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SERVIÇO DE EDUCAÇÃO E BOLSAS N.º 31 FUNDAÇÃO CALOUSTE GULBENKIAN H I S T Ó R I A E ANTOLOGIA DA LITERATURA PORTUGUESA S é c u l o XVII

HISTÓRIA E ANTOLOGIA DA LITERATURA PORTUGUESA … · rácter didáctico-moral ou hagiográfico (por exemplo: Obras Morales, de 1664); textos de na- ... berdade e o amor, sempre numa

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SERVIÇO DE EDUCAÇÃO E BOLSAS

N.º 31

FUNDAÇÃOCALOUSTE

GULBENKIAN

H I S T Ó R I AE A N T O L O G I ADA L I T E R AT U R AP O R T U G U E S A

S é c u l o

XVII

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HALP N. 31

Professores/Investigadores

Joan Estruch TobellaJoel SerrãoJosé V. Pina MartinsMaria de Lourdes Correia FernandesPedro Serra

Agradecimentos

Angelus NovusCâmara Municipal de SantarémCentro Calouste GulbenkianImprensa Nacional Casa da Moeda

Ilustração Capa:

Imagem de um mostrador de relógio mecânicoda 1.ª metade do Séc. XVII, em azulejos polí-cromos: réplica do mostrador original, contidona edição da Câmara Municipal de SantarémTorre das Cabaças. Núcleo Museológico do Tempo.Fotografia de Pedro Aboim.

Ficha Técnica

Edição da Fundação Calouste GulbenkianServiço de Educação e BolsasAv. de Berna 45A - 1067-001 LisboaAutora: Isabel Allegro de MagalhãesConcepção Gráfica de António Paulo GamaComposição, impressão e acabamentoG.C. Gráfica de Coimbra, Lda.Tiragem de 11.000 exemplaresDistribuição gratuitaDepósito Legal n.° 206390/04ISSN 1645-5169Série HALP n.° 31 - Dezembro 2004

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D. FRANCISCOMANUEL DE MELO

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ÍndiceNota Prévia ....................................................... 7

ESTUDOS, INTRODUÇÕES:

“A Obra Poética”José V. Pina Martins .......................................... 13

“Apólogos Dialogais e diálogos alegóricos”Pedro Serra ...................................................... 15

“El Dualismo de O Fidalgo Aprendiz”Joan Estruch Tobella ......................................... 17

“A Carta de Guia de Casados”Maria de Lurdes Correia Fernandes ................. 21

“As Epanáforas”Joel Serrão ....................................................... 23

TEXTOS LITERÁRIOS:

SONETOS E OUTROS POEMAS ............ 27

“O CANTO DA BABILÓNIA” ................. 34

ÉCLOGAS ..................................................... 44

CARTAS ........................................................ 46

AUTO DO FIDALGO APRENDIZ ............ 53

APÓLOGOS DIALOGAIS .......................... 58– “Relógios Falantes” ...................................... 60– “O Escritório Avarento” ............................... 64– “A Visita das Fontes” ..................................... 68– “O Hospital das Letras” ................................ 75

CARTA DE GUIA DE CASADOS .............. 77

CARTAS FAMILIARES ................................ 84

EPANÁFORAS .............................................. 87– Naufrágio da Armada: Epanáfora Trágica ...... 87– Descobrimentos da Ilha da Madeira. Epanáfora

Amorosa ........................................................ 89

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Nota Prévia

Esta antologia é inteiramente dedicada à Obrade D. Francisco Manuel de Melo (1608-1666):autor multifacetado, polígrafo, e seguramenteum dos maiores da literatura portuguesaseiscentista. Segundo Menéndez y Pelayo, a se-guir a Quevedo, a maior figura da literatura daépoca. E não apenas pela dimensão da Obra,escrita tanto em português como em castelhano,mas sobretudo pela sua diversidade e qualidadeliterária. O próprio autor chama a atenção paraessa pluralidade, onde encontramos poemas denatureza muito variada, teatro, cartas, diálogosencenados sobre diversas matérias, textos de ca-rácter didáctico-moral ou hagiográfico (porexemplo: Obras Morales, de 1664); textos de na-tureza historiográfica social e política (além deoutras, Historia de los movimientos y separación deCataluña, de 1645, O Eco Político, de 1649, ascinco Epanáforas de Vária História Portuguesa, de1660). Escreveu ainda um tratado sobre a Cabalajudaica – Tratado da Ciência Cabala, de 1724 – ealgumas biografias (de D. João IV, por exemplo).

Para além de breves excertos de textos introdu-tórios sobre o Autor e sua Obra, é aqui apresen-tada uma selecção de diversos textos. Apesar darelativa extensão destes boletins, o espaço nãopermite incluir excertos de todas as obras doAutor, o que sem dúvida seria interessante paradar uma ideia mais plena da diversidade das suascomposições. E o certo é que grande parte delasé ainda hoje de difícil acesso; por exemplo, muitada sua poesia, e outras obras, apenas poderão serlidas a partir de primeiras edições “Reservadas”e de micro-filmes, existentes na Biblioteca Na-cional. É o caso de Obras Métricas, A Feira dosAnexins, Tratado da Ciência Cabala, entre outras.

1 Para termos uma noção da forma da organização de ObrasMétricas e da diversidade dos nomes dados às suas colectâneaspoéticas, eis os títulos e subtítulos das diferentes partes daObra: as três Partes, ou “Três Musas”, em que o livro estáorganizado subdividem-se, por sua vez, cada uma delas, nou-tras três partes, ou Musas, formando um conjunto de novelivros:A Parte I, “Las Três Musas del Melodino” contém: “LaCítara de Erato”, El Harpa de Melpomene. Segunda Musadel Melodino” e “La Tiorba de Polymnia, Tercera Musa delMelodino”.A Parte II, “As Segundas Três Musas”, está dividida em: “ATuba de Calíope, IV Musa”, “A Sanfonha de Euterpe. VMusa”, “Viola de Talia. VI Musa”.A Parte III, “El Tercer Coro de las Musas”, contém: “Lyra deClio”, “Avena de Tersicore”, “Sístola de Urania”.

