOLVIMENTO DA SISMOLOGIA

HISTORY OF SCIENCE IN SCHOLAR TEXTBOOKS: SEISMOGRAPHS AND THE DEVELOPMENT OF SEISMOLOGY

Sara Moutinho & Clara Vasconcelos .............................................................................................. 136

5

O EXTRAORDINÁRIO COCO DAS MALDIVAS (SEYCHELLES).

LENDAS, MITOS E REALIDADES DA HISTÓRIA NATURAL NOS

SÉCULOS XVI-XVIII

THE EXTRAORDINARY MALDIVES’ (SEYCHELLES) COCONUT.

LEGENDS, MYTHS AND REALITIES OF NATURAL HISTORY IN THE

16-18TH CENTURIES

João Paulo S. Cabral1

Resumo

Os Colóquios de Garcia de Orta, escritos em português e impressos em Goa em 1563, constituem um

dos pontos mais altos da Botânica renascentista. A sua divulgação pela Europa tornou-se ampla e

efetiva quando Carlos Clúsio resume a obra em latim, e fá-la publicar logo em 1567, em Antuérpia. O

excepcional impacto da obra de Orta devia-se à correção, ao pormenor e à novidade das descrições

das plantas e dos produtos vegetais que continha. Uma destas novidades era o coco das Maldivas,

fruto enorme, preto, de formas bizarras e tidas como femininas, que surgia unicamente nas praias das

ilhas Maldivas. Ninguém até então tinha visto a árvore que os produzia! Orta descreve corretamente a

morfologia do fruto e a polpa, menciona, com algum cepticismo, as supostas propriedades antiveneno

do fruto e refere a lenda segundo a qual, em tempos idos, as ilhas das Maldivas tinham sido

submersas e os coqueiros tinham ficado dentro do mar. Durante mais de dois séculos, até à

publicação da monografia de Sonnerat em 1776, que terá sido o primeiro naturalista a ver com os

seus próprios olhos a palmeira que forma estes frutos [Lodoicea maldivica (J. F. Gmel.) Pers.], planta

endémica das ilhas Seychelles (e por isso naturalmente não encontrada nas ilhas Maldivas, nem

noutro lugar!), o texto de Orta foi citado ou copiado nas mais importantes obras de Botânica e de

matéria médica publicadas na Europa e suscitou sobremaneira o interesse dos médicos e dos

herbolários do século XVII e dos grandes colecionadores de arte das cortes europeias. Ainda no

século XVI e na primeira metade do século seguinte, príncipes e monarcas do Sacro Império

Romano-Germânico, e também membros da corte e das elites portuguesas, recebem ou compram

cocos inteiros e peças de ourivesaria com partes do coco. Uma análise dos tratados de Carlos Clúsio,

de Angerius Clutius e de John Parkinson, dos inventários dos gabinetes de raridades (Kunstkammer)

dos Habsburgo e de documentos portugueses do século XVI, permitiu concluir que, em finais do

século XVI e inícios do seguinte, cocos das Maldivas (inteiros ou fragmentos, isolados ou já montados

em peças de ourivesaria) circulavam numa teia de contactos e intermediários cujos pontos principais

incluíam Goa, Lisboa, Londres e Amesterdão, a corte portuguesa em Lisboa e as grandes cortes

europeias, em particular as dos Habsburgo. A absoluta raridade destes frutos na Europa e a sua

carga simbólica, considerados como sendo dotados de poderosas propriedades antiveneno e

formados dentro do mar oceano, terá levado a que fossem dos objetos de história natural então mais

cobiçados, sendo frequentemente transformados em peças de ourivesaria, com a forma de taças para

beber.

Palavras-chave: Botânica; Côco; Garcia de Orta; Maldivas; Seychelles.

Abstract

Garcia de Orta’s Colóquios, written in Portuguese and printed in Goa (India) in 1563, is one of the

highest achievements of Botany in the Renaissance. It became widely and effectively known after

Charles Clusius abridged the book in Latin and published it at Antwerp as soon as 1567. The

exceptional impact of Orta’s work was due to the correctness, detail and novelty of the descriptions of

1 Faculdade de Ciências da Universidade do Porto. E-mail: [email protected], [email protected].

História das Ciências para o Ensino – Colóquio II

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the plants and vegetable products mentioned thereo. One of these novelties was the Maldives’

coconut (coco de mer), a huge, black fruit, with bizarre forms taken as feminine, that appeared only on

the beaches of the Maldives islands. Nobody had seen the tree that produced such fruits! Garcia de

Orta describes correctly the fruit’s morphology and the pulp. He mentions with a certain degree of

scepticism the supposed counter-poison properties of the fruit, and refers to the legend according to

which in the past, Maldives islands had been submerged and the coconuts had staid under the sea.

The palm-tree that produces these fruits [Lodoicea maldivica (J. F. Gmel.) Pers.] is an endemic

species of Seychelles islands (and for this reason not found in the Maldives islands and elsewhere!).

Until the publication in 1776 of the review by Sonnerat, who was probably the first naturalist to see it

with his own eyes, Garcia de Orta’s text was cited or copied in the more important books of botany

and materia medica published in Europe, and greatly arouse the interest of 16th century medical

doctors, herbalists, and the great art collectors of the European courts. Still in the 16th century and in

the first half of next century, princes and monarchs of the Holy Roman Empire, and also members of

the Portuguese court and elites, received or bought whole coconuts and jewellery with coconut parts.

An analysis of the treatises by Charles Clusius, Angerius Clusius and John Parkinson, of the

inventories of rarities and exotica cabinets (Kunstkammer) of the House of Habsburg and of

Portuguese documents dated from the 16th century, led to the conclusion that, by the end of this

century and the beginning of next, Maldives’ coconuts (whole or fragmented fruits, alone or mounted in

jewellery) circulated in a web of contacts and intermediators whose main centres included Goa,

Lisbon, London and Amsterdam, the Portuguese court in Lisbon and the great European courts, in

particular those of the House of Habsburg. The absolute rarity of these fruits in Europe and their

symbolic load, considered as being endued with powerful counter-poison properties and being formed

under the ocean, eventually prompted these fruits to be by then one of the most coveted natural

history objects, being frequently transformed into jewellery as drinking vessels.

Keywords: Botany; coco de mer; Garcia de Orta; Maldives; Seychelles.

1. Garcia de Orta e o coco das Maldivas

Garcia de Orta (ca. 1505-1568) partiu para a Índia em 1534 na nau Rainha como

médico particular de Martim Afonso de Sousa. Aí viverá o resto da sua vida. Dedica-se à

clínica e ao estudo da matéria médica vegetal. Acompanha o seu patrono em várias

deslocações pelo Índico. Orta morre no primeiro semestre de 1568 (Boxer, 1963).

Ver para crer e dar como incontestavelmente falso mesmo o que o mais reputado

botânico escrevera mas a experiência pessoal não confirmou, são mandamentos do

pensamento de Garcia de Orta2. Ver as plantas medicinais que cresciam no Índico, no seu

habitat natural, era outra importante arma para o conhecimento real de Garcia de Orta3.

A bibliografia citada, e seguramente lida por Garcia de Orta, é vastíssima. Orta cita, a

todo o momento, os médicos (Galeno, Celso, Hipócrates), filósofos (Aristóteles e Platão), e

botânicos (Teofrasto, Dioscorides e Plínio) da Antiguidade, os muçulmanos (Serápio,

Avicena, Averróis, Rhazes), os botânicos da Idade Média (Mateus Plateario, Matthaeus

Silvaticus, Gerardo de Cremona), os seus contemporâneos (António Musa Brasavola, João

de Ruélio, Valério Cordus, Andrés de Laguna, Nicolás Bautista Monardes [a quem Orta

chama Menardo], Amato Lusitano, Fuchs, Matthiolo) (Boxer, 1963). Em muitos casos,

2 Logo no capítulo segundo, a respeito do amargor dos diferentes aloés, Orta não tem dúvida que as afirmações escritas por

Antonio Musa Brasavola estão erradas: «Lendo em Antonio Musa e em outros modernos por dizerem que o amargar falecia á herva-babosa da nossa terra, provey esta por muitas vezes, e achava muyto amargosa, e quanto era mais perto da raiz amargava mais, e nas pontas de cima sem nenhuma amargura, e com horrido cheiro em toda, de modo que o que diz Antonio Musa que o de Çocotora he mais amargo, he falso; porque esta herva da Índia já a provey, e a de Çocotora mandey provar, e todas amargam muyto: a de Espanha nam provey, se vos Deus levar a salvamento, tudo podeis probar» (Garcia de Orta, 1891, pp. 29-30). 3 No colóquio segundo, Orta não deixa dúvidas ao escrever: «Eu andei pelo sartam desta Índia, mais de duzentas legoas de

caminho, e em todos os logares vi esta herva-babosa» (Garcia de Orta, 1891, p. 31).

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Garcia de Orta cita exatamente o capítulo da obra da bibliografia que utilizou. Teria Garcia

de Orta na sua memória todas estas obras? É pouco provável. Mais razoável é admitir que

teria consigo a bibliografia de que necessitava para exercer a clínica médica.

Garcia de Orta cita obras publicadas por seus contemporâneos, algumas editadas

pouco tempo antes da impressão dos seus colóquios, o que revela que, mesmo vivendo em

Goa, estava bem a par do que então se publicava na Europa. Um dos autores mais citados

por Garcia de Orta é Andrés de Laguna. Garcia de Orta estava certamente a referir-se à

edição da obra de Dioscorides feita por Laguna e publicada em latim em Lião em 1554 ou a

edição em espanhol datada de 1555 e publicada em Antuérpia.

Outras fontes informativas para Orta foram, como ele próprio revela, mercadores,

intelectuais, boticários, outros médicos, as elites goesas e de outros reinos4.

As plantas e os produtos vegetais que Garcia de Orta estuda eram objecto de intenso

e valioso comércio entre o Oriente e o Ocidente. Orta revela conhecer bem as rotas

comerciais pelas quais circulavam as diferentes mercadorias, conhecimento facultado pelo

contacto com os próprios mercadores, com comerciantes ou homens do mar5.

A primeira edição dos Colóquios ocorre em Goa em 1563. Em 1572, Juan Fragoso

publica em Madrid (na tipografia de Francisco Sánchez) os Discursos de las cosas

aromaticas, arboles y frutales, e de otras muchas medicinas simples que se traen de la Índia

oriental, y sirven al uso de la medicina6. A obra praticamente não refere o trabalho de Orta,

mas é efetivamente um resumo abreviado do texto do mestre português7.

Cristóvão da Costa publica, em 1583, um Tratado de las drogas y medicinas de las Índias

Orientais, que muito deve ao texto de Orta.

Todavia, seria Carlos Clúsio (1526 -1609)8 quem divulgaria a obra de Orta. Clúsio viaja

pela Península Ibérica (Fontes da Costa & Nobre de Carvalho, 2013)9. Parte de Madrid,

passa por Badajoz, e dirige-se a Lisboa. Em Novembro de 1564 herboriza nos arredores de

Coimbra. Em Dezembro de 1564 e em Janeiro de 1565 Clúsio herboriza nos arredores de

4 No colóquio segundo, sobre o aloés, Orta explica a Ruano as suas fontes de informação sobre estas plantas. Só sobre este

tópico, logo vemos a grande teia de contactos que Orta tinha. Orta afirma que o que sabia sobre estas plantas em parte lhe tinha sido transmitido pela «fama comum [e por] hum rico mercador e bom letrado […] que servio de secretario aos governadores, chamado Coje Perculim, ao qual como hum dia lhe perguntasse como se chamava em turco, em persio e arabio, me dixe que cebar se dizia em todas estas linguas e, sem lhe mais perguntar, me dixe que o melhor de todos he o de Çocotora […] Depois disto fui ver ao Nizamoxa, que he um rey dos mais grandes de Decam, chamado o Nizamaluco, alem de ser letrado pello seu modo, sempre tem fisicos da Persia e de Turquia, a quem dá grandes rendas, dos quais soube isto mais perfeitamente» (Garcia de Orta, 1891, p. 26). Mais à frente neste colóquio, Orta descreve uma receita que tinha visto usar um médico de um outro reino Indiano: «vy qua usar a um físico gentio do gran Soldão Badur, rey de Cambaya, por mezinha familiar e benedicta, tomando talhadas das folhas da herva-babosa com sal dentro nellas, e deste cozimento dava a beber oito onças com que fazia quatro ou cinquo camaras, sem molestia ou damno algum a quem o tomava» (Garcia de Orta, 1891, p. 29). Ainda neste colóquio, Orta respondia a uma pergunta de Ruano sobre um alóes: «Já perguntey isto a alguns judeus que a esta terra vieram, e diziam serem moradores de Jerusalem, e alguns erão filhos de fisicos, e outros erão boticarios, e todos me disseram ser isto cousa falsa e nunqua achada em toda a Palestina» (Garcia de Orta, 1891, p. 34). 5 No colóquio segundo, Orta descreve a rota tradicional das drogas de Ormuz até Alexandria, porto a partir do qual os

comerciantes venezianos o levavam para toda a Europa. Todavia, segundo as palavras de Orta, o aloés que chegava a Portugal seguia outro caminho. De Socotorá ía para a Índia, e de lá para Portugal. As palavras de Orta indicam claramente que conhecia bem os trâmites por que passava o aloés nos portos da Índia portuguesa: «porque verdadeiramente o que de qua vay pera Portugal, que eu o vejo todo, he trazido de Çocotora» (Garcia de Orta, 1891, p. 27). «Que eu o vejo todo» sugere que Orta desempenhava qualquer função na alfândega goesa? 6 Israel Spach publicaria, em Estrasburgo (na tipografia de Juan Martino), em 1600 (com uma 2.

a edição em 1601), uma versão

em latim da obra de Juan Fragoso. 7 A obra inicia-se com uma dedicatória a D. Joana de Áustria, princesa de Portugal e infanta de Espanha, e um prólogo

dedicado ao leitor. O texto principal é constituído por 70 «discursos» sobre as plantas da Índia, indicando as suas propriedades e aplicações. 8 Charles de l’Écluse ou de Lécluse (Clusius, Clúsio) é, como Gesner, o erudito típico do século XVI: poliglota, historiador,

geógrafo e naturalista. Juntamente com Lobélio e Dodaneo é um dos mais notáveis botânicos e eruditos do século XVI e um dos núcleos da Renascença Flamenga. Para a vida e obra de Clúsio, recorreu-se à seguinte bibliografia principal: Ventura (1937); Ferreira (1986); De Witt (1992, pp. 194-197); Allorge & Ikor (2003, pp. 110-113); Magnin-Gonze (2004, pp. 67-68); Findlen (2006); Lack (2008, pp. 74-79); Egmond (2009); Arber (2010, pp. 37-39); Nobre de Carvalho (2013). 9 Nesta viagem, Clúsio foi acompanhado pelo jovem Jacob Függer (Nobre de Carvalho, 2013). Da expedição à Ibéria, resultará

a publicação, em Antuérpia, na oficina de Plantin, em 1576, da obra Rariorum aliquot stirpium per Hispanias observatarum Historia Libris duobus expressa (História de algumas espécies raras observadas na Península Hispânica). «Pelo registo de nomes vulgares das nossas plantas [esta obra] é para nós de incalculável valor» (Ventura, 1937).

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Lisboa. Visita ainda Montemor-o-Novo, Tomar, e Évora provavelmente a caminho de

Sevilha. Em Espanha, Clúsio visita as Universidades de Valência, Sevilha, Madrid,

Salamanca, Valhadolid e Alcalá de Henares.

Foi durante a sua viagem à Península Ibérica que Clúsio contacta com a obra de Orta

publicada havia muito pouco tempo em Goa10. Clúsio elaborou um resumo da obra em latim

com o título Aromatum et simplicium aliquot medicamentorum apud indos nascentium

historia, publicado em Antuérpia por Plantin, com quatro edições, datadas de 1567, 1572,

1579 e 158211. Na primeira edição, o texto é acompanhado de 17 gravuras em madeira, com

desenhos de Piet van der Borcht.

Por que razões publica Clúsio a essência dos Colóquios de Orta? Pela fundamental

razão de que mais de metade das plantas e produtos vegetais descritos por Orta eram total

ou praticamente desconhecidos na Europa. Constituíam novidades absolutas!

Uma destas novidades era o coco das Maldivas, fruto enorme, preto, de formas bizarras e tidas como femininas, que surgia unicamente nas praias das ilhas Maldivas, não se conhecendo até então a árvore que os produzia!

Este coco era valioso porque era raríssimo, sobretudo quando comparado com o coco

vulgar12. Na realidade estes coqueiros eram endémicos das ilhas Seychelles13. Este

arquipélago ficava fora das rotas habituais da navegação desta época, mas era conhecido,

pelo menos à distância, dado que parece figurar em várias cartas do século XVI14. Terão

sido visitadas por navegadores portugueses. D. Pedro de Mascarenhas, futuro governador e

vice-rei da Índia, terá sido um dos primeiros portugueses a avistar ou a visitar o arquipélago

(Fauvel, 1893, 1900). Permaneceram desabitadas até meados do século XVIII15. Todavia,

admite-se que comerciantes árabes conhecessem-se as ilhas e lá aportassem, mas não

estabeleceram nelas entrepostos fixos (Gardiner, 1907, pp. 149-150).

Orta descreve corretamente a morfologia do fruto16 e a polpa17, menciona, com algum

cepticismo, as supostas propriedades antiveneno do fruto18 e refere a lenda segundo a qual,

10

Existe ainda o exemplar dos Colóquios que Clúsio adquiriu em Lisboa. Encontra-se na biblioteca da Universidade de Cambridge (Nobre de Carvalho, 2013). 11

Esta versão latina da obra de Garcia de Orta, realizada por Clúsio foi vertida para italiano por Annibal Briganti (a 1.a edição foi

publicada em 1576, seguindo-se novas edições em 1582, 1589 e 1616), e para francês, por Antoine Collin (edições em Lyon, em 1602 e 1619). A Junta de Investigações do Ultramar editou, em 1964, a Aromatum et simplicium de Clúsio, com tradução para português e introdução de Jaime Walter e Manuel Alves. 12

Este coqueiro das Seychelles produz um número relativamente pequeno de frutos (cada árvore tem 2-9 frutos em desenvolvimento) que demoram vários anos a atingir a maturação. A árvore, cuja longevidade é muito alta, podendo chegar a 200-350 anos, demora 25 anos a atingir a idade reprodutora e um século a dimensão máxima (Rist et al., 2010; Blackmore et al., 2012). 13

Lodoicea maldivica (J. F. Gmel.) Pers. (Lodoicea sechellarum Labill.) é uma das seis espécies de coqueiros endémicos das ilhas Seychelles. Só ocorre em duas das ilhas do arquipélago: Praslin (37 km

2) e Curieuse (2,7 km

2) (Rist et al., 2010).

14 Parece estar representado nas seguintes cartas do século XVI: Cantino de 1502; Nicolas de Caneiro (Caneirio) de 1502;

Pedro Reinel de 1517 (erradamente atribuída a Salvat de Pilestrina); Diego Ribero de 1529; Francisco Rodriguez, piloto português, de 1530; Alonso de Santa Cruz, cosmógrafo espanhol, de 1542; Pierre Desceliers de Dieppe de 1542-1546; Baptista Agnese de 1543; Sébastien Cabot, piloto-maior de Carlos V, de 1544; Giacomo Gastaldi (Gastaldi), cosmógrafo em Veneza, de 1546; Diego Homem de 1558; Andreas Homo de 1559; Paolo Forlani de 1562; Guillaume Letestu de 1566; Gérard Mercator de 1569; Ortelius de 1570; Johan Cosrin de 1570; Aloysius Cesanis de 1574; Armoldo Florenz de Langren de 1595; Evert Gÿsbert filho de 1599 (Fauvel, 1893, 1909; Gardiner, 1907, p. 150). As Seychelles estão também localizadas no planisfério de Vesconte Maggiolo di Fano de 1504. 15

Em 1609 John Jourdain aportou a uma das ilhas. Em 1743, o capitão Lazare Picaut, destacado das frotas de Bertrand-François Mahé de La Bourdonnais (1699-1753), governador general das Mascarenhas, aportou às Seychelles tomando posse. Pelo tratado de Paris de 1814 seriam cedidas pela França à Inglaterra. 16

«Os coquos das ilhas das Maldivas sam muyto grandes; e eu tive já hum, que cabiam nelle sete quartilhos»; «os coquos vem pegados dous em hum, como arcos de bésta»; «e despois os despegam; e, ás vezes, vem despegados alguns»; «a casca deste coquo he preta, e mais luzidia que a dos outros coquos; he de figura oval, por a maior parte, e não redonda como a dos outros»: «o coquo não he tam duro como este que vemos, nem tam pouco he tam mole como os coquos das palmeiras, que comemos» (Garcia de Orta, 1891, pp. 241-244). 17

«O miolo de dentro he muito duro, e he branco, declinando um pouco a amarello»; «nam tem sabor algum excessivo»; «tomam deste miolo até dez grãos de triguo de peso, em vinho ou agoa rosada, segundo a necesidade he»; «no coquo das ilhas, diguo que tiram o amago dos coquos, e o põem a secar da maneira que secam os outros de que fazem a copra, e fica tam duro como vedes; pois a cor já a vedes que parece como queijo de ovelhas muyto bom» (Garcia de Orta, 1891, pp. 241-244). 18

Orta tem reservas quanto ao uso medicinal deste coco, porque «não se offreceo caso onde curasse com elle alguma

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em tempos idos, as ilhas das Maldivas tinham sido em parte submersas e as palmeiras que

davam estes cocos tinham ficado dentro do mar19.

2. A influência do texto de Orta na Botânica e na matéria médica europeias

Durante mais de dois séculos, concretamente até à publicação da monografia de

Sonnerat em 1776, primeiro naturalista a ver com os seus próprios olhos a palmeira que

forma estes frutos20, o texto de Orta foi transcrito (e traduzido) nas mais importantes obras

de Botânica e de matéria médica publicadas na Europa.

Destas, destacam-se as obras de Carlos Clúsio, Augerius Clutius e John Parkinson,

que importa analisar.

Clúsio publica em 1605 a obra Exóticos dedicada à história natural exótica, às plantas,

aos animais (e aos extractos) que não viviam na Europa, mas que, através das rotas

marítimas, nomeadamente da portuguesa e espanhola, mas também da holandesa,

chegavam ao velho continente. Clúsio tinha viajado muito pela Europa21 e decerto terá tido a

oportunidade de ver, nas grandes cidades portuárias, alguns dos exóticos que descreve na

sua obra22. Os livros VII e VIII (I e II da segunda parte) retomam a sua versão dos Colóquios

de Orta (a obra Aromatum et Simplicium aliquot medicamentorum23).

A referência ao coco das Maldivas está dentro do capítulo dedicado ao coqueiro

vulgar. O texto de Clúsio segue muito de perto a obra de Orta, nos seus múltiplos aspectos,

e certamente que a obra do mestre português foi a principal fonte informativa para Clúsio.

Refere as propriedades medicinais deste coco, mas, assim como tinha feito Garcia de Orta,

salienta que não o experimentou, preferindo usar na terapia contra envenenamentos, drogas

mais convencionais. Indica que a casca do coco das Maldivas é mais lisa do que a do coco

vulgar, a forma é mais oval, a polpa é branca e quando seca é rígida, aparentando queijo de

ovelha, e não apresentando grande sabor. Encontravam-se nas praias das Maldivas, ilhas

que antigamente tinham estado ligadas a terra, mas depois foram inundadas e ficaram em

pessoa», mas tinha ouvido «dizer a muytas pessoas, dinas de fé, ser muyto bem pera a peçonha», «assi como pera cólica, e paralesia, gota coral, e muytas emfermidades de nervos» (Garcia de Orta, 1891, pp. 241-244). Orta não desmente mas também não aprova. Refere que o principal uso do coco das Maldivas era contra a peçonha, mas contra os venenos dos animais existiam outros remédios melhores, razão pela qual não o tinha usado. 19

Orta refere a lenda segundo a qual as Maldivas «eram terra firme; e por serem baixas se alagáram, e ficaram alli essas palmeiras; e que de muyto envelhecidas se fizeram tam grandes coquos e tam duros enterrados na terra, que he agora coberta com o mar». «E mais me dixe este Portugues, que sabe muyto das ilhas, que nunqua pessoa alguma vio o arvore que dá estes coquos, senão que o mar os deita de si; e que he pena de morte apanhálo alguma pessoa quando o achar na praia, senão leválo a elrey; e isto dá ao coquo das ilhas mais autoridade» (Garcia de Orta, 1891, pp. 241-244). 20

A expedição em que se integrava Sonnerat chegou ao arquipélago das Seychelles em Julho de 1771. Uma das primeiras impressões de Sonnerat foi a abundância de palmeiras, sobretudo na Ilha Praslin. Na sua descrição da viagem, Sonnerat que era naturalista, descreve o fruto como «sendo muito raro, a sua forma bizarra». A sua origem era antes desconhecida pelo que lhe tinham sido atribuídas «grandes propriedades» e a «imaginar fábulas sobre a sua existência», como «é habitual» quando se fala sobre o que é «desconhecido e singular» (Sonnerat, 1776, p. 4). Sonnerat refere que os frutos caíam das árvores, eram arrastados até ao mar que os transportava até ao arquipélago das Maldivas, «a única parte do mundo onde se tinha encontrado este fruto antes da descoberta da Ilha Praslin» (p. 4). Sonnerat refere depois que se pensava que este coco era o fruto «de uma planta que crescia no fundo do mar, que se destacava quando estava maduro, e que a sua leveza fazia que flutuasse por cima das ondas» (p. 5), ideia expressa por exemplo por Pyrard de Laval no relato da sua grande viagem. Nesta publicação Sonnerat descreve o coqueiro das Seychelles e o seu fruto. 21

Clúsio viveu durante alguns anos em casa de Rondelet, e é sob a influência deste naturalista, que Clúsio abandona o Direito para se dedicar à medicina e às ciências naturais, em particular à Botânica. Chamado pelo pai, regressa a Arras, passando por Lião, Genebra, Basileia, Colónia e Antuérpia. Em 1560, Clúsio regressa a França, permanecendo dois anos em Paris. De seguida retira-se para Lovaina, onde passou um ano. Volta a Arras. Desloca-se, em dois anos sucessivos (1563 e 1564) a Augsburgo, na Baviera. De Augsburgo, atravessando a Bélgica e a França, junto à costa, dirigiu-se para Espanha e Portugal. 22

A obra é publicada por Plantin e está organizada em 10 livros. Os seis primeiros livros são dedicados aos exóticos que Clúsio terá observado. A maioria dos produtos vegetais está ilustrada, mas geralmente só com o fruto ou semente e não com a planta completa. O livro V é dedicado a animais, muitos dos quais estão ilustrados com gravuras representando os animais inteiros. O livro VI tem a descrição de seres marinhos, corais, algas, equinodermes, moluscos, peixes. Os restantes livros são dedicados a exóticos descritos por Garcia de Orta (livro VII e VIII), Cristóvão da Costa (livro IX) e Nicolás Monardes (livro X). 23

Nos sucessivos capítulos segue geralmente a ordem dos Colóquios. As ilustrações são muito escassas e apresentam produtos, como cascas, frutos, sementes. Exceções são a representação da planta inteira do betel (cap. XVIII), ramos de Piper nigrum e Piper longum (cap. XXII), da planta inteira da areca faufel (cap. XXV), do coqueiro vulgar - Nuce indica, (cap. XXVI) e do Juncus odoratus (cap. XXXIV).

História das Ciências para o Ensino – Colóquio II

10

parte submersas. Ninguém ainda tinha visto a palmeira que dava estes cocos. A sua recolha

era um privilégio régio.

Clúsio não apresenta nenhuma ilustração do coco em si, mas antes um objecto em

prata24 feito a partir do fruto (Clúsio, 1605, p. 195). Como teve acesso a este desenho, ou

mesmo, a esta peça de ourivesaria? John Parkinson, na sua obra Theatrum Botanicum

publicada em 1640, afirma que este desenho tinha sido dado por Jacques Garret25 de

Londres (pessoa do seu círculo de conhecimentos como veremos mais à frente) a Clúsio, e

que esta peça tinha sido «retirada por ele [J. Parkinson] de uma grande carraca dos

portugueses, que vinha das Índias orientais» (Parkinson, 1640, p. 1599). Clúsio era já um

botânico reputado quando publica esta obra e, como referimos, estivera antes em Lisboa.

Será que teve contactos com a corte em Lisboa? Terá podido observar os próprios cocos?

Regressaremos a Clúsio e a Parkinson um pouco mais adiante.

Augerius Clutius (1578-1636)26, numa obra dedicada às propriedades medicinais deste

fruto (Clutius, 1634), publica quiçá a primeira gravura impressa27 do coco das Maldivas.

Nesta obra, Clutius transcreve integralmente o texto de Clúsio publicado nos Exóticos sobre

o coco das Maldivas e refere o trabalho de Garcia de Orta.

Sendo uma obra exclusivamente dedicada ao coco das Maldivas, é de admitir que

este fruto tivesse então um elevado interesse e prestígio dentro das elites médicas

holandesas. Como obteve Clutius os cocos que usava na terapia clínica? Quais as suas

fontes informativas?

O médico holandês dá-nos informações preciosas sobre as suas fontes materiais e

informativas numa das páginas da sua obra28, e estas permitem-nos colocar hipóteses sobre

a sua rede de contactos em Amesterdão. A comunidade de judeus sefarditas (que integrava

numerosas famílias oriundas da Península Ibérica, fugidas da Inquisição) parece ter

desempenhado um papel relevante nestes contactos.

Dos vários médicos que Clutius menciona, ele próprio destaca o médico português

Josephus Buoeno (Bueno), «médico português e prático, célebre na comunidade», que é o

autor de uma introdução laudatória à obra. A família Buoeno (Bueno) era uma família de

judeus de origem espanhola29. Muitos dos seus membros foram médicos ou académicos.

Joseph Bueno30 formou-se em medicina em Bordéus, tendo ido para Amsterdão antes de

1625. Em 1625 é chamado para tratar o príncipe de Orange, mas não evita a sua morte

(Henriques de Castro, 1883, p. 78). Morreu em Amsterdão a 8 de Agosto de 1641

(Henriques de Castro, 1883, p. 77; Silva Rosa, 1925, p. 39). Era pai de Efraim Bueno31 e

24

Tem sido referido que a forma geral desta peça tem conotações com a forma clássica dos dragões, sendo bem diferente das taças que hoje se encontram em vários museus europeus, e das quais falaremos mais à frente, que fazem lembrar as embarcações usadas pelas elites de Java (Trnek, 1988a). 25

Informação que o próprio Clúsio refere nos Exóticos (Clusius, 1605, p. 192). 26

Augerius Clutius (Augeri Clutii, Outgert Cluyt), filho de Dirck Outgaertsz Cluyt (Theodorus Clutius, 1546-1598) nasceu em Delft, em 1577. Em 1594 a família desloca-se para Leiden. A. Clutius estuda primeiro na universidade de Leiden. Depois trabalha no jardim botânico de Montpellier, substituindo ocasionalmente o seu diretor e professor, Pierre Belleval. Em Itália, visita os jardins botânicos de Florença e de Pádua, e em França o de Paris. Regressado a Leiden, auxilia o seu pai nas aulas de Botânica. Seu pai morre em 1598. Entre 1602 e 1607 A. Clutius viaja pela Alemanha, França, Espanha e norte de África, estudando e recolhendo material vegetal. Regressa à Holanda em 1607 estabelecendo-se como médico em Amsterdão. Morreria em 1636 (Bosman-Jelgersma, 1983). 27

Numa página dedicada «às pessoas em cujas obras fomos ajudados neste pequeno opúsculo» Clutius agradecia a Petrus Crachtius, «gravador, cidadão de Schoonhoven». Terá sido o autor das gravuras representado o coco que Clutius apresenta na sua obra? 28

Sem número de página, apresentando o título: «Nomina eorum quorum operâ in utroque opusculo adjuti fuimus». As pessoas que se discutem de seguida estão indicadas nesta página da obra de Clutius. 29

Roth (1932, p. 115). Da família Bueno destacaram-se outros médicos: Abraão Bueno (-1633), Jacob Bueno (Paulo Gomes), Salomão Bueno (-1681), Joseph Morenu Bueno (-1669) e Aarão Bueno (Silva Rosa, 1925, p. 39. Para biografias sumárias de membros da família Bueno ver a Jewish Encyclopedia em: http://www.jewishencyclopedia.com/articles/3805-bueno-bonus 30

De acordo com a Jewish Encyclopedia, existiu também um Joseph Bueno, poeta que viveu em Amsterdão no século XVII, um Joseph Morenu Bueno, médico em Amsterdão, que morreu em 1669 com idade avançada. 31

Efraim Bueno dedicou-se às artes literárias (Silva Rosa, 1925, p. 39). Efraim Bueno e Abraham Pereira fundaram, em 1656, a

História das Ciências para o Ensino – Colóquio II

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casado com Sara Bueno, que morreu a 25 de Maio de 1654 (Henriques de Castro, 1883, p.

77; Mendes dos Remédios, 1911, p. 170). As sepulturas do casal permanecem no cemitério

de Ouderkerk.

Dos professores e botânicos que Clutius menciona destaca-se Bontius32, botânico

«estudioso de certas plantas do Índico e de outras, e autor». Jacob de Bondt tinha ido para

Java33 em 1627, onde morreria em 1631, não tendo publicado os seus trabalhos em vida.

Todavia, sendo membro da poderosíssima Companhia Holandesa das Índias Orientais,

podemos admitir que tenham chegado a Clutius informações sobre o coco das Maldivas ou

mesmo frutos, por seu intermédio.

Clutius menciona explicitamente duas pessoas que tinham estes frutos: Godefridus à

Clermont (Godofredo de Clermont), «um cidadão de Haarlem, possuidor de um fruto

geminado» e Iohannes Tradescantius (John Tradescant)34, que «tinha uma noz cortada a

meio». John Tradescant era do círculo de conhecimentos de John Parkinson, de quem

falaremos de seguida. Na década de 1610 viajou pelos Países Baixos. Será que travou

conhecimento com Clutius? Será que Godofredo de Clermont e John Tradescant foram

fornecedores de cocos a Clutius?

Duas outras personagens importantes na teia de relações de Clutius são Ioannes

(Joannes) van Maerle (Marlen)35, «de Amesterdão, possuidor de uma curiosa taça feita na

Índia, a partir do coco médico» e um abastado comerciante sefardita português – Samuel de

Bendana (Abendana), «comerciante português, que tinha mandado fazer duas taças, com

cocos e prata».

Jan van Maerle era um abastado ourives de Amesterdão e de acordo com as palavras

de Clutius tinha em sua posse uma peça de ourivesaria montada num coco feita na Índia36.

associação «Tora Or» (Mendes dos Remédios, 1911, p. 39). Efraim Bueno editou alguns dos primeiros livros hebraicos impressos em Amesterdão. Foi amigo de Rembrant que pintou o seu retrato. Teve dois filhos - Joseph e Samuel Bueno (Silva Rosa, 1925, pp. 29,39). 32

Jacob de Bondt, Jacobus Bontius (1592-1631), foi um médico holandês que estudou e publicou sobre a história natural das Índias Orientais holandesas. Entrou na Companhia Holandesa das Índias Orientais, tendo sido enviado a Batávia em 1627. Ao fim de alguns anos de permanência em Java, Bontius escreve uma obra na qual descreve várias doenças típicas da região, assim como aspectos da história natural de Java. A De Medicina Indorum, seria publicada postumamente em 1642 por seu irmão Willem Bontius. Jacob de Bondt foi, com Guilherme Piso, um dos fundadores da medicina tropical. A parte referente à história natural de Java – Historiae naturalis et medicae Indiae orientalis libri VI seria publicada também postumamente por Guilherme Piso em 1658, integrada numa obra de conjunto – De Indiae Utriusque Re Naturali et Medica. 33

Neste contexto, é necessário salientar que a partir do último quartel do século XVI, o enfraquecimento da presença portuguesa no Índico foi acompanhado de uma crescente implantação dos ingleses e dos holandeses. Em particular, os Holandeses conquistam Java em 1596. 34

John Tradescant-o-Velho (ca. 1570-1638) foi um naturalista, jardineiro, colector e viajante inglês. Tinha sido encarregado por Robert Cecil, secretário de Estado, de dirigir o jardim da sua residência em Hatfield. Viaja pelos Países Baixos em 1610/1611. Trabalha depois para William Cecil nos jardins da Salisbury House em Londres. Cria os jardins de Edward Lord Wotton em 1615-1623. Viajou pelo Ártico russo, pelo Levante, e pelo norte de África. De regresso passa pelos Países Baixos e por Paris. Em 1630, é nomeado superintendente (keeper) dos jardins reais. Durante as suas viagens, recolhe plantas, objetos de história natural e etnográficos, que guarda na sua casa em Lambeth, Londres. Esta coleção, um gabinete de exóticos e raridades, transformar-se-ia no Museu Tradescantianum. Nos jardins da sua residência em Lambeth, Tradescant e seu filho (John Tradescant-o-Jovem) cultivam muitas plantas exóticas que acabariam por fazer parte do reportório dos jardins ingleses. J. Tradescant conhece J. Parkinson através de John Gerard. 35

Jan (Hans, Johannes) van Maerle (Marlen, Maerlen) (ca. 1577-1637) era natural de Breda. Seu pai, Dirck van Merlen, nascido em Grave por volta de 1540, tinha migrado para Antuérpia na sua juventude, acabando por se estabelecer como advogado na cidade. Jan van Merlen estabeleceu-se como ourives em Antuérpia. Depois foi viver para Amsterdão, antes de Dezembro de 1598. Em 1598 casou com Maria Sijbrechts van Ghils (Ghilsen) também natural de Breda (morreria em 1637). Em 1631 Jan van Maerle vivia na rua Nieuwe Hooghstraet, sendo um homem de posses e certa riqueza, acumuladas desde que se tinha estabelecido em Amsterdão. Tinha constituído uma rica coleção de arte. Jan van Maerle não foi o único membro da família a estabelecer-se em Amesterdão. Sabemos que o seu irmão, Jonas van Maerle, pintor, casou-se com Catelijne Gillis van Conincxloo em 1603 (Montias & Spies, 2001; Montias, 2002). Elementos biográficos em The Frick Collection, The Montias Database of 17th Century Dutch Art Inventories: http://research.frick.org/montias/browserecord.php?-action=browse&-recid=1503 36

Em 1637 realizou-se uma venda em leilão do espólio de Jan van Maerle, existindo um inventário completo desta venda, com os nomes dos compradores e uma descrição sucinta das obras vendidas. O espólio era constituído por pinturas (em grande número), vários livros, gravuras, esculturas. Um exame da listagem deste espólio não revela a existência de qualquer objecto feito com coco. Uma síntese do inventário deste leilão foi publicada por Montias & Spies (2001). Lista das peças deste leilão em The Frick Collection, The Montias Database of 17th Century Dutch Art Inventories: http://research.frick.org/montias/browserecord.php?-action=browse&-recid=1503

História das Ciências para o Ensino – Colóquio II

12

Como referiremos mais à frente, no gabinete de preciosidades do imperador Rudolfo II

existia em inícios do século XVII uma peça de ourivesaria montada em coco de manufactura

possivelmente goesa. Existe alguma relação entre estes dois factos?

As famílias Bendana (Abendana) eram famílias de judeus espanhóis e portugueses,

sefarditas, que viviam em Amesterdão e em Londres37. Um dos primeiros membros a

emigrar foi Francisco Nuñez Pereyra (David Abendana Pereyra) que tendo fugido da

Inquisição, chegou à capital holandesa por volta de 1597. Casou com sua prima Justa

Pereyra. Foi um dos fundadores da primeira sinagoga de Amesterdão. Morreu em 1625,

tendo deixado dois filhos, Manuel38 e Abraão Abendana. Samuel Abendana (Nuno Dias

Carlos) morreu em Amesterdão em 1630. Era um conhecido comerciante relacionado com

os Nunes Saraiva, os Osório e os Andrade de Antuérpia e de Hamburgo.

Augerius Clutius refere ainda dois boticários-farmacêuticos de Amesterdão: Iohannes

(Johannes) Pottius, «ervanário, industrioso farmacêutico de Amesterdão» e Nicolaus

Tulpius, «senador em Amsterdão, professor infatigável». Nicolaes Tulp39 era responsável

pela inspeção dos boticários e ervanários de Amesterdão. Estariam estes boticários ligados

ao comércio de cocos das Maldivas em Amesterdão?

Poucos anos depois da publicação da obra de Clutius, era publicada em 1640, em

Inglaterra a obra de John Parkinson40 - Theatrum botanicum. Apresenta no capítulo XLII uma

descrição detalhada do coqueiro vulgar, acompanhada de várias estampas. Cita

abundantemente a obra de Orta que revela conhecer através da versão clusiana. Dentro

deste capítulo, Parkinson refere o coco das Maldivas. Parkinson refere que «nunca tinha

visto [o fruto] a crescer em nenhuma árvore» (Parkinson, 1640, p. 1598), ideia que Orta

também registou nos seus Colóquios. Os cocos apareciam nas praias das ilhas Maldivas e

«em mais parte nenhuma do mundo» e eram propriedade do rei (p. 1598). Parkinson

descreve o fruto com pormenor e faz acompanhar a sua descrição de pequenos mas

ilustrativos desenhos, que na realidade muito se assemelham aos de Clutius41.

Já referimos que Parkinson revela nesta obra a origem da peça de ourivesaria

representada nos Exóticos de Clúsio. Parkinson refere que, à semelhança do coco vulgar, o

interior do fruto era oco, mas ao contrário do coco vulgar, não existia nenhum líquido (água-

de-coco) porque «tinha sido totalmente consumido durante o longo tempo antes da sua

apanha» (p. 1599), ideia correta42 e que confirma que Parkinson tinha efetivamente

observado um coco seco. Parkinson refere que Orta é céptico quanto às propriedades

antiveneno deste coco e que Clúsio também considerou estas propriedades como

«fabulosas» (p. 1599). Todavia, refere que no seu tratado De nuce medica Augerius Clutius

tinha indicado 100 curas com este coco.

37

Para biografias sumárias de membros da família Abendana ver Jewish Encyclopedia em: http://www.jewishencyclopedia.com/search?utf8=%E2%9C%93&keywords=Abendana&commit=search E o Nieuw Nederlandsch Biografisch Woordenboek (NNBW) em: http://resources.huygens.knaw.nl/retroboeken/nnbw/ Ver ainda Frade (2006). 38

Manuel Abendana foi professor e deputado em Amesterdão. Morreu em 1667. 39

Nicolaes Tulp (1593-1674) foi um cirurgião holandês e presidente de Amesterdão (a partir de 1654). Ficou célebre o seu retrato feito por Rembrant. Estudou medicina em Leiden. Regressou a Amsterdão e instalou-se como médico. Em 1617 casou com Aagfe van der Voegh. Em 1622 foi magistrado na cidade. O comércio dos boticários e ervanários era florescente em Amsterdão, especialmente depois da Holanda se ter instalado em muitas regiões do Índico e da Pacifico. Em 1636 foi publicada a primeira farmacopeia de Amsterdão, na qual Tulp participa. 40

Os elementos da vida e obra de Parkinson foram recolhidos em Furdell (2001), Parkinson (2007) e Arber (2010, pp. 51-56). 41

A principal diferença reside no facto de Parkinson apresentar o fruto com uma forma mais alongada, relativamente aos desenhos de Clutius. 42

Os frutos maduros, depois de caídos da palmeira, não flutuam. Só depois de algum tempo, quando o conteúdo do fruto entra em decomposição, se tornam os frutos suficientemente leves para flutuarem na água salgada e percorrerem grandes distâncias. O fruto maduro tem uma polpa (endosperma) semitransparente, gelatinosa, branca e insípida, e uma água branca de gosto amargo e bastante desagradável; à medida que o fruto envelhece a água desaparece e a polpa torna-se sólida, branca, oleosa (Sonnerat, 1776, pp. 8-9; Quéau-Quincy, 1807, p. 147; Ward, 1865; Dymock, 1885, p. 806).

História das Ciências para o Ensino – Colóquio II

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É interessante que J. Parkinson depois de longamente descrever o que a bibliografia

mencionava sobre este coco, escreve que vai «dar a sua opinião sobre alguns aspectos

particulares da história da noz das Maldivas» (p. 1599). Parkinson concorda com a

interpretação que as ilhas das Maldivas estiveram antes ligadas ao continente indiano mas

através de tempestades e inundações se separaram da terra firme, à semelhança do que

aconteceu com as Ilhas Britânicas que estavam antes ligadas a França (p. 1599). Parkinson

afirma que, dado que os cocos só se encontravam nas praias das Maldivas, lançados pelo

mar, podiam ser formados em árvores de ilhas submersas ou no próprio fundo do mar, ou

em ambos os casos. Parkinson refere ainda uma outra interpretação, segundo a qual existe

uma ilha designada de Palloye, na qual crescem estas palmeiras e os cocos depois de

caírem no solo quando estão maduros, são transportados pelos ventos e pelas ondas para

as ilhas que estão próximas. Parkinson salienta que esta ilha é fabulosa e misteriosa,

porque é encontrada por quem não a procura e não achada por quem a busca. O rei das

Maldivas mandou procurá-la, mas as pessoas regressaram «assustadas e terrificadas pelos

espíritos» (p. 1600). Para Parkinson estas lendas tinham como objectivo dar ainda mais

valor a estes cocos. Todavia, Parkinson rejeita a interpretação clássica, segundo a qual

estas palmeiras vivem dentro de água, mas antes considera que estas palmeiras vivem

algures em terra firme ou numa ilha, hipótese correta, e que os ventos e as correntes as

transportam para as ilhas das Maldivas. Parkinson termina o texto dedicado a estes cocos

com uma ideia muito original. Semear os frutos e esperar pelo crescimento das palmeiras

para finalmente se conhecer a árvore que produzia tão extraordinários frutos e «tirar todas

as dúvidas e fábulas» (p. 1600). A ideia era muito engenhosa e até visionária, mas muito

provavelmente não surtiria efeito, dado que quando os cocos chegam às Maldivas, já se

encontram em avançado estado de envelhecimento.

J. Parkinson revela conhecer bem o fruto do coco das Maldivas. Terá possivelmente

ele próprio observado um destes frutos. Como o obteve? A vida e obra de John Parkinson

permitem-nos responder a esta questão.

J. Parkinson inicia a sua vida profissional, em 1584 em Londres, como aprendiz na

Company of Grocers43, sob a tutela de Francis Slater. Tratava-se de um dos mais ricos e

poderosos Grémios associativos da cidade de Londres. Os seus membros tinham o direito

exclusivo do comércio na cidade desde há dois séculos. Este comércio incluía os bens que

entravam no porto de Londres44, bens dos mais diversos, desde alimentos, roupas, metais

até aos exóticos, raridades e preciosidades.

J. Parkinson terá contactado com os comerciantes flamengos estabelecidos no porto

de Londres e este contacto ter-lhe-á proporcionado o conhecimento de muitas plantas e

produtos vegetais exóticos que entravam em Inglaterra através do porto da sua capital.

Pigmentos vegetais, alcaravia, benjoim, calamina, cânfora, cardamomos, coca (folhas),

cravinho, curcuma, fenacho, gengibre, goma-arábica, guaiaco, incenso, maça, mirabolanos,

noz-moscada, ruibarbo, tabaco (folhas), encontravam-se entre as mercadorias importadas,

que a Company of Grocers tinha o direito exclusivo de comercializar em Inglaterra. Todavia,

a grande maioria dos comerciantes não tinham qualquer ideia sobre a natureza botânica

destes produtos.

Da Company of Grocers faziam parte vários herbolários e ervanários que estudavam,

colecionavam, cultivavam e comercializavam tanto as plantas e produtos vegetais exóticos

43

Para uma breve história desta companhia, ver: http://www.grocershall.co.uk/index.php/company/history/ 44

Este porto adquiria, nesta altura, mais proeminência com a destruição do porto de Antuérpia pelas forças espanholas. O porto de Londres, com os seus 24 cais, era uma das portas de entrada de bens que abasteciam Londres, nesta altura com 90.000 habitantes. Entre outras mercadorias, vinham por exemplo cebolas de França, e maçãs da Holanda, Bélgica e norte de França, que supriam as insuficientes produções nacionais.

História das Ciências para o Ensino – Colóquio II

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que vinham do estrangeiro, como plantas nativas britânicas. Alguns tinham pequenos jardins

onde tentavam cultivar plantas medicinais. Hugh Morgan45, administrador da companhia,

tinha uma ervanária perto de Colman Street, na zona nordeste da cidade. Recolhia plantas

medicinais inglesas, que utilizava para ensinar os aprendizes da companhia. Tinha um

jardim de plantas medicinais. Trocava plantas e produtos vegetais com boticários do

continente. Era muitas vezes chamado pela Companhia para inspecionar lotes de plantas

medicinais no intuito de verificar a sua autenticidade. Era um dos mais conceituados

boticários ingleses do seu tempo. John de Franqueville, de origem flamenga, herbolário e

ervanário estabelecido em Londres e amigo de John Gerard (Potter, 2006), com quem J.

Parkinson irá contactar e aprender no início da sua carreira.

Jacques Garret46, também de origem flamenga, que, como já referimos, ofereceu a

Clúsio um desenho de uma peça decorativa montada em coco das Maldivas, tinha um

pequeno jardim e uma ervanária na Lime Street, na extremidade leste da cidade. Será em

casa de Jacques Garret que J. Parkinson conhecerá Lobélio e contactará com as suas

obras Stirpium Adversaria e Stirpium Observationes. O estilo objectivo, o primado da

observação sobre a especulação, tão característicos de Lobélio e das suas obras botânicas,

terão certamente influenciado J. Parkinson que também abraçará o ideário renascentista.

