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História de Quinze Dias Textos-Fonte: Obra Completa de Machado de Assis, vol. III, Rio de Janeiro: Nova Aguilar,1994 Crônicas, Machado de Assis, vol. III, Rio de Janeiro: W. M. Jackson, 1938. Publicado originalmente na Ilustração Brasileira, Rio de Janeiro, de 01/07/1876 a 01/01/1878. ÍNDICE 1 º JULHO DE 1876 1 º DE AGOSTO DE 1876 15 DE AGOSTO DE 1876 15 DE SETEMBRO DE 1876 1 º DE OUTUBRO DE 1876 1 º DE JANEIRO DE 1877 15 DE JANEIRO DE 1877 15 DE FEVEREIRO DE 1877 15 DE MARÇO DE 1877 15 DE ABRIL DE 1877 15 DE JUNHO DE 1877 1 º DE NOVEMBRO DE 1877 15 DE NOVEMBRO DE 1877 1 º DE DEZEMBRO DE 1877 15 DE DEZEMBRO DE 1877 1 º DE JANEIRO DE 1878 1º DE JULHO DE 1876 I

História de Quinze Dias

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Crônicas de Machado de Assis

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  • Histria de Quinze Dias

    Textos-Fonte:

    Obra Completa de Machado de Assis, vol. III, Rio de Janeiro: Nova Aguilar,1994

    Crnicas, Machado de Assis, vol. III, Rio de Janeiro: W. M. Jackson, 1938.

    Publicado originalmente na Ilustrao Brasileira, Rio de Janeiro, de 01/07/1876 a 01/01/1878.

    NDICE

    1 JULHO DE 1876 1 DE AGOSTO DE 1876 15 DE AGOSTO DE 1876 15 DE SETEMBRO DE 1876 1 DE OUTUBRO DE 1876 1 DE JANEIRO DE 1877 15 DE JANEIRO DE 1877 15 DE FEVEREIRO DE 1877 15 DE MARO DE 1877 15 DE ABRIL DE 1877 15 DE JUNHO DE 1877 1 DE NOVEMBRO DE 1877 15 DE NOVEMBRO DE 1877 1 DE DEZEMBRO DE 1877 15 DE DEZEMBRO DE 1877 1 DE JANEIRO DE 1878

    1 DE JULHO DE 1876 I

  • Dou comeo crnica no momento em que o Oriente se esboroa e a poesia parece expirar s mos grossas do vulgacho. Pobre Oriente! Msera poesia! Um profeta surgiu em uma tribo rabe, fundou uma religio, e lanou as bases de um imprio; imprio e religio tm uma s doutrina, uma s, mas forte como o granito, implacvel como a cimitarra, infalvel como o Alcoro. Passam os sculos, os homens, as repblicas, as paixes; a histria faz-se dia por dia, folha a folha; as obras humanas alteram-se, corrompem-se, modificam-se, transformam-se. Toda a superfcie civilizada da terra um vasto renascer de coisas e idias. S a idia muulmana estava de p; a poltica do Alcoro vivia com os paxs, o harm, a cimitarra e o resto. Um dia, meia dzia de rapazes libertinos iscados de Joo Jacques e de Benjamim Constant, ainda quentes do ltimo discurso de Gladstone ou do mais recente artigo do Courrier de l'Europe; meia dzia de rapazes, digo eu, resolveram dar com o monumento bizantino em terra, abrir o ventre ao fatalismo e arrancar de l uma carta constitucional. Pelas barbas do Profeta! H nada menos maometano do que isto? Abdul-Aziz, o ltimo sulto ortodoxo, quis resistir ao 89 turco; mas no tinha sequer o exrcito, e caiu; e, uma vez cado, deitou-se da janela da vida rua da eternidade. O Alcoro fala de dois anjos negros de olhos azuis, que descem a interrogar os mortos. O ex-padix foi naturalmente inquirido como os outros: Quem teu senhor? Al. Tua religio? lsl. Teu profeta? Maom. H um s deus e um s profeta? Um s. La illah il Allah, ve Muhameden ressul Allah. Perfeito. Acompanha-nos. O pobre sulto obedeceu. Chegando porta das delcias eternas achou o profeta sentado em coxins espirituais, resguardado por um guarda-sol metafsico. Que vens c fazer? perguntou ele. Abdul explicou-se, referiu o seu infortnio; mas o profeta atalhou-o, clamando: Cala-te! s mais do que isso, s o destruidor da lei, o inimigo do Isl. Tu fizeste possvel o grmen corruptor das minhas grandes instituies, pior que a f de Cristo, pior que a inveja dos russos, pior que a neve dos tempos; tu fizeste o grmen constitucional. A Turquia vai ter uma cmara, um ministrio responsvel, uma eleio, uma tribuna, interpelaes, crises, oramentos, discusses, a lepra toda do parlamentarismo e do constitucionalismo. Ah! quem me dera Omar! ah!

  • quem me dera Omar! Naturalmente Abdul, se o profeta chorou naquele ponto, ofereceu-Ihe o seu leno de assoar, o mesmo que na mitologia do serralho substitui as setas de Cupido; ofereceu-lho, mas provvel que o profeta lhe desse em troco o mais divino dos pontaps. Se assim foi, Abdul desceu de novo terra, e h de estar a por algum canto... Talvez aqui na cidade. Se c viesse, possvel que a vista de alguns becos e certa quantidade de ces lhe fizessem crer que voltara a Constantinopla; iluso que aumentaria se ouvisse falar no div em que estou sentado e em vrias mesquitas do meu conhecimento. Mas o que eu apuro de tudo o que nos vem pelo cabo submarino e vapores transatlnticos que o Oriente acabou e com ele a poesia. S a abolio do serralho uma das revolues maiores do sculo. Aquele bazar de belezas de toda a casta e origem, umas baixinhas, outras altas, as loiras ao p das morenas, os olhos negros a conversar os olhos azuis, e os cetins, os damascos, as escumilhas, os narguils, os eunucos... Oh! sobretudo os eunucos! Tudo isso poesia que o vento do parlamentarismo dissolveu em um minuto de clera e num acesso de eloqncia. Vo-se os deuses e com eles as instituies. D vontade de exclamar com certo cardeal: Il mondo casca!

    II Ao menos, Abdul, se foi enterrado, foi morto e bem morto. No aconteceu o mesmo quele sujeito do Cear, a quem quiseram dar a ltima casa, estando ele vivo, e mais que vivo. Um minuto mais, tinha ele cinco palmos de terra sobre o ventre, por outras palavras um suplcio maior que o de todos os que inventou Dante. Acordou a tempo, com mgoa talvez de um ou mais oradores que levavam redigidas e lacrimejadas as virtudes do defunto, e acharam naturalmente pouca cortesia da parte do ressuscitado. Mas aqui vai o melhor. Dizem os jornais que o servio foi preparado s pressas; que o escrivo do registro teve de interromper o alistamento dos votantes para ir registrar o bito de Manuel da Gata. Ressuscitado este, desfez o enterro, mas no se desfez a nota do cemitrio. Manuel da Gata pode viver cem anos mais; civilmente est, no s morto, mas at sepultado no cemitrio, cova nmero tantos. Quem nos afiana que isto no uma trica eleitoral? Manuel da Gata morreu; tanto morreu, que foi enterrado. Se ele aparecer a reclamar o seu direito, dir-lhe-o que no ele; que o Gata autntico jaz na eternidade; que ele um Gata apcrifo, uma contrafao do verdadeiro Gata, que Deus tem! Esboo apenas a idia; os polticos que lhe dem agora a cor e o movimento.

  • III O que eu no esbocei, decerto, foi o jantar dado ao Blest Gana. Qual esboar! Saiu-me acabado... dos dentes, acabado como ele merecia que fosse, por que era escolhido. A imprensa da capital brilhou; meteu-se testa de uma idia de simpatia, e levou-a por diante, mostrando-se capaz de unio e perseverana. O jantar era o menos; o mais, o essencial era manifestar a um cavaleiro digno de todos os respeitos e afeies a saudade que ele ia deixar entre os brasileiros, e foi isso o que claramente e eloqentemente disseram por parte da imprensa um jornalista militante, Quintino Bocaiva, e um antigo jornalista, o Visconde do Rio Branco. Respeito as razes que teve o Chile para no fazer duas da nica legao que tem para c dos Andes, ficando exclusivamente no Rio de Janeiro o ministro que por tantos anos representou honestamente o seu pas; mas sempre lhe digo que nos levou um amigo velho, que nos amava e a quem amvamos como ele merecia. Blest Gana costumava dizer, nas horas de bom humor, que era poeta de vocao e diplomata de ocasio. Era injusto consigo mesmo; a vocao era igual em ambos os ramos. Somente, a diplomacia abafava o poeta, que no podia acudir ao mesmo tempo a uma nota que passava e a uma estrofe que vinha do cu. Ainda se estivesse aqui s, v; sempre lhe daramos algum tempo de poetar. Mas ache um homem algum lazer potico andando a braos com a Patagnia e o Dr. Alsina! Sou amigo do ilustre chileno h dez anos; e ainda possuo e possuirei um retrato seu, com esta graciosa quadrinha:

    Vers en ese retrato De semejanza perfecta, La imagen de un mal poeta Y poco peor literato.

    Nem mau poeta, nem pior literato; excelente em ambas as coisas, e amigo e bom; razes de sobra para lastimar que a necessidade poltica no-lo levasse.

    IV Sobre notas tivemos esta quinzena duas espcies, as falsas e as da pera italiana, um velho calembour, rafado, magro e decrpito que h de viver ainda muito tempo. Por qu? Porque acode logo boca. pera italiana uma maneira de falar. Reuniram-se alguns artistas, que vivem h muito entre ns, e cantavam o Trovador; prometem cantar algumas peras mais. So bons? No sei, porque no os fui ainda ouvir; mas das notcia benignas dos jornais, concluo que, um no cantou mal, outro interpretou bem algumas passagens, o coro de mulheres esteve fraquinho e o de homens foi bem sofrvel e no se achava mal ensaiado.

  • So as prprias expresses de um dos mais competentes crticos. Que concluir depois, seno que o pblico fluminense uma da melhores criaturas do mundo? Ele ouviu Stoltz, Lagrange, Tamberlick, Charton, Bouch e quase todas as celebridades de h anos. Benvolo e protetor do trabalho honesto, no quer saber se os atuais cantores lhe daro os gozos de outro tempo; acode a ampar-los e faz bem. Balzac fala de um jogador inveterado e sem vintm que, presente nas casas de tavolagem, acompanhava mentalmente o destino de uma carta, parava nela um franco ideal, ganhava ou perdia, tomava nota das perdas e ganhos, e enchia a noite desse modo. O pblico fluminense esse jogador, sem vintm; ficou-lhe o vcio musical sem os meios de o satisfazer. Vai tavolagem, acompanha o destino de uma nota, reconhece s vezes que falsa, mas troca-a mentalmente por outra que ouviu em 1853.

    V Semelhante fenmeno no pertence companhia dos ditos que representa no Teatro Imperial. O pior que acho na Companhia dos Fenmenos o galicismo. O empresrio quis provavelmente dizer Companhia dos Prodgios, das Coisas Extraordinrias. Felizmente para ele, o pblico no estranhou o nome, e, se o empresrio no tem por si os lexicgrafos, tem o sufrgio universal; isso lhe basta. este porm um daqueles casos em que a eleio censitria prefervel. Que tais sejam os tais fenmenos ou prodgios, no sei, porque os no vi. E j o leitor concluir daqui o valor de um cronista que pouco v do que fala, uma espcie de urso que se no diverte. Que se no diverte? uma maneira de entender assaz arriscada. Alegarei que eu, geralmente, sou pouco inclinado a prodgios. Foram convidar um lacedemnio a ir ouvir um homem que imitava com a boca o canto do rouxinol. "Eu j ouvi o rouxinol", respondeu ele. A mim, quando me falaram de um homem que tocava flauta com as prprias mos, respondi: "Eu j ouvi o Calado". Presuno de fluminense que quer ser lacedemnio. No repetirei o dito em relao ao homem que toca rabeca com os ps; seria cair numa repetio de mau gosto. No direi que j ouvi o Gravenstein ou o Muniz Barreto, porque alm de tocar, o dito homem penteia-se, acende um charuto, joga cartas, desarrolha uma garrafa, uma infinidade de coisas que no fazem os meus nem os ps do leitor. H outro que engole uma espada, e uma dama que, fora de saltos mortais, chegar imortalidade.