– A Poesia, em português e em castelhano, foiquase toda ela coligida em Obras Métricas, edita-da por um espanhol e editada em França em1665.De várias das colectâneas de poesia compiladasem Obras Métricas 1, lemos aqui alguns dos seusSonetos, profanos e “sacros” (cerca de 30),Madrigais, Redondilhas, Décimas, uma Ode, trêsCartas em verso, uma Écloga: um total de 41poemas.Sobressai nesta poesia um “profundo sentido es-piritual da reflexão”, “um desapego das vaidadesterrenas”, um “desprezo pelos convenciona-lismos sociais” (Pina Martins), temas como a li-berdade e o amor, sempre numa consciência dafragilidade humana que apela ao Divino. Surgepois a permanência de um isolamento e de umasolidão vividos, que só o sentido de Deus acolhe.O tão camoniano motivo da “mudança” comoque atravessa toda a sua poesia, sendo que “OCanto de Babilónia”, que reescreve o deCamões, dá conta dessa espiritualidade que radicanum sofrimento vivenciado na primeira pessoa.A linguagem assume traços claramente barrocos,em que a ambiguidade e a agudeza marcam aforma de elaboração poética.

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– Do Teatro: para além de outras peças aparen-temente escritas e porventura perdidas, temos afarsa Auto do Fidalgo Aprendiz, escrita em 1646 eum caso singular no panorama do teatro portu-guês de seiscentos. De par com uma intriga “có-mico-amorosa”, num registo de linguagem co-loquial e popular, em verso, encontramos napeça uma violenta e sagaz crítica social, de certomodo com “inspiração vicentina”. O enredoapresenta semelhanças ao de Molière, no seu LeBourgeois Gentilhomme, de 1670, posterior, por-tanto, à obra de D. Francisco. Simultaneamente,e apesar da sua forte ligação às convenções tea-trais de Lope de Veja, há aqui um anticastelha-nismo explícito em várias falas.

– Dos seus quatro Apólogos Dialogais (só publi-cados em 1721), figuram breves excertos quepermitem entrar no ambiente de cada um dostextos. São eles: “Relógios falantes”, “O Escritó-rio avarento”, “A Visita das fontes” e “O Hospitaldas letras” (existe ainda um quinto diálogo, oumelhor, um esboço apenas, intitulado A Feira dosAnexins, publicado apenas em 1875).Trata-se de diálogos encenados – na tradição daCorte na Aldeia, de Rodrigues Lobo e onde épatente a presença, sempre reinventada, deQuevedo. Por exemplo, no primeiro diálogo, en-tre “relógios” diferentes, da cidade e da aldeia,vão sendo comentados os costumes de umaépoca, numa reflexão cheia de humor sobre avida e a morte, a condição dos humanos; ou, na“Visita das Fontes”, uma conversa entre “fontes”– a velha e a nova –, que comenta quem delas seaproxima e distancia, proporcionando um retra-to da vida e costumes de uma época e de umlugar; por sua vez, “Hospital das letras” centra-senuma reflexão sobre livros e literatura. Este e osoutros diálogos inscrevem pois uma posição re-flexiva e crítica, de grande ironia, por vezes sar-cástica, perante a sociedade e os seus mecanismose instituições (a Justiça, sobretudo), numa espé-

cie de construção alegórica da sociedade, davida humana com seus vícios e virtudes. Apa-rentemente, também aqui ficam inscritos ele-mentos da experiência de vida do seu Autor.

– Da vasta colecção das suas Cartas, compiladasem Cartas Familiares (1664), em geral escritasdurante os anos de prisão (na Torre Velha) edirigidas sobretudo a figuras de relevo da época(portuguesas e castelhanas), a título apenas re-presentativo, lemos aqui alguns excertos. Comoo nota Pina Martins, também em muitas destascartas se revela “um dos mestres da prosa portu-guesa do século XVII”.

– Carta de Guia de Casados (1650): um textode natureza moralista, atravessado de humor eironia, mas mesmo assim expressando uma pers-pectiva extremamente conservadora no que àsmulheres, ao casamento e à família diz respeito.Elaborado em forma epistolográfica, incluindotraços de “ensaio” e também de “autobiografia”,o texto dirige-se aos homens, aos maridos, tra-tando dos modos mais adequados de lidaremcom as mulheres e de como estas se devemcomportar em família e na sociedade. Na mesmalinha de outros textos do género na PenínsulaIbérica, anteriores e posteriores, as mulheresaparecem aqui reduzidas a um estatuto deminoridade mental, afectiva e cívica.

– As cinco Epanáforas de Vária História Portuguesa(1660) descrevem diferentes episódios ou acon-tecimentos da história portuguesa contemporâ-nea do Autor, e em alguns dos quais participoudirectamente (à excepção da terceira Epanáforaque trata uma matéria de quatrocentos).Elas assumem diversas tonalidades: trágica, amo-rosa, política, bélica e triunfante, sendo cada umadelas reveladora da compreensão do mundo e daHistória, da mundividência, de um Autor portu-guês de seiscentos. Esta antologia inclui apenas

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dois breves excertos de duas das Epanáforas: asegunda, “Trágica”, sobre o Naufrágio da Arma-da Portuguesa em França, em 1627, e a terceira,“Amorosa”, sobre o Descobrimento da Ilha daMadeira, na primeira metade do século XV.

De novo agradeço a Maria Lucília GonçalvesPires os seus comentários críticos à alguns pontosdesta Antologia, bem como um esclarecimentoquanto à transcrição de um ou outro verso demais difícil leitura.

