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Historia de Portugal, vol. 6

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  • EMPREZA LITTERARIA DE LISBOA

    HinomA OE rOBTEALSEXTO VOLUME

    POR

    MANUEL PINHEIRO CHAGAS

    illiistracOes

    DE

    MANUEL DE MACEDO

    ^E. L,. de L,.-^

    OFFICINA TTPOGRtPHIU

    Empreza Litteraria de Liaboa

    I a ;>, UVii ilt S. FramiKO. t j S

  • JLsX~VJEtO X

    l^eiiado cie 1>. 3rai*ia I

    -o-

  • Historia de Portugal

    diciarios que mancham a sua memoria. Mas, se

    elle no quebrasse como um vime diante de si

    todas as resistncias, se elle no expulsasse os

    jesutas, se eiie no decapitasse a nobreza, nem

    uma s das suas reibrniis teria vingado, porque

    enconlrariti a cada insliuite a resistncia dos cor-

    pos privili'giados, [i;)i'qui' os jcsuilas continuariam

    senliorcs omnipotcuits da instruco. Mas, dir-sc-

    ba, era indispensvel que elle derraraa?se em tor-

    rentes o sangue, e enchesse os crceres com as vi-

    ctimas do seu despotismo? No de certo, mas quem

    pode marcar limites energia de um homem? To-dos tem, dizem os francezes, les dfauts de ses

    qualitcs, e a energia, que um predicado, temum defeito correspondente que a crueldade.

    Na visinhana isso o que mais avulta, por-

    que isso o que mais se sente. Os grandes ho-

    mens so como as montanbas; vistas ao p, no

    patenteiam seno as asperezas e rugosidade?,

    parecem negras e sinistras, de longe que se

    lhes aprecia o vulto severo e magestoso, ao longe

    que ellas se azulam como o firmamento, onde

    immergem os pncaros altivos.

    Por isso, quando el-rei D. Jos se achava pr-

    ximo a expirar, todos saudavam a sua morte como

    um livramento, viam todos n'ella o fim de Unlongo despotismo. Havia tempo j que D. Jos i

    estava gravemente doente. No fim de 1776 a

    doena tornou-se to perigosa que foi indispens-

    vel chamar regncia do reino a rainha D. Ma-

    rianna Victoria. Era inimiga pessoal do grande

    ministro, mas isso em nada influio no seu animo.

    Ou porque julgasse do seu dever conforraar-se

    em tudo com as intenes d'el-rei seu marido,

    (]ue ella conhecia, ou porque receiasse mesmo

    que, voltando el-rei ao seu estado normal, desse

    de novo todo o poder ao seu inteiligenie favorito,

    e este aproveitasse a auctoridade de que tornaria

    a gosar, para se vingar de quaesquer desconside-

    raes que tivesse recebido, certo que a rainha

    durante o curto periodo da sua regncia no fez

    mais do que assignar de cruz os decretos que o

    grande ministro lhe apresentava. Os despachos

    do ministro francez, marquez de Blosset, para o

    seu governo confirmam plenamente este facto

    (jue era conhecido por outras fontes.

    k doena de D. Jos, porem, aggravou-se de dia

    paradia,eorei,cahindoemme]anchoiiaprofunda,

    comeou a sentir que o seu fim estava prximo.

    A morte do patriarcha de Lisboa entristeceu-o

    profundamente. Parece que murmurou: Sou eu

    que me hei de seguir. Apesar das perturbaesda sua conscincia, nem uma s vez se mostroumenos alcioado ao marquez de Pombal, nem

    procnr('n atlribuir. an sou grande ministro a res-

    ponsabilidade exclusiva das atrocidades que no

    seu reinado se haviam praticado. A proximidade

    da morte inspirou- Ibe sem duvida alguns actos

    de clemncia, e foi um d'elles a ordem que deupara que fosse solto o bispo de Coimbra, D. Mi-

    guel da Annunciao que jazia encarcerado ha-

    via largos annos. Este facto, desconhecido at ha

    pouco tempo, foi-nos revelado pelo sr. Latino

    Coelho n'uma nota final, no 1." volume unico

    publicado) da sua Historia politica e militar de

    Portugal desde os fins do sculo xviii at 1814.

    Diz o eminente escriptor:

    Appendice. Nota pagina 88. ^Depois de

    estampadas as reflexes criticas sobre a authen-

    ticidade das Rccommendares d'el-rei D. Jos de-

    parou-se-nos no archivo do ministrio do reino,

    em um mao com o titulo de Decretos, relativoao anno de 1777, confundido com innumeraveis

    diplomas de mercs, conferidas pela rainha nos

    primeiros tempos do seu governo, a ordem em

    que el-rei D. Jos manda soltar o bispo de Coim-

    bra e os seus cmplices. toda escripta pelo pr-

    prio punho dosoierano, com letra que denuncia,

    pela incerteza dos seus traos, a mo tremula do

    enfermo. datada de 21 de fevereiro e diz tex-

    tualmente o seguinte:

    Perdoo ao bispo de Coimbra, e mando que

    se solte logo com todos os cmplices que esto

    presos pelas culpas por que se prendeu o bispo.

    Rubrica de el-rei. 21 de fevereiro de 1777.

    No mesmo mao est a portaria assignada pelomarquez de Pombal, mandando dar execuo

    ordem do soberano. Fica pois demonstrado que

    o prprio D. Jos ordenou que se soltasse o bispo

    de Coimbra e os seus cmplices, e mais se con-

    firma a plausibilidade de que as recommcnda-

    res exprimissem realmente a ultima vontade do

    monarcha.

    Que recommendaes eram estas a que se re-

    fere o sr. Latino Coelho? Elle mesmo noi-o vae

    dizer:

    "Pouco depois que se publicara na cidade ser

    fallecido el-rei D. Jos, fez o governo dar es-

  • Historia de Portugal

    tampa um escripto, em que ollicialmente se dizia

    cslarera formulados os coaselhos ( direces i|uc

    o moiiarcba moribundo legara sua herdeira,

    para que melhor podesse iniciar o seu reinado.

    Era, por assim dizer, o testamento politico do ho-

    mem, que, prestes a deixar o mundo, intentara

    premunir-se com tardia clemncia contra a severa

    condeninao da posteridade. Continha seis ar-

    tigos o papel attribuido a D. Jos. No primeiro

    confiava el-rei da virtude e religio da princeza

    que ella haveria de reger em paz os seus vassal-

    los, no seu bem espiritual e temporal, observando

    zelosamente as leis divinas e humanas, mantendo

    as regalias da coroa, e enlaando a Egreja e o Es-

    tado pelos vnculos da sua proteco verdadeira

    f que professava. A'o segundo artigo recomraen-

    dava el-rei filial piedade e ao affecto fraternal

    da princeza do Brazil a rainha viuva e as infan-

    tas, fiando da sua virtude que lhes faria] tanto

    bera quanto fora sempre o amor do soberano

    sua familia. No terceiro pedia el-rei a D. Maria

    que entendesse em concluir a egreja da Memo-ria, que estava j meia edificada e que elle fizera

    voto de erigir pela merc com que Deus lhe

    salvara a vida na conjurao dos fidalgos re-

    bellados. No quarto artigo queria D. Jos que a

    filha solvesse varias sommas que elle no poder

    at ento satisfazer porque o receio de uma guerraprxima e violenta, a qual exigia graves quan-

    tias de dinheiro, lhe no deixara occasio ao pa-

    gamento. A quinta verba d'este singular e piedoso

    testamento recommendava rainha es servidores

    do soberano agonisante, e principalmente os que

    ella sabia lhe haviam tido sempre devoo e fide-

    lidade. O sexto artigo finalmente aconselhava a

    D. Maria que concedesse perdo quelles rus de

    Estado, a quem houvesse por merecedores da sua

    clemncia. El-rei terminava o seu escripto, afir-

    mando que por todos os crimes e offensas que

    d'estes culpados recebeu, elle prprio lhes havia

    perdoado para que Deus lh'o tomasse em contana remisso dos seus peccados.

    Estas recommendaes constituam um dosproblemas da historia politica d'esse tempo.

    Eram realmente authenticas ou tinham sido for-

    jadas para tirar ao movimento de reaco o ca-

    racter de condemnao posthuma do prprio

    soberano? Estava at hoje incerto o nosso juizo.

    AUegara-se de um lado que todos os represen-

    tantes das potencias estrangeiras no tinham

    posto a iniiiiiua duvida era considerar como ge-

    nuno esse testamento politico, dizia-se poroulro

    que o representante da Inglaterra, um dos raaisfinos membros do corpo diplomtico, Roberto

    Walpole, se ria maliciosamente da ingenuidade

    dos crdulos. Notava-se que os escriptores je-

    sutas eram os prprios a acreditar na aulhen-

    ticidade do documento, quando elles tinham

    inleresse em mostrar que at hora da mortefora D. Jos cruel e violento. Dizia-se por outro

    lado que mais interesse tinham em fazer suppur

    que elle se arrependera, e reconhecera humi-

    lhado e contricto os seus erros e os seus crimes.

    De um lado e do outro se equilibravam as razes.Havia s um ponto em que realmente no en-

    contravam fcil resposta os defensores da genuini-

    dade das Recommendaes. Aquelle paragrapho,

    era que el-rei recommendava munificncia de

    sua filha os seus leaes servidores, encerrava in-

    contestavelmente uma transparente alluso aomarquez de Pombal, e os inimigos do ministro

    de certo no inventariam uma verba que nofaria seno prender-lhes as mos. Ainda a isso se

    respondia, que attribuir a D. Jos, sempre inalte-

    ravelmente affecto ao marquez de Pombal, um tes-tamento sem essa verba, seria de uma inverosi-

    milhana palpvel. O que vem, emquanto a ns,

    dissipar todas as duvidas incontestavelmente o

    papel descoberto pelo sr. Latino Coelho. Por elle

    se v que to poderosamente actuara no espirito do

    moribundo a necessidade de clemncia, que nem

    o marquez de Pombal se atrevia a resistir-lhe,

    pois que elle prprio assignara a portaria que

    mandava pr em execuo a ordem d'el-rei.

    No teve tempo de se cumprir. Foi a morte

    mais rpida do que a clemncia do soberano.

    A 22 de fevereiro quizera D. Jos que se cele-

    brasse o casamento do seu auspicioso neto,

    prncipe D. Jos, o discpulo querido do mar-

    quez de Pombal, com sua tia Maria Benedicta.

    A 24 de fevereiro fallecia el-rei, e a publicao

    das Recommendaes, cujo caracter era essen-

    cialmente privado, parecia no ter outro fim

    seno desviar do cadver do monarcha as mal-

    dies dos sobreviventes.

    Ao mesmo tempo abriam-se as portas das

    prises, e sabiam as innumeraveis victimas que

    ali accumulra o marquez de Pombal. O espe-

  • 8 Historia de Portugal

    cliiculo era iristc o miserantlo, e no podia dei-

    xar de im|iressionar profundamenle os qun o

    preseiiciavaai; subiam defecados, veibos, trpe-

    gos, os que tinb-im entrado para esses crceres

    cheios de mocidade e de vida. Muitas vezes as

    famlias, que esperavam tornar a vi'r um pariMile

    estremecido, fo recebiam ura cadver. No i^ue-

    renios attenuar em nada as culpas do mar(|uez

    de Pombal, nem podemos deixar de nos associar

    francamente aos que se revoltam contra o seu

    procedimento spero e cruel, mas devemos con-

    fessar tambcm que a paixo politica exaggerava

    a tragedia verdadeira e dava ccbos sem fim s

    queixas dos desgraados.

