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Teresa Maria Rodrigues da Fonseca Rosa Monumenta Historica O Ensino e a Companhia de Jesus (séculos XVI a XVIII) Volume I (1540-1580)

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Teresa Maria Rodrigues da Fonseca Rosa

Monumenta HistoricaO Ensino e a Companhia de Jesus (sculos xvi a xviii) Volume I(1540-1580)

Este estudo de investigao que agora se publica, enquadra-se numa segunda fase do projeto de Ps-Doutoramento subordinado ao tema: O Ensino Jesuta em Portugal no Antigo Regime: Documentos, Figuras e Instituies (Sculos XVI a XVIII), com o apoio de uma bolsa de formao avanada de Ps-Doutoramento SFRH/BPD/77318/2011, da Fundao para a Cincia e Tecnologia.

Tendo como Instituio de acolhimento a UIDEF Unidade de Investigao e Desenvolvimento em Educao e Formao do Instituto da Educao da Universidade de Lisboa, decorre sob a orientao do Professor Doutor Justino Pereira de Magalhes, Professor Catedrtico.

Ficha Tcnica

Ttulo:

Monumenta Historica O Ensino e a Companhia de Jesus (sculos xvi a xviii) Volume I (1540-1580)

Autoria / Coordenao ................. Teresa Maria Rodrigues da Fonseca Rosa

Edio ............................................ Instituto de Educao da Universidade de Lisboa

1. edio ...................................... Dezembro de 2015

Coleo ................................................ Estudos e Ensaios

Composio e arranjo grfico ..................... Fragoso Pires

Disponvel em ................................ www.ie.ulisboa.pt

Copyright ........................................ Instituto de Educao

da Universidade de Lisboa

ISBN ............................................... 978-989-8753-19-9 ISBN (Obra completa) ........................................ 978-989-8753-18-2

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A Companhia de Jesus e a instituio educativa modernaPrlogo

PARTE I

I. Introduo

1. Critrio adoptado na transcrio dos documentos

2. Descrio sumria

II. Histria breve da Companhia de Jesus

1. A Fundao da Companhia de Jesus2. Os rgos Gerais da Companhia de Jesus3. As Categorias atribudas aos Jesutas4. Os primeiros Ratio de Nadal, Coudret,

Ledesma e Borgia5. O Ratio Studiorum do Padre Claudio

Aquaviva6. A Educao em Portugal antes dos

Jesutas: primeira metade do sculo XVI7. O Estabelecimento da Companhia de

Jesus em Portugal e os Colgios criados at meados at meados do sculo XVIII

8. O aumento do nmero de membros da Ordem desde a sua fundao

PARTE II

I. Documentos:

1. Ordenao para os estudantes da Universidade de Coimbra, sobre os criados, bestas, trajos e outras coisas, ano de 1539, (ANTT, Srie preta N. 3550, Doc. 25, ref. 1047-A

2. Regimento que ho-de guardar os Lentes das Artes no Colgio Real da Cidade de Coimbra, no qual El-Rei aprovou e manda que se cumpra, ano de 1552, (ANTT, Armrio Jesutico, Livro N. 29, flios 8)

3. Instrues do Padre Incio de Loyola dirigida aos Reitores e Superiores da Companhia de Jesus, ano de 1552, (ARSI, Lus. N. 84 I (VII), Fundationes Collegi Conimbricensis, fls. 35-36)

4. Coisas que devem guardar os Estudantes da Universidade de vora, ano de 1560, (Academia das Cincias de Lisboa, Srie Vermelha, N. 833, flios 24)

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5. Apontamentos sobre Concordia entre a Universidade de Coimbra e a Companhia de Jesus, ano de 1562, (ARSI, Lus. N. 84 I (VII), Fundationes Collegi Conimbricensis, fls. 115-116v.)

6. Proibio por parte da Companhia de Jesus para que os Religiosos dela, no tenham no Mundo cousa prpria, nem esperana de a poderem algum tempo alcanar, ano de 1562, (ANTT, Cartrio Jesutico, Mao 71, Doc. 231)

7. Papis vrios pertencentes ao Collegio dos Porcionistas que fez o Cardeal Dom Henrique em vora, anos de (1562 a 1576), (Academia das Cincias de Lisboa, Srie Azul, N. 45)

8. Rol dos livros que neste Reino se probem pelo Serenssimo Cardeal Infante Inquisidor Geral, nestes Reinos e Senhorios de Portugal: com as regras do outro rol geral que veio do Santo Conclio, ano de 1564, (BNP, Reservados 1414//2)

9. Alvar sobre a aprovao dos Estatutos, provises e regimentos do Colgio das Artes de Coimbra e Estatutos do Colgio das Artes (1565), (ARSI, Lus. N. 84 I (VII), Fundationes Collegi Conimbricensis, fls. 95v.-104v.)

10. Proviso do Cardeal Infante D. Henrique contra os que falam nos votos da Companhia de Jesus, ano de 1568, (ANTT, Cartrio Jesutico, Mao 71, Doc. 226)

11. Informao sobre a fundao do Colgio da Companhia de Jesus na Ilha da Madeira, e dote do Colgio, ano de 1569/1599, (ANTT, Cartrio Jesutico, Mao 64, Doc. 64)

12. Colgio da Ilha da Madeira, ano de 1572, (ANTT, Cartrio Jesutico, Mao 34, Doc. 6)

13. Treslado da carta de um conto e duzentos mil reis que o Colgio de Jesus de Coimbra recebe anualmente das rendas da Universidade, ano de 1572, (ARSI, Lus. N. 84 I (VII), Fundationes Collegi Conimbricensis, fls. 41-42)

14. Treslado da carta de D. Sebastio, referente aos novos Estatutos da Universidade de Coimbra sobre no se pr coisa alguma no que toca ao Regimento e exerccios que se fazem no Colgio de Jesus em Coimbra, ano de 1572, (ARSI, Lus. N. 84 I (VII), Fundationes Collegi Conimbricensis, fls. 43-43v.)

15. Memorial das Escolas de Coimbra, ano de 1572, (ARSI, Lus. N. 84 I (VII), Fundationes Collegi Conimbricensis, fls. 55-56)

16. Renda de seiscentos mil ris que El Rei deu para a fundao do Colgio do Funchal, no ano de 1572 (ARSI, Lus. N. 85 (VIII) Fundationes: Collegi Elvense Portuense Funchalense, (fls. 89-90)

17. Carta dos seiscentos mil reis em cada ano da dotao e doao aos Padres da Companhia Jesus na Cidade de Angra, ano de 1572, (ARSI, Lus. N. 79, Fundationes II Collegi Almiratinum Brigatinum, fls. 127-127v.)

18. Histria da fundao do Colgio do Funchal, ano de 1574, (ARSI, Lus. N. 85 (VIII) Fundationes: Collegi Elvense Portuense Funchalense, fls. 269v.-270)

19. Treslado da Proviso de El Rei sobre a mudana do Colgio de Santo Anto entre os anos de 1574/1580, (BA, Cd. 54-X-17, N. 47, flios 10)

20. Doao das Casas e Igreja do Colgio de Angra, ano de 1575, (ANTT, Cartrio Jesutico, Mao 32, Doc. 21)

21. Alvar sobre a impresso e venda da Arte da Gramtica do Padre Manuel lvares, ano de 1575, (ARSI, Lus. N. 80, Fundationes III Collegi Eborensis, fl. 260 c)

22. Estatutos do Colgio da Purificao que mandou fazer el-Rei D. Henrique, ano de 1579, (ANTT, Cartrio Jesutico, Mao 104, Doc. 7, flios 21)

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23. Privilgio da Santa Cruz; sobre a jugada e outros encargos e como goza a Universidade de Coimbra dos privilgios da Santa Cruz, ano de 1582, (ANTT, Cartrio Jesutico, Mao 39, Doc. 67)

24. Visitao do Padre Ferno Guerreiro ao Colgio de Angra, ano de 1592, (ARSI, Lus. N. 71, Epistolae Lusitaniae (1591- 1592), fls. 198-201v.)

25. Lista de las Missas y oraciones y deuotiones que los Padres y Hermanos de la Compagnia de Iesu de la Prouincia de Portugal hazen por las necessidades de la Iglesia. Seha en principio de Hebrero de 1595, (ARSI, Lus. N 73, Epistolae Lusitaniae (1595-1596), fls. 6-6v.)

26. Alvar concedido novamente por sua Majestade aos Padres da Companhia de Jesus do Colgio de vora sobre a Arte da Gramtica do Padre Manuel lvares, ano de 1596, (ARSI, Lus. N. 80, Fundationes III Collegi Eborensis, fl. 260 b).

27. Rendimentos e despesas dos Colgios da Provncia de Portugal no sculo XVI, (ARSI, Lus. N. 78, Fundationes: I (b) Collegi Ulissiponensis, fls. 49-50)

28. Apontamentos sobre o ofcio de Vice-Provincial das Ilhas, no sculo XVI, (ARSI, Lus. N. 78, Fundationes: I (b) Collegi Ulissiponensis, fls. 212-215)

29. Notcia da Casa da Companhia de Jesus na Cidade do Porto, no sculo XVI, (ARSI, Lus. N. 85 (VIII) Fundationes: Collegi Elvense Portuense Funchalense, fls. 271-273)

30. Propriedades do Colgio de Angra, sculo XVI, (ANTT, Cartrio Jesutico, Relao II, Mao 57, Doc. 14, fls. 5v.-6)

31. Declarao das terras, vinhas e casas que o Colgio de Angra da Ilha Terceira tem, sculo XVI, (ANTT, Cartrio Jesutico, Relao II, Mao 57, Doc. 68)

32. Rendas dos Colgios da Companhia de Jesus, sculo XVI, (BPADE, Cd. CV/2-15 II)

33. Leis dos Reverendos Padres Gerais, Visitadores e Provinciais, sculo XVI, (ANTT, Cartrio Jesutico, Mao 96, Doc. 3)

34. Doutrina do Padre Mestre Francisco, para a converso dos infiis, sculo XVI, (BA, Cd. 51-II-23, N.os 115A- 115J)

35. Sobre os Estados da Companhia de Jesus, sc. XVI, (ANTT, Armrio Jesutico, Livro N. 4, fls. 252-253v.)

36. Algumas coisas que se tm experincia aproveitarem para reger qualquer classe, sculo XVI, (ANTT, Manuscrito da Livraria, N. 1838, flios 30)

37. Se convm haver muitas Escolas no Reino, sculo XVI, (ANTT, Cartrio Jesutico, Mao 56, Doc. 11, flios 20)

38. Acerca dos estudos que nos queriam tirar, sculo XVI, (ANTT, Cartrio Jesutico, Mao 56, Doc. 12, flios 16).

39. Respondendo proposta dos procuradores dos Prelados e Cabidos deste Reino se offrecem as rezes seguintes por parte do Collegio de Coimbra, ano de 1606, (A.N.T.T., Cartrio Jesutico, Mao 40, Doc. 55, (fols. 78-83v.)