Lisboa, Dezembro de 2004

Isabel Allegro de Magalhães

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I N T R O D U Ç Õ E S

ESTUDOS BREVES

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A Obra Poética(excerto)

JOSÉ V. PINA MARTINS*

* “Prefácio” D. F. M. de Melo. Poesias Escolhidas. Pref., sel.,notas, tábua de concordância e glossário por José V. de PinaMartins. Lisboa: Ed. Verbo, 1969. Neste excerto não figuramas notas do Autor.

D. Francisco Manuel de Melo (1608-1666) ocupade há muito tempo, como prosador, um lugar emi-nente na história da literatura portuguesa. Sãopoucos, porém, os críticos que tenham consagradoà sua obra poética a atenção que ela merece. Jáalhures escrevemos que «a minimização do valorpoético de D. Francisco Manuel de Melo é, nãoraro, o resultado de posições apriorísticas ou ideiaspreconcebidas». Os estudiosos mais sérios da nossaterra insistem em ver em As Segundas Três Musasde Melodino, insertas na segunda parte do grossovolume das Obras Métricas (Lyon, 1665), mais umproduto do talento multiforme do autor, do que aexpressão literária autêntica de uma experiênciahumana profundamente sentida e vivida. Estamosem crer que, salvo poucas e honrosas excepções,podem contar-se pelos dedos aqueles que algumdia tenham contactado, em convívio diuturno, omundo poético do Melodino, pois, de contrário,ter-se-iam logo apercebido do valor estético ímparde algumas composições. Entre aqueles que, entrenós, estudaram a poesia de D. Francisco Manuel,merecem ser distinguidos José Pereira Tavares que,em 1921, nos deu uma edição antológica das suasRimas Portuguesas e Orações Académicas, e, mais recen-temente, António Correia de A. e Oliveira, que aonosso autor consagrou vários estudos de valor

excepcional. Outros investidores se têm ocupadodo Melodino, nomeadamente Hernâni Cidade eMaria de Lourdes Belchior, com invulgar argúciae erudição: mas não em trabalhos monográficos,ex professo dedicados à sua poesia.Não nos cabe, neste prefácio, estudar mais oumenos detidamente As Segundas Três Musas, massó dedicar-lhes um antelóquio superficial: a poesiaapresentar-se-á por si mesma, no valor genuínoda sua significação humana e estética. Seja-nos,contudo, lícito pôr em relevo um ou outro aspectotemático e de técnica formal mais digno de realce,principalmente numa perspectiva de pesquisa dosvalores de fidelidade artística da palavra significanteà sua carga vital de significado. Corresponde, então,a poesia do Melodino às dores da experiênciavivencial expressa poeticamente? Cumpre-nosaqui observar, in limine, que o prisioneiro da TorreVelha fez da sua vida um poema, ou melhor, a suavida está toda ela, com o sinete de uma experiênciadolorosa, nalguns dos seus poemas. Documentá-loé, porventura, mais fácil do que enunciá-lo.

1. Os Sonetos.

A primeira parte de As Segundas Três Musas é for-mada por 100 sonetos, alguns deles documentosinteressantes de engenhoso conceptismo, com pro-fusão de imagens requintadas e metáforas de ela-boração aguda. Nascem, assim, obscuridades eambiguidades intencionais, bem de acordo comos preceitos da doutrina barroca. Não obstantetudo isso, que é afinal o tributo pago pelo autor àmoda do tempo, já um crítico de grande autori-dade foi levado a escrever que o nosso poetapreanuncia, nesta parte da sua obra, a «liraanteriana». Quer tratando o tema da liberdade in-dividual, ele que se encontrava prisioneiro na Torree bem conhecia os grilhões da vida cortesã, querrepetindo alguns tópicos do petrarquismo numapoesia amorosa que, apesar da imitação, ostenta osinete de uma visível originalidade, D. Francisco

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Manuel consegue superar os esquemas artificiaisde uma arte toda voltada para a quinta essência dojogo dialéctico e do brinco subtil.Não raro o tom vagamente preceptivo e normativoidentifica-se com o epigramático: aliás o poetahauria a lição em fontes autênticas, como são asda sabedoria popular que exprime o mais saborosodo seu suco em provérbios e ditos exemplarmenteconcisos. Também a consciência do tempo breve,da fugacidade da vida, da efemeridade das coisas,na certeza de que viver é peregrinar na terra doexílio, tem em D. Francisco Manuel um intérpreteinspirado, a despeito da dificuldade de um tal tra-tamento poético, já então exemplarmente fixadoem obras-primas consagradas como as de Sá deMiranda e Camões, para só referirmos dois nomesda literatura portuguesa que lhe serviram de mo-delos e de mestres. Pessimismo antropológico ecosmológico até, mas nem sempre expresso atravésdas formas literárias consuetas, dos achadilhosconceituosos da tese e da antítese, como emPetrarca e nos petrarquistas, da afirmação e danegação, da dúvida e da fé, da ilusão e da suaconsciência lúcida (desilusão), da aceitação e daatitude inconformista, do crer e do duvidar. Étalvez especificamente melodínico o recurso àexpressividade de um humorismo transcendentepara significar a problemática da dor pelo própriosujeito experimentada. A vocação do moralistaergue-o na passagem do concreto para a reflexãosentenciosa, mas sem um divórcio temático doaforístico em relação ao vivencial ou ao religioso.Não raro, as fontes clássicas insinuam na palavrapoética o recurso a uma erudição profundamenteassimilada, mas porque o poeta sabe colocá-la noseu verdadeiro plano de arte ou de artifício, nuncaa cultura abafa a experiência, e por isso nunca oartifício sábio ou técnico se sobrepõe à arte.Mas estamos em crer que os sonetos mais artisti-camente valiosos de D. Francisco Manuel de Melosão os de tema predominantemente religioso,como Antes da Confissão. Já num outro estudo

tivemos oportunidade para relevar os elementosessenciais de valorização estética desta composiçãoe não vamos aqui repetir-nos. A palavra poética,nesta parte de As Segundas Três Musas, assume, comona Retórica renascentista, a plenitude de um valordirectamente ligado ao humano. Não há dúvida deque uma tal poesia exprime, na arte, o própriohomem.