A 30 de Janeiro de 1592, J. Parkinson termina o seu aprendizado com a realização de

um exame final tornando-se, aos 25 anos, membro de pleno direito da Companhia, podendo

exercer o comércio de plantas medicinais. Com a morte de John Gerard e a idade avançada

de Lobélio, J. Parkinson assume, na primeira década do século XVII, a vanguarda dos

herbolários e floricultores ingleses, sendo então nomeado para dirigir o jardim de Theobalds

House, palácio real localizado em Ceshunt (Hertfordshire). Neste jardim, J. Parkinson cultiva

muitas plantas exóticas. O rigoroso inverno de 1607 destrói grande parte das plantas do

jardim real. Para a renovação, é contratado William Boel, um «pesquisador de plantas»

flamengo, que já tinha trabalhado para Lobélio47.

No seu jardim de Long Acre, localizado em Covent Garden, J. Parkinson cultiva não só

plantas medicinais, como plantas comestíveis e ornamentais48. Este jardim torna-se um local

de encontro de herbolários e botânicos. Destes visitantes, destaca-se Robert Fludd, médico

formado em Pisa49, e John Tradescant, que também era conhecido de Clutius. O jardim de

Long Acre torna-se também um local de estudo e experimentação no qual J. Parkinson

observa a forma e o crescimento das plantas exóticas, até então desconhecidas dos

herbolários ingleses. O seu estatuto como herbolário exímio e o seu negócio de ervanário,

também progridem a bom ritmo. Para este facto contribuíram o seu elevado e objectivo

conhecimento das plantas medicinais e a forma correta de preparar os medicamentos

vegetais.

Em 1607, é proposta a criação, dentro da Companhia, de uma secção separada para

os boticários, antevendo a futura criação da Companhia dos Boticários. Este facto refletia a

crescente complexidade da profissão de boticário nos últimos 30 anos. O número de plantas

medicinais importadas em Inglaterra quase tinha duplicado, muitos médicos receitavam

45

Hugh Morgan tinha sido eleito administrador em 1574 e era para ser nomeado diretor em 1583, quando a rainha Elizabeth o nomeia como boticário régio. Continuaria este cargo com James I. Morreu em 1613, com avançada idade (Furdell, 2001, p. 91). 46

Seu irmão, Pieter Garret, era também boticário e vivia em Amesterdão (Egmond, 2009a). 47

William Boel viajava regularmente a África e à Península Ibérica para recolher bolbos, tubérculos e sementes de plantas então exóticas na Europa do norte. Clúsio refere-se a William Boel como o médico que vivia em Lisboa, mas na realidade era um intrépido viajante. Em 1608, J. Parkinson contrata-o para ir a Espanha recolher plantas para o jardim real inglês. Regressa com bolbos e sementes de mais de 100 espécies, muitas das quais nunca tinham sido cultivadas em Inglaterra. No entanto, o áspero clima londrino não permitirá a sobrevivência de muitas das raridades trazidas por W. Boel de Espanha. 48

Parkinson (2007, pp. 296-308) apresentou uma lista das plantas que seriam cultivadas neste jardim. 49

Robert Fludd (1574-1637) foi um médico inglês adepto das doutrinas de Paracelso, astrólogo, matemático, e muito ligado aos movimentos esotéricos.

História das Ciências para o Ensino – Colóquio II

15

medicamentos químicos. Dos 700 membros da Companhia, 140 eram boticários. Apesar de

todos terem o direito legal e exclusivo de prepararem e venderam os medicamentos, a

maioria tinha uma formação baixa, não sabendo identificar uma planta nem ler um tratadista

em latim. No entanto, a proposta é rejeitada.

Com a morte de Lobélio em 1616, J. Parkinson assume a função do mais importante

herbolário em exercício em Inglaterra.

Em 1617 é finalmente aprovada a nova Sociedade dos Boticários Ingleses. A

Company of Grocers exerce pressões para que mantenha o direito de vender medicamentos

mas, em 1620, é determinado que só os membros da Sociedade dos Boticários podem

preparar e vender a grande maioria dos medicamentos vegetais – flores, raízes, sementes.

No entanto, os membros da Company of Grocers podiam continuar a vender algumas

substâncias medicamentosas como o tabaco, o mercúrio e a arsénio.

Com a morte de Jaime I (1566-1625) em 1625, sobe ao trono seu filho Carlos I (1600-

1649). O novo monarca concede a J. Parkinson a utilização de uma propriedade perto dos

campos de ténis em St. James Fields, para que o herbolário possa cultivar as suas plantas.

Um dos frequentadores do novo jardim de J. Parkinson será o jovem boticário Thomas

Johnson50.

Finalmente, em 1639, J. Parkinson é nomeado boticário régio. Vive no palácio de

Whitehall. Um desenho feito em 1670 representa uma Herb House, onde as plantas

medicinais eram secas e preparadas para uso dos membros da corte. Localizava-se entre

os aposentos do boticário, J. Parkinson, e do médico, logo atrás do complexo onde se

encontravam as cozinhas, a copa, a casa do forno, e a adega

Em 1640, J. Parkinson publica a sua obra Theatrum botanicum, em que pretendia

enumerar todas as plantas conhecidas e não descritas em Paradisus. As propriedades

medicinais das plantas são descritas em pormenor. Grande parte do Pinax de Bauhino é

incorporado, apresentando portanto a obra grande detalhe nomenclatural. Representa uma

melhoria em relação ao herbal de John Gerard, do qual retirou grande parte das ilustrações.

Apesar da sua data tardia, o Theatrum botanicum de Parkinson ainda incorpora

alguma da imaginária medieval. Parkinson é eloquente quando se refere ao raro e precioso

corno do unicórnio51, que era apresentado como uma cura para muitos males do corpo. O

animal é descrito como vivendo em locais remotos, em regiões selvagens, entre as bestas

mais furiosas. Parkinson também discute o uso de pó de múmias, sendo a descrição

acompanhada de um desenho de um corpo embalsamado.

A guerra civil que se instala na sociedade britânica resulta na execução de Carlos I,

em 1649. J. Parkinson morrerá no ano seguinte. Na coroa britânica sucederá Carlos II, em

1660. O seu boticário será R. Morison, também botânico destacado.

50

Thomas Johnson (1595/1600-1644) era também boticário em Londres e um membro destacado da Companhia dos Boticários. Publica, em 1629, uma descrição de uma herborização realizada em Kent e uma lista das plantas de Hampstead Heath. Publicará, em 1633, uma versão revista da obra de John Gerard. Logo em 1636 é publicada uma nova edição desta obra. Apesar da revisão de T. Johnson, o herbal de J. Gerard manterá sérias limitações: as descrições e as ilustrações nem sempre correspondem à mesma planta; muitas espécies aparecem repetidas; existe um excessivo número de variedades; as descrições são pouco claras. Em 1634 e 1641 pública a obra Mercurius Botanicus em que descreve a botânica de viagens que realiza em Inglaterra e no País de Gales (Raven, 2009). 51

O unicórnio era um animal fabuloso que era representado com tendo uma presa semelhante à do mamífero marinho narval. Este «corno» era uma das peças de história natural mais cobiçadas e era tido como possuindo as mais potentes propriedades terapêuticas e medicinais, em particular no tratamento da infertilidade da mulher e contra todo o tipo de venenos. Quando se estabelece a ligação marítima com o Oriente, começaram a chegar à Europa pedaços de presas do suposto unicórnio, a preços exorbitantes. Na realidade o que chegava era pó ou raspas de chifres de rinoceronte, material que ainda hoje mantém a mais elevada reputação terapêutica em várias medicinas tradicionais.

História das Ciências para o Ensino – Colóquio II

16

3. Preciosidades e raridades montadas em cocos das Maldivas em coleções das elites

europeias e em museus hoje

Os Colóquios de Orta suscitaram sobremaneira o interesse dos médicos e dos

herbolários dos séculos XVI-XVII. Através da versão latina clusiana, foram divulgados por

toda a Europa. Até à publicação das obras de Clúsio (1605), Clutius (1634) e Parkinson

(1640) os Colóquios constituíram quiçá a única fonte informativa sobre os cocos das

Maldivas. Desta forma, é possível que tenham influenciado, de uma ou outra forma, artistas

e grandes colecionadores de arte das cortes europeias. Sabemos que cocos das Maldivas,

simples ou montados em metais preciosos, ingressavam nas coleções de raridades e

preciosidades dos monarcas, príncipes, nobres ou grandes comerciantes europeus.

Efetivamente, a promoção das artes e das ciências através do colecionismo de objetos

artísticos e de história natural era uma das marcas identitárias do Renascimento europeu.

Estas atitudes pretendiam promover a imagem do patrono, enquanto poder e sabedoria.

A 17 de Fevereiro de 1588, o testamento de António da Fonseca, um destacado

mercador e banqueiro português que vivia em Roma, era tornado público por Maurizio

Boccarino (Novoa, 2012). Fonseca tinha morrido alguns dias antes na paróquia de San

Biagio della Fossa. O testamento tinha sido redigido dois anos antes e, como é habitual,

continha as regras para a distribuição das suas riquezas. É então elaborado um inventário

dos seus objetos e bens. Este documento é de grande valor para conhecermos os

interesses e gostos de um importante mercador próximo da cúria romana. O inventário foi

elaborado por António Pinto, pessoa da confiança de António da Fonseca e que este tinha

designado para fazer cumprir o seu testamento. António Pinto, clérigo natural de

Mogadouro, tinha sido funcionário da corte portuguesa e, depois, da cúria de Roma. Tinha-

se tornado uma figura influente nos círculos diplomáticos de Roma, nomeadamente como

secretário do embaixador português na Cidade Eterna. Durante o reinado de Filipe I de

Portugal (1581-1598) seria mesmo representante português junto da Santa Sé. António da

Fonseca tinha chegado a Roma em 1556. Tinha nascido em 1515 em Lamego, no seio de

uma família abastada com conexões a cristãos-novos. A sua chegada a Roma tinha sido

precedida pela de seu irmão, Jácome da Fonseca, um importante mercador que viveu em

Roma pelo menos desde 1543 até aos inícios de 1555. Era especialista no comércio de

especiarias. Representava a comunidade de cristãos-novos junto da cúria. O inventário dos

bens de António da Fonseca ocupa cerca de 10 fólios e revela um homem de posses e

gostos requintados. Pinturas (algumas das quais representando papas e monarcas

portugueses), vestuário em veludo e damasco, objetos preciosos em madrepérola,

porcelana fina, entre outros itens constavam deste inventário. Apesar de não se poder falar

de um verdadeiro gabinete de exóticos e preciosidades (Kunstkammer) a coleção de

António da Fonseca era contudo notável e bem ilustrava a sua posição como o mais

importante mercador e banqueiro português em Roma. Além dos itens já referidos, o

inventário continha objetos de história natural, nomeadamente pelo menos 21 pedras

bezoares52. Além deste inventário feito por António Pinto sobreviveram quatro listas de

objetos que se encontravam em quatro caixas ou armários. Estas listas em português foram

feitas pela mesma pessoa em datas próximas anteriores à morte de António da Fonseca.

Alguns dos itens destas listas constam do inventário já mencionado. Destas listas

constavam vários objetos exóticos de história natural como «dois cocos grandes» das

Maldivas, sendo um em forma de barco.

52

A pedra bezoar forma-se no aparelho digestivo de alguns ruminantes. Foi durante séculos considerada como um dos mais poderosos antídotos contra venenos e, por esta razão, surge frequentemente associada a cocos das Maldivas, em recipientes para beber.

História das Ciências para o Ensino – Colóquio II

17

O infante D. Duarte53, neto de D. Manuel, sobrinho e primo de D. Sebastião,

condestável (10°) do reino, possuía em 1576, quando morre, uma coleção de raridades,

instrumentos científicos, pinturas e outras obras artísticas, e uma notável biblioteca. O seu

testamento, datado de 9 de Novembro de 1576 (Caetano de Sousa, 1742, pp. 620-642), é

um documento de valor excepcional para se conhecer os gostos e as posses de um infante

e nobre ligado à corte. Dos objetos preciosos e exóticos encontramos referência aos

seguintes: um «grande pau de beijoim de bobinas»; «panos de cores do Sião»; «panos de

pintura da China», oferecidos por D. Luís de Ataíde54; «um coco de balsamo» e «búzios»

enviados por Luis de Brito e Almeida55; «um barril de búzios» que tinham sido oferecidos por

Vasco Fernandes56; «um corno de Bada» e «dois brincos de porcelana» oferecidos por

Próspero do Campo; «um sinete de cristal com o engaste de ouro com alguns rubizinhos»,

peça oferecida por Silvestre Machado; uma colcha e uma esteira da Índia, ofertas de um

contramestre, que também lhe tinha obtido «dois cocos de Maldiva pegado um ao outro»,

afinal um fruto inteiro de tão preciosa raridade.

Seria na poderosíssima dinastia dos Habsburgo que as preciosidades montadas em

cocos das Maldivas conheceriam o seu esplendor máximo57. O arquiduque Fernando II

(1529-1595), monarca Habsburgo do Tirol e da Áustria58, foi um dos grandes colecionadores

da Casa de Áustria e o fundador dos museus de Ambras (Áustria). A Kunstkammer de

Ambras ocupava uma sala ampla. Desta coleção foi feito um primeiro inventário em 159659,

após a morte de Fernando II, e um segundo em 162160. Muitos dos objetos provinham das

coleções de Maximiliano I61 e de Fernando I62. As peças estavam organizadas por tipo de

material. No âmbito da história natural, a grande maioria das peças eram objetos

transformados e montados. Destacam-se os seguintes: colheres e um saleiro em marfim de

origem africana (subsaariana); nozes de coco decoradas, de origem brasileira; trompas de

caça feitas em carapaça de tartaruga de origem indiana; 11 recipientes de corno de

rinoceronte; recipiente feito a partir de um coco das Seychelles (Maldivas); noz-moscada;

nozes de cocos vulgares; dois cofres forrados em madrepérola, de origem indiana; talheres

de madrepérola, de origem indiana; conchas de náutilos com montagens coloridas, animais

dissecados, dentes de elefante, cornos de rinoceronte, carapaças de tartaruga, conchas de

moluscos e minerais.

53

O infante Duarte de Portugal, D. Duarte II de Portugal (1541-1576), 5° duque de Guimarães, era filho do infante D. Duarte I, 4° duque de Guimarães e de D. Isabel de Bragança. Pelo lado do pai, era neto do rei D. Manuel e pela mãe neto de D. Jaime, 4° Duque de Bragança. Foi um dos mais influentes nobres da corte de D. João III e na de D. Sebastião. Em 1555 foi nomeado condestável do reino. Em 1557 quando D. João III morre era um dos três descendentes masculinos legítimos vivos de D. Manuel. Como membro do Conselho de Estado votou em 1569 a favor do casamento de D. Sebastião com Margaria de Valois que não se concretizaria (mais tarde Margaria de Valois casaria com Henrique IV de França). Em 1574 acompanhou D. Sebastião na sua primeira viagem a Tânger. Morreu em Évora sem deixar descendência. 54

D. Luís de Ataíde (1517-1580) foi governador da Índia (1568-1571) e depois Vice-Rei (1578-1580). Participou na expedição de D. Estêvão da Gama ao Mar Vermelho. Regressado ao reino, foi enviado à corte de Carlos V, tendo participado em combates contra forças protestantes. 55

Luís de Brito e Almeida foi governador das capitanias do norte do Brasil (ao norte de Porto Seguro, com sede na Bahia) de 1572 a 1576 e, de todo o Brasil, em 1577. Realizou diversas bandeiras pelo interior do Brasil, com vista à descoberta de jazidas de pedras preciosas. Fundou a cidade de Santa Luzia na Bahia, dando início à Capitania de Sergipe. 56

Vasco Fernandes Homem foi governador de Moçambique entre 1573 e 1577. 57

Bibliografia geral sobre as Kunstkammer e as cortes dos Habsburgo, da qual retiramos elementos para este texto: Scheicher (1985); Distelberger (1985, 2001); Fucíková (1985); Kugler (1988); Vassallo e Silva (2001); Trnek (2001a); Stark (2003); Bukovinská (2005); Keating & Markey (2011); Bowry (2014). 58

Era filho do imperador Fernando I (1503-1564) e irmão mais novo do imperador Maximiliano II (1527-1576). Em 1549 é governador da Boémia e, em 1564, do Tirol. Reconstrói a fortificação de Ambras, uma edificação medieval do século XI. Terminado o trabalho em 1566, em 1573 adapta as salas da parte inferior para receber a sua coleção da armas e a Kunstkammer. 59

Só publicado pela primeira vez em 1888 na série Jahrbuch des Allerhöchsten Kaiserhauses. 60

Só seria publicado em 1985 também em Jahrbuch des Allerhöchsten Kaiserhauses. 61

Maximiliano I (1459-1519), filho de Fernando III, foi imperador do Sacro Império Romano-Germânico a partir de 1508 e até à sua morte. Expandiu a influência da Casa dos Habsburgo pelo seu casamento com Maria da Borgonha. 62

Fernando I (1503-1564) nascido em Alcalá de Henares, foi arquiduque da Áustria (1521-1564), rei da Boémia e da Hungria a partir de 1526 e rei da Croácia desde 1527 e, finalmente, imperador do Sacro Império Romano-Germânico a partir de 1558.

História das Ciências para o Ensino – Colóquio II

18

Com o imperador Rudolfo II (1552-1612) o colecionismo de objetos artísticos e de

história natural atinge um clímax no contexto europeu (Bukovinská, 2005). A personalidade

de Rudolfo II reflete-se bem nas suas coleções de raridades e exóticos: profundo amante

das artes, organizador meticuloso, planejador cuidadoso, incansável trabalhador, patrono de

artistas63, com vontade (e capacidade) para gastar elevadíssimas somas de dinheiro para

adquirir os objetos que pretendia.

Rudolfo II orgulhava-se da dinastia a que pertencia e pretendia dar continuidade à

tradição familiar, em particular de Maximiliano I e de Carlos V. Em Rudolfo II, a ideia de

império e a mística da Casa dos Habsburgo têm não só um sentido político, mas também

uma significação espiritual.

Consagrado imperador do Sacro Império Romano-Germânico64 em 1576, Rudolfo II

muda a corte imperial para a capital do reino da Boémia, Praga. Durante o seu longo

reinado de quase três décadas, Rudolfo II irá modificar drasticamente a estrutura interna do

castelo e as áreas limítrofes, alterações que permaneceram até aos dias de hoje65.

Rudolfo II estabelece a grande Kunstkammer no castelo de Praga. Neste sentido

compra aos herdeiros de seu tio, o arquiduque Fernando II, a coleção de Ambras e fá-la

incorporar no seu gabinete de raridades e preciosidades. Menos sucesso teria em relação à

coleção de arte de Graz, promovida por Carlos II66. Quando o arquiduque morreu em 1590,

a sua mulher, Maria Ana de Baviera67, irmã de Fernando II, opõe-se a que Rudolfo II se

aproprie da coleção de gravuras em madeira de Hans Burgkmair68 para a obra Triunfo de

Maximiliano I69.

Daniel Fröschl70, antiquário imperial, fez um inventário da grande coleção de Rudolfo

II71, trabalho que decorreu entre 1607 e 161172. De acordo com este inventário, dos objetos

63

Rudolfo II contratou vários pintores para trabalharem na sua corte em Praga, formando-se aí uma autêntica escola de pintura. No castelo de Praga também funcionaram as oficinas de Ottavio Miseroni (artista lapidador de pedras preciosas de Milão) e de Jost Bürgi. 64

O Sacro Império Romano-Germânico foi estabelecido em 1356. Depois de ter sido coroado imperador do Sacro Império em 1355, Carlos da Boémia promulgou uma lei que estabelecia a eleição do imperador da Alemanha por sete príncipes Eleitores, que também eram os seus mais diretos conselheiros. Os Eleitores contudo não tinham poder absoluto no seu território. No governo do Eleitorado participavam aristocratas e representantes das cidades e das universidades. 65

Os trabalhos de reconstrução continuariam com o reinado da imperatriz Maria-Teresa, que recorre ao arquiteto da corte Nikolaus Pacassi. 66

Carlos II Francisco de Áustria (1540-1590) era irmão do imperador Maximiliano II. Arquiduque de Áustria governou a Estíria, a Carniola e a Caríntia. Pertencia à Casa de Habsburgo. Ao contrário de seu irmão, Carlos II era católico, tendo promovido a Contra-Reforma nos seus territórios. Fundou em Graz uma universidade. 67

Maria Ana de Baviera (1551-1608), filha de Alberto V, duque de Baviera casou em 1571 com Carlos II. Deixou de ser arquiduquesa em 1590 com a morte de seu marido. 68

Hans Burgkmair-o-Velho (1473-1531) foi um pintor alemão e gravador em madeira. A partir de 1508 Burgkmair dedica-se ao projeto de gravação em madeira de Maximiliano I. Gravou cerca de metade das 135 gravuras em madeira da obra Triunfos de Maximiliano. 69

Ou Procissão Triunfal, é uma obra gráfica e artística monumental, feita com blocos de madeira gravados, encomendados pelo imperador Maximiliano I a várias artistas seus contemporâneos. A imagem compósita, com cerca de 54 metros de comprimento, foi impressa a partir de mais de 130 blocos de madeira gravados. É uma das maiores imagens impressas jamais realizada. O imperador pretendia colar esta imagem nas muralhas da cidade e dos palácios, de forma exprimir o seu poder e magnificência. Maximiliano promoveu a execução de mais duas grandes gravuras, executadas por Albrecht Dürer: o Arco do Triunfo, 1512-1515, composto por 192 gravuras em madeira, formando um conjunto com 3,7 metros de comprimento e 3,0 metros de altura; a Grande Carruagem do Triunfo, 1522, composta por 8 gravuras em madeira, com um comprimento total de 2,4 metros e 0,5 metros de altura. 70

Daniel Fröschl foi nomeado antiquário do Império em 1607. Trabalhou como pintor e miniaturista em Pisa, Florença e Praga desde 1590. Conhecia as riquíssimas coleções dos Medici. Tinha contactos com naturalistas, tendo sido ilustrador de várias obras de história natural. 71

Desta coleção faziam parte, nomeadamente, as seguintes peças, por grupos: 1. História Natural (Naturalia). Objectos dos três reinos da natureza, alguns inseridos em objetos artísticos com adições de metais preciosos e jóias, objetos paleontológicos (ex. fósseis). 2. Artificilia. Objectos feitos à mão a partir de materiais naturais orgânicos, como o marfim, âmbar, chifres de vários animais, ovos e nozes, e inorgânicos, como metais preciosos, pedras preciosas e semipreciosas. 3. Moedas e medalhas de todas as épocas, culturas e continentes. 4. Livros, gravuras, aguarelas, pinturas a óleo, desenhos, gravura em cobre e em madeira. 5. Mobiliário. Algumas peças albergavam a própria coleção. 6. Scientifica. Relógios, instrumentos astronómicos, instrumentos de medida, globos terrestres e celestes, odómetros. 72

Além do inventário de Daniel Fröschl, chegaram até nós mais dois inventários da Kunstkammer de Rudolfo II. Um foi feito depois da morte do imperador Matias (1557-1619) em 1619, a mando dos Estados da Boémia, possivelmente com o intuito da coleção ser vendida. Um outro foi realizado em 1621 depois da derrota das revoltas na Boémia, por ordem de Fernando II (1578-1637), imperador do Sacro Império entre 1619 e 1637.

História das Ciências para o Ensino – Colóquio II

19

de história natural da coleção de Rudolfo II destacam-se os seguintes: cornos de rinoceronte

naturais e trabalhados; animais secos; carapaças de tartarugas; conchas; bezoares; cocos

naturais e decorados, sendo um ou dois exemplares de coco das Maldivas.

Uma destas peças de ourivesaria está hoje no Museum und Schatzkammer des

Deutschen Ordens (Tesouro da Ordem Teutónica) de Viena (inv. DO 74)73. Estava

referenciada com o número 298 no inventário de Daniel Fröschl74. Trata-se de uma parte de

noz de coco das Seychelles, montado com prata dourada, formando uma taça. Tem parte de

um chifre de antílope na parte superior. A altura total da peça é de 38 cm. A peça terá sido

confeccionada em Goa ou Lisboa, por um artista desconhecido, no terceiro quartel do século

XVI, (Woźniak, 1990). De acordo com o texto do inventário, a peça teria no seu interior uma

pedra bezoar, que já não existe (Trnek, 1988a, Woźniak, 1990). Esta obra de arte fez parte

de uma exposição patente no Museu Calouste Gulbenkian, entre Outubro de 2001 e Janeiro

de 200275.

Com esta peça regressamos mais uma vez ao percurso de Carlos Clúsio. Regressado

da sua viagem pelo sul da Europa, durante a qual visitou a Península Ibérica, em 1573

Clúsio é convidado pelo imperador Maximiliano II (1527-1576). Dirige os jardins imperiais de

Viena, lugar onde se conserva durante mais de uma década. Depois, está ao serviço do

imperador Rudolfo II (Trnek, 1988a; Egmond, 2009). Terá sido através de Clúsio que esta

peça foi adquirida por Rudolfo II? Tem sido colocada a hipótese de ter sido Clúsio o

intermediário para a aquisição desta peça em Lisboa, cidade onde era possível encontrar

raridades extremas como os cocos das Maldivas (Woźniak, 1990, p. 236). Efetivamente, nos

Exóticos, Clúsio refere que tinha visto em Lisboa uma peça desta natureza (Trnek, 1988a).

Por outro lado, já referimos que o desenho que Clúsio apresenta nos seus Exóticos,

lhe tinha sido dado por Jacques Garret de Londres, que o tinha feito a partir de um objecto

trazido por uma nau portuguesa que vinha da Índia (Clúsio, 1605, p. 192). Esta peça de

ourivesaria representada nos Exóticos não é nenhuma das que existem hoje nos museus

europeus e que são referidas no presente texto.

No Kunsthistorisches Museum de Viena (ref: 6849) existe uma outra peça composta

por meio coco montado em prata76. De artista desconhecido, terá sido fabricada na

Alemanha no último quartel do século XVI. É provável que seja a peça referenciada no

inventário de Daniel Fröschl com o número 295. Ao contrário da peça que se encontra no

Tesouro da Ordem Teutónica de Viena (inv. DO 74), esta peça tem uma forma que se

assemelha às taças feitas com cocos vulgares.

Além deste inventário também foi feito ao tempo de Rudolfo II um inventário

desenhado e pintado da coleção zoológica do imperador. Dois volumes deste documento

precioso permanecem na Biblioteca Nacional Austríaca em Viena. Um dos mais valiosos

desenhos é da extinta ave dodo (Raphus cucullatus), uma espécie endémica das ilhas

Maurícias, perto de Madagáscar77. Sendo o soberano mais poderoso da Europa pretendia

ter a maior e mais valiosa coleção particular de todos os reinos europeus. Assumindo-se

como governante pela vontade de Deus e seu representante na Terra, o imperador pensava

73

Fotografias da peça em Trnek (1988a, p. 213, #686) e em Woźniak (1990, item III.8.33). 74

Está também referenciada em inventários posteriores, como o da herança do arquiduque Maximiliano III, datado de 1619, e o da herança do arquiduque Carlos, bispo de Neisse (1608-1624), de 1626-1627. A partir desta altura, a peça surge em todos os inventários de coleções de preciosidades e raridades alemãs. 75

Estando descrita no catálogo desta exposição (Trnek, 2001b). 76

Fotografia e descrição da peça em Trnek (1988b). 77

Em 1598, navios holandeses trouxeram de volta para a Holanda dois pássaros vivos. Um destes animais foi comprado pelo imperador e enviado para o castelo de Praga. Nos primeiros anos do século XVII o animal estava vivo e foi desenhado por Jacob Hoefnugel. Quando morreu foi embalsamado e o espécime incorporado na Kunstkammer estando já mencionado no inventário de Daniel Fröschl. Estes elementos documentais constituem hoje elementos preciosos para o conhecimento de tão extraordinário e extinto animal.

História das Ciências para o Ensino – Colóquio II

20

estar acima do mundo, como Deus estava acima do Universo. Para o imperador do Sacro

Império a Kunstkammer era uma ferramenta do seu poder elitista.

Depois da morte do imperador Rudolfo II as coleções dispersaram-se. O seu sucessor

Matias78 fez deslocar a corte para Viena, tendo levado muitos objetos da Kunstkammer.

Nenhum dos monarcas que sucederam a Rudolfo II voltou a viver em Praga. As coleções de

Rudolfo que permaneciam nesta cidade foram severamente delapidadas pelo saque

efectuado pelas tropas suecas durante a Guerra dos Trinta Anos, de que falaremos mais à

frente, e finalmente no século XVIII quando num leilão se venderam muitas peças.

A arquiduquesa Maria Ana da Baviera (Wittelsbacher), viúva de Carlos II de Áustria

Interior foi responsável por uma grande ampliação da coleção de Graz, por volta do ano de

1600. Desta coleção só sobreviveu um inventário de autor anónimo datado de 1668. Em

1599, por ocasião do casamento de Filipe III com a arquiduquesa Margarida de Áustria

Interior, em Barcelona, o rei ofereceu inúmeros presentes à mãe da noiva, Maria Ana

Wittelsbacher. Destes presentes destacavam-se centenas de pedras bezoares orientais,

conchas, trabalhos em madrepérola, 20 cocos das Seychelles. Muitas destas peças exóticas

foram adquiridas por Maria Ana Wittelsbacher através da embaixada imperial em Madrid.

Não só em Ambras, Praga, Viena e Graz, mas também em Dresden, as coleções de

exóticos, preciosidades e raridades, faziam parte do programa das elites mais abastadas e

influentes79.

A paz de Augsburgo aprovada pela Dieta Imperial em 155580 tinha sido fortemente

determinada pela Eleitorado da Saxónia81. Na década de 1560, a cidade de Dresden, sua

capital, estabelece-se como o centro da política do império e o Eleitor Augusto (1526-1586,

reinado entre 1553 e 1586) como um dos príncipes mais influentes no império.

Com Augusto, o Eleitorado da Saxónia transforma-se num Estado progressivo,

apoiando a ciência e a tecnologia, as minas (de prata e pedras semipreciosas), e a reforma

da justiça e da administração. As instituições religiosas são colocadas sob a dependência e

proteção do Estado. Augusto promove uma teologia luterana moderada, fundada no ideário

de Philipp Melanchton. O monarca (Eleitor da Saxónia) era o príncipe mais importante da

Liga Protestante e a corte de Dresden tinha uma assinalável importância na corte do Sacro

Império Romano-Germânico, estabelecida em Praga por Rudolfo II. A Kunstkammer e a

Wunderkammer (coleção de arte) são criadas na década de 1560, em sete salas do andar

superior da ala oeste do palácio de Dresden.

Gabriel Kaltemarckt, artífice do Eleitor Cristiano I, descrevia numa memória sua

(Pensamentos sobre como formar uma Kunstkammer) datada de 1586 e escrita depois de

ter regressado de Itália, o que entendia ser uma coleção de exóticos, raridades e

preciosidades (Syndram, 2004). Numa Kunstkammer deviam estar representados três

categorias de objetos: 1. Esculturas e pinturas. 2. Espécimes de história natural, nacionais e

exóticos, de todos os ramos da natureza. 3. Objectos da natureza transformados em peças

artísticas, como caixas, taças, jogos.

78

Matias (1557-1619), filho do imperador Maximiliano II e de Maria de Áustria (1528-1603), irmão do imperador Rudolfo II, casou com a arquiduquesa Ana de Áustria-Tirol (1508-1603). Foi rei da Hungria e da Croácia desde 1608, rei da Boémia desde 1611 e, finalmente, imperador do Sacro Império Romano-Germânico a partir de 1612. 79

Bibliografia geral para as Kunstkammer e a corte de Dresden, da qual retiramos os elementos apresentados neste trabalho: Menzhausen (1978a, 1978b, 1985); Arnold et al. (1993); Syndram (2004). 80

A paz era uma solução de compromisso para salvar a unidade do império estilhaçado entre correntes católicas e protestantes. Cada território tinha a sua religião oficial, determinada pelas preferências do soberano. A paz de Augsburgo influenciou uma geração de príncipes, os «príncipes da paz». O Eleitor Augusto da Saxónia foi um dos promotores da paz. 81

O Eleitorado da Saxónia, a Alta Saxónia, era um Estado do Sacro Império Romano-Germânico. A reforma protestante teve grande apoio do Eleitorado da Saxónia. O Eleitor Frederico-o-Sábio fundou a Universidade de Vitemberga em 1502, escola onde em 1508 Lutero ensinou filosofia. No governo do Eleitorado da Saxónia participavam aristocratas e representantes das cidades e das universidades de Lípsia e de Vitemberga.

História das Ciências para o Ensino – Colóquio II

21

As Kunstkammer que se estabelecem no Sacro Império Romano-Germânico vão

seguir estas linhas de orientação objectivadas por Gabriel Kaltemarckt. A Kunstkammer

ideal deve ser um espelho da ordem cósmica do universo criado por Deus. O macrocosmo é

representado pelo microcosmo da Kunstkammer. As peças de naturalia devem ser objetos

dos três ramos da natureza de carácter raro, nobre ou invulgar. Estes produtos da natureza,

representando a diversidade, a maravilha e a fantasia da criação divina, devem despertar a

curiosidade do observador. Assim vemos nas Kunstkammer corais, madrepérola, animais

embalsamados, partes de animais como dentes, chifres, frutos e sementes exóticos e

estranhos, e também pedras preciosas e rochas raras. Estes objetos não tinham utilidade

prática e funcional. Destinavam-se ao prazer contemplativo e entretenimento dos seus

proprietários e convidados.

A Kunstkammmer de Dresden vai ter um conceito ainda mais alargado, abrangendo, e

dando mesmo especial destaque, a instrumentos de música, instrumentos científicos,

instrumentos cirúrgicos, instrumentos de caça e pesca (armas, armadilhas, canas de

pescar), automatismos (com destaque para relógios), máquinas e ferramentas, em particular

para trabalhar a madeira e os metais82. Os instrumentos estavam organizados e dispostos

nas salas, por tipo de profissão. O fundador desta coleção, o Eleitor Augusto, era um

homem com capacidade organizativa e administrativa. Depois de ter assumido o governo da

Saxónia, Augusto dedicou-se à sua Kunstkammer. Adquiriu instrumentos para medir o

tempo e a distância e outros maquinismos e instrumentos avançados para a sua época. O

contacto do Eleitor Augusto com o artífice Leonhard Danner de Nuremberga data de 1554.

Danner era especialista no fabrico de ferramentas e objetos decorativos requintados. O seu

primo, Paul Buchner83, foi nomeado artífice da corte de Dresden em 1558. Aí se manteve

durante décadas, primeiro como chefe dos artífices de ferramentas e, depois, como

construtor militar. Em 1576, Balthasar Kacker, estudante de Danner, entra ao serviço da

corte de Dresden como artífice de ferramentas.

Desde o início do seu governo que o Eleitor Augusto tenta contratar um relojoeiro para

trabalhar na sua Kunstkammer, lugar que seria ocupado por Hans Geber de Innsbruck. Em

1560, Augusto contacta Johann Humelius, professor de matemática e de astronomia na

Universidade de Lípsia com o objectivo de construir bússolas e compassos para serem

usados em levantamentos topográficos e na confecção de mapas, e em 1564, encomenda a

Valentin Thau84, aluno de Humelius, a confecção de odómetros para as carruagens da corte.

Em 1572, o Eleitor Augusto contrata o jovem David Uslaub como camareiro para os

assuntos artísticos e conservador da Kunstkammer régia. O seu contrato, datado de 1572,

estabelece as suas obrigações, das quais constava a elaboração de um inventário dos

espécimes existentes no gabinete, um registo das novas aquisições e da saída de objetos, e

o trabalho de conservação das peças existentes na Kunstkammer. Uslaub trabalhará ao

serviço do Eleitorado da Saxónia durante mais de quatro décadas.

O ano de 1572 marca também uma viragem na organização da Kunstkammer da

Saxónia. A descoberta de rochas decorativas como o alabastro e a serpentina gerou um

interesse pelo uso artístico destes materiais. Augusto contrata vários artistas para

trabalharem no seu gabinete. Cria uma oficina para o trabalho de rochas decorativas,

próxima da Kunstkammer.

82

Cerca de ¾ das peças da coleção eram instrumentos. 83

Paul Buchner (1531-1607) foi um destacado carpinteiro e construtor alemão. Estudou em Londres e Bruxelas. Trabalhou em Dresden a partir de 1558, onde dirigiu a ampliação do sistema de fortificações (Schumann, 2011). 84

Valentin Thau (1531-1575) foi matemático e astrónomo. Estudou e ensinou na Universidade de Lípsia. Inventou odómetros para funcionar em carruagens, mas nenhum destes instrumentos chegou até aos nossos dias (Plassmeyer, 2009, p. 23).

História das Ciências para o Ensino – Colóquio II

22

O Eleitor Augusto conhecia as outras Kunstkammern do Sacro Império Romano-

Germânico, em particular as estabelecidas em Viena e Ambras. Os responsáveis por estas

coleções encontravam-se por ocasião das dietas imperiais e em visitas ocasionais. Em

particular Augusto era próximo de Maximiliano II, seu amigo desde a juventude, e de Alberto

V, duque da Baviera e seu filho Guilherme V. Augusto tratava o arquiduque Ferdinando II do

Tirol como seu «bom amigo». A estes seus contemporâneos o Eleitor Augusto enviava

amostras de prata.

Dentro do Sacro Império Romano-Germânico, o Eleitor Augusto assumia-se como o

líder dos protestantes luteranos, opositor dos calvinistas radicais e mediador diplomático das

disputas no seio do império. Esta liderança levou-o a contactar com os príncipes italianos,

em particular com os duques da Toscânia e de Saboia.

O primeiro inventário da Kunstkammer da Saxónia está datado de 1587 e foi

executado por David Uslaub (Vieregg, 1991), cerca de ano e meio depois da morte do

Eleitor Augusto e já na governação de Cristiano I. Sabemos que o gabinete ocupava sete

salas no andar superior do palácio de Dresden, na ala oeste. O inventário totaliza mais de

nove milhares de objetos, a grande maioria adquiridos por iniciativa do fundador. Uma das

salas era dedicada aos minerais e rochas, madeiras, instrumentos de caça, e impressoras

de tipografia. Numa sala anexa encontrava-se a maioria dos instrumentos para caçar, assim

como mapas, desenhos e pinturas da cidade e representações de animais. Numa outra sala

encontrava-se uma grande coleção de instrumentos médicos e cirúrgicos, reunidos pelo

professor Simoni. Uma sala continha muitos instrumentos de trabalho dos carpinteiros,

horticultores, fabricantes de fechaduras, ourives e fabricantes de armas de fogo, assim

como uma biblioteca. Também se encontravam objetos de alabastro e de serpentina. Anexo

a esta sala existia um gabinete de trabalho do Eleitor Augusto. Continha mapas e

instrumentos para a realização de levantamentos topográficos, assim como instrumentos

para observações astronómicas.

As coleções do Eleitorado da Saxónia foram ampliadas pelos sucessores do Eleitor

Augusto: Cristiano I (reinado 1586-1591), Cristiano II (reinado 1591/1601-1611) e João

Jorge I (reinado 1611-1656). Entre 1723 e 1730, Augusto-o-Forte, Eleitor da Saxónia e Rei

da Polónia (reinado 1694-1733) promoveu uma reorganização das coleções e transformou-

as em acervos museológicos.

O Eleitor Cristiano I85 manteve o carácter tecnológico e mecânico da Kunstkammer

fundada por seu pai. Acrescentou mais ferramentas e máquinas e uma coleção de objetos

artísticos, nomeadamente pinturas. Gabriel Kaldemarck, artista e conselheiro de Cristiano I,

é encarregado da gestão da Kunstkammer régia. Como artista, Kaldemarck está sobretudo

interessado em obras de arte (Vieregg, 1991). Neste sentido, em 1588, Cristiano I compra

16 pinturas de Hans Bol86, artista que admirava. Nos anos seguintes faz mais aquisições

deste mestre e também de Frans Boels87, de Lucas Carnach-o-Jovem, e de Albrecht Dürer.

Todavia, também foram acrescentados espécimes de história natural, como um chifre de

rinoceronte, o esqueleto de um anão, um coco das Seychelles, vasos feitos com ovos de

avestruz.

85

Cristiano I (1560/1586-1591), o único filho sobrevivente de Augusto, era casado com Sofia, filha do Eleitor Johann Georg de Brandenburg. Nikolaus Krell foi o mais próximo conselheiro de Cristiano I tendo sido nomeado chanceler em 1589. Em 1587/1588 a reforma eclesiástica introduz forte influência calvinista na vigente ortodoxia luterana da Saxónia. Esta segunda reforma abrangerá as universidades de Lípsia e de Vitemberga. 86

Hans Bol (1534-1593) foi um pintor flamengo, de estilo maneirista, que se dedicou à paisagem, e a cenas alegóricas e bíblicas, e da vida quotidiana. 87

Frans Boels (ca. 1555-1596) foi um pintor flamengo, tendo-se dedicado sobretudo à pintura de paisagens.

História das Ciências para o Ensino – Colóquio II

23

Cristiano II88 retoma a política de seu pai em relação à Kunstkammer da Saxónia. Em

Maio de 1601, Cristiano II adquire uma série de objetos para o seu gabinete ao comerciante

Veit Böttiger de Lípsia, pela elevada quantia de 932 taleres. Estes objetos incluíam vasos

feitos com madrepérola e cocos. Cristiano II apreciava especialmente os objetos em

madrepérola. Na feira da Páscoa de 1602, realizada em Lípsia, o Eleitor da Saxónia

comprou ao mesmo comerciante peças variadas num valor total de 8.500 taleres89. Este lote

incluía peças de mobiliário, taças e vasos com madrepérola e conchas marinhas

nomeadamente de náutilos, e peças de joalharia do ourives Elias Geyer90 de Lípsia. Durante

a sua segunda visita a Praga, que ocorreu em 1610, Cristiano II comprou um precioso

relógio de mesa com automatismo da autoria do ourives Hans Jacob I Bachmann de

Augsburgo91. Em 1609 Balthasar Zimmermann92 foi nomeado para elaborar um novo

inventário de Kunstkammer de Dresden.

Nos inícios do século XVII a Kunstkammer do Eleitor da Saxónia não era o único

gabinete de preciosidades que existia em Dresden. Sofia de Brandeburgo, mãe de Cristiano

II, tinha a sua própria Kunstkammer. Em Setembro de 1602, Sofia muda-se para a

residência em Burg Colditz, levando o seu gabinete consigo. Em 1612 esta coleção era

também inventariada por David Uslaub e seu filho Kaspar. Também Hedwig, princesa da

Dinamarca que tinha casado com Cristiano II, tinha a sua própria coleção de preciosidades.

João Jorge I foi Eleitor da Saxónia durante 45 anos e influenciou a Kunstkammer

régia. Com o desaparecimento de Rudolfo II, a influência da corte imperial em Dresden

diminuiu. Em Dresden surge uma nova geração de artistas como Hans e Daniel

Kellerthaler93 e Sebastian Walther cujas obras são incorporadas na Kunstkammer régia.

Jacob Zeller94, artífice do marfim95, chega a Dresden em 1610 para substituir Jorge

Wecker96, entretanto de idade avançada. Existiam outros reputados artistas de marfim a

trabalhar em Dresden, nomeadamente Christoph Koller, Ulrich Krell, Egidius Lobenigk97.

88

Com Cristiano II (1583/1591-1611) o calvinismo regride para se retomarem as orientações do luteranismo tradicional. O chanceler Krell é executado em 1601, quando Cristiano II atinge a maioridade e inicia o seu reinado. Todavia, as suas extravagâncias e consumo de álcoois quase levam a Saxónia à bancarrota. A partir de 1600 os conflitos religiosos internos do Sacro Império Romano-Germânico agudizam-se. Depois da Dieta imperial de Ratisbona em 1608 formam-se duas coligações de príncipes, a União Protestante, liderada pelo Palatinado calvinista de Heidelberga e a União Católica liderada pelo duque Maximiliano I da Baviera. O Eleitorado da Saxónia não adere à União Protestante e estabelece acordos pontuais com a União Católica. A autoridade do imperador enfraquece-se. Dresden apoia o imperador Rudolfo II que morre no seu castelo de Praga, em 1612. 89

Um destes objetos terá sido um cofre em madrepérola, teca, prata-dourada, cristal de rocha e veludo, fabricado no Guzarate, por volta de 1600. A peça encontra-se hoje na posse da família real britânica. A peça está descrita e representada no sítio da coleção real britânica em: http://www.royalcollection.org.uk/eGallery/object.asp?collector=QEQM&display=acquired&object=100009&row=5&detail=about 90

Elias Geyer (1572-1634) foi um proeminente ourives alemão. Viveu em Lípsia desde 1572. Tornou-se mestre ourives em 1589. Nos inícios do século XVII foi mestre dos ourives da cidade. Trabalhou como ourives para a corte de Dresden, em particular para o Eleitor Cristiano II (Rückert, 1964; Arnold et al., 1993). 91

Hans Jacob Bachmann (ca. 1574-1651) foi um destacado ourives da família de artistas Bachmann (Arnold et al., 1993). 92

Balthasar Zimmermann (1570-1633/1634) foi um cartógrafo da Saxónia. Realizou o primeiro levantamento fundiário deste Estado. 93

Daniel Kellerthaler, membro de uma destacada família de ourives, foi, na primeira metade do século XVII, um dos mais importantes ourives de Dresden, e o artista preferido do Eleitor João Jorge I e de sua mulher Madalena Sibylle. Artista versátil, trabalhou também como gravador e medalhista (Arnold et al., 1993). 94

Mestre artista, criador de peças de rotação, assim como peças esculpidas em marfim. Destas, destaca-se uma fragata integralmente esculpida em marfim, sustentada por um Neptuno. A embarcação está esculpida rigorosamente à escala, um procedimento pouco vulgar nesta época. 95

As peças trabalhadas em marfim, que ocupavam uma sala no palácio de Dresden, formavam uma coleção de elevado nível. As peças de rotação, como candelabros e taças, muito em voga nas cortes europeias do século XVI, eram fabricadas em máquinas rotativas construídas especialmente para trabalhar o marfim. 96

Jorge Wecker foi o mais importante artista a trabalhar o marfim na corte de Dresden. Em 1578, parte de Munique para Dresden, permanecendo como mestre-torneiro do marfim até 1622. Em 1599, o imperador Rudolfo II indaga junto da corte de Dresden se mestre Wecker poderia deslocar-se a Praga para aí instalar uma oficina de torneiro de marfim. Depois da morte de Wecker, João Jorge I compra a seu filho um conjunto de peças em marfim por elevada quantia. 97

Egidius Lobenigk (1550-1595) foi mestre torneiro da corte de Dresden, entre 1584 e 1591. Algumas das suas obras em marfim encontram-se em museus de Dresden, nomeadamente dois poliedros e uma coluna com relógio e automatismo de música, datados da década de 1580, que podem ser observados no Staatliche Kunstsammlungen de Dresden.

História das Ciências para o Ensino – Colóquio II

24

Também o âmbar, matéria-prima de elevado valor98, era usado para a criação de peças

artísticas99 que eram incorporadas nas coleções da corte de Dresden100. Königsberg101 e

Danzig eram então importantes centros de trabalho do âmbar.

Em 1619, o matemático Lukas Brunn102 é contratado como camareiro para os

assuntos artísticos. Elabora um inventário do gabinete e propõe alterações ao espaço físico.

Na década de 1620 a Kunstkammer é enriquecida com a compra de uma valiosa coleção de

raridades que pertenciam ao arquiteto régio Johann Maria Nosseni, por mais de seis mil

florins. Também o espaço físico foi renovado ao estilo barroco.

4. Outras peças de ourivesaria montadas em cocos das Maldivas atualmente em

museus europeus

A absoluta raridade das nozes de cocos das Seychelles nos séculos XVI e XVII é bem

representada pelo reduzidíssimo número de exemplares que chegaram até os nossos dias.

Encontram-se hoje em coleções de museus da Europa, como a Schatzkammer der

Deutschen Ordens (Viena), Grünes Gewölbe - Staatliche Kunstsammlungen (Dresden), no

Kunsthistorisches Museum (Viena) e na Universidade de Uppsala103.

Além das peças que já fizemos menção, existem algumas outras.

O exemplar de coco das Seychelles montado com metais preciosos que se encontra

hoje no Kunsthistorisches Museum de Viena (ref: KK_6872)104 é uma taça do ourives Anton

Schweinberger105 e do gravador Nikolaus Pfaff106 em 1602 na cidade de Praga. Tem a

assinatura do artista. Tendo sido confeccionada em Praga, terá usado como matéria-prima

um bocado isolado de um coco das Seychelles. A componente metálica (ouro e prata)

invoca motivos marinhos. A taça é suportada por dois tritões, de costas voltados um para o

outro. Na parte superior, observa-se Neptuno montado num cavalo-marinho.

O espécime de coco montado em prata que se encontra hoje no Staatliche

Kunstsammlungen de Dresden (ref: IV 314)107 tem um interesse excepcional dado ser

atribuído a confecção portuguesa, datada da década de 1570. Esta taça terá sido trazida do

oriente por comerciantes portugueses na década de 1570.