  • VI Um correspondente do Piau escreve para esta Corte as seguintes linhas: "Esteve por alguns dias na chefatura o juiz de direito da capital, Dr. Jesuno Martins, que etc." Tenho lido outras vezes que a chefana perdeu um honrado magistrado; no poucas que mal anda o chefado nas mos de Fulano; outras enfim que a chefao vai caminhando ao abismo. Ser preciso observar a todos os cavalheiros que cometem semelhante descuido, que no h chefana, nem chefado, nem chefao, nem chefatura, mas to-somente chefia?

    1 DE AGOSTO DE 1876 I

    Hoje posso expetorar meia dzia de bernardices sem que o leitor d por elas. A razo no outra seno a de ser o leitor um homem que se respeita, ama o belo, possui costumes elegantes: conseguintemente, no tem orelhas para crnicas, nem outras coisas nfimas. Suas orelhas andam de molho, reservam-se para as grandes e belas vozes que esto prestes a chegar do Rio da Prata. Antes de ir mais longe, convm advertir que o fato de nos virem as celebridades lricas do Rio da Prata um fenmeno que, em 1850, seria puramente milagre; mas que hoje, mediante os progressos do dia, parece a coisa mais natural do mundo. H incrdulos, verdade; h ombros que se levantam, espritos que do seus muxoxos de dvida. Mas qual foi a verdade nova que ainda no encontrou resistncias formais? Colombo andou mendigando uma caravela para descobrir este continente; Galileu teve de confessar que a nica bola que girava era a sua. Estes dois exemplos ilustres devem servir de algum lenitivo aos cantores platenses.

    II Demais os incrdulos, se so duros, so em nfimo nmero; nmero verdadeiramente ridculo. Porquanto, ainda, os cantores no deram amostra, j no digo de uma nota, mas somente de um espirro ou de um aperto de mo, e j os bilhetes esto todos tomados, a preos de primssimo cartelo. Donde os filsofos podem concluir com segurana que as vozes no so a mesma coisa que os nabos. Credo, quia absurdum era a mxima de Santo Agostinho. Credo, quia carissimum a do verdadeiro dilettanti. Ao preo elevado dos bilhetes corresponde os dos vencimentos dos cantores. S o tenor recebe por ms oito contos e oitocentos mil-ris! No sei que haja na crtica moderna melhor definio de um tenor do que esta dos oito contos, a no ser outra de dez ou quinze. Que me importa agora ouvir as explicaes tcnicas dos crticos para saber se o

  • tenor tem grande voz e profundo estudo? J sei, j o sabemos todos; ele tem uma voz de oito contos e oitocentos; devo aplaudi-lo com ambas as luvas, at arrebent-las. Vejam a superioridade da msica sobre a poltica. Cavour fez a Itlia um pau por um olho, e no sonhou nunca receber ordenado tamanho. Mas um jovem de olho azul e bigode loiro, tendo a boa fortuna de engolir um canrio ou outra ave equivalente, s por esse motivo, e por outros que seria longo desfiar, mete Cavour num chinelo. Cavour morreu talvez com pena de no ter sido bartono. No sei quanto vence o soprano; mas deve ser grosso cabedal, em vista do tenor, e porque tambm clebre. Imaginemos outro tanto. Ora, expirou h pouco uma mulher, que me ho de conceber tinha um gnio maior que o do soprano referido, mulher que ocupa um dos mais altos lugares entre os prosadores de seu sculo. Madame Sand nunca venceu tanto por ms. Rendeu-lhe menos Indiana ou Mauprat do que rendem ao soprano de que trato meia dzia de sustenidos bem sustenidos. Oh! se tu tens algum filho, leitor amigo, no o faas poltico, nem literato, nem estaturio, nem pintor, nem arquiteto! Pode ter algum pouco de glria, e essa mesma pouca; muita que seja, nem s de glria vive o homem. Cantor, isso sim, isso d muitos mil cruzados, d admirao pblica, d retratos nas lojas; s vezes chega a dar aventuras romanescas.

    III Por fortuna de Alexandre Herculano, esta notcia lrica s invadiu a Corte depois de anunciado o seu azeite. Se o azeite se demora uma semana, ningum fazia caso dele; ningum lhe reparava na notcia, nem nos mritos. Achou o tal azeite seus admiradores, como o Meneses do Jornal, e seus crticos, como o Serra da Reforma. Eu chego tarde para ser uma das duas coisas; prefiro ser ambos ao mesmo tempo. E no tendo visto ainda o azeite, estou na melhor situao para dar sobre ele o meu parecer. Quem era certo cavaleiro italiano que gastou a vida a duelar-se em defesa da Divina Comdia, sem nunca a ter lido? Eu sou esse cavaleiro apenas por um lado, que o lado dos que dizem que, a no fazer o Herculano livros de histria, deve fazer outra coisa. Mas confesso que preferia ao p do seu azeite o seu estilo; e de bom grado receberia de suas mos o livro e a luz. Dar-me ele a luz e o Sr. *** os livros, uma disparidade que no chega a vencer o sono... por melhor que seja o azeite. Suspendamos o riso, que alheio a estas coisas. Sunt lacrimae rerum. Pois qu! Um homem levanta um monumento, escreve o seu nome ao lado de Grote e Thierry, esculpe um Eurico, desenterra da crnica admirveis novelas; um grande talento, uma erudio de primeira ordem, e no vigor da idade retira-se a uma quinta, faz da banca um lagar, engarrafa os seus merecimentos, entra em concorrncia com o Sr. N. N. e nega ao mundo o que lhe no pertence a ele!

    IV No foi esse o nico prodgio da quinzena. Alm dessa e da companhia lrica (a 8:000$000 cada garganta), houve o projeto de constituio turca, dado pelo

  • Jornal do Comrcio. No sei se tal constituio chegar a reger a Turquia; mas foi proposta, e tanto basta para deixar-me de boca aberta. O art. 1 desse documento diz que o imprio otomano como Estado no tem religio: reconhece todos os cultos, protege-os e subvenciona-os. Eu palpo-me, esfrego os olhos, dou murros no peito e na cabea, agito os braos, passeio de um lado para outro, a fim de certificar-me que no estou sonhando. O Alcoro subvencionando o Evangelho! O janzaro do cr ou morre reconhecendo todos os cultos e dando a cada um os meios de subsistncia! Se isto no o fim do mundo, pelo menos o penltimo captulo. Que abismo entre Omar e Mourad V! Alegre-se quem quiser; eu fico triste. A tolerncia dos cultos tira-me a cor local da Turquia, desnatura a histria, estabelece certas acomodaes entre o Alcoro e o cu. Substitui-se a Sublime Porta por uma trapeira constitucional.

    V No meio de tanta novidade azeite herculano, pera italiana, liberdade turca, no quis ficar atrs o Sr. Lus Sacchi. No conheci Lus Sacchi; li porm o testamento que ele deixou e os jornais deram a lume. Ali diz o finado que seu corpo deve ir em rede para o cemitrio, levado por seus escravos, e que na sepultura h de se lhe gravar este epitfio: "Aqui jaz Lus Sacchi que pela sua sorte foi original em vida e quis s-lo depois da sua morte". Gosto disto! A morte coisa to geralmente triste, que no se perde nada em que alguma vez aparea alegre. Lus Sacchi no quis fazer do seu passamento um quinto ato de tragdia, uma coisa lgubre, obrigada a sangue e lgrimas. Era vulgar: ele queria separar-se do vulgo. Que fez? Inventou um epitfio, talvez pretensioso, mas jovial. Depois dividiu a fortuna entre os escravos, deixou o resto aos parentes, embrulhou-se na rede e foi dormir no cemitrio. No direi que haja profunda originalidade neste modo de retirar-se do mundo. Mas, em suma, a inteno que salva, e se o reino dos cus tambm dos originais, l deve estar o testador italiano. Amm!

    VI Na hora em que escrevo estas linhas, preparo-me para ir ver um sapatinho de cetim, o sapatinho que Dona Lucinda nos trouxe da Europa e que o Furtado Coelho vai mostrar ao pblico fluminense. No vi ainda o sapato e j o acho um primor. Vejam o que parcialidade! Juro a todos os deuses que o sapatinho foi roubado mais bela das sultanas do padix, ou talvez mais ideal das huris do profeta. Imagino-o todo de arminho, cosido com cabelos da aurora, forrado com um pedacinho do cu... Que querem? Eu creio que h de ser assim, porque impossvel que o Furtado nos trouxesse um mau sapato. Mas que o trouxesse! Eu consentia nisso, e no mais que fosse de seu gosto,

  • mediante a condio de que no havia deixar-nos outra vez. Entendamo-nos; ele pertence-nos. Viu muita coisa. Teve muito aplauso, muita festa, mas a aurora das suas glrias rutilou neste cu fluminense, onde, se no rutilou tambm a do talento de sua esposa, j recebeu muitos dos seus melhores raios juvenis. Que fiquem; o desejo de todos e meu.

    15 DE AGOSTO DE 1876 I

    No momento em que escrevo estas linhas, espreito c de longe a leitora a preparar-se para a festa da Glria. H duas sortes de leitoras: a que vai ao outeiro, toma gua benta, v o fogo de artifcio, e vai a p para casa, se no pilha um bond; e a que vai de casa s nove horas para ir ao baile da Secretaria de Estrangeiros. Uma e outra preparam-se neste instante; sonham com a festa, pedem a Nossa Senhora que no mande chuva. A segunda espera que a Clemence lhe apronte o vestido a tempo e hora oportuna; a primeira d os ltimos pontos na saia do que h de estrear hoje de tarde. Esta festa da Glria a Penha elegante, do vestido escorrido, da comenda e do claque; a Penha a Glria da rosca no chapu, garrafo ao lado, ramo verde na carruagem e turca no crebro. Ao cabo de tudo, a mesma alegria e a mesmssima diverso, e o que eu lastimo que o fogo de artifcio da Glria e o garrafo da Penha levem mais fiis que o objeto essencial da festividade. Se certo que tout chemin mne Rome, no certo que tout chemin mne au ciel. Leve ou no leve, a verdade que este ano h grande entusiasmo pela festa da Glria, e dizem-se maravilhas do baile da Secretaria de Estrangeiros. Um amigo meu recusa danar h seis semanas, com o plausvel motivo de que no quer gastar as pernas. S fala em francs para conversar com os diplomatas, estuda a questo do Oriente para dizer alguma coisa ao ministro da Inglaterra. Traz de cor a frase com que h de cortejar o ministro da Itlia e o chefe da legao pontifcia. Ao primeiro dir: Itlia far da s. Ao segundo: Super hanc petram... No um amigo, um manual de conversao.