2. As Éclogas.

A Sanfonha de Euterpe, segunda parte de As SegundasTrês Musas, é formada por éclogas e cartas. Já seobservou que falta às primeiras o ambiente genui-namente pastoril que deveria caracterizar o género,mas nisto, como aliás na própria substânciadoutrinal, o Melodino segue a lição e o exemplode Sá de Miranda, seu modelo também nas cartas.A écloga Casamento, que integra o cap. II de PEM,é talvez, neste domínio, o exemplo mais represen-tativo. O tema era muito do agrado do nosso autor,que o tratou também na Carta de Guia de Casados.Os dois pastores do diálogo discordam de critério,quanto às virtudes a preferir na mulher, já que umopta pela beleza e outro mais solidamente pelosbens materiais. O cura, discreto e avisado segundo ocânone do ideal normativo da época, concilia asduas opiniões de acordo com um ideal de equilí-brio e moderação. A lição do meio termo éigualmente preconizada nas éclogas Temperança eRústica. Mediano, aliás, é o nome de um dosinterlocutores de Temperança, cujo conselho, deresto, pode resumir-se nos dois versos que, comoutros, se encontravam gravados no templo aondeos dois pescadores (Afouto e Medroso) são levadospor Mediano: «caminha sempre a um justo fimdireito, / fugindo todo extremo perigoso». E assimcomo, em Basto, Gil exprime as ideias de Sá deMiranda, na écloga Rústica, por exemplo, Crementetem palavras cujo tom de pessimismo profundo esentido reflecte a experiência dolorosa de D. Fran-cisco Manuel de Melo. A lição de moralidade, que

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informa o suco didáctico das éclogas, não apagouo sinete autêntico de transposição da vida vividana palavra poética. Mas as cartas são, a este respei-to, ainda mais interessantes.[...]

ApólogosDialogais ediálogosalegóricos(excerto)

PEDRO SERRA*

* “Introdução”. Apólogos Dialogais. Vol. I. “Os RelógiosFalantes”; “A Visita das Fontes”. Introd. de Pedro Serra Braga.Coimbra: Angelus Novus, 1998, p. IX-XIII; XVIII-XX, XXI.No texto não figuram as suas notas.

Os Apólogos Dialogais, de que conservamos quatrocompletos – Os Relógios Falantes, O Escritório Ava-rento, A Visita das Fontes e O Hospital das Letras –, oesboço de um outro – A Feira dos Anexins – e oindício de que um sexto terá ficado por realizar –O Cabido dos Coches –, não foram editados emvida de D. Francisco Manuel de Melo. A editioprinceps dos quatro diálogos imaginários data dacentúria de setecentos e só nos finais do séculopassado se deu a conhecer A Feira dos Anexins. Nãosão excepções, a este respeito, no conjunto davastíssima obra do autor da farsa O Fidalgo Aprendiz.Seja como for, isso não significa que os diferentestextos, em conjunto e em separado, não tivessemcirculado com feliz fortuna.Quando D. Francisco Manuel de Melo escreveos Apólogos tinha já atrás de si obras sobremaneiraimportantes no âmbito do barroco peninsular. Emcastelhano, escrevera a Historia de los movimientos yseparación de Catalunya, obra dada à estampa emLisboa em 1645, com o pseudónimo de Clemente

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Libertino. É, sem dúvida, o livro que lhe granjeoumais fama em Espanha. Juan Luis Alborg, no capí-tulo referente ao Barroco da sua conhecida Historiade la literatura española, recorda as palavras encomiás-ticas de Cayetano Rosell, para quem o textohistoriográfico de D. Francisco é «la joya de másprecio que brilla en todo nuestro tesoro histórico»e, ainda, «el modelo más perfecto de aquel siglo».O próprio Alborg se pronuncia em termoselogiosos: «Melo, evidentemente, maneja unperfecto castellano y posee extraordinarias dotespara narrar y describir; sus imágenes son tan pode-rosas como certeras, y lo mismo los personajes quelos hechos son definidos con una robusta y gráficaenergía que nos parece lo más sobresaliente de laobra.» Em 1650 redige a Carta de Guia de Casados,a sua primeira obra em prosa escrita em português,texto que se destaca da tradição moralística peninsu-lar sobre o casamento, publicando-o por primeiravez em 1651. E, claro está, há que mencionar obri-gatoriamente O Fidalgo Aprendiz, escrito à voltade 1646, caso singular no panorama depauperadodo teatro português coevo. Três textos que, por sisós, reservam a D. Francisco um lugar cimeiro naRepública das Letras de seiscentos.Contudo, e esta é matéria de consenso, os Apólogossuperariam esses conseguimentos, já de si notáveis.Do Hospital das Letras, por exemplo, dirá um Ale-xandre Herculano que «é certamente por todosos títulos o melhor e mais claro testemunho davasta lição de D. Francisco Manoel, bem como daclareza do seu juízo em matérias literárias». O Prof.Rodrigues Lapa refere-se à constância do con-senso crítico em relação aos Apólogos quando, naapresentação da sua edição de Os Relógios Falantes,afirma serem «na opinião da maioria, a sua melhorobra, a que resume na verdade as prendas do seuespírito: a prontidão do chiste, a rica fantasia e aobservação moral da vida e dos homens». ParaGiacinto Manuppella, um dos mais documentadosestudiosos destes textos, são «quatro obras-primas,repassadas de imperecível vitalidade artística».