40. Rendimento das propriedades dos Colgios, sculos XVI/XVII, (ANTT, Cartrio Jesutico, Relao II, Mao 57, Doc. 86)

41. Estatutos da Universidade de vora, sculos XVI/XVII, (BNP, Cd. 1814 microfilme F. 1465, flios 356)

42. Bibliotheca em que se apresentam os Escritores da Companhia de Jesu, que moram neste collegio, e imprimiram Liuros e os escreueram, pera os imprimir (BPADE, Cd. CIV/1-40 (fls. 253-276v.); Cd. CXXX/1-14 (fls. 165v.-187)

43. Fontes e Bibliografia

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SIGLAS

Abreviaturas

A.C.: Academia das Cincias de Lisboa.

A.N.T.T.: Arquivo Nacional da Torre do Tombo (Lisboa).

A.R.S.I.: Archivum Romanum Societatis Iesu (Roma).

Lus.: Lusitnia.

Cong.: Congregationes Generales et Provinciales.

F.G.: Fondo Gesuitico.

B.A.: Biblioteca da Ajuda.

B.N.P.: Biblioteca Nacional de Portugal.

RES: Reservados

B.P.A.D.E.: Biblioteca Pblica e Arquivo Distrital de vora.

Outras

cf. confronto

cfr. conferircd., cds. cdice, cdices

Comp. Companhia

Cx. Caixa

dir. dirigido por ou direco de

doc. documento

ed. edio

Ejercicios Ejercicios Espirituales, in Ignacio de Loyola, Obras, (ed. de Ignacio Iparraguirre, Cndido Dalmases e Manuel Ruiz Jurado), Madrid, BAC, 1991.etc. et caetera

fasc. fascculo

fig. figura

figs. figuras

Fl. flio fls. flios

F.r Frei

ibidem no mesmo lugar

idem o mesmo

Ir. Irmo

n. nmero

op.cit. (opere citato) obra citada

Teresa Maria Rodrigues da Fonseca Rosa

Monumenta HistoricaO Ensino e a Companhia de Jesus 7

p. pgina

pp. pginas

P.e Padre

PP. Padres

S. So

sc. sculo

s.d. sem data

seg. seguinte

segs. seguintes

sic transcrio exacta

s.n. sem numerao

trad. traduo

v. verso

vol. volume

vols. volumes

Sinais

indicao do ttulo de um estudo inscrito em outra obra publicada ou obra colectiva

A Companhia de Jesus e a instituio educativa moderna

Prlogo, por Justino Magalhes

Monumenta HistoricaO Ensino e a Companhia de Jesus 11

Prlogo

A histria dos Jesutas transversal aos Estados Modernos e indissocivel da

hegemonia cultural do Ocidente. A Companhia de Jesus expandiu-se pelas misses e

conservou-se pela instituio educativa, tendo na cultura escrita difundida, mediada

e formalizada pela escola um meio de desenvolvimento e normalizao. O ncleo

fundante do Jesuitismo residiu na conciliao entre os Exerccios Espirituais, as

Constituies da Companhia e o Ratio Studiorum. Os Exerccios Espirituais, assim

designados por analogia com os exerccios corporais, eram desafios e percursos

interiores, para serem cumpridos pelo prprio, iluminados pela leitura e pela escrita,

e devidamente orientados por um director espiritual. H neste tirocnio um efeito

educativo, com contedo, mediao pedaggica e transformao (converso).

Tambm, as Constituies contm um programa educativo composto por uma

sequncia de experincias individuais a ser realizada pelos admitidos. Na Parte

Quarta das Constituies so apresentados o quadro pedaggico e o currculo

escolar, devidamente articulados com o iderio da Companhia. A componente

pedaggica, como racional e ordem dos estudos, complexo (in)formativo, bem como

a componente didctica, cognoscente e de aprendizagem, integrada e progressiva,

estruturada sob a forma de currculo, estavam devidamente apresentadas e descritas

no Ratio Studiorum. A escrita foi o principal meio de comunicao e de transformao

objectiva e organizativa, utilizado e praticado, pelos membros da Companhia,

que, entre outros aspectos, cultivaram uma epistolografia regular, pragmtica e

devidamente formalizada.

Gabriel Compayr que, em final de Oitocentos, elaborou uma sistematizao

da pedagogia ocidental, apresentando um contraste entre o tradicional e a

inovao, referiu que a pedagogia jesutica continha os aspectos estruturais

da institucionalizao. Ao conciliar as Constituies da Companhia com o Ratio

Studiorum, Compayr fez ressaltar o binmio fundante do Jesuitismo: a misso e

a escola. Converso e prtica religiosa e, de modo anlogo, educao e instruo,

so integrantes de um mesmo iderio e de um mesmo desgnio de expanso e

perenidade, mas foi a constituio escolar que conferiu a tal evoluo um sentido

instituinte.

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Uma Congregao sedimentada na comunicao escrita

Aos trs elementos escritos constitudos pelos Exerccios Espirituais, as

Constituies, o Ratio Studiorum, j referidos, a Companhia de Jesus acrescentou a

escrita autogrfica e epistolar. Cultivada por Incio Loiola que deixou mais de 7.000

cartas, a epistolografia foi uma das principais manifestaes da Ars Scribendi, matria

que mereceu particular ateno por parte de Juan Polanco, primeiro Secretrio

da Companhia, em Roma. A escrita epistolar foi regulamentada nas Constituies

e era uma prtica de externalizao e sociabilidade, mas tambm um contributo

fundamental edificao, consistncia, identidade e expanso da Companhia.

Foi um pilar de institucionalizao. Desde o ingresso na Companhia que o Jesuta

praticava o exerccio epistolar.

Nas Constituies (VIII, 1, 8, 9), 1547-1550), ficou estabelecido que ajudar a

comunicao de cartas entre os inferiores e os superiores, e o saber a mido uns

de outros, vendo as novas que de umas e outras partes vem, do que tero encargo

os superiores, em especial o geral e os provinciais. Como Secretrio, Juan Polanco

tinha enviado uma circular a toda Companhia, contendo as razes para uma

correspondncia regular. A prtica epistolar promovia a unio entre os membros da

Ordem, encorajando e auxiliando a um bom governo da Companhia e boa distribuio

dos missionrios. Favorecia o bom nome da instituio, o surgimento de vocaes

e a ajuda por parte dos simpatizantes. De modo mais especfico, havia regras que

deviam ser observadas nas cartas enviadas pelos membros da Sociedade, que se

encontravam fora de Roma. Tais regras incidiam sobre a organizao, a ordem do

contedo, o nmero de cpias a extrair e enviar para Roma. Na Provncia portuguesa,

as cartas para o Oriente circulavam atravs da Carreira das ndias. Os missionrios,

em viagem, deveriam anotar diariamente matrias de edificao, pondo-as em

memria para no final da viagem fazerem com elas uma longa carta a remeter para

Lisboa1.

As cartas que se destinavam publicidade deveriam ser edificantes. Os outros

assuntos e problemas deveriam ser reservados para as cartas dirigidas ao Geral

1 Tal recomendao constava da Instruo do Padre Provincial Torres para o Padre Manuel lvares (Lisboa, 1560) (Dl, IV, p. 551, doe. n 16. citado em J. Wicki, relaes de viagens dos Jesutas na Carreira das naus da ndia de 1541 a 1598, separata de II Seminrio Internacional de Histria Indo-Portuguesa. Actas, Lisboa, 1985, p. 8.

Justino Magalhes

Monumenta HistoricaO Ensino e a Companhia de Jesus 13

da Companhia. Em conformidade com as Constituies, se no houvesse assuntos

urgentes, na Europa, os reitores dos colgios, os propsitos e os provinciais deveriam

escrever semanalmente ao provincial. Cada trs meses escreveriam ao Geral, em

Roma. Os provinciais deveriam responder aos seus subordinados, cada trs meses

e ao Geral mensalmente. Este devia, cada dois meses, responder aos Provinciais e,

de seis em seis meses, aos Reitores dos colgios e Propsitos. Para que as cartas

pudessem circular, os subalternos de um Provincial, pertencentes a casas ou colgios,

deveriam escrever, em princpio, de quatro em quatro meses, uma carta, contendo

somente coisas de edificao. Uma dessas cartas seria escrita em lngua vulgar

da provncia respectiva, dela sendo feita uma verso em latim. Tambm deveriam

remeter ao Provincial os duplicados de uma carta e de outra. Este deveria enviar

ao Geral, uma cpia em latim e outra em vulgar, acompanhadas de uma carta sua,

onde contasse o que havia de notvel ou de edificao e que no dissesse respeito

a particulares. Da primeira destas cartas, deveria fazer tantas cpias quantas

bastassem para dar notcia aos outros membros da sua provncia.

Para que no houvesse perda de tempo em enviar estas cartas ao Provincial,

podiam os locais e reitores enviar as cartas em latim e em vulgar, directamente ao

Geral. Sempre que lhe parecesse ajustado, podia o Provincial encarregar alguns dos

locais para avisarem os demais da sua provncia, enviando-lhes cpia das cartas que

escrevesse ao provincial. Para que o que se passava numa provncia fosse conhecido

na outra, deveria o Geral ordenar que das cartas enviadas das provncias, fossem

feitas cpias que bastassem para prover todos os outros Provinciais. Estes f-las-

iam copiar para os da respectiva provncia. Quando houvesse muito comrcio de

uma provncia para outra, como sucedia entre Portugal e Castela, e entre Siclia e

Npoles, o Provincial de cada uma delas poderia enviar, outra, cpia das cartas

que enviava ao Geral2.

Regime de educabilidade e orgnica escolar

Fundada no quadro histrico da Reforma Tridentina e como resposta ao

Reformismo Protestante, a Companhia de Jesus cultivou a leitura e a escrita como

conhecimento, informao, comunicao, ordem, dispositivo de aco. A escrita

2 Constitutiones cum declarationibus, textus D. 1594, P. VIII, c. I, semelhante s verses do texto B (c. 1556), mas ainda no explicitado nos textos anteriores (cf. Ml, 3a srie. II, 621-623).

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permitiu a sntese humanista, filosfica e cientfica, constante dos documentos

estruturais. Como processo participado, a escrita possibilitou que a elaborao e a

aprovao das Constituies e do Ratio Studiorum tivessem beneficiado da reescrita

e de revises sucessivas. A estrutura e a expanso da Companhia assentaram na

escrita, desenvolvida nas principais modalidades: o impresso e o autogrfico. A

capacitao litercita e o labor letrado eram factores de incluso e hierarquia, pelo

que, do exame geral aos candidatos, fazia parte o item: Se aprendeu algum ofcio

manual. Se sabe ler e escrever; e no caso afirmativo, examine-se como que l e

escreve, a no ser que isso seja previamente conhecido (Requisito 43). A formao

letrada era intrnseca ao perfil e hierarquia dos jesutas, dividindo-se estes em

quatro categorias: letrados, coadjutores, escolsticos, indiferentes. Sempre que

necessrio e possvel, a Companhia no deixou de atender alfabetizao, mas era

regra que a admisso recasse sobre os alfabetizados e com idade no inferior a

catorze anos.