    Quando annos depois, todos os cmplices da

    revoluo de MiuasGeraes foram punidos com a

    morte, a priso eterna, ou o degredo, ningum

    ousou compadecer-se dos infelizes, e agora era

    pelo contrario o governo que provocava as mani-

    festaes. Houve portanto os exaggeros babi-

    tuaes. Hoje por exemplo sabe-se, pela narrativa

    de um dos presos, e de um dos presos mais irri-

    tados 8 mais justamente irritados, o marquezde

    Alorna, que o forte da .lunqueira no era uni er-

    gstulo to cruel como o pintavam, e que o po

    e agua, d'esse crcere infecto de melodrama, se

    traduziam n'uni regimen de sopa, vacca, arroz e

    prato de meio, que no seriam cosinhados por um

    discpulo de Vatel, mas que offereciam aos pre.

    SOS ura passadio regular. Reflecte-se lambem que

    as prises arbitrarias no eram no sculo xviii

    privilegio do marquez de Pombal, que a Frana

    tinba as suas lettres de cachei, que tambm l

    fora como aqui, e em regimen mais tolerante, se

    esqueciam os presos nos crceres, de forma que

    homens presos por culpas insigniBcanles passa-

    vam largussimos annos nas cadeias, completa-

    mente olvidados.

    N'essa occasio no se pensava em coisa al-

    guma. Estavam todos empenhados em affeiar as

    culpas do marquez, e o clamor de piedade pelas

    suas victimas era universal c alti-sonante. Os

    poetas populares crivavam-ii'o de seitas cruis.

    Um dizia:

    Mandou soltar da masmorra

    Os iniseros prisioneiros.

    Que sem culpa padeciam

    A fora de um dio cego.

    Oiiant.is misrias ento

    V o mundo, sente o peito.

    Porque todos vo caindo

    Uns mirrados esqueletos.

    A mocidade j velhaOs ancios j decrpitos.

    Outro dizia que elle nem deixava que o povo

    chorasse o rei fallecido, porque tudo desappare-

    cia anie o supremo jubilo da queda do ministro.

    Pois no coiilente do que tinba junto,

    At tirou as laiirimas ao povo

    r.ouj que chorar devia ao rei defunto.

    Os principaes da corte eram os primeiros a

    excitar o povo a essas manifestaes, e faziam

    da sabida de cada novo preso uma ovao, que

    no tinha outro fim seno insultar o marquez

    de Pombal. D. Miguel da Annunciao, o bispo

    de Coimbra, foi quasi canonisado em vida, ape-

    sar das doutrinas da seita que elle protegera,

    serem das mais immoraes e perversas. O mar-

    tyrio bastaria para o purificar, mas o dio a Pom-

    bal que lhe valia os Iriumphos de que era

    objecto. O desembargador Encerrabodes, preso

    principalmente por ser amigo dos jesutas, sahia

    com oitenta annos do crcere, e todos louvavam

    o seu desembarao, a viveza do seu espirito em

    annos to adiantados e depois de tantos infort-

    nios. Aos que estavam presos como cmplices

    no attentado dos Tavoras e Aveiro no ousou a

    rainha liberlal-os desde logo, mas ordenou que

    sahissem da priso e fossem para longe da corte,

    at que a sua ionocencia fosse regularmente

    provada. Jos de Seabra da Silva foi mandado

    chamar do desterro onde estava, e isso antes

    ainda da morte d'el-rei e durante a breve regn-

    cia da rainha D. Marianna Victoria. Foi Martinho

    de Mello e Castro, porem, que expediu a ordem

    ao governador de Angola, provavelmente sem o

    marquez de Pombal o saber. A o-dem era conce-

    bida nos seguintes termos: A rainha nossa se-

    nhora me manda participar a v. s." para que, logo

    que receba esta, v sem perda de tempo buscar

    Jos de Seabra da Silva, seu ministro e secretario

    d'Estado, e o faa conduzir para o seu governo

    e residncia, onde o tratar com a decncia que

    merece um ministro do seu caracter e estima-

    o; e o far v. s." conduzir a este reino com

  • OUic. Tjp. lia Emprcza Lilleraria.

    Livramento dos presos d'Estado

  • Historia de Portugal 9

    todas as coinmodidades e despeza que fOr pre-

    cisa para o seu Iran.-porle. V. p.' assim o lenba

    entendido e a execute, por ludo ser do seu real

    agrado. Palcio de Nossa Senhora da Ajuda em

    15 de dezembro de 1776..Marlitibo de Mello eCastro.Sr. D. .Aolonio de Lencastre.

    Esta ordem foi reiterada, cora instancias no-

    vas, assim que el-rei morreu.

    Os meninos de Palbav, os bastardos reconbe-

    cidos d'el rt-i D. Juo v, que tinham querido af-

    fronlar o marquez de Pombal, e que por elle

    tinham sido desterrados para o Bussaco, regres-

    saram tambm assim que a nova rainha princi-

    piou a reinar. Concedeu-se licetija a D. Joo de

    Bragana, depois duque de Lafes, para que re-

    gressasse a Portugal, porque estava servindo no

    exercito austraco, o que era ura exilio disfar-

    ado, a que elle prprio se votara, para escapar

    s perseguies do iraplacavel ministro.

    A reaco contra a obra do marquez affirma-

    vase assim de um modo completo, e, se parassen'isso, s elogios se poderiam fazer clemente

    soberana. Infelizijiente a clemncia, nas mos

    dos inimigos de Pombal, era apenas uma armade dio e de vingana. A sensibilidade, que af-

    feclavam, era uma coiuedia de hypocrisia. Cho-ravam lagrimas de crocodilo sobre a desgraada

    sorte das victimas do marquez aquelles mesmos

    que assistiriam com alegria a um auto de f,como os que se celebravam no tempo de D, Joo v,

    se j fosse possvel, quando se publicava a En-

    cyclopedia, reaccender na Europa as fogueiras

    inquisitoriaes. .\ccusavam a crueMade do mar-

    quez e tinham razo, mas no se lembravam quefora elle quem arrancara os dentes e as garrasao monstro odioso do Santo-Officio, citavam os

    prezos que morriam encerrados nos crceres,

    sem culpa verdadeira, mas no diziam que omarquez de Pombal acabara com a escravatura

    no continente do reino, raostravam-se horrorisa-

    dos com as atrocidades dos supplicios de Belm,mas no estranhavam que historiadores corte-

    zos dessem a Luiz xv o epitheto de Bem-Amado,

    apesar d'elle ter consentido que um pobre louco,Damiens, que tentara feril-o com um canivete,fosse esquartejado, depois de ter sido posto a

    tormentos, e de lhe deitarem, nas feridas abertas

    das torturas, jorros de chumbo derretido, E este-

    jam certos que esses mesmos que diziam que

    VI YOL.2.

    Sebastio Jo.^ de Carvalho e ilrllo tinha cabellos

    no corao, se algum tentasse contra a vida de

    D. Maria i, aconselbariara su[iplicios idnticos,

    porque era assim que se punia em pleno sculoXVIII o crime, considerado como altamente sacr-

    lego, de Ifsa-raagestiide.

    .Mas eniquanlo se fazia tudo isto, eiuquanio se

    davam or.iens contrarias a tudo o que o aiarqui z

    de Pombal deiermiiias.e, no se demillia o mar-

    quez, apesar das suas instancias. J no tempo

    da r^g^ncia do D. .Marianna Victoria o marquez

    insistira pela sua demisso, e o estado del-roi

    no cons''ntita que se tratasse d'este assumpto,

    agora o marquez instava de novo, allegando a

    sua provecta idade, e os seus longos e mprobos

    trabalhos. No lhe respondiam, e no lhe res-

    pondiam, porque ainda a sua sorte no estava

    decidida, e reciiavam dar-lhe a deoiisso assim

    de prompto, temendo que a demisso tivesse de

    ser concebida em termos taes qije prejudicasse

    qualquer procedimento ulterior.

    No espirito da rainha, naturalmente clemente,

    predominava talvez o desejo de satisfazer as

    recommendaOes d'el-rei seu pae, affastando o

    marquez do governo sem desconsiderao nemaggravo, mas por outro lado tambm no podia

    deixar de actuar no seu animo o rancor ao mar-

    quez, j porque na sua extrema devoo o con-

    siderava um mpio, j porque suspeitava commiras de verosimilhana que o marquez de Pom-

    bal se esforara por introduzir na legislao do

    reino a lei salca, aGmde aaffastaraelladothronodando a coroa a seu tilho primognito, que o

    marquez considerava como seu predilecto disc-

    pulo.

    Esta questo, que ainda at hoje no est per-

    feitamente elucidada, tratada com bastante in-

    dividuao na Historia politica e militar de Por-

    tugal. Vamos pois substituir a nossa humilde

    prosa por essa prosa de oiro.

    "II duque de Chtelet, que viajou em Portugal

    em 1777, e cujo testemunho, pela habitual leveza

    do seu juzo, e pela inexaco das suas informa-

    es, se no pode admittir sem todas as precau-

    es da crtica severa, relata no seu livro que o

    marquez de Pombal, buscando emancipar o reino

    da tutella da Gr-Bretanha, e querendo appro-

    ximar-se da Frana e dos Bourbons, concebera

    o desgnio de cazar o prncipe da Beira com uma

  • 10 Historia de Portugal

    das firincozas d'aquella dynaslia, e qm- nVssf

    sentido havia dirigido as suas propostas corte

    de Versaiiles. Refere mais que, por desatar a

    principal objeco levantada pelo gabinete fran-

    cei! contra a alliana projectada, o marquez de

    Pombal determinara el-roi a induzir a princeza

    do iirazil a Grmar uma solemne rcnunciao do

    seu direito soberania em favor do prinripe da

    Beira. Allirma (Ibielet i]Ue se rlipgara a formu-

    lar o acto da renuncia, que, eslaiido a ponto de

    levar-se a bom tei-aio o plano do marqurz, de

  • Historia de Portugal 11

    pelas mximas do seu governo, bem pudera ser

    que, ao empunhar o sceptro, no desmentisse

    por seus actos os priocipios regalistas, em que

    fora industriado por seu venervel preceptor. D.

    fr. Manuel do Cenculo. Ainda quando Pombal,

    O|)presso pelos achaques e apertado pelos anoos,

    houvesse de largar os altos officios que exercia,

    scr-lbe-liia fncil conservar a influencia e reger

    pelos seus princpios e doutrinas o Estado, que

    havia regenerado, se nos conselhos do soberano

    juvenil e inexperiente se mantivessem alguns

    dos ministros que fizera entrar no gabinete como

    genunos representantes da sua poltica, e obe-

    dientes executores da sua vontade. Estes eram

    principalmente Jos de Seabra e o cardeal inqui-

    sidor: o primeiro em quem os talentos haviam

    madrugado, e a erudio fora crescendo com o

    trato dos negcios, seria no governo a intelli-

    gencia, a energia e a palavra; o segundo, pro-

    cedente das mais nobres estirpes de todo o reino,

    alliado com a mais eminente fidalguia, condeco-

    rado com a purpura cardinalcia, igualmente agra-

    dvel coroa, eminente na egreja, e insuspeito

    aristocracia, jubilado nas artes palacianas e nos

    enredos de ante-camara, haveria de ser no mi-

    nistrio a astcia e a artimanha. Emquanto Sea-

    bra velasse no gabinete para imprimir admi-

    nistrao o movimento segundo as normas de

    Pombal, estaria o cardeal de sentioella s reca-

    maras do novo rei, para assegurar a confiana

    do monarcha, desenlaar as intrigas dos contr-

    rios e ganhar pela adulao o que no poderia

    conquistar pelo talento. O desembargador, com

    a auctoridade do seu engenho e pela energia do

    seu espirito, seria o estadista; o cardeal, pela no-

    breza do seu sangue e pela alteza da sua digni-

    dade, o cortezo da monarchia. E que, elevando

    Seabra a seu ajudante e futuro successor, e dando

    entrada no governo ao arcebispo, levava Pombal

    os intentos que tramos, demonstram-n'o os tes-

    temunhos contemporneos e era parte os pr-

    prios depoimentos do marquez.