    II Estou convencido de que esse amigo no foi s corridas. No foi ou no vai? Na hora em que escrevo no vai; naquela em que o leitor pode ler estas linhas no foi. Eu no sei combinar estes tempos da crnica. V ou no v, fosse ou no fosse, o que eu quero dizer que o dito meu amigo brilha pela ausncia na festa do Prado Fluminense. Eu sou obrigado a confessar que tambm l no ponho os ps, em primeiro lugar porque os tenho modos, em segundo lugar porque no gosto de ver correr cavalos nem touros. Eu gosto de ver correr o tempo e as coisas; s isso. s vezes

  • corro eu tambm atrs da sorte grande, e correria adiante de um cacete, sem grande esforo. Quanto a ver correr cavalos... Vou dizer a minha opinio toda. Cada homem simpatiza com um animal. H quem goste de ces: eu adoro-os. Um co, sobretudo se me conhece, se no guarda a chcara de algum amigo, aonde vou, se no est dormindo, se no leproso, se no tem dentes, oh! um co adorvel. Outros amam os gatos. So gostos; mas sempre notarei que esse quadrpede pachorrento e voluptuoso sobretudo amado dos homens e mulheres de certa idade. Os pssaros tem seus crentes. Alguns gostam de todo o bicho careta. No so raros os que gostam do bicho de cozinha. Eu no gosto do cavalo. No gosto? Detesto-o; acho-o o mais intolervel dos quadrpedes. um ftuo, um prfido, um animal corruto. Sob pretexto de que os poetas o tm cantado de um modo pico ou de um modo lrico; de que nobre; amigo do homem; de que vai guerra; de que conduz moas bonitas; de que puxa coches; sob o pretexto de uma infinidade de complacncias que temos para com ele, o cavalo parece esmagar-nos com sua superioridade. Ele olha para ns com desprezo, relincha, prega-nos sustos, faz Hiplito em estilhas. um elegante perverso, um tratante bem educado; nada mais. Vejam o burro. Que mansido! Que filantropia! Esse puxa a carroa que nos traz gua, faz andar a nora, e muitas vezes o genro, carrega fruta, carvo e hortalias, puxa o bond, coisas todas teis e necessrias. No meio de tudo isso apanha e no se volta contra quem lhe d. Dizem que teimoso. Pode ser; algum defeito natural que tenha um animal de tantos e to variados mritos. Mas ser teimoso algum pecado mortal? Alm de teimoso, escoiceia alguma vez; mas o coice, que no cavalo uma perversidade, no burro um argumento, ultima ratio.

    III E por falar neste animal, publicou-se h dias o recenseamento do Imprio, do qual se colige que 70% da nossa populao no sabem ler. Gosto dos algarismos, porque no so de meias medidas nem de metforas. Eles dizem as coisas pelo seu nome, s vezes um nome feio, mas no havendo outro, no o escolhem. So sinceros, francos, ingnuos. As letras fizeram-se para frases; o algarismo no tem frases, nem retrica. Assim, por exemplo, um homem, o leitor ou eu, querendo falar do nosso pas, dir: Quando uma Constituio livre ps nas mos de um povo o seu destino, fora que este povo caminhe para o futuro com as bandeiras do progresso desfraldadas. A soberania nacional reside nas Cmaras; as Cmaras so a representao nacional. A opinio pblica deste pas o magistrado ltimo, o supremo tribunal dos homens e das coisas. Peo nao que decida entre mim e o Sr. Fidlis Teles de Meireles Queles; ela possui nas mos o direito superior a todos os direitos. A isto responder o algarismo com a maior simplicidade:

  • A nao no sabe ler. H s 30% dos indivduos residentes neste pas que podem ler; desses uns 9% no lem letra de mo. 70% jazem em profunda ignorncia. No saber ler ignorar o Sr. Meireles Queles; no saber o que ele vale, o que ele pensa, o que ele quer; nem se realmente pode querer ou pensar. 70% dos cidados votam do mesmo modo que respiram: sem saber porque nem o qu. Votam como vo festa da Penha, por divertimento. A Constituio para eles uma coisa inteiramente desconhecida. Esto prontos para tudo: uma revoluo ou um golpe de Estado. Replico eu: Mas, Sr. Algarismo, creio que as instituies... As instituies existem, mas por e para 30% dos cidados. Proponho uma reforma no estilo poltico. No se deve dizer: "consultar a nao, representantes da nao, os poderes da nao"; mas "consultar os 30%, representantes dos 30%, poderes dos 30%". A opinio pblica uma metfora sem base; h s a opinio dos 30%. Um deputado que disser na Cmara: "Sr. Presidente, falo deste modo porque os 30% nos ouvem..." dir uma coisa extremamente sensata. E eu no sei que se possa dizer ao algarismo, se ele falar desse modo, porque ns no temos base segura para os nossos discursos e ele tem o recenseamento.

    IV Agora uma pgina de luto. Nem tudo foram flores e alegrias durante a quinzena. As musas receberam um golpe cruel. Veio do Norte a notcia de haver falecido o Dr. Gentil Homem de Almeida Braga. Todos os homens de gosto e cultores de letras ptrias sentiram o desaparecimento desse notabilssimo que o destino fez nascer na ptria de Gonalves Dias para no-lo roubar com a mesma idade com que nos arrebatou o grande poeta. Poeta tambm e prosador de elevado merecimento, o Dr. Gentil Homem de Almeida Braga, deixou algumas pginas, poucas em nmero, mas verdadeiros ttulos, que honram o seu nome e nos fazem lembrar dele. O Dr. Gentil Homem nas letras ptrias era conhecido pelo pseudnimo de Flvio Reimar. Com ele assinou belas pginas literrias, como o livro Entre o Cu e a Terra, livro que exprime bem o seu talento original e refletido. Deixou, segundo as folhas do Maranho, a traduo da Evangelinez, de Longfellow. Deve ser um primor. J. Serra j h meses nos deu na Reforma um excelente espcimen desse trabalho. Perdemo-lo; ele foi, prosador e poeta, dormir o sono eterno que j fechou os olhos de Lisboa e Odorico. Guardemos os seus escritos, enriqueamos com eles o peclio comum.

    15 DE SETEMBRO DE 1876

    I Este ano parece que remoou o aniversrio da Independncia. Tambm os aniversrios envelhecem ou adoecem, at que se desvanecem ou perecem. O dia 7 por ora est muito criana.

  • Houve realmente mais entusiasmo este ano. Uma sociedade nova veio festejar a data memorvel; e da emulao que houver entre as duas s teremos que lucrar todos ns. Ns temos fibra patritica; mas um estimulante de longe em longe no faz mal a ningum. H anos em que as provncias nos levam vantagem nesse particular; e eu creio que isso vem de haver por l mais pureza de costumes ou no sei que outro motivo. Algum h de haver. Folgo de dizer que este ano no foi assim. As iluminaes foram brilhantes; e quanto povo nas ruas, suponho que todos os dez ou doze milhes que nos d a Repartio de Estatstica estavam concentrados nos largos de So Francisco e da Constituio e ruas adjacentes. No morreu, nem pode morrer a lembrana do grito do Ipiranga.

    II Grito do Ipiranga? Isso era bom antes de um nobre amigo, que veio reclamar pela Gazeta de Notcias contra essa lenda de meio sculo. Segundo o ilustrado paulista no houve nem grito nem Ipiranga. Houve algumas palavras, entre elas a Independncia ou Morte, as quais todas foram proferidas em lugar diferente das margens do Ipiranga. Pondera o meu amigo que no convm, a to curta distncia, desnaturar a verdade dos fatos. Ningum ignora a que estado reduziram a Histria Romana alguns autores alemes, cuja pena, semelhante a uma picareta, desbastou os inventos de dezoito sculos, no nos deixando mais que uma certa poro de sucessos exatos. V feito! O tempo decorrido era longo e a tradio estava arraigada como uma idia fixa. Demais, que Numa Pomplio houvesse ou no existido coisa que no altera sensivelmente a moderna civilizao. Certamente belo que Lucrcia haja dado um exemplo de castidade s senhoras de todos os tempos; mas se os escavadores modernos me provarem que Lucrcia uma fico e Tarqunio uma hiptese, nem por isso deixa de haver castidade... e pretendentes. Mas isso histria antiga. O caso do Ipiranga data de ontem. Durante cinqenta e quatro anos temos vindo a repetir uma coisa que o dito meu amigo declara no ter existido. Houve resoluo do Prncipe D. Pedro, independncia e o mais; mas no foi positivamente um grito, nem ele se deu nas margens do clebre ribeiro. L se vo as pginas dos historiadores; e isso o menos. Emendam-se as futuras edies. Mas os versos? Os versos emendam-se com muito menos facilidade. Minha opinio que a lenda melhor do que a histria autntica. A lenda resumia todo o fato da independncia nacional, ao passo que a verso exata o reduz a uma coisa vaga e annima. Tenha pacincia o meu ilustrado amigo. Eu prefiro o grito do Ipiranga; mais sumrio, mais bonito e mais genrico.

  • III No foi igualmente bonito nem sumrio o rolo do Largo de So Francisco, no dia 8. O referido rolo, verdadeiro hors-d'oeuvre na festa, foi uma representao da guerra do Oriente. Os urbanos fizeram de srvios e os imperiais marinheiros de turcos. A estao do largo foi a Belgrado. Assim distribudos os papis, comeou a pancadaria, que acabou por deixar 19 homens fora de combate. No tendo havido ensaio, foi a representao excelente pela preciso dos movimentos, naturalidade do alvoroo, e verossimilhana dos ferimentos. S numa coisa a reproduo no foi perfeita: que os telegramas da Belgrado de c confessam as perdas, coisas que os da Belgrado de l nem mo de Deus Padre querem confessar.

    IV Quem se no importa com saber se os urbanos ou seus adversrios perderam ou no, e se o grito da Independncia foi ou no solto margem do Ipiranga, a companhia lrica. A companhia lrica despreocupa-se de problemas histricos ou blicos; ela s pensa nos problemas pecunirios, alis resolvidos desde que se anunciou. Pode dizer que chegou, viu e... embolsou os cobres. Efetivamente, o delrio de Buenos Aires chegou at c, e o erro fatal de no termos quarentena para os navios procedentes de portos infeccionados deu em resultado acharmo-nos todos delirantes. Que insnia, cidados! como dizia o poeta da Farslia. Cadeiras a 40 bicos! Camarotes a 200 paus! Ainda se fosse para ver o Micado do Japo, que nunca aparece, compreende-se; mas para ouvir no dia 1 alguns cantores, alis bons, que a gente pode ouvir no dia 12 pelo preo de casa... Eu disse o Micado, como coisa rara, e podia dizer tambm os olhos da Sra. Elena Samz, que so mais raros ainda. Confesso que so os maiores que os meus tm visto. Ou os olhos da contralto, ou os bispos da Africana. No so bispos aqueles sujeitos, no so; no passam de meia dzia de mendigos, assalariados para expetorar algumas notas, a tantos ris cada um. Ou so bispos disfarados. Se no so bispos disfarados, so caixeiros do Pobre Jaques, que andam mostrando as alfaias do patro. Bispos, nunca. Na hora em que escrevo, tenho minha espera as luvas para ir aos Huguenotes. Acho que a coisa h de sair boa; entretanto veremos.

    V

  • Admirei-me algumas linhas atrs, da prodigalidade do pblico em relao companhia Ferrari. Pois no havia de que, visto que, apesar dela, a est a do Sr. Torresi, cujas assinaturas esto tomadas todas. Dentro de poucos dias no haver meio de dar os bons dias, pagar uma letra ou pedir uma fatia de presunto, sem ser por msica. A vida fluminense vai ser uma partitura. a imprensa uma orquestra, a maonaria um coro de punhais. Amanh almoaremos em l menor; calaremos as botas em trs por quatro, e as ruas a trs por dois. O Sr. Torresi promete dar tudo o que o Sr. Ferrari nos der, e mais o Salvador Rosa. Tambm promete moas bonitas, cujos retratos j esto na casa do Sr. Casteles, em frente s suas rivais. Pela imprensa disputa-se a questo de saber qual o primeiro teatro da capital, se o de So Pedro, se o Dom Pedro II. De um e outro lado afirma-se com a mesma convico que o teatro do adversrio inferior. Est-me isto a parecer a mania dos primeiros atores; o 1 ator Fulano, o 1 ator Sicrano, o 1 ator Paulo, o 1 ator Sancho, o 1 ator Martinho. O que sair daqui no sei; mas se a coisa no prova entusiasmo lrico, no sei que mais querem os empresrios.