Os Exerccios Espirituais, as Constituies, o Ratio Studiorum eram Regulamentos

para serem lidos, comunicados e cumpridos, com os quais os Jesutas deveriam

estar familiarizados. A autografia, manifesta na regularidade de escrita e leitura

e no envio sistemtico de missivas, era no entanto uma prtica litercita e uma

modalidade discursiva cujo principal objectivo residia na informao, comunicao

e aco. Os membros da Companhia deveriam escrever para os superiores e para

outros membros, particularmente para os colocados em locais distantes, dando

notcia de acontecimentos, informando sobre as particularidades locais, apelando

a um mesmo desgnio de missionao e edificao da Companhia. A autografia era

uma prerrogativa habitual, como meio de comunicao institucional e colectiva, e

menos como componente subjectiva e factor de identidade. O exerccio espiritual e a

exortao assentavam fundamentalmente na leitura. Esta pragmtica da escrita e de

certo modo a escrita pragmtica deveriam ser cultivadas por todos os membros da

Companhia. Todavia, em sede acadmica, como exerccio letrado e como exortao

esttica, havia lugar e incentivo composio e criatividade literria e cientfica.

A congruncia entre os desgnios da Companhia e o perfil do jesuta era

obtida atravs da capacidade e da progresso escrita. A leitura e a escrita eram

determinantes para o acesso ao conhecimento e para agir sobre os outros, tornando

consequente o preceituado de que o fim da Companhia no somente ocupar-

se, com a graa divina, da salvao e perfeio das almas prprias, mas com esta

mesma graa, esforar-se intensamente por ajudar a salvao e perfeio das do

Justino Magalhes

Monumenta HistoricaO Ensino e a Companhia de Jesus 15

prximo (Constituio, 8.3). A escrita era um meio. A cultura escrita foi o elemento

agregador entre missionao e escolarizao. A cultura escrita e a instituio escolar

foram base e meio para a formalizao da Companhia e para a concretizao de

pragmticas e modos de aco.

A escrita pedaggica dos Jesutas constitui uma sistemtica da escola como

instituio, contedo, racionalidade, mtodo, disciplina escolar. A racionalidade

educativa constante das Constituies e do Ratio Studiorum e que enforma a escrita

pedaggica e formaliza a escrita didctica obedecia a uma mesma disposio

discursiva: apresentao sumria da misso da Companhia e da autoridade

mxima; modo de admisso e exame geral, prvio, dos candidatos; descrio e

caracterizao dos aspectos formais, nomeadamente a regularidade escolar; meios

e organizao dos estudos; cursos; professores; matrias e compndios (mtodos);

exames; modalidades de ensino. A componente pedaggica e a componente

didctica estavam associadas. Beneficiavam de escriturao impressa e manuscrita

devidamente formalizada e adequada, nos planos discursivo e instrumental. A Parte

IV das Constituies ficou reservada ao essencial da pedagogia e, em boa parte,

escrita didctica. Esta distino e esta associao surgem alocadas, quer aos

Colgios, quer s Universidades.

Distintamente, a componente educativa d substncia aos Exerccios Espirituais;

reificao e significado s Experincias do admitido (enunciadas nas Constituies);

materialidade, sentido e progresso instituio pedaggica e didctica, apresentada

na parte IV das Constituies e constituda no Ratio Studiorum. O programa resultante

da integrao destes distintos documentos configura um regime de educabilidade.

Devidamente orientados, os Exerccios Espirituais continham, uma primeira parte

que correspondia ao percurso individual de converso e que inclua a aprendizagem,

a capacidade e a prtica do exerccio espiritual. Os Exerccios Espirituais continham

trs outras partes: trs Exerccios de meditao e subjectivao, plasmados na Vida de

Cristo, o ltimo dos quais era a Ressurreio como vitria sobre a morte. Era esperado

que a Vida de Cristo, devidamente meditada e vivenciada, fosse (re)encarnada em

cada Jesuta. Os Exerccios Espirituais constituam uma primeira transformao a

converso que, articulada com as restantes experincias probatrias, correspondia

a uma metamorfose (transfigurao).

Da componente educativa do Jesuta fazia tambm parte a sucesso de

experincias-provao, que constam do captulo das Constituies, denominado

Alguns Pontos que mais convm saber aos que entram na Companhia sobre o

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que nela devem observar. Assim, antes ou depois da entrada numa casa ou num

colgio, exigem-se seis experincias principais (...). Estas experincias podero

antecipar-se, retardar-se, moderar-se, ou mesmo, em certos casos, substituir-

se por outras, por ordem do Superior, conforme as circunstncias das pessoas,

tempos e lugares (Constituies, 64.9). Uma vez concludos a admisso e o Exame

Prvio Geral, os admitidos eram exortados sucesso de experincias pessoais,

obrigatrias e probatrias, ainda que no tendo de ser realizadas nem de uma s

sequncia, nem de forma continuada. A primeira experincia eram os Exerccios

Espirituais; a segunda consistia em servir durante um ms nos hospitais; a terceira

era peregrinar, mendigando, durante um ms; a quarta consistia em exercitar todos

os ofcios menores da casa; a quinta consistia em expor publicamente a crianas e

a pessoas incultas toda ou parte da Doutrina Crist.

O regime de educabilidade, que prosseguia pela formao letrada e para alguns

tambm pela formao teolgica, continha, no essencial, um tirocnio pessoal,

probatrio e de transfigurao. Era um processo devidamente assistido de que

fazia parte a converso interior atravs dos Exerccios Espirituais e que culminava

na experincia pedaggica e didctica de missionao e formao de outros. Deste

regime de educabilidade faziam parte o currculo escolar que conformava um perfil

letrado e que tinha incio na Gramtica e prosseguia pela Teologia. Este percurso

escolar estava descrito nos domnios pedaggico e didctico, de que faziam parte os

compndios e apostilas, mas integrava tambm a socializao proporcionada pelas

Academias de estudantes. As Academias, uma formada por estudantes de Teologia

e de Filosofia, outra formada pelos Estudantes de Retrica e Humanidades e uma

terceira por Estudantes de Gramtica, eram agremiaes de estudantes, com rgos

e regulamentos prprios, que funcionavam em assembleias sesses coletivas para

aplicao de conhecimentos e incentivo criatividade e argumentao.

Uma administrao escrita

Tomando como referncia os documentos estruturais j referidos e como fonte

os documentos que formam a Monumenta Historica, nomeadamente este primeiro

volume, observa-se que para alm da escrita epistolar, a Companhia praticava uma

escrita administrativa, uma escrita contabilstica, uma escrita pedaggica, uma

escrita didctica e, pouco a pouco, foi sendo constituda uma escrita arquivstica

Justino Magalhes

Monumenta HistoricaO Ensino e a Companhia de Jesus 17

e historiogrfica. Neste I volume, h um conjunto de documentos que reportam

a alvars, compras e vendas, inventrios, relaes de bens, contratos diversos,

oramentos. H um conjunto de documentos que reportam a Colgios e tambm

um outro conjunto de documentos formado por regulamentos pedaggicos, normas

e processos didcticos e por fim um conjunto de documentos que so memoriais,

catlogos e snteses para que constem e para que sejam balano e arquivo. H

pareceres. uma escrita formalizada e bem cuidada, que contm registos descritivos,

registos quantitativos, com utilizao das unidades monetrias, pesos e medidas de

poca.

Os Jesutas e a constituio escolar

A principal incidncia pedaggica da Companhia foi nos ensinos secundrio e

mdio, como ciclos autnomos e como preparao para a Universidade. A pedagogia

dos Jesutas incluiu tambm a Universidade, onde era realizado o Curso de Teologia,

com a durao de 4 anos. A Universidade Teolgica estava reservada apenas aos

letrados que se houvessem revelado excepcionais na Filosofia. Em cada ano e em

conformidade com o total de estudantes de Filosofia, o Provincial deveria escolher,

dois, trs ou mais escolsticos, para prosseguirem os Estudos em Teologia. A

Universidade Teolgica de vora serviu os Jesutas e outras Congregaes.

No entanto, a estrutura escolar privilegiada pelos Jesutas foi o Colgio, em regime

de internato, aberto frequncia de externos Colgios de Artes e Humanidades e

Colgios Menores. Os Colgios das Artes e Humanidades asseguravam um ciclo de

Estudos, constitudo pelo Curso de Filosofia, que mediava entre os Estudos Menores

e a Universidade. Concediam bacharelato em Filosofia e licenciatura em Artes.

Cumpridos os Estudos Menores e uma vez examinados, os estudantes passavam

Filosofia, com durao de trs anos. As Artes eram necessrias Filosofia, assim os

escolsticos cursavam Matemtica no 2 ano do curso filosfico. Todos os alunos que,

no primeiro exame, se revelavam pouco dotados para a Filosofia, eram enviados ou

para [as lies] de casos (Casos de Conscincia), ou para o Ensino (Ratio Studiorum,

19.4). Recebiam uma formao para Coadjutores do Espiritual.

Os Jesutas tornaram-se responsveis pelo Colgio das Artes, em Coimbra, tendo

introduzido uma reestruturao pedaggica que tornou o Curso Filosfico, um curso

integrado, em que as Artes Liberais, ainda que no perdendo a vertente profissional,

18

ocuparam lugar secundrio, remetidas ao estatuto de auxiliares. Os lentes jesutas

tiveram um papel determinante nos destinos do Curso Teolgico da Universidade

de Coimbra, mas foi em vora que a instituio educativa-escolar, formada pela

constelao de Colgios Menores, espalhados na cidade e por concelhos da

regio, pelo Colgio Preparatrio onde era ministrado o curso de Filosofia, e pela

Universidade Teolgica, que dava consistncia geografia escolar e hierarquia

formativas, se tornou modelo. A Universidade Teolgica de vora resultou da elevao

do Colgio do Esprito Santo. O Curso de Artes tinha, em vora, a durao de quatro

anos. A academia jesutica de vora era constituda por estudantes de humanidades,

estudantes de artes, estudantes de casos, estudantes de teologia.

Os Colgios Menores acolhiam os estudantes durante cinco anos: trs de Gramtica,

um de Humanidades e um de Retrica. O total de classes poderia no entanto variar

em conformidade com a frequncia de cada Colgio. Os estudantes que no final do

primeiro exame de Gramtica revelassem dificuldades em prosseguir passavam

categoria de Coadjutores do Temporal. Para alm de Colgios e Universidades, a

misso Jesutica inclua residncias e casas de comunidades. A Companhia chegou

a Portugal em 1540, no mesmo ano em que, com data de 27 de Setembro, foi

aprovada pela Bula Regimini Militantis Ecclesiae, emanada pelo Papa Paulo III. Data

de 1542, a fundao, em Lisboa, da casa da comunidade de Santo Anto-o-Velho.

Esta foi tambm a primeira casa da Companhia no mundo. No mesmo ano de 1542,

foi fundada, em Coimbra, a primeira casa de formao de jovens Jesutas.