    Do exame que acabamos de fazer, dos do-

    cumentos j citados, confrontados com os princ-

    pios dominantes na longa vida ministerial do pre-

    vidente valido de D. Jos, parece que a historia

    pode inferir sem temeridade: 1 . Que o ministro,

    que soube iniciar a revoluo no alto do tbrono,

    leria affagado a ida de transplantar a lei salca

    a Portugal, excluindo da successo uma prin-

    ceza, cujo animo devoto e inteira submisso a

    um esposo fantico e inimigo de Pombal seria a

    negao de todas as doutrinas governativas do

    marquez: 2. Que no fcil estribar nos do-

    cumentos at hoje conhecidos uma plausvel

    conjectura acerca de ter chegado a formularse

    por escripto e com o pleno assentimento do mo-

    narcha o acto de renuncia em que a princeza

    do lirazil cedesse dos seus direitos heridilarios

    em favor do prncipe da Beira.

    Fossem ou no verdadeiras as tentativas do

    marquez, o que incontestvel que passavam

    por certas, e que a rainha D. Maria i no podia

    deixar de ter conhecimento de boatos que laoto

    a molestariam. O seu espirito estreito, incapaz

    de comprehender os elevados planos do marquez,

    collocava-a naturalmente entre os inimigos do

    grande reformador, a injuria pessoal de certo

    ainda mais a exacerbava contra o ministro de

    seu pae. O respeito pela memoria do soberano

    impedia-a de atacar directamente o ministro,

    mas, assim como por um lado os actos de cle-

    mncia eram a tacita condemnao da politica

    severa do marquez de Pombal, por outro lado a

    perseguio atroz movida aos parentes e parciaes

    do grande homem revelava o intento firme de o

    desgostar por todos os modos, e de o obrigar a

    retrar-se do palcio, onde teria que desempe-

    nhar um papel incompatvel com a dignidade do

    illustre ministro.

    A clera popular applaudia as medidas do novo

    governo. O povo no via enio seno o tim da

    tyrannia suspeitosa e severa que trazia a todos

    sobresaltados e inquietos. A musa satyrica do

    povo festejava a queda dos apaniguados do mar-

    quez, da mesma forma que applaudia a liberdade

    das tuas viclimas.

    Trs foram logo victimados, dois parentes do

    marquez, e um siu amigo muito parcial e muito

    dedicado. O primeiro foi fr. Manuel de Mendona,

    parente prximo do marquez de Pooibal, dom

    abbade de Alcobaa, esmoler-rar e reformador

    da ordem de S. bernardo em Portugal e seus do-

    mnios. O nncio, que podia emSm vingar as

    injurias da rrte de Roma, que o marquez de

    Pombal soubera affrontar com to inquebrant-

    vel energia, comeava por fulminar o parente do

    marquez de Pombal, mandando-o prender, cora

  • 12 Historia de Portugal

    beneplcito rgio, por uma ordem concedida

    nVstes asprrimos termos:

    Vistos os pssimos procedimentos com que o

    padre fr. Manuel de Mendona, se tem portado

    no governo da congregao de S. Bernardo, que

    administrara por indulto do nosso antecessor, o

    cardeal Conti, conformaudonos cora a teno

    da rainha nossa senhora, depomos o dito padre

    de todos os cargos e ministrios que occupava,

    e o degradmos de todos os privilgios, gradua-

    es e preeminncias que tinha, ficando em re-

    cluso debaixo de cbave, commettido ao padre

    fr. Francisco de S, que d'elle dar conta, ao

    qual commettemos todo o nosso poder temporal

    e espiritual para governar a religio interina-

    mente at segunda ordem.Em 25 de fevereirode 1777.

    Reparem bem na data que eloquente: no dia25 de fevereiro de 1777, logo no dia imraediato

    morte d'el-rei D. Jos. Qual era o motivo pois

    de to inslita severidade? Se fr. Manuel de

    Mendona era um sacerdote indigno, como que transigira com a sua devassido e os seusvicios o representante da Santa S. que at ahi

    no formulara uma queixa nica contra o domabbade de Alcobaa, que exercia o elevado cargo

    de esmoler-mr? Porque no protestara contra o

    facto indecoroso de estar confiado a homem topouco digno de o exercer um cargo to elevadoe to importante na hierarchia ecclesiastica?

    Se as culpas do dom abbade eram ignoradas donncio, como que de um dia para o outro ti-vera tempo de colher informaes to completas

    e to seguras que o habilitavam a pronunciar

    to rigorosa sentena';'

    Diziam que o dom abbade pouco se importavacom a clausura, que vivia com demasiado luxo,

    que roubara ao convento de (Jdivellas uma ex-plendila custodia, e s freiras de Almoster umpesado bordo de oiro, que protegia escanda-

    losamente os desregramentos das freiras da sua

    ordem, ordem a que pertencia o famigerado con-

    vento de (Jdivellas. Tudo isso podia ser verda-

    deiro, e no vamos agora quebrar Janas pela

    virtude do frade; mas singular que a tal cus-todia e o tal bordo to promplaraente se desco-

    brissem, e mais singular ainda que os escrupu-

    losos sbditos da rainha D. Maria i accusassem

    de pompa e de luxo o dom abbade de Alcobaa,

    como se estas vaidades fossem novidade no cp-

    lebre convento, e que ainda para mais lanassem

    conta de fr. Manuel de Mendona e da sua cul-

    pada condescendncia as fragilidades das freiras

    de Odivejlas, convento onde effeclivamente rei-

    navam, antes d'este mpio fr. .Manuel ter em-

    punhado o bculo regedor dos monges negros, a

    castidade e a modstia chrisl.

    Embora ! O seu crime era ser parente do mar-

    quez de Pombal. Foi punido por isso. A rainha

    D. Maria i concedeu com delicias o beneplcito

    ordem do nncio, o nncio assignou com es-

    tremecimentos de jubilo a ordem severssima, a

    musa [lopular applaudiu com frenesi a punha-

    lada que feriu Manuel de MiMidona, mas que era

    vibrada ao corao de Pombal.

    Foi iiiettido no segredo

    Do Desterro o grande abbade;

    Enti'e as cidpas que apparecem

    Faz borror cliristandade

    No escapar a custodia

    s unhas do tal abbade.

    O melhor, dizem, tirouPara ornar a divindade

    Em cujo aliar ofreciaA brutal sensualidade.

    A 25 de fevereiro expediu-se a ordem que

    mencionmos contra fr. Manuel de Mendona,

    a 1 de maro era encarcerado no convento de

    S. Domingos e sempre por ordem do nncio fr.

    Joo de Mansilha. Este, procurador em Lisboada companhia de vinhos do Alto-Douro, para cuja

    fundao muito contribura, provincial da ordem

    de S. Domingos, era accusado de ser mais mer-

    cador que frade, e de viver com grande luxo in-

    compatvel com a modstia religiosa. Factos tam-

    bm desconhecidos em Portugal at essa poca.

    Tudo isto foram culpas queoillustrenunciosoube

    de repente, com grande surpreza sua, logo que

    subiu ao poder D. Maria i. Tudo ignorava aquelle

    santo varo ! Tinha fr. Joo de Mansilha na conta

    de um verdadeiro asceta, nem de outra forma seexplica a tolerncia com que assistia, sem pro-

    testo, em Lisboa, a actos to escandalosos. Ape-

    nas, porem, caiu o poder das mos do marquez

    de Pombal caram tambm as escamas dos olhos

    do nncio. Tudo se aclarou, e fr. Joo de Man-

  • Historia de Portugal 13

    silha foi preso immodiatamente. Mais vale tarde

    que nunca.

    U povo applaudio a pi-io de fr. Joo de Man-

    silha, como applaudira a de fr. Manuel de Men-

    doni;a. Dava-lhe isso al nm pretexlo para uma

    allierao engenhosa. U ultimo verso de muitas

    das salyras populares vibradas por esse tempo,

    era quasi sempre o seguinte:

    Marquez, Mendonni c Mansilha.

    Finalmente, passados poucos dias, foram ata-

    car a irm querida do marquez de Pomlwil, soror

    Magdalena de Mendona, prioreza do convento

    de Santa Joanna. .\s accusaes eram pouco mais

    ou menos as mesmas que se dirigiam contra os

    outros: falta de cumprimento de votos, e protec-

    o dada aos peccaminosos galanteios das suas

    freiras. Accrescentava-se que era usurria, que

    tinha loja no convento e que fazia, como hoje

    diramos, bazar dentro da clausura. Todas estas

    iniquidades as tolerara com evanglica mansi-

    do o nncio apostlico, emquanto viveu el-rei

    D. Jos. Depois rompeu contra ellas com inau-

    dita severidade, dando um salutifero exemplo aoclero e fradaria, que a irm, o parente e o

    amigo do marquez tinham escandalisado com o

    seu desregrado procedimento. Expungidos das

    seraphicas corporaes a que pertenciam estes

    trs peccadores, reinou a virtude nos claustros

    portuguezes, como j reigra nos tempos auste-

    ros, em que o marquez de Pombal no conse-

    guira ainda introduzir o peccado e o crime no

    aprisco do Senhor, e em que o santo monarcha

    o sr. D. Joo V pastoreava docemente, a con-

    tento da cria, da nobreza, clero e povo, as ove-

    lhas de Odivellas.

    Como de costume a salyra popular acompa-nhava a sentena da nunciatura. Foram innume-

    ros os versos vibrados contra a infeliz prioreza.

    O nome, como se pode imaginar, era de grande

    auxilio para os poetas, que lodos pouco mais ou

    menos glosavam este mole:

    A triste Magdalena arrependida

    Tambm havia salyras em prosa, e n'umaespcie de drama satyrico, em que figurava

    como um dos personagens, o conde de Oeiras,punham na boca do ministro as seguintes pala-

    vras:

    E a tia Magdalena, fora do logar de prioreza,

    e feita outra para logo lhe tomar contas do que

    recebeu das casas de sortes que j se fecharam,

    querem contas das teras da^ freiras porque tudo

    mettia em si, e dava s dois vintns a cada uma

    e mais nem agua. Diziam que mandava vir carne

    de Oeiras por ser mais barata que em Lisboa, e

    a vendia s freiras pelo mesmo preo de c, no

    consentindo que a mandassem buscar aos aou-

    gues da cidade.

    Do credito, que podem merecer estas accusa-

    es, facilmente se pode julgar por outras que

    se dirigiam a personagens cujo mrito e cujas

    virtudes perfeitamente conhecemos, como acon-

    tece por exemplo com o douto e virtuoso Cen-

    culo. Esse e seu irmo, provincial da ordem ter-

    ceira da Penitencia, foram tambm das victimas

    escolhidas. A condemnao do bispo de Beja era

    lavrada n'uma parapbrase cmica do Padre Nosso

    e posta pelo auctor na boca de dois desembarga-

    dores da Casa da Supplicao. L se diz, alludin-

    do-se residncia de Cenculo, bispo de Beja, em

    Lisboa.

    De que serve na cidade

    De Lisboa a S de Beja?