No museu da universidade de Uppsala encontra-se uma peça excepcional,

considerada a sua mais valiosa obra – uma estante coroada por um conjunto de objetos

naturais, encontrando-se no topo uma taça baseada num pedaço de uma noz de coco das

Seychelles, ornamentada com prata108. Peça criada por Philipp Hainhofer (1578-1647)109 foi

98

As regiões do Báltico com os maiores depósitos de âmbar eram, desde o século XIII, administradas pelos Cavaleiros da Ordem Teutónica. No século XVI são propriedade dos duques da Prússia, que detêm o monopólio da recolha do âmbar. 99

O âmbar era esculpido ou torneado para se obterem contas de rosário, pequenas embarcações, cabos de cutelaria, candelabros, pendentes e peças de xadrez. As peças em âmbar eram procuradas por todos os colecionadores e patronos de arte. 100

Num inventário das oficinas de torneiro do Eleitorado da Saxónia, datado de 1674, são mencionadas dezenas de peças em âmbar, nomeadamente uma taça que, em 1604, o Conselho de Danzig ofereceu ao príncipe Eleitor. 101

Na primeira metade do século XVII destacava-se nesta cidade a oficina de Jorge Schreiber (Scriba). Deste artífice chegou até nós um jarro em âmbar, com aplicações de ouro, que se encontra no Staatliche Kunstsammlungen de Dresden. De uma outra oficina de Königsberg existe neste museu um armário em âmbar, uma das peças de arte mais famosas do Barroco europeu. Esta peça de mobiliário foi levada para Dresden em 1728, como uma oferta do rei da Prússia Frederico Guilherme I ao Eleitor Augusto-o-Forte. 102

Lucas Brunn (1572-1628) foi professor de matemática em Vitemberga. 103

Sobre a Kunstkammer de Gustavo Adolfo ver o sítio oficial do museu: http://www.khm.at/en/visit/collections/kunstkammer-wien/selected-masterpieces/ 104

Descrição da peça e fotografia no sítio oficial do museu: http://www.khm.at/en/visit/collections/kunstkammer-wien/selected-masterpieces/ 105

Nascido em Augsburgo em 1550 e falecido em Praga em 1603. A. Schwinberger trabalhava na corte de Praga desde 1587. Esta é a única peça da sua autoria que chegou até nós. 106

Nascido em Nuremberga possivelmente em 1556 e falecido em Praga em 1612. Na superfície da noz de coco gravou pares de

divindades marinhas. 107

Descrição da peça e fotografia no sítio oficial do museu: http://skd-online-collection.skd.museum/de/contents/showSearch?id=117976#longDescription 108

É o único móvel deste tipo criado por Hainhofer, em Augsburgo, na primeira metade do século XVII, que chegou até aos

História das Ciências para o Ensino – Colóquio II

25

dada como presente ao rei da Suécia Gustavo II Adolfo (1594-1632, reinado entre 1611 e

1632)110, depois da sua conquista e saque da cidade de Augsburgo111 a 24 de Abril de

1632112. A taça é suportada pelo deus Neptuno. O monarca sueco morreria poucos meses

depois da sua entrada em Augsburgo. Este móvel seria depois da sua morte transportado

para a Suécia. Em 1633 chega ao castelo de Svartsjö em Färingsö, fora da cidade de

Estocolmo. Com o móvel deslocou-se um mestre carpinteiro de Augsburgo que zelou pelo

seu estado de conservação, até à sua morte em 1651. Em 1650 esta peça foi transferida

para o castelo de Uppsala. Em 1694 seria doada à Universidade de Uppsala pelo rei Carlos

XI, onde ainda hoje permanece. O conjunto de objetos naturais que se encontram no topo

da estante contém conchas, corais, minerais e cristais, além de um coco das Seychelles.

Em síntese, existem pelo menos dois exemplares atribuídos a artífices portugueses ou

goeses e outros dois de artistas germânicos. As peças realizadas na Alemanha utilizaram

frutos isolados, revelando que estes espécimes chegavam à Europa.

Todas as peças que hoje existem são recipientes para líquidos, geralmente em forma

de taças alongadas. Qual a razão para tão constante tipologia nestas peças de ourivesaria

feitas com cocos das Maldivas? Uma explicação muito provável encontra-se no trabalho

clássico de Sonnerat já citado. Sonnerat refere, incrédulo, as propriedades medicinais deste

coco indicando uma interessante prática que dos «grandes senhores do Indostão»: «ainda

compram este fruto a altos preços; fazem do coco taças, que enriquecem com ouro e

diamantes; só bebem por estas taças, persuadidos que o veneno, que muito temem, porque

eles próprios muito usam, não os prejudicará, por mais activo que seja, quando a sua bebida

for derramada e purificada nestas taças salutares» (Sonnerat, 1776, pp. 5-6).

Aparentemente estas crenças duraram muito tempo.

5. A importância dos Colóquios no contexto do ensino da história da Botânica

Obra-prima da cultura renascentista portuguesa e europeia, fonte inesgotável para o

conhecimento da Botânica do século XVI, os Colóquios são uma peça obrigatória no ensino

da história da Botânica e um texto que nos convida a investigações múltiplas e em variados

sentidos113.

Tradição e inovação, passado e presente, são dois dos vectores dos Colóquios de

Orta. Humanista renascentista, Orta respeita os tratadistas da Antiguidade - Teofrasto,

Plínio, Dioscorides, os mestres árabes, mas denuncia os erros evidentes que estes mestres

tinham cometido.

Com a descoberta da imprensa em meados do século XV a difusão dos

conhecimentos acelera-se e multiplica-se. A expansão portuguesa e espanhola trazem à

Europa um apreciável número de plantas novas. Nas primeiras décadas do século XVI as

obras impressas de Botânica ampliam-se a um ritmo acelerado, de forma a incorporar as

nossos dias. O móvel tem 240 cm de altura e 120 cm de largura e tem muitas aplicações de marfim. Tem muitas gavetas e compartimentos onde se guardavam objetos raros e de história natural. Descrição da peça e fotografia no sítio oficial do museu: http://www.konstsamlingarna.uu.se/utstallningar/augsburgska-konstskapet 109

Colecionador, negociante de arte, comerciante de seda, e diplomata, Phillip Hainhofer (1578-1647) foi o criador de estantes para Kunstkammer na cidade de Augsburgo, na primeira metade do século XVII. A sua família tinha sido nobilitada por Rudolfo II. Hainhofer estuda em Itália, Colónia e Holanda, aprendendo línguas e adquirindo uma formação humanista. Interessa-se em particular pelo direito e pela teologia. Tinha a sua própria Kunstkammer, organizada a partir de 1604, que também desempenhava um papel nas suas actividades comerciais. Tinha contactos privilegiados com os Fugger. 110

O monarca tinha apreço pela cultura e pela ciência. Em 1620 concede terra e fundos para a expansão da universidade de Uppsala. 111

A cidade de Augsburgo no sul da Alemanha era uma das mais prósperas, com artífices de elevado nível. 112

No contexto da Guerra dos Trinta Anos, a Suécia entrou em guerra com a Alemanha em Junho de 1630 com o objectivo de proteger os protestantes alemães (na cidade de Augsburgo existia uma comunidade protestante e outra católica), de reforçar a sua posição no Báltico e o prestígio da sua monarquia. 113

Como por exemplo os estudos contidos na revista Garcia de Orta publicada em 1963 (volume 11, fascículo 4), uma edição comemorativa do quarto centenário da publicação dos Colóquios.

História das Ciências para o Ensino – Colóquio II

26

novas plantas e os novos conhecimentos botânicos. Garcia de Orta participará nesta

explosão de novos conhecimentos botânicos, descrevendo nos seus Colóquios muitas

plantas totalmente desconhecidas dos europeus.

De que forma adquire Orta os seus conhecimentos botânicos? Que tipo de

informações sobre as plantas mais lhe interessa? Os que são as plantas para Orta? Qual o

papel dos Colóquios no conhecimento das plantas do Índico na Europa do século XVI e

XVII?

Estas são algumas questões que o estudo da história da Botânica deve abordar. Os

Colóquios são uma peça bibliográfica fundamental em qualquer curso de história da

Botânica, ao lado de outros obras-chave da Botânica do Renascimento.

6. Conclusões

Uma análise de obras importantes publicadas em inícios de Seiscentos,

nomeadamente os tratados de Clúsio, Angerius Clutius e de John Parkinson, dos inventários

dos gabinetes de raridades (Kunstkammer) das cortes do Sacro Império Romano-

Germânico, e de documentos portugueses do século XVI, permitiu concluir que, em finais do

século XVI e inícios do seguinte, cocos das Maldivas (inteiros ou fragmentos, isolados ou já

montados em peças de ourivesaria) circulavam numa teia de contactos e intermediários

cujos pontos principais incluíam Goa, Lisboa, Londres e Amesterdão, a corte de Lisboa e as

grandes cortes europeias, em particular a dos Habsburgo.

A absoluta raridade destes frutos na Europa e a sua carga simbólica, considerados

como sendo dotados de poderosas propriedades antiveneno e formados dentro do mar

oceano, terá levado a que fossem dos objetos de história natural então mais cobiçados,

sendo frequentemente transformados em peças de ourivesaria sob a forma de taças para

beber.

7. Agradecimentos

Uma palavra de agradecimento ao Dr. J. M. S. Martins e à Dra. Florbela Veiga Frade

pelas informações, sugestões e críticas às matérias versadas no presente trabalho.

8. Referências bibliográficas

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30

BENJAMIN BLOOM E OS DOMÍNIOS DA APRENDIZAGEM

BENJAMIN BLOOM AND THE LEARNING DOMAINS

Paula Nogueira Faustino1, Celeste Romualdo Gomes2 & Isabel Abrantes3

Resumo

Benjamin S. Bloom (1913-1999), doutorado em Educação pela Universidade de Chicago, em 1942, e

figura de relevo na História da Educação, desenvolveu investigação relacionada com a classificação

dos objetivos educacionais e as teorias da aprendizagem. Os seus trabalhos ainda hoje têm impacto

nas políticas e práticas educativas em vários países do mundo e um dos mais importantes,

desenvolvido na Universidade de Chicago, resultou na publicação do livro “Taxonomy of educational

objectives: The classification of educational goals. Handbook 1: Cognitive domain”. Este estudo foi

centrado na operacionalização dos objetivos de aprendizagem, organizados de acordo com o seu

nível de complexidade cognitiva, tendo dado origem a um procedimento adequado à avaliação dos

alunos e dos resultados das práticas educativas. Nesta taxonomia, os objetivos de aprendizagem

foram definidos em seis níveis de compreensão conceptual, de acordo com as operações intelectuais

a realizar em cada nível. Esta taxonomia foi revista posteriormente, tendo sido consideradas algumas

mudanças sobretudo na terminologia e estrutura. O objetivo principal deste estudo foi analisar os

contributos de Bloom e colaboradores relativamente aos domínios da aprendizagem e algumas das

aplicações no ensino e aprendizagem das Ciências.

Palavras-chave: Aprendizagem; Bloom; Ensino; Taxonomia.

Abstract

Benjamin S. Bloom (1913-1999), a relevant figure in the history of Education, got a Ph.D. in Education,

from the University of Chicago in 1942, and developed research on the classification of the

educational objectives and learning theories. His work still have an impact on educational policy and

practices in many countries and one of the most important, developed at the University of Chicago,

resulted in the publication of the book "Taxonomy of educational objectives: The classification of

educational goals. Handbook 1: Cognitive domain ". This study was focused on the operationalization

of learning goals, organized according to their level of cognitive complexity, giving rise to new forms of

student assessment and of the educational practices results. In this taxonomy, the learning objectives

were defined in six levels of conceptual understanding, according to the intellectual operations to be

undertaken at each level. Later, this taxonomy was revised and some changes were made especially

in the terminology and structure. The main objective of this study was to analyze the contributions of

Bloom and collaborators related to the learning domains and some of the applications on teaching and

learning Science.

Keywords: Bloom; Learning; Teaching; Taxonomy.

1. Introdução

Benjamin Bloom (1913-1999), uma das figuras de relevo na História das Ciências da

Educação, obteve os graus de bacharel e mestrado na “Pennsylvania State University”, em

1935, e de doutoramento em Educação na “University of Chicago”, em 1942. Entre 1943 e

1959 exerceu as funções de examinador na “University of Chicago”, tendo iniciado a sua

atividade docente, em 1944, no “Department of Education” da mesma universidade.

Destaca-se o curso “Education as a Field of Study”, em que os objetivos principais eram

1 Departamento de Ciências da Terra da Universidade de Coimbra. 2 CITEUC; Departamento de Ciências da Terra da Universidade de Coimbra.

3 IMAR-CMA; Departamento de Ciências da Vida da Universidade de Coimbra.

História das Ciências para o Ensino – Colóquio II

31

compreender os tipos de perguntas que podiam ser feitas em educação e investigar os

vários tipos de respostas que poderiam ser dadas a essas perguntas. O método consistia na

análise conceptual de um conceito complexo e na introdução às formas de pesquisa que

poderiam resultar num projeto de investigação (Eisner, 2000; Guskey, 2001). A sua atividade

científica centrou-se no estudo da operacionalização dos objetivos educionais e muitas das

suas contribuições estão publicadas em livros (Tabela I). Segundo Eisner (2000, p. 2), um

dos seus discípulos, “One of Bloom's great talents was having a nose for what is significant".

O objetivo principal deste estudo foi analisar os contributos de Bloom e colaboradores

relativamente aos domínios da aprendizagem e algumas das aplicações no ensino e

aprendizagem das Ciências.

2. Taxonomia de Bloom

Uma dos trabalhos mais importantes de Bloom, em co-autoria, foi o livro “Taxonomy of

educational objectives: The classification of educational goals. Handbook 1: Cognitive

domain” (Tabela I), geralmente, referido como taxonomia de Bloom. Esta taxonomia é

conhecida como a taxonomia dos objetivos da aprendizagem e tem sido usada em vários

países do mundo para o desenvolvimento de instrumentos de avaliação (Eisner, 2000). Além

disso, tem ainda sido utilizada para analisar a congruência entre os programas, metas e

objetivos curriculares e para aferir a relação entre os processos de ensino e avaliação (Allen

& Tanner, 2002).

A taxonomia de Bloom compreende os domínios cognitivo, psicomotor e afetivo,

também conhecido como conhecimentos, capacidades e atitudes, em que apenas o primeiro

domínio foi organizado em seis categorias de acordo com o nível de complexidade (PicKard,

2007; Bloom et al., 1956). O domínio afetivo, publicado oito anos mais tarde, compreende

cinco categorias (Krathwohl et al., 1964 - Tabela 1) e a seguir surgem algumas propostas de

classificação para os objetivos educacionais do domínio psicomotor (e.g. Dave, 1970;

Harrow, 1972; Simpson, 1972; Krathwohl, 1994; Dawson, 1998).

Tabela 1 – Livros publicados por Bloom e colaboradores

Autor(es) Ano Título Cidade: Editora

Axelrod, J., Bloom,

B. S., Ginsburg, B.

E., O’Meara, W., &

Williams, J. C. Jr.

1949 Teaching by discussion in the

college program.

Chicago, Illinois: University of

Chicago Press.

Bloom, B. S., &

Broder, L. J.

1950 Problem-solving processes of

college students: An

exploratory investigation.

Chicago, Illinois: University of

Chicago Press.

Stern, G. G., Stein,

M. I., & Bloom B. S.

1956 Methods in personality

assessment.

Glencoe, Illinois: The Free

Press.

Bloom, B. S.,

Englehart, M. D.,

Furst, E. J., Hill, W.

H., & Krathwohl, D.

R.

1956 Taxonomy of educational

objectives, the classification

of educational goals,

Handbook 1: Cognitive

domain.

New York: Longman.

Bloom B. S. 1958 Evaluation in secondary

schools.

New Delhi, India: All India

Council for Secondary

Education.

Bloom, B. S. 1961 Evaluation in higher New Delhi, India: University

História das Ciências para o Ensino – Colóquio II

32

Autor(es) Ano Título Cidade: Editora

education Grants Commission

Bloom, B. S., &

Peters, F.

1961 Use of academic prediction

scales for counselling and

selecting college entrants.

Glencoe, Illinois: The Free

Press.

Bloom, B. S. 1964 Stability and change in

human characteristics.

New York: John Wiley &

Sons.

Krathwohl, D. R.,

Bloom, B. S., &

Masia, B.

1964 Taxonomy of educational

objectives: the classification

of educational goals,

Handbook 2: the affective

domain.

New York: Longman.

Bloom, B. S., Davis,

A., & Hess, l R.

1965 Compensatory education for

cultural deprivation.

New York: Holt, Rinehart &

Winston.

Husén, T., & Bloom,

B. S.

1966 International study of

achievement in mathematics:

a comparison of twelve

countries. Vols I & II.

New York: John Wiley &

Sons.

Bloom, B. S.,

Hastings, J. T., &

Madaus, G. F.

1971 Handbook on formative and

summative evaluation of

student learning.

New York: McGraw-Hill.

Bloom, B. S. 1976 Human characteristics and

school learning.

New York: McGraw-Hill.

Bloom, B. S. with

MESA Student

Group

1980 The state of research on

selected alterable variables in

education.

Chicago, Illinois: University of

Chicago Press.

Measurement, Evaluation,

and Statistical Analysis

(MESA) Publication.

Bloom, B. S. 1980 All our children learning: a

primer for parents, teachers,

and other educators.

New York: McGraw-Hill.

Bloom, B, S.,

Madaus G. F., &

Hastings, J. T.

1981 Evaluation to improve

learning.

New York: McGraw-Hill.

Bloom, B. S. 1985 Developing talent in young

people.

New York: Ballantine.

Kellaghan, T.,

Sloane, K., Alvarez,

B., & Bloom, B. S.

1993 The home environment and

social learning.

San Francisco, CA: Jossey-

Bass.

3. Domínio cognitivo

A taxonomia de Bloom original consiste numa hierarquia cumulativa de categorias,

para expressar qualitativamente os diferentes tipos de capacidades e habilidades (Pickard,

2007), ordenadas da mais simples para a mais complexa e do concreto para o abstrato:

Conhecimento; Compreensão; Aplicação; Análise; Síntese e Avaliação (Krathwohl, 2002).

Ao longo do tempo, foram feitas várias revisões mas apenas a revisão feita por Lorin

Anderson e David Krathwohl, em 2001, conhecida como Taxonomia de Bloom revista, tem

sido reconhecida pela comunidade científica. Nesta revisão foram consideradas algumas

mudanças sobretudo na terminologia e estrutura (Forehand, 2005).

No que diz respeito à terminologia, os nomes das categorias foram substituídos por

História das Ciências para o Ensino – Colóquio II

33

formas verbais, a categoria conhecimento por recordar, a compreensão por perceber e a

síntese por criar.

Quanto à estrutura, a taxonomia original compreende uma dimensão enquanto a

taxonomia revista passou a ter duas dimensões, a dimensão do conhecimento e a dimensão

do processo cognitivo. A primeira dimensão compreende quatro categorias principais:

conhecimento factual; conhecimento conceptual; conhecimento procedimental; e

conhecimento metacognitivo. A segunda dimensão contém as categorias Recordar,

Perceber, Aplicar, Analisar, Avaliar e Criar, sendo a categoria Recordar a mais simples e a

categoria Criar a mais complexa. Com base nesta revisão foi construída a Tabela da

Taxonomia, com a dimensão do conhecimento no eixo vertical da Tabela e a dimensão do

processo cognitivo no eixo horizontal, que pode ser utilizada para classificar objetivos e

atividades e no processo de avaliação (Krathwohl, 2002; Forehand, 2005).

4. Domínios afetivo e psicomotor

A taxonomia de Bloom divide o domínio afetivo em cinco categorias: Receber,

Responder. Valorizar, Organizar e Caracterizar por valores (Krathwohl et al., 1964 - Tabela

1). Em 2010, Allen & Friedman propõem um modelo alternativo “Neuman’s Taxonomy of

affective learning”, desenvolvido por Neuman, com as categorias Identificação, Clarificação,

Exploração, Modificação e Caracterização.

Relativamente ao domínio psicomotor, uma das classificações mais simples com cinco

categorias foi proposta por Dave (1970): Imitação; Manipulação; Precisão; Articulação e

Execução.

5. Outras contribuições de Bloom

Das várias contribuições de Bloom (Tabela 1) salientam-se os trabalhos: 1) “Problem-

solving processes of college students: An exploratory investigation”, em 1950, sobre a

importância que atribuiu ao desenvolvimento do pensamento, ao nível metacognitivo,

através de estratégias de “Think aloud”, os alunos tinham de pensar enquanto os

professores estavam a lecionar, reconhecendo a importância das suas vivências e

experiências durante o processo de aprendizagem; 2) “Stability and change in human

characteristics”, em 1964, sobre a importância das experiências precoces enquanto factores

promotores do desenvolvimento intelectual; e 3) “Developing talent in young people”, em

1985, sobre a influência do ambiente de aprendizagem no desempenho dos alunos.

Dada a relevância dos seus trabalhos na área das ciências da educação, Bloom, em

1965, foi eleito Presidente da Associação Americana de Investigação Educacional, tendo

assumido um papel relevante na fundação da Associação Internacional de Avaliação dos

Resultados Educacionais e na organização de um seminário internacional na área do

desenvolvimento curricular na Suécia, em 1971 (Eisner, 2000).

6. Aplicações da taxonomia de Bloom no ensino das Ciências

Os trabalhos de Bloom continuam a ter impacto nos processos de avaliação e

conceptualização de problemas, em áreas do ensino das Ciências da Terra e das Ciências

da Vida, com a finalidade de classificar objetivos, experiências, competências de

compreensão e perguntas. Os contributos do autor são considerados amplos e promissores,

dado que no âmbito das taxonomias surgiram revisões dos trabalhos originais e estudos em

contexto do ensino superior que são contributos importantes na área da classificação e

construção de perguntas de exames e de atividades práticas em ciências (Allen & Tanner,

2002; Amer, 2006; Crowe et al., 2008; Lord & Baviskar, 2007; William et al., 2011;

Munzenmaier & Rubin, 2013). Estes investigadores também defendem a melhoria dos

História das Ciências para o Ensino – Colóquio II

34

processos de ensino e aprendizagem, numa perspetiva da promoção de capacidades

cognitivas elevadas nos alunos, ao nível do pensamento crítico e criativo. Os alunos podem

aprender, explicitamente, a colocar perguntas com algum grau de sucesso, dado que os

professores podem delinear tarefas que implicam o formular de perguntas. Durante este

processo de aprendizagem, os alunos podem desenvolver a capacidade de raciocínio

hipotético-dedutivo, sendo possível elaborarem perguntas, de nível cognitivo

progressivamente mais elevado, a partir de tópicos do seu interesse (Chin & Osborne,

2008). As perguntas, como estratégias importantes no ensino, podem ser utilizadas, como

suporte de aprendizagem, na elaboração e justificação de ideias e argumentos (Van de Pol

et al., 2010).

Num trabalho de avaliação de perguntas sobre o tema Terra em transformação em oito

manuais (quatro de 2012 e quatro anteriores a 2102) de Ciências Naturais do 7º ano de

escolaridade, baseado nas seis categorias da dimensão do processo cognitivo (Recordar,

Perceber, Aplicar, Analisar, Avaliar e Criar), verificou-se que nos manuais de 2012 e em dois

anteriores a 2012 a maioria das perguntas são de nível cognitivo elevado (categorias Avaliar

e Analisar) e apenas um manual anterior a 2012 apresentava perguntas na categoria Criar.

Em todos os manuais, o número total de perguntas no nível cognitivo baixo foi maior na

categoria Compreender, seguido pelas categorias Recordar e Aplicar (Faustino et al., 2014).

Resultados semelhantes foram obtidos por Lord & Baviskar (2007) num estudo de

perguntas de exames, com 80% das questões situadas nas categorias Compreender e

Recordar e por Wood (2009) na análise de quinhentos exames de Biologia no ensino

superior, em que a maioria das perguntas era de nível cognitivo baixo das categorias

Recordar e Compreender.

A taxonomia de Bloom revista, enquanto estratégia de ensino, apresenta algumas

vantagens pelo facto de ter um formato padrão bem definido, facilitador da comunicação dos

objetivos de aprendizagem e que permite identificar os processos cognitivos e resultados

esperados, podendo ter um vasto campo de aplicações no ensino e aprendizagem (Pickard,

2007).

7 – Considerações finais

Neste estudo evidencia-se a utilidade e versatilidade da taxonomia de Bloom nos

processos de ensino e aprendizagem, através de estudos que elaborou em diversas áreas

das ciências cognitivas e da educação. Nas primeiras décadas do percurso académico,

Bloom dedicou-se ao estudo de processos de avaliação, classificação, definição curricular e

resolução de problemas e, mais tarde, ao desenvolvimento humano e afetivo. Contudo, a

maior finalidade da investigação de Bloom, na área da educação, foi a de colaborar com os

professores que necessitavam de classificar os objetivos, experiências, competências de

compreensão e perguntas de avaliação contínua e em situação de exames. O pensamento

de Benjamin Bloom é considerado muito importante e as suas obras têm sido amplamente

divulgadas e aplicadas em diversas áreas das ciências da educação e do ensino das

ciências. Existem diversos estudos e revisões da aplicação da taxonomia de Bloom com

impactos no ensino e aprendizagem e na avaliação, tendo por finalidade principal a melhoria

da aprendizagem dos alunos.

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HISTÓRIA DA CIÊNCIA NOS MANUAIS ESCOLARES DE BG 10º

ANO: O PALEOMAGNETISMO NO ESTUDO DOS MÉTODOS

INDIRETOS DA GEOSFERA

HISTORY OF SCIENCE IN TEXTBOOKS OF THE 10TH BG FORM: THE

PALEOMAGNETISM IN THE STUDY OF INDIRECT METHODS OF

GEOSPHERE

Gina Pereira Correia1 & Celeste Romualdo Gomes1

Resumo

Está comprovada a importância do recurso a episódios da História da Ciência (HC) no processo de

ensino e aprendizagem das Ciências da Terra e da Vida, bem como a sua inclusão nos compêndios

escolares. Um marco importante da HC do século XX foi os dados obtidos a partir das determinações

paleomagnéticas na crusta oceânica. Na disciplina de Biologia e Geologia (BG) do 10º ano do curso

de Científico-humanísticos, a lecionação dos métodos indiretos para o estudo da Geosfera potencia a

abordagem de conceitos no âmbito do Paleomagnetismo. Neste contexto, para este estudo, que se

inclui num projeto mais abrangente, formulou-se a seguinte questão de investigação: os manuais

escolares manifestam no seu conteúdo a importância da HC? Para dar resposta a esta questão

definiram-se os seguintes objetivos específicos e com os quais se pretendem avaliar: a) os exemplos

de HC incluídos no subcapítulo selecionado nos manuais escolares de BG do 10° ano; b) a

importância atribuída aos protagonistas da HC no subcapítulo da disciplina e ano escolar em estudo;

c) a forma como é apresentada a informação histórica no subcapítulo em análise. Para o

desenvolvimento deste estudo recorreu-se a uma metodologia de análise qualitativa para a qual foi

adaptada, de Leite (2002), uma grelha de análise de conteúdo com duas categorias Tipo e

organização da informação histórica e Material usado para apresentar a informação histórica. A

amostra incluiu todos os manuais escolares (n=5) disponíveis no mercado nacional para a disciplina

de BG do 10.º Ano, no ano letivo de 2011/2012, e a análise incidiu sobre o conteúdo programático

“Métodos para o estudo do interior da geosfera” (os Métodos indiretos) que faz parte do “Tema III –

Compreender a estrutura e a dinâmica da geosfera”. Os manuais escolares de BG do 10.º ano de

escolaridade, e para o conteúdo em apreço, apresentam uma reduzida quantidade de referências

sobre o percurso histórico responsável pela evolução da ciência e do conhecimento científico.

Particularmente é notória a diminuta inclusão de referências sobre os seus protagonistas e o recurso

a informação oriunda de fontes primárias. Embora a presença de episódios da HC seja uma

metodologia amplamente enfatizada pelos programas disciplinares e fundamental para desenvolver o

conhecimento numa vertente CTSA, a análise qualitativa dos manuais do 10.º ano, e para a temática

selecionada, permite-nos concluir que não é dada relevância à inclusão deste tipo de informação.

Consideramos que a o cumprimento das orientações programáticas poderiam vir a tornar mais

apelativa a explanação dos conceitos e, como tal, facilitar a sua aquisição por parte dos alunos. Palavras-chave: História da Ciência; Manuais escolares; Paleomagnetismo.

Abstract

It is proved the importance of using the episodes of the History of Science (HC) in the process of

teaching and learning of Earth and Life Sciences process, as well as their inclusion in textbooks. An

important issue in the HC of the 20th century was the data obtained from the palaeomagnetic

determinations in the oceanic crust. In the Biology and Geology (BG) of the 10th form of the course of

Scientific-humanistic, the teaching of the indirect methods for the study of Geosphere approach

leverages concepts under Paleomagnetism. In this context, for this study, which includes a broader

1 CITEUC, Departamento de Ciências da Terra, Universidade de Coimbra

História das Ciências para o Ensino – Colóquio II

38

project it was formulated the following research question: do the textbooks show in its content the

importance of HC? To answer this question we defined the following specific objectives and with which

we intend to make an evaluation: a) the examples of HC included in subchapter selected in textbooks

of the 10th BG form; b) the importance attached to the protagonists of HC in subchapter subject and

school year study; c) how historical information is presented in subchapter to be analysed. To develop

this study we used a methodology of qualitative analysis for which it was adapted, Leite (2002), a grid

of content analysis with two categories Type and organization of historical information and Material

used to present historical information. The sample included all textbooks (n = 5) available on the

national market for the subject of BG's 10 th

form in school year 2011/2012 and the analysis focused

on the curriculum "Methods for the study of the interior geosphere "(indirect methods) which is part of

the" Theme III - Understanding the structure and dynamics of the geosphere". The textbooks of the

10th BG grade, and to the content mentioned, have a reduced amount of references on the historical

path responsible for the evolution of science and scientific knowledge. Particularly remarkable is the

inclusion of tiny references about their protagonists and the use of information from a primary source.

Although the presence of episodes of HC is a methodology widely emphasized by school programs

and fundamental knowledge to develop a shed CTSA, the qualitative analysis of the manuals and the

10th form for the selected thematic programs, allow us to conclude that it is not given enough

importance to the inclusion of such information. We believe that compliance with the program

guidelines could be Turner in a more appealing explanation of the concepts and, as a consequence, it

facilitates its acquisition by students.

Keywords: History of Science; Textbook; Paleomagnetism.

1. Introdução

O ensino formal em Portugal rege-se por padrões definidos em normativos

ministeriais, entre os quais sobressaem as orientações curriculares, elaboradas para as

diversas disciplinas e anos escolares. Estas orientações para o ensino das Geociências,

ensino regular básico (Galvão et al., 2001) e secundário (Silva et al., 2001; Amador & Silva,

2004), têm vindo a apelar para o recurso a estratégias de ensino baseadas em exemplos e

relatos de episódios da História da Ciência (HC). De entre os recursos pedagógicos

disponíveis para a aplicação dessas orientações figura, com especial destaque, o manual

escolar, uma vez que tem uma utilização tão generalizada que o transforma num dos

elementos mais utilizados no processo de ensino e aprendizagem. Professores e alunos

reconhecem o seu valor e raramente dispensam a sua utilização. O estudo do

Paleomagnetismo (e.g. Butler, 1992; Gomes, 1996; Tauxe, 2005; Lanza & Meloni, 2006) –

estudo do campo geomagnético passado - permite-nos obter informações sobre o seu

comportamento, bem como inferir sobre a influência exercida em alguns acontecimentos da

história da Terra. Para além disso e ainda mais importante, foi o contributo que a leitura dos

dados obtidos a partir de determinações nas rochas dos fundos oceânicos deu para

confirmar a organização da superfície terrestre em placas litosféricas em movimento, o que,

obviamente, coloca os estudos paleomagnéticos como um importante marco na HC na

segunda metade do séc. XX.

1.1. História da Ciência nos manuais de ensino das Geociências

De um modo geral, é consensual, entre a maioria dos investigadores, a importância

que tem a HC num contexto de aprendizagem de uma determinada ciência (Pereira e

Amador, 2007) e, como tal, a sua inclusão no momento da elaboração dos manuais

escolares. Ao longo das últimas décadas, investigadores do domínio da educação em

ciências têm vindo a realçar o seu interesse no ensino da ciência (e.g. Hodson 1985, 1988;

Shortland & Warwick, 1989; Jenkins, 1989; Matthews, 1991, 1994; Gil-Pérez & Carrascosa,

História das Ciências para o Ensino – Colóquio II

39

1992; Duschl, 1994; Monk & Osborne, 1997; Hurd, 1998). Em concordância, Silva (2001:

177) afirma que:

“O recurso à História da Ciência é um meio a ter em consideração dada a sua

adequação para a promoção do desenvolvimento, por exemplo, das dimensões

‘conteúdo’ e ’meta-científica’ da Educação em Ciências.”

Por seu lado, os opositores, na voz dos professores, defendem que esses episódios

históricos podem desviar a atenção dos alunos dos conteúdos “importantes” ou, ainda, que

sejam potenciadores de “posições céticas” que relativizem o conhecimento científico; os

opositores historiadores defendem a sua posição, com as lacunas e reinterpretações

incorretas e abusivas no uso pedagógico de episódios da HC, resultantes, em muitos casos,

do desconhecimento inocente dos professores e/ou dos autores dos manuais escolares,

enquanto, noutros casos, se afiguram enganos deliberados e conscientemente usados para

“veicularem mensagens ideológicas” (Pereira e Amador, 2007, p. 192,193).

Também Correia (2003) afirma que muitos professores são detentores de uma

formação parca em HC. Neste campo importa salientar o quão relevante é a formação,

inicial e contínua, como alicerce para a existência de professores bem informados e

esclarecidos (Santos, 2003) para que, quer como docentes, quer como autores de manuais

escolares (a maioria dos autores de manuais escolares são docentes do ensino básico e

secundário em parceria, e /ou colaboração, com docentes do ensino superior), possam

veicular uma informação conhecedora e correta sobre a HC. Isto é tanto mais importante, na

medida em que, e de acordo com Leite (2002a), o efeito do seu uso depende

essencialmente de que episódios da HC são selecionados e de que modo são lecionados.

Duschl (1997) vai mais longe e assinala falhas nos manuais escolares, na prática letiva, que,

na sua opinião, se continua a processar tendo em conta a comprovação do conhecimento

sem destacar o caminho até ele percorrido:

“A questão de como se chegou a esse conhecimento não se considera na

maioria dos manuais escolares e currículos de ciências; os professores de ciências e

os manuais escolares continuam a enfatizar o contexto de justificação não valorizando

ou mesmo ignorando o contexto de descoberta das teorias científicas”. (1997, p. 26).

Em Portugal, as orientações curriculares/programas das disciplinas para o ensino das

Geociências, parecem contrariar as acusações de Duschl (1997), uma vez que têm vindo a

apelar para o recurso a estratégias de ensino baseadas em exemplos e relatos de episódios

da HC:

“(…) propõe-se a análise e debate de relatos de descobertas científicas, nos

quais se evidenciem êxitos e fracassos, persistência e modos de trabalho de

diferentes cientistas, influências da sociedade sobre a Ciência, possibilitando ao aluno

confrontar, por um lado, as explicações científicas com as do senso comum, por outro,

a ciência, a arte e a religião.” (Galvão et al., 2001, p. 6)

“(…) atribuir um especial destaque à História da Ciência, em particular no

suporte de estratégias de ensino baseadas em exemplos históricos. O conhecimento

de antigas formas de pensar, obstaculizadoras, em determinados momentos, do

desenvolvimento científico, associado à compreensão e valorização de episódios

históricos que traduzem uma mudança conceptual, ajuda a identificar não só os

conceitos estruturantes como pode, igualmente, ser uma ferramenta importante na sua

História das Ciências para o Ensino – Colóquio II

40

superação;” (Silva et al., 2001, p. 12; Amador & Silva, 2004, p. 9).

Contudo, e de acordo com Leite (2002b), esta indicação sobre os conteúdos históricos

não se tem feito sentir nos manuais de ciências. Na sua opinião, provavelmente porque os

autores de manuais escolares portugueses não reconhecem a importância da necessidade

da HC no ensino das ciências e, consequentemente, da sua inclusão nos próprios manuais.

Concordamos com esta opinião, pois se a maioria das orientações curriculares são

consideradas nos manuais escolares, só o desconhecimento da importância desta dimensão

no ensino das ciências, por parte dos autores de manuais, poderá justificar a ausência da

sua inclusão. No entanto, a falta de sensibilização dos criadores de manuais escolares não é

um problema exclusivo do nosso país. É uma dificuldade que se verifica também noutros

países e que, de acordo com Brush (2000), ainda há “a long way to go to persuade the

textbook authors to pay attention to research in the History of Science” (2000, p. 54).

Estudos no âmbito da HC em manuais escolares têm mostrado que em algumas

situações: a) há distorção ou mesmo esquecimento na referência de aspetos históricos

(Eichman, 1996; Brush, 2000; Níaz, 2000; Muñoz Bello & Bertomeu Sánchez, 2003); b) há

omissão do papel da comunidade científica no processo de construção da ciência (Eichman,

1996; Leite, 2002b); c) as controvérsias científicas são ignoradas (Campos, 1996; Níaz,

2000).

Os conceitos da HC deveriam permitir aos alunos uma ideia correta sobre a natureza

da ciência, o modo como esta se desenvolveu e desenvolve e a forma como os cientistas

trabalham. Regista-se uma outra lacuna que se prende com a avaliação aos estudantes, na

medida em que, nas orientações curriculares, não é feita nenhuma menção no que diz

respeito à avaliação dos seus conhecimentos sobre a natureza ou HC (Leite, 2002b). Assim,

parece faltar uma clara responsabilização dos autores de programas curriculares, uma

coordenação entre a elaboração dos programas escolares e a consecutiva avaliação a que

os alunos devem ser sujeitos em função das competências/objetivos que deverão atingir.

1.2. Os manuais escolares no processo de ensino e aprendizagem

A legislação portuguesa define manual escolar como:

“(…) recurso didáctico-pedagógico relevante, ainda que não exclusivo, do

processo de ensino e aprendizagem, (…) de apoio ao trabalho autónomo do aluno que

visa contribuir para o desenvolvimento das competências e das aprendizagens

definidas no currículo nacional para o ensino básico e (…) secundário, apresentando

informação correspondente aos conteúdos nucleares dos programas em vigor, bem

como propostas de atividades didáticas e de avaliação das aprendizagens, podendo

incluir orientações de trabalho para o professor “ (Lei n.º47/2006, de 28 de agosto,

Art.3.º, alínea b).

Para Magalhães (2006, p. 6), o manual escolar é um “Meio didático e símbolo do

campo pedagógico” e ainda uma combinação de “saber/conhecimento/(in)formação”,

corroborando a importância que este recurso apresenta no contexto escolar. Assim,

assumindo um papel fundamental na Educação em Geociências, na qual se incluem a

dimensão ética e atitudinal, os manuais escolares carregam consigo uma grande

responsabilidade nos processos de ensino e aprendizagem. Conjuntamente com os

professores e alunos, os manuais constituem um trinómio único em que assenta a estrutura

e orgânica daqueles processos.

História das Ciências para o Ensino – Colóquio II

41

Assentes em pressupostos e princípios concordantes com uma perspetiva

construtivista e por mudança conceptual, os manuais escolares conferem ao docente um

papel de facilitador em todo este processo e ao aluno o papel da personagem principal

(Silva, 2001). Santo (2006, p. 104) defende que, atualmente, na era da globalização, o

manual escolar, como recurso pedagógico ao serviço da escola pretende fomentar a

“autonomia pedagógica do aluno incentivando o «aprender a aprender» ao longo da vida”,

preparando os jovens para a vida adulta. A autora acrescenta que o manual é “conotado

como objeto de consumo pedagógico” e que o seu uso se generalizou com o

reconhecimento do conceito “Educação para Todos” (2006, p. 105). A dependência deste

recurso é tanto maior, na medida em que é frequentemente responsável pela forma como

alguns docentes concebem o desenvolvimento da ciência (Chiappetta et al., 1991) e

orientam as suas aulas, tendo em conta: a) o grau de profundidade e a sequência dos

temas/conceitos científicos; b) a diversidade e tipo de atividades de aprendizagem; c) o tipo

de questões de avaliação; d) a leitura e uso de tabelas, gráficos ou tabelas, determinados

pelo manual escolar adotado e/ou outros que possui e que possam ajudar a ultrapassar as

lacunas registadas no primeiro (Brigas, 1997).

Sem contestar a importância e relevância do manual escolar nos processos de ensino

e aprendizagem, os professores, como consumidores primários, deverão adotar uma atitude

crítica e reflexiva em relação a este recurso usando-o, mas adaptando-o, acrescentando-o,

transformando-o e avaliando-o, de forma a rentabilizar todo o seu valor educativo e melhorar

a prática docente (Silva, 2001; Leite, 2006).

Os autores de manuais, como seus criadores, também devem ser considerados neste

processo. Assim, a montante, durante o processo de conceção, cabe-lhes a

responsabilidade de: a) conhecer os documentos oficiais que regulamentam as orientações

curriculares/programas das disciplinas; b) dominar os quadros teóricos e metodológicos dos

respetivos conteúdos científicos; c) estudar a forma mais adequada de veicular a mensagem

à faixa etária do público-alvo (alunos), tendo em conta o seu nível de desenvolvimento

cognitivo.

Por fim, referir que a relação entre os manuais escolares e o ensino e aprendizagem é

ainda influenciada pelo Ministério da Educação e Ciência (MEC). Este agente assume um

papel ativo, na medida em que é o responsável pelo estabelecimento de regras que definem

o regime de avaliação, certificação, adoção e período de vigência dos manuais escolares

legislados pela Lei n.º 47/2006 de 28 de agosto (regulamentada pelo Dec. Lei n.º 261/2007,

17 de julho, posteriormente revisto e revogado pelo Dec. Lei n.º 5/2014, 14 de janeiro) e pela

Portaria n.° 81/2014, 9 de abril.

1.2.1. Manuais escolares e as orientações curriculares

É comummente aceite que o conteúdo dos manuais escolares segue as orientações

emanadas dos documentos oficiais da política educativa (o documento que serve de alicerce

é a Lei n.º 46/86, de 14 de outubro – Lei de Bases do Sistema Educativo), cujos princípios

estruturantes definem os objetivos e competências que um cidadão deve desenvolver

durante o seu percurso escolar, tendo em consideração a Constituição Portuguesa. Neste

âmbito, os programas curriculares refletem os conteúdos definidos pelas políticas educativas

e os normativos legais definem programa como um

“… conjunto de orientações curriculares, sujeitas a aprovação nos termos da lei,

específicas para uma dada disciplina ou área curricular disciplinar, definidoras de um

percurso para alcançar um conjunto de aprendizagens e de competências definidas no

currículo nacional do ensino básico ou (…)secundário” (Lei n.º47/2006, de 28 de

História das Ciências para o Ensino – Colóquio II

42

agosto, Art.3.º, alínea a).

Assim, globalmente e de acordo com a legislação em vigor (Lei n.º 46/86 de 14 de

outubro), os manuais escolares do mercado, para as múltiplas áreas disciplinares, seguem

os programas e orientações curriculares que o MEC emana.

Após a entrada em vigor da Lei n.º 47/2006 de 28 de agosto e relativamente aos

manuais de Geociências do 3.º ciclos e secundário, apenas os referentes aos dos 7.º, 8.º e

9.º anos de escolaridade de Ciências Naturais (CN) foram submetidos a um processo de

avaliação. Nesse processo foram tidos em conta os critérios definidos no Despacho n.º

29864/2007 de 27 de dezembro, no regime dos já adotados e em utilização, no ano letivo de

2008/2009, ao abrigo dos n.º 2 e 8, alínea b) do Despacho n.º 415/2008 de 4 de janeiro. O

mesmo diploma previa a avaliação e certificação dos manuais do ensino secundário a partir

de 2010, para os manuais a adotar para o ano letivo de 2010/2011, contudo este

procedimento não se veio a concretizar. Os novos manuais de 7.º e 8.º anos entretanto

adotados, em 2012 (alterado em 2014) e 2014 respetivamente, vieram substituir os manuais

certificados que estiveram no mercado até essa data, pelo que, no presente, apenas os

manuais do 9.º ano de CN que ainda estão no mercado são manuais certificados.

A recente publicação do Despacho n.º 11421/2014 de 11 de setembro veio revogar os

dois despachos acima mencionados, mas não contempla a avaliação e certificação dos

novos manuais (7.º e 8.º), em acordo com novas metas curriculares (e.g. Bonito et al., 2013),

nem dos manuais do ensino secundário que ainda não foram alvo de qualquer análise.

Deste modo, continua a aguarda-se a extensão deste processo, o que possibilitará um

efetivo controlo sobre a qualidade científico-pedagógica e didática dos manuais de

Geociências por parte do MEC. Qualidade a que se atribui uma importância acrescida,

quando se observa que, embora os manuais sejam um recurso para o aluno, muitas vezes

também os professores dependem deles para organizar e estruturar as suas aulas

influenciando as suas práticas (Brigas, 1997; Pereira & Duarte, 1999; Leite, 2006;

Chiappetta & Fillman, 2007), bem como constituem uma fonte de informação (Eltinge &

Roberts, 1993). Muitos docentes, ainda, recorrem à consulta dos manuais escolares em

detrimento dos programas curriculares das disciplinas aquando da elaboração das

planificações a longo prazo no início de cada ano letivo (Morgado, 2004). Estas evidências

mostram a importância deste recurso como tradutor dos programas curriculares/orientações

curriculares, bem como promotor do currículo efetivo de cada disciplina.

1.3. O Paleomagnetismo no ensino da Geologia ao nível do secundário

O ensino da Geologia tem já alguma tradição no sistema de ensino português em

escolas oficiais de nível pré-universitário, desde a década de 30 do séc. XIX, facto que

sucede do reconhecimento da importância da Geologia como ciência no seio da sociedade

humana (Amador, 2008). Deste modo, tem-se verificado um acréscimo de conceitos de

Geologia nos curricula das disciplinas das geociências, nomeadamente as ministradas no

ensino secundário regular que conduzem à progressão para estudos superiores. A

valorização desta ciência tem vindo a acontecer a um nível que, ainda, hoje não acontece

em outros países europeus (e.g. Amador, 2008) e que se pode verificar pela análise da

estrutura das últimas revisões curriculares

Assim, no final da década de 80, início da de 90 do século passado, a reforma

curricular legislada pelo Dec. Lei n.º 286/89 de 29 de agosto cria a disciplina de Ciências da

Terra e da Vida, integrante da componente de formação específica para os alunos que

cursavam o ensino secundário regular, cujo programa, para além dos comuns “temas da

História das Ciências para o Ensino – Colóquio II

43

Vida”, passou a incorporar “temas da Terra” de um modo equitativo. No 12.º ano a disciplina

de Geologia passou a integrar um conjunto de disciplinas opcionais, como p. ex. a Biologia,

a Química, a Física ou a Psicologia.

O mesmo aconteceu com a reorganização curricular que se seguiu e que começou a

ser implementada nos primeiros anos do século XXI (Dec. Lei n.º 74/2004 de 26 de março),

com a criação da disciplina de Biologia e Geologia nos 10.º e 11.º anos, continuando a

verificar-se uma distribuição equilibrada na lecionação de conteúdos das ciências da Terra e

da Vida. No último ano do ensino secundário, os alunos continuaram a poder optar, de entre

um variado leque de opções, pela disciplina de Geologia.

Mais recentemente, o Dec. Lei n.º 139/2012 de 5 de julho veio alterar a carga horária

semanal, mas manteve as disciplinas definidas no Dec. Lei n.º 74/2004 de 26 de março. Os

novos programas disciplinares para o ensino secundário, ainda aguardam publicação por

parte da tutela.

1.3.1. O Paleomagnetismo no currículo do ensino secundário

O Paleomagnetismo é um conteúdo lecionado no âmbito do ensino da Geologia,

contudo, contrariamente a esta última, não existe uma tradição do seu ensino nas escolas

secundárias portuguesas. Em primeiro lugar porque a sua descoberta tem pouco mais de

meio século; em segundo lugar, porque este tema estaria reservado ao ensino superior.

Assim, durante muitos anos o Paleomagnetismo foi um conceito que ficou de fora dos

currículos nacionais do ensino pré-universitário.

No presente, no ensino secundário regular, é possível lecionar o Paleomagnetismo

nas disciplinas de Biologia e Geologia do 10.º ano e de Geologia do 12.º ano. Na primeira

opção, o programa curricular não o inclui, contudo há matérias previstas que potenciam a

abordagem do Paleomagnetismo. Assim, no Tema I - “A Geologia, os geólogos e os seus

métodos”, nos conteúdos, ‘A medida do tempo e a idade da Terra’ ao lecionar os métodos de

datação da Terra e ‘A Terra, um planeta em mudança’, na mobilidade da crusta terrestre, o

professor pode fazer referência ao Paleomagnetismo, no sentido de contextualizar o

desenvolvimento da ciência e o que permitiu à sociedade científica aceitar o mobilismo

defendido pela Teoria da Deriva dos Continentes e a sua evolução para a Teoria da

Tectónica de Placas. No mesmo ano escolar, no Tema III – “Compreender a estrutura e a

dinâmica da geosfera”, no conteúdo conceptual “Métodos para o estudo do interior da

geosfera”, o tema do geomagnetismo é de lecionação obrigatória. Neste contexto, ao

estudar o campo geomagnético como método indireto, parece-nos que abordar o

Paleomagnetismo é importante para um enquadramento e posterior entendimento dos

conteúdos a lecionar. Embora esta seja uma opinião partilhada pelos professores de

Biologia e Geologia, o ensino e a aprendizagem do Paleomagnetismo acabam por ter um

carácter superficial e acessório, já que esta matéria acaba por ser, mais ou menos,

desenvolvida de acordo com a relevância que o docente lhe decidir atribuir justificada, quer

pela complexidade que lhe está associada, quer porque o seu aprofundamento é

considerado informação excessiva, decorrente do facto de não integrar o programa

curricular.

Na disciplina de Geologia do 12.º ano, cujo carácter opcional deixa de fora parte dos

alunos que concluem a escolaridade obrigatória do ensino regular, o programa curricular já

prevê a obrigatoriedade de lecionação de conceitos no âmbito do Paleomagnetismo no

conteúdo "Os primeiros passos de uma nova teoria. A Teoria da Tectónica de Placas",

integrante do Tema I - Da Teoria da Deriva dos Continentes à Teoria da Tectónica de

Placas. A dinâmica da litosfera e no conteúdo “Métodos físicos e geofísicos. Datações

radiométricas. Magnetostratigrafia”, do Tema II - A História da Terra e da Vida.

História das Ciências para o Ensino – Colóquio II

44

2. Método

2.1. Fundamentação, questão de investigação e objetivos

Tal como referido anteriormente, um dos recursos pedagógicos chave para

professores e alunos é, inequivocamente, o manual escolar. Existe no mercado livreiro um

conjunto de opções de escolha, de acordo com as áreas (disciplinares e não disciplinares) e

anos escolares, que justificam uma análise aprofundada tendo em conta parâmetros

didáctico-pedagógicos, científicos ou mesmo ótico-grafemáticos.