    VI Talvez sejam to exigentes como os moradores da Rua das Laranjeiras, que esto a bradar que a mandem calar, como se no bastasse morar em rua de nome to potico. certo que, em dias de chuva, a rua fica pouco menos lamacenta que qualquer stio do Paraguai. Tambm verdade que duas pessoas, necessitadas de comunicar uma coisa outra, com urgncia podem vir desde o Cosme Velho at o Largo do Machado, cada uma de sua banda, sem achar lugar em que atravessem a rua. Finalmente, no se contesta que sair do bond, em qualquer outra parte da dita rua, empresa s comparvel passagem do mar Vermelho, que ali escuro. Tudo isso verdade. Mas em compensao, que bonito nome! Laranjeiras! Faz lembrar Npoles; tem uns ares de idlio: a sombra de Tecrito deve por fora vagar naquelas imediaes. No se pode ter tudo, nome bonito e calamento; dois proveitos no cabem num saco. Contentem-se os moradores com o que tm, e no peam mais, que ambio.

    VII

  • Suponha o pblico que um sol, e olhe em volta de si: ver o Globo a rode-lo, mais forte do que era at h pouco e prometendo longa vida. Eu gosto de todos os globos, desde aqueles (lcteos) que tremiam quando Vnus entrou no cu (viu Lusadas), at o da Rua dos Ourives, que um Globo como se quer. Falando no sentido natural, direi que o Globo honra a nossa imprensa e merece ser coadjuvado por todos os que amam essa alavanca do progresso, a mais potente de todas. Hoje a imprensa fluminense brilhante. Contamos rgos importantes, neutros ou polticos, ativos, animados e perseverantes. Entre eles ocupa lugar distinto o Globo, a cujo talentoso redator e diretor, Sr. Quintino Bocaiva, envio meus emboras, no menos que ao seu folhetinista Oscar dAlva, cujo verdadeiro nome anda muita gente ansiosa para saber qual seja.

    1 DE OUTUBRO DE 1876 I

    No reinaram s as vozes lricas nesta quinzena ltima; fez-lhes concorrncia o boi. O boi, substantivo masculino, com que ns acudimos s urgncias do estmago, pai do rosbife, rival da garoupa, ente pacfico e filantrpico, no justo que viva... isto , que morra obscuramente nos matadouros. De quando em quando, d-lhe para vir perfilar-se entre as nossas preocupaes, como uma sombra de Bnquo, e faz bem. No o comemos? justo que o discutamos. Veio o boi quando gozvamos com os ouvidos as vozes do tenor Gayarre, e com os olhos a nova mutao da cena em Constantinopla; veio, estacou as pernas, agitou a cauda e olhou fixamente para a opinio pblica.

    II A opinio pblica detesta o boi... sem batatas fritas; e nisto, como em outras coisas, parece-se a opinio pblica com o estmago. Vendo o boi a fit-la, a opinio estremeceu; estremeceu e perguntou o que queria. No tendo o boi o uso da palavra, olhou melancolicamente para a vaca; a vaca olhou para Minas; Minas olhou para o Paran; o Paran olhou para a sua questo de limites; a questo de limites olhou para o alvar de 1749; o alvar olhou para a opinio pblica; a opinio olhou para o boi. O qual olhou para a vaca; a vaca olhou para Minas; e assim iramos at a consumao dos sculos, se no interviesse a vitela, em nome de seu pai e de sua me. A verdade fala pela boca dos pequeninos. Verificou-se ainda uma vez esta observao, expetorando a vitela estas reflexes, to sensatas quanto bovinas: Gnero humano! Eu li h dias no Jornal do Comrcio um artigo em que se fala dos interesses do produtor, do consumidor e do intermedirio; falta falar do interesse do boi, que deve pesar alguma coisa na balana da Repblica. O interesse do produtor vend-lo, o do consumidor compr-lo, o do intermedirio impingi-lo; o do boi justamente contrrio a todos trs. Ao boi importa pouco que o matem em nome de um princpio ou de outro, da livre concorrncia ou do

  • monoplio. Uma vez que o matem, ele v nisso, no um princpio, mas um fim, e um fim de que no h meio de escapar. Gnero humano! no zombeis esta pobre espcie. Qu! Virglio serve-se-nos para suas comparaes poticas; os pintores no deixam de incluir-nos em seus emblemas da agricultura; e no obstante esse prstimo elevado e esttico, vs trazei-nos ao matadouro, como se fssemos simples recrutas! Que direis vs se, em uma repblica de touros, um deles se lembrasse de convidar os outros a comer os homens? Por Ceres! poupai-nos por algum tempo!

    III Conheo um homem que anda meio desconfiado de que no h guerra da Srvia nem imprio turco; conseqentemente, que no h sultes cados, nem suicidados. Mas que so as notcias com que os paquetes vm perturbar nossas digestes? Diz ele que uma pera de Wagner e que os jornais desta corte traduzem mal as notcias que acham nos estrangeiros. A pera, segundo este meu amigo, intitula-se Os trs Sultes ou o Sonho do Gro-Vizir, msica de Wagner e libreto de Gortchakoff. Tem numerosos quadros. A introduo no estilo herzegoviano um primor, conquanto fosse ouvida sem grande ateno por parte do pblico. A ateno comeou quando rompeu o dueto entre Milano e Abdul-Aziz, e depois o coro do softas, que derrocam Abdul... O mais sabemos todos. A este meu amigo, replico eu dizendo que a coisa no pera, mas guerra; sendo prova disso o telegrama h dias publicado, que trouxe a notcia de achar-se em comeo de paz. Respondeu-me que iluso minha. H decerto um coro que entra cantando: Pace, pace, mas um coro. Que queres tu? Antigamente as peras eram msica, hoje so isso e muita coisa mais. V os Huguenotes, com a descarga de tiros no fim. Pois a mesma coisa a nova composio de Wagner. H tiros, batalhes, mulheres estripadas, crianas partidas ao meio, aldeias reduzidas a cinzas, mas tudo pera.

    IV Daquela pera ao Salvador Rosa a transio fcil; mas, enquanto meu talentoso colega dos teatros falar mais detidamente da composio de Carlos Gomes e da companhia, eu quero daqui dar um aperto de mo ao inspirado maestro brasileiro, cujo nome cresce na estima e na venerao da Itlia e da Europa. No se iludam os que desde os primeiros dias confiaram nele. Ele paga hoje essa confiana com os louros de que cerca o nome brasileiro. Sinto no poder manifestar iguais sentimentos companhia Torresi, mas tenho aqui um calo no p... Ui!

    V Comearam a aparecer mulheres santas e milagrosas. Na Bahia aparece uma que no come. No comer sinal vivo da santidade, donde eu concluo que o hotel estrada real do inferno. A mulher de que se trata tem-se visto tonta com as romarias dos seus devotos, que j so muitos. Dizem os jornais que a polcia foi obrigada a mandar soldados para pr alguma ordem nas visitas espirituais mulher santa. Algumas supem

  • que a mulher no come por molstia, e no falta quem diga que ela come s escondidas. Pobre senhora! De outro lado, no me lembra em que provncia, apareceu uma velha milagrosa. Cura doenas incurveis com ervas misteriosas. Isto com alguns coros e um tenor d meio ato de uma pera Meyerbeer. S a entrada da velha, que deve ter por fora queixo comprido, visto que as velhas fantsticas no usam queixo curto, s a entrada era de arrepiar as carnes e enlevar os espritos.

    Io sono una gran mdica Dottora enciclopdica.

    H quem diga que tambm essa mulher santa. Eu no gosto de ver as mulheres santas e os milagres a cada canto; eles e elas tm suas ocasies prprias.

    VI Agora, o que ainda mais grave que tudo, a eleio, que a esta hora se comea a manipular em todo este vasto imprio. Em todo... uma maneira de falar. H solues de continuidade, abertas pelas relaes. Na Corte, por exemplo, no teremos desta vez a festa quatrienal. Tal como Niteri, que tambm faz relache par ordre. Dois espetculos de menos. Dois? Oito ou dez em todo o pas. No sei se o leitor tem alguma vez refletido nas coisas pblicas, e se lhe parece que seria a magna descoberta do sculo, aquela que nos desse um meio menos incmodo e mais pacfico de exercer a soberania nacional. A soberania nacional a coisa mais bela do mundo, com a condio de ser soberania e de ser nacional. Se no tiver essas duas coisas, deixa de ser o que para ser uma coisa semelhante aos Trs Sultes, de Wagner, quero dizer muito superior, porque o Wagner, ou qualquer outro compositor apenas nos d a cabaletta, diminutivo de cabala, que o primeiro trecho musical da eleio. Os coros so tambm muito superiores, mais numerosos, mais bem ensaiados, o ensemble mais estrondoso e perfeito. C na corte no temos desta vez cor nem cabala nem finais. No h companhia. Por isso os diletantes emigram em massa para a provncia onde se prepara grande ovao aos cantores.

    VII Parece que comea a ser calada... dou-lhe em cem, dou-lhe em mil... a Rua das Laranjeiras... Mas silncio! isto no assunto de interesse geral.

    VIII De interesse geral o fundo da emancipao, pelo qual se acham libertados em alguns municpios 230 escravos. S em alguns municpios! Esperemos que o nmero ser grande quando a libertao estiver feita em todo o

  • imprio. A lei de 28 de setembro fez agora cinco anos. Deus lhe d vida e sade! Esta lei foi um grande passo na nossa vida. Se tivesse vindo uns trinta anos antes estvamos em outras condies. Mas h 30 anos, no veio a lei, mas vinham ainda escravos, por contrabando, e vendiam-se s escancaras no Valongo. Alm da venda, havia o calabouo. Um homem do meu conhecimento suspira pelo azorrague . Hoje os escravos esto altanados, costuma ele dizer. Se a gente d uma sova num, h logo quem intervenha e at chame a polcia. Bons tempos os que l vo! Eu ainda me lembro quando a gente via passar um preto escorrendo em sangue, e dizia: "Anda diabo, no ests assim pelo que eu fiz!" Hoje... E o homem solta um suspiro, to de dentro, to do corao... que faz cortar o dito. Le pauvre homme!

    1 DE JANEIRO DE 1877 I

    A. S. EX. REVMA. SR. BISPO CAPELO-MOR

    Permita-me V. EX. Revma. que eu, um dos mais humildes fiis da diocese, chame sua ateno para um fato que reputo grave. Ignoro se V. Ex. Revma., j leu um livro interessante dado a lume na quinzena que ontem findou, O Rio de Janeiro, Sua Histria e Monumentos, escrito por um talentoso patrcio seu e meu, o Dr. Moreira de Azevedo. Naquele livro est a histria da nossa cidade, ou antes uma parte dela, porque apenas o primeiro volume, ao qual se ho de seguir outros, to copiosos de notcias como este, folgo de esper-lo. No sei se V. Ex. Revma. como eu. Eu gosto de contemplar o passado, de viver a vida que foi, de pensar nos homens que antes de ns, ou honraram a cadeira que V. Ex. Revma. ocupa, ou espreitaram, como eu, as vidas alheias. Outras vezes estendo o olhar pelo futuro adiante, e vejo o que h de ser esta boa cidade de So Sebastio um sculo mais tarde, quando o bond for um veculo to desacreditado como a gndola, e o atual chapu masculino uma simples reminiscncia histrica. Podia contar-lhe em duas ou trs colunas o que vejo no futuro e o que revejo no passado; mas, alm de que no quisera tomar o precioso tempo de V. Ex. Reverendssima, tenho pressa de chegar ao ponto principal desta carta, com que abro a minha crnica. E vou j a ele. H no dito livro do Dr. Moreira de Azevedo um captulo acerca da igreja da Glria, no me refiro do Outeiro, mas do Largo do Machado. Nesse captulo, que vai da pgina 185 pgina 195, do-se interessantes notcias do nascimento da igreja da qual traz uma excelente descrio. Diz-se a, pgina 190, o seguinte:

    "Concluiu-se a torre em 1875, e em 11 de junho desse ano colocou-se ali um sino; mas h a idia de colocar outros sinos afinados para tocarem por msica".