    Xem o prncipe desejaPara seu mestre a um frade

    Ouvi, senhores, a nenhuin

    E fareis se veja umParaso. . . assim na terra.

    O que indigna mais n'este desencadeiamento de

    salyras a certeza que temos de que muitos dos

    poetas, que assim doestavam o marquez c os seus

    amigos, eram os mesmos que o tinham exaltado

    enlbusiasticamente nos dias de prosperidade.

    Por occaio da inaugurao da estatua equestre,

    publicaram-sc infinitas poesias, em que o mar-

    quez de Pombal era adulado por todas as formas

    e feitios. Pois muitos d'efses poetas foram os que

    mais implacveis se mostraram com o ministro.

    Um ingenuamente o confessava n'um soneto, que

    abre com o seguinte quartetto:

    Dei louvor ao marquez, mas com violncia,

    Temendo da Junqueira o duro trato;

    Fui forado a fallar, j me retrato

    Por descarco da minha conscincia.

    E termina com o seguinte tercetto:

  • 14 Historia de Portugal

    Digo j que o niarqiipz, alma damnada,

    Foi termo da iisonja e da mentira,

    Foi fumo que passou, j no nada.

    Ab uno disce omnes. Eis o que era e o que valia

    a ral de insultadores que escoucinhavam von-

    tade no leo moribundo, e entretanto o marquez

    de Pombal, sorrindo com desdm, assistia, sereno

    e impassvel, ao espbacelamento completo do seu

    poder e da sua influencia.

    Pois havia golpes que deviam ferir profun-

    damente um espirito menos elevado, e menosconhecedor das paixes que turvam a alma

    humana. Os seus mais obsequiosos aduladoreseram agora os que mais o asseteavam. A ingra-tido chegara a ponto que at n'essa poca de

    desenfreada reaco conlra o marquez de Pom-bal houve quem fustigasse a ingratido e a im-pudncia dos insultadores. O padre Manuel de

    Macedo Pereira foi um dVstes ullimos, e por issorecebeu condigno castigo n'um soneto em que selhe dizia:

    Hontem n'essa cadeira da verdadePor maior dos berocs o conheceste,

    E no mesmo logar logo o fizesteO monstro mais cruel da iniquidade.

    No havia nada que perturbasse o marquez.

    Conhecia os homens e sabia tanto o que valiamas suas adulaes como as suas injurias. Com aserenidade do seu porte, e com o prestigio dasua velha auctoridade dominava ainda os seusinimigos no paiz. Espantam-se os historiadores

    de que a rainha, ao passo que auctorisava todas

    estas perseguies indirectas, no ousasse de-

    mittil-o. que se no toca n'um homem comoo marquez de Pombal, to facilmente como se

    loca n'um Olivares ou num prncipe da Paz.Emquanio ferviam por toda a parte os insultos

    conlra elle, o marquez de Pombal, recostado se-

    renamente no fundo da sua carruagem, seguido

    pela sua escolta de drages que o acompanhava

    sempre como al ahi, dirigia-se ao [laoda.^juda,

    apeiava-se tranquillamente, dizia a algum dos

    raros cortezos da desgraa, que ainda ousavam

    cbegar-se a elle, uma pbrase aguda com querespondia s insolncias da plebe, e entregava

    rainha o memorial em que pedia a sua demis-so. Esse memorial era respeitoso na forma, di-

    gno e altivo no fundo. lludia sem se queixar

    ao que se passava em torno de si, lembrava osservios de Sully e as injurias com que llfos ti-nham pago, logo que a morte de Henrique ivdeixara o grande ministro desprotegido, e, acu-

    dindo immediatamente a prevenir a accusao de

    vaidade, accrescentava: No pretendo, senhora,

    comparar-me coqj o duque de Sully no mereci-

    mento. porem certo e publico em todo o paode vossa magestade e em toda a cidade de Lis-boa que me acho igual com elle na desgraa enos motivos com que recorro real clemncia

    de vossa magestade, supplicando-lhe que se sirva

    de verificar a escusa que tenho pedido de todos .

    os logares que occupei at agora, e de me per-mittir a licena de ir passar em Pombal o ultimoespao de tempo que me restar de vida; tendopor cerlo que na superioridade incomparvel,

    com que as reaes virtudes de vossa magestade

    se exaltam sobre as da rainha Maria de Medicis,

    no poderei deixar de encontrar pelo meuos

    aquelles mesmos afTectos de benignidade, que

    n'aquella princeza acharam os rogos do duque

    de Sully.

    A demisso foi logo acceila, mas no do modo

    que desejavam os inimigos de Pombal. A rainha,

    cedendo em parte s recommendaes de seupae, em parle ao respeito que involuntariamentesentia pelo vulto do grande ministro, em parles recommendaes e conselhos do seu confessor

    D. Ignacio de S. Caetano, bispo de Penafiel,

    mandou lavrar o decreto de demisso nos se-

    guintes termos:

    Tendo em considerao a grande e distincta

    estima que el-rei meu pae, que santa gloria haja,

    fez sempre da pessoa do marquez de Pombal, e

    representando-me o mesmo marquez que a suaavanada idade e molstias que pa

  • Historia de Portugal 16

    coramenda de S. Thiago de Lanhoso no arcebis-

    pado de Biaga, que vagou por falleciraento de

    Francisco de Mello e Castro.Nossa Senhorada Ajuda, 4 de mar(;o de 1777.

    (Juando este decreto foi conhecido, houve umaexploso de clera geral. No era isso o que

    esperavam os inimigos do ministro; no era isso

    o que queria sohretudo Martiobo de .Mello e

    Castro, o illusire ministro que no souberu ser

    superior, apesar de tudo, ao baixo sentimento

    da inveja, e que, homem bastante notvel para

    que o no deslumbrasse a superioridade de

    Pombal, no era comtudo de tal esphera que

    no fosse accessivel aos sentimentos vis. Esse

    luctou quanto pde para que o decreto da de-

    misso do marquez no fosse lavrado em se-melhantes termos, .\llegava que esse decreto

    proporcionava ao ministro de D. Jos uma reti-rada triumphal, pois que nem sequer o desterro

    era da iniciativa da rainha; n'isso mesmo no

    fazia seno conformar-se com o pedido do mar-

    quez. S conseguio porem que juntamente com

    esse decreto fosse entregue ao ministro demittido

    um papel em que, entre outras coisas, se di-zia o seguinte: Que sua magestade, no se

    achando, nem podendo ainda ser exactamente

    informada do que contm as memorias que

    V. Ex." levou sua real presena, relativas aos

    empregos e lugares que el-rei, seu augusto pae

    e senhor, lhe conQou, nem do preciso e indivi-

    dual estado, em que ficam todas e cada uma dasreparties de que V. Ex." teve a administrao,

    entendeu que ainda n'esla incerteza era da sua

    innala e real benignidade honrar a V. Ex.' na

    forma em que presentemente o honra. Assimprocurava o ministro salva-guardar o futuro, e

    preparar a transio para procedimento mais

    violento.

    A satyra popular porem desencadeiou-se mais larga, e manifestou a sua indignao pela be-

    nignidade com que o marquez era tratado. Umdizia:

    Pois mil coisas diz o povo

    Que no tem legalidade

    Diz que o carrasco ter

    Trs becas, que juro e herdade

    Possuir os bens d'aquelles

    A quem impe auctoridade.

    Qui' sac livre Catilina

    (Jiiriiiaiido o reino e a cidade;

    Se assim , est bem provado,

    Mo ha rei de mais bondade.

    uiro exclamava:

    O ar te falte, a terra te apedrejeO mar te afogue, e o fogo te sepulte.

    liradava outro, dirigindose rainha:

    Ao povo que vos ama sempre assustaA vida do marquez, inda distante.Porque j conspirou contra essa augusta.

    Outro ainda gritava em brados descompostos:

    Todo o perjuro, falso, simulado,

    Convicto, pertinaz e impenitente

    Segundo as leis ser vivo queimado.

    Tu d'isto no escapas certamenteVae, vae para o Pombal, desgraado,

    Que o povo c te espera brevemente.

    Um outro dizia com um gracejo lgubre:

    No te ausentes ainda, por quem s, rPoren], se fora intentas ausentar-te,

    A cabea nos deixa de penhor.

    Outro emfim traduzia em maus versos o ben-volo desejo do povo.

    Pois quer que este drago Io vingativo

    Para servir de exemplo impia gente

    Ao menos seja emfim queimado vivo.

    Mas no era s em satyras que desaffogavao dio inconsciente do populacho que apedreja

    por gosto os grandes homens, como apedreja osmonumentos, d'esse populacho que no tempo da

    Revoluo apupava indifferentementeas victimas

    que subiam ao cadafalso, quer a victima se cha-

    masse Luiz XVI, Danton ou Robespierre. Iam

    mais adiante os insultadores. J que no po-diam ter o gosto de ver satisfeito o desejo ma-nifestado em seu nome pelo auctor da ultimapoesia que citmos, j que no podiam ver omarquez de Pombal queimado vivo, queima-vam-n'o em elTigie, e o rapazio fazia manequins semelhana do Judas da Alleluia, represen-

    tando porem, em vez do discipulo traidor, o ce-lebre ministro, e queimavam-n'o depois de lhe

  • 16 Historia de Portugal

    siM-em liilas umas senteoas burlescas. A |i lieia

    deixava.

    No refleciia porem que estas liberdades so

    perigosas, e que o povo, desde que o deixam to-

    mar gosto por estas coisas, vae sempre muito

    mais adiante do que desejam os que o inritam.

    bom que todos se lemlirem que os priuieiros

    incitadores dos tuujultos da Revoluo foram at

    os prncipes de sangue, e Fiiippe Igualdade, o

    duque de Oricans, foi um dos fautores impru-

    dentes do terror de que tiiilia de ser victima. .As-

    sim ia acontecendo, em grau menor, na anar-

    chia que reinava era Lisboa e que o governo

    favorecia. Assim como das pedras que o popula-

    cho atirava no Terreiro do Pao, com applauso

    dos agentes do governo, ao medalbo do mar-

    quez de Pombal insculpido no pedestal da estatua

    equestre, alguma iria bater no vulto do soberano,

    assim tambm de tantos versos e de tantas saty-

    ras que se vibravam contia o marquez de Pom-

    bal alguma corria perigo de ir bater mais alto.

    J se podia ver por exemplo que esses doestos

    e injurias, que a reaco clerical excitara e fa-

    vorecera, comeavam a resvalar do marquez de

    Pombal para os mesmos que lhes tinham dado

    largas e incitamento. N'uma poesia, por exem-

    plo, dirigida contra o cardeal da Cuuha, regedor

    das justias e creatura do marquez de Pombal,

    dizia-sc-lhe:

    Este alarve regedor

    Vil como a carne de cabra.

    .Vt abi tudo ia bem, e os frades inimigos

    de Pombal e dos seus apaniguados sorriam,

    mas o sorriso comeava a ser amarello, quando

    percorriam os versos immediatos em que se

    dizia:

    Sirva o clrigo a egreja

    Governe o bispo o bispado,

    Todo o frade clausurado

    Com os seus J'ades esteja.

    Qualquer mais agudo ena

    No que no seu oflicio,Tenha o padre o exerccio

    No claustro, o pastor na serra,

    Na corte o fidalgo, e ento

    Haver justa unio

    No reino como uo ceu.