Com Os Apólogos Dialogais, D. Francisco insere-senuma tradição de textos cujo modelo portuguêsdas primeiras décadas do século XVII é a Corte naAldeia, de Rodrigues Lobo. Por outro lado, é opróprio D. Francisco a estimular a aproximaçãocomparativa com outros textos peninsulares afins.O nome que imediatamente se nos afigura compa-rável é o de Francisco de Quevedo, de resto amigoe correspondente de D. Francisco. Em Os RelógiosFalantes, a Fonte Velha faz referência a La hora detodos e fortuna con seso do autor espanhol: «Até umlivro me dizem que saiu agora que chamam Horade Todos, que, com galantaria digna de seu autor, seesmera muito em provar, com discursos e exem-plos, esta verdade.» Mais ainda, na «Dedicatória»de A Visita das Fontes, a Cristóvão Soares de Abreu,D. Francisco recordaria uma vez mais o poeta es-panhol: «Neste estado me acolheu esta leve ilusãoque agora vos comunico. Não foi sonho, pois nãoé de juro e herdade que hajam de sonhar todos osDons Franciscos. Sonhou o de Quevedo, porquetinha ou Fama ou Sorte sobre que podia dormirseguro. Mas eu, que há tantos anos que não repouso,mais depressa, de muito desvelado, escreverei, antesque sonhos, dilírios!» Uma comparação, na verda-de, marcada pela ironia. D. Francisco, ao distinguirsonhos de delírios, demarca os seus textos dos deQuevedo, que constituem um hor izonteintertextual feito de diferenças e de convergências.Note-se que o comentário do autor de A Visitadas Fontes é bastante rico de sentido. Se o onirismoquevediano é marcado, na óptica do nosso moralista,por uma existência segura, o delírio pressupõe oauto-reconhecimento de que as tr ibulaçõesexistenciais imprimem uma especificidade ao seutexto. O factor biográfico, além de explícito numautor que reconhece que os «textos» e os «livros»que cita são a experiência e a memória, é uma pre-sença implícita nos apólogos. Esta constatação nãoé de somenos importância. O valor moralístico nascede um conjunto de circunstâncias vitais que fun-cionam como motor da escrita. Um bom exemplo

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El Dualismode O FidalgoAprendiz(excerto)

JOAN ESTRUCH TOBELLA*

* El dualismo de O Fidalgo Aprendiz de D. Francisco M. deMelo. Lisboa/Paris: FC Gulbenkian, 1992. Sep. de Arquivos doCentro Cultural Português. Vol. XXXI, p. 927-929; 933-935;947-950. Foram retiradas do texto todas as notas.

[...]El crítico que más lejos ha llevado la tesis de queO fidalgo aprendiz encierra un significado oculto,relacionado con las circunstancias biográficas desu autor, ha sido Teófilo Braga, quien en varios desus libros ha desarrollado, no siempre concoherencia, esta interpretación, basándose en textosde los genealogistas. Braga llegó a identificar laBeatriz de la farsa con la condesa de Vila Nova, lasupuesta amante de Melo y del rey Juan IV, aunqueotras veces la identifica con la esposa de FranciscoCardoso, el criado cuyo asesinato le sería achacadoa Melo. Además de estas contradictorias identifi-caciones, Braga pretende que la farsa explicaría enclave la intriga amorosa que había provocado elencarcelamiento de Melo.Tales especulaciones no han tenido eco entre loshistoriadores de la literatura posteriores a Braga.Sin embargo, António Cruz ha retomado y am-pliado la tesis de Braga en su libro A génese do«Fidalgo aprendiz», Oporto,1953. Cruz identificaa Beatriz con Helena da Cunha, esposa de Cardo-so; a Don Beltrán con el conde de Vila Nova; a

é o ataque à lentidão da aplicação da justiça emOs Relógios Falantes: D. Francisco padeceu, comobem sabemos, os reveses de uma perseguição pessoalque o levou ao encarceramento e ao exílio.Simultaneamente, o passo é revelador do modocomo D. Francisco lida com possíveis influências.A relação com os Sueños de Quevedo é pouco ounada «ansiosa». A configuração genológica sonho(de Quevedo) é adaptada à subjectividade do autorportuguês. Descentrando o seu texto – não há queesquecer que D. Francisco classificou os Apólogos,no conhecido elenco bibliográfico que antecedeas Obras Morales, como «obras exquisitas» –, o autorde O Fidalgo Aprendiz dá fortes indícios de umarelação com a categoria género, e com a auctoritasdos que o cultivam ou dele são paradigmas, algolassa. Um bom exemplo é a Carta de Guia de Ca-sados, texto onde convergem a epistolografia, atratadística – ou, talvez melhor, o ensaísmo – e,porque não, a autobiografia. Voltando ao passo antescitado, ele deve ser entendido num século e num«sistema literário» que permeabilizam e fecunda-mente interpenetram os géneros literários. Origorismo genológico é apanágio de outros pro-gramas literários, anteriores e posteriores a D. Fran-cisco. Estes aspectos devem ser tidos em linha deconta quando partimos para a comparação dequalquer dos Apólogos com textos afins.[...]

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Don Gil con Cardoso; a Afonso con los criadosde Melo. A partir de ahí establece un paralelismoentre la acción de la farsa y la intriga que condujoa Melo a la cárcel. Mário Fiúza, más recientemente,ha sometido a severa crítica estas hipótesis infun-dadas:

Com um pouco de imaginação, é sempre possível estabelecerum ou outro paralelismo entre a acção da farsa e os factos queconcorreram para o assassinato do mordomo Francisco Cardo-so. Mas o que é absolutamente indispensável é provar que essesparalelismos têm consistência histórica. Teófilo Braga tentou-osobretudo através de obras genealógicas e de livros de memórias,sem ter atingido o seu objectivo, uma vez que os dados colhidossão profundamente contraditórios. António Cruz limitou-se aretomar os dados que Teófilo Braga lhe forneceu.Conclusão: a tese genética de Teófilo Braga, retomada porAntónio Cruz, não tem consistência histórica.