Em poucos anos, a Companhia ficou instalada nos principais centros administrativos

e culturais, para alm de Lisboa, Coimbra e vora, onde criou vida prpria. Assim,

em 1542 fixou-se em Lisboa (Santo Anto de Lisboa), Residncia, em 1542, Aulas

Pblicas, em 1553. No mesmo ano, de 1542, fixou-se em Coimbra; em 1551, em

vora; em 1560, no Porto; em 1561, em Bragana; em 1562, em Braga; em 1570,

em Angra (Ilha Terceira); em 1570, no Funchal (Ilha da Madeira). Em final do sculo

XVI, a Provncia da Companhia de Jesus, de Portugal e Ilhas contava quinhentas e

quarenta e trs pessoas, no contando moos de soldada, e oficiais necessrios, que

eram em bom nmero. (Cf. infra)

Justino Magalhes

Monumenta HistoricaO Ensino e a Companhia de Jesus 19

Uma escrita educacional

A Companhia de Jesus era uma estrutura total, desde os colgios e os locais

pedaggicos e escolares at a centralizao e a autoridade mxima, sedeada em

Roma. Essa estrutura vertical e uniforme estava contemplada na disposio dos

principais regulamentos, tambm eles ordenados do mais graduado para o mais

simples, ou seja do fim para o princpio.

A Companhia patrocinou compndios escolares comuns, transversais aos

diferentes pases. A principal autoridade residia no Geral, com sede em Roma.

Cada provncia estava confiada a um Provincial. O elemento escrito foi estruturante

da Companhia de Jesus, como comprova a Monumenta de que se aqui se publica o

Volume I. Trata-se de uma escrita formalizada e fruto de sucessivos traslados, mas que

contm uma paleografia cuidada. No campo da escrita, a Ars Scribendi de que uma

parte foi formalizada por Juan Polanco e includa nas Constituies e a De Institutione

Grammatica de Manuel lvares, Jesuta portugus, constituram mtodo e asseguraram

uniformidade. A De Institutione Grammatica, editada em 1572 e adoptada como

compndio oficial da Companhia, foi sucessivamente reeditada e posteriormente

ampliada com um glossrio.3 Foi tambm adoptada por outras Congregaes.

O termo educao, como o termo pedagogia e mais especificamente o termo

didctica no fizeram parte do lxico fundante da Companhia de Jesus. O campo

educacional est assinalado, mas no h, nos documentos estruturais, distino

explcita entre o que constituiria domnio educativo, domnio pedaggico, domnio

didctico. H uma constelao lexical em torno do escolar, de que fazem parte, entre

outros, os termos mtodo, matrias, classes, lio, exame, estudante, aluno, lente,

mestre, professor, livro, matria, disputa. So termos que, no sendo de um mesmo

domnio, determinam a tnica e determinam o campo do educacional, tal como est

presente na constituio e na aco dos Jesutas.

3 Cuide o provincial de que os nossos professores adoptem a Gramtica de Manuel [lvares] e se em algum lugar o seu mtodo parecer demasiado exigente para o entendimento dos alunos, faa ento adoptar a gramtica romana, ou compor outra gramtica que seja semelhante depois de consultar o Superior Geral. Seja porm, respeitada a autoridade de todas as regras de Manuel [lvares], e o seu carcter especfico. (Ratio Studiorum, I.23)

20

A anlise do conjunto de documentos que constitui este Volume I da Monumenta

Historica revela no entanto que h trs nveis e, a seu modo, trs grandes categorias

de escrita na documentao da primeira fase do Jesuitismo. H uma escrita

educativa constituda pelos Exerccios Espirituais e pelas Experincias probatrias,

onde a tnica reside na converso, na edificao e na transformao do indivduo.

H uma escrita pedaggica uma parte das Constituies e o Ratio Studiorum.

H uma escrita didctica formada pelos compndios, pelas normas de ensinar e

de examinar, pelas diversidade e complementaridade de exerccios, modalidades

de apresentao dos conhecimentos, modos de leitura e de escrita, escriturao

de presenas, premiaes, aconselhamentos. Estas escritas ficaram associadas a

profissionais e a especialistas, como foram os compndios e as cartas/ apostilas

das lies, mas tambm foram extensivas a prefeitos dos estudos e a coadjutores.

Uma das funes que d nota de uma escriturao formalizada foi a de bedel, que

registava as presenas, a pontualidade e a disciplina e que comunicava, escrevendo,

ao prefeito ou ao reitor. Haveria um livro de matrculas devidamente formalizado e

actualizado no registo de cada estudante.

A escrita pedaggica e a escrita didctica incluem registo, tradio e inovao.

Foi a escrita que permitiu a inovao como ressalta do documento trigsimo sexto,

infra includo na Monumenta Historica. H tradio e inovao e eram a escrita

pedaggica e a escrita didctica que as sustentavam. Cabia ao bedel ler e dar a ler

as regras de funcionamento das lies. Cada Academia deveria elaborar e afixar um

regulamento. Os actos acadmicos deveriam ser devidamente publicitados. Como

infra fica noticiado, a experincia foi tomada em considerao para a formalizao

de regras didcticas e de preceitos pedaggicos.

Monumenta Historica

A Monumenta Historica, de que agora se publica o Volume I, uma recolha

sistemtica e, dentro do possvel, exaustiva da documentao dos Jesutas da

Provncia Portuguesa. Inclui os aspectos gerais nos planos educativo, pedaggico,

didctico, incidindo fundamentalmente em relatrios e visitas. So documentos

conservados em Arquivos nacionais e no Archivum Romanum Societatis Jesu. Foram

deixados para recolhas posteriores, documentos de carcter especfico, assim os

relativos ao estado da economia ou s finanas de cada Colgio. De um modo geral,

Justino Magalhes

Monumenta HistoricaO Ensino e a Companhia de Jesus 21

no foram introduzidos nesta Antologia os documentos de carcter particular, assim

epstolas e cartas-nuas e os documentos que respeitavam histria especfica de

cada Colgio.

Os documentos foram transcritos na ntegra, respeitando a grafia original. A principal

finalidade desta Monumenta Historica constituir um arquivo cronologicamente

organizado, sobre a Educao e o Ensino dos Jesutas, reconstitutivo de uma narrativa

documental, independentemente do tema e do arquivo em que tais documentos

esto preservados. Sempre que foram encontradas mais que uma verso do mesmo

documento, foi dada preferncia mais legvel e foi feita meno das restantes

cpias. Foi privilegiada a publicao de documentos inditos, no entanto nos casos

em que a verso disponvel era mais completa que a verso j publicada, foi decidido

que o documento fosse de novo publicado.

H, nesta Monumenta, diferentes sries de documentos, parte significativa

dos quais reporta Universidade de vora e aos Colgios, mas que apresentam

uma perspectiva generalizvel. A maior parte desses documentos respeita uma

mesma estrutura discursiva, combinando o cronolgico e o narrativo: fundao,

caracterizao, funcionamento. H documentos que se referem ao perfil e ao

comportamento dos Membros da Companhia.

Este volume da Monumenta Historica composto por 42 documentos. O primeiro

data de 1539 e o ltimo um Inventrio de autores de obras escritas por Jesutas.

um inventrio geral que contm dados para os sculos XVI e XVII, mas tambm

alguma informao sobre o sculo XVIII. Para no repartir o documento e porque h

informao importante para o sculo XVI, optou-se por inclui-lo neste Volume I. Os

dois primeiros documentos transcritos reportam ao perodo imediatamente anterior

chegada dos Jesutas a Coimbra. O primeiro o regulamento dos Estudantes

da Universidade de Coimbra, assinado por D. Joo III, quando da transferncia da

Universidade para Coimbra. O segundo documento contm as obrigaes dos lentes

no Curso de Artes do Colgio das Artes. A incluso destes documentos na Monumenta

Historica deve-se relevncia dos temas e a ter-se concludo que o primeiro destes

regulamentos se manteve em vigor depois que os Jesutas assumiram a direco

do Colgio das Artes. Dali passaram a enviar Estudantes Universidade. O segundo

documento contm o Regulamento imediatamente anterior entrega do Colgio das

Artes aos Jesutas.

O terceiro documento o primeiro que reporta exclusivamente aos Jesutas.

Contm os captulos e as instrues de visitao, que deveriam ser aplicados em

22

todas as provncias. Foram dirigidos ao Reitor da Casa de Coimbra e ao Provincial.

O quarto documento transcrito o Regulamento da Universidade Teolgica de

vora, assinado pelo Cardeal D. Henrique em 1560. Foi actualizado em 1603 e em

1644. Dele constam o regulamento das matrculas, regras de conduta acadmica

e bons costumes, regras de frequncia e aprovao nos Cursos, orientao para as

lies e para os Lentes, regras para os estudantes que beneficiam de prebendas na

Universidade.

O quinto documento contm um acordo entre a Universidade de Coimbra e o

Colgio das Artes para que a verba que a Universidade haveria de pagar ao Colgio

pela leccionao dos lentes jesutas, ficasse dependente da variao do total de

cadeiras por eles asseguradas. Em virtude deste acordo, a verba original de trs mil

cruzados foi reduzida para seiscentos mil maravedis.

O sexto documento contm uma autorizao rgia para que os Religiosos da

Companhia de Jesus no possussem bens prprios e pudessem dispor deles, logo

aps dois anos de ingresso na Companhia, mesmo que com idade inferior a vinte e

cinco anos (idade consignada nas Ordenao rgias).

O stimo documento contm vrios pequenos documentos sobre os Porcionistas

da cidade de vora. Um deles reporta fundao, pelo Cardeal D. Henrique do

Colgio dos Porcionistas.

O oitavo documento no est directamente articulado com a Companhia de Jesus,

mas abrange a Companhia. Contm as Regras de censura, impresso e comrcio de

livros impressos e manuscritos, nos termos do Conclio de Trento, bem como o Rol de

livros proibidos.

O nono documento contm o Alvar sobre a aprovao dos Estatutos, provises e

regimentos do Colgio das Artes de Coimbra e Estatutos do Colgio das Artes, 1565.

Os estudantes deveriam aprender letras e aprender a respeitar os bons costumes.

Haveria no Colgio das Artes dez classes, nas quais eram ensinados latim e retrica,

haveria uma lio de grego, com durao de uma hora. Estas aulas eram abertas a

quem as quisesse ouvir. Haveria uma aula de Hebraico, tambm com uma hora. Esta

poderia funcionar no Colgio de Jesus. Haveria mais quatro lentes de Artes, comeando

cada ano um curso e haveria uma classe para ensinar a ler e escrever. No haveria

escolas privadas na cidade de Coimbra, com excepo de mestres de ler e escrever.

As outras congregaes poderiam ter classe prprias. Haveria um livro de matrculas.

Os estudantes vindos de fora seriam submetidos a exames e, na sequncia, enviados

Justino Magalhes

Monumenta HistoricaO Ensino e a Companhia de Jesus 23

Universidade. Do documento constam tambm os modos de examinar, as disputas,

as regras e quebras de disciplina, os rgos e respectivos poderes.

Documento dcimo Proviso do Cardeal D. Henrique contra os que falaram

sobre o cumprimento dos votos feitos na Companhia de Jesus.

O documento dcimo primeiro contm informao sobre a fundao do Colgio de

Jesus na ilha da Madeira e sobre a renda para manuteno do mesmo.