    .V corte sentiu o p-jrigo d'estas manifestaes,

    e o que n'ellas havia de indecoroso, lauto mais

    que no davam seuo ensejo para fazer mais

    admirado de todos a grandeza de alma do mar-

    quez de Pombal, que se conservava perfeitamente

    sobranceiro a todas essas injurias. marquez de

    lmodovar, esi-revtudo a seu tio marquez de Lo-

    zado, dizia-lhe: "Estos fuertes y continuados gol-

    pes no haii hccbo todavia en este ministro mas

    huelle eonsiderable, lo que hace verei grau tera-

    pia de su espiritu: aunque no despacha prosigue

    en presentarse palcio nadie le obsequia ni mira

    y el dissimula y calla.

    Esses desatinos no podiam continuar. O ape-

    drejamento do medalho do marquez tomara pro-

    pores assustadoras. Uma bella noite o governomandouo arrancar, dirigindo esses trabalhosmuito em segredo o prprio Bartholomeu da

    Costa que em tempos mais felizes fundira a'es-tatua e o medalho, symbolo curioso da situa-

    o. (J honrado militar fazia, por dever de cargo

    e ordem da soberana, o que os outros faziam por

    villania, apeiava do pedestal o dolo que elle

    mesmo exalara e insensra.

    No dia seguinte houve espanto geral na cidade.

    Cl medalho desapparecera e fora substitudo pe-

    las armas da cidade de Lisboao navio! Masestava escripto que tudo quanto se quizesse fa-

    zer em desabono do marquez de Pombal havia

    de redundar em maior gloria do estadista. Essa

    desappario do medalho deu origem a dois

    ditos que ficaram, um foi o de um gordo e ga-lhofeiro frade, que, ao ver a novidade, disse

    entre os risos dos circumstantes, julgando escar-

    uecer muito o marquez: Ol! este eclipse no

    estava previsto uo almanach. E no reparava o

    bom do frade que, querendo insultar o marquez,

    o comparava nem mais nem menos que ao sol

    !

    O outro dito foi do prprio marquez. Esse, ao

    saber do novo iusulto, sorriu-se, e brincando

    com a luneta, quando lhe disseram que estava

    no pedestal o navio herldico de Lisboa, disse

    rindo: .\gora sim ! agora que Portugal vae

    vella.

    E encolhia os hombros com supremo desdm.

    E no tinha razo? Para demolirem a sua gloria,

    no bastava arrancar o busto, era necessrio ar-

    razar de novo Lisboa que elle erguera das runas

    mais bella do que nunca, era necessrio derru-

  • Historia de Portugal 17

    bar a estatua que ellu erigira ao rei que s fura

    grande porque o tivera a elle ao seu la^lo, era

    necessrio euifiin arraocar as prprias armas lie

    Lislioa que tinham substitudo ao seu busto,

    porque, se no fosse a Fua energia, a sua ini-

    ciativa e a sua intclligencia, esse navio que re-

    presentava a cidade teria ido a pique uas vagas

    da terrivel catastrophe.

    Assim como o governo procurava pr cobro

    aos desatinos da plebe, assim tambm no dei-

    xava de applaudir secretamente alguns bons

    espritos, que principiavam a reagir contra a

    torrente de injurias que em prosa e verso se ar-

    rojavam ao marquez. Nasendeixas que teem por

    titulo Agua 7ia fervura das salyras alambicadas

    dE-se j:

    casa dos Vinte e QuatroAntes tu sugeito fOras,

    Que o carpinteiro de seges

    No se niette a fazer noras.

    Consullae as leis da honra,

    E vereis que em peito honradoNunca entrou a vil aco

    De abater um desgraado.Mas tenho maior reparo

    Nas baboseiras escriptas,

    Injurias era verso ou prosa

    Nem aos maus devem ser ditas.

    No escripto era prosa intitulado Sebastio Jos

    de Carvalho, no meio da sua afjlico. faz a

    presente exclamao a Deus, pem-se na boca

    do marquez as seguintes palavras:

    "E assim esquecido das minhas maldades

    somente vos lembreis que edifiquei cidades e

    povoaes para habitarem os vossos filhos, erig:

    fabricas para a sua conservao, occupei os po

    bres no trabalho para adquirirem o sustento

    abri aulas para o adiantamento de seus filhos,

    vigiei sobre a agricultura, no me entreguei ociosidade, nem a divertimentos illicitos.

    Essa contra-reaco no tardou tambm a ma-

    nifestarse em muitas outras coisas. Por mais

    cruis que sejam os dios que desperte um ho-mem como o marquez de Pombal, por maisviolenta e por mais completa que seja a reaco

    contra os seus actos, o terreno por onde elle

    passou que j no pode de modo algum tornar

    VI voL.;.

    u sei' o (|ui' era d'antes. Homens assim, que

    incarnam no seu enrgico vulto uma revoluo

    inteira, transformam de tal modo a sociedade

    em que actuara, que esta, mesmo inconsciente-

    mente, imaginando s vezes que est anciosa

    por voltar ao regimen antigo, repara, quando vae

    realisar essas suppostas aspiraes, que (; incom-

    pletamente incompatvel com elle. Foi o que

    succedeu cm Frana com a Restaurao. Os

    fidalgos realistas imaginavam sinceramente que

    iam ver tudo em Frana collocado de novo no

    p era que etava em 1788. Apenas pozeram

    mos obra, reconheceram que se tinham creado

    n'ese meio tempo incompatibilidades insuper-

    vel? da nova sociedade com a sociedade antiga.

    Elles mesmos, fieis adeptos da velha monarchia,

    no veriam com bons olhos a resurreio de

    Versailles, e a reconstruco da Bastilha.

    Succedia o mesmo em Portugal. Abominava-

    se a politica pombalina, mas quando o velho

    Portugal de D. Joo v tentava renascer, todos o

    repelliam. A reappario da antiga influencia

    clerical produziria o effeito da reappario das

    antigas ruas labyrinticas da baixa, n'um quartei-

    ro ali[ihado da rua ;Vugusta.

    Portanto a alegria que muitos sentiram pela

    queda do marquez de Pombal no tardou a es-

    vair-se. Quem mais folgara com essa queda ti-

    nham sido os jesuiias. Entre elles e Pombal

    havia effectivamente guerra de morte. Eram

    elles a preoccupao constante de Pombal, e de

    nada se gloriava tanto como de os ter expulso e

    de ter conseguido extinguil-os. A averso que

    tinha aos jesutas, escrevia Saint-Priest ao go-

    verno francez, e a gloria que se dava por os ter

    expulsado era tal que se tornava em mania,

    assim que a torto ou a direito no fallava em

    outra matria. O marquez de Clermont, seis

    annos depois (1771) dizia ao duque de Choiseul:

    Era impossvel fallar com o marquez de Pom-

    bal em negocio algum sem que elle entabolasse

    uma longa conversao sobre o assumpto dos

    jesutas. Dizia pitlorescamente outro diplomata

    que o marquez de Pombal tinha sempre umjesuta escarranchado em cima do nariz, o que

    queria dizer que sua luneta e ao mundo real

    se interpunha sempre aquella odiada imagem.

    Em tudo via jesutas.O que certo que tinha razo. O jesuta do-

  • 18 Historia e Portugal

    minava na socied.idi' porlugueza, o jesuiia vasava^

    nos seus moMps a nova socirdailc, o jcsiiila in- |terviiha na organisa^'o ilo ctiiiio em Portugal,

    dera s grraes poiluguezas, que successiva-

    menle Ibe tiuliain passado pelas inos, pontos

    de vista ciiipletaineiUe falsos, e ( ITei-livameile

    a grande obra do inarquez du Pombal f ji arran-

    car o paiz a fissa influencia deletria.

    Sabem todos o que era e o (|ue valia o dio

    do raarquez de Pombal. Muitos jesutas estavam

    presos nas torres de S. Julio da Barra como

    implicados no crime dos liros contra o rei, ne-

    nhuns houve que to maltratados fossem, trinta

    e oito tinham morrido de dr e de misria n'es-

    sas horrveis prises. Quando os sobreviventes

    sairam, famintos, enfermos e andrajosos, o povo

    fez-lhes uma ovao, para que contriliuiram o

    dio ao marquez, e sobretudo a commiserajo

    que inspiravam as viclimas da sua incontestvel

    lyrannia. Isto animou os jesutas, que esperavam

    poder recobrar o perdido senhorio, animou o

    papa, a quem o nncio, arcebispo de Pelra, di-

    zia que havia de dirigir a seu bel-prazer a poli-

    tica porlugueza. Os testemunhos de affeio dados

    pelo povo aos jesutas e ao bispo de Coimbra, e

    sobretudo a devoo extrema da rainha, anima-

    vam immenso a reaco clerical; mas a atmos-

    phera de 1777 no era a de 1750. No fora impu-

    nemente que passara pela administrao do paiz

    o sopro enrgico do marquez de Pombal. As

    tendncias da rainha comearam logo a encon-

    trar serias resistncias, e quem primeiro se

    mostrou inquieto foi o conde de Florida- lilanca,

    primeiro ministro do rei de Hespanha. O intel-

    ligente ministro hespanhol folgara com a queda

    do marquez de Pombal, como os generaes aus-

    tracos na Itlia em 1796 folgariam se soubes-

    sem que acabava de ser demittido o general

    Bonaparte. O conde tinha um serio negocio di-plomtico a tratar em Portugal, e n'essa partida

    de xadrez preferia que no fosse ura grande jo-

    gador o seu adversrio, mas, quando viu o ca-

    minho que ia tomando o governo da rainha,

    sobresaltou-se. Florida-Blanca fora ura dos acti-

    vos cooperadores na extinco da ordem dos

    jesuitas, e no queria de modo algum que elles

    tomassem p ouira vez em plagas calholicas.

    Era esta a maior homenagem que se podia

    prestar a Pombal. Podiam apelar o seu busto.

    insultal-o, tentar demolir a sua reputao. A sua

    obra ei'a iiuuiortal; reconstruir a sociedade por-

    tugueza como reconstruir Lisboa. Fizera entrar

    a jorros a luz tanto nos mais intiiBos recessos

    sociaes, cumo nas mais recnditas ruas lisbo-

    nenses. Podiam fazer o que quizessem, o que

    no podiam era fazer com que voltasse a treva.

    No resuscilava a sociedade portugueza de D.

    Joo v, como no resuscitavam as viellas e a

    Rua Nova.

    CAPITULO II

    O novo ministrio.Angeja e Villa NevadaCerveira.Martinho de Mello e Ayres deS.O cardeal da Cunha.Biographia doconfessor da rainha, arcebispo de Thes-

    salonica.

    As injurias com que o povo assetera a admi-

    nistrao do marquez de Pombal iam ser punidas

    em breve. O povo ia saber sua custa o que erao talento do marquez de Pombal, e que immenso

    e irreparvel vcuo elle deixara na administra-

    o do Estado. O seu vingador era o ministrio,

    que lhe succedia formado a sabor da reaco que

    lavrava em toda a parte contra as medidas econtra o syslema politico do marquez de Pombal.

    Accusavam-n'o de ser pouco affecto nobreza ?