Un aspecto de O fidalgo aprendiz que si tiene interésbiográfico es el supuesto anticastellanismo queaparece en ella en algunos momentos, concreta-mente en dos pasajes. El primero es una descripciónde los encantos de Brites realizada por Afonso ensu parlamento introductorio:

Oh pesar de meu pai torto(descreo dos Castelhanos!)pois à fé que é de bons panos,e ressurgir pode um morto,mas que seja de cem anos!

(vv.41-45. Subrayado nuestro)

La expresión anticastellana aparece fuera de con-texto, separada del resto del fragmento medianteparéntesis, sin que pueda dársele otro sentido queel de una imprecación que recoge el anticastella-nismo tradicional del pueblo portugués, que semanifiesta también en el refranero lusitano. Talactitud no tiene tampoco especial trascendencia,pues no es más que la expresión de la rivalidadexistente entre pueblos vecinos. No mayorhondura política parece tener la segunda expresiónanticastellana, colocada en medio del diálogo entreGil y el maestro de danza:

Gil: Tereis grande habilidade?

Mestre: Estive já em Madrid.

Gil: Oh, se fostes a Castela,

sabereis cem mil mudanças!

Mestre: Para mudanças, e danças,

todos sabemos mais que ela.

(vv. 206-211)

Este diálogo expresa ante todo la atracción que laCorte de Madrid ejercía sobre los portugueses, queimitaban sus modas y costumbres. [...]

ESTRUCTURA DRAMÁTICA

Casi todos los estudiosos han considerado que Ofidalgo aprendiz tenía una estructura dramática ajus-tada a las convenciones de la escuela de Lope. Enla primera jornada se presentan los personajes y seexpone la acción; en la segunda, se desarrolla laintriga; en la tercera, se produce el desenlace. Sinembargo, creemos que, aunque la obra esté for-malmente dividida en tres jornadas, su estructuradramática se caracteriza por una marcada dualidad:la primera jornada aparece claramente diferenciadade las dos siguientes, que forman otro bloque.Fidelino de Figueiredo ha señalado acertadamenteeste dualismo:

Es el estudio del carácter de un escudero fanfarrón por mediode dos situaciones: en el primer acto, las lecciones de poesía,esgrima y danza; en el segundo y en el tercer actos, la historiade un percance en que el escudero Gil se ve envuelto. (...)Melo estuvo a punto de crear la comedia de carácter, peroprácticamente lo que hizo fue incrustar esta forma, represen-tada en el primer acto, en los otros dos. Es este incrustado loque torna aparentemente inexplicable el nexo de la obra,aunque realmente es sólo una indiferenciación, la coexistenciade dos formas que se repelen.

En efecto, en la primera jornada sólo aparecendos de los cinco personajes principales dela obra,el protagonista, Gil, y su criado Afonso. Además, laacción que en ella se desarrolla – las lecciones delos maestros – nada tiene que ver con la acción delas jornadas segunda y tercera, centrada en unaintriga cómico-amorosa. De hecho, se podría

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anónimos (los maestros y los transeúntes). Ya hemosvisto cómo el mismo Medo era muy conscientede la división existente entre los cinco personajesprincipales y los siete restantes.Si medimos este dualismo en términos cuantita-tivos podríamos descomponer la farsa del siguientemodo:Acción principal: parlamento introductorio (56versos); intriga cómico-amorosa (461) = 517.Cuadros cómicos autónomos: cuadro de las lecci-ones (361); cuadro de los encuentros (188) = 549.Resulta bien patente que O fidalgo tiene unaestructura dual. Ciertamente, ello la aparta de lacomedia de la escuela de Lope, que se caracterizapor la progresiva complicación de la intriga básica,sustentada en los personajes principales. Lope ysus seguidores introducen con frecuencia dosacciones paralelas que se resuelven al mismotiempo, pero no suelen dar a los cuadros autónomos(por ejemplo, los de tipo lírico) la importanciacuantitativa y cualitativa que adquieren en Ofidalgo aprendiz.Si nos fijamos bien, la acción principal de la farsaes muy reducida en extensión y muy simple encuanto a complicación argumental. El tema – unpersonaje ingenuo burlado por unos pícaros me-diante un ardil amoroso – cabe perfectamentedentro de los asuntos habituales dentro de la lite-ratura cómica de toda Europa. Situacionesburlescas semejantes pueden encontrarse en losfabliaux franceses, en la commèdia dell’arte italiana,en el entremés español, en la farsa portuguesa.También en la narrativa europea, en el Decamerón,en los Cuentos de Canterbury, o en las novelas pica-rescas españolas es fácil encontrar situacionesparecidas.[...]

EL ESTILO

O fidalgo aprendiz, como la mayoría del teatropeninsular renacentista y barroco, no sigue fiel-mente las tres unidades clásicas. Se respeta la unidad

enlazar directamente el parlamento-presentaciónde Afonso, que inicia la obra, con la segunda jor-nada, que da comienzo al enredo. El contraste entreambos bloques se acentúa si tenemos en cuenta elestatismo que predomina en el primero frente aldinamismo del segundo. Como indica Figueiredo,el cuadro de caracteres del primer bloque secontrapone claramente con la comedia de enredodel segundo. Cuando estudiemos la caracterizaciónde los personajes veremos que existen tambiénalgunas inconsecuencias sicológicas entre elcomportamiento de Gil en el primer bloque y enel segundo.Pero, si analizamos el segundo bloque, observaremosque a la intriga cómico-amorosa entre los cincopersonajes principales se añaden una serie deescenas de carácter puramente cómico ajenas a laacción principal. En efecto, la tercera jornada estáocupada mayoritariamente por los sustos que Gilexperimenta en la noche ante unos fantasmas queresultan ser personas que van por la calle (un mozo,una partera, el marido de la parturienta). Laextensión y la reiteración de estos encuentrosretrasan el desenlace. Estas escenas cómicas sonparalelas a las de las lecciones que integran laprimera jornada: en ambos casos se trata de escenasinsertas en la acción principal y desarrolladas entreGil y personajes secundarios, desconectados de losdemás personajes de la acción principal. Tambiéncoincide la estructura ternaria (tres lecciones, tresencuentros) y la repetición de motivos con ligerasvariantes: tres tipos de lección, tres tipos deaparición fantasmagórica.Por tanto, la estructura dramática de O fidalgo apren-diz no se adecúa estrictamente a la tradicionaldivisión en tres actos que representan el plantea-miento, nudo y desenlace. No sólo hay, como yaseñaló F. de Figueiredo, una clara contraposiciónentre la primera jornada y las dos restantes, sinoentre la intriga cómico-amorosa formada por loscinco personajes principales y los cuadros cómicosdesarrollados entre Gil y dos series de personajes