Neste sentido, a utilização do manual no processo de ensino e aprendizagem deverá

refletir um trabalho conjunto entre o autor - que o cria em função de orientações

curriculares/programas disciplinares/metas curriculares, conhecimentos científicos e

pedagógico-didático - e o docente - que participa na sua escolha e o utiliza, com o objetivo

único de permitir ao aluno (utilizador) a construção de conhecimentos e o desenvolvimento

de competências identificados como necessários à sua formação.

Partindo dos pressupostos enunciados, este trabalho, que se inclui num projeto mais

abrangente, insere-se numa investigação de cariz qualitativo, a partir da análise documental

de um conjunto definido de manuais escolares. Optou-se por uma abordagem qualitativa,

comumente utilizada nas Ciências Sociais e em Educação, pois possui particularidades, das

quais se destaca o facto da fonte de dados ser direta e oriunda do ambiente natural,

focando-se, essencialmente, no processo em si e nos significados e não apenas nos

resultados (Bogdan & Biklen, 1994). A investigação qualitativa terá surgido nos finais do séc.

XIX, início do séc. XX, no entanto, no presente continua a ser uma metodologia recorrente e

preferencial para as Ciências da Educação (ibidem).

Assim, este trabalho de investigação tem como objetivos gerais analisar e avaliar o

tipo de informação que, no âmbito do Paleomagnetismo, é apresentado nos manuais

escolares de Biologia e Geologia do 10.º ano, tendo em conta o respetivo programa

curricular, e para o qual se formulou a seguinte questão de investigação: Os manuais

escolares manifestam no seu conteúdo a importância da HC? Para o efeito os objetivos

específicos são avaliar: a) os exemplos de HC incluídos no subcapítulo selecionado nos

manuais escolares de Biologia e Geologia do 10.º ano; b) a importância atribuída aos

protagonistas da HC no subcapítulo da disciplina e ano escolar em estudo; c) a forma como

é apresentada a informação histórica no subcapítulo em análise.

2.2. Manuais analisados

Os manuais analisados faziam parte da lista disponível para o ano letivo 2011/2012,

mas ainda em vigor no presente ano letivo 2014/2015, num total de cinco manuais para o

10º de escolaridade, publicada pelo MEC. Saliente-se que a lista de manuais existentes no

mercado (Tabela 1) para o ano/disciplina analisada era, e mantem-se, coincidente com a

lista dos disponibilizados pelo MEC.

História das Ciências para o Ensino – Colóquio II

45

Tabela 1 - Lista de manuais escolares de BG do 10.º ano existentes no mercado nacional.

No decurso deste trabalho, os manuais de BG passarão a ser identificados por 10A,

10B, 10C, 10D e 10E. No que respeita ao corpus de análise, todos os manuais para o 10.º

ano são constituídos por dois volumes (um de Biologia e outro de Geologia), pelo que, de

acordo com a temática em estudo, foi escolhido o volume I que, em todos os casos,

corresponde ao de Geologia. Ainda neste estudo, procedeu-se à análise de todos os

manuais respeitantes ao exemplar do professor. O manual que é exemplar para o professor

é em tudo semelhante ao manual do aluno. Distingue-se, unicamente, por incluir

observações que correspondem, comumente, a notas localizadas lateralmente ao corpo do

texto principal, numa barra vertical e evidenciada por uma cor diferente. Estas observações

constituem sugestões de exploração didática e de enriquecimento, propostas de soluções

dos exercícios/atividades apresentadas, bem como rementem o utilizador para os recursos

de apoio ao manual principal (Guia do professor, caderno de atividades/apoio, escola virtual,

CD de exploração, etc.). A título de exemplo, apresenta-se a seguinte observação:

“Aprofundando…

A temperatura de Curie ou ponto de Curie corresponde à temperatura acima da

qual os materiais perdem as suas capacidades ferromagnéticas, voltando a adquiri-las

com a diminuição da temperatura. Varia de material para material (exs.: Ferro 770ºC,

Níquel 365 °C). Tal foi descoberto por Pierre Curie (1859-1906)”. (Manual 10D, p. 167).

A opção de análise do “exemplar do professor” em detrimento do “exemplar do aluno”

deve-se, em exclusivo, ao facto deste estudo incidir mais sobre a ótica do

professor/utilizador, enquanto agente que avalia as lacunas quanto ao cumprimento das

orientações curriculares e à superação das dificuldades evidenciadas pelos discentes.

Com vista à análise da temática do paleomagnetismo para o 10.º ano, optou-se por

selecionar o conteúdo programático “Métodos para o estudo do interior da geosfera” (os

Métodos indiretos) que faz parte do “Tema III – Compreender a estrutura e a dinâmica da

geosfera”. A opção por esta unidade em detrimento de(s) outra(as) possibilidade(s) de

estudo deveu-se, à maior relevância e profundidade que era dada ao tema do

paleomagnetismo, pois pretendia-se obter o máximo de resultados possível. Na Tabela 2,

encontram-se identificadas as páginas que foram objeto de análise em cada um dos

manuais.

Editora Manuais escolares

Areal Editores, SA 1

ASA Editores II, SA 2

Porto Editora 1

SANTILLANA - Constância 1

Total 5

História das Ciências para o Ensino – Colóquio II

46

Tabela 2 - Páginas analisadas dos manuais escolares de Biologia e Geologia do 10º ano.

2.3. Instrumento

Para dar cumprimento aos objetivos propostos recorreu-se a uma análise qualitativa

para a qual foi adaptada uma grelha a partir de uma elaborada e validada por Leite (2002a)

e da qual resultaram duas categorias (Tabela 3).

A categoria “Tipo e organização da informação histórica” foi subdividida em duas

subcategorias: Evolução do conhecimento científico e Os protagonistas. Na primeira,

integraram-se aspetos como a ‘Referência a progressos científicos’, que conduziram aos

conhecimentos sobre o Paleomagnetismo e à construção da Teoria da Tectónica de Placas

(TP); a ‘Descrição das atividades de observação/experimentação’, tanto numa vertente

sincrónica como diacrónica; os ‘Modelos evolutivos’; ou, ainda, a referência aos

‘Responsáveis pela própria evolução’. Na segunda subcategoria, Os protagonistas, avaliou-

se um conjunto de características referentes aos intervenientes (filósofos, naturalistas,

cientistas…) que, no seu conjunto, participaram no processo de construção da ciência. No

item ‘Episódios com interesse’2, consideramos pequenas curiosidades, minuciosidades ou

relatos históricos de situações que se transformaram em oportunidade de integrar a História

da Ciência.

Para a segunda categoria “Material usado para apresentar a informação histórica”

consideramos três subcategorias. Nas duas primeiras subcategorias, Representações

pictóricas e Documentos/textos, avaliamos a informação oriunda de fontes primárias. Neste

contexto, foram consideradas todos os pictogramas pessoais (p. ex., fotos de cientistas) e

de instrumentos/equipamentos. Avaliámos, igualmente, textos, ou partes destes, que são

testemunhos de acontecimentos ou evidências da HC.

Na última subcategoria Relatos de observações/experiências histórica, foram

consideradas as descrições pormenorizadas de acontecimentos reais da época, embora o

discurso apresentado seja da lavra dos autores dos manuais. Note-se que foram apenas

analisadas as situações devidamente individualizadas e não diluídas no corpo do texto.

2 Na grelha de análise original de Leite (2002a), que serviu de base à nossa, este item surge com a

designação de “episodes/anecdotes”.

Manual Páginas

10º

A 149-154, 155 e 156

B 114-117

C 140-147,149

D 163-171, 244

E 114-122, 179-181

História das Ciências para o Ensino – Colóquio II

47

Tabela 3 - Grelha de análise.

Categoria

Subcategoria

Item

Subitem

Tipo e organização da informação histórica

Evolução do conhecimento científico

Referências a progressos científicos

Descrição de atividades observação/experimentação ao longo do tempo

Modelos evolutivos

Perspetiva linear e acumulativa

Referências a revoluções científicas, controvérsias, mudanças teóricas, etc.

Responsáveis pela evolução

Trabalho individual

Grupos restritos (≤3)

Comunidades científicas

Os protagonistas

Dados biográficos

Características pessoais

Episódios com interesse

Material usado para apresentar a informação histórica

Representações pictóricas

Pessoais

Instrumentos/equipamentos

Documentos/textos

Relatos de observações/experiências históricas

A análise aos manuais foi efetuada em 2 fases e 4 tempos. Em cada fase, foi feita uma

análise em 2 tempos, individualmente e em conjunto. No tempo 1, em cada fase, procedeu-

se a uma análise individual. No tempo 2, da primeira e da segunda fase, foram comparados

os dados individuais e procedeu-se a uma análise nos casos não concordantes de forma a

encontrar uma solução consensual. A avaliação de todos os manuais foi realizada de um

modo horizontal, de forma a minimizar diferentes interpretações dos critérios.

Os dados obtidos permitiram obter uma informação quantitativa que foi,

posteriormente, tratada no programa Excel.

3. Resultados e discussão

3.1. Categoria “Tipo e organização da informação histórica”

Uma leitura global dos dados obtidos permite-nos afirmar que os manuais escolares

de BG do 10º ano de escolaridade, e para o conteúdo em apreço, não dão relevância à

inclusão de informação sobre o percurso histórico que, indubitavelmente, é responsável pela

evolução da ciência e do conhecimento científico (Tabela 4).

Verifica-se ainda um comportamento semelhante no que respeita aos agentes desta

evolução. Neste contexto, pode afirmar-se que existe um quase vazio histórico, com uma

ausência evidente de personalidades responsáveis pelos feitos histórico-científicos.

História das Ciências para o Ensino – Colóquio II

48

Tabela 4 - Resultados da análise da categoria “Tipo e organização da informação histórica” em

manuais de Biologia e Geologia do 10.º ano (f).

Comparando a soma dos diversos itens, no total dos manuais, pode ler-se que os

manuais 10D e 10E são os que apresentam uma maior frequência na subcategoria Evolução

do conhecimento científico, contabilizando 14 e 11 referências respetivamente. Registe-se,

ainda, que a ‘Descrição de atividades observação/ experimentação ao longo do tempo’, é

um parâmetro observável na maioria dos manuais, facto que se poderá justificar com a

importância que a observação e experimentação possuem para a evolução do conhecimento

científico.

Alguns dos exemplos notados são claras evidências da importância que os estudos

paleomagnéticos têm para o conhecimento do interior da geosfera:

“As anomalias magnéticas, detetadas com recurso a magnetómetros, são, à

semelhança das gravimétricas, um bom indicador da existência de jazigos metálicos,

no interior da crosta terrestre, constituindo, inclusive as primeiras aplicações geofísicas

à prospeção mineira.” (Manual 10ª, p. 152).

“A determinação da idade das rochas em paralelo com a orientação magnética

permitiu aos geólogos estudar as variações do campo magnético terrestre ao longo do

tempo. A descoberta de rochas magnetizadas com cerca de 3,5 mil milhões de anos,

permitiu concluir que o núcleo externo líquido, rico em ferro, já se encontraria formado

nesta altura.” (Manual 10D, p. 168).

O conhecimento científico é evolutivo e acumulativo. Resulta do contributo de fontes e

áreas científicas diversas, numa colaboração conjunta que culmina no desenvolvimento de

modelos, hipóteses ou teorias. Não possuindo valores muito representativos, o subitem

Perspetiva linear e acumulativa é avaliável em todos os manuais analisados, com uma

frequência máxima de 6 referências nos manuais 10D e 10E.

Subcategoria Item Subitem Manuais

10A 10B 10C 10D 10E

Evolução do conhecimento científico

Referências a progressos científicos 2 ---- ---- 2 1

Descrição de atividades observação/experimentação ao longo do tempo

5 3 ---- 5 3

Modelos evolutivos

Perspetiva linear e acumulativa

1 2 3 6 6

Referências a revoluções científicas, controvérsias, mudanças teóricas, etc.

---- ---- ---- ---- ----

Responsáveis pela evolução

Trabalho individual 1 1 1 ---- 1

Grupos restritos (≤3) ---- ---- ---- ---- ----

Comunidades científicas (>3) ----- 2 2 1 ----

Os protagonistas

Dados biográficos 1 ---- ---- ---- ----

Características pessoais 1 ---- ---- ---- 1

Episódios com interesse 2 ---- ---- ---- ----

Total 13 7 6 14 12

História das Ciências para o Ensino – Colóquio II

49

Os dados paleomagnéticos foram significativos para o conhecimento indireto do

interior da geosfera e a construção do(s) modelo(s) do globo terrestre. Dando relevância a

esse conhecimento, dois dos manuais analisados (M10D e M10E) dão particular destaque

ao estudo do campo magnético, quer o atual, quer o ancestral, numa alusão direta ao

surgimento da Teoria da Expansão dos Fundos Oceânicos que, conjuntamente com outros

dados geofísicos e geológicos, foi de extrema relevância para compreender a dinâmica

interna da geosfera:

“Mas os estudos do paleomagnetismo também possibilitaram estudar a evolução

dos fundos oceânicos e inferir acerca do dinamismo da crusta e do manto superior.”

(Manual 10D, p. 168).

“A disposição simétrica das inversões de polaridade magnética registadas na

porção de crusta oceânica de ambos os lados do rifte são perfeitamente

compreensíveis, admitindo a expansão dos fundos oceânicos a partir dessa zona.”

(Manual 10E, p. 119).

No que respeita à subcategoria Os protagonistas, apenas o manual 10A possui

informação avaliável em todos os seus parâmetros, muito embora a frequência se situe em

valores mínimos (f=1/2). Note-se, que, no manual 10A, o português D. João de Castro é a

única personalidade a é feita uma referência pessoal e surge como curiosidade, numa caixa

à margem do texto principal, como se pode observar na figura 1.

Figura 1 – Excerto da página 153 do manual 10A.

Patrick Blackett é apresentado no manual 10E como “um físico inglês” (M10E, p. 119),

constituindo a única informação sobre os protagonistas associados a trabalhos de

paleomagnetismo, no século XX, que é disponibilizada por este livro.

Na caixa de texto relativa ao D. João de Castro, exposta na figura 1, regista-se uma

História das Ciências para o Ensino – Colóquio II

50

das duas menções assinaladas como ‘Episódio com interesse’ no manual 10A (f=2). Neste,

o navegador português “foi pioneiro no estudo do magnetismo terrestre.” (Manual 10A,

p.153). No segundo episódio considerado como tendo interesse, relata-se um acontecimento

decorrido numa das primeiras expedições polares durante a qual, os descobridores:

“(…) ao seguirem a orientação da bússola, não alcançaram o Pólo Norte

geográfico, como estava previsto, porque foram conduzidas pela direcção do norte

magnético.” (Manual 10A, p.156).

4.2. Categoria “Material usado para apresentar a informação histórica”

Em sequência da pouca importância atribuída às referências históricas da evolução,

bem como aos protagonistas do conhecimento científico, plasmados nos resultados relativos

à categoria “Tipo e organização da informação histórica”, a presente categoria “Material

usado para apresentar a informação histórica”, exibe poucos dados para análise nos

manuais de BG do 10º ano (Tabela 5).

Relativamente à primeira subcategoria, Representações pictóricas, regista-se uma

ausência total de pictogramas referentes a indivíduos e apenas o manual 10E possui uma

imagem pictórica (f=1) de um instrumento/equipamento que, neste caso, é um

magnetómetro criogénico, mas que no manual é apresentado apenas por magnetómetro

(figura 2).

Tabela 5 - Resultados da análise da categoria “Material usado para apresentar a informação

histórica” em manuais de Biologia e Geologia do 10º ano.

Subcategoria Item Manuais

10A 10B 10C 10D 10E

Representações pictóricas

Pessoais ---- ---- ---- ---- ----

Instrumentos/equipamentos ---- ---- ---- ---- 1

Documentos/textos ---- ---- ---- ---- ----

Relatos de observações/experiências históricas 2 ---- ---- ---- ----

Total 2 ---- ---- ---- 1

Figura 2 – Excerto da página 119 do manual 10E.

História das Ciências para o Ensino – Colóquio II

51

Na subcategoria Relatos de observações/experiências históricas quantificamos

apenas duas menções. Ambas registadas no manual 10A (f=2) correspondem, no primeiro

caso, ao modelo proposto por Airy sobre a compensação das densidades em função do

relevo que se verifica à superfície terrestre (M10A, p. 152); no segundo caso, ao relato de

um acontecimento e que se pode ler numa caixa de texto. Nela é descrita uma das primeiras

expedições polares, na qual os exploradores orientados por uma bússola seguiram a direção

do polo norte magnético em vez do polo norte geográfico (figura 3).

Figura 3 – Excerto da página 156 do manual 10A.

4. Conclusão

No que respeita à presença de episódios da História da Ciência (HC), metodologia

amplamente enfatizada pelos programas disciplinares e fundamental para desenvolver o

conhecimento numa vertente CTSA, a análise qualitativa para o conteúdo selecionado,

permite-nos concluir que nos manuais do 10º ano há uma reduzida quantidade de

referências. À partida, surgem-nos duas possíveis justificações para esta evidência: a

primeira, o desmerecimento da importância da sua inclusão, na pessoa dos seus autores. A

segunda justificação - o facto de no 10º ano, o conteúdo que foi objeto da nossa pesquisa

não consentir um grande desenvolvimento da componente histórica da ciência.

Neste manuais a ausência de informação no âmbito da HC é, ainda, mais flagrante no

que diz respeito aos seus protagonistas, uma vez que deparamos com uma inexistência

quase total da identificação de personagens relevantes de âmbito nacional e internacional.

Como referido, apenas um dos manuais faz referência ao português D. João de Castro

(1500-1548), discípulo de Pedro Nunes e o quarto vice-Rei do Estado Português da Índia,

um nobre que como cartógrafo se dedicou a estudar e a resolver problemas de náutica,

entre os quais se salienta o conhecimento do magnetismo terrestre (Fiolhais & Martins,

2010). O contributo de D. João de Castro foi relevante, sendo os seus estudos em

magnetismo terrestre e na utilização da bússola, referidos como exemplos da História da

Ciência (e.g. Tarling, 1983; Gomes et al., 2008). Mas Portugal, sendo um país de

navegadores e pioneiro nos descobrimentos, possui outras personagens igualmente

relevantes no campo das determinações magnéticas. É o caso de Bartolomeu Dias (1450-

1500) que, na viagem em que dobrou o Cabo das Tormentas (1488), efetuou medições da

declinação magnética e “encontrou um local que batizou “Cabo das Agulhas” pois o valor era

nulo” (Fiolhais & Martins, 2010, p. 10).

Quanto ao desenvolvimento do percurso histórico do tema, regista-se a presença da

descrição de atividades de observação/experimentação que ilustram esse percurso, em

quase todos os manuais. Uma presença que, embora com uma baixa frequência, corrobora

a importância que a componente experimental tem na trajetória da ciência.

Analisando a forma como a HC é apresentada no subcapítulo selecionado, verificamos

que quase não são usadas fontes primárias. À exceção da representação pictórica dum

História das Ciências para o Ensino – Colóquio II

52

instrumento e de dois relatos de observações/experiências históricas, as referências

encontram-se integradas no texto, da responsabilidade dos respetivos autores. Assim, e no

que respeita aos aspetos relativos à HC, somos da opinião que a falta de conteúdo e o não

recurso às fontes primárias nos manuais de BG do 10º ano, os fragiliza do ponto de vista

científico-didático. Consideramos, ainda, que, em particular neste conteúdo programático, a

inclusão de informação histórica poderia tornar mais apelativa a explanação dos conceitos e,

consequentemente, facilitar a sua compreensão por parte dos alunos.

Em síntese, a HC, enquanto componente transversal aos diversos programas

curriculares das Geociências dos vários anos de escolaridade, é uma peça de grande

importância para a literacia científica e cultura geral dos alunos acerca da sociedade, pelo

que deveria ser de inclusão obrigatória nos manuais escolares. Neste contexto, a realidade

mostra que o Ministério da Educação e Ciência, no seu papel organizador e orientador, tem

falhado no controlo efetivo das orientações curriculares que emana, e que servem de base

para a elaboração dos manuais escolares, bem como na sua consequente aplicação prática

nas nossas escolas.

Numa consideração final sobre a importância da inclusão da HC nos compêndios de

geociências, concordamos que toda “a Ciência deve ser apresentada como um

conhecimento em construção” e, ainda, que ao modo de produção de saberes dever-se-á

dar particular importância, “reforçando a ideia de um conhecimento científico em mudança e

explorando, ao nível das aulas, a natureza da ciência e da investigação científica” (Amador

& Silva, 2004, p. 4).

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Lei n.º 47/2006 de 28 de agosto. Diário da República n.º165, I Série. Assembleia da

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Despacho n.º 415/2008 de 4 de janeiro. Diário da República n.º3, II Série. Ministério da

Educação - Gabinete do Secretário de Estado Adjunto e da Educação.

Decreto-lei n.º 139/2012 de 5 de julho. Diário da República n.º129, I Série. Ministério da

Educação e Ciência.

Decreto-Lei n.º 5/2014 de 14 de janeiro. Diário da República n.°9, I Série. Ministério da

Educação e Ciência.

Portaria n.º 81/2014 de 9 de abril. Diário da República n.º 70, I Série. Ministério da Educação

e Ciência.

Despacho n.º 11421/2014 de 11 de setembro. Diário da República n.º 175, II Série.

Ministério da Educação e Ciência - Gabinete do Ministro.

Manuais analisados

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Marques, M. (2007). Uma Breve História Natural da Terra 10.º. Rio Tinto: Edições ASA.

Matias, O., Martins, P., Dias, A.G., Guimarães, P., & Rocha, P. (2009). Biologia e Geologia

10.º. Porto: Areal Editores, SA.

Ribeiro, E., Silva, J.C., & Oliveira, O. (2007). Desafios 10.º. Rio Tinto: Edições ASA.

Silva, A. D., Mesquita, A.F., Gramaxo, F., Santos, M.E., & Baldaia, L. (2010). Terra Universo

de Vida 10.º. Porto: Porto Editora.

56

O TERRAMOTO DE 1755: UM ACONTECIMENTO QUE MUDOU A

HISTÓRIA

THE 1755 EARTHQUAKE: AN EVENT THAT CHANGED THE

HISTORY

Fernando Carlos Lopes1, Isabel Sousa2, Susana Custódio3 & Celeste Romualdo Gomes1

Resumo

O terramoto de 1 de novembro de 1755, acompanhado de um gigantesco tsunami, causou graves

danos e numerosas vítimas no sudoeste da Península Ibérica, sendo considerado um dos mais

catastróficos acontecimentos dos tempos históricos. Os seus efeitos fizeram-se sentir numa vasta

área, da Europa Ocidental às costas do Brasil e das Caraíbas. Este evento teve um profundo impacto

social e científico no mundo europeu de meados do século XVIII, abrindo caminho para o surgimento

da Sismologia moderna. Os objetivos deste trabalho, que foi desenvolvido com base em análise

documental, foram: 1) contextualizar este evento na História de Portugal e Europeia, incluindo a

situação política; 2) contextualizar o acontecimento com o desenvolvimento da Sismologia, ao tempo;

3) apresentar resultados científicos recentes sobre o terramoto, importantes para a Educação em

Sismologia; e 4) divulgar o Terramoto no âmbito da Educação em Sismologia e em Riscos

Geológicos.

Palavras-chave: Ciências da Terra; Lisboa; Sudoeste Ibérico; Terramoto de 1755.

Abstract

The earthquake of November 1, 1755, accompanied by a giant tsunami caused severe damage and

numerous casualties in the southwest of the Iberian Peninsula and is considered one of the most

catastrophic events of historic times. Its effects were felt over a wide area, from Western Europe to the

shores of Brazil and the Caribbean. This event had a profound impact on the social and scientific

European world of the mid-eighteenth century, paving the way for the emergence of modern

Seismology. The objectives of this study, which was developed based on documentary analysis, were:

1) to contextualize this event in the history of Portugal and European, including the political situation;

2) to contextualize this event with the development of Seismology, to time; 3) to provide recent

scientific evidence on the 1755 Earthquake, which may be important for Educational Seismology, and

4) promote the 1755 earthquake under the Education Seismology and Geohazards.

Key-words: Earth Sciences, Lisbon, Southwest Iberia, Earthquake and tsunami of 1755

1. Introdução

O sismo que sacudiu Lisboa, no dia 1 de novembro de 1755, também conhecido por

“Terramoto de 1755” ou de “Grande Terramoto de Lisboa”, é considerado o maior sismo

registado na Europa e um dos mais violentos da História (figura 1). Sentido numa vasta área

da Europa a noroeste de África, foi um desastre que abalou as mentalidades do final da 1ª

metade do séc. XVIII, fornecendo argumentos ao iluminismo racionalista e lançando a

semente de uma nova era nas Ciências da Terra, no geral, e na Sismologia, em particular.

Atualmente considerado como um processo, ou um conjunto de processos, importante(s), à

1Centro de Investigação da Terra e do Espaço da Universidade de Coimbra e Departamento de Ciências da

Terra; Universidade de Coimbra. 2 Escola Secundária C/3º CEB de Cristina Torres.

3 Centro de Investigação da Terra e do Espaço da Universidade de Coimbra; Instituto Geofísico D. Luís,

Universidade de Lisboa.

História das Ciências para o Ensino – Colóquio II

57

escala da geodinâmica global, este sismo continua a encerrar o segredo da sua origem e da

localização da sua fonte, apesar dos avanços científicos e tecnológicos.

Este evento, que contará 260 anos em 2015, tem sido muito estudado e é muito usado

como exemplo para o ensino em várias disciplinas (e.g., História, Português, Geografia,

Ciências Naturais, Geologia) e em todos níveis (desde o 1.º ciclo do ensino básico até ao

superior).

Os objetivos deste trabalho foram: 1) contextualizar este evento na História de

Portugal e Europeia, incluindo a situação política; 2) contextualizar com o desenvolvimento

da Sismologia, ao tempo; 3) apresentar resultados científicos recentes sobre o terramoto,

importantes para a Educação em Sismologia; e 4) divulgar o Terramoto no âmbito da

Educação em Sismologia e em Riscos Geológicos.

2. Metodologia

O presente trabalho baseou-se, fundamentalmente, na análise documental (Amado,

2014) e na síntese histórica. Para atingir os objetivos definidos foram estudados

documentos, como os indicados nas referências.

Figura 1 – Representação fantasiosa da zona ribeirinha de Lisboa sob os efeitos do terramoto e do

tsunami de 1755 (in Fonseca, 2005).

3. Resultados

3.1. O dia que fez a História

A manhã de sábado do 1 de novembro de 1755 surgiu soalheira e fria. As celebrações

religiosas do Dia de Todos os Santos fizeram deslocar uma grande parte da população da

cidade de Lisboa até às numerosas igrejas, para orarem pelos seus antepassados queridos.

Situada no estuário do Tejo, Lisboa era uma cidade de tradições e traçado profundamente

medievais. Com mais de 270 mil habitantes, era a capital e centro de um grande império,

servida por um belo e rico porto. Numerosas praças abriam-se para o rio, sendo o Terreiro

do Paço a mais importante delas. Mais de dois séculos de explorações, saques e de um

História das Ciências para o Ensino – Colóquio II

58

prodigioso comércio de ouro, prata e especiarias refletiam-se na riqueza dos edifícios e das

igrejas. Móveis ricos, tapeçarias caras e valiosos quadros de mestres europeus forravam o

interior das casas dos mercadores abastados e dos palácios. Na margem direita do rio fora

erguido, recentemente, um largo e bonito cais de mármore, o “Cais da Pedra”, para facilitar a

atracagem das armadas que chegavam das colónias do extremo oriente e das Américas.

De súbito, a litosfera oceânica, sob tensão, fraturou-se violentamente, algures a

sudoeste, próximo do litoral, fazendo deslocar bruscamente o fundo marinho. As ondas de

choque dessa fratura, com uma magnitude estimada de 8,6 na escala de Richter, atingiram

a cidade de Lisboa em 3 grandes abalos sucessivos, o último dos quais por volta das 9:55.

As casas, os palácios e as igrejas ruíram, esmagando quem se encontrava no seu interior

ou quem se acotovelava junto às fachadas. A riqueza da cidade fora investida em pedra, que

agora “chovia” sobre os aterrorizados habitantes. Na baixa da cidade, os solos liquefizeram-

se, engolindo os edifícios neles construídos. O “Cais da Pedra” afundou-se literalmente no

rio. Deslizamentos de terras ao longo das encostas espalharam o pânico e fizeram

numerosas vítimas. As velas tombadas e os fogos das lareiras e das cozinhas pegaram fogo

aos edifícios neles construídos. O “Cais da Pedra” afundou-se literalmente no rio.

Deslizamentos de terras ao longo das encostas espalharam o pânico e fizeram numerosas

vítimas. As velas tombadas e os fogos das lareiras e das cozinhas pegaram fogo às mobílias

e aos tecidos, ateando rapidamente um violento e descontrolado incêndio. Alimentado pelo

vento de nordeste, consumiria grande parte da cidade, durante mais de três dias.

Para escaparem à queda dos edifícios e ao fogo, muitas pessoas, transportando o que

podiam dos seus bens, correram a refugiar-se no moderno cais de mármore. Mas nem aqui

estiveram a salvo. Cerca de 40 minutos após os abalos, e de um momento para o outro, um

tsunami, em 3 vagas sucessivas, abateu-se sobre as zonas costeiras e ribeirinhas,

arrasando navios, docas e armazéns portuários. As águas atingiram cerca de 15 m de altura

em alguns locais do litoral sul do país e 6 m na baixa de Lisboa. O tsunami varreu todo o

Atlântico norte, atingindo o Norte de África, o litoral brasileiro, as Caraíbas e a longínqua

Irlanda.

Houve ainda grande destruição em todo o SW do país, em Marrocos (10 000 vítimas)

e em outras zonas do Norte de África. Os abalos foram sentidos em Espanha, sul de França,

Holanda e Alemanha. Em poucas horas, uma das mais prósperas cidades da Europa,

desfez-se em escombros, lamas e cinzas. Para além da perda de milhares de almas, dos

feridos e dos desalojados, a destruição dos bens materiais e do património é elevadíssima

(estimada em 80%).

3.2. O impacto no pensamento europeu. O nascimento da sismologia moderna

Por toda a Europa, onde o iluminismo racionalista era já uma realidade, os ecos desta

imensa catástrofe não tardaram a fazer-se sentir, social e cientificamente. Por toda a parte, e

em diferentes línguas, surgiram as mais diversas publicações, que incluíam gravuras e

desenhos dos acontecimentos, descrições e relatos dos danos, cartas, poemas e acérrimas

discussões religiosas e políticas. Autores como Voltaire, Kant ou Goethe escreveram textos

sobre o evento e sobre a origem dos terramotos. Alguns pensadores portugueses

(estrangeirados), como Joaquim Moreira de Mendonça (História Universal do Terramotos,

1758), estiveram em sintonia com as novas ideias da época. Já no séc. XX, o geólogo

português Francisco Luís Pereira de Sousa, recuperou e publicou grande parte das

respostas ao inquérito de Marquês de Pombal (Pereira de Sousa, 1914, 1922). As suas

obras sobre o Terramoto de 1755 tiveram grande repercussão fora de Portugal.

A imensa destrutividade e evidente propagação do movimento do solo a grandes

História das Ciências para o Ensino – Colóquio II

59

distâncias, que acompanharam este desastre natural, desempenhariam um papel

fundamental no estímulo do pensamento científico, abrindo o caminho para o

desenvolvimento da Sismologia moderna. Para essa mudança contribuiu, também, o

inquérito que o Marquês de Pombal mandou distribuir pelas populações do reino, através

das paróquias, cujas perguntas se destacam pela sua pertinência atual, já que são as

mesmas a que um sismólogo moderno tem de responder para caracterizar um evento

sísmico.

4. Considerações finais

A investigação dos últimos anos (e.g. Zitellini et al., 2000, Vilanova et al., 2003,

Ribeiro, 2005, Santos et al., 2009), sobre o sismo de 1 de novembro de 1755, torna

irrefutáveis alguns aspetos: 1) o sismo teve origem na crosta oceânica, numa zona de

colisão entre as placas tectónicas africana e euroasiática, que se aproximam a taxas

relativamente baixas (3 mm/ano); 2) a magnitude terá atingido os 8,5-9 na escala de Richter;

3) são conhecidas as direções de maior compressão na Península Ibérica e zonas limítrofes

(NW-SE a WNW-ESE); 4) a rutura tem de ser extensa (várias centenas de quilómetros) – As

várias estruturas geológicas conhecidas que podem estar associadas ao sismo não

possuem, individualmente, dimensão para explicar toda a energia libertada (ruptura

múltipla?); e 5) o mecanismo parece ter sido diferente do do sismo de 1969; e 6) a

sismicidade do séc. XX e a dos últimos anos, muito mais rigorosa no que respeita à

localização de epicentros e à definição dos mecanismos focais, não define padrões claros

de atividade que levem a um bom esclarecimento da geodinâmica a SW da Ibéria.

Na manhã do dia 1 de Novembro de 1755, um dos maiores sismos da História, gerado

na litosfera oceânica, a sudoeste da Península Ibérica, destruía Lisboa e tudo aquilo que,

em meados do séc. XVIII, se considerava o expoente máximo da fabricação humana. A

partir de então, nada mais seria como antes…

5. Referências bibliográficas

Araújo, A.C. (2005). O Terramoto de 1755. Lisboa e a Europa. Lisboa: CTT – Correios de

Portugal

Buesco, H.C. & Cordeiro, G. (Coord.) (2005). O Grande Terramoto de Lisboa. Ficar

Diferente. Lisboa: Gradiva-Publicações LDA.

Flad & Público (Eds.) (2005). 1755. O Grande Terramoto de Lisboa. Lisboa: Flad & Público.

Flad & Público (Eds.) (2005). 1755. Providências do Marquês de Pombal. Lisboa: Flad &

Público.

Flad & Público (Eds.) (2005). 1755. Sobre as Causas dos Terramotos. Lisboa: Flad &

Público.

Fonseca, J.D. (2005). 1755, O Terramoto de Lisboa. Lisboa: Argumentum.

Kant, I & Silveira, L. (1955). Ensaios de Kant a propósito do terramoto de 1755. Lisboa:

Câmara Municipal de Lisboa.

Moreira de Mendonça, J.J. (1758). Historia universal dos terremotos, que tem havido no

mundo, de que ha noticia, desde a sua creaçaõ até o seculo presente: Com huma

narraçam individual do terremoto do primeiro de novembro de 1755, e noticia verdadeira

dos seus effeitos em Lisboa, todo Portugal, Algarves, e mais partes da Europa, Africa, e

América, aonde se estendeu: e huma dissertaçaõ phisica sobre as causas geraes dos

terremotos, seus effeitos, differenças, e prognosticos; e as particulares do ultimo. Lisboa:

Oficina de A. Vicente da Silva.

História das Ciências para o Ensino – Colóquio II

60

Pereira de Sousa, F.L. (1922). O terramoto do 1º de Novembro de 1755 em Portugal e um

estudo demográfico. Lisboa: Serviços Geológicos, 1919-1932

Pereira de Sousa, F. L. (1914). Ideia geral dos efeitos do megassismo de 1755 em Portugal.

Lisboa: Typographia do Commercio.

Ribeiro, A. (2005).O sismo de 1755 e a geodinâmica da Ibéria e Atlântico. In Público (Eds.).

1755 - O Grande Terramoto de Lisboa, Volume I – Descrições (pp. 219-236). Lisboa:

Fundação Luso Americana & Público.

Santos, A., Koshimura, S., & Imamura, F. (2009). The 1775 Lisbon tsunami: tsunami source

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(Eds.), 1755 o Grande Terramoto de Lisboa, Volume I – Descrições (pp. 237-264).

Lisboa: Fundação Luso Americana & Público.

Vilanova, S.P., Nunes, A.CF., & Fonseca, J.F.B.D. (2003). Lisbon 1755: a case of triggered

intraplate rupture? Bull. Seism. Society of America, 93 (5), 2056-2068.

Zitellini, N., Terrinha, P., Dañobeitia, J., Gracia, E., Sartori, R., Torelli, L., Rovere, M.,

Chierici, F., Ribeiro, A., Matias, L., & Mendes-Victor, L. (2000). Mapa estrutural da

Margem SW Ibérica. – Resumo. In 2ª Assembleia Luso-Espanhola de Geodesia e

Geofísica, Lagos (Algarve, Portugal), 8-12 Fev. 2000, 145-146.

História das Ciências para o Ensino – Colóquio II

61

RECONSTITUIÇÃO DA BAIXA POMBALINA APÓS O

TERRAMOTO DE 1755: CONTRIBUIÇÃO DE MANUEL DA MAIA

E COLABORADORES

RECONSTITUTION OF BAIXA POMBALINA AFTER THE

EARTHQUAKE OF 1755: MANUEL DA MAIA AND HIS

COLLABORATORS CONTRIBUTION

Joana Costa1, Joana Torres1, Sara Moutinho1 & Clara Vasconcelos1*

Resumo

A 1 de Novembro de 1755, Lisboa assiste à maior catástrofe de que há memória em Portugal.

O grande abalo, de cerca de 9 minutos, sentido sobretudo na capital, destruiu a baixa lisboeta,

provocando milhares de mortes e inúmeros danos materiais. Surgiram diversas descrições do

acontecimento, como a de Mendonça (citado por Sousa, 1928) que referia que pouco depois

das nove horas e meia da manhã a terra começou a abalar com pulsação do centro para a

superfície. Os incêndios deflagraram facilmente devido à frágil e débil construção da época. O

tsunami que se seguiu é descrito pelo mesmo autor como se os impulsos da terra tivessem

retirado a água do mar. Refira-se que, na época, a catástrofe de 1755 é descrita pela maioria

dos lisboetas e estrangeiros que aí se encontravam, como uma vingança divina, relembrando o

pensamento criacionista que ainda persistia no século XVIII. Thomas Chase, um inglês

estabelecido em Lisboa, descreve o terramoto do dia de todos os santos, de forma rigorosa e

minuciosa, numa carta dirigida à sua mãe, que só depois de 70 anos é publicada no The

Gentleman’s Magazine. Muitas outras cartas foram escritas: algumas destruídas, outras

conservadas até hoje, mas nos jornais da época, foram breves as referências ao

acontecimento, nomeadamente as que constam na Gazeta de Lisboa publicada em 1755. Logo

após o terramoto, Marquês de Pombal, assume a hipótese científica do ocorrido e a

necessidade de imediatamente reconstruir a cidade. Recebe um longo memorial do general

Manuel da Maia, engenheiro e arquiteto que, juntamente com seus colaboradores, entre os

quais se destaca o capitão Eugénio dos Santos, apresenta seis plantas. Após a análise das

propostas, de uma perícia técnica incrível para a época, Marquês de Pombal escolhe uma

delas: a intitulada “Baixa Pombalina”, apostando na reconstrução de uma Lisboa moderna

baseada na prevenção e minimização de danos sísmicos. Neste trabalho propomos, uma

atividade dirigida aos alunos de Geologia do 10ºano na qual se aborda a

prevenção/minimização de riscos sísmicos, partindo da análise desta catástrofe. Promovendo o

relacionamento da História das Ciências com um acontecimento notável no nosso país,

pretende-se que os alunos compreendam e se questionem acerca do contributo e a

preocupação pela prevenção sísmica de Manuel da Maia e colaboradores na reconstrução de

Lisboa. Metodologicamente, a investigação assentou numa análise documental, que procurou

selecionar documentos referentes ao terramoto de 1755 com relevância para a proposta

didática que se elaborou. Deste modo, a dissertação de Manuel da Maia e cartas escritas

acerca da reconstrução de Lisboa foram alvo de uma profunda análise de conteúdo. Palavras-chave: Baixa Pombalina; Ensino da Geologia; História das Ciências; Prevenção

sísmica; Terramoto de 1755.

1 Centro de Geologia da Universidade do Porto; DGAOT/ Unidade de Ensino das Ciências; Faculdade de

Ciências da Universidade do Porto.

* Autor de contacto: [email protected]

História das Ciências para o Ensino – Colóquio II

62

Abstract

On November 1, 1755, Lisbon suffers the greatest catastrophe of ever in Portugal. The great

shock, about 9 minutes, felt especially in the capital, destroyed the Lisbon downtown, causing

thousands of deaths and a great material damage. There have been several descriptions of the

event, such as the one from Mendonça (cited by Sousa, 1928) that stated that just after nine

thirty in the morning the earth began to shake with pulse from the center to the surface. The fire

broke out easily due to fragile and weak construction at the time. The tsunami that followed is

described by the same author as if the earth had taken out the water from the sea. It should be

noted that at that time the 1755 disaster is described by most of Lisbon people and foreigners

that were in Lisbon, as a divine vengeance, recalling creationist thinking that still persisted in the

18th century. Thomas Chase, an Englishman based in Lisbon, describes the day of the

earthquake of all the saints day, accurately and in detail, in a letter to his mother, which is

published 70 years after in The Gentleman's Magazine. Many other letters were written: some

were destroyed, others have been preserved until today, but the newspapers of that time, only

had brief references of the event, including those contained in the Lisbon Gazette, published in

1755. Soon after the earthquake, Marquês de Pombal takes the scientific hypothesis of this and

the need to immediately rebuild the city. He receives a long memorial of General Manuel da

Maia, engineer and architect who, along with his collaborators, among which stands out the

captain Eugénio dos Santos, presents six plans. After reviewing the proposals, which had an

incredible technical expertise for that time, Marquês de Pombal chooses one of them: the called

"Baixa Pombalina", focusing on the reconstruction of a modern Lisbon based on prevention and

mitigation of seismic damage. In this work, an activity aimed at 10th grade students of Geology

in which prevention/minimization of seismic risks, based on the analysis of this disaster is

taught. Promoting the relationship of the History of Science with this a remarkable event in our

country, it is intended that students understand and question about the contribution and concern

for seismic prevention of Manuel da Maia and his collaborators in the reconstruction of Lisbon.

Methodologically, this study was based on documents analysis, which sought to select relevant

documents of the 1755 earthquake to the didactic proposal that was elaborated. Thus, the

dissertation of Manuel da Maia and the letters written about the reconstruction of Lisbon were

the subject of a thorough content analysis.

Keywords: Baixa Pombalina, Geology Teaching; History of Science; Seismic Prevention; 1755

earthquake.

1. Introdução

A presente proposta didática é dirigida aos alunos de Geologia do 10ºano de

escolaridade e assenta na necessidade premente de promover o questionamento na

área das ciências, nomeadamente relacionando-o com os casos notórios da História

da Geologia. A História das Ciências é uma abordagem referida no currículo escolar da

Geologia e pretende que os alunos relacionem acontecimentos históricos, reais e

notáveis do nosso país.

Nesta proposta, a temática sugerida é o terramoto de 1755 mais precisamente a

reconstituição da baixa pombalina por Manuel da Maya e seus colaboradores. O

terramoto de 1755 foi, além de um acontecimento científico e histórico marcante, um

passo fulcral no desenvolvimento do país, a nível cultural, social, político e científico

(Amador, 2007). Tal tragédia alterou mentalidades e questionou muitas crenças que

até então eram verdades absolutas. O papel de algumas personalidades,

nomeadamente Marquês de Pombal e Manuel da Maya, foi importantíssimo na

reconstituição da cidade mais afetada pelo terramoto - Lisboa. A sua reconstituição,

pronta e organizada, só foi possível devido ao pensamento inovador e inteligente das

personalidades da época. Foi necessário questionar, planear e decidir, para

História das Ciências para o Ensino – Colóquio II

63

reconstituir uma cidade que de pobre e suja, passou a ser a cidade mais moderna do

ocidente.

A proposta didática baseia-se na metodologia de ensino da Aprendizagem

Baseada na Resolução de Problemas – ABRP, que surgiu em 1969 no Canadá, no

ensino da Medicina. Esta metodologia, que sugere o abandono do ensino

transmissivo, implica uma aprendizagem ativa por parte dos alunos. Estes são a chave

do seu próprio sucesso na aprendizagem. Após um levantamento de problemas reais,

baseados no cenário do quotidiano apresentado, os alunos, com os seus

conhecimentos prévios, são levados a questionar e a pensar em estratégias e na

procura da solução dos problemas que emergiram. Outro importante pilar desta

metodologia é a relevância atribuída ao trabalho em colaboração pois, segundo uma

perspetiva socioconstrutivista da aprendizagem, a partilha de informação entre pares e

com o facilitador (professor) é o motor do desenvolvimento cognitivo (Almeida &

Vasconcelos, 2012).

Deste modo, sugere-se um cenário curto, motivador e informativo, acerca da

temática já referida, e que estimula o questionamento por parte dos alunos. O cenário,

disponível em http://www.fc.up.pt/pessoas/csvascon/articles/CBP.mp4, é o ponto de

partida desta proposta didática (figura 1).

Figura 1 – Algumas imagens que constam do cenário A Reconstituição da Baixa Pombalina

após o Terramoto de 1755. Extraído de Quadros, 1989, p.116 e de Morganti, 1755, p.1.

Após a visualização do cenário os alunos deverão questionar e problematizar,

tendo em conta o contexto histórico e social que se apresenta. De seguida, o objetivo

é trabalharem colaborativamente para a consecução dos objetivos e competências

propostos.

2.O Terramoto de 1755

2.1.O grande acontecimento de 1755

A 1 de Novembro de 1755, Lisboa assiste à maior catástrofe de que há memória

em Portugal. Pereira de Sousa, 1928, cita Moreira de Mendonça “Pouco depois das

nove horas e meya da manhã, estando o Barometro em 27 polegadas, e sete linhas, e

o Thermometro de Reaumur em 14 gráos a cima do gelo, correndo hum pequeno

vento Nordeste, começou a terra a abalar com pulsação do centro para a superfície, e

aumentando o impulso, continuou e tremer formando um balanço para os lados de

Norte a Sul (…)” (Sousa, 1928, p. 479).

História das Ciências para o Ensino – Colóquio II

64

Figura 2 – Vista de Lisboa durante o Terramoto de 1755. Gravura anónima da segunda

metade do século XVIII. Exposta no Museu da Cidade de Lisboa.

A grandiosidade do terramoto é também descrita numa carta de Mazagão de 25

de Janeiro de 1756, onde se pode ler o seguinte: “No primeiro dia do mez de

Novembro do anno que acabou, sem haver vento e estando o Sol, nam só claro, mas

quente, se padeceram nesta Praça os efeitos de hun formidável terremoto.” (Sousa,

1919, p. 88)

A grande tragédia ocorreu num dia em que a temperatura estava elevada para a

época (14 °C) e o dia estava calmo apenas com uma brisa. O abalo, sentido como um

grande ressoar subterrâneo, durou cerca de nove minutos e decorreu em três fases. A

primeira fase, que durou cerca de um minuto e meio, não foi muito violenta. A segunda

(figura 2), mais morosa, causou danos avultados. Mas, a terceira que durou cerca de

três minutos, foi a mais violenta de todas. Provocou o maior número de danos,

humanos e materiais (Americana, 2005).

As descrições do acontecimento são diversas e todas elas muito reais e

descritivas (figura 3). Rómulo de Carvalho escreve que as paredes começaram a

desmoronar-se, abatendo-se sobre as pessoas que fugiam desamparadas das suas

casas e corriam pelas ruas (Carvalho, 2006). Já Teodoro de Almeida, padre, refere que

o ruído audível se assemelhava ao “de muitos coches correndo” e que “os que

estávamos na Igreja da Senhora das Necessidades, onde os Soberanos costumão ir

aos sabbados, julgámos que chegava Sua Majestade” (Almeida, 1874, pp. 1784-

1799).

História das Ciências para o Ensino – Colóquio II

65

Figura 3 – Sismo de 1755. Pintura de João Glama Stroberle. Extraído de

http://semanariocontacto.blogspot.pt/2010/11/efemeride-um-dos-terramotos-mais.html.

Pelo facto de ser Dia de Todos os Santos e ter ocorrido de manhã, o número de

vítimas foi muito maior. As pessoas estavam nas igrejas a assistir às missas quando

se deu a grande tragédia. As pedras das abóbadas dos templos, as colunas dos

altares e as paredes em redor abateram-se repentinamente sobre as pessoas que lá

se encontravam. O momento foi de pânico (Carvalho, 2006).

Os incêndios deflagraram por mais seis dias na baixa de Lisboa e durante as 24

horas seguintes a terra não parou de tremer. Bento Morganti, que escreveu “Carta de

hum amigo para outro” a 19 de dezembro de 1755, onde descrevia todo o

acontecimento menciona: “Com alguns princípios Fisicos para se conhecer a origem, e

causa natural de similhantes Phenómenos terrestres”, e refere “taõ voraz incêndio que

acabou por arruinar a melhor parte da Cidade, o qual principiou na mesma hora”

(Morganti, 1755, p. 4). A figura 4 é uma gravura denominada de ”Triste tableau des

effects causés par le tremblement de terre et incendies arrivés a Lisbonne le 1er

Novembre 1755″ e é uma oferta de J. J. Gomes de Brito, que se encontra no Arquivo

Nacional da Torre do Tombo, que representa os incêndios e a agitação que se seguiu à

grande tragédia. As réplicas do terramoto foram cerca de 600 em 1756 (Americana,

2005).

No entanto, o acontecimento seguinte ao terramoto que faria elevar ainda mais o

número de vítimas, foi o tsunami (figura 5). Segundo Moreira de Mendonça: “(…) A

estes impulsos da terra se retirou o mar, deixando nas suas margens ver o fundo ás

suas agoas nunca antes visto, e encapellando-se estas em altissimos montes, se

arrojarao pouco depois sobre todas as povoaçoens maritimas com tanto impeto, que

parecia quererem submergillas extendendo os seus limites (…)” (Sousa, 1928, pp.

480-949). Por volta das 11 horas da manhã o grande tsunami atinge Lisboa.

História das Ciências para o Ensino – Colóquio II

66

Figura 4 – “Triste tableau des effects causés par le tremblement de terre et incendies arrivés a

Lisbonne le 1er Novembre 1755”. Portugal, Torre do Tombo, Coleção Castilho, pt. 17, doc. 41.