    A rainha D. Maria i chamava immediatamente

    ao poder o marquez de Angeja, chefe de umadas casas mais nobres de Portugal, a casa dos

    Noronbas. No tinha o marquez outro titulo que o

    indigitasse para o poder seno o de sua illustre

    ascendncia, e tinha muitos que o deviam af-

    fastar de to alta situao. Um certo gosto quemanifestava pelas sciencias naturaes, uma tal ouqual viveza de engenho, no eram motivos suffi-

    cientes para se lhe confiar a gerncia suprema

    dos negcios pblicos; a sua idade j adiantada,

    a absoluta falta de pratica de coisas administra-

    tivas no o recommendavam de certo para to

    difficil cargo. Tinha numerosos partidrios, e

    esse era ura mal e um grande mal para o paiz.Sebastio de Carvalho governara sempre, e, acima

    de tudo, com a mira no interesse publico; o mar-

    quez de Angeja ia governar sobretudo para fa-

    zer do patrimnio da nao o morgado dos seus

    amigos. Assim, ao passo que o marquez de An-

    geja, accumulando com os numerosos cargos que

  • Historia de Portugal 19

    j tinha, e que eram o de conselheiro de Estado

    e conselheiro de guerra, gentil-homem da Real

    Camar, tenente-general, governador da torre de

    lieleni, inspector geral dos armazns de Guin e

    da ndia e do arsenal real de marinha, e inspe-

    ctor geral das obras publicas e do plano de re-

    eiliicao da cidade, capito general da armada,

    o logar de presidente do real errio, juntava [lor

    esse facto mais vinte e quatro mil cruzados de

    ordenado annual aos numerosos honorrios que

    j recebia, ao passo que logo a 12 de maro de

    1777 se mandavam pagar ao marquez de Va-

    lena, com vrios pretextos, mais de vinte mil

    cruzados, uma das primeiras medidas que o mar-

    quez de Angeja adoptava era a de mandar sus-

    pender as obras de reedificao da cidade, em

    que o marquez de Pombal trabalhava com ardor,

    e que no s aproveitavam capital, mas davam

    sustento a milhares de operrios, que ficavam

    de ura dia para o outro sem po e sem trabalho.

    As salyras da vspera converliam-se depressa

    em lagrimas de desespero, e quasi no dia se-

    guinte quelle em que o povo mostrava desejo

    de ver queimado vivo o grande marquez, prin-

    cipiou a correr nas ruas de Lisboa um proloquionovo, verdadeira transio para o reviramento

    que se ia operar na opinio publica. O proloquio

    era o seguinte; Mal por mal, antes Pombal.

    Se o marquez de Angeja representava no po-

    der a nobreza de sangue to maltratada por Pom-

    bal, o visconde de Villa Nova da Cerveira, depois

    marquez de Ponte de Lima, podia dizer-se que

    era um penhor dado pela rainha ao clero de queos seus interesses no seriam descurados peio

    novo governo. Extremamente devoto, conside-

    rado pelos religiosos do seu tempo como theologo

    distincto, o visconde de Villa Nova da Cerveira

    dava todas as garantias de que no seguiria na

    secretaria do reino de que fora incumbido as

    tradies regalislas e anti-reaccionarias do mi-

    nistrio antecedente. Passava elle e com razo

    por honesto, mas tudo relativo, e n'um minis-

    trio como e.ste. que no tinha outro fim em

    vista seno satisfazer a cubica dos parciaes, no

    podia parecer estranho que o visconde de Villa

    Nova da Cerveira beneficiasse seu filho com uma

    tena de quinhentos mil ris, a pretexto dos re-

    levantes servios que uma lia do agraciado pres-

    tara s instituies como dama da rainha-me.

    Inhahilissimo administrador, manso de condio

    apparentemenle, mas no fundo rancoroso, tendo

    tambm uma porosinha daquelle fel, que, no

    dizer do poeta francez, se aninha no corao dos

    devotos, o visconde de Villa Nova da Cerveira

    dava como documentos da sua brandura de animo

    as perseguies por elle movidas ao bispo de

    (Coimbra e a fr. Juaquim de Santa-Clara que se

    tinham mostrado affectos, ainda mesmo no infor-

    tnio, ao marquez de Pombal, e do seu tacto

    administrativo no precisava apresentar outro

    documento seno o modo como estavam sendo

    geridos os tiegocios da sua casa.

    Os outros dois ministros l.inham-n'o sido com

    o marquez de Pombal, e deviam as pastas, um sua rivalidade conhecida com o grande esta-

    dista, e ao desabrido rancor que sempre lhe

    votara, o outro sua insignificncia politica e

    necessidade que sentia o novo governo de con-

    servar no seu seio algum que at certo ponto

    conhecesse os negcios do Estado e principal-

    mente as suas relaes com as potepcias es-

    trangeiras. O primeiro d'estes ministros era

    Martinho de Mello e Castro, o segundo era Ay-

    res de S e Mello.

    Martinho de Mello e Castro, a quem tanto deve

    a nossa marinha, fora descoberto e apreciado

    pelo marquez de Pombal, que sempre mostrou

    desejo de se rodeiar de homens de provada

    capacidade e de reconhecido talento. Servira o

    paiz, principalmente como ministro em Londres,

    com grande habilidade. O marquez de Pombal

    recommendra-o fervorosamente a el-rei, este co-

    nhecera-o e agradra-se muito d'ellc, quizera que

    elle entrasse no ministrio, mas o marquez de

    Pombal, que lhe conheceu logo o orgulho e a

    ambio, preferia aproveitar em mis.^es fora do

    reino, onde realmente era necessrio, o talento

    do nosso representante em Londres. Mas, quando

    luorreu i"rancisco Xavier de Mendona, irmo do

    marquez, e secretario dos negocies da marinha,

    el-rei mandou chamar a Londres Martinho de

    Melln, e o marjuez sanccionou immediatamenle

    a deliberao do soberano. Cheio de orgulho por

    esta prova estrondosa do valimento rgio, Mar-

    tinho de Mello julgou que facilmente supplaniaria

    Pombal, e para isso trabalhou cora tanta mais

    facilidade quanto era elle o ministro que ia des-

    pachar cora el-rei, quando el-rei estava cm Sal-

  • 20 Historia de Portugal

    Viitcrra, e tinba por conseguinte muitos ensejos

    de minar a influencia cie Pombal. Este porm,

    um (iia, fez-llie sentir duramente a sua superio-

    ridade, e de modo lai que Martinlio de Mello

    j)assou a ser o mais submisso de todos os bo-

    mens, mas o rancor profundo que lavrava no seu

    peito s anelava por uma occasio de se satisfa-

    zer. Por isso to resoluto se mostrou por occasio

    da queda do marquez, instando pela sua demis-

    so, 8 indignando-se quando a via formulada

    em lermos que eram para o illustre ministro umultimo triumpbo. Homem, porm, activo, zeloso,

    intelligenle e sabedor, seguindo as tendncias

    reformadoras do inimigo que tanto odiava, mas

    de quem afinal era discpulo, prestou incontes-

    tveis e relevantes servios marinba porlu-

    gueza.

    Ayres de S e Mello era o ministro da guerra

    e dos negcios estrangeiros. Ghamara-o a esse

    cargo o marquez de Pombal que o estimava, e

    que n'essa pasta queria simplesmente um bomemdedicado e fiel, por que o verdadeiro ministro

    dos negcios estrangeiros era elle. Negociaes

    havia de que Ayres de S tinha pouqussimas

    informaes, sendo todas travadas directamente

    pelo marquez. Verdadeiro sub-secretario de Es-

    tado ou menos ainda, conservou-se no poder,

    em parte porque era bemquisto das cortes estran-geiras por quem Portugal precisava ter mais de-

    ferncia, em parte porque representava a tradio

    governativa do ministrio antecedente, com a

    qual em negociaes com as potencias estran-

    geiras se no podia facilmente lompcr, em parle

    porque a sua extrema devoo o tornava bem-

    (juisto da rainha, fazendo at com que esta lhe

    perdoasse a deferncia que elle, com rara intei-

    reza de animo, continuava a mostrar pelo seu

    antigo chefe no governo. Succedia o inverso com

    Martinho de Mello e a esse era a inimisade im-

    jilacavel que mostrava [lelo marquez de Pombal

    (|Ui.' fazia com que a rainha llie perdoasse a ex-

    li-enia tibieza da sua f, o que era devido, obser-

    vavam os dicazps, longa residncia de Martinho

    de Mello na crle hertica de Inglaterra. Esse

    perdo comtudo uo ia to longe que permittisse

    devota rainha elevar Martinho de Mello pre-

    eminncia que elle ambicionava.

    Outro ministro do novo gabinete era o cardeal

    da Cunha, relquia tambm do gabinete Pombal.

    O cardeal da Cunha era um dos vultos mais ign-beis d'essa poca. Tudo devia ao marquez, e tudo

    alcanara fora de subservincia e de adula-

    o. Chegara a renegar o nome de sua famlia,

    que era a dos Tavoras, para obter as boas gra-

    as do omnipotente ministro, fora por tal forma

    complacente seguidor do cardeal Paulo de Car-

    valho, irmo do marquez de Pombal, que este

    rindo dizia de Paulo de Carvalho e de Joo

    Cosme da Cunha que eram S. Roque e o seu

    co. Chamado ao ministrio, como ministro

    assistente ao despacho, fora o espio e o instru-

    mento de Pombal. Tinha-o] este na devida con-

    ta, mas cuidava que podia confiar na sua cega

    dedicao. Constante illuso dos poderosos que

    voem na baixeza dos que o servem uma garan-tia de fidelidade, sem se lembrarem que o co

    fraldiqueiro, symbolo da lisonja servil, o que

    mais de prompto revira o dente, quando pode,

    contra a mo que o encheu de mimos. O cardeal

    da Cunha no esperou que D. Jos tivesse cer-

    rado os olhos; para se antecipar a lodos na

    evoluo, apenas viu que el-rei perdei'a a falia,

    e que a sua morte era infallivel, atreveu-se a

    prohibir ao marquez de Pombal que entrasse no

    Pao, dizendo-lhe, sem ordem nem auctorisao

    de ningum, que estavam acabadas as suas func-

    es. Ao mesmo tempo insinuava-se no animode D. Pedro in, denunciava-lhe os planos do

    marquez de Pombal relativamente successo

    da monarchla, e conseguia salvar assim os em-

    pregos e as sinecuras. No porque se deixassem

    illudir pela nova altitude do cardeal; j todos

    lhe conheciam as manhas, e a sua ultima evo-

    luo fora to brusca e impudente, que os maio-

    res inimigos de Pombal se tinham sentido eno-

    jados cora ingratido to feia. Mas o espirito

    imbecil de D. Pedro iii dei.\ou-se illaquear pelos

    ardis do cardeal, e tomou talvez compromissos

    que sua esposa no quiz descumprir. (J que

    certo que o cardeal da Cunha conservou lodos

    os seus cargos e rendimenios, e apenas recebeu

    da rainha o aviso de que escusava de ir ao Pao

    todos 03 dias, porque o mandaria chamar, quando

    fosse necessrio o seu voto no conselho. Era unia

    despedida cortez, observava com razo ura di-

    plomata estrangeiro; mas o cardeal da Cunha im-

    porlava-se pouco com isso. Continuava a ser rege-

    dor das justias, inquisidor geral, commissario

  • Historia de Portugal 21

    da bulia da cruzada e presidentR da raeza cen-

    sria, inspector de reedificao da cidade e da

    junta das confirmaes geracs. De todos estes

    cargos recebia opulentos reditos a que juntava

    ainda os niagnificos piovenlos da s de vo-

    ra, de que era arcebispo e onde nunca pozera

    p. Tudo continuava a ter, juntamente com as

    lionras, preeminncias e ainda ordenados de

    ministro, s o que faziam era dispensal-o do

    servio, e nem sequer o obrigavam em troca

    a ir pastorear as suas ovelhas eborenses. Achava

    bom.

    Um novo personagem vae agora' entrar emscena e dominal-a. Temos de demorar n'elle os

    olhos com mais atteno porque a sua influencia

    vae ser decisiva n'um reinado devoto como o de

    D. Maria i. Esse vulto o do confessor da rainba,

    e, para o desenhar, recorreremos habilissima

    penna do sr. Latino Coelho, que lhe traou com

    mo de mestre a singular physionomia.