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de tiempo, pues la acción transcurre en el plazode un día: comienza por la mañana con las lecci-ones de esgrima, danza y poesia, y termina por lanoche con las escenas de la burla y estafa de Gil.No se sigue, en cambio, la unidad de lugar. Cadajornada tiene un escenario propio: la primeratranscurre en el interior de la casa de Gil; lasegunda, en casa de Isabel; la tercera, en las callescercanas a su casa. Parece como si el criterioseguido por Melo para dividir la obra en jornadasfuera el cambio de escenario más que el desarrollode la acción dramática.El lenguaje se mantiene siempre dentro de un nivelcoloquial y poplular. Las únicas ocasiones en quese utiliza el lenguaje culto es con intención satírica.Las complicadas fórmulas cortesanas del maestrode poesía son una burla del estilo culterano. Delmismo modo, las fórmulas galantes de Gil anteBrites tienen una intención cómica. El vocabulario,estudiado por António Corrêa, se caracteriza porel abundante número de palabras arcaicas: agastura,elobrigar, festo, mochachim, mafateiro, talabarte, etc.También son muy numerosas las formas populares:alembrar, chuminé, intés, probe, loje, labarinto, amenhã,reção, noda, etc. Hay algunas palabras o expresionestomadas del castellano: tomar trabalho, tomar as deVila-Diogo, mal que lhe pês, mentecato, nacer, estudiantão– de estudiantón –, pelão – de pelón –, etc. Abundantambién los refranes y frases proverbiales: pôr ospés em polvorosa, sem tom e sem som; ums bebem ehomem sua, quem tem boca vai a Roma, o mundo ébola, etc.El vocabulario se adecúa, pues, perfectamente alambiente y a la posición socio-cultural de lospersonajes. El diálogo es vivo, directo y espontáneo,sin parlamentos largos, soliloquios o artificiosretóricos. Ello demuestra que Melo sabía manejarlos distintos niveles del lenguaje, utilizando el másadecuado a cada obra.La versificación se caracteriza por ser de arte menory de rima consonántica. Predomina la quadra(abba), equivalente a la redondilla castellana, y la

quintilla. La primera jornada se abre con las oncequintillas del parlamento introductorio de Afonso;después, el uso de quadras se combina con otrascomposiciones (cuatro quintillas, una sextina, dospareados) que corresponden a los poemas querecita el maestro de poesía y el propio Gil. AntónioCorrêa y Mário Fiúza analizan aparte la estrofacorrespondiente a los versos 373-381, llamándolaestrofe de 9 versos, y que dice así:

Sendo todos de um terrão,minha mana Grimanesa,não sei eu por ca rezãoquereis sempre ser princesae eu seja madraceirão.

Todo o mundo por vós chama,que há clamar de muitos modos;a mim apupam-me todos,de Mocambo intés Alfama.

Se trata, en realidad, de una estrofa que en la mé-trica castellana se conoce como copla real o falsadécima, formada a veces por agregación de dosquintillas. Lo que ocurre es que Gil la deja ennueve versos, lo qual provoca la extrañeza delmaestro de poesia:

Poeta: Há mais?Gil: Não.

Poeta: Estão bem feitos,mas falta para dez um.

(vv. 382-383)

Corrêa y Fiúza señalan que la crítica del maestroes incorrecta, pues consideran que la estrofa esuna glosa de una cantiga, que podía tener ocho onueve versos. Pero si se admite que la estrofa esuna copla real a la que Gil suprime un verso paraburlarse del maestro mediante un juego de palabrassobre el décimo real, la crítica es correcta, propiade un maestro de poesía.La segunda jornada es más homogénea: se utilizancasi a partes iguales las sextillas de pie quebrado oestrofas manriqueñas y las quintillas. La tercerajornada está compuesta exclusivamente de qua-

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dras. Así, pues, desde el punto de vista de laversificación, O fidalgo aprendiz se caracteriza poruna progresiva tendencia a la homogeneidadestrófica y por el uso de unas combinaciones muysemejantes a las utilizadas en el teatro español dela época.

CONCLUSIÓN

O fidalgo aprendiz, a pesar de su sencillez, ha sidoobjeto de interpretaciones muy diversas. Losestudiosos del siglo XIX y principios del XX,todavía bajo la influencia de la crítica romántica,insistieron en verla como una obra que escondíamensajes en clave biográfica, con lo que descui-daron los aspectos propiamente literarios. Después,durante mucho tiempo se la ha considerado comoun intento aislado de revitalizar la tradición tea-tral portuguesa y oponerla a la tradición teatralespañola. Este planteamiento ha llevado a unaexcesiva valoración de ciertos detalles, en los quese ha querido ver manifestaciones de anticastella-nismo teatral y político.Pero O fidalgo aprendiz es, en realidad, una nuevamanifestación del característico eclecticismo deMelo. La escuela vicentina, la comedia nueva deLope y el entremés se hallan representados en ella.Tal intento de síntesis no está bien logrado, y lasdistintas partes integrantes no logran fundirse enun todo armónico. De ahí derivan el dualismoestructural y argumental, la desconexión entre losdistintos temas, las vacilaciones en la configuraciónde los personajes.A pesar de estas insuficiencias, O fidalgo aprendizes una obra valiosa, no sólo por sus importantesaciertos parciales, sino también por ser la únicaque se planteó la confluencia de las tendenciasteatrales peninsulares de la época.