Extraído de http://antt.dglab.gov.pt/exposicoes-virtuais-2/o-terramoto-de-1755-a-torre-do-tombo-

e-manuel-da-maia/.

Figura 5 – Terramoto de 1755, Lisboa. Extraído de http://www.porto.ucp.pt/pt/central-

eventos/alimentacao-da-fundacao-ao-terramoto-de-1755.

As pessoas, que tinham fugido das igrejas apavoradas, encontraram junto ao rio

um espaço mais aberto, onde, pensavam elas, estariam mais a salvo. No entanto, o

tsunami descrito por Moreira de Mendonça foi devastador pois “O movimento das

agoas, foi hum dos effeitos estupendos do Terremoto” e “Mais de oito dias depois do

primeiro de novembro não tiveram as marés o seu curso regular” (Mendonça, 1758,

pp. 242-243).

História das Ciências para o Ensino – Colóquio II

67

A figura 6, apelidada de “Terramoto de Lisboa”, é uma gravura comprada em

1889 num alfarrabista da Rua de São Bento que se encontra no Arquivo Nacional da

Torre do Tombo. Exibe, em primeiro plano, a agitação das águas e as embarcações

desprevenidas no rio Tejo.

Figura 6 – “Terramoto de Lisboa”. Portugal, Torre do Tombo, Coleção Castilho, pt. 17, doc.

76. Extraído de http://antt.dglab.gov.pt/exposicoes-virtuais-2/o-terramoto-de-1755-a-torre-do-

tombo-e-manuel-da-maia/.

O acontecimento inédito foi publicado e descrito por vários intelectuais e

estrangeiros da época. Lisboa era uma cidade que albergava diversos cidadãos

estrangeiros, com diversas ocupações, nomeadamente alguns intelectuais,

comerciantes e industriais. Ao assistirem a tal catástrofe, relataram o que se tinha

sucedido através de cartas, pinturas, notícias e poemas que alguns ainda hoje

existem. Por exemplo, Thomas Chase, um inglês estabelecido em Lisboa, que numa

carta dirigida à sua mãe descreve de forma pormenorizada e rigorosa a grande

tragédia: “A populaça, aparentemente, estava convencida da noção de que aquele era

o dia do Juízo Final; e desejando empenhar-se em tarefas piedosas, tinham-se

carregado de crucifixos e imagens de santos; homens e mulheres, sem distinção, nos

intervalos entre os tremores de terra ou se dedicavam a cantar ladainhas (…) sempre

que a terra tremia, todos de joelhos exclamavam Misericórdia nas mais pungentes

vozerias possíveis.” (Tavares, 2006, p. 111). Ainda, a Gazeta de Lisboa, único jornal da

época em Portugal, numa publicação de 1755, dedicou umas breves linhas à

descrição do terramoto ocorrido. Apesar do acontecimento ter sido grandioso e inédito

em Portugal e ter acontecido na cidade de Lisboa, o periódico foi muito sucinto e

discreto na notícia publicada na época: “o dia primeiro do corrente ficará memorável a

todos os séculos pelos terramotos e incêndios que arruinaram uma grande parte desta

cidade, mas tem havido uma felicidade de se acharem na ruína os cofres da fazenda

História das Ciências para o Ensino – Colóquio II

68

real e da maior parte dos particulares” (Lisboa, 1755, p. 45).

A figura 7 representa uma notícia do acontecimento de 1755 escrita por J. Meyer,

um holandês, que descreve o horrendo acontecimento, que nesta época teve um

impacto internacional imenso.

Assim, o terramoto de 1755 ficou mundialmente conhecido e, foi até,

considerado o maior sismo registado na Europa. Além de um grande acontecimento e

de uma grande revolução intelectual e cultural provocada na época, que mereceu a

atenção de Kant e Voltaire, o terramoto foi um evento natural nunca antes registado

com tal intensidade.

Figura 7 – Notícia do acontecimento Retirado de Arquivo Nacional da Torre do Tombo,

Exposições Virtuais. Extraído de http://antt.dglab.gov.pt/exposicoes-virtuais-2/o-terramoto-de-

1755-a-torre-do-tombo-e-manuel-da-maia/.

2.2.Após o Terramoto de 1755

Sebastião José de Carvalho e Melo, nascido a 13 de Maio de 1699, era nesta

época secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra, e em 1756 tomou

conta da pasta do Reino. Figura controversa e carismática da história, Marquês de

Pombal, assim conhecido, assumiu o comando da reconstrução de Lisboa nomeado

pelo Rei, pela competência e visão que tinha na época. Pereira de Sousa reconhece

isso mesmo: “Se não fôra a envergadura d’este grande portuguez, que compreendeu

quanto seria util para a sciencia e para o paiz o fazer-se um inquérito em Portugal, não

História das Ciências para o Ensino – Colóquio II

69

podeia eu escrever esta these, e, coincidência notável destinado a entrar como

assistente na Faculdade de Sciencias (…)” (Sousa, 1914, p. 3).

Após este tremendo acontecimento, Marquês de Pombal, rejeita a hipótese

divina do sucedido e assume a hipótese científica do mesmo. Já muito inovador para a

época, distribui um inquérito científico, para apurar os factos do acontecimento e

dirige-se ao Rei dizendo “agora há que enterrar os mortos, cuidar dos vivos e fechar

os portos”, uma frase que na verdade não se sabe se foi pronunciada ou não.

O inquérito, de “natureza puramente sismológica”, continha treze questões

acerca das características do abalo sentido e dos respetivos danos e foi distribuído em

Lisboa, Lagos e Faro. A figura 8 mostra o inquérito elaborado. Os párocos

demonstravam o maior respeito pelo marquês, respondendo por isso com exatidão e

brevidade (Carneiro & Mota, 2007).

Figura 8 – Inquérito distribuído por Marquês de Pombal aos párocos. Retirado de Luso-

Americana, 2005 p.158.

A reconstituição de Lisboa era urgente e necessária e Marquês de Pombal sabia-

o. No entanto, algumas questões se colocam: Como era Lisboa antes do terramoto de

1755? Como era a topografia da cidade? Como eram os edifícios da época?

História das Ciências para o Ensino – Colóquio II

70

Antes do terramoto, Lisboa era uma cidade pobre descrita por várias

personalidades estrangeiras da época como “(…) não encontrar um edifício que

mereça a menor atenção (…)”, “(…) as suas ruas estreitas, sejas e incómodas (…)” ou

mesmo “(…) uma cidade de África (…)” (Ratton, 1813, p. 274). Lisboa era uma cidade

medieval, vasta e desorganizada, sem qualquer ordenamento. O lixo nas ruas, as

águas sujas e a propagação de pragas era algo comum. As ruas eram estreitas, sujas

e incómodas. Não havia qualquer ordenamento do território e as construções dos

edifícios da época eram ao acaso e com problemas de circulação, de higiene e de falta

de segurança. No entanto, Lisboa aparentava ser uma cidade rica e cosmopolita e

dependia da produção diamantífera e aurífera do Brasil. Lisboa era o centro político e

comercial do país, onde se situava o Palácio Real. Era ainda, o ponto de encontro de

diversos intelectuais e poetas da época (figuras 9 e 10).

Quanto à localização da cidade, esta desenvolve-se junto à margem direita do

rio Tejo. O rio limita a cidade a Sul e a Sudeste e é possível verificar pela figura 11 as

colinas que em tempos antigos seriam sete (Castelo, São Vicente, São Roque, Santa

Catarina, Chagas, Santana e Santo André). A cidade apresenta uma morfologia

irregular com pontos mais elevados mais marcados e zonas baixas, de vales.

Figura 9 – Terreiro do Paço no século XVII, óleo sem tela, por Dirk Stoop, Londres, 1662.

Exposto no Museu da Cidade de Lisboa.

História das Ciências para o Ensino – Colóquio II

71

Figura 10 – Praça do Comércio no século XVIII, Projeto – Gravura do século XVIII.

Exposto no Museu da Cidade de Lisboa.

Figura 11 – Perspetiva de Lisboa no século XVI. Da obra de George Braunio. Exposto no

Museu da Cidade de Lisboa.

História das Ciências para o Ensino – Colóquio II

72

Segundo Almeida, 1991, Lisboa apresenta duas unidades geomorfológicas: os

terrenos incluídos na Bacia Lusitaniana e os terrenos pertencentes à Bacia Cenozoica

do Tejo-Sado. Os primeiros compõem relevos importantes como a Serra de Monsanto

e a colina da Ajuda. Já os segundos constituem áreas extensas de topos aplanados

onde os declives são menos acentuados. Lisboa teria grandes relevos topográficos e

terrenos aluviais mais próximos do rio (Almeida, 1991).

Quanto aos edifícios, os designados edifícios pré-pombalinos, eram alguns de

elevada qualidade com paredes de alvenaria bem cuidada, pedra aparelhada nos

cunhais e elementos de travamento. Outros edifícios de qualidade inferior

apresentavam uma alvenaria pobre, com taipa mal conservada e grandes

deformações. Não tinham elementos de travamento e as paredes tinham uma

espessura considerável. Alguns dos edifícios tinham frentes estreitas, com cobertura

de quatro águas ou duas perpendiculares à fachada. Tinham geralmente três a quatro

pisos, ou seja, eram altos e de fachadas desalinhadas. Alguns edifícios eram

construídos sobre arcos e apresentavam frágil fixação ao piso. Quanto à constituição

esta era mista de alvenaria e de pedra, com tabiques exteriores e tijolos para arcos de

ressalva e chaminés. Alguns edifícios possuíam a fachada em ressalto, constituída

pelo prolongamento das vigas do pavimento, paredes de tabique. Usava-se a madeira

em cruz para conferir maior resistência e usava-se alvenaria com argamassa de cal e

areia para o preenchimento. Quanto ao espaço interior dos edifícios este era diminuto,

com corredores suprimidos e com os compartimentos mal divididos. As janelas, na sua

maioria inexistentes, eram de pequenas dimensões, bem como, as portas. O acesso

aos edifícios era realizado por escadas, alinhadas ao comprimento dos edifícios e

estreitas (Mascarenhas, 2012) (Santos, Cunha, & Alves, 1993, p. 276). Várias foram as

pinturas alusivas à cidade de Lisboa antes e depois do Terramoto de 1755.

Figura 12 – Lisboa no Terramoto de 1755. Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Exposições

Virtuais (Imagem da esquerda) e ”Vista de Lisboa antes do terramoto de 1755″. 1836. Portugal,

Torre do Tombo, Coleção Castilho, pt.17, doc. 98 e 99 – Imagem superior. ”Panorama de

Lisboa antes do terramoto de 1755 (segundo uma gravura da época)”. Portugal, Torre do

Tombo, Coleção Castilho, pt. 17, doc. 20 – Imagem inferior. Extraído de

http://antt.dglab.gov.pt/exposicoes-virtuais-2/o-terramoto-de-1755-a-torre-do-tombo-e-manuel-

da-maia/.

História das Ciências para o Ensino – Colóquio II

73

No Arquivo Nacional da Torre do Tombo encontram-se algumas dessas imagens

alusivas à cidade de Lisboa antes do Terramoto de 1755 cedidas pelos autores ao

arquivo. Na figura 12, a imagem do lado direito é da autoria de Caetano Alberto e a

imagem inferior de J. P. Aragão que representa a Torre de Belém, o rio Tejo e a cidade

no geral.

O terramoto destruiu cerca de dois terços das ruas lisboetas, dezassete mil

casas, trinta e cinco igrejas, sessenta e quatro conventos, os hospitais existentes e

trinta e três casas senhoriais (Quadros, 1989, p. 10). Mas alguns edifícios não

desmoronaram. Pereira de Sousa, 1909, averiguou “Que as construcções assentes

sobre os calcareos e marnas com Rudistas, no basalto ou tufo basáltico, e sobre os

grossos bancos de mollasse calcareo e de grés do terciário resistiram, em geral, ao

terramoto”, “Que as contrucções assentes sobre as possantes bancadas de argila

terciaria resistiram cada uma, em geral, em grande parte aos abalos” e, finalmente,

“Que as contrucções assentes sobre as bancadas de areolas e de areias e sobre as

aluviões foram, em geral, destruídas ou quasi destruídas” (Sousa, 1909, p. 222).

Várias foram as ajudas que Portugal recebeu de países como o Brasil, Inglaterra

e Hamburgo, que enviaram dinheiro e materiais de construção. Alguns decretos foram

também criados para cobrar impostos e proibir construções pela cidade. Havia uma

preocupação constante por entender o acontecimento e por tentar prevenir um

acontecimento igual.

Era, por isso, imprescindível o desentulhamento das ruas, a drenagem das

águas estagnadas, a balizagem das parcelas destruídas, a medição e tombo das

praças, ruas, casas e edifícios público, e Marquês de Pombal assim o considerou.

Manuel da Maya, engenheiro-mor do Reino e arquiteto entregou a Marquês de

Pombal, um longo memorial, com diversas plantas possíveis para a reconstituição de

Lisboa. Esta dissertação, onde são consideradas diversas hipóteses para a

reconstrução de Lisboa, demonstra o interesse maior que Manuel da Maya, então com

79 anos, dedicou a este assunto (Quadros, 1989). Na primeira parte da Dissertação de

Manuel da Maia, no ponto 1, o mesmo escreve: “Reconhecida, e observada a

destruição da cid.e de Lix.a he preciso intentar-se a sua renovação, e como esta se

pode executar por diversos modos, parece também preciso que estes se preponderem

p.a entre eles se fazer eleição do q se conhecer com mais vantagens, e menos

inconvenientes.” (Maya, 1756, p. 2). Com estas preocupações prementes as diversas

plantas contemplavam questões fundamentais como manter ou não a velha Lisboa,

aproveitar ou não o que restou dos edifícios, alterar a altura dos mesmos e alargar as

ruas, proibir a construção desregrada de casas e edifícios públicos, entre outras

preocupações.

2.3.A reconstrução de Lisboa e Manuel da Maya

Foi Marquês de Pombal que pensou de imediato no futuro de Lisboa e para isso

nomeou, Manuel da Maya, minucioso em questões de ordem técnica e prática, que

apresentava um sentido inovador da engenharia sísmica da época, e que se

preocupava em criar um plano urbanístico integrado para o nascimento de uma nova

cidade de Lisboa, ideia que defendia. No entanto, não trabalhou sozinho, mas sim,

rodeou-se de distintas personalidades da engenharia, como Eugénio dos Santos e

Carlos Mardel (figura 13). Como se pode ler em “Manuel da Maya e os engenheiros

militares portugueses no Terramoto de 1755”: “Quando, das ruinas d’esse horrivel

terremoto, a energica vontade do Marquês de Pombal fez erguer, alinhada, garrida e

História das Ciências para o Ensino – Colóquio II

74

bella, a nova cidade, os engenheiros militares foram os auxiliares principaes d’essa

vontade de ferro. O engenheiro-mor Manuel da Maia e os seus officiaes dirigiram e

executaram as principaes obras.” (Ayres, 1910, p. 20)

Figura 13 – O Marquês de Pombal e seus colaboradores examinando os planos de

reedificação da cidade de Lisboa, por M. A. Lupi. Exposto no Museu da Cidade de Lisboa.

Antes do terramoto, Portugal tinha sido palco de duas grandes obras, o

Aqueduto das Águas Livres e o Convento e Palácio Real de Mafra. Estas duas

grandes obras de engenharia deram bases a este grupo para a construção de uma

nova Lisboa.

Figura 14 - Marquês de Pombal (imagem da esquerda, exposto no Arquivo Nacional da Torre

do Tombo) e Manuel da Maya (imagem da direita, extraído de

http://antt.dglab.gov.pt/exposicoes-virtuais-2/o-terramoto-de-1755-a-torre-do-tombo).

História das Ciências para o Ensino – Colóquio II

75

Logo a 4 de Dezembro de 1755 Manuel da Maya dirige ao Duque de Lafões uma

dissertação que Marquês de Pombal recebeu e estudou (figura 14). O engenheiro-mor

divide a dissertação em três partes onde apresenta as várias hipóteses de

reconstrução de Lisboa, modelos arquitetónicos e observações de ordem prática e

técnica. O próprio escreve “Reconhecida, e observada a destruição da cid.e de Lix.a

(no 1.º de Nov. de 1755) he preciso intentar-se a sua renovação, e como esta se pode

executar por diversos modos, parece também preciso que estes se preponderem p.a

entre eles se fazer eleição do q se conhecer com mais ventagens, e menos

inconvenientes.” (Ayres, 1910, p. 25).

As plantas dividiam-se entre aquelas que sugeriam a renovação da cidade com

novos edifícios mas mantendo o mesmo ordenamento e aquelas que propunham uma

Lisboa totalmente nova e com um melhor ordenamento. As seis plantas elaboradas,

foram da autoria não só de Eugénio dos Santos e Carlos Mardel mas também de

Gualter da Fonseca com o praticante Francisco Pinheiro da Cunha (planta nº1);

capitão Elias Sebastião Poppe com o ajudante José Domingos Poppe (planta nº2);

capitão Eugénio dos Santos com o ajudante António Carlos Andreas (planta nº3);

Gualter da Fonseca (planta nº4); Eugénio dos Santos (planta nº5) e Elias Sebastião

Poppe (planta nº6) (Quadros, 1989).

Manuel da Maya coordenou as equipas e foi especificado que a planta nº1

apenas deveria corrigir as ruas estreitas e melhorar as largas, a planta nº2 já poderia

conter um novo plano e que a planta nº3 ainda poderia inovar mais mas respeitando a

localização das igrejas. A área abrangida pela requalificação seria a parte central da

cidade, a zona da baixa e a sua envolvente urbana, que foram os locais mais afetados

pelo terramoto.

Lendo e analisando a dissertação de Manuel da Maya é possível compreender e

verificar o que se pretendia para cada uma das plantas (a planta nº6 não consta desta

dissertação). Assim se pode descrever o seguinte de cada planta (Ayres, 1910, pp. 25-

32):

Planta n.º1 – restitui a antiga cidade de Lisboa, levantando os edifícios nas suas

antigas alturas e as ruas nas suas antigas larguras. Esta planta, reconhece Manuel da

Maya, não supõe a ocorrência de novo terramoto, pois como passaram tantos anos

sem nenhum, tal não deve voltar a acontecer. Lisboa ficaria como dantes. Dos

destroços e ruínas se ergueriam os edifícios tal como se pode ler “(…) servindo os

mesmos destroços, e ruinas p.a a erecção dos edif.os evitando o trab.o e despeza dos

dezentulhos; cuja acomodação se faz mui difícil, e talvez de prejuízo, onde os

quiserem acomodar, ou sej no mar ou na terra.” (figura 15).

Planta n.º2 – propõe edificar os edifícios nas mesmas alturas que tinham mas as

ruas estreitas deveriam ser agora ruas largas e novamente “(…) despreza a precaução

do terremoto (…)”. Valoriza a serventia da população e menospreza a proteção contra

novo terramoto. Melhora as entradas da cidade no Terreiro do Paço e alguns edifícios

arruinados, já com alguma ideia de inovação urbanística moderna (figura 16).

Planta n.º3 – difere das anteriores pois reduz a altura dos edifícios a dois pisos e

as ruas estreitas passam a ser ruas largas. Reconhece que a altura dos edifícios

provoca maiores danos caso haja algum terramoto e a facilidade de atuação (remoção

de destroços, assistência à população, etc.) nas ruas mais largas em vez das ruas

mais estreitas. Esta planta conjuga certos valores da antiga cidade e assume uma

modernização da rede urbana. Cria-se uma ligação direta entre o Rossio e o Terreiro

do Paço, e este ganha uma independência urbana, com uma nova forma quadrada,

História das Ciências para o Ensino – Colóquio II

76

que já supõe uma urbanização da Baixa (figura 17).

Figura 15 – Planta n.º 1. Autor: Pedro Gualter

da Fonseca e Francisco Pinheiro da Cunha,

1755. Exposta no Museu da Cidade de

Lisboa.

Figura 16 – Planta n.º 2.

Autor: Elias Sebastião

Poppe e José Domingues

Poppe, 1755. Exposta no

Museu da Cidade de

Lisboa.

História das Ciências para o Ensino – Colóquio II

77

Figura 17 – Planta n.º 3. Autor: Eugénio dos Santos e António Carlos Andreias, 1755. Exposta

no Museu da Cidade de Lisboa.

Planta n.º 4 – esta planta incorpora inteira liberdade de atuação e “(…) arrazando

toda a cid.e baixa, levantandoa com os entulhos, suavizando assim as subidas p.a as

p.tes altas, e fazendo descenso p.a o mar com melhor correnteza das aguas, formando

novas ruas com liberd.e competente, tanto na largura, como na altura dos edif.os q

nunca poderá exceder a largura das ruas.”

Prevê a ocorrência de novo terramoto espelhando-se tal facto na altura dos

edifícios, na largura das ruas, no desentulhamento dos destroços e na escorrência das

águas para o mar, prevenindo inundações na cidade. A ideia da malha regular de ruas

perpendiculares e transversais e nunca oblíquas, domina esta planta (figura 18).

História das Ciências para o Ensino – Colóquio II

78

Figura 18 – Planta n.º 4. Autor: Pedro Gualter da Fonseca, 1755. Exposta no Museu da

Cidade de Lisboa.

Planta n.º 5 - sugere uma nova Lisboa desde Alcântara até Pedrouços e é

composta por uma malha assaz complexa de ruas que dinamiza toda a Baixa. Os dois

pólos da Baixa, o Terreiro do Paço e o Rossio, alinham-se pelo lado poente e,

finalmente, encontram o seu papel definitivo. A forma quadrada do Terreiro do Paço

assume-se e sobem três ruas até ao Rossio, sendo que as duas do lado poente

desembocam na praça. Outras três partem três quarteirões acima do Terreiro do Paço

até à linha sul do Rossio. As ruas transversais, ao todo sete, contribuem juntamente

com as restantes para uma malha muito dinâmica da área de Lisboa. A variação da

largura das ruas, da forma e da orientação dos quarteirões contribuem para a mesma

dinamização (figura 19).

Figura 19 – Planta n.º 5, Autor: Eugénio dos Santos e Carlos Mardel. Extraído de

http://www.museudacidade.pt/Coleccoes/Cartografia/CML_Pecas_Suporte/MC.GRA.0035%20c

opy.jpg

História das Ciências para o Ensino – Colóquio II

79

Planta n.º 6 – muito idêntica à planta n.º 4, prevê grande liberdade de atuação,

uma malha regular de ruas que ligam as duas praças e com sistemas perpendiculares

e transversais. A quadrícula elaborada por Poppe era muito monótona e possua nove

quarteirões. Nesta planta o Terreiro do Paço fechava-se, tornando-o interior e

separado do rio Tejo. Este foi um erro crasso apontado a Poppe (figura 20).

Figura 20 – Planta n.º 6. Autor: E. S. Poppe. Retirado de Quadros, 1989, p.117.

Após apresentação das seis plantas elaboradas por tão ilustres profissionais, foi

Marquês de Pombal, que tomou a decisão mais apropriada e inovadora para a

reconstituição de Lisboa optando pela planta nº5 da “Baixa Pombalina”. Pode ler-se

em “Manuel da Maya e os engenheiros militares portugueses no Terramoto de 1755”

que “A estas observações da ilustre escritora acrescentaremos que, se realmente se

obedeceu a esse principio scientifico, não se pode regatear ao grande Pombal a gloria

de mais essa forma superior por que a sua obra foi executada; mas de justiça é

igualmente reconhecer que os engenheiros que tal obra executaram conheceram e

souberam aplicar esse importante preceito ” (Ayres, 1910, p. 6)

A planta escolhida, praticamente igual ao que Lisboa é hoje, apresenta uma

malha com 8 ruas na vertical no sentido sul-norte e nove ruas transversais no este-

oeste. O Terreiro do Paço torna-se um retângulo perfeito. Os nomes das ruas, por

exemplo, Rua do Ouro e Rua dos Sapateiros, refletiam a importância que Marquês de

Pombal dava ao comércio, tal como, o Terreiro do Paço que é a Praça do Comércio.

Talvez seja o reconhecimento de Marquês de Pombal a uma classe, os comerciantes,

que muito contribuíram para a reconstrução de Lisboa.

No entanto, pode-se interpretar a história de outra forma, considerando que

Marquês de Pombal era maçon e que a planta nº5, escolhida por este e elaborada por

História das Ciências para o Ensino – Colóquio II

80

Eugénio dos Santos, também maçon, incluía símbolos maçónicos. Alguns consideram

que a Baixa Pombalina é a projeção de um templo maçónico. O cais das colunas seria

a entrada do templo de Salomão e as três primeiras fiadas de prédios seriam os três

primeiros passos dos aprendizes da maçonaria. Já as cinco fiadas seguintes

representariam os cincos passos dos companheiros maçons. Os passos dos mestres,

que seriam oito, estariam dissimulados no resto da planta para que ninguém mais os

pudesse reconhecer. Rodando a planta, observam-se cinco passos mais três sob uma

curva, que seria a curva do compasso, símbolo da maçonaria e ferramenta dos

mestres. Pode então afirmar-se que segundo esta linha de pensamento, Lisboa, após

a grande tragédia, pode ser um enorme templo da maçonaria.

Só em 1958 é que os trabalhos têm início e nesse mesmo ano algumas

situações especiais e pontuais são resolvidas (Sousa, 1928). O grupo de engenheiros,

que formavam um triângulo perfeito de conhecimentos pluridisciplinares, trabalhava de

forma assertiva e integrada, e definiram verdadeiras inovações ao nível das técnicas

de construção antissísmica, proteção contra incêndios, higiene e saúde pública, pré-

fabricação e estandardização. De entre as novidades para a época destacam-se o uso

da gaiola Pombalina de forma generalizada, o recurso a fundações com estacas de

madeira e a realização de ensaios para simular os efeitos dos movimentos provocados

(Almeida, 2005, p. 85).

O termo “gaiola” refere-se a uma estrutura de madeira que, pela sua

elasticidade, se adapta aos movimentos do solo sacudido por um sismo, resistindo de

pé e desprendendo-se das alvenarias que podem cair, ou não, sem que o prédio

inteiro se desmorone (França, 1981, p. 103).

A figura 21 representa a disposição mais comum dos elementos constituintes de

uma gaiola, cuja construção se iniciava a partir do momento que os alicerces das

paredes atingiam o nível do terreno exterior ou, na maioria dos casos, a partir da

estrutura de cantaria do rés-do-chão (França, 1981, p. 103).

Figura 21 – Elementos constituintes da gaiola Pombalina. LNEC.

Extraído de http://www-ext.lnec.pt/LNEC/DE/NESDE/divulgacao/gaiol_const_sism.html

História das Ciências para o Ensino – Colóquio II

81

Os estrangeiros referiam que “os portugueses pretendem que as casas assim

construídas resistem especialmente aos tremores de terra que Lisboa frequentemente

sofre” (Murphy, 1795, p. 166).

Os edifícios, numa tentativa de evitar quedas dos mesmos, continham arcos

para transmitir melhor as cargas ao terreno e fundações de estacas de madeira que

permitiam a estabilidade num terreno instável como o da baixa lisboeta (figura 22). As

estacas de pinho teriam cerca de um metro e meio de comprimento e quinze

centímetros de diâmetro. A gaiola pombalina, já referida acima como uma estrutura

genial para a mitigação de sismos, serviu também para testar os efeitos dos

terramotos. Sob o comando de Carlos Mardel, o exército marchava sobre os edifícios

pomba linos, testando-os para vibrações fortes.

Figura 22 – Edifício Pombalino com fundações de estacas de madeira. Extraído de Ramos &

Lourenço, 2000, p. 38.

Além destas inovações, criaram-se paredes “quebra-fogo” que preveniam a

propagação do fogo de edifício para edifício, esgotos e alfurges, chaminés do lado dos

logradouros e eliminaram-se alguns pormenores decorativos das fachadas. Muitos dos

componentes de construção eram pré-fabricados fora do país e facilmente se incluíam

nos edifícios. A estandardização e a pré-fabricação foram novidades no país. A

reconstrução de Lisboa tinha de ser rápida e barata (Sousa, 1928).

Assim, após a escolha inteligente e a sagacidade na reconstrução de Lisboa,

esta cidade tornou-se “(…) a primeira das cidades modernas e a última das cidades

antigas (…)” (França, 1981, p. 103).

3. A Proposta Didática

Baseada na ABRP, a proposta didática que se propõe tem como título

“Reconstrução da Baixa Pombalina: A Escolha da Planta” e segue a linha de propostas

de trabalho para Ciências Naturais, Biologia e Geologia, sugerida pelos autores

Vasconcelos & Almeida (2012).

História das Ciências para o Ensino – Colóquio II

82

RECONSTRUÇÃO DA BAIXA POMBALINA: A ESCOLHA DA PLANTA

Contextualização curricular: 10º ano de escolaridade. Compreender a estrutura e a

dinâmica da geosfera. Sismologia.

Tempo previsto: 90 minutos.

Pré-requisitos: no 7º ano de escolaridade é abordado o tema da atividade sísmica como

consequência da dinâmica interna da Terra. É abordado o conceito de sismo, intensidade

sísmica e magnitude, risco sísmico em Portugal e medidas de proteção de bens e pessoas.

Objetivos específicos:

- Compreender o terramoto de 1755 como um acontecimento inédito em termos científicos,

culturais e sociais;

- Identificar as causas e consequências do terramoto e do tsunami gerado;

- Descrever as providências tomadas após o grande terramoto;

- Reconhecer o trabalho inédito de Marquês de Pombal, Manuel da Maya e colaboradores;

- Observar as plantas propostas para a reconstrução da baixa de Lisboa;

- Argumentar sobre as necessidades da cidade de Lisboa após o terramoto e a escolha da

planta da Baixa Pombalina.

Conceitos a mobilizar: Terramoto; Sismo; Tsunami; Prevenção sísmica; Risco sísmico;

História das Ciências; Gaiola Pombalina; Baixa Pombalina.

O Cenário: proposto em formato digital, em forma de vídeo, pretende além de fornecer

dados científicos e históricos acerca do acontecimento, problematizar e incentivar o

questionamento, despertando a curiosidade e a crítica dos alunos. Está disponível em:

http://www.fc.up.pt/pessoas/csvascon/articles/CBP.mp4.

Questões-problema:

- Como era a cidade de Lisboa antes do terramoto de 1755?

- Poderiam o mau estado dos edifícios e o mau ordenamento do território lisboeta ter

condicionado tamanha catástrofe?

- Que impacto causou a catástrofe na cidade de Lisboa?

- Que fatores condicionaram a catástrofe desencadeada pelo terramoto?

- Como reagiram os lisboetas à tragédia?

- O que era considerado prioritário nas plantas apresentadas?

- Qual a mais adequada à cidade de Lisboa?

- De que forma Marquês de Pombal, Manuel da Maya e colaboradores, inovaram a

engenharia sísmica?

História das Ciências para o Ensino – Colóquio II

83

4.Conclusão

O grande terramoto de 1755 ocorrido em Portugal constitui uma temática

abrangente e envolvente no ensino das ciências. Pode-se, como se pôde comprovar,

utilizar este acontecimento marcante para o país, como uma oportunidade de

promover a história da ciência, numa perspetiva de ensino orientado para a

investigação, no caso, através de uma abordagem de ABRP.

O ensino das ciências por investigação data o seu início no século XIX quando

diversos países começaram a incluir nos currículos as disciplinas de ciências. No

século seguinte, a discussão de como seria a melhor forma de ensinar ciência estava

aberta. Mas, era fundamental ensinar ciências de forma a formar cidadãos

pertencentes a uma sociedade democrática, com uma postura de questionamento e

com participação ativa na sociedade. Assim, e aliado a um desenvolvimento industrial

e tecnológico, surge a necessidade de alterar currículos e adaptá-los aos jovens que

precisavam de participar ativamente nas aulas, discutir, pensar, argumentar e

problematizar. Daí aplicar-se a ABRP nesta proposta, pois é promovida em sala de

Questões-problema (continuação):

- Com os conhecimentos de engenharia sísmica que possuímos atualmente, pode dizer-se

que a escolha foi acertada?

Produto final: após o cenário proposto, os alunos deverão responder às questões, em

grupos de 3 a 4 elementos, e para tal, deverão selecionar a planta que melhor permitiria a

reconstrução de Lisboa após o terramoto de 1755. Deverão ter em conta o contexto

histórico e social da época, o impacto do acontecimento, o conhecimento disponível da

época e o trabalho inédito de Marquês de Pombal, Manuel da Maya, Carlos Mardel e

Eugénio dos Santos. As seis plantas deverão ser disponibilizadas aos grupos de trabalho e,

em conjunto e apresentando argumentos válidos, vantagens e desvantagens, deverão

selecionar a planta que permitiria renovar e melhorar a cidade de Lisboa.

Fonte de dados:

- Manual escolar;

- Cópias do documento disponível online pela Biblioteca Nacional de Portugal “Manuel da

Maia e os engenheiros militares portugueses no terremoto de 1755” http://purl.pt/848/5/#/20;

- Arquivo Nacional da Torre do Tombo “O Terramoto de 1755, a Torres do Tombo e Manuel

da Maia” http://antt.dglab.gov.pt/exposicoes-virtuais-2/o-terramoto-de-1755-a-torre-do-

tombo-e-manuel-da-maia/;

- Visualização de vídeo informativo da RTP acerca do Terramoto de 1755

http://www.rtp.pt/play/p1091/e108473/conta-me-historia (facultativo).

Articulações interdisciplinares:

História – estudo de um período decisivo da história de Portugal que esta disciplina pode

auxiliar na compreensão do contexto cultural, social e científico.

História das Ciências para o Ensino – Colóquio II

84

aula a resolução de problemas apresentados (Leite & Esteves, 2005, pp. 1751-1752).

De facto, esta aprendizagem proposta envolve um problema central, um

questionamento e uma investigação e o aluno aprende a aprender, tendo no professor

um facilitador da mesma (Almeida & Vasconcelos, 2012). O aluno é estimulado a ser

autónomo, autorregulador e a aplicar o problema central aos dilemas do dia-a-dia. O

questionamento, promovido pelo cenário em formato digital, pretende criar no aluno a

necessidade de responder às questões colocadas, seja pelo cenário proposto, seja

pelo próprio aluno. O aluno é sempre autónomo o suficiente para questionar e

problematizar após a apresentação do problema central (Chin & Osborne, 2008, pp. 2-

4). Questionar é sempre colocar o aluno a pensar sobre algo (Leite et al., 2012, pp.

130-133). Após esta fase, a investigação, que neste caso supõe uma análise

documental, passa pela procura de respostas. Uma vez que, o terramoto de 1755

obriga a uma análise ao passado e a documentos históricos, propõe-se a análise

destes mesmos documentos, como a base desta investigação.

A necessidade que se cria nos alunos de relacionarem a história das ciências

com a atualidade, ao desenvolverem esta atividade, é um ponto-chave no

desenvolvimento do pensamento crítico dos mesmos. Por outro lado, o conhecimento

não deve ser apresentado dissociado do seu contexto histórico pois o significado

atribuído é imenso (Amador, 2010, p. 9). Diversos procedimentos e decisões tomadas,

nomeadamente neste caso, na escolha da melhor forma de reconstituição da Baixa

Pombalina, podem ser explicados e percebidos de acordo com o contexto histórico.

No entanto, a resolução de problemas não é apenas um meio de realização de

aprendizagens de conteúdo científico, mas também de competências sociais que

estão na base de cidadãos autónomos, críticos e ativos (Leite & Esteves, 2005, pp.

1751-1752). A promoção do trabalho de grupo é também uma das competências que

se podem desenvolver ao longo desta atividade. Já Vygotsky referia que a

aprendizagem resulta de um processo profundamente social (Cakir, 2008, pp. 194-

196), daí a importância do trabalho em grupo nesta atividade.

Por último, instala-se a inevitável comparação entre a história e as condições em

que a mesma se desenvolveu e a atualidade, pairando a questão: E se fosse hoje o

terramoto de 1755, a reconstituição da Baixa Pombalina seria realizada de que forma?

5.Agradecimentos

A elaboração deste trabalho foi suportada pelo projeto PEst –

OE/CTE/UI0039/2014, financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT).

6.Referências bibliográficas

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História das Ciências para o Ensino – Colóquio II

86

REVISITANDO “MAN AND NATURE” DE GEORGE PERKINS

MARSH, O PIONEIRO DO AMBIENTALISMO

REVISITING "MAN AND NATURE" of GEORGE PERKINS MARSH, THE PIONEER OF ENVIRONMENTALISM

António Almeida1*, Joana Faria2 & Clara Vasconcelos3

Resumo

George Perkins Marsh nasceu em Woodstock, Vermont (EUA), a 11 de março de 1801. Homem

versátil, exerceu profissões diversas, sendo recordado nos dias de hoje pela sua obra Man and

Nature, publicada em 1864, considerada pioneira por alertar pela primeira vez para o impacto

negativo da ação antrópica no ambiente. No início da referida obra, Marsh destaca a

necessidade de precaução na forma como interferimos com a natureza, atendendo a que o

Homem é uma força capaz de a modificar como nenhuma outra forma de vida (Marsh, 1965).

Influenciado pelo movimento transcendentalista, acaba por seguir um pensamento mais

pragmático que talvez ajude a explicar a menor influência das suas ideias em determinadas

correntes ambientalistas contemporâneas, defensoras de uma certa conceção de natureza

intocada, que de alguma forma era estranha no contexto do século XIX. O presente estudo

analisou a obra referida nos seguintes aspetos: i) identificação de conceitos de Ecologia que

permanecem atuais; ii) identificação de temas/questões que são ainda nos dias de hoje objeto

de discussão/controvérsia; iii) caracterização do ideário ambientalista do autor no contexto

histórico, social e filosófico da época. Assim, foi considerado fundamental evitar-se, tal como

salienta Lowenthal (2000), a interpretação das suas ideias à luz de algumas perspetivas

ambientalistas atuais de teor igualitário na forma de olhar o mundo natural, e que tendem a

rotular a obra de Marsh como conservadora e antropocêntrica. A análise efetuada permitiu

identificar a atualidade de muitas das ideias de Marsh e a pertinência da sua obra nos dias de

hoje, podendo a mesma desencadear uma reflexão acerca do caminho da Humanidade na sua

relação com o mundo natural. Pretende-se assim dar visibilidade ao pensamento de Marsh não

se conhecendo qualquer tradução da obra analisada (ou de outra) para língua portuguesa.

Palavras-chave: Ambientalismo; Ecologia; George Perkins Marsh; Man and Nature.

Abstract

George Perkins Marsh was born in Woodstock, Vermont (USA) on 15 March 1801. He was a

versatile man, holding several professions, and remembered today for his work Man and

Nature, published in 1864, considered pioneer for warning about the negative impact of human

action on the environment. At the beginning of this book, Marsh highlights the need for caution

in the way we interfere with nature, given the fact that man is a force capable of modifying the

earth as no other life form (Marsh, 1965). Marsh was influenced by the Transcendentalist

movement. However, he followed a more pragmatic thinking that might help explain the minor

influence of his ideas on certain contemporary environmentalist movements, defenders of a

certain conception of pristine nature, which was somehow strange in the context of the

nineteenth century. The present study has analyzed the book of Marsh in the following aspects:

i) identification of concepts of ecology present in the text that remain current nowadays; ii)

identification of themes / issues that are still remain today subject of discussion / controversy; iii)

1 Escola Superior de Educação de Lisboa / Centro de Geologia da Universidade do Porto. *Autor de

contacto: [email protected] 2

Escola de Ciências da Universidade do Minho 3 Centro de Geologia da Universidade do Porto; DGAOT/Unidade de Ensino das Ciências; Faculdade de

Ciências da Universidade do Porto.

História das Ciências para o Ensino – Colóquio II

87

characterization of the environmentalist ideology of the author in the historical, social and

philosophical context of the time. Thus, it was considered essential to avoid, as emphasized by

Lowenthal (2000), the interpretation of his ideas in the light of some current environmental

perspectives that tend to look at nature in an egalitarian way and which tend to label the work of

Marsh as conservative and anthropocentric. The analysis done made it possible to identify the

relevance of many of the ideas of Marsh and the relevance of his work today, since it can trigger

a reflection on the path of humanity in its relationship with the natural world. It is intended to give

visibility to Marsh´s thought, knowing that no translation of his work to Portuguese has yet been

done.

Keywords: Ecology; Environmentalism; George Perkins Marsh; Man and Nature.

1. Introdução

Acerca do autor

George Perkins Marsh nasceu em Woodstock, Vermont (EUA), a 15 de março de

1801. Durante a sua vida abraçou atividades muito diversas, entre as quais se

destacam a de advogado, editor de um jornal, criador de gado, industrial,

conferencista, político e diplomata. Todavia, o seu nome é relembrado principalmente

como ambientalista, sendo mesmo considerado, por alguns autores, o primeiro

ambientalista moderno e um dos percursores do Conservacionismo (Holzer, 2005;

Cleveland & Lee, 2010). Tal atributo ficou a dever-se, principalmente, à publicação do

livro Man and Nature, or Physical Geography as Modified By Human Action em 1864, o

qual foi revisto em 1874 com o título The Earth as Modified by Human Action, a new

edition of Man and Nature. Nesta obra, Marsh é dos primeiros autores a alertar de uma

forma sistemática e fundamentada para o impacto da ação antrópica no meio natural e

suas consequências para as gerações futuras.

O desempenho da multiplicidade de atividades exercidas por Marsh foi ajudado

certamente pelas suas características pessoais e pela sua formação académica

diversificada. Marsh é descrito como tendo sido uma criança curiosa, inteligente, que

lia compulsivamente. Na sua formação, após um breve período na Academia Phillips,

em Andover (Massachusetts), entrou na Universidade de Dartmouth, em Hanover, em

1816, onde estudou línguas antigas e modernas. Mais tarde estou direito e, após

exame à Ordem, exerceu advocacia a partir de 1825 em Burlington e Vermont (Davis,

1906; Feuer, 1958).

Sem se procurar ser exaustivo com aspetos de natureza biográfica, importa

ainda destacar mais alguns dados que ajudam a explicar melhor o interesse de Marsh

por temas que hoje apelidamos de teor ambiental. Assim, depois do exercício da

advocacia, exerceu vários cargos políticos nos EUA, nomeadamente em Vermont e

Washington. É precisamente como membro do Congresso que se destacam as suas

posições contra a escravatura e também os seus discursos de teor ambientalista,

principalmente focados nos problemas da desflorestação, um dos aspetos a que deu

mais tarde destaque na obra a que já se fez referência.

Depois de ter exercido o cargo de Embaixador/Diplomata na Turquia, em 1849,

regressou quatro anos depois aos Estados Unidos. Já como Comissário das Pescas

em Vermont, os seus relatórios voltaram a contemplar questões ambientais, agora

associadas às razões do declínio das populações de algumas espécies de peixe.

Posteriormente, foi nomeado pelo Presidente dos EUA Abraham Lincoln

Embaixador/Diplomata da recém-formada Itália, onde permaneceu vários anos até à

sua morte em 1882.

História das Ciências para o Ensino – Colóquio II

88

Ao longo da sua vida, o facto de ter exercido funções na Europa permitiu-lhe

viajar por este continente e também pelo Egipto e Palestina. No decurso destas

viagens conheceu de perto os problemas ambientais de vários países e regiões e

verificou algumas das soluções encontradas para os resolver, principalmente no que

se refere a técnicas de exploração prudente de recursos, que aliás recomendou que

fossem aplicadas no seu país de origem, os Estados Unidos.

Acerca da obra e do seu impacto

Como foi referido no ponto anterior, Man and Nature teve a sua primeira edição

em 1864 e uma edição reformulada em 1874, traduzindo uma sistematização de

assuntos de natureza ambiental que tinham preocupado Marsh ao longo da sua vida.

Nas imagens seguintes reproduzem-se as capas destas edições.

Figura 1 – Capa da 1ª edição de Man and Nature e da edição reformulada de 1874.

Respetivamente disponíveis em https://archive.org/details/manandnatureorp00marsgoog;

https://openlibrary.org/books/OL7158141M/The_earth_as_modified_by_human_action.

História das Ciências para o Ensino – Colóquio II

89

A finalidade da obra é desde logo apresentada por Marsh no seu prefácio de

forma clara. O livro visa, assim:

Indicar o caráter e,

aproximadamente, a extensão das

alterações produzidas pela ação humana

nas condições físicas do mundo em que

vivemos; apontar os perigos da

imprudência e a necessidade de cautela

em todas as operações que, em larga

escala, interferirem com os arranjos do

mundo orgânico ou inorgânico; sugerir a

possibilidade e a importância da

restauração da harmonia perturbada e a

melhoria material de regiões esgotadas;

e evidenciar a tese de que o homem é,

em grau e tipo, um poder de ordem

superior ao das outras formas de vida

animada, que, como ele, se alimentam à

mesa da abundante natureza.

To indicate the character and,

approximately, the extent of the changes

produced by human action in the

physical conditions of the globe we

inhabit; to point out the dangers of

imprudence and the necessity of caution

in all operations which, on a large scale,

interfere with the spontaneous

arrangements of the organic or the

inorganic world; to suggest the possibility

and the importance of the restoration of

disturbed harmonies and the material

improvement of waste and exhausted

regions; and, incidentally, to illustrate the

doctrine, that man is, in both kind and

degree, a power of a higher order than

any of the other forms of animated life,

which, like him, are nourished at the

table of bounteous nature (p. 3).

Já no seio do Capítulo I, Marsh explica que o seu objetivo é também atingir o

público menos literado cientificamente, explicitando a forma como considera vir a

captá-lo para a sua leitura. Assim, refere:

Nestas simples páginas, que não

faço intenção de elencar entre

exposições científicas das leis da

natureza, tentarei dar as conclusões

práticas mais importantes sugeridas pela

história do esforço do homem para

ocupar a Terra e subjuga-la; e terei por

objetivo apoiar tais conclusões apenas

em factos e ilustrações, que se dirigem

ao entendimento de cada leitor

inteligente, e que se encontram

presentes em obras capazes de leitura

proveitosa, ou pelo menos consulta, por

pessoas que não receberam uma

formação científica especial.

In these humble pages, which I do

not in the least aspire to rank among

scientific expositions of the laws of

nature, I shall attempt to give the most

important practical conclusions

suggested by the history of man´s effort

to replenish the earth and subdue it; and

I shall aim to support those conclusions

by such facts and illustrations only, as

address themselves to the understanding

of every intelligent reader, and as are to

be found recorded in works capable of

profitable perusal, or at least

consultation, by persons who have not

enjoyed a special scientific training (p.

52).

Man and Nature, no contexto da época em que foi publicado, pode ser

considerado um sucesso, quer em termos de vendas, quer pelo impacto das suas

ideias. De facto, como refere Lowenthal na introdução à obra editada em 1965, vários

História das Ciências para o Ensino – Colóquio II

90

milhares de cópias foram vendidas nos primeiros meses, talvez porque a obra se

encontra escrita numa linguagem acessível, repleta de exemplos ilustrativos, num

estilo que atualmente poderíamos designar de divulgação científica. Graças à obra de

Marsh, os impactos do ser humano na natureza deixaram de ser olhados como

acidentais e efémeros, tendo o autor conseguido despertar a consciência do público

para os perigos desses mesmos impactos. Depois, e certamente mais importante, por

muitas das suas ideias terem influenciado decisões políticas relacionadas com o

ordenamento do território. Uma dessas decisões foi a criação de uma Comissão

Nacional das Florestas pelo Congresso Norte Americano e a adoção de medidas

conservacionistas no domínio da silvicultura e da proteção das bacias hidrográficas.

Também na Europa esta influência ocorreu. Lowenthal (1965) refere que o francês

Elisée Reclus refletiu algumas das suas ideias na sua obra La Terre e que a influência

em Itália no mundo da silvicultura foi igualmente considerável, certamente ajudada

pela tradução da sua obra para italiano e da própria permanência de Marsh neste país

ao longo de vários anos.

Importa ainda salientar que Marsh, após a publicação da primeira edição, foi até

ao final da sua vida sempre atualizando o seu livro (Lowenthal, 2000), o que justificou

a já anteriormente referida edição de 1874. E apesar de todo o impacto positivo

referido, importa assinalar, tal como refere Lowenthal (2000), que a obra de Marsh

permaneceu esquecida durante algumas décadas após a sua morte, voltando a ser

recuperada na década de trinta do século XX, devido a acontecimentos ambientais

graves que ocorreram nos Estados Unidos. As tempestades de areia que assolaram

algumas regiões deste país, fruto de anos de práticas agrícolas pouco sustentáveis

que degradaram o solo e o tornaram suscetível de ser varrido pelo vento, num

fenómeno que ficou conhecimento como Dust Bowl, despoletou uma recuperação das

ideias de Marsh.

2. Metodologia

Justificação da escolha da obra

Em Portugal, o interesse por obras de teor ambientalista tem sido

significativamente menor quando comparado com o verificado na maioria dos países

anglo-saxónicos. Este facto decorre da inexistência de uma tradição ambientalista

forte no país, justificada por diversas razões. O fraco desenvolvimento económico

ocorrido durante o Estado Novo traduziu-se por uma tardia industrialização do país, o

que adiou alguns dos problemas causados pelo setor secundário ocorridos em outros

países. Simultaneamente, os níveis de escolarização baixos e uma ausência de

participação cívica em causas públicas motivada pelas características do regime

acima citado ajudam a explicar o referido desinteresse. Todavia, também parece

consensual que o processo de democratização do país, que igualmente democratizou

o acesso ao ensino, não se revelou suficiente para colocar as causas ambientais no

leque das principais preocupações dos portugueses. Talvez assim se explique que

determinadas obras de temática ambiental, importantes de um ponto de vista histórico,

nunca tenham sequer sido traduzidas para a língua portuguesa. Encontra-se nesta

situação a obra Man and Nature, de que se desconhece qualquer tradução para o

idioma de Camões. E também se é crescente o número de leitores com domínio em

língua inglesa, a obra tem permanecido relativamente desconhecida até de um público

mais especializado e interessado pelas temáticas ambientais.