Documento dcimo segundo - Carta do Infante D. Henrique, enviada a Bernardo

Fernandes Tinoco, que se encontrava na Ilha da Madeira s ordens do Cardeal,

dando a conhecer que D. Sebastio tinha mandado edificar na Cidade do Funchal

um Colgio para a Companhia de Jesus, dotando com 600$000 ris de renda anual.

O Infante solicitava informao sobre como assegurar esse rendimento.

Dcimo terceiro - Traslado de uma carta do rei D. Sebastio, sobre o acordo entre

a Universidade de Coimbra e a Companhia de Jesus, referente ao pagamento por

parte da Universidade

Dcimo quarto - Traslado de uma carta do rei D. Sebastio, dando ordem para que

nos novos Estatutos da Universidade de Coimbra, no fosse includo nada do que

respeitava ao Regimento do Colgio de Jesus, nomeadamente os actos, os exerccios

e lies que nele se liam, porque o Colgio tinha Estatutos prprios e ordens

particulares. Em consequncia, o que fosse escrito nos Estatutos da Universidade

sobre matrias especficas do Colgio teria de ficar sem efeito.

Documento dcimo quinto - Memorial das Escolas de Coimbra, elaborado pela

Companhia de Jesus. referido que h 13 Casas de Congregaes em Coimbra e que

estas Congregaes procuravam ter ali os melhores lentes. No entanto, os Jesutas

continuavam a ser vulgarmente conotados como Gramticos, sendo os lentes de

Teologia, ao tempo, ainda muito pouco conhecidos.

Documento dcimo sexto Carta Rgia em que ficou estipulada a Renda de 600

ris destinada ao Colgio do Funchal, fundado para nele residirem estudando e

lendo latim conforme as suas constituies e modo de proceder.

Documento dcimo stimo Carta Rgia, estipulando a Renda de 600 ris

destinada ao Colgio de Angra do Herosmo, fundado em 1571, com duas classes de

Humanidades e uma de Casos de Conscincia.

Documento dcimo oitavo - Histria da Fundao do Colgio do Funchal, em

Fevereiro de 1574. O Cardeal D. Henrique pediu Companhia de Jesus que enviasse

missionrios para acompanhar e confessar os soldados que seguiram para a

24

Ilha da Madeira, que tinha sido saqueada por marinheiros franceses e ingleses.

Ficaram durante cerca de um ano em misso, voltando a Portugal para regressarem

posteriormente e fundarem o Colgio.

Documento dcimo nono - Traslado de uma Proviso de D. Sebastio para

negociao e compra de terrenos para que fosse efectuada a mudana do Colgio

de Santo Anto para o Campo de SantAna. Do processo constam vrios outros

documentos: cartas, avaliaes, embargos.

Documento vigsimo - Escritura de doao Companhia de Jesus, das casas

e Igreja [Nossa Senhora das Neves], pertencentes a Joo da Silva do Canto, para

instalao do Colgio na cidade de Angra, da Ilha Terceira.

Documento vigsimo primeiro - Alvar de Sua Alteza pelo qual a Arte de Gramtica

de Manuel lvares no pudesse ser impressa ou vendida sem aprovao dos Padres

da Companhia de Jesus da cidade de vora (1572).

Documento vigsimo segundo Estatutos do Colgio da Purificao de Nossa

Senhora, em vora (1579) destinado aos Telogos. Este Colgio tal como o Colgio

do Esprito Santo estavam integrados na Universidade. O Reitor da Universidade era

tambm Reitor do Colgio da Purificao. O Colgio comportaria cinquenta estudantes,

dos quais quarenta seriam cursantes que assistiriam s lies na Universidade e

dez seriam passantes, que estivessem a estudar no Colgio e a preparar-se para

fazerem seus autos e tomarem grau. Os Colegiais (telogos) no poderiam ter menos

de vinte anos de idade e deveriam ter as Ordens Menores. Para serem admitidos

deveriam ter o curso de Artes e serem nele, mestres ou licenciados.

Documento vigsimo terceiro Traslado de uma Carta Rgia outorgada pelo rei

D. Manuel e de novo outorgada pelo Rei Filipe I, sobre isenes e privilgios vrios

associados Universidade de Coimbra.

Documento vigsimo quarto - Instrues deixadas pelo Padre Ferno Guerreiro ao

Colgio da Ascenso de Angra no ano de 1592.

Documento vigsimo quinto - Lista de oraes e missas que os Padres, Irmos e

novios da Companhia de Jesus fazem pelas necessidades da Igreja (1595).

Documento vigsimo sexto - Alvar Rgio de novo concedido (1596), ao Padre

Provincial e restantes Padres da Companhia de Jesus, sobre a obra do Padre Manuel

lvares De Institutione Grammatica (Lisboa, 1572), ordenando que ningum possa

imprimir ou vender a referida Arte de Gramtica.

Documento vigsimo stimo - Rendimentos e despesas dos primeiros Colgios

fundados no sculo XVI.

Justino Magalhes

Monumenta HistoricaO Ensino e a Companhia de Jesus 25

Documento vigsimo oitavo - Apontamento do Padre Matias de S da Companhia

de Jesus, sobre o ofcio de Vice Provincial das Ilhas, sublinhando as razes principais

para a existncia deste cargo.

Documento vigsimo nono - Notcia da Casa da Companhia de Jesus na Cidade do

Porto, onde decorreram misses no ano de 1546. O Colgio veio a ser fundado em

1560, depois de um demorado e controverso processo poltico.

Documento trigsimo - Relao das propriedades e rendimentos que o Colgio dos

Jesutas da Cidade Angra possua na Ilha Terceira depois da reabertura do Colgio.

Documento trigsimo primeiro - Declarao das terras, vinhas e casas que o

Colgio de Angra da Ilha Terceira possui por compra e por doao.

Documento trigsimo segundo Renda de cada um dos Colgios da Companhia

de Jesus desta Provncia de Portugal no sculo XVI. A Companhia de Jesus tinha na

Provncia de Portugal e Ilhas, quinhentas e quarenta e trs pessoas. Este total no

inclui moos de soldada, e oficiais necessrios, que eram em bom nmero. Foram

apenas contados os religiosos; dos quais se tiraram sessenta que estavam em So

Roque, que por ser Casa Professa no podia ter renda. Ficaram nos colgios que

podiam ter renda, quatrocentos e oitenta e trs religiosos.

Documento trigsimo terceiro Regras e procedimentos definidos pelos Padres,

Visitadores Provinciais para a Provncia no que respeita passagem dos religiosos

de um para outro colgio.

Documento trigsimo quarto - Doutrina que o Padre mestre Francisco fez para os

Padres da Companhia que andavam por fora na converso dos infiis a ensinar os

cristos novamente convertidos. Contm um conjunto de Oraes.

Documento trigsimo quinto - Sobre os Estados da Companhia de Jesus, referido

que havia diferentes categorias e diferentes estados de Religiosos. Havia professos

e coadjutores - coadjutores espirituais formados e coadjutores temporais, tambm

formados. Havia professos de quatro votos solenes. No podiam ter este grau, seno

os Letrados que pudessem pregar e tivessem suficincia para ler Artes, e Teologia.

Documento trigsimo sexto Mtodo pedaggico praticado nos Colgios de vora.

O mtodo refere-se s 7 classes e foi estabelecido a partir da experincia. O mtodo

constitudo por um conjunto de regras, algumas comuns s diferentes classes e

outras variveis em conformidade com as classes e as matrias. O cuidado com a

ortografia mantm-se ao longo das classes.

Documento trigsimo stimo Memria sobre Se convm muitas escolas a um

Reino. O autor toma primeiro em considerao os argumentos de que da abundncia

26 Justino Magalhes

de escolas resultam prejuzos para os ofcios mecnicos. Apresenta depois uma

longa argumentao de ordem humanstica, cientfica, pedaggica, econmica. As

Matemticas so convenientes Filosofia e Teologia. O autor traa a evoluo das

universidades e planos pedaggicos, compostos pelas Artes Liberais, e Humanidades

e glosa, como motivo a favor da existncia de muitas escolas, a sentena de Clemente

Alexandrino de que a sabedoria, he o Pedagogo, ou Ayo do homem.

Documento trigsimo oitavo Retomando o argumento geral de que as Escolas

eram sinal de Estado prspero, este documento com o ttulo Duvida-se se convm

haver tantas Escolas em Portugal e em que forma se deva nisso proverem pretende

demonstrar a convenincia e as vantagens de mais escolas, mesmo sendo Portugal

um Reino pequeno.

Documento trigsimo nono - Alegaes dos Padres da Companhia de Jesus do

Colgio de Jesus em Coimbra, relativas s respectivas despesas e recolha do

dzimo, em resposta proposta dos procuradores dos Prelados e Cabidos do Reino

sobre o mesmo imposto.

Documento quadragsimo - Relao dos rendimentos de cada uma das

propriedades com rendas pertencentes ao um conjunto de Colgios (sc. XVI/XVII)

Documento quadragsimo primeiro - Estatutos da Universidade de vora ordenados

pelo Cardeal Infante D. Henrique (com autoridade do Santo Padre Paulo 4. revistos

e reformados por ordem do Reverendo Padre Mutio Vitelleschi, Prepsito Geral da

Companhia de Jesus)

Documento quadragsimo segundo - Biblioteca em que se apresentam os

Escritores da Companhia de Jesus, que ensinaram e viveram no Colgio do esprito

Santo de vora. Ali imprimiram Livros ou os escreveram para serem impressos.

Perfil do Jesuta

A observao de mais de meio sculo da Companhia de Jesus, informada pelos

documentos fundantes e pela Monumenta Historica, autoriza um balano e algumas

concluses. Os documentos estruturais foram sendo produzidos e reescritos a

partir da reflexo e da experincia, fruto de conciliaes vrias e da informao

recolhida atravs de um intenso processo epistolar. A coleco de documentos aqui

organizada d nota dessa memria e daquele movimento e um arquivo crtico e

depurado, produzido de modo oficioso, pela prpria Companhia. Est-se em face de

Monumenta HistoricaO Ensino e a Companhia de Jesus 27

um empreendimento total, colhendo todos os benefcios da aculturao, da cincia

e da racionalidade escritas.

A cultura letrada era meio de insero, comunicao, expanso e era um

processo (in)formativo e estruturante da Companhia enquanto instituio e do

perfil do Jesuta enquanto cristo, missionrio e mestre. Entrado na Companhia era

submetido a um primeiro tirocnio educativo, constitudo pelos Exerccios Espirituais.

O processo interior de converso prosseguia com experincias de exteriorizao

e aco social, enquanto simultaneamente prosseguia os Estudos Menores de

Gramtica, Humanidades e Retrica. Em face da incapacidade para prosseguir

estudos cumpria a sua vida como Coadjutor Temporal, migrando de local, conforme

as convenincias da Companhia. A concluso dos Estudos Menores dava acesso

Filosofia e s Artes. Se em face do primeiro exame de Filosofia, fosse verificada a

impossibilidade de prossecuo de via letrada, por parte de alguns estudantes, estes

eram encaminhados para os Casos de Conscincia ou para o Ensino e tornavam-

se Coadjutores do Espiritual. O Curso da Filosofia e de Artes conferia bacharelato

e licenciatura e preparava para a Teologia, destinada aos melhores e cursada na

Universidade.