    Nascera D. fr. Ignacio de S. Caetano na praa

    de Chaves aos 31 de julho de 1719, em que aegreja celebra o memorvel instituidor da Com-

    panhia de Jesus. Pelo santo d'aquelle dia lhe

    irapozeram os pes o nome, ajuntando-lhe o co-

    gnome por haver sido baptisado na egreja coUe-

    giada de Nossa Senhora da Assumpo aos 7 de

    agosto era que se reza de S. Caetano Tieneu, fun-

    dador dos clrigos regulares da Divina Provi-

    dencia. Os pes foram pessoas de estado com-

    mum, posto que no de todo o ponto obscuro?,e cbaraavam-se Pedro Alvares Teixeira e Isabel

    Rodrigues. Eram lavradores e abastados. Parece

    que a piedade os inclinara a consagrar ao servio

    de Deus e da sua egreja os filhos vares, que do

    matrimonio lhe nasceram. Trez d'elles professa-

    ram no Carmello reformado, os outros dois ves-

    tiram o habito de S. Pedro. Fr. I-nacio, antes de

    encerrar-se na clausura, seguio a principio o ofli-

    cio das armas, sentando praa no resimento de

    infanteria, que em Chaves tinha enio o seu quar-tel. Empenharara-se os pes em o fazer soldado,fiando que n'essa profisso se levantaria aos pos-

    tos eminentes, e viria a ser a honra da f.imilia.

    No quadrava porem a frei Ignacio o estrpito

    das armas. J por ventura suspeitava que, ves-

    tidos de estamenha e de burel, se podiam os ho-

    mens exaltar s mais altas dignidades, e que o

    cilicio no era impedimento a que os mimosos

    da fortuna encontrassem favor e patrocnio nas

    cortes dissipadas e mundanas. Lm dia o futuro

    carmelita deixa improvisamcnte o seu regimento,

    e acolhe-se a Salamanca, provavelmente com o

    propsito de cursar os estudos n"aquella univer-

    sidade, ento mais celebrada ptlas suas antigas

    tradies do que pela fama actual da sua dou-

    trina. Volvendo a Chaves era obedincia s ordens

    severas de seu pae, e conclusos os primeiros es-

    tudos de humanidades, determinou de seguir a

    railicia espiritual para que 'no dizer do seu bio-

    grapho). o eslava desde muito convidando a voca-

    o. Aos de janeiro de 1735, vestiu o futuro

    arcebispo o saial da reforma carmelitana no con-

    vento de Nossa Senhora dos Piemedios em Lisboa,

    no tendo ainda completado dezeseis annos e

    meio de idade. Um anno depois, a 6 de janeiro

    de 1736, fez solemne profisso o novo carmelita,

    cursou o que ento se chamava as Artes no col-

    legio de Nossa Senhora dos Remdios em vora,

    onde florescia no seu funesto esplendor a desna-

    turada e corruptssima philosophia, a que davam

    impropriamente o nome de aristotlica. Ali, se

    houvermos de ter plena confiana no seu biogra-

    pho, se adelgaou por tal maneira a subtileza do

    seu engenho juvenil, que veio a lograr a mais

    indisputvel reputao de arguto dialctico, o

    que, nas trevas pbilosophicas d'aquelle sculo

    era Portugal, era elogio bera suspeito. l"m 1739

    trasladou-se ao collegio de S. Jos da universi-

    dade de Coimbra para seguir o curso Ibeologico,

    em cujas difficuldades se exercitou durante dois

    triennios. Parece que eram havidos em bom con-

    ceito, sequer na religio carmelitana, os talentos

    de fr. Ignacio, porque em 1 74.5 mandou-o seu pre-

    lado ler theologia como substituto no collegio

    que a ordem tinha em Braga, onde regeu por um

    bifunio a cadeira de escriptura. Em 1748 ascen-

    deu dignidade de leitor da sagrada pagina. Aqui

    se no so demasiado hyperbolicas as expres-

    ses do seu panegyrista/ se comeou a difundir

    melhor a sua fama na cathedra e no plpito,

    o que lhe conciliou o favor e o valimento de

    D. Jo> de Bragana, que ento occupava a ca-

    deira primacial. Em 1754, o elegeu prior do col-legio bracbarense o capitulo geral da sua ordem

    celebrado aquelle anno em S. Pedro de Pastrana.

    Era certamente divulgada entre os confrades a

    sua competncia na theologia dogmtica e na

  • 22 Historia de Portugal

    polemica, porque no definilorio reunido em

    Braga, sob a presidncia do geral fr. Jos de

    Jesus Maria Jos, que ento regia toda a ordem

    em llcspanha e Portugal, se commetteu a fr.Igiiacio o elucidar algumas duvidas, que, acerca

    da predestinao, tinbam vindo propostas da

    Allemanba.

    Foi por esta occasio que o primaz o nomeou

    para seu director espiritual. Acompanhou o pre-

    lado era sua visitao diocese, at que, sal-

    teiado o arcebispo pela ultima enfermidade em

    Ponte de Lima, em princpios de julbo de 1776deixou viuva a egreja bracharense. Devendo reu-

    nir-se em 1759 o capitulo gerai, recaiu era fr.Ignacio a eleio de substituto. Abalou se para

    Castella, e no convento de S. Pedro de Pastrana,

    onde o capitulo estava congregado, o deputaraoi

    para prior do convento de Garnide, em que en-trou a governar, sendo quasi meiado o anno

    de 1757. Entre os notveis melhoramentos cora

    que engrandeceu aquella casa, no se esqueceu

    de fornecer e enriquecer uma copio.sa livraria,empenho em que depois o ajudaram com suasdadivas el-rei D. Pedro n.i e seus irmos illegiti-

    mos, D. Antnio e D. Jos.

    Dcliciando-se (como nota o seu biographo) na

    esperana que o retiro e solido do sitio lhe

    consentissem a lio interrompida, comeava

    apenas o novo prior a entender no meneio e me-

    lhoria da sua casa religiosa, quando graves suc-

    ccssos o foraram a sair do recesso obscuro da

    cella coiiventuiil para a luz do mundo e para osenredos da politica. O decreto de 19 de setembro

    de 1757, ante[)rologo da guerra sem quartel que

    o marquez de Pombal aparelhava contra a Com-

    panhia de Jesus, expulsava do pao os scios

    d'aquelle instituto ambicioso, defeudendo-lhes

    severamente que mais no podessem acercar-se

    do soberano. Urgia preencher os logares de con-

    fessores, que os jesutas exerciam junto d'el-rei

    e dos raemhros da famlia real. Elegeu o mar-

    quez os novos directores espirituaes nas religies

    de maior recolleco. O padre mestre fr. Antnio

    de SanTAnna, ex-provincial da reformada reli-

    gio da Arrbida, teve o encargo de reger a cons-

    cincia d'el-rei D. Jos. A princeza do Brazil e

    as infantas tiveram por confessor o padre-mestre

    doutor fr. Jos Pereira de Sanl'Auna, que fora

    chronista e provincial dos carmelitas observan-

    tes. Vindo porem este religioso a fallecer em Sal-

    vaterra, onde se achava a corte, em princpios

    de 1759, entrou o marquez no cuidado de prover

    o logar vago em sujeito que no fosse desaffecto

    sua faco. Refere o biographo, a cujas pala-

    vras nos vamos acostando, que a cl rei acorrera

    espontaneamente o nomear a fr. Ignacio para

    confessor da princeza do Brazil, por lhe ser j

    ento familiar a fama das suas boas qualidades

    e talentos. Escrevia porem o panegyrisla em oc-casio pouco propicia a citar com insistncia de-

    masiada o nome de Pombal e a alludir ao seu

    absoluto ministrio. Era necessrio, para respon-

    der s obrigaes de panegyrico, esconder no

    silencio as maculas, que no retrato verdadeiro do

    seu heroe poderiam descobrir os detractores, ta-

    xando-o de haver cooperado nas que chamavam

    impiedades e sacrilgios do terrvel dictador.

    Pode ter-se como certo que a escolha do confes-

    sor para amaciar os escrpulos da princeza, to

    propensa a fanticas aberraes, no a deixaria

    facilmente o ministro de D. Jos incerta inspi-

    rao do fraco rei. A mystica devoo da prin-

    ceza do Brazil haveria de suggerir-lhe lastimosos

    commentarios a cada providencia cora que o mar-

    quez vibrava um novo golpe ambiciosa theo-cracia. No primava a rainha por affecta ao

    ministro omnipotente, e exercia sobre a 6lha

    o imprio moral de me e a solercia. A cons-

    cincia de D. Maria era um elemento politicofundamental, que a preveno e solercia do es-

    tadista no podia deixar ao desamparo. Era umafortaleza, que cumpria aperceber com presidio

    seguro e obediente. A eleio do confessor signi-

    ficava para o marquez um negocio de Estado degravssima importncia. Os testemunhos con-

    temporneos confii-mam plenamente que o mi-

    nistro deputara um parcial para o collocar desentinclla ao animo timorato e escrupuloso da

    princeza do Brazil. E de crer que Pombal tivesse

    j absoluta confiana no carmelita, e que este,

    pelos seus actos anteriores e pela despreoccupa-

    o do seu espirito, se houvesse manifestado

    addicto politica revolucionaria do marquez.

    E fiicil acreditar que no seria a nomeao aco-

    lhida por quantos no animo d'el-rei desejavam

    contrariar as decises do seu ministro. No fal-

    tariam porventura cortezos, dos que ainda em

    secreto podiam aventurar algum conselho ou en-

  • Historia de Portugal 23

    caminhar alguma intriga, para dissuadirem o

    sobirano de approvar a eleio do confessor.

    Desempenhou fr. Igaacio de S Caetano as du-

    ras obrigaes do seu novo ministrio espiritual,

    anrumulando-as com o priorado de Carnide, at

    que no capitulo geral de 1760 o exoneraram

    d'este encargo para que podesse vagar com maior

    desassombro e liberdade s occupaes de con-

    fessor, as quaes tornava mais custosas a crescente

    devoo da regia penitente. Se o publico no era

    unanime em attestar as muitas letras do ventu-

    roso carmelita, apesar dos escriptos que deixou,

    continuava a sua ordem a tel-o na conta de be-

    nemrito, e a fiar grandes emprezas da sua eru-

    dio, porque no mesmo anno ibe commetteu ocuidado de escrever a historia da provncia.

    O marquez de Pombal, para ter de sua mo

    um instrumento poderoso e efBcaz com que tor-nasse uniforme em lodo o reino a opinio era fa-vor dos seus actos e doutrinas, instituir em abril

    de 1768 a real meza censria, alfandega intelle-

    ctual onde haviam de ser cuidadosamente exa-

    minados todos os escriptos e idas, antes que lhes

    fosse permittida a livre circulao. A meza cen-

    sria era um alto tribunal politico, uma inquisi-o civil, cujas terrveis censuras haviam de vi-

    brar-se principalmente contra a reaco religiosa.

    Os mais puros adeptos do marquez eritrarara a

    constituir aquella nova jurisdio. O presidente

    era o famoso arcebispo de vora, D. Joo Cosme

    da Cunha. Deu-lhe Pombal por companheiros os

    homens que mais primavam pela sua dedicao

    pessoal ao ministro omnipotente e pela sua reso-

    luta profisso das doutrinas regalistas. Fr. Igna-

    cio de S. Caetano teve um dos logares n'aquelletribunal, onde entrava por Iheologo.