História das Ciências para o Ensino – Colóquio II

91

Análise da obra

Marsh dividiu Man and Nature em seis capítulos, não contando com a introdução

em que o autor dá conta dos seus principais objetivos. Os títulos dos vários capítulos

são os seguintes: i) Introductory; ii) Transfer, modification, and extirpation of vegetable

and of animal species; iii) The woods; iv) The waters; v) The sands; vi) Projected or

possible geographical changes by man.

Dada a dimensão da obra e a riqueza das ideias explanadas, optou-se por

centrar a presente análise nos dois primeiros capítulos, uma vez que apresentam um

teor mais generalista, mais consonante com os aspetos a que se pretendeu dar relevo.

A análise efetuada foi ao encontro das seguintes finalidades: i) identificação de

conceitos científicos que se revelam atuais; ii) identificação de temas/questões objeto

de discussão/controvérsia nos dias de hoje e que nos surgem frequentemente como

inovadores; iii) caracterização do ideário ambientalista do autor, situando-o no contexto

histórico, social e filosófico da época.

A escolha destas finalidades de análise decorreu de se considerar que as

mesmas poderiam ajudar a uma abordagem didática da obra de Marsh e à sua

inclusão em contexto formal de aprendizagem, quer no ensino superior, quer no ensino

não superior. A presente análise pode mesmo facilitar a inclusão da obra em outros

trabalhos de divulgação científica e igualmente em manuais escolares, facilitando

assim a presença de aspetos relacionados com a História da Ciência, uma das

dimensões da literacia científica que se considera fundamental desenvolver junto dos

alunos.

Daí que os conceitos científicos identificados no ponto i) tenham sido

selecionados tendo em conta as finalidades acabadas de referir. Já os temas/questões

que foram objeto de análise no ponto ii) decorreram da verificação de que alguns

temas objeto de controvérsia nos dias de hoje, muitos deles abordados no campo

florescente da ética ambiental, já se encontram presentes na obra de Marsh. A

inclusão deste ponto decorreu principalmente da surpresa causada nos autores da

presente análise pela presença de tais temas na obra e que se pensavam,

erradamente, apenas terem sido objeto de discussão por autores contemporâneos.

Esta presença surge para alguns deles de forma breve mas outros são apresentados

com apreciável desenvolvimento. Estes temas em concreto foram a especificidade da

intervenção humana na Natureza no quadro do mundo natural, as origens da ação

antrópica negativa na Natureza, o papel do Homem nas extinções do fim do

Pleistocénico e durante o Quaternário e as razões do declínio de antigas civilizações.

Com esta discussão procura-se chamar a atenção para o aspeto pioneiro da obra de

Marsh. No ponto iii) procura-se identificar o ideário da obra de Marsh, situando-o no

contexto do século XIX, refutando assim algumas críticas a que este autor tem sido

sujeito e que tendem a interpretar a sua obra como pouco ousada e conservadora em

termos dos princípios ambientalistas apresentados.

A análise da obra é de teor qualitativo/interpretativo, e foi fortemente influenciada

pelos quadros teóricos nos domínios da Ecologia e da Ética Ambiental possuídos

pelos autores do presente texto. Durante a apresentação da discussão, optou-se pela

inclusão de partes da obra de Marsh, devidamente assinaladas, e que se consideram

traduzir um conceito ou uma ideia a que se pretende dar destaque. Com esta inclusão

textual possibilita-se ao leitor a avaliação da justeza das interpretações efetuadas.

Para facilitar a leitura do presente texto, as referidas citações foram traduzidas para

português, mas foi incluído sempre o original em inglês no corpo do texto ou em nota

História das Ciências para o Ensino – Colóquio II

92

de rodapé.

Importa assinalar ainda que a análise efetuada foi influenciada, em alguns

aspetos, pela de David Lowenthal, grande conhecedor e especialista da obra de

Marsh, e que permitiu, principalmente, uma melhor compreensão da obra no contexto

do século XIX e também identificar as críticas principais a que a mesma tem sido

sujeita. Foi ainda seguindo a opinião deste autor que se optou pela análise da edição

de 1864, e não pela edição revista e publicada anos mais tarde, pois esta teve, ao que

consta, um menor impacto.

3. Resultados e discussão

De seguida apresentam-se os resultados efetuados para cada um dos aspetos

referidos.

i) Identificação de conceitos científicos que se revelam atuais

À luz do conhecimento atual, a obra de Marsh surge repleta de conceitos

ecológicos. Todavia, a palavra Ecologia nunca é referida, pelo simples facto de que a

afirmação desta ciência, como corpo de conhecimento autónomo, ocorre na transição

entre os séculos XIX e XX (Bower, 1992). Daí Marsh ter situado a sua abordagem no

âmbito da Geografia Física, cujo âmbito assinala como mais alargado do que a visão

tradicional. Esclarece:

Uma visão estreita da geografia

limitou esta ciência à delimitação da

superfície terrestre e seus limites à

descrição da posição relativa e

magnitude da terra e da água. Na sua

forma mais ampla, abrange não só o

globo em si mesmo, mas também os

seres vivos que vegetam ou se movem

sobre ele, as variadas influências que

exercem uns sobre os outros, a ação

recíproca e a reação entre eles e a terra

que habitam.

It was a narrow view of geography

which confined that science to

delineation of terrestrial surface and

outline, and to description of the relative

position and magnitude of land and

water. In its improved form, it embraces

not only the globe itself, but the living

things which vegetate or move upon it,

the varied influences they exert upon

each other, the reciprocal action and

reaction between them and the earth

they inhabit (p. 53).

Assim, embora a ciência ecológica se tenha afirmado mais tarde e revelado

diferentes caminhos conceptuais que passam, por exemplo, pela visão organicionista

da natureza até à adesão à teoria do caos, a perspetiva transmitida por Marsh é

claramente próxima da primeira, centrada na visão de que a Natureza, se não

perturbada por fenómenos geológicos extremos ou pelo próprio Homem, permanece

harmoniosamente em equilíbrio. Duas passagens do seu livro são particularmente

elucidativas desta visão:

A Natureza, se deixada intacta,

molda assim o seu território para dar-lhe

a permanência quase imutável de

forma, contorno e proporção, exceto

quando é abalada por convulsões

geológicas; e, nestes casos

Nature, left undisturbed, so

fashions her territory as to give it almost

unchanging permanence of form, outline,

and proportion, except when shattered

by geologic convulsions; and in these

comparatively rare cases of

História das Ciências para o Ensino – Colóquio II

93

comparativamente raros de

perturbação, ela ajusta-se

imediatamente para reparar o dano

superficial, e para restaurar, tanto

quanto possível, o aspeto anterior do

seu domínio.

Para além da influência hostil do

homem, o mundo orgânico e inorgânico

estão, como já observei, unidos por

relações mútuas e adaptações seguras

que tendem a permanecer em equilíbrio

para um dado tempo e espaço, ou que

sofrem muito pequenas e graduais

modificações

Mas o homem é em toda a parte

um agente perturbador. Onde quer que

ele interfira, as harmonias da natureza

ficam perturbadas.

derangement, she sets herself at once to

repair the superficial damage, and to

restore, as nearly as practicable, the

former aspect of her dominion (p. 29).

Apart from the hostile influence of

man, the organic and the inorganic world

are, as I have remarked, bound together

by such mutual relations and adaptations

as secure, if not the absolute

permanence and equilibrium of both, a

long continuance of the established

conditions of each at any given time and

place, or at least, a very slow and

gradual succession of changes in those

conditions. But man is everywhere a

disturbing agent. Wherever he plants his

foot, the harmonies of nature are turned

to discords. (p. 36)

É verdade que por vezes este estado de equilíbrio parece ser apresentado de

uma forma excessivamente imutável.

Em suma, em países inexplorados

pelo homem, as proporções e posições

relativas de terra e água, a precipitação

atmosférica e a evaporação, a média

termométrica, e a distribuição da vida

vegetal e animal, estão sujeitos tão-

somente a alterações decorrentes de

influências geológicas que operam tão

lentamente que as condições

geográficas podem ser consideradas

como constantes e imutável.

In fine, in countries untrodden by

man, the proportions and relative

positions of land and water, the

atmospheric precipitation and

evaporation, the thermometric mean, and

the distribution of vegetable and animal

life, are subject to change only from

geological influences so slow in their

operation that the geographical

conditions may be regarded as constant

and immutable (p. 35).

Mas a ideia incontestável que resulta do seu pensamento é a de que a ação

perturbadora do Homem é apenas comparável à de grandes cataclismos que assolam

esporadicamente a Terra, fruto de causas totalmente exteriores ao ser humano.

Em associação com a ideia de equilíbrio, Marsh exemplifica como na Natureza,

não só a parte orgânica e inorgânica se ligam, como os seres vivos se relacionam

numa teia de relações que, uma vez afetada, pode fazer oscilar o número de

indivíduos das populações de cada espécie.

A observação direta demonstrou,

em muitos casos, que a destruição de

aves selvagens foi seguida por uma

grande multiplicação de insetos nocivos,

e que, por outro lado, estes últimos têm

Direct observation has shown, in

many instances, that the destruction of

wild birds has been followed by a great

multiplication of noxious insects, and, on

the other hand, that these latter have

História das Ciências para o Ensino – Colóquio II

94

sido muito reduzidos em número

quando a proteção e aumento das aves

que os devoram ocorre.

been much reduced in numbers by the

protection and increase of the birds that

devour them (pp. 80 - 81).

E por isso chama atenção para a complexidade de todo um leque de relações,

muitas delas desconhecidas, e cuja alteração pode encerrar perturbações

inimagináveis.

A equação da vida animal e

vegetal é um problema muito

complicado para a inteligência humana

resolver, e não podemos nunca saber

quão grande o círculo de perturbação

que produzimos na harmonia da

natureza quando atiramos o mais

pequeno seixo no oceano da vida

orgânica.

The equation of animal and

vegetable life is too complicated a

problem for human intelligence to solve,

and we can never know how wide a

circle of disturbance we produce in the

harmonies of nature when we throw the

smallest pebble into the ocean of organic

life (p. 92).

Influenciado por Charles Darwin, que aliás cita na sua obra, alerta para a

importância das por vezes designadas formas de vida inferior, que apresentam menor

complexidade biológica, mas que são peças fundamentais no funcionamento da

Natureza. E por isso refere:

Para além das criaturas maiores

da terra e do mar, os quadrúpedes, os

répteis, as aves, os anfíbios, os

crustáceos, os peixes, os insetos e os

vermes, existem inúmeras outras

formas de vida. A terra, a água, as

condutas e fluidos da vida vegetal e da

vida animal, o ar que respiramos, são

povoados por organismos minúsculos

que desempenham as mais importantes

funções tanto no reino animado como

inanimado da natureza.

Besides the larger creatures of

land and of the sea, the quadrupeds, the

reptiles, the birds, the amphibian, the

crustacean, the fish, the insects, and the

worms, there are other countless forms

of vital being. Earth, water, the ducts and

fluids of vegetable and of animal life, the

very air we breathe, are peopled by

minute organisms which perform most

important functions in both the living and

the inanimate kingdoms of nature (p.

108).

E ainda acrescenta:

Por isso temos o hábito de

considerar a baleia e o elefante como

criaturas essencialmente grandes e,

portanto, importantes, os animálculos

como organismos essencialmente

pequenos e, portanto, sem importância.

Mas nenhuma formação geológica deve

a sua origem aos trabalhos ou aos

restos de um grande mamífero,

enquanto os animálculos compõem, ou

Hence we habitually regard the

whale and the elephant as essentially

large and therefore important creatures,

the animalcule as an essentially small

and therefore unimportant organism. But

no geological formation owes its origin to

the labors or the remains of the huge

mammal, while the animalcule

composes, or has furnished, the

substance of strata thousands of feet in

História das Ciências para o Ensino – Colóquio II

95

têm fornecido, a substância de estratos

com milhares de metros de espessura,

e que se estendem, em camadas

ininterruptas, ao longo de muitos metros

da superfície terrestre.

thickness, and extending, in unbroken

beds, over many degrees of terrestrial

surface (p. 112).

E neste papel de exemplificar a importância das diferentes formas de vida,

aborda a questão da má fama injustificada de alguns animais, dando precisamente o

exemplo do que se passa com alguns répteis, enaltecendo, tal como se designa

atualmente, o seu papel ecológico.

As serpentes alimentam-se muito

de insetos, bem como de ratos,

toupeiras e pequenos répteis, incluindo

também outras cobras. O nojo e o medo

provocados pela serpente é tão

universal que a expõe a constante

perseguição pelo homem, e, talvez,

nenhum outro animal seja tão

implacavelmente sacrificado por ele.

The serpents feed much upon

insects, as well as upon mice, moles,

and small reptile, including also other

snakes. The disgust and fear with which

the serpent is so universally regarded

expose him to constant persecution by

man, and perhaps no other animal is so

relentlessly sacrificed by him (p. 98).

São assim muitas as noções abordadas por Marsh acerca do funcionamento da

Natureza. Ao longo da leitura da sua obra, por vezes, é-se induzido a pensar que se

trata de um manual contemporâneo de Ecologia. Todavia, embora não se pretenda ser

exaustivo com o relato de todos os conceitos presentes e que revelam atualidade,

destaca-se ainda dois temas que revelam uma particular atualidade: o da resistência

das espécies nativas às transformações ambientais e o risco das introduções de seres

vivos em locais distintos do seu enquadramento geográfico natural.

Em relação ao primeiro tema, Marsh é notável na forma como apresenta a

vitalidade do mundo natural quando a compara com a de espécies sobre as quais o

Homem exerceu processos de seleção artificial. E embora reconheça que as plantas

cultivadas exercem diversas funções idênticas às espontâneas,“ Parece bastante certo

que nenhuma terra cultivada é tão eficiente em moderar os extremos climáticos, ou na

conservação da superfície geográfica e estrutura, como é o solo que a própria

natureza criou” (p.55)2. E lembra que: “Não só muitas plantas selvagens exibem uma

notável facilidade de adaptação, como as suas sementes geralmente possuem grande

tenacidade de vida, resistindo o seu poder de germinação a duras provas" (p. 63)3. E

como consequência afirma:

2 Cf. It seems quite certain, that no cultivated ground is as efficient in tempering climatic

extremes, or in conservation of geographical surface and outline, as is the soil which nature herself has planted. 3 Cf. Not only do many wild plants exhibit a remarkable facility of accommodation, but their

seeds usually possess great tenacity of life, and their germinating power resists very severe trials.

História das Ciências para o Ensino – Colóquio II

96

Enquanto as sementes de muitos

vegetais cultivados perdem a sua

vitalidade em dois ou três anos, e

podem ser transportadas com

segurança para países distantes apenas

com grandes precauções, as ervas

daninhas que infestam os legumes,

ainda que não cuidadas pelo homem,

continuam a acompanhá-lo nas suas

migrações, e encontram um novo lar em

cada solo por ele colonizado.

While the seeds of very many

cultivated vegetables lose their vitality in

two or three years, and can be

transported safely to distant countries

only with great precautions, the weeds

that infest those vegetables, though not

cared by man, continue to accompany

him in his migrations, and find a new

home on every soil he colonizes (p. 63).

E termina da seguinte forma:

A Natureza protege as sementes

do ambiente selvagem, muito mais

eficazmente do que as de plantas

domesticadas. Os grãos de cereais são

completamente digeridos quando

consumidos pelas aves, mas o germe

dos pequenos frutos de caroço e de

muitos outros vegetais silvestres fica

ileso, talvez até estimulado a um

crescimento mais vigoroso, pela

química natural do estômago das aves.

Nature protects the seeds of the

wild, much more effectually than those of

domesticated plants. The cereal grains

are completely digested when consumed

by birds, but the germ of the smaller

stone fruits and of very many other wild

vegetables is uninjured, perhaps even

stimulated to more vigorous growth, by

the natural chemistry of the bird´s

stomach (p. 79).

E se este princípio se verifica para as plantas o mesmo acontece com os

animais.

“Os animais de caça são mais capazes de resistência e privação e mais tenazes

à vida, do que os animais domésticos que mais se lhes assemelham” (p. 63)4. E em

jeito de conclusão afirma: “A Natureza luta em defesa de seus filhos livres, mas

desencadeia uma guerra sobre eles quando abandonam as suas características e

mansamente se submetem ao domínio do homem” (p. 63)5.

Já no que se refere às introduções de espécies, Marsh salienta que muitas

ocorreram por vontade expressa humana mas outras foram acidentais. Assim, afirma:

Os vegetais recentemente

introduzidos frequentemente escapam

durante anos às pragas de insetos que

os infestavam no seu habitat natural;

mas a importação de outras variedades

Newly introduced vegetables

frequently escape for years the insect

plagues which had infested them in their

native habitat; but the importation of

other varieties of the plant, the exchange

4 Cf. The beasts of the chase are more capable of endurance and privation and more tenacious

of life, than the domesticated animals which most nearly resemble them. 5 Cf. Nature fights in defense of her free children, but wars upon them when they have deserted

her banners, and tamely submitted to the dominion of man.

História das Ciências para o Ensino – Colóquio II

97

da planta, a troca de sementes, ou

algum mero acidente, é certo que a

longo prazo levará o ovo, a larva, a

crisálida aos locais mais distantes onde

a planta teve a sua origem.

of seed, or some mere accident, is sure

in the long run to carry the egg, the larva,

or the chrysalis to the most distant

shores where the plant assigned to it by

nature as its possession has preceded it

(p. 93).

E como raramente o inimigo ou inimigos deste inseto são igualmente

introduzidos, “o único remédio aparente para este mal é equilibrar o desenvolvimento

desproporcional de espécies estrangeiras nocivas, trazendo do seu país de origem as

famílias que exercem predação sobre elas”(p. 93)6.

Temos aqui lançado o princípio da luta biológica, que décadas mais tarde acabou

por ser um processo reconhecido na luta contra as pragas.

ii) identificação de temas/questões objeto de discussão/controvérsia nos

dias de hoje e que nos surgem frequentemente como inovadores

Um dos aspetos que Marsh abordou na sua obra foi a questão de como deve ser

encarada a intervenção humana na natureza, quando comparada com a dos outros

animais. Como ele afirma: “Tem sido defendido pelas autoridades de forma tão

veemente quanto a de qualquer conhecimento científico, que a ação do homem sobre

a natureza, embora maior em grau, não difere em tipo da dos animais selvagens”(p.

41)7. Ora, Marsh considerava esta ideia profundamente errada e, segundo Lowenthal

(1965), conseguiu mesmo convencer Charles Lyell de que estava errado ao defender

esta ideia. Para ele o ser humano é um agente moral que se comporta de forma

independente da natureza, “(…) e por isso, apesar das muitas consequências

imprevistas e indesejadas [da ação humana], esta é guiada por uma vontade

autoconsciente e inteligente com objetivos tanto imediatos como secundários e

remotos” (p. 41)8. Assim, para ele o ser humano distingue-se claramente no mundo

natural pela especificidade seguinte:

O facto de entre todos os seres

orgânicos só o homem ser considerado

como um poder essencialmente

destrutivo, e que ele exerce energias

para resistir à natureza - a natureza à

qual toda a vida material e todas as

substâncias inorgânica obedecem – que

lhe é totalmente impotente, tende a

provar que, vivendo na natureza física,

The fact that, of all organic beings,

man alone is regarded as essentially a

destructive power, and that he wields

energies to resist which, nature – that

nature whom all material life and all

inorganic substance obey – is wholly

impotent, tends to prove that, through

living in physical nature, he is not of her,

that he is of more exalted parentage, and

6 Cf. The only apparent remedy for this evil is, to balance the disproportionate development of

noxious foreign species by bringing from their native country the tribes which prey upon them 7 Cf. It has been maintained by authorities as high as any known to modern science, that the

action of man upon nature, through greater in degree, does not differ in kind, from that of wild animals. 8 Cf. (…) through it is often followed by unforeseen and undesired results, yet it is nevertheless

guided by a self-conscious and intelligent will aiming as often at secondary and remote as at immediate objects.

História das Ciências para o Ensino – Colóquio II

98

ele não é sua pertença, mas sim de

ascendência mais elevada, e que

pertence a uma ordem superior de

existência do que os nascidos no seu

ventre e submissos aos seus ditames.

belongs to a higher order of existences

than those born of her womb and

submissive to her dictates (pp. 36 - 37).

E termina com a seguinte comparação:

Há, de fato, animais irracionais

destruidores e aves e insetos

predadores - toda a vida animal se

alimenta, e, é claro, destrói outras

formas de vida, - mas esta destruição é

equilibrada por compensações. (...) O

homem persegue as suas vítimas com

uma destrutividade imprudente; e,

enquanto o sacrifício da vida pelos

animais inferiores é limitada pelos seus

instintos, ele persegue

implacavelmente, mesmo até à

extirpação, milhares de formas

orgânicas que ele não pode consumir.

There are, indeed, brute destroyers,

beasts and birds and insects of prey – all

animal life feeds upon, and, of course,

destroys other life, - but this destruction

is balanced by compensations. (…) Man

pursues his victims with reckless

destructiveness; and, while the sacrifice

of life by the lower animals is limited by

the cravings of appetite, he unsparingly

persecutes, even to extirpation,

thousands of organic forms which he

cannot consume (p. 37).

Estas ideias podem constituir de facto um contributo para a discussão

contemporânea de que tudo o que o Homem faz se torna legítimo só porque ele

constitui um dos produtos da natureza e obedece às leis naturais e, neste sentido,

nada o diferencia dos outros seres vivos. A ideia é refutada por vários autores

contemporâneos, pois como afirma Rolston III (1994), o sentido de que tudo é natural

porque obedece às leis naturais conduz a considerar a poluição como algo natural ou

a admitir que não há diferença entre uma cidade e um recife de coral. Mas é possível

encontrar em Marsh argumentos igualmente bons que poderiam ser evocados para

esta discussão, até porque ele defende que as características únicas do ser humano o

obrigam àquilo que hoje denominaríamos de precaução.

Marsh discute igualmente quando esta ação transformadora do planeta se

acentuou, abordando de alguma forma o que denominamos atualmente de origem da

presente crise ambiental. De facto, para Heinberg (1999), foram as alterações

iniciadas no Neolítico, motivadas pelo evento agrícola, que conduziram à presente

crise que possibilitou o crescimento demográfico, a aglomeração em cidades e a

posterior formação de Impérios. Sem utilizar naturalmente a expressão “crise

ambiental”, essa sim claramente contemporânea, Marsh transmite mais de cem anos

antes de Heinberg a mesma ideia. Como ele refere:

Mas com a vida sedentária, ou

melhor, com o estado pastoral, o

homem de uma só vez inicia uma

guerra quase indiscriminada contra

todos os tipos de animais e vegetais

que existem em torno dele, e com o

But with stationary life, or rather

with the pastoral state, man at once

commences an almost indiscriminate

warfare upon all the forms of animal and

vegetable existence around him, and as

he advances in civilization, he gradually

História das Ciências para o Ensino – Colóquio II

99

avançar na civilização, ele

gradualmente elimina ou transforma

cada produto espontâneo do solo que

ocupa.

O homem através da domesticação

alterou profundamente os habitats e as

propriedades das plantas que cultiva;

pela seleção voluntária, modificou

imensamente as formas e as qualidades

dos seres vivos que o servem; e ele, ao

mesmo tempo, erradicou muitas formas

de vida vegetal e animal.

eradicates or transforms every

spontaneous product of soil he occupies

(p.40).

Man has, by domestication, greatly

changed the habitats and properties of

the plants he rears; he has, by voluntary

selection, immensely modified the forms

and qualities of the animated creatures

that serve him; and he has, at same

time, completely rooted out many forms

of both vegetable and animal being (pp.

41 - 42).

E é no contexto da ação ancestral do Homem na modificação e extinção de

outras formas vida que surpreendentemente se encontra no texto de Marsh mais um

contributo para uma discussão que tem ocorrido nos dias de hoje, o da

responsabilidade das extinções de grandes mamíferos e aves no final do Pleistocénico

e no decurso do Quaternário. Martin (2005) refere que estas extinções ocorreram sem

qualquer correlação relacionada com alterações climáticas ou qualquer outro fator que

não a do impacto do ser humano à medida que se dispersava por continentes e ilhas.

Ora, Marsh, sem discutir a possibilidade de terem ocorrido outros fatores, avança com

a probabilidade quase certa de estas extinções terem sido provocadas pelo ser

humano. Afirma:

Há, é verdade, perto das

desembocaduras dos grandes rios da

Sibéria que desaguam no mar polar,

ilhas móveis, compostas por, numa

proporção incrivelmente grande, ossos

e presas de elefantes, mastodontes e

outros paquidermes enormes, e muitas

cavernas extensas em várias partes do

mundo estão meio preenchidas de

esqueletos de quadrúpedes, às vezes

em depósitos soltos na terra, outras

vezes agregados em brechas ósseas

cimentadas por um depósito de calcário

ou por outro material de ligação. (...) A

recente descoberta de obras de arte

humana, depositadas em justaposição

com ossos fósseis e, evidentemente, ao

mesmo tempo e pela mesma agência

que enterrou estes últimos - para não

falar dos supostos ossos humanos

encontrados nas mesmas camadas -

prova que os animais cuja existência

testemunham foram contemporâneos do

There are, it is true, near the

mouths of the great Siberian rivers which

empty themselves into the Polar Sea,

drift islands composed, in an incredibly

large proportion, of the bones and tusks

of elephants, mastodons, and other huge

pachyderms, and many extensive caves

in various parts of the world are half filled

with the skeletons of quadrupeds,

sometimes lying loose in the earth,

sometimes cemented together into an

osseous breccias by a calcareous

deposit or other binding material. (…)

The recent discovery of works of human

art, deposited in juxtaposition with fossil

bones, and evidently at the same time

and by the same agency which buried

these latter – not to speak of alleged

human bones found in the same strata –

proves that the animals whose former

existence they testify were

contemporaneous with man, and

possibly even extirpated by him (p. 70).

História das Ciências para o Ensino – Colóquio II

100

homem, e possivelmente terão sido

extintos por ele.

E termina com a seguinte conclusão lógica: “Eu advirto para estes fatos apenas

por causa da sugestão de que o homem, nos seus primeiros estádios conhecidos de

existência, terá tido, provavelmente, um poder destrutivo sobre a terra, embora talvez

não tão enfaticamente como os seus representantes atuais” (p. 70).9

Ao longo da obra várias extinções provocadas pelo Homem são referidas. Entre

elas, cita a do Dodo (Raphus cucullatus), ave da ilha Mauricia e a do Arau gigante

(Pinguinus impennis), outrora abundante nas ilhas Faroe e no litoral da Escandinávia.

Para este caso, Marsh cita que foi o valor da sua carne e do seu óleo que fez com que

os habitantes destas zonas inóspitas o conduzissem à extinção.

Claro que muitas extinções decorrem da alteração dos habitats, com especial

destaque para a desflorestação e a construção de barragens. E as alterações no

elenco natural são tantas que em poucos anos é impossível a qualquer ser humano

não dar por elas. E por isso afirma: “Cada homem de meia-idade que revisita o seu

local de nascimento após alguns anos de ausência, olha para outra paisagem

diferente daquilo que constituiu o palco das suas labutas e prazeres enquanto jovem”

(Citado por Lowenthal, p. xvii)10. Ideia semelhante encontra-se mais de cem anos

depois em Kahn (2002):

Muitos de nós, enquanto adultos, temos constatado que o nosso lugar favorito na

juventude foi destruído. Talvez a árvore favorita tenha sido cortada ou o campo

preferido pavimentado. Ou ainda talvez um vale inteiro se tenha tornado o centro de

uma expansão urbana. Tais experiências providenciam-nos uma base de comparação

e constituem talvez o ímpeto para o ativismo ambiental. (p. 113).

Afinal aquilo que atualmente designamos por mutilação das paisagens parece

não ter a contemporaneidade que frequentemente imaginamos.

Quanto às consequências da ação modificadora do Homem na Natureza, Marsh

salienta que estas são de difícil previsão. E por isso afirma:

(...) A destruição das florestas, a

drenagem de lagos e pântanos, e os

empreendimentos rural e industrial

tendem a produzir grandes mudanças

na higrometria, termometria, e condição

química e elétrica da atmosfera, embora

não sejamos ainda capazes de medir a

força dos diferentes elementos de

perturbação, ou dizer o quanto eles têm

sido compensados entre si, ou por

influências ainda mais obscuras.

(…) the destruction of the forests,

the drainage of lakes and marshes, and

the operation of rural husbandry and

industrial art have tended to produce

great changes in the hygrometric,

thermometric, electric, and chemical

condition of the atmosphere, though we

are not yet able to measure the force of

the different elements of disturbance, or

to say how far they have been

compensated by each other, or by still

obscurer influences (p. 18).

9 Cf. I advert to these facts only for the sake of the suggestion, that man, in his earliest known

stages of existence, was probably a destructive power upon the earth, through perhaps not so emphatically as his present representatives. 10

Cf. Every middle-aged man who revisits his birth-place after a few years of absence, looks upon another landscape than that which formed the teatre of his youthful toils and pleasures

História das Ciências para o Ensino – Colóquio II

101

Marsh salienta que podemos evitar muita da degradação ambiental, procurando

que o Novo Mundo não cometa os erros do Velho Mundo, e que conduziram ao

declínio de civilizações ancestrais. Nesta análise histórica, destaca a fertilidade

perdida de várias zonas do globo, para a qual se conjugaram circunstâncias naturais

mas também “(…) a violência direta da força humana hostil” (p. 11)11. Esta é “(…) quer

o resultado do ignorante desprezo do homem pelas leis da natureza, quer a

consequência incidental da guerra, e da tirania e desgoverno civil e eclesiástica” (p.

11)12.

Este é também um tema que tem merecido destaque nos dias de hoje. Ehrlich e

Ehrlich (2004) discutem o colapso de sucessivas civilizações da Mesopotâmia,

considerando que a mesma foi fruto da conjugação de causas bélicas associadas à

degradação dos recursos naturais. Nesta degradação destacam o contributo da

desflorestação e de sistemas de irrigação insustentáveis que conduziram ao aumento

da salinidade dos solos, com consequências na produtividade das plantas.

iii) caracterização do ideário ambientalista do autor no contexto histórico,

social e filosófico da época

A caracterização do ideário ambientalista da obra de Marsh é fundamental para

compreender algumas das críticas a que este autor tem sido sujeito. Estas incidem

particularmente na sua visão antropocêntrica, considerada uma perspetiva

conservadora e pouco arrojada de olhar para a relação ente o homem e a natureza.

Mas como salienta Lowenthal (1965), é evidente que Marsh se encontrava preocupado

com o bem-estar das gerações vindouras, ameaçado pela conduta humana de curto-

prazo. Por isso, afirma ser claro que alterar este rumo destrutivo é algo do interesse do

próprio Homem. Afirma:

É, evidentemente, uma questão

de grande importância, não só para a

população dos países onde estes

sintomas se manifestam, mas para o

interesse geral da humanidade, que

estes processos de decadência sejam

suspensos e que as operações futuras

nas áreas agrícola e da silvicultura, nos

locais que ainda mantêm

substancialmente a sua condição

natural, devam ser efetuadas de modo a

evitar os males generalizados que foram

produzidos em outros lugares pela

destruição impensada ou arbitrária das

salvaguardas naturais do solo.

It is evidently a matter of great

moment, not only to the population of the

states where these symptoms are

manifesting themselves, but to the

general interests of humanity, that this

decay should be arrested, and that the

future operations of rural husbandry and

of forest industry, in districts yet

remaining substantially in their native

condition, should be so conducted as to

prevent the widespread mischiefs which

have been elsewhere produced by

thoughtless or wanton destruction of the

natural safeguards of the soil (p. 46).

Assim, parece evidente o teor antropocêntrico na forma de encarar os problemas

ambientais, objeto de críticas intensas por parte de algumas correntes ambientalistas

11

Cf. (...) the direct violence of the hostile human force. 12

Cf. (…) either the result of man´s ignorant disregard of the laws of nature, or an incidental consequence of war, and of civil and ecclesiastical tyranny and misrule.

História das Ciências para o Ensino – Colóquio II

102

contemporâneas, preocupadas em defender o valor intrínseco da natureza e a

manutenção de amplas áreas do planeta liberta da ação transformadora do Homem.

Marsh, pelo contrário, considera que transformar a natureza é algo estritamente

necessário à nossa sobrevivência, indo as suas críticas claramente para os excessos

que têm ocorrido associados a esta transformação.

Mas o homem, os animais

domésticos que o servem, o campo e as

plantas e os produtos que o abastecem

de alimentos e roupas, não podem

subsistir e atingir o pleno

desenvolvimento das suas propriedades

maiores, a menos que a natureza bruta

e inconsciente seja eficazmente

combatida, e, em grande medida,

vencida pelo engenho humano. Por

isso, um certo grau de transformação da

superfície terrestre, de supressão do

natural, e a estimulação da

produtividade de modo artificial torna-se

necessário. A medida desta

transformação foi infelizmente

ultrapassada pelo homem.

But man, the domestic animals that

serve him, the field and garden plants the

products of which supply him with food

and clothing, cannot subsist and rise to

the full development of their higher

properties, unless brute and unconscious

nature be effectually combated, and, in a

great degree, vanquished by human art.

Hence, a certain measure of

transformation of terrestrial surface, of

suppression of natural, and stimulation of

artificially modified productivity becomes

necessary. This measure man has

unfortunately exceeded (p. 38).

Mas serão estas ideias motivo para considerar a obra de Marsh conservadora e

pouco ambiciosa?

Talvez! Pelo menos, muitos ambientalistas contemporâneos assim o consideram.

A prova disso é que a obra de Marsh é muitas vezes preterida em relação à de outros

autores, como é o caso de Ralph Waldo Emerson, Henry David Thoreau e John Muir,

associados à corrente transcendentalista, uma corrente do movimento romântico, que

nutre um especial encanto pela natureza e enaltece o seu papel no desenvolvimento

espiritual do ser humano.

As ideias do movimento transcendentalista fizeram parte da herança cultural de

Marsh e, embora ele nunca seja associado a esta corrente, terá inegavelmente sido

influenciado por ela. Todavia, ao contrário das obras dos outros autores citados,

menos aliadas com uma visão conservacionista dos recursos e de carácter mais

introspetivo e contemplativo, Man and Nature apresenta-se com um teor claramente

pragmático e, por isso, mais facilmente associável ao conservacionismo, que defende

o usufruto pelo Homem da Natureza mas de forma prudente.

Daí que as referidas críticas sejam em parte injustas pois, tal como Lowenthal

(2000) considera, as ideias contemporâneas mais descentradas do ser humano seriam

difíceis de emergir no contexto do século XIX, em que o Homem se começa a

conseguir libertar de muitos dos constrangimentos da Natureza e em que o grau de

degradação ambiental ainda não se aproximava do que se veio a verificar no século

XX. Além do mais, é incorreto pensar que o movimento transcendentalista não possuía

também ele um ideário antropocêntrico. Daí que Worster (1994) alerte para o facto de

nas tais obras de teor mais contemplativo e introspetivo se atribuir pouco valor à

natureza em si mesma. É que, para os transcendentalistas, só a intervenção humana

História das Ciências para o Ensino – Colóquio II

103

na natureza pode dar coerência e significado ao caos natural, o que impele à sua

transformação, embora no sentido de a aperfeiçoar e não de a destruir.

Por isso, Lowenthal (2000) refere que estas críticas não surgiram na época da

publicação do livro e que, pelo contrário, a obra gerou uma unanimidade que nos dias

de hoje nos pode parecer estranha. De facto, tal não aconteceu em obras

emblemáticas do ambientalismo escritas cerca de cem anos depois, na segunda

metade do século XX, de que Silent Spring de Raquel Carson é o exemplo por

excelência. E Lowenthal avança com várias razões que se afigura pertinente assinalar:

i) Marsh não se limita a identificar problemas, mas avança igualmente com

soluções, o que imprime à obra um sentido positivo;

ii) Não propõe as tais ideias que muitos apelidariam de teor radical, associadas à

necessidade de manter a Natureza intocada, ou defensoras do seu valor intrínseco,

até porque, como se referiu, estas ideias seriam difíceis de emergir no contexto do

século XIX;

iii) Marsh critica o percurso da Humanidade em geral e não aponta críticas a

nenhuma entidade específica ou setor da sociedade;

iv) A crença na Ciência, enquanto empreendimento de alguma forma libertador

do Homem, permanecia igualmente inabalável na época;

v) Depois, não existiam os meios de comunicação dos dias de hoje e que

poderiam dar uma outra visibilidade a quem, por exemplo, discordasse do seu

pensamento.

Toda esta realidade se foi alterando no decurso do século XX. E especialmente

uma visão mais crítica do papel da Ciência e da Tecnologia se foi igualmente

instalando em setores crescentes da sociedade, alimentada pelos bombardeamentos

atómicos de Hiroshima e Nagasaki, no Japão. Assim, importa não julgar a obra de

Marsh sem a contextualizar, até porque não há razões para supor que Marsh nutrice

um amor menor pela Natureza do que os transcendentalistas a que se fez referência.

4. Conclusão

A breve análise que foi efetuada de parte da obra de Marsh permitiu dar conta da

atualidade das suas ideias e evidenciou como muitas delas não são pertença de

autores contemporâneos. É certo que os problemas ambientais adquiriram um

carácter holístico, e que temas atuais como a precipitação ácida, o depauperamento

da camada de ozono ou o aquecimento global ainda não se adivinhavam em meados

do século XIX. Todavia, a desflorestação, a gestão das bacias hidrográficas, a erosão

dos solos e a desertificação continuam na ordem do dia. E mais importante do que

assinalar a ausência de temas mais do que improváveis para a época, importa sim

enfatizar toda a sua linha de pensamento centrada na complexa teia de relações do

mundo natural e na imprevisibilidade das consequências das ações humanas. Só

estes dois aspetos são mais do que suficientes para salientar a importância de uma

obra que se afigura pioneira de teses ambientalistas.

Marsh alerta-nos para o facto de a ação humana, tal como se tem manifestado,

poder vir a alterar a estrutura, composição e destino da Terra. E por isso afirma: “O

homem tem esquecido por demasiado tempo que a Terra lhe foi dada apenas para o

seu usufruto, não para um consumo exagerado, e ainda menos para ser devassada

pelo desperdício” (p. 36)13.

13

Cf. Man has too long forgotten that the earth was given to him for usufruct alone, not for

História das Ciências para o Ensino – Colóquio II

104

Apesar destas palavras, o seu tom é de otimismo, uma vez que acredita na

racionalidade humana, que fará o Homem mudar o seu comportamento, e apela a uma

atitude de intendência que será crucial para repor a saúde ambiental. Ora, em tempos

de profunda descrença acerca da possibilidade de o ser humano aprender com os

seus próprios erros e de procurar “o bem” nas suas ações, esta mensagem de

otimismo não pode constituir um aspeto menor quando se procede à análise da obra

de Marsh.

Por último, espera-se que o presente trabalho contribua para um maior

conhecimento da obra de Marsh e que suscite a sua integração em recursos

educativos de teor ambiental destinados a alunos de diferentes idades e ciclos de

escolaridade.

5. Referências bbliográficas

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Cleveland, C., & Lee, J. (2010). Marsh, George Perkins. Acedido em

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Worster, D. (1994). Nature’s Economy. A History of Ecological Ideas (2ª ed.).

Cambridge: Cambridge University Press.

consumption, still less for profligate waste.

105

APLICAÇÃO DE UM PROGRAMA DE INTERVENÇÃO EM HISTÓRIA

DA CIÊNCIA DIRIGIDO A ESTUDANTES DO MESTRADO EM

ENSINO DA BIOLOGIA E DA GEOLOGIA

HISTORY OF SCIENCE, MODELS AND NATURE OF SCIENCE: AN

INTERVENTION PROGRAMME APPLIED TO PRESERVICE

BIOLOGY AND GEOLOGY TEACHERS

Joana Torres1 & Clara Vasconcelos1, 2

Resumo

A aprendizagem da ciência, de como fazer ciência e sobre ciência são considerados objetivos

cruciais a desenvolver no ensino das ciências, sendo também elementos fundamentais ao

desenvolvimento da literacia científica do aluno. Deste modo, os modelos científicos são

considerados ferramentas educacionais poderosas, uma vez que contribuem para o alcance desses

mesmos objetivos. Como exemplo, o recurso a modelos históricos e a episódios históricos pode

surgir como forma de explorar diversos aspetos da natureza da ciência.

Enquadrado num programa de intervenção sobre modelos e natureza da ciência, aplicado a

estudantes do Mestrado em ensino da Biologia e da Geologia, numa universidade pública do Norte

de Portugal, este estudo refere-se apenas a uma das intervenções efetuadas. Nesta intervenção,

direcionada essencialmente para a compreensão da importância do recurso a modelos históricos e

à história da ciência na compreensão da natureza da ciência, recorreu-se a diversos modelos

históricos da estrutura da Terra e a alguns relatos históricos. Após a intervenção, com a duração de

cinco horas, foi aplicado um pequeno questionário previamente validado, no sentido de analisar

quais as principais conceções desenvolvidas e de que forma os estudantes experienciaram as

atividades. As respostas foram alvo de uma análise de conteúdo, com recurso ao programa

NVivo10.

Este trabalho apresenta algumas sugestões e exemplos das atividades desenvolvidas, assim como

os principais resultados obtidos. De uma forma geral, podemos concluir que os estudantes

melhoraram as suas visões relativamente à natureza da ciência e aos modelos históricos no ensino

das ciências. Posteriormente, estes estudantes serão acompanhados durante o seu estágio

profissionalizante, para averiguar o tipo de transposição didática em sala de aula.

Palavras-chave: Futuros Professores de Ciências; História da Ciência; Modelos Históricos; Natureza

da Ciência; Programa de Intervenção.

Abstract

Learning of science, about science and how to do science are considered crucial objectives in

science education, being also essential in students’ scientific literacy. As so, scientific models are

considered to be powerful educational tools, as they contribute to the achievement of those goals. As

an example, the resort to historical models and historical narratives may appear as a way to explore

many aspects of nature of science.

Under the scope of an intervention programme about models and nature of science, applied to

students who were pursuing the master’s in Biology and Geology Teaching, in a public university in

the north of Portugal, this study only refers to one of the interventions performed. This intervention

was mainly focused on the relevance of historical models and history of science to the understanding

of NOS concepts. Having in mind this central objective, we rely on different earth’s structure

1 Centro de Geologia da Universidade do Porto; DGAOT/ Unidade de Ensino das Ciências; Faculdade de

Ciências da Universidade do Porto. 2 Autora de contacto.

História das Ciências para o Ensino – Colóquio II

106

historical models and historical narratives. After the 5 hour intervention programme, a previously

validated snapshot was administered in order to analyse the main conceptions developed and how

students experienced the activities. Answers were content analysed with the help of the Q.S.R.

NVivo 10 qualitative data analysis package. This work presents some suggestions and some examples of the activities performed, as well as the

major results obtained. In general terms, we conclude that students improve their views related to

NOS and scientific models in science education. Furthermore, these students will be supervised

during their internship in order to analyse how the translation of their conceptions occurs in their

teaching practices.

Keywords: Historical Models; History of Science; Intervention Programme; Nature of Science;

Preservice Science Teachers.

1. Introdução

No domínio da Educação em Ciências, são diversos os estudos nacionais e

internacionais que defendem que os alunos devem desenvolver, nas aulas de ciências,

conhecimento científico (concetual), assim como conhecimento processual e

epistemológico. De facto, são vários os documentos orientadores que o recomendam,

alertando para a importância dos alunos construírem uma imagem adequada de ciência.

Os modelos científicos e as atividades de modelação, sendo fundamentais na

atividade científica, surgem como um exemplo de elementos poderosos que podem ser

utilizados no ensino das ciências, de forma a atingir estes pressupostos.

Pelo exposto e, tendo como objetivo primordial o desenvolvimento de conceções

adequadas sobre a natureza da ciência e os modelos no ensino das ciências de futuros

professores de Biologia e Geologia, iremos fazer uma breve referência aos principais

conceitos aglutinadores deste estudo.

1.1 Natureza da Ciência

O desenvolvimento de conceções adequadas da natureza da ciência (NdC) tem sido

considerado um objetivo central na Educação em Ciências (McComas, Clough & Almazroa,

1998; Lederman, Abd-El-Khalick, Bell & Schwartz, 2002; Lederman, 2006). De facto, tendo

a ciência um impacto profundo na sociedade atual a vários níveis, torna-se premente que

os alunos e os cidadãos, em geral, compreendam a ciência e a sua natureza (McComas et

al., 1998).

Como refere Lederman (1992/2006), a Ndc refere-se, de uma forma geral, às

características da ciência inerentes ao desenvolvimento do conhecimento científico, ou

seja, refere-se aos fundamentos epistemológicos da atividade científica e às características

do conhecimento resultante.

Apesar das várias controvérsias existentes relativamente à definição e aspetos da

NdC, alguns autores consideram que há aspetos suficientemente robustos, acessíveis e

relevantes para serem trabalhados com alunos do ensino secundário (Lederman et al.,

2002; Lederman, 2007).

Desta forma, Lederman e colaboradores (2002) destacam que os alunos devem

compreender que: (i) o conhecimento científico é provisório, ou seja, que pode sofrer

alterações de acordo com novos dados ou com a reinterpretação de dados já existentes;

(ii) o conhecimento científico é empírico, sendo parcialmente baseado em observações

filtradas através dos “nossos óculos concetuais” (nossas perceções) e instrumentos de

análise; (iii) o conhecimento científico é subjetivo, uma vez que o trabalho dos cientistas é

influenciado pelas suas opiniões, sistema de valores, conhecimento prévio, experiência,

prática e expectativas; (iv) a ciência não é completamente racional e que a criatividade e

História das Ciências para o Ensino – Colóquio II

107

imaginação são necessárias para a construção do conhecimento científico; (v) a ciência

influencia e é influenciada pelo contexto onde é praticada; (vi) a ciência se baseia em

inferências e entidades teóricas, sendo a distinção entre observação e inferência crucial;

(vii) teorias e leis são diferentes tipos de conhecimento, sendo ambos produtos legítimos

da ciência; e (viii) não existe um método científico universal, uma vez que nenhuma

sequência única de procedimentos conduz os cientistas a soluções válidas.

Segundo estes autores, estes aspetos da NdC podem ser trabalhados em diferentes

níveis de complexidade, devendo ser adequados ao nível e contexto dos alunos

(Lederman et al., 2002).

As características da NdC que pretendemos desenvolver neste estudo estão em

consonância com as descritas nestes trabalhos, uma vez que as consideramos adequadas

e importantes para os alunos e professores de ciências desenvolverem uma conceção

adequada da ciência e da sua natureza.

Sendo várias as razões que justificam a importância de incluir a NdC nas aulas de

Ciências (McComas et al., 1998; Torres & Vasconcelos, 2013), parece-nos relevante que

os futuros professores de Biologia e Geologia desenvolvam conceções adequadas acerca

da NdC. Adicionalmente, consideramos também fundamental que os futuros professores

de Biologia e Geologia compreendam a importância de abordar a NdC em sala de aula e

que desenvolvam conhecimentos para o fazer.

Como exemplo, alguns episódios históricos são considerados fundamentais para o

desenvolvimento de conceções acuradas da NdC (McComas, 2008). Adicionalmente, a

história da ciência fornece muitos exemplos de diferentes modelos históricos, revelando

uma diversidade de aspetos que influenciam o desenvolvimento desses modelos

(Chamizo, 2013). Assim, o recurso a relatos históricos e a análise da evolução histórica

dos modelos é crucial para os alunos compreenderem que a ciência é uma atividade

humana, que se altera ao longo do tempo e que é influenciada por fatores sociais e

culturais (Torres, Moura, Vasconcelos & Amador, 2013).

Além disso, Gericke & Hagberg (2007) referem também que a história da ciência e os

modelos históricos são relevantes para a compreensão do próprio papel dos modelos

científicos na ciência.

Deste modo, os modelos científicos são muito importantes para a construção do

conhecimento científico, sendo a compreensão dos modelos e da sua natureza

fundamental para uma cabal compreensão da ciência.

1.2 Modelos Científicos

Apesar da existência de diversas definições e tipologias de modelos, podemos dizer,

de uma forma geral, que os modelos científicos são representações de diversos aspetos

do mundo, ou seja, são representações de um alvo (Giere, 2010; Oh & Oh, 2011). No

entanto, e, tal como refere Giere (2010), um modelo é uma representação intencional que

resulta do propósito do cientista, sendo, portanto, uma representação simplificada e

mediada pela intenção, interpretação e conhecimento do cientista.

Partindo da conceção intencional da representação científica proposta por Giere

(2010), torna-se claro que podem existir modelos múltiplos para estudar diferentes aspetos

do mesmo alvo, uma vez que o cientista seleciona os aspetos que quer estudar. Por outro

lado, podem existir diferentes modelos para estudar o mesmo alvo, devido ao facto dos

cientistas poderem ter diferentes ideias e poderem recorrer a uma diversidade de recursos

semióticos (Oh & Oh, 2011).

História das Ciências para o Ensino – Colóquio II

108

Um modelo científico é também considerado um mediador entre uma teoria e um

fenómeno, uma vez que uma teoria científica não possui uma correspondência direta com

as entidades do mundo natural e os fenómenos naturais são sempre demasiado

complexos para se ajustarem facilmente a uma teoria (Koponen, 2007; Oh & Oh, 2011).

Desta forma, um fenómeno pode ser organizado, através da abstração, num modelo, que

por sua vez fornece informações úteis para o desenvolvimento de uma nova teoria. Por

outro lado, uma teoria científica pode ser corporizada num modelo que é mapeado no

mundo natural, sendo possível explicar alguns dos seus padrões (Oh & Oh, 2011).

Um modelo científico permite, de uma forma geral, descrever, explicar e prever,

funcionando também como um auxiliar na comunicação em ciência (Oh & Oh, 2011). Uma

das principais atividades dos cientistas é construir modelos e testar quais os modelos que

melhor se ajustam às evidências disponíveis, verificando também qual a explicação mais

plausível para um determinado fenómeno (Matthews, 2007; Chamizo, 2013).