A leitura era prtica usual e fazia parte do quotidiano do Jesuta. A autografia,

designadamente atravs da prtica epistolar, era uma prerrogativa de ser membro

da Companhia. Mas o exerccio cuidado e aperfeioado da escrita e da produo

discursiva era matria de correco e melhoria nos sucessivos anos escolares e

de curso para curso a complexificao e o desafio qualidade eram uma exigncia

crescente. A escrita, como meio essencial cultura letrada era factor de distino e

aperfeioamento.

O ltimo documento transcrito neste Volume I da Monumenta Historica Bibliotheca

em que se apresentam os Escritores da Companhia de Jesu, que moram neste

collegio, e imprimiram Liuros e os escreueram, pera os imprimir ilustra e documenta

o processo de aprofundamento, valorizao e distino atravs da escrita. Num

universo provvel de uns mil membros letrados da Companhia, no trnsito de

Quinhentos, ressalta um escol de cento e vinte e seis autores, associados ao Colgio

do Esprito Santo de vora. O perfil letrado era inerente ao Jesuitismo e a instituio

escolar moderna ficou a dever Companhia de Jesus, uma escrita, uma orgnica,

uma sistemtica, uma hierarquia administrativa e letrada, que garantiram durao e

universalidade.

28

*

A Monumenta Historica de que se publica o Volume I um contributo fundamental

para a histria dos Jesutas da Provncia Portuguesa e para a Companhia de Jesus,

em geral. A historiografia dos Jesutas conta j com publicaes desta natureza

para a generalidade das Provncias. Aqui se inicia a publicao sobre Portugal,

cuja relevncia e significado cedo se fizeram assinalar. A Provncia Portuguesa foi a

primeira a ser fundada. Nadal viajou a Portugal, em sede de visita geral, tendo deixado

indicaes que vieram a ser acolhidas por outras Provncias. Simo Rodrigues, que

foi um dos membros do Grupo de Paris, veio para Portugal e ficou.

A Doutora Teresa Rosa tem vindo a realizar um trabalho to meritrio quanto

titnico de recolha, transcrio, inventrio crtico. Para facilitar o trabalho do leitor,

acrescentou aos dados arquivsticos, uma ficha descritiva uniformizada de que

constam o contexto histrico e o sumrio. A opo por uma disposio cronolgica

dos documentos favorece a viso sequenciada e faz de cada documento um evento.

Essa narrativa fica em parte indiciada, no resumo dos documentos. A recolha foi feita

atravs da visita a cada um dos arquivos. Atravs desta Antologia pode historiar-se

o movimento de expanso da Companhia em Portugal. H documentao sobre o

modo e ritmo como tal processo aconteceu, mas h tambm informao geral e a

possibilidade de uma construo de sentido.

Lisboa, 16 de Maio de 2015

Justino Magalhes

Justino Magalhes

PARTE I

I. Introduo .................................................. 311. Critrio adoptado na transcrio

dos documentos ...................................... 352. Descrio sumria ..................................... 37

II. Histria breve da Companhia de Jesus ... 431. A Fundao da Companhia de Jesus .......... 432. Os rgos Gerais da Companhia

de Jesus ................................................... 543. As Categorias atribudas aos Jesutas ....... 674. Os primeiros Ratio de Nadal, Coudret,

Ledesma e Borgia .................................... 715. O Ratio Studiorum do Padre Claudio

Aquaviva................................................... 746. A Educao em Portugal antes

dos Jesutas: primeira metade do sculo XVI ............................................ 75

7. O Estabelecimento da Companhia de Jesus em Portugal e os Colgios criados at meados at meados do sculo XVIII .................... 82

8. O aumento do nmero de membros da Ordem desde a sua fundao ............ 87

Monumenta HistoricaO Ensino e a Companhia de Jesus 31

() a Histria que nos habitua a descobrir a relatividade

das coisas, das ideias, das crenas e das doutrinas, e a

detectar por que razo, sob aparncias diferentes, se voltam

a repetir situaes anlogas, se reproduz a busca de solues

parecidas ou se verificam evolues paralelas. O historiador

est sempre a descobrir no passado longnquo e recente o

mesmo e o outro, a identidade e a varincia, a repetio e a

inovao ().

(Jos Mattoso, A Escrita da Histria, 1997, pp. 14-17)

I. Introduo

A presente Monumenta Historica, que agora se publica, surge como resultado de

vrios anos dedicados investigao, sobre a Companhia de Jesus em Portugal, cujo

primeiro fruto adveio da pesquisa que desenvolvamos para a preparao da Tese de

doutoramento.

Em funo da riqueza das fontes, foi possvel ainda repensar e reactualizar a

informao, partindo daquela Tese, e elaborar um segundo trabalho intitulado

A Universidade Teolgica de vora, publicado pelo Instituto da Educao da

Universidade de Lisboa, em 2013.

Desta forma, um dos objectivos principais deste trabalho, sobre a Companhia

de Jesus, foi a transcrio de um corpus documental seleccionado, tendo por base

os textos sobre o ensino Jesuta e a vida das Instituies inacianas pertencentes

Provncia Portuguesa. Procurou-se produzir uma obra de referncia clara, que

contenha informaes histricas fundamentais, acessveis a todos os interessados e

estudiosos de Histria, e que simultaneamente permita aos especialistas avanarem

em estudos mais aprofundados sobre os primeiros Jesutas.

32 Teresa Maria Rodrigues da Fonseca Rosa

Embora alguns destes documentos tenham sido, j em parte, consultados

e utilizados por investigadores, esta obra recolhe, no entanto, uma compilao

arquivstica, quase indita na totalidade. uma investigao exaustiva.

At hoje, no existia em Portugal, um guia de documentao relevante para a

Histria Religiosa e para a Histria da Educao da Companhia, em Portugal.

A Ordem inaciana continua a ser um terreno riqussimo, mas praticamente ermo

em termos de pesquisa e de anlise crtica aprofundada na linha da historiografia

mais actualizada sobre este tema.

Qualquer pesquisa que recorra essencialmente a fontes manuscritas, deve ter

como premissa o facto incontornvel de que a documentao disponvel e acessvel

apenas uma pequena parte de toda a documentao produzida.

Dada a vastssima documentao criada ao longo dos sculos de Histria, em que

os Jesutas estiveram presentes em Portugal, at sua expulso em 1759 (cerca

de duzentos anos) contando tambm com a produo nos momentos da sua aco

enquanto instituio organizada e estabelecida no Pas, tornar-se-ia impossvel

abrang-la na sua totalidade, tal obrigaria a um trabalho de muitos anos.

A forma como a Companhia de Jesus se organizou, assegurou a produo de um

manancial de documentao escrita absolutamente extraordinria de grande riqueza

informativa. Todo o tipo de acontecimentos se encontra registado e com elevado

grau de pormenor.

No entanto, esta aparente abundncia de registos, no deve ocultar a dificuldade

por ns sentida, quando se trata de elaborar um corpus documental referente

ao Ensino Jesuta, pois tais informaes, de uma maneira geral, encontram-se

disseminadas na maior parte da documentao. Excepo para alguns textos

referentes s visitaes e orientaes deixadas Provncia Portuguesa, sobre as suas

Instituies, aos Estatutos da Universidade de vora e do Colgio da Purificao em

vora, o Regimento do Colgio das Artes em Coimbra, apontamentos dos visitadores,

e em alguns Catlogos breves e trienais. Esta documentao encontra-se transcrita

nesta Monumenta Historica que agora se publica.

Assim, a realizao de uma colectnea documental deste gnero implica escolhas

e decises sobre o que reunir e excluir. Na verdade, muitos so os textos e documentos

sobre a Companhia de Jesus que esto espalhados pelos Arquivos e Bibliotecas, e

todos so importantes para a sua Histria. Muitos outros, se perderam no tempo.

No ignoramos que apareceram recentemente estudos parcelares sobre esta

Ordem religiosa. A maior parte deles, no entanto, consagram-se a Instituies

Monumenta HistoricaO Ensino e a Companhia de Jesus 33

isoladamente, ou a personagens determinadas. A disperso temtica, espacial e

cronolgica, assim como, a ausncia de snteses anteriores mostram que no so de

modo algum suficientes para termos um conhecimento esclarecedor do verdadeiro

papel histrico dos Jesutas, e a maneira como actuaram no contexto da Sociedade

no quadro do Portugal moderno.

Desta forma, importa referir que o trabalho de compilao e transcrio documental

dos textos histricos sobre a Companhia de Jesus em Portugal no est feito.

Conhecem-se alguns trabalhos de referncia, como a obra do Padre Francisco

Rodrigues A Histria da Companhia de Jesus na Assistncia a Portugal, 4 Tomos

(1931, 1938, 1944 e 1950) com um apndice documental sobre a Provncia; as

obras do Padre Antnio Franco Ano Santo da Companhia de Jesus em Portugal e

a Synopsis Annalium Societatis Jesu in Lusitnia ab anno 1540 usque ad annum

1725; Monumenta Ignatiana; Monumenta Borgia; Fabri Monumenta; Monumenta

Xaveriana; Bobalillae Monumentae; Polanco Historia Societatis Iesu; Monumenta

Paedagogica. Sobre outras Provncias: a Monumenta Japoniae; Monumenta

Mexicana; Monumenta Peruana; Monumenta Brasiliae, do Padre Serafim Leite.

Importa sublinhar, que algumas destas obras podem ser consultadas na pgina da

internet do Arquivo Romano da Companhia de Jesus (ARSI), embora no exista obra

do gnero sobre a Provncia Portuguesa.

No ordenamento das balizas cronolgicas deste trabalho, urge realar duas datas

emblemticas que a delimitam, fixando-se o texto no perodo que marca o reinado de

D. Joo III, e o papel preponderante que desempenhou na instalao da Companhia

de Jesus em Portugal e a consequente fundao da Ordem inaciana em 1540; e o

reinado de D. Jos I e, consequentemente, a expulso da Companhia de Jesus do

territrio Portugus no ano de 1759.

A obra ser composta por trs volumes referentes aos sculos XVI, XVII e XVIII.

Neste nosso primeiro volume da Monumenta Historica (1540-1580), iremos

apenas consagrar a transcrio dos documentos seleccionados e de referncia, que

premeiam este perodo. Alguns textos, embora com data posterior, sero includos

nesta obra por se tratar de treslados de documentos referentes a esta poca.

No ordenamento cronolgico, este perodo relativo aos reinados de D. Joo III, D.

Sebastio (incluindo as regncias de sua av D. Catarina e do seu tio-av o cardeal D.

Henrique) e ao reinado do cardeal-rei D. Henrique (at sua morte, no ano de 1580).

Inclui ainda o perodo conturbado do ano de 1580 e a consequente subida ao poder

de D. Felipe I, aps o triunfo sobre D. Antnio, Prior do Crato, na batalha de Alcntara.