  • Para este ponto que eu chamo a ateno do meu prelado. Que lhe pusessem a torre, uma torre por cima daquela fachada, foi idia, piedosa decerto, mas pouco de aplaudir-se. No h talvez segundo exemplo debaixo do sol; tudo aquilo hurle de se voir ensemble. Contudo, repito, se a arte padece, a inteno merece respeito. Agora porm, Revmo. Sr. h idia de lhe porem sinos afinados: com o fito de tocar por msica, uma reproduo da Lapa dos Mercadores. A Lapa dos Mercadores era uma igreja modesta, metida numa rua estreita, fora do movimento, pouco conhecida de uma grande parte da populao. Um dia deu-se o luxo dos sinos musicais; e dentro de duas semanas estava clebre. Os moradores do Largo do Pao, ruas do Ouvidor, Direita e adjacentes almoavam musicalmente todos os dias, aos domingos sobretudo. Era uma orgia de notas, um dilvio de sustenidos. Quem quer que fosse o regente, repinicava com um brio, um flego, uma alma, dignos de melhor emprego. E no pense V. Ex. Revma. que eram l msicas enfadonhas, austeras, graves, religiosas. No, senhor. Eram os melhores pedaos do Barbe Bleu, da Bela Helena, do Orfeu nos Infernos; uma contrafao de Offenbach, uma transcrio do Cassino. Estar-se missa ou nas cadeiras do Alcazar, salvo o respeito devido missa, era a mesma coisa. O sineiro, perdo, o maestro, dava um cunho jovial ao sacrifcio do Glgota, ladeava a hstia com a complainte do famoso polgamo Barba Azul:

    Madame, ah! Madame, Voyez mon tourmenter! Jai perdu ma femme Bien subitement.

    E as meninas, cujos pais, por um santo horror s comdias, no as levavam ao Alcazar, tinham o gosto de dividir o pensamento entre a Rua Uruguaiana e Rua da Amargura, isto sem cair em pecado mortal, porque em suma, desde que Offenbach podia entrar na igreja, era natural que os fiis contemplassem Offenbach. Nem era s Offenbach; Verdi, Bellini e outros maestros srios tinham tambm entrada nos sinos da Lapa. Creio ter ouvido a Norma e o Trovador. Talvez os vizinhos ouam hoje a Ada e o Fausto. No sei se entre Offenbach e Gounod, teve Lecoq algumas semanas de reinado. A Filha de Madame Angot alegrando a casa da filha de SantAna e So Joaquim, confesse V. Ex. que tem um ar extremamente moderno. Suponhamos, porm, que os primeiros trechos musicais estejam condenados, demos que hoje s se executem trechos srios, graves, exclusivamente religiosos. E suponhamos ainda, ou antes, estou certo de que no outra a inteno, se inteno h, em relao igreja da Glria; inteno de tocarem os sinos msicas prprias, adequadas ao sentimento cristo. Resta s o fato de serem musicais os sinos. Mas que coisa so sinos musicais? Os sinos, Exmo. Sr., tm uma msica prpria: o repique ou o dobre, a msica que no meio do tumulto da vida nos traz a idia de alguma coisa superior materialidade de todos os dias, que nos entristece, se de finados, que nos alegra, se festa, ou que simplesmente nos chama com um

  • som especial, compassado, sabido de todos. O Miserere de Verdi um pedao digno de igreja; mas se o pusessem nos sinos era... v l... era ridculo. Chateaubriand, que escreveu sobre os sinos, que no diria, se morasse ao p da Lapa? Dirigindo-me, pois, a V. Ex. tenho por fim solicitar sua ateno para o uso dos sinos musicais, que pode propagar-se na cidade toda, e transform-la numa imensa filarmnica. V. Ex. pode, com seus paternais conselhos, ter mo ao uso, bastando-lhe dizer que a igreja catlica uma coisa austera, que os sinos tm uma linguagem secular, uma harmonia nica. No a troquemos por outra, que despoj-los do seu encanto, quase mudar a feio ao culto. Nada mais me resta dizer a V. Ex..

    II Caiu-me h dias nas mos, embrulhando uma touca de criana, uma folha solta da Revista Popular. A Revista Popular foi a me do Jornal das Famlias, do qual o Sr. Garnier por conseguinte av e pai. A folha era justamente um pedao da crnica. A data de 26 de outubro de 1860. J l vo dezesseis anos, a vida de uma donzela, metade do ttulo de um melodrama, que por esse tempo ainda se representava: Artur ou Dezesseis Anos Depois. Vamos ao que importa. A referida crnica no dia 26 de outubro de 1860 terminava com esta notcia: O Catete projetou aniquilar o teatro caricato, que arrasta pesada existncia para as bandas de Botafogo, e ideou a construo de um belo templo, onde a arte dramtica no fosse rodada e escarnecida por um punhado de verdugos. Apenas foi concebida a idia, tratou-se logo de realiz-la; o Sr. Lopes de Barros incumbiu-se de traar a planta do edifcio, e com tanta percia se houve nesta tarefa, que criou um modelo de perfeio. A obra vai ser comeada dentro de poucos dias, e cedo ficar concluda, presidindo sua confeco a solidez, a elegncia e a comodidade para o espectador. Dizem-me que a companhia do Ginsio, a nica que tem compreendido a sua misso, a escolhida para ali representar, revezando com a companhia lrica, que tivermos, depois de edificado o teatro. Que resta de tamanho projeto? Nem talvez a planta. A idia foi rapidamente concebida, a planta executada; designou-se a companhia do Ginsio para ir representar no teatro novo; nada faltou, exceto o teatro.

    III Mas aquilo uma curiosidade velha, uma notcia morta. Venhamos a coisa novssima, posto que velhssima; ou antes velhssima, posto que novssima. J daqui percebe o leitor que aludo s galerias que se encontraram no Morro do Castelo.

  • H pessoas para quem no certo que haja uma frica, que Napoleo tenha existido, que Maom II esteja morto, pessoas incrdulas, mas absolutamente convencidas de que h no Morro do Castelo um tesouro dos contos arbicos. Cr-se geralmente que os jesutas, deixando o Rio de Janeiro, ali enterraram riquezas incalculveis. Eu desde criana ouvia contar isso, e cresci com essa convico. Os meus vizinhos, os vizinhos do leitor, os respectivos compadres, seus parentes e aderentes, toda a cidade em suma cr que h no Morro do Castelo as maiores prolas de Golconda. O certo que um destes dias acordamos com a notcia de que, cavando-se o Morro do Castelo, descobriram-se galerias que iam ter ao mar. A tradio comeou a tornar-se verossmil. Fiquei logo de olho aberto sobre os jornais. Disse comigo: Vamos ter agora, dia por dia, uma descrio da descoberta, largura da galeria encontrada, matria da construo, direo, altura e outras curiosidades. Por certo o povo acudir ao lugar da descoberta. No vi nada. Nisto ouo uma discusso. A quem pertencero as riquezas que se encontrarem? Ao Estado? Aos concessionrios da demolio? That is the question. As opinies dividem-se; uns querem que pertenam aos concessionrios, outros que ao Estado, e aduzem-se muito boas razes de um lado e do outro. Coagido a dar a minha opinio, f-lo-ei com a brevidade e clareza que me caracterizam. E digo: Os objetos que se acharem pertencem, em primeiro lugar, arqueologia, pessoa que tambm gente, e no deve ser assim tratada por cima do ombro. Mas a arqueologia tem mos? tem casa? tem armrios onde guarde os objetos? No; por isso transmite o seu direito a outra pessoa, que a segunda a quem pertencem os objetos: o Museu Nacional. Ao Museu iriam eles ter se fossem de simples estanho. Por que no iro se forem de ouro? O ouro para ns uma grande coisa; Compram-se meles com ele. Mas para a arqueologia todo o metal tem igual valor. Eram de prata os objetos encontrados quando se demoliu a Praa do Comrcio, e entretanto devo crer que esto no Museu, porque pertencem arqueologia, a arqueologia, que uma velha rabugenta e avara. Pode ser que eu esteja em engano; mas provvel que sejam os outros.

    IV Os touros instalaram-se, tomaram p, assentaram residncia entre ns. As duas primeiras corridas estiveram muito concorridas... H nisto uma repetio de slabas, mas a urgncia dispensa a correo e o floreio:

    ...qui mi scusi A urgncia, si fior la penna abborra.

    Tem havido pois muito entusiasmo. Frascuelo a coqueluche da cidade. Que digo? Frascuelo o frasquinho; nico diminutivo consoante a seu nome. Os touros que dizem no ser de primeira bravura. Alguns parecem ser de antes do pecado original, quando no Paraso, os lobos dormiam com os cordeiros, h quem suspeite que um deles simplesmente pintado em papel; touro de cosmorama.

  • Ainda assim o pblico os aplaude, e aos capinhas, a quem lana charutos, chapus e nquel. Dizem efetivamente que o pessoal bom; eu ainda no pude ir l, mas irei na primeira ocasio. Outras corridas se preparam na Rua da Misericrdia. Essas so mais animadas, os touros so mais bravos, os capinhas mais fortes. Se esta metfora ainda no disse ao leitor que eu aludo cmara temporria, ento perca a esperana de entender de retrica, e passe bem.

    15 DE JANEIRO DE 1877

    LIVRO I

    ALELUIA! ALELUIA! Agora, sim, senhor. Eu j sentia a falta dele. Eu e todo este povo andvamos tristes, sem motivo nem conscincia, andvamos sorumbticos, caquticos, raquticos, misantrpicos e calundticos. No me peam os brases do ltimo vocbulo; posso d-los em outra ocasio. Por agora sinto-me alvoroado, nada menos que redivivo. Que este sculo era o sculo das serrilhas, nenhum homem h que se atreva a neg-lo, salvo se absolutamente no tiver uma ona de miolos na cabea. Como vai Vm. da sua tosse? pergunta h anos um droguista nas colunas dos nossos jornais. Frase que mostra toda a solicitude que pode haver na alma de um droguista, e de quanta complacncia se compe uma panacia anticatarral. E com essa frase o droguista no s amola os olhos e a pacincia do leitor, como lhe impinge suas abenoadas pastilhas, a troco de cinco ou seis mil-ris. Essa a serrilha medicinal. A serrilha europia compe-se de muitas serrilhas, comeando na questo do Oriente e acabando na questo espanhola. H serrilhas de todas as cores e feitios, sem contar a chuva, que no tem feitio nem cor, e encerra em si todas as outras serrilhas do Universo. De todas elas porm, a que nos dera mais no goto, a que nos sustinha neste vale de lgrimas, a que nos dava brio e fora, era... era ele, o eterno, o redivivo, o nunca assaz louvado Rocambole, que eu julgava perdido para sempre, mas que afinal ressurge das prprias cinzas de Ponson du Terrail. Ressurgiu. Eu o vi (no o li) vi-o com estes olhos que a terra h de comer; nas colunas do Jornal, a ele e mais as suas novas faanhas, pimpo, audaz, intrpido, prestes a mudar de cara e de roupa e de feitio, a matar, roubar, pular, voar e empalmar. Certo que nunca o vi mais gordo. Eu devo confessar este pecado a todos os ventos do horizonte; eu (cai-me a cara ao cho), eu... nunca li Rocambole, estou virgem dessa Ilada de realejo. Vejam l; eu que li os poetastros da Fnix Renascida, os romances de Ana Radcliffe, o Carlos Magno, as farsas de barbante, a Brasilada do Santos e Silva, e outras obras mgicas, nunca jamais em tempo algum me lembrou ler um s captulo do Rocambole. Inimizade pessoal? No, posso dizer boca cheia que no. Nunca pretendemos a mesma mulher, a mesma eleio ou o mesmo emprego. Cumprimentamo-nos, no direi familiarmente, mas com certa afabilidade, a afabilidade que pode haver entre dois boticrios vizinhos, um gesto de chapu. Perdo; ouvi-o no teatro, num drama que o Furtado Coelho representou h anos. Foi a primeira e nica vez que me foi dado apreciar cara a cara o famoso

  • protagonista. No sei que autor (francs ou brasileiro? no me lembra) teve a boa inspirao de cortar um drama do romance do Ponson du Terrail, idia que o Furtado lhe agradeceu do ntimo dalma, porque o resultado pagou-lhe o tempo. E sem embargo de no o haver lido, mas visto e ouvido somente, gosto dele, admiro-o, respeito-o, porque ele a flor do seu e do meu sculo, a representao do nosso Romantismo caduco, da nossa grave puerilidade. Vem a propsito uma comparao que farei no segundo livro.