Para além da sua importância na ciência, os modelos são considerados ferramentas

pedagógicas poderosas. Na realidade, os modelos e as atividades de modelação auxiliam

na construção dos modelos mentais dos alunos, permitindo-lhes o desenvolvimento do seu

raciocínio científico e a compreensão de como a ciência se processa e de como os

cientistas trabalham.

Desta forma, o uso de modelos e o recurso a atividades de modelação contribui para:

(i) a aprendizagem da ciência – conhecimento dos principais modelos científicos que

resultam da atividade científica; (ii) a aprendizagem sobre ciência – compreensão da

contribuição dos modelos científicos na construção do conhecimento científico; e (iii) a

aprendizagem de como fazer ciência – capacidade de criar, apresentar e testar os seus

modelos (Justi & Gilbert, 2002, 2003).

O uso de modelos e o recurso a atividades de modelação juntamente com uma

reflexão crítica acerca do papel e natureza dos modelos na ciência contribui, assim, para a

compreensão dos principais produtos e processos da ciência e para a compreensão da

NdC (Schwartz & Lederman, 2005; Henze, van Driel, & Verloop, 2007).

Pujol e Márquez (2011) salientam a importância dos alunos construírem os seus

próprios modelos em sala de aula, de modo a desenvolverem as suas capacidades de

autorregulação, sendo possível que tomem consciência da sua aprendizagem, que

reconheçam os seus erros e evolução e que decidam como avançar no seu processo de

aprendizagem. Torna-se, assim, importante que os professores possuam conceções

adequadas sobre modelos e sua natureza e sobre como os usar em sala de aula,

viabilizando a sua aplicação efetiva.

Para além dos modelos serem importantes como complemento à compreensão de

conhecimento e fenómenos complexos, é importante que os alunos construam, testem e

modifiquem os seus modelos, desenvolvendo conhecimento científico, processual e

epistemológico (Oh & Oh, 2011; Torres, Moutinho, Almeida & Vasconcelos, 2013).

São vários os estudos que demonstram a importância dos modelos no ensino das

Ciências. Por exemplo, Halloun (2007) refere que a construção e desenvolvimento de

modelos, por alunos do ensino secundário e universitário de física, promovem: um melhor

desenvolvimento concetual; uma melhor performance nos exames; o desenvolvimento de

conceções relacionadas com a NdC; uma aprendizagem mais equitativa; e o

desenvolvimento de competências de investigação, ferramentas e estilos de aprendizagem

estáveis.

Maia & Justi (2009) num estudo realizado acerca do recurso à modelação na

aprendizagem do equilíbrio químico, com alunos de idades compreendidas entre os 14 e

História das Ciências para o Ensino – Colóquio II

109

os 15 anos, concluíram que estes aprendem conteúdo científico, aprendem sobre como o

conhecimento científico é produzido e utilizado e desenvolvem capacidades relativas aos

processos de construção do conhecimento.

Haugwitz & Sandmann (2010) num estudo, com alunos com uma média de idades de

12,5, sobre o recurso a modelos na aprendizagem do sistema vascular, revelaram que os

alunos se demonstraram muito interessados, tiveram bom aproveitamento e adquiriram

conhecimento biológico do coração humano e sistema vascular, ao aprenderem de forma

colaborativa.

No caso do ensino da Geologia, Bolacha (2011) refere que os modelos e simulações

são muito importantes, contribuindo para uma melhor compreensão do tempo geológico,

assim como para o desenvolvimento de capacidades importantes para a Geologia - a

observação de fenómenos a 3D, a capacidade de imaginar movimentos e secções, entre

outros.

1.2.1 Os modelos na Biologia e na Geologia

Os modelos científicos são amplamente utilizados na atividade científica, constituindo

as ferramentas representacionais primárias na ciência (Giere, 2004). No entanto, estes

adquirem especificidades próprias, de acordo com a área científica em estudo.

Por exemplo, Sibley (2009) destaca a “retroprevisão” como um dos principais

propósitos dos modelos na Geologia. A inferência sobre eventos passados é considerada

um aspeto muito importante do raciocínio geológico, devido ao facto da Geologia tentar

explicar eventos que ocorreram no passado e ao facto de lidar com processos e forças que

não podem ser percecionados de forma direta.

O uso dos modelos e o recurso à modelação na Geologia teve início, no século XIX,

com aquele que é considerado o fundador da Geologia experimental - James Hall (1761-

1832).

Com o objetivo de explicar a origem das dobras que observava ao longo da costa

oriental da Escócia (figura 1), Hall, em 1815, construiu modelos de montanhas, como os

exemplificados nas figuras 2 e 3 (Brandstetter, 2011; Graveleau et al., 2012).

Figura 1 – Desenhos das observações de Hall na costa oriental da Escócia.

Extraído de Hall (1815, plate I.).

Apesar de Hall ser bem-sucedido e conseguir demonstrar, através dos modelos, a

formação de dobras, enfatizando a influência da compressão horizontal nos mecanismos

de dobras, o recurso à experimentação foi largamente contestado pela comunidade

científica, nomeadamente pelo seu professor James Hutton (1726-1797).

História das Ciências para o Ensino – Colóquio II

110

De facto, foram levantados problemas, quer por questões de garantia da

representatividade, quer pelo facto de não ser possível provar a ocorrência de um

fenómeno na natureza, apesar de ser possível demonstrar que uma causa proposta pode

produzir um efeito observável (Oreskes, 2007; Brandstetter, 2011).

Cinquenta anos após, muitos outros geólogos como Charles Lyell (1797-1875),

Auguste Daubrée (1814-1896), Alphonse Favre (1815-1890) e Henry Cadell (1860-1934),

continuaram os trabalhos de Hall, ao longo de vários anos (figura 4).

Hoje em dia, muitas das ameaças à representatividade dos modelos encontram-se

ultrapassadas, através de pressupostos geológicos e da utilização de leis de escala

(Oreskes, 2007; Brandstetter, 2011; Graveleau et al., 2012).

Atualmente, os modelos computacionais adquirem uma grande importância pelo

facto de não só permitirem demonstrar a plausibilidade de algumas causas para certos

fenómenos, mas também pelo facto de se encontrarem intimamente associados com a

ambição de prever o futuro. No entanto, é de salientar que estas previsões em Geologia

Figura 2 – Primeiro modelo de Hall, com recurso a tecidos e tábuas de madeira. Extraído de Hall

(1815, plate IV.).

Figura 3 – Modelo mais sofisticado de Hall – “máquina” com camadas de argila. Extraído de Hall (1815, plate IV.).

Figura 4 – Modelos. A - Modelo de Lyell (1871); B - Modelo de Daubrée (1879); C - Modelo de Cadell

(1888); D - Esboço do aparato experimental de Cadell (1887). Extraído de Graveleau, 2012, p. 3 (A, B,

C); http://www.see.leeds.ac.uk/structure/assyntgeology/cadell/index.htm (D)

A

B

C

D

História das Ciências para o Ensino – Colóquio II

111

são impossíveis de serem testadas, quer por questões temporais, que por questões físicas.

Sendo assim, contrariamente a outras áreas do saber, em que as previsões

desempenham um papel crucial na formulação do conhecimento científico, na Geologia as

previsões têm um carácter primariamente social (resultante de pressões sociais e/ou

políticas), em vez de epistémico (Oreskes, 2007).

No caso da Biologia, podemos destacar o recurso aos organismos modelo (figura 5),

que atualmente são centrais ao nível da investigação biomédica e da investigação

biológica básica (Ankeny, 2007; Hubbard, 2007).

De uma forma geral e segundo Baetu (2014), existem duas categorias principais de

modelos na investigação em Biologia: (i) os modelos experimentais, que compreendem os

objetos físicos, como organismos, células e estruturas experimentais in vitro, com os quais

os investigadores realizam experiências, no sentido de adquirirem conhecimento das

causas e mecanismos subjacentes a fenómenos biológicos; e (ii) os modelos conceptuais

que abrangem explicações ou hipóteses explicativas, que envolvem mecanismos (modelos

mecânicos), descrições de estruturas físicas (modelos estruturais) e modelos matemáticos

de vários tipos (figura 6).

Um exemplo de um modelo estrutural, que teve profundas implicações na

investigação na área da Biologia e da Genética foi o modelo da estrutura do DNA (figura 7).

O modelo em dupla-hélice da estrutura do DNA (figura 8) foi proposto em 1953 por Watson

& Crick, graças não só a uma diversidade de trabalhos realizados anteriormente, mas

também devido a novos avanços e técnicas na área da modelação (Pray, 2008).

Figura 7 – Modelo de DNA proposto por Watson & Crick. Extraído de Watson & Crick (1953, p. 737).

Figura 6 – Exemplo de um modelo

conceptual. Extraído de

http://www.sobiologia.com.br/conteudos/Citolo

gia2/nucleo6.php

Figura 5 – Exemplo de um organismo modelo –

Ratinho nude utilizado no estudo do cancro.

Fotografia gentilmente cedida por Ana Oliveira.

História das Ciências para o Ensino – Colóquio II

112

1.3 Justificação do Estudo

No currículo nacional de Biologia e de Geologia do ensino secundário é

recomendado a inclusão de modelos científicos nas aulas de ciências e o desenvolvimento

de conceções adequadas de ciência e da sua natureza por parte dos alunos. No entanto,

vários estudos indicam que nem os estudantes possuem visões adequadas de ciência,

nem de modelos científicos; nem os professores valorizam a abordagem da NdC e o uso

de modelos científicos de forma sistemática, revelando falta de conhecimentos nestes

domínios.

Se atualmente é pretendido que as atividades em sala de aula de Biologia e

Geologia espelhem a atividade dos cientistas e que os alunos desenvolvam o seu

conhecimento científico, processual e epistemológico, consideramos relevante que os

professores em formação inicial desenvolvam conceções adequadas acerca da NdC e do

uso de modelos.

1.4 Programa de Intervenção

No âmbito deste estudo foi aplicado um programa de intervenção no sentido de desenvolver as conceções dos futuros professores de Biologia e de Geologia acerca da natureza da ciência e dos modelos científicos.

Este programa, organizado em 5 intervenções com duração de 5 horas cada,

possuía oito finalidades fundamentais: (i) Desenvolver conceções adequadas sobre

modelos científicos, nomeadamente relativas à sua definição e propósito; (ii) Compreender

a importância da modelação na ciência, mais concretamente na Biologia e na Geologia; (iii)

Compreender a importância do uso de modelos e de atividades de modelação em sala de

aula como contributo para o desenvolvimento de modelos mentais adequados, para a

compreensão da atividade científica e da natureza da Ciência; (iv) Perceber a importância

do recurso aos modelos históricos para compreender aspetos da natureza da ciência; (v)

Refletir sobre como abordar a natureza da ciência em sala de aula e a importância de

desenvolver visões adequadas de Ciência nas aulas de Ciências; (vi) Compreender as

precauções a ter no uso de modelos e no uso de analogias em sala de aula; (vii) Analisar

de que forma os manuais escolares e os programas de Biologia e Geologia exploram a

natureza da ciência, os modelos e as atividades de modelação; (viii) Analisar os programas

de Biologia e Geologia, no que concerne à natureza da ciência, aos modelos e às

atividades de modelação. Este trabalho é referente a uma das intervenções efetuadas, que se focou

essencialmente no desenvolvimento das finalidades iv) e v) acima mencionadas. Assim

sendo, e tendo em conta que os modelos históricos são ferramentas cruciais para a

elucidação de uma imagem adequada de ciência, a evolução histórica dos modelos da

estrutura interna da Terra surgiu como pano de fundo desta intervenção.

Para além do recurso aos modelos históricos da estrutura interna da Terra, recorreu-

se também a uma diversidade de episódios históricos e atividades complementares com o

intuito de abordar e trabalhar os diferentes aspetos da natureza da ciência de forma

contextualizada, explícita e refletida.

Com esta intervenção intentou-se que os estudantes desenvolvessem não só as

suas visões acerca da natureza da ciência, mas também compreendessem a sua

importância no ensino das ciências e de que forma deve ser abordada em sala de aula.

Partindo de um cenário de problematização sobre modelos históricos e natureza da

ciência, a intervenção desenvolveu-se em torno de 3 documentos fundamentais:

Documento 1 - Modelos históricos da estrutura interna da Terra – Os primeiros modelos;

Documento 2 - Modelos históricos da estrutura interna da Terra – Como explicar o Dilúvio?;

História das Ciências para o Ensino – Colóquio II

113

e Documento 3 - Modelos históricos da estrutura interna da Terra – Dos modelos

surpreendentes aos modelos atuais.

1.4.1 Modelos históricos da estrutura interna da Terra – Os primeiros modelos

Neste documento inicial, recuando ao século VI a.C., onde o pensamento lógico e

racional emerge a partir de um mundo de sonho mitológico, e passando pelas descobertas

marítimas, são salientados alguns fatores que influenciaram o desenvolvimento do

conhecimento.

Posteriormente, são também apresentadas as representações de René Descartes

(1596-1650) e de Athanasius Kircher (1602-1680). Descartes é considerado o primeiro

filósofo a imaginar e a descrever o interior da Terra e a apresentar uma explicação para a

sua formação, em 1644 (figura 8). Kircher, por sua vez, pretendeu representar, em 1665, o

interior da Terra e explicar as erupções vulcânicas (figura 9).

Com este documento, pretendeu-se que os alunos discutissem diversos fatores que

influenciam o desenvolvimento do conhecimento, assim como aspetos relacionados com a

natureza e função dos modelos.

Tendo como ponto de partida, a discussão do papel das inferências na construção

dos modelos científicos da estrutura interna da Terra e na construção do conhecimento

Figura 8 – Etapas de formação da Terra –

Descartes. Extraído de Deparis (2001, p. 2).

Figura 9 – O mundo subterrâneo - Kircher. Extraído de

http://www.stanford.edu/group/kircher/cgi-bin/site/?page_id=517

História das Ciências para o Ensino – Colóquio II

114

científico, no final do documento, é sugerida a elaboração da atividade complementar n.º 1.

Esta atividade baseou-se essencialmente na análise da distinção entre observação e

inferência, sendo apresentado na figura 10 um exemplo de um exercício realizado.

Figura 10 – Exemplo de questão da atividade complementar nº1.

1.4.2 Modelos históricos da estrutura interna da Terra – Como explicar o

Dilúvio?

No documento 2 foram descritos alguns modelos da estrutura interna da Terra que

permitiam descrever o interior da Terra e, simultaneamente, fornecer uma explicação

científica do dilúvio. Sendo assim, foi salientada a influência de fatores, como a religião, no

desenvolvimento do conhecimento científico.

Neste sentido, foram apresentados os modelos de Thomas Burnet (1684), de John

Woodward (1695) e William Whiston (1696) – figuras 11, 12 e 13 – que permitiam ilustrar

essa situação.

Recorrendo-se a relatos históricos foram também trabalhadas questões relacionadas

com a subjetividade e com a influência do referencial teórico dos cientistas.

A B

Figura 11 – Modelo de Thomas Burnet. A) Frontispício de Theory of the Earth

(1684); B) O interior da Terra pré-diluviana. Extraído de Magruder (2006,

p. 248 e 246).

Figura 13 – Ilustração de Whiston.

Extraído de

http://www.bodleian.ox.ac.uk/what

son/online/aubrey/earth-sciences.

Figura 12 – Modelo do

Interior da Terra de

Woodward. Extraído de

Deparis & Legros (2000,

p.144).

História das Ciências para o Ensino – Colóquio II

115

Figura 15 – Modelo de Gautier Extraído de Deparis & Legros, 2000, p.156

Na atividade complementar nº2 pretendeu-se discutir e aprofundar a questão da

subjetividade, através de imagens, visionamento de um documentário e discussão de

situações na área da Biologia e da Geologia, como a exemplificada na figura 14.

Figura 14 – Exemplo de questão da atividade complementar nº2.

1.4.3 Modelos históricos da estrutura interna da Terra – Dos modelos

surpreendentes aos modelos atuais

No documento 3, foram apresentados alguns modelos mais exuberantes, como o de

Henri Gautier (figura 15), segundo o qual seria possível a existência de vida na face interna

do globo terrestre.

Foram também descritos outros modelos, como o de Louis Cordier (1827), Hopkins

(1839) e Lord Kelvin (1862). Estes modelos centravam-se no estado físico do globo, como

consequência da influência da pressão e da temperatura, entre outros fatores.

História das Ciências para o Ensino – Colóquio II

116

De acordo com estes modelos foram discutidas certas características do

conhecimento científico, como o seu dinamismo, subjetividade, provisoriedade e caráter

empírico. Foi também salientada a influência da sociedade na ciência e a inexistência de

um método científico único.

Na atividade complementar nº3 foram debatidos aspetos relacionados com a

provisoriedade do conhecimento científico e dos modelos científicos, constituindo a figura

16 exemplo de parte de uma notícia analisada.

Figura 16 – Exemplo de uma notícia analisada na atividade complementar nº3.

Nesta atividade foram também abordados alguns aspetos relativos ao uso de

modelos nas salas de aula de ciências, nomeadamente ao nível das vantagens,

desvantagens e cuidados a ter.

Na atividade complementar nº4, procurou-se trabalhar essencialmente a distinção

entre teorias e leis, com base na análise de dois documentos principais: “Da deriva

continental à teoria da tectónica de placas” e “Leis de Mendel e teoria cromossómica da

hereditariedade”.

Para além disso, discutiu-se acerca de outras características importantes da ciência

e da forma como o conhecimento científico se constrói, sendo destacada a importância da

imaginação e criatividade no desenvolvimento do conhecimento científico e na construção

de modelos científicos, assim como a importância da analogia no estudo do desconhecido

(figura 17).

Figura 17 – Exemplo de questões a debater na atividade complementar n.º 4.

História das Ciências para o Ensino – Colóquio II

117

Por último, na atividade complementar nº5, pretendeu-se discutir aspetos fulcrais da

ciência, tendo por base 3 cubos misteriosos, adaptados dos trabalhos de Lederman & Abd-

El-Khalick (1998).

Figura 18 – Cubos misteriosos - atividade complementar n.º 5.

Assim, foi evidenciado que a ciência se caracteriza por uma procura de padrões,

padrões esses baseados em evidências, mas também resultantes de inferências e da

imaginação e criatividade dos cientistas. Foi também salientado o caráter empírico e

provisório da ciência. Na figura 18 ilustram-se dois exemplos dos cubos utilizados.

2. Método

Com o objetivo de desenvolver as conceções dos futuros professores de Biologia e

Geologia sobre a NdC e os modelos científicos, foi aplicado um programa de intervenção,

com uma duração de 25 horas.

Este estudo em particular refere-se a uma das intervenções efetuadas, com duração

de 5 horas, e que se prendia essencialmente com o recurso à História da Ciência e aos

modelos históricos na compreensão da NdC, de acordo com as finalidades já mencionadas

anteriormente.

A intervenção foi aplicada a 8 estudantes do mestrado em ensino da Biologia e da

Geologia no 3º ciclo do ensino básico e no ensino secundário, de uma universidade do

Norte de Portugal, no segundo semestre do ano letivo 2013/2014, no âmbito da unidade

curricular Didática da Geologia II. A amostra era composta por 7 elementos do sexo

feminino e 1 do sexo masculino.

No final da intervenção, foi solicitado aos estudantes que preenchessem um pequeno

questionário, previamente validado, com o objetivo de a avaliar. Este pequeno questionário

era constituído pelas seguintes questões: (1) Indica, de forma completa, quais as principais

conceções que desenvolveste nesta aula; (2) Consideras que, com esta aula, alteraste as

tuas conceções? Quais as conceções alteradas?; (3) Qual a importância das atividades

História das Ciências para o Ensino – Colóquio II

118

desenvolvidas na compreensão da natureza da ciência?; (4) Quais os aspetos positivos e

negativos das atividades desenvolvidas na aula?; (5) Qual a importância das atividades

desenvolvidas na compreensão do contributo dos modelos científicos na atividade

científica?.

As respostas foram posteriormente alvo de uma análise de conteúdo, com recurso ao

programa NVivo10.

3. Resultados e discussão

Seguidamente são analisadas as respostas dadas ao pequeno questionário de forma

sequencial, sendo apresentados os principais resultados.

3.1. Questão 1 – Quais as principais conceções que desenvolveste nesta

aula?

Relativamente à primeira questão (Tabela 1), grande parte dos estudantes (75%)

considera ter desenvolvido as suas conceções relativamente à NdC, nomeadamente as

relativas aos seus componentes (62,5%) e ao seu ensino (50%). Quanto aos componentes

da NdC, dois alunos (25%) destacam ainda a clarificação da distinção entre teoria e lei.

Por exemplo, um dos estudantes refere o seguinte:

“As principais conceções desenvolvidas na aula foram a definição de

natureza da ciência; quais os componentes da natureza da ciência; e de que

forma a natureza da ciência poderá ser levada para as salas de aula.” (E2)

62,5% dos estudantes considera ainda ter desenvolvido as suas conceções

relativamente aos modelos históricos, nomeadamente ao nível da sua importância e do seu

contributo na compreensão da NdC. O estudante 8 refere:

“As principais conceções que desenvolvi na aula foram: qual o

contributo dos modelos históricos na compreensão da natureza da ciência;

quais os componentes da Natureza da Ciência e como abordar a natureza da

ciência em sala de aula.” (E8)

“Compreendi a importância de revelar a história da ciência e o avanço

da ciência ao longo dos tempos aos alunos, bem como defender estes

mesmos fatores recorrendo a modelos históricos. Como a ciência evolui os

modelos também evoluem e é importante divulgar isso.” (E1)

Tabela 1 – Principais respostas dadas à questão 1.

Q1 – Quais as principais conceções que desenvolveste nesta aula?

Conceções %

Natureza da Ciência 75,0

Componentes da Natureza da Ciência 62,5

Ensino da Natureza da Ciência 50,0

Modelos históricos 62,5

História das Ciências para o Ensino – Colóquio II

119

É ainda referido que esta aula permitiu o desenvolvimento de conceções acerca da

construção do conhecimento científico (37,5%) e acerca da importância da história da

ciência no ensino das ciências (25%).

3.2 Questão 2 – Quais as conceções alteradas?

No que concerne à questão 2, grande parte dos estudantes (75%) considera ter

alterado algumas das suas conceções relativas à temática em estudo e um não o refere de

forma explícita. Apenas um aluno considera não ter alterado as suas conceções:

“De certa forma, a aula não alterou muito as minhas conceções sobre a

temática (…).” (E5)

A maioria dos alunos (87,5%) refere ter alterado as suas conceções relativamente à

importância dos modelos históricos no ensino das ciências, nomeadamente ao nível da

abordagem de aspetos da NdC (Tabela 2).

Tabela 2 – Principais respostas dadas à questão 2.

Como exemplo, um dos estudantes refere:

“Sem dúvida! Sempre achei que demonstrar a história da modelação só

servia para criar conceções erróneas aos alunos. No entanto, compreendi que

não só ajuda a compreenderem a evolução da ciência ao longo dos tempos,

como demonstra a influência que a sociedade da época tem nessa mesma

evolução.” (E1)

Metade dos estudantes refere também ter alterado as suas conceções relativamente

à importância da NdC no ensino das ciências:

“A aula permitiu-me uma compreensão mais profunda acerca da

natureza da ciência e história da ciência, essencialmente na aplicação dos

mesmos no ensino das ciências. (…)” (E3)

“Sim, de certa forma esta aula serviu para atribuir uma importância

maior ao papel que os modelos históricos têm no ensino das ciências. O

mesmo aconteceu para a importância do conhecimento da natureza da

ciência, que, também após a aula, me fez atribuir uma importância maior.”

(E6)

Q2 – Quais as conceções alteradas?

Conceções %

Importância dos modelos históricos no Ensino das Ciências 87,5

Possibilidade de abordar aspetos da natureza

da ciência em sala de aula 50,0

Importância da natureza da ciência no Ensino das Ciências 50,0

História das Ciências para o Ensino – Colóquio II

120

De uma forma geral, verifica-se que os estudantes compreenderam melhor a

importância dos modelos históricos e da NdC no ensino das ciências.

3.3 Questão 3 - Qual a importância das atividades desenvolvidas na

compreensão da Natureza da Ciência?

Quanto à questão 3, a maioria dos estudantes (87,5%) considerou que as atividades

desenvolvidas em sala de aula permitiram uma melhor compreensão da NdC,

essencialmente ao nível do caráter provisório da ciência (Tabela 3):

“São sem dúvida importantes pois permitem compreender melhor a

mutabilidade da ciência e que esta ainda não está totalmente validada.” (E1)

Tabela 3 – Principais respostas dadas à questão 3.

Alguns dos estudantes também referiram que as atividades desenvolvidas tinham

sido importantes na compreensão de como introduzir a temática em sala de aula,

essencialmente de uma forma prática:

“As atividades realizadas na aula permitiram ter uma visão prática de

uma forma possível e que permite introduzir a temática da natureza da ciência

nas salas de aula.” (E2)

“As atividades desenvolvidas serviram, essencialmente, de

complemento à compreensão da natureza da ciência, mostrando, assim, que

um conteúdo tão teórico como é o da natureza da ciência pode também

constituir uma componente mais prática.” (E6)

3.4. Questão 4

3.4.1. Questão 4.1 - Quais os aspetos positivos das atividades

desenvolvidas na aula?

Nesta questão, 7 estudantes (87,5%) consideraram que as atividades desenvolvidas

na aula possuíam aspetos positivos e um dos estudantes não respondeu (Tabela 4).

Tabela 4 – Principais respostas dadas à questão 4.1.

Q3 - Qual a importância das atividades desenvolvidas na compreensão da Natureza da

Ciência?

Conceções %

Melhor compreensão da Natureza da Ciência 87,5

Conhecimento científico provisório 50,0

Como abordar a natureza da ciência em sala de aula 50,0

Q4.1 – Quais os aspetos positivos das atividades desenvolvidas na aula?

Conceções %

Consideraram que as atividades possuíam aspetos positivos 87,5

Contribuíram para a compreensão efetiva da

Natureza da Ciência 50,0

História das Ciências para o Ensino – Colóquio II

121

Apesar de terem sido mencionados vários aspetos positivos relativamente às

atividades da aula, o aspeto mais focado foi o contributo das atividades numa melhor

compreensão da NdC:

“Melhor conhecimento sobre a história/natureza da ciência; saber que

os modelos contribuem para aprender sobre ciência/como fazer ciência e que

nem todos os modelos serão apropriados para o ensino.” (E7)

“Achei a aula muitíssimo interessante e formadora pelo que não tenho

pontos negativos a apontar. Permitiu, no geral, criar uma ideia de que

demonstrar aos alunos que a ciência muda é vital para compreenderem a

matéria e todo o processo científico em geral.” (E1)

“Aspetos positivos: facilmente percetíveis; interessantes e cativantes;

aplicam-se na realidade; dinâmicas; conseguem espelhar bem a Natureza da

Ciência e permite uma rápida e efetiva compreensão.” (E3)

3.4.2 Questão 4.2 Quais os aspetos negativos das atividades

desenvolvidas na aula?

Foram apontados apenas 2 aspetos negativos relativamente às atividades

desenvolvidas na aula (Tabela 5):

“No entanto, o único ponto negativo a apontar prender-se-ia com a

possibilidade dos alunos acharem algumas das atividades um pouco

maçadoras.” (E2)

“Aspetos negativos – por ser muita informação a lecionar,

provavelmente seria necessário mais aulas, de modo que esta mesma

informação fosse transmitida com mais calma.” (E7)

Salienta-se, no entanto, que com a dinamização destas atividades com os

estudantes, não era pretendido fornecer um exemplo de aplicação direta para o

ensino básico e secundário, apesar do seu caráter exemplificativo.

Tabela 5 – Principais respostas dadas à questão 4.2.

Q4.2 – Quais os aspetos negativos das atividades desenvolvidas na aula?

Conceções %

Consideraram que as atividades possuíam aspetos negativos 25,0

Atividades poderem revelar-se um pouco

maçadoras 12,5

Elevada quantidade de informação 12,5

História das Ciências para o Ensino – Colóquio II

122

3.5. Questão 5 - Qual a importância das atividades desenvolvidas na

compreensão do contributo dos modelos científicos na atividade científica?

Relativamente à questão 5, grande parte dos estudantes (75%) considera que as

atividades desenvolvidas foram muito importantes na compreensão dos modelos científicos

e sua relação com o conhecimento científico (Tabela 6).

Tabela 6 – Principais respostas dadas à questão 5.

“As atividades desenvolvidas permitiram-me compreender que os

modelos são uma das melhores formas para construir ou reformular teorias, o

que é importante no avanço do conhecimento científico. A modelação na

ciência permite ainda explicar, prever e perceber factos e observações.” (E3)

4. Conclusão

Com este estudo foi possível verificar que a maioria dos estudantes considera ter

alterado e melhorado as suas conceções, especialmente as relacionadas com os modelos

científicos, os modelos históricos e a NdC. Revelam também possuir uma melhor

compreensão da importância dos modelos históricos e da NdC no ensino das Ciências.

Adicionalmente, os estudantes referem ter compreendido como abordar a NdC em

sala de aula, sendo destacada a possibilidade de dinamizar as atividades de forma prática.

De salientar que apenas foram referidos dois aspetos negativos relativamente às

atividades desenvolvidas no programa.

Apesar das melhorias mencionadas pelos estudantes, consideramos fundamental

avaliar e comparar as conceções dos estudantes (anteriores e posteriores ao programa de

intervenção), assim como acompanhá-los no seu estágio profissionalizante, de modo a

compreender os fatores que medeiam a transposição didática.

5. Agradecimentos

Este trabalho foi financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia – bolsa de

doutoramento (SFRH / BD / 85735 / 2012).

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Q5 – Qual a importância das atividades desenvolvidas na compreensão do contributo dos

modelos científicos na atividade científica?

Conceções %

Importantes na compreensão dos modelos científicos e sua relação

com o conhecimento científico 75,0

História das Ciências para o Ensino – Colóquio II

123

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126

HISTÓRIA DA GEOLOGIA E NATUREZA DA CIÊNCIA: EXEMPLOS

PARA EXPLORAR NAS AULAS DE CIÊNCIAS

HISTORY OF GEOLOGY AND NATURE OF SCIENCE: GEOLOGICAL

RESOURCES TO EXPLORE IN SCIENCE CLASS

Clara Vasconcelos1, António Almeida 2 & Raquel Pinto 2,3

Resumo

Diferentes artigos científicos apresentam várias preocupações relacionadas com equívocos

manifestados pelos professores de ciências sobre a natureza da ciência (NC). Embora

reconhecendo a relevância do estudo das conceções dos professores relacionadas com a pergunta

"o que é ciência?", Hassard & Dias (2009) apresentam outras formas de contemplar esta dimensão

da literacia científica nas aulas de ciências. Com este objetivo, os autores exploram as relações

entre ciência e coragem, ciência e imaginação e criatividade humana, ciência e democracia (esta

última dimensão enfatizando a independência da observação e do pensamento, a originalidade de

ideias, a liberdade de pensamento e de divergência). O objetivo deste trabalho foi apresentar alguns

casos retirados da história da geologia e que podem ser utilizados como recursos a ser explorados

dentro da sala de aula por professores de ciências, de modo a ilustrar as relações acima

mencionadas. É nossa pretensão que um ensino baseado na história da ciência promove uma

melhor compreensão da natureza da ciência e melhora o desenvolvimento de uma cidadania

participativa com responsabilidade social.

Palavras-chave: Geologia na sala de aula; História da Geologia; Natureza da Ciência.

Abstract

Different scientific articles present several concerns related to science teachers’ misconceptions

regarding the nature of science (NOS). Although recognizing the relevance of the study of teachers’

conceptions related to the question “what is science?, Hassard & Dias (2009) present other

alternatives as a venue to teaching NOS in science classes. With this aim in mind, these authors

explore relationships between science and courage, science and human imagination and creativity,

human values, and democracy (the latter dimension stressing the independence of observation and

thought, originality of ideas, freedom of thought and dissent). The purpose of this work was to

present some cases, withdrawn from the history of geology that can be used as resources to be

explored within the classroom by science teachers, so as to illustrate the above mentioned

relationships. It is our claim that a science history-based teaching promotes a better understanding

of NOS and enhances the development of a participatory citizenship with social responsibility.

Keywords: Geology in classroom; History of Geology; Nature of Science.

1. Introdução

Os resultados de vários estudos científicos são concordantes em evidenciar que os

professores possuem conceções inadequadas acerca da natureza da ciência) que se

refletem nas suas práticas de ensino. No entanto, não é possível encontrar uma única

resposta para a pergunta "O que é ciência?", uma vez que tal definição se altera à medida

que a ciência progride. Apesar das muitas respostas aceitáveis possíveis para a pergunta

apresentada, Leaderman, um dos principais pesquisadores que se tem dedicado ao estudo

1 Faculdade de Ciências /Centro de Geologia/ Dep. de Geociências, Ambiente e Ordenamento do

Território/Unidade de Ensino das Ciências da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto. 2

Escola Superior de Educação /Centro de Geologia da Universidade do Porto

3 Faculdade de Ciências /Centro de Geologia/ Universidade do Porto.

História das Ciências para o Ensino – Colóquio II

127

da natureza da ciência, e outros pesquisadores (Abd-El-Khalick et al., 1998; Holbrook &

Rannikmae, 2007) propuseram sete princípios que nos conduzem a uma melhor perceção

do que é a ciência. Assim, esta constitui um esforço humano, experimental, empírico, que

inclui inferências humanas, imaginação, criatividade e se encontra fortemente influenciada

por aspetos sociais e culturais.

Em geral, a pesquisa sobre conceções dos professores acerca da natureza da

ciência e do modo em que estas se refletem na sua prática pedagógica revelou-se algo

mais complexo do que inicialmente seria de esperar. Por exemplo, Gess-Newsome e

Lederman (1995) identificaram seis variáveis que pareceram mediar essa relação e que

incluem as intenções dos professores, o conhecimento dos conteúdos, o conhecimento

pedagógico, o conhecimento das necessidades dos alunos, a autonomia do professor e o

tempo. Outros fatores que limitam uma abordagem correta da natureza da ciência têm

igualmente sido mencionados por outros autores, e entre eles destacam-se a pressão para

abordar o programa, a gestão de sala de aula e os princípios organizacionais, as

preocupações com as capacidades e motivação dos alunos, as limitações institucionais e a

experiência docente (Abd-El-Khalick, et al.,1998; Abd-El-Khalik & Lederman, 2000).

A falta de recursos (exemplos) é outra das razões para a omissão da exploração da

natureza da ciência. Todavia, vários caminhos se podem colocar para promover a referida

abordagem (Vasconcelos, 2011). De entre eles, o proposto por Hassard & Dias (2009)

afigura-se particularmente original por propor articulações pouco usuais mas que sem

qualquer dúvida ajudam na compreensão das características desse empreendimento

humano que é a Ciência. Assim, estes autores exploram as relações entre ciência e

coragem, ciência e imaginação e criatividade humana, ciência e democracia (esta última

dimensão enfatizando a independência da observação e do pensamento, a originalidade

de ideias, a liberdade de pensamento e de divergência). Partindo destas relações, vão ser

mencionados exemplos da História da Ciência que os ilustram e que se pensa poderão

ajudar os professores a incluir a dimensão da literacia científica em discussão nas suas

aulas.

2. Método

A presente investigação baseou-se na análise documental de várias referências

bibliográficas que permitiram consubstanciar com exemplos reconhecidos algumas das

características da natureza da ciência referidos na secção anterior.

3. Recursos para explorar na sala de aula

A relação entre ciência e coragem surge claramente associada à gênese e idade da

Terra. O comportamento dos cientistas resulta certamente do contexto social, económico,

cultural, político e religioso de cada época histórica. Todavia, aspetos diretamente

relacionados com a personalidade de cada um devem igualmente ser tidos em conta.

As observações de Copérnico (1473-1543), Brahe (1546-1601), Kepler (1571-1630)

e Galileu (1564-1642), e ainda posteriores estudos de Newton, conduziram ao abandono

da conceção ptolemaica de que a Terra se encontrava no centro do Universo (figura 1),

indo aliás ao encontro da proposta de Aristarco de Samos (310 a.C. - 230 a.C.) avançada

muitos séculos antes. Todavia, recorda-se que Galileu, por ter usado defender o abandono

de tal conceção, foi acusado de heresia em 1633. A sua vida é um exemplo de coragem na

defesa das suas ideias face ao poder da Igreja Católica, apesar de ter acabado por acatar

a recomendação de que ensinasse a teoria heliocêntrica não como uma teoria verdadeira

mas meramente como uma hipótese. Importa talvez lembrar que pior sorte teve Giordano

História das Ciências para o Ensino – Colóquio II

128

Bruno (1548-1600), condenado à morte por heresia pela Inquisição ao defender ideias

semelhantes às de Galileu.

Figura 1 – Modelo heliocêntrico apoiado por Galileu (em baixo, à esquerda), que reafirma a teoria

heliocêntrica de Nicolau Copérnico (em cima, à direita) contra as ideias defendidas pela Igreja

Católica.

Já no que se refere à idade da Terra, alguns cientistas ousaram propor ideias

radicalmente diferentes das aceites na sua época, o que, por si só, é uma prova de

coragem. Um destes cientistas foi Buffon (1707-1788) ao afirmar a antiguidade do planeta,

e que o mesmo foi objeto, ao longo da sua longa história, de mudanças graduais e

bruscas. A idade por ele proposta para a Terra foi de entre 75000-170,000 anos, embora

nos seus escritos tenha mesmo sido avançada a idade de 3 milhões de anos (Ma). Sabe-

se que a antiguidade avançada por Buffon está longe dos 4600 Ma atualmente aceite. Mas

as suas estimativas entraram em colisão com os 6-8000 anos inferidos a partir dos

acontecimentos relatados na Bíblia. Todavia, evitou avançar publicamente com a sua

segunda estimativa para a idade da Terra. Será que tal facto denota falta de coragem? Na

verdade, várias das suas ideias foram censuradas pela Faculdade Teológica de Paris, uma

vez que se opunham às crenças da igreja. No entanto, 30 anos mais tarde, ele iria

recuperar e ampliar várias dessas mesmas ideias (Gohau, 1990; Bryson, 2003), provando

História das Ciências para o Ensino – Colóquio II

129

não ter abdicado totalmente delas e conseguindo influenciar outros cientistas alguns anos

mais tarde.

James Hutton (1726-1797), considerado o fundador da geologia moderna, também

pode ser usado como exemplo para ilustrar a relação entre ciência e coragem. Desde logo,

porque rompe com o neptunismo e propõe o plutonismo como uma alternativa. Depois,

porque alegou que as transformações da Terra só podem ser explicadas dentro de um

planeta necessariamente mais velho do que a idade que era inferida a partir da Bíblia

(figura 2).

Figura 2 – Registos de Siccar Point (Escócia), a célebre discordância angular descoberta por Hutton

(em baixo, à direita), Playfair e Hall, em 1788, que desafiou uma das maiores controvérsias

científicas do século XVIII: a dimensão do tempo geológico.

Este aspeto é ainda mais relevante do que a rutura com o neptunismo, pois, como

Bowler (1992) refere, é errado pensar que os cientistas apoiantes desta ideia para a

formação das rochas o eram devido a uma mera associação aos acontecimentos

associados a Noé presentes na Bíblia. Todavia, as ideias de Hutton não tiveram grande

impacto na época, fruto da sua incapacidade enquanto escritor e comunicador, e muito

menos devido a uma qualquer resistência conservadora às suas ideias provenientes da

época. Recorde-se que Hutton foi um dos produtos do denominado iluminismo escocês,

que inclui um brilhante ciclo de intelectuais que floresceram em Edimburgo, no final do

século XVIII (Bower, 1992). Assim, ao se associar Hutton à relação entre ciência e

coragem, pensa-se sobretudo na sua ousadia ao propor ideias totalmente novas e menos

no impacto que as mesmas provocaram a este cientista em termos da sua integridade

física e psicológica.

Também a teoria de deriva continental, proposta por Alfred Wegener (1880-1930), e

apresentada em 1919, é outro exemplo de coragem. Wegener propõe que no passado, há

cerca de 250 Ma, todos os continentes se encontravam unidos num supercontinente, a

Pangea, cuja fragmentação conduziu à formação de diferentes blocos continentais, que

andaram à deriva ao longo da história da Terra (figura 3).

História das Ciências para o Ensino – Colóquio II

130

Figura 3 – A conceção de deriva continental defendida por Alfred Wegener (no centro, à direita),

demonstrada pela ilustração da fragmentação do supercontinente Pangeia.

Esta proposta encontrou forte oposição por parte da comunidade científica da época,

embora o seu autor tenha apresentado diversos argumentos para a apoiar. Todavia, nunca

renegou as suas ideias, e as sucessivas edições do seu livro Die Entstehung der

Kontinente und Ozeane (Dos Continentes e dos Oceanos) com novas evidências são a

prova disso mesmo. Foi só com a teoria da tectônica de placas, em 1965, que a ideia de

mobilidade horizontal dos continentes ganhou impacto. A teoria da tectônica de placas

forneceu um modelo explicativo para a mobilidade global das placas e teve a aceitação da

comunidade científica.

Importa ainda referir que muitas ideias surgem e/ou persistem sem uma aceitação

por parte da comunidade científica. E que vários cientistas acabam por revelar a coragem

associada ao seu isolamento. Thomas Gold (1920-2004), um astrofísico de renome, é um

bom exemplo disso mesmo. Ele afirmou veementemente que os hidrocarbonetos não são

combustíveis fósseis como comumente se acredita, mas fazem sim parte da composição

original do planeta. Esta tese implicaria que a maior parte destes recursos poderiam ser

encontrada a profundidades maiores do que aquelas a que atualmente os exploramos. Se

esta ideia vier a ser provada, tal significará a existência de recursos de hidrocarbonetos

muito superiores aos que atualmente se pensa encontrarem-se disponíveis.

Aparentemente poderá vir a ser uma boa notícia para as nossas economias ainda muito

História das Ciências para o Ensino – Colóquio II

131

dependentes dos combustíveis fósseis, mas também pode fazer perigar o crescente

investimento em energias renováveis, com a continuação de impactos muito negativos

sobre o aquecimento global do planeta (Ehrlich, 2002).

A relação entre ciência, imaginação e criatividade dentro da Geologia está presente

de forma clara nos escritos de Júlio Verne (1828-1905). Este autor francês é um exemplo

bem representativo dos escritores que com o intuito de contribuírem para a formação

científica dos jovens, o fazem através da literatura. Todavia, este autor apresenta ideias e

factos científicos aceites na época como verídicos juntamente com outras ideias totalmente

fantasiosas. Um bom exemplo desta mistura ocorre no seu livro Viagem ao Centro da Terra

(figura 4), claramente inspirado pelo livro de teor científico de Charles Lyell.

Figura 4 – Imagem alusiva ao livro “ Viagem ao Centro da Terra”, de Júlio Verne (à esquerda); livro

de referência na categoria literária de ficção científica, no qual estão patentes factos científicos

defendidos no século XIX.

A Evidência Geológica da Antiguidade do Homem, publicado em 1863 por Lyell é a

fonte científica inspiradora mas Verne adiciona elementos fantasiosos espetaculares que

passam, por exemplo, pelas formas de Vida encontradas no interior da Terra e pelo modo

como as personagens principais do livro abandonam este mesmo interior.

É importante ressaltar que a imaginação e a criatividade dos cientistas raramente

adquire este grau de fantasia. Frequentemente, é uma antecipação não provada para algo

que mais tarde acaba por ter confirmação, fruto não raras vezes das possibilidades

oferecidas pelo desenvolvimento tecnológico. Quando a topografia do Oceano Atlântico

começou a ser conhecida a partir da década de 40 do século XX, foi possível constatar a

presença da imensa dorsal mediana que se prolonga por todo o oceano. Posteriormente,

verificou-se que a mesma era fraturada e que intensa atividade vulcânica do tipo fissural se

verificava (rifte). Todavia, antes desta constatação, já Harry Hess (1906-1969) tinha

História das Ciências para o Ensino – Colóquio II

132

imaginado o fundo do oceano como uma espécie de tapete, com origem na dorsal e

movendo-se lateralmente a partir dela, para ambos os lados. Como consequência, os

continentes tinham igualmente de se movimentar. No entanto, consciente de que se tratava

meramente de uma hipótese, fruto do seu pensamento especulativo, Hess apelidou-a de

"geopoesia", um ato criativo que só se tornaria uma realidade nos anos sessenta, quando

o estudo do paleomagnetismo confirmou a expansão dos fundos oceânicos.

Outro exemplo da relação em discussão pode ser encontrado nas múltiplas

explicações associadas à extinção catastrófica dos dinossauros, até à afirmação da

hipótese de Alvarez que gerou muitos adeptos na comunidade científica. A teoria do

impacto de um meteorito como causa da extinção dos dinossauros foi proposta apenas no

final dos anos setenta, quando Luis Alvarez e o seu filho Walter Alvarez encontraram em

camadas argilosas de um afloramento em Itália uma concentração invulgar de irídio. Uma

vez que este metal é relativamente raro na Terra, mas comum em meteoritos, Alvarez

concluiu que os sedimentos examinados poderiam ter tido origem num asteroide (figura 5).

A sua colisão com a Terra teria levantado uma enorme nuvem de poeira que se teria

dispersado pela atmosfera e afetado negativamente o desenvolvimento das plantas. No

entanto, antes desta explicação, e desde o início do século XIX, várias tentativas criativas

para explicar a extinção dos dinossauros na transição do Cretácico para o Terciário foram

apresentadas. Muitas causas possíveis foram avançadas, como por exemplo: (i) a

contração de doenças semelhantes às dos seres humanos; (ii) a manifestação de

problemas de reumatismo causados pelo seu enorme tamanho; (iii) a manifestação de

problemas cardíacos como enfartes do miocárdio decorrentes da sua obesidade; (iv) o

atingimento do grau máximo de evolução; (v) a incapacidade de evolução devido a

insanidade mental. Muitas outras explicações surgiram ainda exteriores à ciência, como a

possibilidade de terem sofrido um ataque por seres extraterrestres, um castigo divino

devido à sua monstruosidade, ou mesmo porque não couberam na Arca de Noé.

Figura 5 – Crateras como a Cratera de Barringer (Arizona), conhecida pela sua dimensão

assinalada com 1,2 km de diâmetro e pelo seu elevado estado de conservação, assim como outras

crateras, têm sido estudadas de modo a testar a hipótese proposta por Alvarez (em cima, à direita).

História das Ciências para o Ensino – Colóquio II

133

Por fim, Hassard & Dias (2009) estabelecem ligações entre ciência e democracia.

Nesta relação, os autores enfatizam a independência da observação e do pensamento, a

originalidade de ideias, a liberdade de pensamento e de dissidência. A independência na

observação, ou até mesmo a liberdade de pensamento e de dissidência, torna-se evidente

nas observações que se originaram e que deram origem à enunciação do Uniformitarismo,

um dos princípios metodológicos fundamentais da Geologia. A busca de evidências para

suas ideias levaram Charles Lyell a aventurar-se por todo o continente europeu, e o

Uniformitarismo surge no seu livro Princípios de Geologia, publicado em três volumes entre

1830 e 1833.

A visita ao Templo de Serápis (Puzzuoli-Itália) levou Lyell a observar o que ele

chamou de uma evidência inequívoca da ocorrência de mudanças geológicas graduais

(figura 6). As colunas destas ruínas mostravam marcas de conchas, o que indicava que as

colunas tinham estado parcialmente submersas em algum período no tempo.

Figura 6 – Templo de Serápis (Itália), símbolo do gradualismo, defendido por Charles Lyell (em cima,

à direita), e, simultaneamente, do neocatastrofismo, defendido por Derek Ager.

Esta observação levou-o a considerar que o nível do mar tinha mudado duas vezes

na região durante a era cristã, facto esse que o levou a concluir que as mudanças

geológicas poderiam ocorrer como um processo gradual. No entanto, nem todos os

História das Ciências para o Ensino – Colóquio II

134

paleontólogos concordaram com algumas das conclusões de Lyell. Por exemplo, Ager

(1995) elegeu a imagem dos pilares do Templo de Serápis como símbolo das mudanças

catastróficas em geologia. Para este paleontólogo, as observações referidas não indicaram

mudanças graduais no nível do mar ao longo do tempo, mas estavam sim relacionadas

com episódios vulcânicos, geradores de mudanças rápidas e catastróficas (Ager, 1995).

Um exemplo atual desta última ligação é a afirmação de Ribeiro (2002) de que um

processo de subducção incipiente da litosfera atlântica sob a litosfera continental se está

iniciando na costa ocidental ibérica e no noroeste de Marrocos. Esta ideia opõe-se à visão

aceite pela comunidade geológica de que tal zona corresponde a um bordo passivo da

litosfera. Mas Ribeiro defende que a existência desta subducção justifica magnitude

elevada do terramoto e tsunami que destruiu Lisboa em 1755, e que é pouco

compreensível como ocorrência numa margem passiva. Também o padrão da atividade

sísmica na costa da Península Ibérica no decurso do século XIX ajuda a apoiar esta ideia.

Se se trata ou não de uma interpretação abusiva dos dados existentes para justificar a

imaginação do autor, é uma questão que se pode colocar. Mas, inegavelmente, trata-se de

uma manifestação de coragem na dissidência, que tem gerado controvérsia no âmbito da

tectónica de placas.

4. Conclusão

Como conclusão principal importa assinalar que a natureza da ciência pode, sem

qualquer dúvida, ser inserida no contexto do ensino das ciências, recorrendo a uma

multiplicidade de exemplos da história da ciência. No presente caso, foram privilegiados os

exemplos ao nível da história da Geologia, com a valorização das relações entre ciência e

coragem, ciência imaginação e criatividade, e ciência e democracia. Os exemplos

apresentados possuem um inegável potencial pedagógico e reforçam a ideia da Geologia

como uma ciência histórica. Podem ser usados como forma de ajudar os alunos a

interiorizarem como a ciência se articula com a sociedade e como se constrói apoiada na

divergência de ideias e na coragem de alguns que ousaram manifestar opiniões totalmente

minoritárias na época em que foram propostas. Tal facto, continua nos dias de hoje e

importa que os alunos percebam que as antigas fogueiras, usadas para queimar o corpo e

alma de dissidentes, não deixaram de existir, só que adquiriram novas formas: exclusão,

rejeição de trabalhos relevantes em revistas conceituadas em que a revisão por pares

muitas vezes silencia a divergência, recusa de financiamento... Um desafio sem dúvida

para as nossas democracias imperfeitas.