34 Teresa Maria Rodrigues da Fonseca Rosa

As fontes consultadas e transcritas embora de natureza diversa, centram-se

sobretudo nos documentos respeitantes ao ensino, vida das Instituies inacianas

(econmica e religiosa), s suas fundaes, s orientaes e visitaes dirigidas a

alguns Colgios pertencentes Provncia Portuguesa, a regulamentos dos lentes do

Colgio das Artes em Coimbra e aos Estatutos da Universidade de vora.

A recolha das fontes necessrias consecuo desta obra, incidiu particularmente

nos fundos das bibliotecas e arquivos que passamos a nomear: Academia das

Cincias de Lisboa; Arquivos Nacionais/Torre do Tombo; Biblioteca Nacional de

Portugal/ Reservados; Biblioteca da Ajuda; Biblioteca Pblica e Arquivo Distrital de

vora e, nomeadamente, no Arquivo Romano da Companhia de Jesus (A.R.S.I.).

Nos Arquivos Nacionais /Torre do Tombo incidiu, essencialmente, nos fundos do

Armrio e Cartrio Jesutico, que contm documentos relativos aos Colgios; privilgios

e respectivos pareceres e propostas; pareceres sobre a gente da nao; censuras

relativas ao Santo Ofcio; estatutos particulares sobre o Governo da Companhia e

das misses; notcias de Roma; estatutos; previses; privilgios; pareceres sobre

diversos assuntos; receitas e despesas referentes aos Colgios. Neste mesmo

Arquivo, importa lembrar ainda, outro fundo com documentao importante, os

Manuscritos da Livraria.

Por ltimo, importa destacar o Arquivo Romano da Companhia de Jesus, onde as

fontes consultadas e transcritas se centraram, sobretudo, nos fundos referentes

correspondncia Jesutica, aos Catlogos breves e trienais, e ao Fundo Jesutico.

Os documentos neste Arquivo encontram-se organizados segundo um critrio

territorial de localizao de assistncias, Provncias e misses. A correspondncia

epistolar est ordenada conforme a provenincia, e dividida: a) cartas enviadas de

Roma; b) cartas enviadas de Roma para as Provncias (entre estas tambm as cartas

destinadas s pessoas de fora da Companhia).

A correspondncia de cada Provncia divide-se ainda em: a) cartas ao Geral; b)

catlogos breves e trienais; c) histria e acta; d) anuas; e) fundaes; f) necrologia;

g) obras manuscritas sobre a histria dos Colgios, misses (no interior e ultramar),

negcios das Provncias e tratados. No Fundo Jesutico podemos analisar ainda,

algumas visitaes Provncia de Portugal, privilgios e catlogos. Sublinharemos

tambm, a documentao que se encontra no Arquivo e Biblioteca de vora,

respeitante aos Colgios e Universidade de vora.

Monumenta HistoricaO Ensino e a Companhia de Jesus 35

O trabalho de leitura e transcrio no foi fcil. Com textos relativamente

longos, que ofereceram vrios problemas de leitura: em muitos exemplares que

pudemos consultar, algumas pginas apresentavam manchas grficas, onde a tinta

quase desapareceu, quer pela eroso do tempo, quer pelo uso. Em alguns casos

faltam mesmo flios; folhas rasgadas; por vezes, encontram-se escritas com erros

ortogrficos, riscadas ou mesmo escritas por vrias mos.

No havendo normas universais de transcrio de documentos, dentro das vrias

metodologias utilizadas por palegrafos portugueses, tomou-se como referncia

as orientaes gerais contidas em Avelino Jesus da Costa1 e algumas das normas

aconselhadas por Borges Nunes2.

No incio de cada documento fez-se a respectiva identificao: com elementos

cronolgicos e com dados topogrficos, com ordenao do ano, ms, dia e lugar,

sempre que possvel. Optou-se ainda, por incluir um pequeno sumrio em cada texto,

assim como, a contextualizao.

1. Critrio adoptado na transcrio dos documentos

No havendo normas universais de transcrio de documentos, dentro das vrias

metodologias utilizadas por palegrafos portugueses, consideraram-se as orientaes

gerais contidas em Avelino da Costa3 e algumas das normas aconselhadas por Borges

Nunes4, levando em conta que as utilizamos em documentos onde predomina o valor

histrico, posto que respeitar o valor literrio implicaria outro tipo de transcrio

paleogrfica. Deste modo seguiram-se seguintes regras:

1 Costa, Avelino Jesus da, Normas Gerais de Transcrio e Publicao de Documentos e Textos Medie-vais e Modernos, Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, Coimbra, 2 edio, 1982.2 Nunes, E. Borges, lbum de Paleografia Portuguesa, Faculdade de Letras da Universidade de Lis-boa, Lisboa, s.d.3 Costa, Avelino Jesus da, op. cit., p. 78.4 Nunes, E. Borges, op. cit., s.d.

36 Teresa Maria Rodrigues da Fonseca Rosa

No incio de cada documento fez-se a identificao: com elementos

cronolgicos e com dados topogrficos, com ordenao ano, ms, dia e lugar,

sempre que possvel. Quando no foi dado determinar o tempo ou o lugar,

colocou-se, s.d. ou s.l.. Quando algum destes dados for inferido do texto, ser

indicado entre parnteses rectos.

Indicou-se a mudana de folhas com o nmero entre parnteses curvos, em

corpo carregado, ou o nmero de folhas correspondentes, em alguns casos.

No se assinalaram as indicaes de mudana de linhas do original, para

simplificao de leitura.

Fez-se a correspondncia letra a letra, entre o original e a transcrio.

Na transcrio de sinais de pontuao, conservou-se a pontuao original,

mas reduziram-se as vrias combinaes de traos e pontos do original aos

sinais topogrficos disponveis: ponto, dois pontos; trao ou vrgula.

Quanto aos sinais diacrticos, conservaram-se apenas os de funo fontica.

Desdobraram-se as abreviaturas, exceptuando as que so mais frequentes e

no oferecem dvidas, seguindo-se o critrio utilizado pelo prprio escriba em

formas extensas. Na resoluo das abreviaturas no se destingiu graficamente

as letras originais.

A forma da conjugao copulativa e no original em maiscula E, foi tomada

como abreviatura tendo sido transcrita como e.

Conservou-se o y, mas sem a plica original.

Conservou-se o uso de maisculas e de minsculas originais.

Indicou-se a nasalao com m, n e til.

No se fez distino entre o s longo e o s de dupla curva.

Manteve-se o uso do i e do j, do u e do v, do c e do conforme o documento.

Ligaram-se e desligaram-se as palavras de acordo com as suas formas

correntes.

Utilizou-se o apstrofo para separar a preposio de das palavras que a

precedem, ligadas no original.

Esclarecimentos nossos foram colocados entre parnteses curvos ( ).

As lacunas do suporte, devidas a rasuras, borres, cortes, humidade,

foram indicadas entre parnteses rectos [ ]: quando foi possvel presumi-las,

reconstituram-se e indicaram-se entre os parnteses rectos; quando o no foi,

colocam-se tantos pontos quantas seriam as letras pressupostas, dentro dos

parnteses rectos [.......].

Monumenta HistoricaO Ensino e a Companhia de Jesus 37

As lacunas do texto, ou seja: letras, palavras, ou frases omitidas devido a falha

do arqutipo, esquecimento do copista ou lapso do escriba, foram indicadas

entre parnteses angulares < >.

As letras ou palavras adicionadas em entrelinhas ou marginais transcreveram-

se no lugar prprio do texto, entre traos oblquos \ /.

Erros corrigidos no original (por riscado, ou cancelamento), indicaram-se

entre parnteses rectos duplos [[ ]].

Havendo erro manifesto notificou-se com a indicao sic.

As leituras duvidosas assinalaram-se fazendo-as seguir de ponto de

interrogao entre parnteses curvos (?).

Na indicao da chamada para notas nossas, utilizou-se a ordenao

numrica rabe entre parnteses curvos; quando a indicao de nota se

encontra encostada palavra anterior, a nota respeitante a essa palavra; se a

indicao est no intervalo de duas palavras ou de duas linhas, desencostada,

refere-se ao que se passa nesse intervalo, no manuscrito.

2. Descrio sumria

A Companhia de Jesus fundada sob a gide de Santo Incio de Loyola e aprovada por

Paulo III, a 27 de Setembro de 1540, atravs da Bula Regimini Militantis Ecclesiae,

cuja formulao foi reelaborada a 21 de Julho de 1550 pela Bula Exposcit Debitum

de Jlio III, tinha como objectivos principais: a pregao, a prtica da caridade e

educao da juventude.

O ideal pedaggico dos primeiros Jesutas reflecte o estilo de Incio de Loyola.

A sua pedagogia nasce, numa poca marcada por acontecimentos profundamente

relevantes. Contudo, na base de todos os princpios inspiradores esteve a f crist, a

sua viso do mundo e da vida.

A originalidade da Companhia no se encontra apenas numa certa forma de

sensibilidade religiosa, mas na transformao da experincia pessoal de Santo Incio

de Loyola em experincia pedaggica, caracterizada por uma dimenso mstica.

Dirigida para o servio dos homens numa misso de apostolado, patente no s no

livro dos Exerccios Espirituais, mas tambm nas Constituies da Companhia de

Jesus e nas diversas ordenaes de estudos, anteriores ao texto oficial e definitivo

do Ratio Studiorum 1599.

38 Teresa Maria Rodrigues da Fonseca Rosa

Essa pedagogia no nascendo de um dia para o outro, foi mrito dos primeiros

Jesutas que aproveitaram toda a riqueza cultural do Humanismo, adoptando um

conjunto de tcnicas pedaggicas, que no tempo do fundador eram, avanadas

e encontravam-se representadas no Modus Parisiensis, isto , na metodologia

educativa desenvolvida na Universidade de Paris.

Foi este o ponto de partida, para todo o desenvolvimento posterior, com base

em experincias pedaggicas diversas que iriam ser codificadas no Ratio Studiorum

de 1599, servindo de tronco educativo a todos os Colgios inacianos at 1759.

Continham uma srie de regras, directrizes de carcter prtico, que se referiam a

vrias questes, tais como: os aspectos da formao e distribuio de professores,

os programas e mtodos de ensino. Nelas se do igualmente indicaes sobre o

comportamento dos alunos.

O sistema pedaggico permitia, ainda, uma slida formao em letras humanas,

seguida de estudos de filosofia, que culminava nos estudos teolgicos.

Tomada a deciso de incluir a instruo como um dos meios mais eficazes

para atingir os objectivos a que a Companhia se propunha, tornou-se necessrio

elaborar um documento que orientasse essa actividade, e que ficasse consagrada

na lei fundamental: as suas Constituies. Na parte IV, escrita em dois momentos

distintos, por Incio de Loyola, desde 1549 at data da sua morte em 1556,

encontramos o mais importante do seu pensamento sobre educao. Composta

por 17 pequenos captulos e um prlogo intitulado Como instruir nas letras e em

outros meios de ajudar o prximo os que permanecem na Companhia, os restantes

captulos so dedicados s Universidades da Companhia.

Na parte IV encontramos os principais aspectos pedaggicos que esto na

origem da regulamentao posterior, sendo toda dedicada educao e formao

dos Jesutas formados e em formao, eram referentes orientao de carcter

metodolgico, revelando o interesse que Incio de Loyola tinha pelo apostolado da

educao.