    LIVRO II

    AQUILES, ENIAS, DOM QUIXOTE, ROCAMBOLE Estes quatro heris, por menos que o leitor os ligue, ligam-se naturalmente como os elos de uma cadeia. Cada tempo tem a sua Ilada; as vrias Iladas formam a epopia do esprito humano. Na infncia o heri foi Aquiles, o guerreiro juvenil, altivo, colrico, mas simples, desafetado, largamente talhado em granito, e destacando um perfil eterno no cu da loura Hlade. Irritado, acolhe-se s tendas; quando os gregos perecem, sai armado em guerra e trava esse imortal combate com Heitor, que nenhum homem de gosto l sem admirao; depois, vencido o inimigo, cede o despojo ao velho Pramo, nessa outra cena, que ningum mais igualou ou nem h de igualar. Esta a Ilada dos primeiros anos, das auroras do esprito, a infncia da arte. Enias o segundo heri, valente e viajor como um alferes romano potico em todo o caso, melanclico, civilizado, mistura de esprito grego e latino. Prolongou-se este Enias pela Idade Mdia, fez-se soldado cristo, com o nome de Tancredo, e acabou em cavalarias altas e baixas. As cavalarias, depois de estromparem os corpos gente, passaram a estrompar os ouvidos e a pacincia, e da surgiu o Dom Quixote, que foi o terceiro heri, alma generosa e nobre, mas ridcula nos atos, embora sublime nas intenes. Ainda nesse terceiro heri luzia um pouco da luz aquileida, com as cores modernas, luz que o nosso gs brilhante e prtico de todo fez empalidecer. Tocou a vez a Rocambole. Este heri, vendo arrasado o palcio de Pramo e desfeitos os moinhos da Mancha, lanou mo do que lhe restava e fez-se heri de polcia, ps-se a lutar com o cdigo e o senso comum. O sculo prtico, esperto e censurvel; seu heri deve ter feies consoantes a estas qualidades de bom cunho. E porque a epopia pede algum maravilhoso, Rocambole fez-se inverossmil, morre, vive, cai, barafusta e some-se, tal qual como um capoeira em dia de procisso. Veja o leitor, se no h um fio secreto que liga os quatro heris. certo que grande a distncia entre o heri de Homero e o de Ponson du Terrail, entre Tria e o xilindr. Mas questo de ponto de vista. Os olhos so outros; outro o quadro; mas a admirao a mesma, e igualmente merecida. Outrora excitavam pasmo aquelas descomunais lanas argivas. Hoje admiramos os alapes, os nomes postios, as barbas postias, as aventuras postias. Ao cabo, tudo admirar.

  • LIVRO III

    SUPRESSO DO ESTMAGO Se alguma coisa pode fazer diverso ao Rocambole o Dr. Vindimila, cavalheiro que eu no conheo, mas que merece as honras de uma apoteose, porque acaba de dar um quinau no Padre Eterno. Quem me deu notcia disso foi um droguista (ando agora com eles) nas colunas do Jornal do Comrcio, em dias repetidos, e particularmente no dia 10 do corrente, publicaes a pedido. Vindimila inventou uma coca, um vinho estomacal. Por ora nada h que possa fazer admirar um homem qualificado e avariado. Cocas no faltam; nem cocas nem coqueiros. O importante que Vindimila despreza o estmago, no o conhece, despreza-o, acha-o uma coisa sem prstimo, sem alcance, um verdadeiro trambolho. Esse rgo clssico da digesto no merece que um Vindimila se ocupe com ele. No tempo em que Deus o criou podia ser til. Deus estava atrasado; a criao ressentia-se de tal ou qual infncia. Vindimila o Descartes da filosofia digestiva. Que fez Vindimila? Isto que dizem os Srs. Ruffier Marteiet & Comp.:

    O Sr. Vindimila faz comer e digerir, o homem sem estmago!!! Excessos, doenas, m alimentao, atacaram de tal modo o vosso estmago que estais privados deste rgo? No desespereis e depois de cada refeio tomai um clice de vinho com pepsina distase e coca de Vindimila. Com a pepsina todos os alimentos azotados, carnes, ovos, leite, etc., sero transformados em sangue; com a distase a farinha, o po, os feijes se convertero em princpios assimilveis, e passaro nos vossos ossos e msculos, enfim, com a coca vosso sistema nervoso ser acalmado como por encanto. O vosso estmago no trabalhou, ficou descansando, curando as suas feridas, e no entanto tendes comido, tendes digerido, tendes adquirido foras. Bem o dizamos, o Sr. Vindimila bem mereceu da humanidade, e prezamo-nos de ser os seus agentes nesta corte.

    Viram? Digerir sem estmago. Desde que li isto entendo que fazia multo mal em evitar camaroadas noite e outras valentias, porque se com elas vier a perder o estmago, l est o Dr. Vindimila, que se incumbe de digerir por mim. Faziam-se e fazem-se doutores na ausncia, in absentia, mediante certa quantia com que se manda buscar o diploma Alemanha. Agora temos as digestes na ausncia, e pela regra de que a civilizao no pra nunca, vir breve, no um Vindimila, mas um Trintimila ou um Centimila, que nos d o meio de pensar sem crebro. Nesse dia o vinho digestivo ceder o passo ao vinho reflexivo, e teremos acabado a criao, porque estar dado o ltimo golpe no Criador.

    15 DE FEVEREIRO DE 1877 I

    O carnaval morreu, viva a quaresma! Quando digo que o carnaval morreu apenas me refiro ao fato de haverem passado os seus trs dias; no digo que o carnaval espichasse a canela.

  • Se o dissesse, errava; o carnaval no morreu; est apenas moribundo. Quem pensaria que esse jovem de 1854, to cheio de vida, to lpido, to brilhante, havia de acabar vinte anos depois, como o Visconde de Bragellone, e acabar sem necrolgio, nem acompanhamento? Veio do limo-de-cheiro e do polvilho: volta para o polvilho e o limo-de-cheiro. Quia pulvi est. Morre triste, entre uma bisnaga e um princs, ao som de uma charamela de folha-de-flandres, descorado, estafado, desenganado. Pobre rapaz! Era forte, quando nasceu, rechonchudo, travesso, um pouco respondo, mas gracioso. Assim viveu; assim parecia viver at consumao dos sculos. Vai seno quando raia este ano de 77, e o msero, que parecia vender sade, aparece com um nariz de palmo e meio e os olhos mais profundos do que as convices de um eleitor. J ! Esta molstia ser mortal, ou teremos o gosto de o ver ainda restabelecido? S o saberemos em 78. Esse o ano decisivo. Se aparecer to amarelo, como desta vez, no contar com ele por coisa nenhuma e tratar de substitu-lo.

    II Caso venha a dar-se essa hiptese, vejamos desde j o que nos deixar o defunto. Uma coisa. Aposto que no sabem o que ? Um problema filolgico. Os futuros lingistas deste pas, percorrendo os dicionrios, igualmente futuros, lero o termo bisnaga, com a definio prpria: uma impertinncia de gua-de-cheiro (ou de outra), que esguichavam sobre o pescoo dos transeuntes em dias de carnaval. Bom! Diro os lingistas. Temos notcia do que era bisnaga. Mas por que esse nome? donde ele vem? Quem o trouxe? Neste ponto dividir-se-o os lingistas. Uns diro que a palavra persa, outros snscrita, outros groenlandesa. No faltar quem a v buscar na Turquia; alguns a acharo em Aplio ou Salomo. Um dir: No, meus colegas, nada disso; a palavra nossa e s nossa. nada menos do que uma corruo de charamela, mudado o cha em bis e o ramela em naga. Outro: Tambm no. Bisnaga, diz o dicionrio de certo Morais, que existiu ali pelo sculo XIX, que uma planta de talo alto. Segue-se que a bisnaga carnavalesca era a mesma bisnaga vegetal, cujo sumo, extremamente cheiroso, esguichava quando a apertavam com o dedo. Cada um dos lingistas escrever uma memria em que provar, fora de erudio e raciocnio, que seus colegas so pouco mais do que ruos pedreses. As Academias celebraro sesses noturnas para liquidar esse ponto mximo. Haver prmios, motes, apostas, duelos, etc. E ningum se lembrar de ti, bom e galhofeiro Gomes de Freitas, de ti que s o nico autor da palavra, que aconselhavas a bisnaga, e a grande arnica, no tempo em que o esguicho apareceu, por cujo motivo puseram o nome popularizado por ti.

  • Teve a bisnaga uma origem alegre, medicinal e filosfica. Isto o que no ho de saber nem de dizer os grandes sbios do futuro. Salvo, se certo nmero da Ilustrao chegar at eles, em cujo caso lhes peo o favor de me mandarem a preta dos pastis.

    III Falei h pouco do que h de substituir o carnaval, se ele definitivamente expirar. Deve ser alguma coisa igualmente alegre: por exemplo, a Porta Otomana. Vejam isto! Um ministro patriota leva a entreter toda a Europa roda de uma mesa, a fazer cigarros das propostas diplomticas, a dizer aos ministros estrangeiros que eles so excelentes sujeitos para uma partida de whist ou qualquer outro recreio que no seja impor a sua Turquia; os ditos ministros estrangeiros desesperam, saem com um nariz de duas toesas, dando a Turquia a todos os diabos; vai seno quando o Jornal do Comrcio publica um telegrama em que nos diz que o dito ministro turco, patriota, vencedor da Europa, foi destitudo por conspirar contra o Estado! Al! Aquilo governo ou Pra de Satans? Inclino-me a crer que simplesmente Pra. A porta tem muitos outros e vrios alapes, por onde sai ou mergulha, ora um sulto, ora um gro-vizir, de minuto a minuto ao som de um apito vingador. Todas as mutaes so vista. Eu, se na Turquia tivesse a infelicidade de fazer um dos primeiros papis, metia claque na platia para ser pateado. Creio que o nico recurso para voltar inteiro ao camarim.

    IV Sobre isto de voltar inteiro, dou meus parabns aos deputados da assemblia provincial, que puderam regressar intactos depois de 72 horas de discusso. Um ponto obscuro em todos os artigos e explicaes, notcias e comentrios, se o presidente da assemblia foi o mesmo em todos os trs dias e noites. Se foi, deve ter o mesmo privilgio daquele gigante da fbula, que dormia com cinqenta olhos enquanto velava com os outros cinqenta. Eram cinqenta ou mais? No estou certo no ponto. Do que estou certo que ele repartia os olhos, uns para dormir, outros para velar, como ns fazemos com os urbanos; velam estes enquanto camos nos braos de Morfeu... Pois verdade; setenta e duas horas de sesso. Esticando um pouco ia at a Pscoa. Cada um dos deputados, ao cabo desta longa sesso, parecia um Epimnides, ao voltar rua do Ouvidor; tudo tinha ar de novo, de desconhecido, de outro sculo. Felizmente acabou.

    V No acabarei sem transcrever nesta coluna um artiguinho, que li nos jornais de tera-feira:

    Duas das mais grosseiras e desmoralizadas criaturas tm freqentado os bailes, causando os mais desagradveis episdios

  • aos que tm tido a infelicidade de aproximar-se-lhes. Essas duas filhas de Eva acharam-se anteontem no teatro D. Pedro II vestidas en femme de la hlle (filha da Madame Angot), e hoje tambm dizem que l se acharo... Seria bom que o empresrio tivesse algum fiscal encarregado de vigi-las, para evitar incidentes tais como se deram no Domingo passado.

    isca! tempos! costumes!