    Determinara a piedade do monarcha ou antes

    a politica do seu ministro, erigir seis novas dio-

    ceses no continente portuguez. Chegou a instancia

    ao slio pontiScio, em que j presidia o memo-rvel Loureno Ganganelli, sob o nome de Cle-mente XIV. Eram ento cordiaes as relaes entre

    a cria e Portugal. Deferio supplica o pontfice.

    Crearam-se novamente os bispados de Penafiel,

    de Beja, de Pinhel, de Castello Branco, de .\veiro

    e de Bragana. Teve a munificncia do marquez

    mitras bem dotadas, com que galardoar os seusmais prestadios parciaes. .apresentou elrei a 31

    de julho de 1770 na cadeira de Penafiel o con-

    fessor da printeza do Brazil. Na sede episcopal

    de Beja resplandeceram os talentos de Cenculo.

    k IO de novembro d'aquelle anno foi sagrado

    o novo bispo D. fr. Ignacio de S. Caetano na

    capella da .\juda pelo patriiircha de Lisboa D.

    Francisco de Saldanha, assistindo a familia reul

    quelle acto por lhe accrescentar o luzimento e

    mostrar mais uma vez o apreo cm que era ha-vido o dilecto carmelita.

    A princeza temia a cada passo os perigosos lan-

    ces da sua conscincia, se viesse a fallar-lho o

    esteio espiritual. Reiterava o bi.-:po seguado af-

    firma o seu biographo) as instancias para que a

    princeza o desatasse das obrigaes palacianas.

    Os encargos de confessor e as convenincias

    da politica poderam mais no seu espirito do que

    os escrpulos da residncia. D. fr. Ignacio conti-

    nuou crusando a corte sem que as ovelhas o vis-sem nunca no redil. Acercava-se o termo do felize dilatado ministrio, a que fr. Ignacio havia

    dado tantas mostras de afeio e de obedincia.

    Presentia porventura que, cora a idade provecta

    do ministro e os achaques do soberano, vinha

    prxima a reaco do clero e da nobreza, e pen-

    sava em forrar-se no retiro da sua diocese aosforados dissabores de uma violenta metamor-phose no governo.

    Apenas tomou o sceptro a princeza do Brazil,

    renovou o confessor as suas rogativas. No erapropicia a quadra para que andassem na corte

    os que no conceito universal eram havidos poramigos do marquez. Parecia talvez ao carmelita

    que, se a proteco da regia penitente lhe era

    escudo impenetrvel contra os golpes dos seus

    declarados inimigos, no podia evitar-lhe a hu-

    milhao de ver severamente leprehendidos mui-

    tos actos, que exercera como agente de Pombal.A parte, que tivera era 1768 na condemnao dobispo de Coimbra, assignavalbe um logar pre-eminente entre os que haviam perseguido a D.Miguel da Annunciao. O benvolo acolhimento,

    que a soberana havia feito ao prelado conimbri-

    cense, cuja fronte o fanatismo circumdra da

    aureola dos martyres, era, por mais que o dissi-

    mulasse o aEfecto da rainha para com o seu pa-dre espiritual, a terrvel confirmao das vozes

    descompostas, com que a clerezia e os fidalgosacoimavam de impios e cruis o marquez e osseus sequazes. Os que mais queriam a D, fr, I"-

  • 24 Historia de Portugal

    nacio no podiam escurecer inleiramciile a ma-

    cula supposla, que no burel do carmelita ou no

    rocliele do prelado linhara lanado os actos do

    politico e os erros do censor.

    Toriira-se dilliril e escabrosa, sob o novo

    reinado, a siluayo do confessor. Se a rainha

    Ibe dava ai,'ora niosiras mais ardentes da sua af-

    feio e inuniticencia, odiavam-n'o os corlezos

    e todos aquelles que o reseulimento, o interesse

    ou a vingana traziam exacerbados e violentos

    contra o governo de Pombal. O vulto de D. fr.

    Ignacio linba sido to notvel no squito do es-

    tadista, que de um milagre de tolerncia,

    pouco frequente n'aquelle tempo, se poderia es-

    perar a inteira absolvio do clero e da nobreza

    para cora o invejado confessor.

    Ainda que seguro na confiana da rainba, o po-

    deroso influxo que exercia no animo da sua regia

    penitente no podia de todo o ponto derivar a

    corrente caudalosa, que impulsava fatalmente o

    governo n'uma du-eco diametralmente opposta

    & politica de Pombal. Era inevitvel a reaco.

    Nas mos do confrssor estava apenas o impedir

    que no cbegasse a converter-se era completa

    restaurao. O spero carmelita assistiu con-

    demnao de muitos actos do marquez, de cuja

    responsabilidade lhe cabia quinho avantajado.

    Para navegar em os novos mares que lhe depa-

    rava a sua e a fortuna de todo o reino, era fora

    mudar rumo e accommodar-se ao que exigia a

    situao. So frequentes, em politica, estas que

    chamam prudentes variaes. No raro a historia

    nos apresenta exemplos de homens, que, depois

    de haverem participado nos actos de um governo,

    com elles se comprazem para o proveito e para

    a gloria, e depois tacitamente os desconfessam

    quando engrossa a torrente dos opprobi'ios contra

    o ministro a quem serviram. N'um ponto parece,

    porem, haver-se conservado inabalvel o espirito

    do carmelita: a sua resistncia s doutrinas e s

    invases ultramontanas. E quando a reaco cle-

    rical intentou de novo levantar em todo o reino

    os seus Iropheus, deveu-se porventura aos avisa-

    dos conselhos de fr. Ignacio que os jesutas, que

    lhe eram hostis em summo grau, no volvessem

    sua influencia primitiva.

    O que certo que, apesar de todas as con-

    dies desfavorveis que parecia diTicultarera a

    valia do confessor, a rainha no somente revali-

    dou a sua estima, seno que lambem o adraittiu

    sua mais estreita intimidade penitencial, e pelo

    confessionrio Ibe continuou fcil accesso in-

    fluencia nos as.^uroplos de; governo. Accedcu a

    .'olierana finalmente a qui' D, fr. Ignacio renun-

    ciasse a prelazia. Arceilou-a o [lapa Pio vi que,

    su|i|iriniindo ao mesmo tempo o ephemero bis-

    pado de Penafiel, nomeou o prelado resignatario

    arcebispo titular de Tbessalonica, reservando-lhe

    nas rendas da extincla diocese, a instancias da

    rainha, a penso annual de dez mil cruzados, a

    quinta do Prado e a residncia episcopal.

    Al ao fim do reinado antecedente fora serapre

    o convento de Carnide a morada habitual do

    confessor, o qual somente frequentava o Pao

    quando o exigia o seu olicio. Apenas D. Maria

    entrou a reger os seus Estados, impoz ao carme-

    lita o dever de trasladar para o palcio o seu

    continuo domicilio, afim de que a soberana, no

    meio das graves dilTiculdad.cs de um governo in-

    cipiente e borrascoso, podesse achal-o ao pi5 de

    si em qualquer occasio. A rainha, empunhando

    agora o sceptro, mais se affervorra nas praticas

    de uma ardente devoo e de uma piedade en-

    thusiastica.

    Os seus exerccios religiosos, frequentes e de-

    morados, tinham por director o arcebispo, em

    quem a musa dos pregadores contemporneos

    figurava um novo Moyss, esforando a timida

    soberana no deserto d'este mundo para que lus-

    trasse um dia a terra da promisso. Emquanloo seu patrono, o decado e decrpito marquez,

    era vo buscava anteparar-se contra os tiros da

    perseguio e da vingana no obscuro recesso

    do Pombal, o antigo censor rgio, o que fora

    confidente do estadista, crescia mais e mais na

    confiana da rainha, que, com affectuosa libe-

    ralidade, lhe accrescentava os beneficies e as

    graas, o consultava nos negcios de maior pon-

    derao, o tinha por orculo no genuflexrio e

    no bufete, sem que no dizer do seu biographo

    se desviasse ura ponto dos conselhos acertados

    com que o arcebispo a dirigia.

    A sua ndole era de lodo o ponto avessa s

    graas e priraores de uma educao gentil e pri-

    morosa; as maneiras desconformes ao ofTicio de

    cortezo. As suas qualidades moraes no tinham

    sido demudadas e corrompidas pelo trato pala-

    ciano. sua honestidade era testificada pelas

  • Historia de Portugal 25

    mais insuspeitas informaes, apesar de que os

    tiros da caiumnia o puniam de prevaricador e

    cubioso. A austera simpleza do seu viver no

    aPTrontava com demasiadas pompas aulicas o ri-

    gor do instituto carmelitano. O seu caracter era

    compassivo e generoso. Apesar da aridez das

    suas maneiras (assim nolo descreve Beeiifordi

    a bondade do corao, transluzindo na expresso

    jovial e benvola dos seus olhos, insinuava-se

    sem que elle o advertisse nos alheios coraes,

    e temperava a aspereza imperativa, que s vezes

    revelava na voz e nos meneios. Erguendo-se

    desde a plebe at mais alta influencia e valia

    com os soberanos, levantado nos extremos an-

    nos da sua vida primeira dignidade no governo,

    lendo parle considervel na amplssima colheita

    de baixas adulaes, com que interesseiros cor-

    lezSos propiciavam a coroa e o poder, os seus

    lbios, accentuados de ironia, descerravam-se

    para soltar algum d'esses incisivos epigrammas,

    com que sabia retribuir as lisonjas de agaloados

    pretendentes e humilhar os vultos mais illustres

    da nobresa. O rude e pobre leigo carmelita que

    linha o mximo quinho na privana do arce-

    bispo, via muitas vezes humilhados ante si os

    grandes e os fidalgos, os quaes no fmulo sabiam

    cortejar as graas do valido confessor, cujo ac-

    cesso apenas ao mais feliz era dado. O humo-

    rista Beckford, que to profundamente conheceu

    os segredos e os costumes da crle de Portugal

    nos primeiros annos do reinado de D. Maria, e

    nos deixou delineados os perfis dos seus perso-

    nagens principaes, attesta a reluctancia com que

    o arcebispo confessor trocara pelas pompas e

    grandezas da corte o obscuro retiro da cella de

    Carnide, e sacrificara ao servio da rainha os

    hbitos da sua vida modesta e remansada. Apren-

    dera com o marquez, seu amigo e seu patrono,

    a ter em menosprezo a piedade viciosa. As bea-tas da corte achavam n'elle, sempre disposto para

    a correco, o ltego da sua palavra severa e

    despolida. As cabalas do pao vinham quebrar-se

    sem effeito no animo agreste do carmelita, que,

    sem ser um espirito incrdulo e philosophico,acatava a religio castigando o fanatismo. No

    aspecto e compostura, segundo noi-o allesta o

    seu retrato, no destoava da gravidade austera

    de um prelado. Avantajado na corpulncia, es-tranhavam 08 maledicos que s. ex.' reverendis-

    VI VOL.4.

    sima ai'crescenlasse cada dia as espessas camadas

    do tecido cellular, e mantivesse a sua rstica

    jovialidaile ao compasso dos infortnios que ve-

    xavam a nao, e todavia, apesar do seu modesto

    e singelo epicurisnjo. o arcebispo de Tbessalo-

    nica doia-se intimamente dos males que amea-

    avam a (tynastia e a nao. Nada se fazia na

    corte e no governo sem a audincia do omnipo-

    tente confessor, a quem a rainha fidelssima de-

    pois veio a delegar, como penitente, a suprema

    instancia que nos negcios lhe cabia. .\ sua hom-

    bridade e iseno se deveu talvez em grandeparte que o animo frouxo da soberana no ce-

    desse s pertinazes obsesses para que umareaco aberta e ambiciosa viesse annullar in-

    teiramenie os benficos influxos da pass