Podemos considerar esta parte como o primeiro esboo do Ratio Studiorum, pois

como sugere Jos Martins Lopes a inteno inaciana, ao escrever estes breves

dezassete captulos [] era a de dar uma semente para futuros documentos,

especialmente o Ratio Studiorum5

5 Lopes, Jos Martins, O Projecto Educativo da Companhia de Jesus. Dos Exerccios Espirituais aos nossos dias, 2002, p. 99.

Monumenta HistoricaO Ensino e a Companhia de Jesus 39

Na histria da Companhia Jesus, os Colgios e Universidades, assumiram um

papel decisivo como meio de atingirem os objectivos pretendidos pela Ordem recm-

fundada.

Com efeito, nos Colgios modernos, tal como sublinha Justino Magalhes,

os alunos preparavam-se, quer para acederem Universidade,

muito embora apenas uma minoria viesse a concluir o curso

universitrio, quer para o desempenho de funes ao nvel das

chancelarias, da administrao pblica e privada e das instncias

judiciais6.

Portugal foi o primeiro reino da Cristandade a solicitar os servios dos Jesutas

logo no ano anterior sua instituio oficial, em 1540.

A procura de religiosos bem preparados, para realizar o programa de doutrinao

crist, que coexistia com o projecto econmico da expanso portuguesa, levou D. Joo

III, a acolher em Portugal, no ano de 1540, a nova Ordem inaciana que, rapidamente

ganhou grande estima por parte do monarca. Desta forma no s lhes concedeu

importantes meios materiais e financiamento econmico, assim como a proteco

poltica e recomendao diplomtica, abrindo-lhes as portas ao mundo, atravs do

vasto imprio portugus.

Na capital portuguesa foi fundada, em 1542, a primeira casa prpria da Companhia

de Jesus em todo mundo: a comunidade de Santo Anto-o-Velho. A primeira casa de

formao de jovens Jesutas foi instituda em Coimbra, em 1542.

A aco catequizadora da Companhia de Jesus estava a transformar-se num forte

apelo ao revigoramento espiritual da populao, quer por pregao, quer por meio

da confisso, de acordo com uma tendncia geral do catolicismo tridentino, donde

resultou um aumento da devoo das camadas jovens. Rapidamente os membros

do grupo fundador desta nova Ordem, ganharam a percepo de que uma aposta na

educao seria um grande meio para transformar a sociedade luz do seu iderio

reformista catlico e, ao mesmo tempo, assegurar a sua afirmao enquanto

Ordem.

6 Magalhes, Justino, Um Contributo para a Histria do processo de Escolarizao da Sociedade Portuguesa na Transio do Antigo Regime, Educao Sociedade & Cultura, FPCE, N 5, 1996, p.16.

40 Teresa Maria Rodrigues da Fonseca Rosa

A obra educativa dos Jesutas situava-se em especial, aos nveis do ensino mdio

e superior, no sendo o ensino elementar considerado como parte indispensvel do

seu programa educativo. Ensinar a ler e a escrever seria tambm considerada obra de

caridade, mas tal s se verificava se a Companhia de Jesus tivesse gente suficiente

que pudesse acudir a tudo. Desta maneira, por falta de gente, ordinariamente no

se ensinar7.

Ao longo dos sculos XVI e XVII, nos pases mais influenciados pela Contra-Reforma

Religiosa, e na sequncia do Conclio de Trento, multiplicaram-se as Instituies

Inacianas.

Em Portugal, o aumento do nmero de Colgios, alunos e membros da Companhia

durante este perodo, a importncia que alcanaram no ensino, e a catequizao

das populaes, dentro da Provncia Portuguesa, tornam os Jesutas merecedores

da realizao de uma vasta investigao com as caractersticas desta que agora

se publica. A disperso documental recomenda e justifica a reorganizao e

compilao arquivstica, que permita uma reviso historiogrfica sobre o Jesuitismo,

reconstituindo-se, assim, as fontes manuscritas e impressas de maior relevo e de

uma forma criteriosa.

So muitas as interrogaes que se pem ainda hoje aos historiadores,

nomeadamente sobre a vida destas Instituies, o percurso dos seus alunos, a

aco evangelizadora da Ordem, o seu impacto e transformaes sociais e culturais

na poca moderna.

Escrever para o Jesuta no era meramente um acto de informar, mas tambm

de zelar pela unio da Companhia. Preocupado em preserv-la, entre sbditos e

Superiores, pelo vnculo da obedincia e o controlo da Ordem distncia, Incio de

Loyola implementou como sistema a correspondncia epistolar. Por meio de cartas,

o fundador pretendia manter o Governo central informado sobre as actividades

dos missionrios e das Instituies inacianas pelo mundo, e diminuir os efeitos da

disperso e da diversidade dentro da Companhia.

A rede de informaes que, pouco a pouco, se formar com a circulao da

correspondncia Jesutica, servir para que a Ordem faa uma contnua reviso do

trabalho feito, e estabelea a previso sobre o futuro, lanando as bases para um

novo mtodo de Governo de uma Ordem religiosa essencialmente virada, para o

7 Rosa, Teresa Maria Rodrigues da Fonseca, O Colgio da Ascenso de Angra do Herosmo, 2005, p. 24.

Monumenta HistoricaO Ensino e a Companhia de Jesus 41

ensino e para aco missionria.

Sob a influncia de Incio, e a partir de 1547, com o contributo do seu secretrio

Juan Polanco, a instituio epistolar ganhou um novo flego. Desta forma, os primeiros

Jesutas enviaram milhares de cartas aos seus companheiros e aos Superiores em

Roma, relatando as suas experincias, dificuldades, obras e aces.

Nas Constituies, Incio de Loyola, antecipou algumas regras para a redaco

e divulgao da correspondncia, e instituiu dois tipos de missivas: as cartas

principais, onde se narravam actos edificantes, que pudessem ser mostradas a

qualquer pessoa fora da Companhia, e as particulares. Ambas tinham objectivos,

funes e destinatrios definidos legalmente, e muitas delas ficavam restritas ao

mbito interno e aos altos dignatrios da Companhia.

Com o rpido crescimento da Ordem, e consequentemente do aumento no nmero

de cartas recebidas e enviadas, esta prtica passou a exigir toda uma estrutura de

registos, copistas, envios e arquivos.

Para que as notcias chegassem a todos os membros da Ordem, os Jesutas das

diversas Casas e Colgios de cada Provncia, deviam escrever, a cada quatro meses,

uma carta edificante em lngua verncula e outra em latim. Essas cartas deveriam ser

enviadas em duplicado ao Provincial, e este mandaria ao Geral um dos exemplares

em vernculo e outro em latim, juntando uma carta sua, para contar factos omitidos

nas primeiras. Fazia elaborar quantas cpias fossem necessrias para os membros

da sua Provncia.

Nas Universidades existia um Sndico geral, que informava o Superior Provincial

sobre o Reitor, e acerca das pessoas e das questes em particular, e este ltimo,

informaria o Geral.

Por outro lado, o Reitor escreveria, todos os anos, ao Superior Geral a respeito de

todos os professores e sobre os outros membros da Ordem pertencentes instituio.

O Sndico escreveria sobre o Reitor e a restante populao, uma vez por ano; e duas

vezes por ano ao Provincial. Este informava o Geral sobre o que achava conveniente8.

As cartas das Universidades deveriam ser enviadas fechadas, de modo a ningum

8 Abranches, Joaquim, As Constituies da Companhia de Jesus, art. 504, p. 158.

42 Teresa Maria Rodrigues da Fonseca Rosa

saber o que o outro escreve9.

Finalmente o Superior Geral deveria fazer com que os Provinciais lhe enviassem

cartas assiduamente, informando sobre o que se passava em todas as Provncias, e

responderia emitindo o seu parecer sobre o que lhe fora comunicado10.

Importa sublinhar ainda, que embora as normas constitucionais sobre a

correspondncia epistolar tenham sido estabelecidas como definitivas em 1565,

na segunda Congregao Geral foi aprovado um decreto, substituindo as cartas de

edificao quadrimestrais por cartas nuas. Esta norma entraria em vigor no ano de

1568. Da mesma forma, na terceira Congregao Geral em 1572, o Superior Geral

passou a ter, segundo as circunstncias, a competncia para determinar as normas

que devem ser seguidas acerca das cartas a escrever por ofcio () e das notcias

destinadas edificao espiritual11.

9 Idem, Ibidem.10 Abranches, Joaquim, op. cit., art. 790, pp. 241-242.11 Pedro, Lvia Carvalho, Histria da Companhia de Jesus no Brasil, Universidade Federal da Bahia, 2008, pp. 24-25.

Monumenta HistoricaO Ensino e a Companhia de Jesus 43

II. Histria Breve da Companhia de Jesus

1. A Fundao da Companhia de Jesus

Pensamos que uma breve reflexo sobre a vida de Incio de Loyola se torna

necessria para entendermos o perfil do homem e a conjugarmos com a obra e

caminhada espiritual, at fundao da Companhia de Jesus.

Nasceu, provavelmente, em 1491, no austero e slido castelo dos Loyolas, na

Provncia Basca da Guipzcoa. ltimo de treze irmos, filho de Beltro Yez de Onz

y Loyola e de Mariana Sauz de Licona. Baptizado na Igreja de Azpeitia, recebeu o

nome de Iigo de Oaz y Loyola, possivelmente em honra do Santo Beneditino Iigo

de Oa1.

Encaminhado por seu pai, para a carreira eclesistica, Incio aprendeu com tenra

idade os primeiros rudimentos de ler e escrever.

Recebeu uma educao na corte (entre 1506-1517) e serviu como oficial no

exrcito do Vice-rei espanhol de Navarra, portanto, de Carlos V. Em 1521, durante a

defesa de Pamplona contra os franceses, foi gravemente ferido numa perna2.

A longa permanncia forada no leito deu-lhe a oportunidade de se entregar

leitura de obras piedosas, que o inclinaram a meditar sobre o seu passado desregrado,

desprezando todos os bens que possua. Sofreu, com isso, uma profunda mudana

interior3.

No princpio de Maro de 1522, dez meses aps a derrota de Pamplona, Incio

julgou-se suficientemente restabelecido para poder encetar a peregrinao a

Jerusalm4.

1 Bangert, William V., A Histria da Companhia de Jesus, p. 11.2 Franzen, August, Breve Histria da Igreja, p. 340. 3 Carvalho, Rmulo de, Histria do Ensino em Portugal, p. 284.4 Bangert, William V., op. cit., p. 16.

44 Teresa Maria Rodrigues da Fonseca Rosa

Foi no silncio de Mantesa (Maro de 1522 a Fevereiro de 1523), que sofreu a sua

transformao mstica5. Foi tambm a que surgiu o primeiro esboo dos Exercitia

Spiritualia, o seu pequeno livro de exerccios, reduzindo a escrito os preceitos da

sua orientao religiosa. Formava um conjunto de regras, extremamente severas, de

contemplaes, meditaes e oraes.

Foi durante