    15 DE MARO DE 1877 I

    Mais dia menos dia, demito-me deste lugar. Um historiador de quinzena, que passa os dias no fundo de um gabinete escuro e solitrio, que no vai s touradas, s cmaras, Rua do Ouvidor, um historiador assim um puro contador de histrias. E repare o leitor como a lngua portuguesa engenhosa. Um contador de histrias justamente o contrrio de um historiador, no sendo um historiador, afinal de contas, mais do que um contador de histrias. Por que essa diferena? Simples, leitor, nada mais simples. O historiador foi inventado por ti, homem culto, letrado, humanista; o contador de histrias foi inventado pelo povo, que nunca leu Tito Lvio, e entende que contar o que se passou s fantasiar. O certo que se eu quiser dar uma descrio verdica da tourada de domingo passado, no poderei, porque no a vi. No sei se j disse alguma vez que prefiro comer o boi a v-lo na praa. No sou homem de touradas; e se preciso dizer tudo, detesto-as. Um amigo costuma dizer-me: Mas j as viste? Nunca! E julgas do que nunca viste? Respondo a este amigo, lgico mas inadvertido, que eu no preciso ver a guerra para detest-la, que nunca fui ao xilindr, e todavia no o estimo. H coisas que se prejulgam, e as touradas esto nesse caso. E querem saber por que detesto as touradas? Pensam que por causa do homem? Ixe! por causa do boi, unicamente do boi. Eu sou scio (sentimentalmente falando) de todas as sociedades protetoras dos animais. O primeiro homem que se lembrou de criar uma sociedade protetora dos animais lavrou um grande tento em favor da humanidade; mostrou que este galo sem penas de Plato pode comer os outros galos seus colegas, mas no os quer afligir nem mortificar. No digo que faamos nesta Corte uma sociedade protetora de animais; seria perder tempo. Em primeiro lugar, porque as aes no dariam dividendo, e aes que no do dividendo... Em segundo lugar, haveria logo contra a sociedade uma confederao de carroceiros e brigadores de galos. Em ltimo lugar, era ridculo. Pobre iniciador! J estou a ver-lhe a cara larga e amarela, com que havia de ficar, quando visse o efeito da proposta! Pobre iniciador! Interessar-se por um burro! Naturalmente so

  • primos? No; uma maneira de chamar a ateno sobre si. H de ver que quer ser vereador da Cmara: est-se fazendo conhecido. Um charlato. Pobre iniciador!

    II Touradas e caridade pareciam ser duas coisas pouco compatveis. Pois no o foram esta semana ltima, fez-se uma corrida de touros com o fim de beneficiar necessitados. O pessoal era de amadores, uns j peritos; outros novos; mas galhardos todos, e moos de fino trato. A concorrncia, se no foi extraordinria, foi assim bastante numerosa. E no a censuro, no; a caridade fazia dispensar a feroci... no, digo ferocidade; mas contarei uma pequena anedota. Conversava eu h dias com um amigo, grande amador de touradas, e homem de esprito, sil en fut. No imagines que so touradas como as de Espanha. As de Espanha so brbaras, cruis. Estas no tm nada disso. E entretanto... Assim, por exemplo, nas corridas de Espanha uso matar o touro... Nesta no se mata o touro; irrita-se, ataca-se, esquiva-se, mas no se mata... Ah! Na Espanha, mata-se? Mata-se... E isso que bonito! Isso que comoo!... Entenderam a chave da anedota? No fundo de cada amador de tourada inocente, h um amador de tourada espanhola. Comea-se por gostar de ver irritar o touro, e acaba-se gostando de o ver matar. Repito: eu gosto simplesmente de o comer. mais humano e mais higinico.

    III Inauguraram-se os bonds de Santa Teresa, um sistema de alcatruzes ou de escada de Jac, uma imagem das coisas deste mundo. Quando um bond sobe, outro desce, no h tempo em caminho para uma pitada de rap, quando muito, podem dois sujeitos fazer uma barretada. O pior se um dia, naquele subir e descer, descer e subir, subirem uns para o cu e outros descerem ao purgatrio, ou quando menos ao necrotrio. Escusado dizer que as diligncias viram esta inaugurao com um olhar extremamente melanclico. Alguns burros, afeitos subida e descida do outeiro, estavam ontem lastimando este novo passo do progresso. Um deles, filsofo, humanitrio e ambicioso, murmurava: Dizem: les dieux sen vont. Que ironia! No; no so os deuses, somos ns. Les nes sen vont, meus colegas, les nes sen vont.

  • E esse interessante quadrpede olhava para o bond com um olhar cheio de saudade e humilhao. Talvez rememorava a queda lenta do burro, expelido de toda a parte pelo vapor, como o vapor o h de ser pelo balo, e o balo pela eletricidade, a eletricidade por uma fora nova, que levar de vez este grande trem do mundo at estao terminal. O que assim no seja... por ora. Mas inauguraram-se os bonds. Agora que Santa Teresa vai ficar moda. O que havia pior, enfadonho a mais no ser, eram as viagens de diligncia, nome irnico de todos os veculos desse gnero. A diligncia um meio-termo entre a tartaruga e o boi. Uma das vantagens dos bonds de Santa Teresa sobre os seus congneres da cidade, a impossibilidade da pescaria. A pescaria a chaga dos outros bonds. Assim, entre o Largo do Machado e a Glria a pescaria uma verdadeira amolao, cada bond desce a passo lento, a olhar para um e outro lado, a catar um passageiro ao longe. s vezes o passageiro aponta na Praia do Flamengo, o bond, polido e generoso, suspende passo, cochila, toma uma pitada, d dois dedos de conversa, apanha o passageiro, e segue o fadrio at a seguinte esquina onde repete a mesma lengalenga. Nada disso em Santa Teresa: ali o bond um verdadeiro leva-e-traz, no se detm a brincar no caminho, como um estudante vadio. E se depois do que fica dito, no houver uma alma caridosa que diga que eu tenho em Santa Teresa uma casa para alugar palavra de honra! o mundo est virado.

    IV Vou dar agora uma novidade, a mais de um leitor. Sabes tu, poltico ou literato, poeta ou gamenho, sabes que h a perto, na cidade de Valena, uma biblioteca municipal, a qual possui um coleo da Revue des Deux Mondes, a qual coleo est toda anotada pela mo de Guizot, a cuja biblioteca pertenceu? Talvez no saibas: fica sabendo.

    V Na Cmara dos Deputados comeou a discusso do Voto de Graas e continuou a de outros projetos, entre estes o da lei de imprensa. A lei passou para 2 discusso, contra o voto, entre outros, do Sr. Conselheiro Duarte de Azevedo, que deu uma interpretao nova e clara ao artigo do cdigo relativo responsabilidade dos escritos impressos. A interpretao ser naturalmente examinada pelos competentes e pelo prprio jornalismo. Eu limito-me a transcrever estas linhas que resumem o discurso:

    Autor, segundo o cdigo, no o que autoriza a publicao, no o que faz seu o artigo cuja publicao recomenda; mas aquele que faz o escrito, aquele a quem o escrito pertence. De modo que, se um indivduo escrever e assinar um artigo relativo sua pessoa ou fatos que lhe dizem respeito, e o fizer

  • responsabilizar por terceira pessoa, a quem tais negcios por maneira alguma pertencem, sem dvida alguma que pelo cdigo no responsvel o testa-de-ferro por esse artigo: mas so responsveis o impressor ou o editor.

    15 DE ABRIL DE 1877 I

    Chumbo e letras: tal , em resumo, a histria destes quinze dias. O caso das letras ainda hoje excita a curiosidade do leitor desocupado ou filsofo. No para menos: cinqenta contos, que qualquer de ns diria serem cinqenta realidades! de fazer tremer a passarinha. Negociante conheo eu (e no s um) que, logo depois da primeira notcia dos jornais, correu a examinar todas as letras que possua, a saber se alguma tinha por onde lhe pegasse a... Ia dizer a polcia, mas agora me lembro que a polcia nem lhes pegou, nem sequer as viu. Este caso de letras falsificadas, que no existem, que o fogo lambeu, creio que tira ao processo todo o seu natural efeito. H uma confisso, alguns depoimentos, mas o documento do crime? Esse documento, j agora introuvable, tornou-se uma simples concepo metafsica. Outro reparo. Afirma-se que a pessoa acusada gozava de todo o crdito, e podia com seu prprio nome obter o valor das letras. Sendo assim, e no h razo para contest-lo, o ato praticado um desses fenmenos morais inexplicveis que um filsofo moderno explica pela inconscincia, e que a Igreja explica pela tentao do mal. Qu! ter todas as vantagens da honestidade, da santa honestidade, e atirar-se cegamente do parapeito abaixo! H nisto um transtorno moral, um caso psicolgico. Ou h outra coisa, um efeito do que o Globo, com razo, chama necessidades suprfluas da sociedade.

    II No h a mesma coisa nos canos de chumbo. Nesses abenoados ou malditos canos h, em primeiro lugar, gua, depois da gua h veneno ou sade. Questo de ponto de vista. Uns querem que o chumbo seja uma Locusta metlica. Outros crem que ele simplesmente Eva antes da cobra. Eu suponho que a questo no est decidida de todo, mas acrescento que, se em vez de Eva, fosse Locusta, h muito que este Rio de Janeiro estaria, no digo s portas da morte, mas s do cemitrio. Pois o tal saturnino ( o nome do veneno) assim to feroz, e possuindo nossos honrados estmagos, ainda os no transportou para o Caju? Realmente, um saturnino pacato. Individualizemos: um Plcido Saturnino. Neste ponto, d-me o leitor um piparote, com a ponta do seu fura-bolos, e eu no posso decentemente restituir-lho, porque no sei qumica, e estou a falar de substncias venenosas, de sais, de saturnos... Que quer? Vou com as turbas. Se os profissionais soubessem como esta questo de chumbo transformou a cidade em uma academia de cincias fsicas, inventariam questes destas todas as semanas. Ainda no entrei num bond em que no ouvisse resolver a questo agora cometida a uma comisso de competentes. Resolvida; resolvidssima. Entra-

  • se no Catete, comea a controvrsia, na altura da Glria, ainda subsistem algumas dvidas; na Lapa, falta s resolver um ou dois sais. Na Rua Gonalves Dias, o problema no existe; morto. Ora, eu, vendo isso, no quero ficar atrs; tambm posso dar uma colherada da substncia saturnina...

    III Depois do chumbo e das letras, o sucesso maior da quinzena foi a descoberta que um sujeito fez de que o mtodo Hudson um mtodo conhecido nos Aores. Ser? Conhecendo apenas um deles, no posso decidir. Mas o autor brasileiro, intimado a largar o mtodo, veio imprensa declarar que lhe no pegou, que nem mesmo o conhece de vista. Foi ao Gabinete Portugus de Leitura, a ver se algum lhe dava novas do mtodo, e nada. De maneira que o Sr. Hudson teve esse filho, criou-o, e p-lo no colgio, e um filho contra o qual reclama agora outro pai. E por desgraa no pode ele provar que no h pai anterior e que s ele o . E se forem ambos? Se o engenho de um e outro se houverem encontrado? Talvez seja essa a explicao. Em todo o caso, se eu alguma vez inventar qualquer mtodo, no o publico, sem viajar o globo terrqueo, de escola em escola, de livreiro em livreiro, a ver se descubro algum mtodo igual ao meu. No excetuarei a China, onde havia imprensa antes de Gutenberg: irei de plo a plo.

    IV Prende-se ao caso do chumbo o caso da gua de vintm. Esta gua de vintm a que eu bebo, no por medo do chumbo, mas porque me dizem ser uma gua muito pura e leve. Aparece, porm, no Jornal do Comrcio um homem curioso e ctico. Esse homem observa que se est bebendo muita gua de vintm... Eu j tenho feito a mesma reflexo; mas sacudi-a do esprito para no perder a f, aquela f, que salva muito melhor do que o pau da barca. Esta gua de vintm hoje a gua do conto ou do milho. um inverso do tonel das Danaides. o chafariz das Danaides. Muitos bebem dela; pouca gente haver que no tenha ao menos um barril por dia. Mas ser toda de vintm? Eu creio que ; e no me tirem esta crena. a f que salva.