5. Referências

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nature of science: A critical review of the literature. International Journal of Science

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História das Ciências para o Ensino – Colóquio II

135

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Vasconcelos, C. (2011). Relatório de Agregação e Educação em Ciências. Braga:

Universidade do Minho.

136

HISTÓRIA DA CIÊNCIA EM MANUAIS ESCOLARES: OS

SISMÓGRAFOS E O DESENVOLVIMENTO DA SISMOLOGIA

HISTORY OF SCIENCE IN SCHOLAR TEXTBOOKS:

SEISMOGRAPHS AND THE DEVELOPMENT OF SEISMOLOGY

Sara Moutinho1 & Clara Vasconcelos1*

Resumo

A História da Ciência pode ser reconhecida como temática a lecionar de forma independente ou

integrar o ensino de conteúdos conceptuais, promovendo simultaneamente a aprendizagem de

caraterísticas da natureza da ciência. Enquanto abordagem educativa ajuda os alunos a construir

uma imagem adequada do empreendimento científico, permitindo-lhes desenvolver uma visão mais

ampla das descobertas científicas e perceber a sua influência no quotidiano. A sismologia, enquanto

ciência que estuda o impacte dos sismos nas populações e conteúdo das metas de aprendizagem

do ensino básico, reclama a referência à sua história, incluindo os cientistas que tiveram um

contributo importante no seu desenvolvimento e os instrumentos que foram construídos e

aperfeiçoados ao longo dos anos, como os sismógrafos. Este trabalho tem como propósito

averiguar qual a frequência do recurso à História da Ciência nos manuais escolares de ciências

naturais do 7º ano de escolaridade para lecionar temáticas de sismologia, tendo-se analisado as

unidades relativas à temática de sismologia de 9 manuais aceites pelo Ministério da Educação

Português e comercializados no ano letivo 2013/2014. A análise de conteúdo foi feita através de

uma grelha de análise elaborada e validada para a amostra em estudo. A interpretação da análise

realizada permitiu verificar que apenas alguns manuais fazem referência a episódios da História da

Sismologia. Não obstante, a maior parte deles refere apenas breves dados biográficos de alguns

cientistas, imagens e fotografias de investigadores e instrumentos utilizados nesta área de

investigação. A informação histórica ou os exercícios que integram esta informação surgem na

maioria dos manuais em locais de leitura facultativa e, no caso de surgirem em aplicações, limitam-

se à realização de uma leitura guiada e meramente descritiva. Desta forma, consideramos que

apesar da referência que é feita à História da Ciência nos manuais escolares, as informações e os

episódios históricos relatados são pouco valorizados e é-lhes dado pouca ênfase no sentido de

promoverem a aprendizagem da natureza da ciência de conteúdos científicos como, por exemplo, a

sismologia.

Palavras-chave: História da Ciência; Manuais escolares; Natureza da Ciência; Sismógrafos;

Sismologia.

Abstract

History of science could be recognized as a subject which could be teached autonomously or it could

be integrated in teaching contents, promoting the learning of Nature of Sciences’ characteristics. As

an educational approach, it helps students to build an adequate view of science, allowing them to

develop a broader view of scientific discoveries and understand their influence on everyday life.

Seismology as a science that studies the impact of earthquakes on populations and content of the

learning goals of basic education claims the reference to its history, including the scientists who had

an important contribution in its development and the tools that were built over the years, such as

seismographs. This paper aims to analyse the History of Sciences’ contents presented in Natural

Science textbooks to teach themes of seismology. For this, we analysed all the units related to the

theme of seismology, in Natural Sciences textbooks of 7th grade accepted by the Portuguese

1Centro de Geologia da Universidade do Porto; DGAOT/Unidade de Ensino das Ciências; Faculdade de

Ciências da Universidade do Porto. * Autor de contacto: [email protected]

História das Ciências para o Ensino – Colóquio II

137

Ministry of Education, and marketed in the school year 2013-2014. It was performed a content

analysis using an appropriate table developed and validated to the study sample. The interpretation

of the analysis has shown that only some science textbooks refer episodes related to the history of

seismology. Nevertheless, most of them refer only brief biographical data of some scientists, images

and photographs of researchers and instruments used in this research area. The historical

information or exercises that integrate this information arise in most textbooks in voluntary readings’

spaces. The exercises for the application of seismology usually are limited to the realization of a

guided reading and merely descriptive questions. Thus, we believe that despite the references made

to the History of Science in textbooks, the information and the reported historical episodes are

undervalued and they are given little emphasis in order to promote the learning of the Nature of

Science and scientific content as, for example, seismology.

Keywords: History of Science; Nature of Science; Scholar textbooks; Seismographs; Seismology.

1. Introdução

A História da Ciência assume um papel preponderante no ensino das ciências uma

vez que ajuda os alunos a construir uma imagem adequada da ciência, permitindo

desenvolver uma visão mais ampla das descobertas científicas e perceber a sua influência

no quotidiano. Este trabalho apresenta um pouco de História da Sismologia, uma

abordagem científica de relevância para a sociedade, pelo facto de se debruçar sobre o

estudo do impacte dos sismos nas populações. Além disso, por se tratar de um conteúdo

integrado nas metas de aprendizagem do ensino básico, a sismologia reclama a referência

à sua história, incluindo os cientistas que tiveram um contributo importante no seu

desenvolvimento e os instrumentos que foram construídos e aperfeiçoados ao longo dos

anos como, por exemplo, os sismógrafos.

1.1. Os sismógrafos e o desenvolvimento da sismologia

Os terramotos sempre interessaram à Humanidade. As primeiras referências

históricas acerca dos terramotos foram feitas por astrónomos da babilónia, e com estas se

iniciaram as primeiras tentativas de explicação dos fenómenos sísmicos (Rebelo, 2012).

Aristóteles foi o primeiro a tentar explicar os sismos de forma científica na sua obra

Meteoros. De acordo com este filósofo, os terramotos ocorriam quando os ventos

exteriores sopravam dentro da Terra, onde acumulavam a força suficiente para fazer

estremecer o solo. Aristóteles ainda acrescentava, com uma premonição realmente

geológica, que as regiões onde o subsolo é poroso, recebem mais trepidação devido à

grande quantidade de vento que absorvem (Walker, 1990).

Ao longo dos séculos os vários povos que habitavam nos mais diversos lugares do

planeta procuraram explicações para os fenómenos naturais que não conseguiam explicar,

como é o caso dos sismos. Assim, várias culturas possuíam mitos e lendas que

esclareciam as populações sobre a origem destes fenómenos, algumas de caráter

religioso, outras não.

Em algumas seitas Budistas, os Nagas eram conhecidos como cobras gigantes,

muitas vezes olhadas com reverência, mas também consideradas como causa dos

terramotos pelos seus movimentos subterrâneos. O famoso pilar de Delhi, que se encontra

num pátio da agora mesquita de Quwwat-ul-Islam, foi erguido no tempo pré-islâmico, em

cerca de 400 d.C., no reinado de Chandragupta II. Alguns consideram que o propósito do

pilar era servir de ancoragem simbólica do espírito subjacente aos Nagas, para restringir

os seus movimentos, e assim evitar os terramotos (Reitherman, 2014).

Os japoneses, por outro lado, acreditavam que os terramotos se deviam ao Namazu,

um peixe-gato gigante que vivia por baixo da Terra e a suportava, que afundasse no

História das Ciências para o Ensino – Colóquio II

138

oceano. Quando o Namazu se contorcia fazia com que a terra tremesse, ocorrendo um

terramoto (Reitherman, 2014).

O primeiro aparelho construído para detetar abalos sísmicos foi desenvolvido por

Chang Heng, um filósofo chinês, no ano 132 d.C. O instrumento, o sismoscópio (como era

designado), assemelhava-se a uma jarra de vinho com quase dois metros de diâmetro. Do

lado de fora do aparato havia oito cabeças de dragão, que correspondiam às oito principais

direções da bússola, e cada uma delas possuía uma bola na boca. Por baixo de cada

dragão, na base do aparelho, estava colocado um sapo com a boca aberta em direção ao

dragão (figura 1). Na ocorrência de um terramoto, uma das oito cabeças de dragão

libertava uma bola que caía na boca aberta do sapo. A direção do abalo era assim

determinada pelo dragão que tinha libertado a bola. Há relatos que afirmam que o

instrumento era usado para detetar terramotos distantes, podendo detetar sismos que

ocorressem a quatrocentos quilómetros de distância do local onde se encontrasse o

sismoscópio (Dewey & Byerly, 1969).

Figura 1 – Sismoscópio desenvolvido por Chang Heng, em 132 d.C. (Retirado de Dewey & Byerly,

1969, p.184).

No entanto, até ao século XVIII persistiu a ideia que em geral os terramotos eram

castigos infligidos por Deus à humanidade e o pensamento era mais influenciado pela

superstição do que pelo conhecimento científico, ainda que incipiente. As descrições dos

terramotos, ao longo dos séculos, foram sempre dominadas pelo pânico da catástrofe,

sendo difícil, por vezes, apurar a veracidade dos factos (Shearer, 1999).

A partir do século XVIII começaram a surgir vários documentos escritos por cientistas

com relatos de instrumentos de deteção de terramotos. Em 1703, J. de la Haute Feuille

propôs que partindo de uma tigela cheia de mercúrio até à borda seria possível detetar um

terramoto, pois o abalo poderia causar o derrame do mercúrio. Para determinar a direção

do abalo bastava analisar para qual das oitos direções principais da bússola teria o

mercúrio derramado, sendo recolhido por recipientes estrategicamente colocados. (Dewey

& Byerly, 1969).

Contudo, é importante perceber que a evolução da sismologia como ciência ocorreu

em associação com outras descobertas e avanços científicos nomeadamente relacionados

com o conhecimento da estrutura interna da Terra e a evolução dos instrumentos e

História das Ciências para o Ensino – Colóquio II

139

técnicas de análise dos sismos, onde destacamos os sismógrafos. Em relação ao

conhecimento da dinâmica interna da Terra, alguns dos dados mais importantes neste

domínio devem-se ao engenheiro civil irlandês Robert Mallet, que dedicou parte

significativa dos seus trabalhos à recolha de informações referentes a sismos que foram

ocorrendo em todo o mundo, resultando, em 1857, num mapa com a geografia dos sismos

de todo o mundo, marcando o início da cartografia sísmica (Wood, 1998). Só cerca de um

século depois, o mapa de Mallet foi atualizado e melhorado.

Por outro lado, as primeiras gravações conhecidas de um sismo distante foram feitas

em 1889 com instrumentos de astronomia, por Ernest Von Rebeur-Paschwitz, um

astrónomo alemão. O instrumento era composto por pêndulos horizontais, projetados por

ele para medir pequenas mudanças na direção vertical (figura 2). Dois destes pêndulos,

localizados em Potsdam e Wilhelmshaven, registaram um grande terramoto que ocorreu a

17 de abril de 1889, e foi sentido no Japão cerca de uma hora antes do mesmo ter sido

registado na Alemanha (Fréchet & Rivera, 2012).

Von Rebeur foi o primeiro a utilizar um instrumento de gravação fotográfica para

observações sismológicas contínuas. A vantagem deste tipo de registo foi a completa

ausência de atrito na ampliação e registo do movimento relativo do pêndulo e da Terra. As

únicas fontes de atrito no seu aparelho eram os pontos onde o braço do pêndulo era

articulado. O efeito deste atrito sobre o comportamento dinâmico do pêndulo era

independente da ampliação do instrumento. Houve, no entanto, desvantagens no registo

fotográfico, em comparação com o registo mecânico, uma vez que os primeiros não foram

tão intensos como os registos feitos em papel fumado. As altas oscilações de amplitude

não foram registadas no papel fotográfico, que além disso era bastante caro. Por isso, o

registo mecânico continuou, assim, a ser amplamente utilizado nos sismógrafos (Dewey &

Byerly, 1969).

Figura 2 – Esboço do sismógrafo desenvolvido por Von Rebeur-Paschwitz, evidenciando a

montagem do pêndulo (do lado esquerdo), e o sistema de registo feito com uma lâmpada e papel

fotográfico (do lado direito) (Retirado de Fréchet & Rivera, 2012, p.326).

Durante alguns anos, vários estudos foram feitos a este nível na tentativa de

aperfeiçoar os sismógrafos e as suas leituras.

John Milne, um geólogo inglês e engenheiro de minas, fundador da sociedade

História das Ciências para o Ensino – Colóquio II

140

sismológica do Japão, em 1880, desenvolveu juntamente com Sir James Alfred Ewing e

Thomas Gray, engenheiros mecânicos britânicos, várias investigações sobre sismologia no

Japão, que levaram ao desenvolvimento de um sismógrafo de pêndulo horizontal, em

1893. Este sismógrafo permitia detetar diferentes tipos de ondas sísmicas e estimar as

suas velocidades (figura 3). Apesar de todos os três cientistas terem trabalhado nessa

investigação, o mérito da construção do sismógrafo de pêndulo é atribuído apenas a John

Milne. (Instituto Nacional de Prevención sísmica, in press). A construção deste sismógrafo

foi um marco importante na evolução da sismologia, porque este tornou-se o sismógrafo

mais compacto construído até à época, sendo possível instalá-lo em cerca de quarenta

observatórios em todo o mundo (Lay & Wallace, 1995).

Pouco tempo depois, Harry Fielding Reid, um professor de geologia na Universidade

John Hopkins, em Baltimore, e um dos responsáveis pela investigação do terramoto de

São Francisco, que ocorreu em 1906, formulou a teoria do ressalto elástico a partir de

observações e registos efetuados no estudo deste sismo. A partir da análise do

deslocamento da superfície do solo, que acompanhou o terramoto de 1906, Reid concluiu

que o sismo provavelmente teria envolvido um ressalto elástico de tensão elástica

previamente armazenada. A base desta teoria surgiu de um elástico esticado que foi

quebrado ou cortado, e a energia elástica armazenada na faixa de borracha durante o

alongamento, de repente, foi liberada. De forma semelhante, a crosta da Terra podia

gradualmente armazenar tensão elástica que seria liberada repentinamente durante um

terramoto. A acumulação gradual e a liberação de tensão é atualmente explicada como a

Teoria do Ressalto Elástico. A maioria dos terramotos resulta da recuperação elástica

súbita de energia armazenada anteriormente (Reid, 1910).

Figura 3 – Esboço do sismógrafo de pêndulo horizontal de Milne (Retirado de Dewey & Byerly,

1969, p.212). A ilustração de baixo é uma vista de topo do aparelho sem a caixa exterior. T é um fio

flexível que sustenta o pêndulo.

Na transição do século XIX para o século XX a tecnologia relativa aos sismógrafos

melhorou significativamente, e os dados relativos às caraterísticas das ondas sísmicas

foram-se acumulando e reforçando os conhecimentos dos cientistas sobre os vários tipos

de ondas. Desta forma, começaram também a ser desenvolvidas investigações sobre a

estrutura interna da Terra e a origem dos sismos, que conduziram à descoberta do núcleo

História das Ciências para o Ensino – Colóquio II

141

da Terra por Oldham, em 1906, à determinação exata da sua profundidade por Gutenberg,

em 1913, a descontinuidade de Moho, por Mohorovicic em 1909, e a descoberta do núcleo

interno por Lehmann em 1936. Todos estes dados foram importantes para a compreensão

da estrutura interna da Terra mas também para a explicação da origem dos sismos (Lay &

Wallace, 1995). Foram todos estes avanços científicos que permitiram o aperfeiçoamento

dos sismógrafos usados nestes estudos, tornando-os cada vez mais sensíveis e precisos.

Atualmente, a sismologia é uma ciência fundamental no sentido em que se preocupa

com o impacte dos sismos nas populações, por isso foram surgindo várias áreas científicas

relacionadas com esta ciência, como a engenharia sísmica, a avaliação do risco sísmico

ou os riscos naturais. Dada toda a sua importância para a sociedade, alguns dos seus

conteúdos estão contemplados nas metas do ensino básico e nos programas de geologia

do ensino secundário português. Além dos conteúdos científicos, é também fundamental a

referência à História da Ciência para promover a contextualização de toda a informação,

permitindo que os alunos lhe atribuam um significado e compreendam melhor algumas

caraterísticas da ciência.

1.2. História da Ciência nas aulas de ciências naturais

Atualmente, grande parte dos investigadores em Ensino da Ciências reconhecem

elevada importância na utilização da História da Ciência (HC) ao nível da educação em

ciências (Pereira & Amador, 2007). Na verdade, a HC pode ajudar os alunos a adquirir

uma imagem adequada da Natureza da Ciência (NdC) (Forato, Martins & Pietrocola, 2012),

oferecendo-lhes a oportunidade de compreender não só que o conhecimento científico é

provisório e incerto, mas também que a ciência não é totalmente objetiva nem possui

verdades absolutas (Lind, 1980). O recurso à HC auxilia a aprendizagem dos conceitos

científicos, promovendo um maior interesse e motivação dos estudantes, além de permitir

que eles desenvolvam uma melhor atitude em relação à ciência e compreendam a sua

relevância na sociedade (Hacieminoglu, 2014).

Para transmitir uma imagem adequada do real, a ciência necessita de apresentá-la

como uma vivência do empreendimento humano coletivo, onde o passado exerce

influência sobre o seu presente. Desta forma se compreende o papel fundamental da HC,

uma vez que é imprescindível o conhecimento do passado e da colaboração entre os

cientistas para o acontecimento de uma descoberta científica (Leite, 2002). Assim sendo, a

ciência deve ser vista como uma atividade coletiva que progride através do consenso

definido por um determinado contexto histórico e cultural, contrariamente ao que muitas

vezes se pensa, ou seja que é resultante do trabalho de indivíduos isoladamente.

Leite (1986) defende que a HC é também fundamental para promover nos

estudantes a mudança de ideias aristotélicas, que consistem em ideias que não são

cientificamente aceites, mas que se assemelham, em termos de conteúdo, ao

conhecimento conceptual que outrora os cientistas desenvolveram. Desta forma, a HC tem

um contributo importante na formação dos alunos pois permite ilustrar a modificação, a

revisão, a rejeição e a reintegração de modelos, bem como a sua relatividade, permitindo

aos alunos analisar criticamente os modelos históricos (Forato, Martins & Pietrocola, 2012;

Lind, 1980).

Com o recurso à HC os alunos encontram muitos domínios da atividade humana

como a filosofia antiga (Hacieminoglu, 2014), o início da ciência natural, a influência mútua

da ciência e da tecnologia, o desenvolvimento social resultante de descobertas científicas,

e até mesmo questões políticas, religiosas, metafísicas e epistemológicas (Leite, 2002).

Assim, os alunos podem adquirir uma visão mais ampla dos eventos científicos e perceber

História das Ciências para o Ensino – Colóquio II

142

a influência da ciência na nossa maneira de viver, e como esta é influenciada por ela. Por

outras palavras, os alunos compreendem que a ciência é influenciada interna e

externamente (Brush, 2000, Carneiro & Gastral, 2005).

Contudo, é fundamental que os professores esclareçam os alunos de que toda a

história resulta da seleção de informações a partir da interpretação dos factos e contextos

analisados pelo historiador, mostrando assim que o contexto histórico é sempre construído

(Lombardi, 1997). Mas nem o historiador nem o educador de ciência podem impor ao

passado as normas do presente e avaliar a ciência do passado em oposição ao

conhecimento atual (Brush, 2000). Desta forma, realça-se a necessidade dos professores

estarem informados e bem preparados para promoverem o desenvolvimento do

conhecimento científico dos alunos através da HC (Seker, 2011).

A abordagem à HC exige mentes abertas que sejam capazes de participar em

discussões sobre vários tópicos da ciência onde muitas vezes é difícil encontrar respostas

certas. Este exercício permite que os alunos desenvolvam um conjunto de competências

importantes na sua formação e que os preparam para a sua vida futura.

Do ponto de vista prático e aplicado, a HC pode ser vista como conteúdo (em si) das

disciplinas científicas, e como estratégia didática facilitadora na compreensão de conceitos,

modelos e teorias (Martins, 2007), defendendo-se por isso a sua inclusão nos currículos de

ciências.

Mathews (1994) defende a inclusão da HC nos currículos escolares pois considera

que ela promove uma melhor compreensão dos conceitos científicos e dos métodos. Além

disso, estabelece a ligação entre o desenvolvimento do pensamento individual com o das

ideias científicas, sendo por isso intrinsecamente valiosa. Os episódios mais relevantes e

significativos da HC deveriam ser conhecidos por todos os alunos uma vez que a

compreensão da NdC implica algum conhecimento sobre a história da ciência (Prestes &

Caldeira, 2009).

O recurso à HC, com o exame da vida e da época dos investigadores individuais,

permite-nos perceber que a ela humaniza a matéria científica, tornando-a menos abstrata e

mais interessante para os alunos (Mathews, 1994, p.50). Assim, a HC permite o

estabelecimento de conexões dentro de tópicos e disciplinas científicas, bem como com

outras disciplinas académicas.

2. Método

Com este trabalho pretendeu-se averiguar qual a frequência do recurso à história da

ciência nos manuais de ciências naturais do 7º ano de escolaridade para lecionar

temáticas de sismologia. Desta forma, foram analisadas as unidades relativas à temática

de sismologia de manuais de ciências naturais do 7º ano aceites pelo Ministério da

Educação Português e comercializados no ano letivo 2013-2014. Na totalidade foram

analisados 9 manuais, publicados por 6 editoras escolares.

Esta análise foi feita adaptando-se uma grelha de análise de manuais escolares já

validada e utilizada num trabalho anterior por Pereira e Amador (2007) e que, por sua vez,

foi adaptada do trabalho original de Leite (2002). Os resultados foram analisados

recorrendo à análise de conteúdo, técnica adequada a um estudo exploratório (Bardin,

1977), que através de um enquadramento heurístico ajuda a identificar conceções

epistemológicas implícitas.

A grelha utilizada possui seis categorias de análise: tipo e organização da informação

histórica; documentos históricos referenciados; correção e adequação da informação

histórica; contextualização dos conteúdos históricos; estatuto dos conteúdos históricos; e

História das Ciências para o Ensino – Colóquio II

143

propostas de atividades envolvendo a história da ciência. Em algumas das categorias

enunciadas foram também definidas subcategorias identificadas na Tabela 1.

Tabela 1 – Categorias e subcategorias de análise dos manuais de ciências naturais.

Categoria Subcategoria

Tipo e organização da informação

histórica

- Os protagonistas: filósofos naturais, naturalistas e

cientistas

- Evolução do conhecimento científico

Os documentos históricos

referenciados

- Representações pictográficas

- Documentos/textos e imagens originais (fontes

históricas primárias)

- Relatos de observações/experiências históricas

Correção e adequação da

informação histórica

Contextualização dos conteúdos

históricos

Estatuto dos conteúdos históricos - Essencial/básico

- Complementar

Propostas de atividades envolvendo

a História da Ciência

- Obrigatoriedade ou não na realização das atividades

- Tipologia das atividades

3. Resultados e discussão

Após a recolha e análise dos manuais escolares, os resultados obtidos foram

organizados em várias tabelas consoante as seis categorias de análise. Os resultados da

análise são apresentados de seguida, divididos em seis secções que correspondem às

seis categorias de análise.

3.1. Tipo e organização da informação histórica

Dentro desta categoria foram definidas duas subcategorias: os protagonistas:

filósofos naturais, naturalistas e cientistas e evolução do conhecimento científico.

Na primeira subcategoria incluíram-se os indicadores dados biográficos,

características pessoais e relatos de episódios/anedotas. Na subcategoria evolução do

conhecimento científico incluíram-se aspetos diversificados que vão desde referências a

progressos científicos, descrição de atividades observacionais/experimentais, modelos

evolutivos e responsáveis pela evolução.

Na subcategoria os protagonistas: filósofos naturais, naturalistas e cientistas é

incluída informação histórica relativa aos protagonistas da HC. A sua análise compreendeu

a recolha de informações tendo por base os três indicadores supracitados e apresentados

na Tabela 2, por se considerar que permitem caraterizar de forma exaustiva os

protagonistas da HC.

Relativamente à subcategoria evolução do conhecimento científico foi incluída toda a

informação histórica que é apresentada de forma a privilegiar a perceção de processos de

mudança, quer numa perspetiva diacrónica quer sincrónica. Por isso a definição de todos

os indicadores foi feita de forma a ser possível compreender como ocorreu a evolução do

conhecimento científico. As referências a progressos científicos referem-se a propostas de

outras formas de organizar informação, novas teorias, resultados obtidos na sequência de

experiências e, o aperfeiçoamento de instrumentos técnicos.

História das Ciências para o Ensino – Colóquio II

144

Em relação à descrição de atividades observacionais/experimentais considerou-se

importante distinguir se elas se referiam a aspetos sincrónicos, ou seja, se apresentavam

os episódios históricos e as descobertas científicas como se fossem obtidos após a

primeira tentativa de estudo, não sendo referidos os fracassos, nem o número de anos que

os diferentes cientistas levaram a realizar as mesmas experiências antes de terem

sucesso, e a aspetos diacrónicos, evidenciando que os progressos científicos se

desenvolvem em períodos de tempo mais ou menos longos.

Relativamente aos modelos evolutivos considerou-se importante distinguir uma

perspetiva linear e acumulativa, onde se apresenta o desenvolvimento científico com

poucas referências a controvérsias, debates ou períodos de mudança de paradigma, de

uma perspetiva revolucionária, onde se enfatizam todas as revoluções que ocorreram na

ciência ao longo dos tempos, referências a controvérsias ou mudanças teóricas.

Por fim, a análise da informação histórica relativa aos responsáveis pelo progresso

científico foi classificada como fruto do trabalho individual dos cientistas, como resultado de

grupos restritos de cientistas (grupos com menos de três pessoas), e como resultado do

trabalho de comunidades científicas (grupos com mais de três pessoas).

A Tabela 2 apresenta os resultados da análise dos manuais para todas as

subcategorias referidas anteriormente.

Tabela 2 – Resultados da análise dos manuais na categoria tipo e organização da informação histórica (n=9).

A Tabela 2 mostra que em relação à subcategoria Os protagonistas: filósofos

naturais, naturalistas e cientistas vários manuais apresentam informações relativas aos

dados biográficos dos protagonistas da HC. Estas informações dizem geralmente respeito

às datas relativas ao seu nascimento e à sua morte, nacionalidade e profissão.

As informações surgem na maior parte dos casos em locais de leitura essencial, ou

seja, ao longo do corpo do texto ou acompanhando imagens que ilustram as páginas de

texto dos manuais.

Subcategoria Indicadores Manuais

A B C D E F G H I

Os protagonistas: filósofos naturais,

naturalistas e cientistas

- Dados biográficos - 2 2 5 2 - - 6 -

- Características pessoais - - - - - - - - -

- Relatos de Episódios/anedotas - - - - - - 1 - -

Evolução do conhecimento

científico

- Referências a progressos científicos - 1 - 4 1 - 1 - -

- Descrição de atividades observacionais/ experimentais

- Valorizando aspetos sincrónicos

- 1 1 1 - - - - 1

- Valorizando aspetos diacrónicos

- 1 2 2 - - - 1 -

- Modelos evolutivos

- Perspetiva linear e acumulativa

- 1 1 - - - 1 1 -

- Referências a revoluções científicas, controvérsias, mudanças teóricas, etc.

- - - 1 - - - - -

- Responsáveis pela evolução

- Trabalho individual - 1 3 3 1 - 1 4 -

- Grupos restritos (<3) - 1 - - 1 - 1 1 -

- Comunidades científicas (>3)

- - - - - - - - -

História das Ciências para o Ensino – Colóquio II

145

No entanto, no manual H, os dados biográficos dos cientistas surgem em locais de

leitura facultativa, mais propriamente na página inicial do capítulo relativo à sismologia,

como ilustrado na figura 4.

Figura 4 – Dados biográficos de Charles Richter e Beno Gutenberg (manual H, p.124 e

125)

A Tabela 2 mostra também que nenhum manual possui informação relativa às

caraterísticas pessoais dos protagonistas da HC. Em todos os manuais se verifica uma

preocupação na descrição dos conteúdos científicos, e os conteúdos históricos

apresentados surgem geralmente como complemento da informação científica. Assim,

parece não haver lugar para a descrição de algumas das caraterísticas pessoais dos

cientistas, ao nível das unidades relativas à sismologia.

Quanto aos relatos de episódios/anedotas, apenas o manual G apresenta uma

descrição de um episódio que geralmente não é conhecido pelos alunos e também não é

chamada a atenção para ele.

A magnitude é medida por uma escala inventada por Charles Richter e Beno

Gutenber (apesar de este último nunca ser referido), designada por escala de Richter

(manual G, p. 135).

A análise deste breve episódio leva-nos a refletir sobre aquilo que muitas vezes se

passa ao nível da investigação científica, que é o facto de alguns nomes de cientistas

serem ocultados, dando a ideia que as descobertas científicas resultam do trabalho de

apenas um cientista, o que em muitos casos não corresponde à realidade. Hoje sabemos

que os cientistas trabalham geralmente integrados em grupos de investigação, e as

descobertas científicas são fruto do trabalho colaborativo.

Na subcategoria evolução do conhecimento científico, foi considerado como

indicador a referência a progressos científicos, tendo-se verificado pela análise da Tabela 2

que 4 manuais descrevem alguns progressos científicos que ocorreram ao longo da

história. Esses relatos ajudam os alunos a perceber como foi construído o conhecimento

História das Ciências para o Ensino – Colóquio II

146

científico. A referência a progressos científicos surge assim relacionada com a proposta

de outras formas de organizar informação, novas teorias, resultados obtidos na sequência

de experiências e, com o aperfeiçoamento de instrumentos técnicos.

Eis um exemplo deste tipo de referências:

Em 1902, Giuseppe Mercalli propôs uma escala com apenas dez graus que, mais

tarde, foi alargada para doze graus por Adolfo Cancani. Em 1912, August Sieberg

caracterizou cada um dos graus da escala de uma forma mais detalhada. Em 1992, a

Comissão Europeia de Sismologia, baseada na escala de Mercalli e noutras, introduziu

uma nova escala, a EMS - escala macrossísmica europeia (manual B, p.129).

Este excerto mostra um exemplo de um progresso científico relacionado com o

aperfeiçoamento de instrumentos técnicos, embora neste caso não se trate propriamente

de um instrumento mas de uma escala usada na avaliação dos efeitos dos sismos.

No que diz respeito à descrição de atividades observacionais/experimentais

considerou-se como indicadores a valorização de aspetos sincrónicos e diacrónicos. Pela

análise da Tabela 2 verifica-se que os manuais analisados apresentam mais aspetos

diacrónicos, ou seja, aspetos que demonstram que os progressos científicos se

desenvolvem em períodos de tempo mais ou menos longos.

Surgiram, então, várias escalas de intensidades, sendo a mais conhecida a de

Mercalli (1902) com 12 graus experssos em numeração romana. A Escala de Mercalli

Modificada (1931), revista em 1956, é a actualmente usada em muitos países, entre os

quais, Portugal (manual C, p.151).

Figura 5 – Texto de início de capítulo contemplando aspetos diacrónicos (manual D,

p.160).

História das Ciências para o Ensino – Colóquio II

147

Por outro lado, apesar de menos frequentes verifica-se também a existência de

alguns episódios que realçam aspetos sincrónicos, como por exemplo:

No século XIX, Robert Mallet desenhou o primeiro mapa de registo dos efeitos de um

sismo. Para esse efeito, ligou os pontos onde se tinha registado a ocorrência de danos

semelhantes (manual C, p.151).

A Escala de Richter, elaborada por Charles Richter, em 1935, determina a amplitude

de um sismo (manual D, p.166).

Ao contrário do que se poderia pensar, nestes manuais foram encontrados mais

registos de aspetos diacrónicos, dando algumas pistas relativamente ao número de anos

que os diferentes cientistas levaram a realizar as experiências e a aperfeiçoar instrumentos

e técnicas antes de terem sucesso, enfatizando por várias vezes que os progressos

científicos se desenvolvem em períodos de tempo mais ou menos longos. Este tipo de

referências são importantes porque permitem esclarecer algumas das conceções que

frequentemente os alunos possuem, como por exemplo idealizarem os cientistas como

indivíduos de certa forma excêntricos e dotados de uma inteligência superior.

Da observação da Tabela 2 podemos também facilmente verificar que a evolução do

conhecimento científico é apresentada habitualmente como um processo linear e

acumulativo, com poucas referências a controvérsias, debates, períodos de mudança de

paradigma, como sugerem os seguintes excertos:

Em 1902, Giuseppe Mercalli propôs uma escala com apenas dez graus que, mais

tarde, foi alargada para doze graus por Adolfo Cancani. Em 1912, August Sieberg

caracterizou cada um dos graus da escala de uma forma mais detalhada. Em 1992, a

Comissão Europeia de Sismologia, baseada na escala de Mercalli e noutras, introduziu

uma nova escala, a EMS - escala macrossísmica europeia (manual B, p.129).

Esta escala [escala de Mercalli] foi inventada em 1902 pelo italiano Giuseppe

Mercalli. A que se usa atualmente foi reformulada em 1956 por Richter e é designada por

escala de Mercalli modificada (manual G, p.135).

Em 1931, o cientista japonês Wadati, concebeu uma escala para a magnitude. Esta

escala foi posteriormente aperfeiçoada por Richter e ficou conhecida por Escala de Richter

(manual H, p.133).

No entanto, um dos manuais apresenta algumas referências a revoluções científicas,

controvérsias e mudanças teóricas que ocorreram ao longo do tempo. Estas informações

estão presentes no manual D, como é ilustrado na figura 5.

Por último, a responsabilidade pelo progresso científico é quase sempre atribuída a

indivíduos e não a grupos, nem a comunidades de investigadores. Os resultados presentes

na Tabela 2 mostram que maioria dos manuais (f=6) apresenta exemplos de situações

onde é transmitida a ideia do trabalho individual dos cientistas. Além disso, a maior parte

das referências encontradas dizem respeito às escalas desenvolvidas por Richter e por

Mercalli para avaliação do efeito dos sismos.

A escala de Richter, elaborada por Charles Richter, em 1935, determina a magnitude

de um sismo (manual D, p.166).

História das Ciências para o Ensino – Colóquio II

148

Giuseppe Mercalli (1850 – 1914), vulcanólogo e sismólogo italiano responsável pela

elaboração da escala de intensidade sísmica de Mercalli, em 1902 (manual E, p.195).

Contudo, em alguns manuais foram também encontradas informações históricas

sobre os primeiros sismógrafos construídos. Também neste caso é atribuída a

responsabilidade do progresso científico a um único cientista, como se pode constatar nos

exemplos:

O primeiro sismógrafo conhecido foi inventado na China, em 132 (manual C, p.149).

No ano 132, o chinês Chang Heng inventou um sismógrafo. (…) (manual D, p.163).

Figura 6 – Réplica do sismógrafo de Chang Heng (manual C, p.149).

Estes dados podem ser explicados pelo facto da maioria das referências dizerem

respeito a períodos anteriores ao século XIX, onde o trabalho dos cientistas era

maioritariamente individual. Contudo, os cientistas estabeleciam correspondência com

outros cientistas e academias científicas, por isso estas informações possuem também

uma grande importância e devem ser tidas em consideração (Pereira & Amador, 2007).

Destacamos também alguns manuais que referem situações cujas descobertas

científicas foram levadas a cabo por grupos restritos de cientistas (f=4). Contudo, todos os

exemplos encontrados se referem ao mesmo episódio, ou seja, ao desenvolvimento da

escala de Richter, que resultou de um trabalho conjunto entre Charles Richter e Beno

Gutenberg.

O sismólogo californiano Charles Richter criou, em colaboração com o sismólogo

alemão Beno Gutenberg, uma escala que quantifica a magnitude dos sismos. Richter e

História das Ciências para o Ensino – Colóquio II

149

Gutenberg trabalharam juntos no Instituto de Tecnologia da Califórnia (MIT) (manual B,

p.129).

Charles Richter (1900 – 1985), sismólogo norte-americano que desenvolveu em

1935, conjuntamente com Beno Gutenberg, a escala de magnitude local, mais conhecida

por escala de Richter (manual E, p.198).

A magnitude é medida por uma escala inventada por Charles Richter e Beno

Gutenberg (apesar de este último nunca ser referido), designada escala de Richter

(manual G, p.135).

Como se pode constatar, o trabalho em pequenos grupos não é destacado nesta

temática, embora consideremos que este tipo de informação histórica é fundamental pois

mostra a importância do trabalho cooperativo, das trocas de ideias e da ajuda mútua que

este proporciona. O mesmo se verifica relativamente ao trabalho desenvolvido pelas

equipas de cientistas, ou comunidades científicas, uma vez que nenhum dos manuais

contempla este tipo de situações.

3.2. Os documentos históricos referenciados Dentro desta categoria foram definidas três subcategorias: representações

pictográficas; documentos/textos e imagens originais (fontes históricas primárias) e relatos

de observações/experiências históricas.

Na análise desta categoria foram comtemplados textos, ou excertos de textos e

imagens provenientes de fontes bibliográficas primárias. Também as imagens, fotografias

ou representações de instrumentos foram contabilizadas nesta categoria.

Os resultados da análise estão apresentados na Tabela 3.

Tabela 3 – Resultados da análise dos manuais na categoria documentos históricos referenciados (n=9).

Relativamente às representações pictográficas, a Tabela 3 mostra que a maioria dos

manuais (f=5) apresenta representações pessoais de alguns cientistas/investigadores que

tiveram um papel de relevo nesta temática. Contudo, verifica-se que na maioria dos casos

as representações correspondem quase sempre aos mesmos investigadores, sendo os

mais comuns Charles Richter e Giuseppe Mercalli (figura 7), embora por vezes surjam

também representações de Beno Gutenberg.

Subcategorias Indicadores Manuais

A B C D E F G H I

Representações pictográficas

- Pessoais - 2 2 2 2 - - 5 -

- Instrumentos/equipamentos - 3 2 8 5 2 1 3 1

Documentos/textos e imagens originais (fontes históricas primárias)

- - - 1 2 - - 1 -

Relatos de observações/experiências históricas - - - - - - - - -

História das Ciências para o Ensino – Colóquio II

150

Figura 7 – Representações de Charles Richter e Giuseppe Mercalli (manuais C e E). (manual C, p.153 e 151; manual E, p.198 e 195)

Em relação às representações dos instrumentos ou equipamentos, elas estão presentes em quase todos os manuais (f=8). Todas estas representações correspondem geralmente a imagens de sismógrafos e sismogramas (figura 8).

Figura 8 – A) Sismograma e B) sismógrafo (manual F, p. 155 e 168).

A B

História das Ciências para o Ensino – Colóquio II

151

Apesar das imagens encontradas nos diferentes manuais serem diferentes por

vezes, todas elas pretendem representar sempre os mesmos equipamentos, neste caso,

os sismógrafos e os registos das suas leituras, os sismogramas.

Por outro lado, são raras as informações retiradas de documentos/textos e imagens

originais (fontes históricas primárias), havendo poucos manuais a apresentar este tipo de

informação. Além disso, em todos os manuais, estas informações referem-se apenas a

imagens de sismógrafos antigos. A maior parte destas informações encontra-se em locais

de leitura facultativa, assim como os relatos de observações/experiências históricas.

Apenas um manual apresenta uma representação da Gaiola Pombalina (9B), a estrutura

dos edifícios construídos em Lisboa depois do terramoto de 1755, e uma imagem de um

sismógrafo antigo (figura 9A). Estas informações estão também presentes em locais de

leitura facultativa, e geralmente não é referida a fonte bibliográfica de onde foram retiradas

as imagens.

Figura 9 – A) Sismógrafo do século XIX; B) Gaiola Pombalina (manual D, p.195 e

201).

Em relação aos relatos de observações/experiências históricas não foi encontrado

em nenhum manual analisado registos destas informações, ao nível dos capítulos relativos

à sismologia.

3.3. Correção e adequação da informação histórica

Relativamente a esta categoria podemos afirmar, que em termos gerais, não foram

encontradas incorreções na informação histórica disponibilizada nos manuais analisados,

destacando-se apenas que quase nunca são referidas as fontes bibliográficas das

informações apresentadas nos manuais.

Depois da análise de todos os manuais verifica-se que não há referências a

fracassos no processo de investigação. Apenas são relatadas as descobertas e os

avanços científicos, como se toda a evolução da ciência dependesse apenas deles

(Carneiro & Gastal, 2005).

3.4. Contextualização dos conteúdos históricos

Na análise desta categoria foi contemplada toda a informação histórica que surge

diretamente relacionada com aspetos científicos, tecnológicos, sociais, políticos ou

religiosos nos manuais. Tendo em conta que a nossa análise apenas incidiu sobre a

temática referente à sismologia em cada um dos manuais, decidimos quantificar os tipos

de contextualização das referências à histórica da ciência. Os resultados estão

apresentados na Tabela 4.

A

B

História das Ciências para o Ensino – Colóquio II

152

Tabela 4 – Resultados da análise dos manuais na categoria contextualização dos conteúdos históricos (n=9).

No que diz respeito à categoria contextualização dos conteúdos históricos (Tabela 4)

verificámos que todos os manuais apresentam referências à História da Ciência, e todas

elas são cientificamente contextualizadas. Em alguns casos, é também feita uma

contextualização tecnológica, estando normalmente relacionada com a contextualização

científica. Desta forma é possível compreender a influência dos avanços tecnológicos na

evolução do conhecimento e dos processos científicos. Note-se o exemplo:

A par com a construção dos primeiros sismógrafos modernos, no início do século XX,

foram-se organizando os primeiros observatórios sísmicos. Hoje, cobrem todos os locais

habitados do planeta (…) (manual C, p. 149).

Foi ainda considerado que um dos manuais (manual D) contemplava informação

histórica cuja contextualização seria religiosa. Neste caso, a informação diz respeito à

crença que os povos da antiguidade tinham relativamente à origem dos sismos, fazendo-se

referência à mitologia hindu, podendo ler-se:

Para a mitologia Hindu, a Terra era suportada por oito fortíssimos elefantes e quando

algum deles se cansava, agachava-se, sacudia-se e abanava a cabeça, produzindo assim

os sismos (manual D, p.160).

3.5. Estatuto dos conteúdos históricos

Esta categoria contempla duas subcategorias tendo em conta o estatuto dos

conteúdos históricos: essencial/básico; e complementar. Considera-se que os conteúdos

históricos têm um estatuto essencial se surgem em locais de leitura prioritária, e têm um

estatuto complementar se surgem em locais de leitura facultativa e de apoio, como por

exemplo notas de margem ou páginas iniciais dos capítulos do manual.

Os resultados obtidos estão apresentados na Tabela 5.

Tabela 5 – Resultados da análise dos manuais na categoria estatuto dos conteúdos

históricos (n=9).

Subcategoria Indicadores Manuais

A B C D E F G H I

Tipos de contextualização

- Científica - 3 4 4 3 - 3 3 1

- Tecnológica - 1 - - 1 - - - -

- Social - - - - - - - - -

- Política - - - - - - - - -

- Religiosa - - - 1 - - - - -

Subcategorias Manuais

A B C D E F G H I

Essencial/básico - 3 3 2 1 - 2 2 -

Complementar - 1 3 2 3 - - 6 1

História das Ciências para o Ensino – Colóquio II

153

Através da análise dos manuais verificou-se que em quase todos eles os conteúdos

históricos surgem tanto em locais de leitura essencial como em locais de leitura

complementar. Um exemplo de informações históricas que surgem em locais de leitura

essencial é a figura 10 que ilustra um excerto de um texto que constitui uma parte do corpo

do texto do manual C (p. 151).

Figura 10 – Excerto de um texto do manual C (p.151).

No caso das informações que surgem em locais de leitura complementar destaca-se

o exemplo do manual H (pp.124 - 125), onde é possível observar nas páginas do início do

capítulo alguma informação relativa à história da sismologia, destacando alguns cientistas

importantes nesta área científica (figuras 11 e 12).

Figura 11 – Páginas do início do capítulo “Atividade sísmica como consequências da

dinâmica interna da Terra” (manual H, p. 124).

História das Ciências para o Ensino – Colóquio II

154

Figura 12 – Páginas do início do capítulo “Atividade sísmica como consequências da

dinâmica interna da Terra” (manual H, p. 125).

3.6. Propostas de atividades envolvendo a História da Ciência

Dentro desta categoria foram definidas duas subcategorias: obrigatoriedade ou não

na realização das atividades e tipologia das atividades. No caso da obrigatoriedade das

atividades considerou-se que estas seriam prioritárias se se encontrassem ao longo do

texto principal, em locais de leitura essencial, sendo todas as outras atividades

consideradas facultativas.

Relativamente à tipologia das atividades, estas podem ser de leitura guiada se dizem

respeito à leitura e interpretação de textos, são atividades de pesquisa bibliográfica todas

as atividade onde é solicitada qualquer tipo de pesquisa em fontes de informação externas

ao manual, as atividades que incluem a realização de experiências históricas incluem

todas as propostas de atividades em que se sugere a realização de qualquer tipo de

replicação, e finalmente as atividades de análise de dados históricos correspondem a

todas as outras atividades que não puderam ser incluídas nas categorias anteriores. Os

resultados estão apresentados na Tabela 6.

Tabela 6 – Resultados da análise dos manuais na categoria propostas de atividades envolvendo a História da Ciência (n=9).

Subcategorias Indicadores Manuais

A B C D E F G H I

Obrigatoriedade ou não na realização das atividades

- Prioritárias - 2 - 1 1 - 1 1 -

- Livres/ facultativas 1 - - - 1 - 1 - -

Tipologia das atividades

- Leitura guiada 1 2 - 1 2 - 2 1 -

- Pesquisa bibliográfica - - - - - - - - -

- Realização de experiências históricas

- - - - - - - - -

- Análise de dados históricos - - - - - - - - -

História das Ciências para o Ensino – Colóquio II

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Pela análise da Tabela 6 verifica-se que nem todos os manuais analisados

apresentam atividades que envolvam a História da Ciência. Em relação à obrigatoriedade

da realização destas atividades, nos manuais onde elas estão presentes possuem

frequentemente um caráter prioritário, sendo apresentadas ao longo do corpo do texto do

manual. Há também três manuais (A, E e G) que possuem atividades consideradas

facultativas. Este aspeto revela-se positivo uma vez que as atividades consideradas

prioritárias são as que mais frequentemente são realizadas pelos alunos, quer nas aulas

de ciências, quer como trabalho de casa. As atividades facultativas, porque surgem

geralmente no fim de cada capítulo do manual são muitas vezes esquecidas devido à falta

de tempo para a realização de todas as atividades, sendo geralmente realizadas pelos

alunos fora das aulas durante o estudo para os momentos de avaliação.

Quanto à tipologia das atividades (Tabela 6) verificou-se que os manuais analisados

apenas possuem atividades de leitura guiada, não se tendo encontrado nenhuma atividade

de outro tipo. A figura 12 é um exemplo de uma atividade prioritária e de leitura guiada.

Figura 12 – Exemplo de atividade de História da Ciência prioritária e de leitura guiada

(manual B, pp.130 – 131).

4. Conclusão

No final deste trabalho e através dos resultados obtidos, as autoras consideram ser

possível formular algumas considerações sobre os manuais alvo da análise. Em termos

globais, os dados revelam a presença de elementos de História da Ciência nos manuais

História das Ciências para o Ensino – Colóquio II

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escolares de ciências naturais do 7º ano do ensino básico português. Contudo, uma

análise mais detalhada coloca em evidência o facto de na maior parte das situações os

conteúdos históricos serem apresentados na forma de informação com caráter

essencialmente descritivo, atribuindo-se excessivo valor a simples dados biográficos, sem

destacar a importância, que nas diferentes épocas, assumiram as

observações/experiências realizadas e/ou os modelos e teorias propostos. Todas as

informações e os episódios históricos relatados são pouco valorizados nos manuais,

sendo-lhes dada pouca ênfase no sentido de estimular a promoção da aprendizagem da

natureza da ciência, e no auxílio na aprendizagem dos conteúdos científicos, como a

sismologia.

Desta forma, as autoras alertam para a necessidade de reforçar a abordagem da

História da Ciência nos manuais escolares, não só pela sua importância como estratégia

de ensino que permite aos alunos compreenderem a natureza da ciência, mas também por

suscitar nos alunos o interesse e a curiosidade pela ciência, no sentido em que ao

apresentar alguns episódios históricos, permite que eles desenvolvam o seu interesse pela

ciência, auxiliando o seu processo de construção do conhecimento científico. Esta

abordagem histórica permite que os estudantes desenvolvam a capacidade de reconhecer

e interpretar episódios de evolução teórica no decurso da história, através da análise de

diversas situações. Além disso, sensibiliza-os para a importância da contextualização da

informação histórica, contemplando os inúmeros aspetos socioeconómicos, políticos,

religiosos que influenciam a prática científica, de forma a compreenderem como evoluiu o

conhecimento científico e o porquê dessa evolução.

Por outro lado, o contributo da História da Ciência para a compreensão do

desenvolvimento da sismologia enquanto ciência é fundamental pois permite que os alunos

entendam como evoluiu, conheçam os cientistas que intervieram neste processo e o seu

contributo, quer a nível teórico como técnico, destacando-se os instrumentos que foram

sendo desenvolvidos e a sua importância no aperfeiçoamento das técnicas de deteção

sísmica. A História da Ciência assume um papel especialmente preponderante ao nível da

sismologia por se tratar de uma ciência estreitamente relacionada com o bem-estar e

segurança das populações. Enfatiza-se por isso a necessidade do conhecimento da sua

história pelos alunos, enquanto futuros cidadãos intervenientes, para se tornarem mais

informados e compreenderem melhor como ocorrem os sismos e que medidas de

prevenção devem ser adotadas.

5. Agradecimentos

A elaboração deste trabalho foi suportada pelo projeto PEst-OE/CTE/UI0039/2014,

financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT).

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