    V Tratando-se agora da publicao dos debates lembrarei ao parlamento, que o uso, no s na Inglaterra ou Frana, mas em todos os pases parlamentares, que se publiquem os discursos todos no dia seguinte. Com isso ganha o pblico, que

  • acompanha de perto os debates, e os prprios oradores, que tm mais certeza de serem lidos. Em Frana alguns oradores revem as provas dos discursos, outros no. Thiers, no tempo em que era presidente, ia em pessoa rever as provas na imprensa nacional; Gambetta manda rev-las por um colega, o Sr. Spuller; sejam ou no revistas, saem os discursos no dia seguinte. Este sistema parece bom; demais, universal.

    15 DE JUNHO DE 1877 I

    Achei um homem; vou apagar a lanterna. L nos Campos Elsios do teu paganismo, enforca-te, Digenes, filsofo sem prstimo nem fortuna, arruador caipora, procurador de impossveis. Eu, sim, eu achei um homem. E sabes por que, desastrado filsofo? Porque o no procurava, porque estava a tomar tranqilamente a minha xcara de caf, janela, a dividir os olhos entre as folhas do dia e o sol que se desembuava. Quando menos esperava, ei-lo ante mim. E quando digo que o achei, digo pouco, todos ns o achamos, no dei com ele sozinho, mas todos, a cidade em peso, se que a cidade em peso no tem coisa mais sria em que cuidar, (os touros, por exemplo, o voltarete, o cosmorama) o que de todo no impossvel. E quando digo que o achei, erro; porque no o achei, no o vi, no o conheo, achei-o sem achar. Parece um enigma e decerto enigma, mas dos que eu quisera ver-te fazer, leitor, se tens queda por tais ocupaes. Suponho no leitor uma alta dose de penetrao, no me canso em explicar-lhe que o homem de que se trata o incgnito benfeitor das rfs da Santa Casa, o que deu 20:000$000, sem dar o seu nome. Sem dar o seu nome! Este simples fato conquista a nossa admirao. No que ela esteja acima das foras humanas, essa justamente a condio da caridade evanglica, em nome da qual os filhos do Evangelho inventaram a caridade nas gazetilhas. Mas, na realidade, o caso raro. Vinte contos dados assim, com simplicidade, sem uma notcia nas folhas pblicas, sem duas barretadas, sem uma ode, sem nada; vinte contos que caem da algibeira do benfeitor para as mos dos beneficiados, sem passar pelos prelos, os bentos prelos, os adorveis prelos, que tudo contam, at as aes mais recnditas? A ao crist; mas to rara, como as prolas. Por isso digo: achei um homem. O annimo da Santa Casa o homem do Evangelho. Imagino-o com dois traos principais: o esprito de caridade, que deve ser e annimo, e um certo desdm para com os clarins da Fama, os rufos de tambor, os pfanos da publicidade. Pois bem, esses dois traos caractersticos so duas foras. Quem as tem possui j de si uma grande riqueza. E saiba agora o leitor que o ato do benfeitor da Santa Casa inspirou a um amigo meu um ato bonito. Tinha ele uma escrava de 65 anos, que j lhe havia dado a ganhar sete ou oito vezes o custo. Fez anos e lembrou-se de libertar a escrava... de graa. De graa! J isto gentil. Ora, como s a mo direita soube do caso (a esquerda ignorou-o), travou da pena, molhou-a no tinteiro e escreveu uma notcia singela para os jornais indicando o fato, o nome da preta, o seu nome, o motivo do benefcio, e

  • este nico comentrio: "Aes desta merecem todo o louvor das almas bem formadas." Coisas da mo direita! Vai seno quando, o Jornal do Comrcio d notcia do ato annimo da Santa Casa da Misericrdia, de que foi nico confidente o seu ilustre provedor. O meu amigo recuou; no mandou a notcia s gazetas. Somente, a cada conhecido que encontra acha ocasio de dizer que j no tem a Clarimunda. Morreu? Oh! No! Libertaste-a? Falemos de outra coisa, interrompe ele vivamente, vais hoje ao teatro? Exigir mais seria cruel.

    II O captulo dos teatros no me pertence; mas sempre direi de passagem, que a caridade teve outra manifestao, do mesmo modo que vai ter amanh outra: um sarau lrico e dramtico em benefcio das vtimas da seca. Espetculo de amadores, com uma obra de artista, e ilustre artista, um certo Artur Napoleo, boa sala, satisfao geral. L estive at o fim, e nunca sa mais contente de espetculo de amadores; nem sempre tive a mesma fortuna, em relao ao virtuosi. Esteve excelente. No me atrevo a pedir mais, desejarei porm que, se a Providncia ferir com outro flagelo a alguma regio do Brasil, aqueles generosos benfeitores se lembrem de organizar nova festa de caridade, satisfazendo o corao e o esprito.

    III Trata-se de calar as ruas com pranchas de madeira. A idia por fora manica. Pranchas... No conheo o sistema, nem o modo de o aplicar; mas alguma coisa me diz que bom. Primeiramente, um calamento que exercer ao mesmo tempo as funes de fiscal e irrigador. No h poeira; no h lama. Duas economias. Depois, amortece as quedas; nem h quedas, salvo se for pau envernizado. Finalmente, previne as barricadas insurrecionais. ltima vantagem: postura. Postura? Postura. Todos os anos, por este tempo, a polcia tem o cuidado de mandar para a imprensa um edital declarando que sero punidos com todo o rigor os que infringirem certa postura da Cmara Municipal, que probe queimar fogos de artifcio e soltar bales ao ar. O edital aparece: aparecem atrs deste os fogos de artifcio; aparecem os bales. A pobre da postura, que j se v com a idia de ver-se executada, suspira; mas, no podendo nada, contra os infratores, recolhe-se ao arquivo, onde outras posturas, suas irms, dormem o sono da incredulidade.

  • J vem os senhores que, pondo limite nova imprudncia, eu tenho esperana de que no acendam fogueiras e bombas na madeira, nem lancem bales ao ar, que vm depois cair ao cho. Salvo se querem imitar Gomorra, o que no cmodo, mas pode ser pitoresco.

    IV Por ltimo direi que vo ver a galeria de quadros do Sr. Dor, Rua do Ouvidor. Vi-a; tem quadros excelentes, paisagens, pinturas de gnero, histricas, etc., dispostos com arte e convidando os amadores. Entre ns h bons apreciadores da pintura. Devem ir casa do Sr. Dor. No se arrependero como eu me no arrependo.

    1 DE NOVEMBRO DE 1877 I

    H um meio certo de comear a crnica por uma trivialidade. dizer: Que calor! que desenfreado calor! Diz-se isto, agitando as pontas do leno, bufando como um touro, ou simplesmente sacudindo a sobrecasaca. Resvala-se do calor aos fenmenos atmosfricos, fazem-se algumas conjeturas acerca do sol e da lua, outras sobre a febre amarela, manda-se um suspiro a Petrpolis, e la glace est rompue; est comeada a crnica. Mas, leitor amigo, esse meio mais velho ainda do que as crnicas que apenas datam de Esdras. Antes de Esdras, antes de Moiss, antes de Abrao, Isaque e Jac, antes mesmo de No, houve calor e crnicas. No paraso provvel, certo que o calor era mediano, e no prova do contrrio o fato de Ado andar nu. Ado andava nu por duas razes, uma capital e outra provincial. A primeira que no havia alfaiates, no havia sequer casimiras; a segunda que, ainda havendo-os, Ado andava baldo ao naipe. Digo que esta razo provincial, porque as nossas provncias esto nas circunstncias do primeiro homem. Quando a fatal curiosidade de Eva fez-lhes perder o paraso, cessou, com essa degradao, a vantagem de uma temperatura igual e agradvel. Nasceu o calor e o inverno; vieram as neves, os tufes, as secas, todo o cortejo de males, distribudos pelos doze meses do ano. No posso dizer positivamente em que ano nasceu a crnica; mas h toda a probabilidade de crer que foi coetnea das primeiras duas vizinhas. Essas vizinhas, entre o jantar e a merenda, sentaram-se porta, para debicar os sucessos do dia. Provavelmente comearam a lastimar-se do calor. Uma dizia que no pudera comer ao jantar, outra que tinha a camisa mais ensopada do que as ervas que comera. Passar das ervas s plantaes do morador fronteiro, e logo s tropelias amatrias do dito morador, e ao resto, era a coisa mais fcil, natural e possvel do mundo. Eis a origem da crnica. Que eu, sabedor ou conjeturador de to alta prospia, queira repetir o meio de que lanaram mos as duas avs do cronista, realmente cometer uma trivialidade: e contudo, leitor, seria difcil falar desta quinzena sem dar cancula o lugar de honra que lhe compete. Seria; mas eu dispensarei esse meio quase to velho como o mundo, para somente dizer que a verdade mais incontestvel que achei debaixo do sol, que ningum se deve queixar, porque cada pessoa sempre mais feliz do que outra.

  • No afirmo sem prova. Fui h dias a um cemitrio, a um enterro, logo de manh, num dia ardente como todos os diabos e suas respectivas habitaes. Em volta de mim ouvia o estribilho geral: Que calor! que sol! de rachar passarinho! de fazer um homem doido! amos em carros; apeamo-nos porta do cemitrio e caminhamos um longo pedao. O sol das onze horas batia de chapa em todos ns; mas sem tirarmos os chapus, abramos os de sol e seguamos a suar at o lugar onde devia verificar-se o enterramento. Naquele lugar esbarramos com seis ou oito homens ocupados em abrir covas: estavam de cabea descoberta, a erguer e fazer cair a enxada. Ns enterramos o morto, voltamos nos carros, e da s nossas casas ou reparties. E eles? L os achamos, l os deixamos, ao sol, de cabea descoberta, a trabalhar com a enxada. Se o sol nos fazia mal, que no faria queles pobres-diabos, durante todas as horas quentes do dia?

    II Para fazer alguma diverso aparece uma mulher que se traspassa tal qual a mais nfima taberna. A diferena que a taberna traspassa-se por meio de uma escritura e a mulher por meio de uma espada. Antes a escritura. No vi ainda essa dama, que achou meio de fazer do prprio pescoo uma bainha e suicidar-se uma vez por noite, antes de tomar ch. J vi um sujeito que engolia espadas; vi tambm uma cabea que fazia discursos, dentro de um prato, em cima de uma mesa, no meio de uma sala. O segredo da cabea descobri-o eu, no fim de dois minutos, no assim o do engole-espadas. Mas, tenho para mim, que ningum pode engolir uma espada, nem quente nem fria (ele engolia-as em brasa), e concluo que algum segredo havia, menos acessvel ao meu bestunto. No digo com isto que a dama da Rua da Carioca deixe de cravar efetivamente uma espada no pescoo. mulher e basta. H de ser ciumenta, e adquiriu essa prenda, na primeira cena de cimes que teve de representar. Quis matar-se sem morrer, e bastou o desejo para realiz-lo; de maneira que aquilo mesmo que me daria a morte, d a essa senhora nada menos do que a vida. A razo da diferena pode ser que esteja na espada, mas eu antes creio que est no sexo. Anda no Norte um colono, um homem que faz coisas espantosas. No Sul apareceu um menino-mulher. Todos os prodgios vieram juntar-se sombra das nossas palmeiras: um rendez-vous das coisas extraordinrias. Sem contar os tufes.

    III Falei no cemitrio, sem dizer que a esta hora ou pouco mais tarde ter o leitor de ir visitao dos defuntos. A visitao dos defuntos um bom costume catlico; mas no h trigo sem joio; e a opinio do Sr. Artur Azevedo que, na visitao, tudo joio sem trigo. A stira publicada por esse jovem escritor um opsculo, contendo umas quantas centenas de versos, fceis e correntios, com muito pico, boa inteno, catanada cega e s vezes cega demais. A idia do poeta que h ostentao repreensvel na demonstrao de uma piedade ruidosa. Tem razo. H excesso de vidrilhos e

  • candelabros, de souvenirs e de inconsolveis. Alguns quadros esto pintados com traos to espantosos, que fazem recuar de horror. Ser certo que se tomam nos cemitrios aquelas carraspanas, que se comem aqueles camares torrados? O poeta o diz; se