A Carta de Guiade Casados(excerto)

MARIA DE LURDES CORREIA FERNANDES*

* In Carta de Guia de Casados. Edição de Maria de LurdesCorreia Fernandes. Porto: Campo das Letras, 2003, p. 18-21.Foram retiradas do texto todas as notas.

Do contexto ao texto da Carta.

A vastidão e complexidade da temática matrimo-nial, a multiplicidade das abordagens anteriores, osproblemas de ordem social, moral, religiosa e,consequentemente, cultural que a envolviam e acondicionavam não autorizavam um tratamentobreve e muito menos simples da mesma. D. Fran-cisco mostrou, desde o início da sua carta, quetinha consciência dessa vastidão e da multiplicidadede textos, e por isso reconheceu que desde a anti-guidade até aos «modernos» se haviam escrito«grandes cousas», «muitas» e «graves» para «adver-tência dos casados». E mesmo desejando que a suafosse uma obra mais «alegre e fácil», amenizadapor diversas «histórias» ou «casos» que foi vendo,lendo e ouvindo – abandonando uma longa tra-dição, algo exagerada pelos humanistas, de recursoa autoridades e exemplos clássicos e bíblicos –,várias vezes reconheceu, até porque se considerava«miúdo e proluxo», que não podia (e não queria)evitar a complexidade do tema e a diversidade dosproblemas, razão pela qual, quando se aproximouda conclusão do que devia ser uma carta «familiar»,acabou por reconhecer achar-se «agora com umprocesso escrito».

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que chamamos doutos para cada cousa nos fazemprato que às vezes nos enfastia».Consciente deste esgotamento, D. Francisco en-controu ainda assim a forma e a maneira de lograrum texto singular e, sob vários pontos de vista,original. Não na escolha deste género literário,porque diversas cartas de autores anteriores setinham debruçado sobre esta temática, a começarpela então bem célebre, traduzida e plagiada (no-meadamente em Portugal) Carta para Mosén Puchedo Bispo de Mondoñedo Fr. António de Guevara.Nem, como já se disse, ao nível da matéria emcausa, objecto de tratamento em variadíssimostipos de textos (e vários deles seriam conhecidosde D. Francisco que claramente os não quis refe-rir). A singularidade, a originalidade e, para o seutempo, a «actualidade» desta Carta encontram-sena exploração das potencialidades do carácter con-fidencial do género e, consequentemente, no modode tratamento «familiar» (algumas vezes simulandoinformalidade) dos vários assuntos, na genial inter-penetração da literatura e da experiência (o lido,o ouvido e o visto), na formulação dos conselhosenvoltos em «histórias», no inteligente uso dasentença, do rifão, do dito, do exemplo, da ironiasubtil e muitas vezes «aguda» que perpassa muitaspassagens deste texto.Ou seja, é nos ângulos de abordagem dos diferentestemas e problemas matrimoniais e familiares – equase todos estão focados na obra –, na formacomo se socorre de outros textos e os encobrecom engenho, como entra disfarçadamente – ou«discretamente» – em debates então ainda em voga,como ilustra com «sentenças, ditos e histórias» dopassado recente ou do presente as perpectivas dou-trinárias que quer transmitir ou os modelos quetem em mente – com um hábil e elegante recursoa metáforas, paralelismos, símiles e trocadilhos –que registamos a força criativa do Autor e a singu-laridade deste texto que, enquadrado num gostoliterário de ambiência «barroca», permite percebermuita da riqueza (que é também dificuldade) deste.

Neste quadro, se num primeiro momento de lei-tura desta carta se poderia cair na tentação de nelabuscar apenas a repetição ou convergência de tra-tamento dos temas e aspectos contidos em obrasanteriores sobre esta problemática –, já que, comonão podia deixar de ser, quase todos estão presentes–, a leitura contextualizada e atenta às suas caracte-rísticas permitirá realçar a sua singularidade e ori-ginalidade que a mantiveram viva muito depoisdo esquecimento daquelas. Além disso, é impor-tante vencer a outra tentação de, em face de umacerta “universalidade” do tema e da, aparentemente,«prática familiar» em que está escrita, lê-la, anacro-nicamente, com a familiaridade a que ela apela e,por isso, segundo códigos de valores e prismas deabordagem que não eram os da sua época. Taistentações desvirtuariam este texto único e os seussignificados literários e culturais que aqui se pre-tendem realçar.Importa lembrar que a vasta tradição anterior –especialmente fortalecida a partir dos finais doséculo XV por diversos humanistas – de obrasdedicadas ao tema do casamento e do compor-tamento dos casados, em particular da mulher, quasetinha esgotado os assuntos e os modos de os abordar.Efectivamente, quando D. Francisco escreveu estaobra já muito pouco de novo havia a dizer sobreo tema que, sobretudo ao longo do século XVI eprimeiras décadas do XVII, fora objecto de trata-mento em quase todos os géneros literários e dou-trinários: em textos poéticos de vários tipos, emnovelas e contos, em tratados teológico-morais eem obras doutrinárias, com especial realce para asque se assumiam como espelhos de casados(as).Aliás, a repetição de ideias, exemplos e argumentosmarcava visivelmente as obras de finais do séculoXVI e inícios do século XVII, denunciando algumasaturação do tema e, consequentemente, do seutratamento literário que vinha exagerando osexempla clássicos. Por isso D. Francisco deixou claro,logo no início desta Carta, que não iria socorrer-sedessa «máquina de gregos e romanos de que os

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Em face do exposto – e como o pode bem mos-trar a leitura atenta da obra –, é inquestionávelque D. Francisco quis, por um lado, pronunciar-sesobre um tema de grande fortuna literária noséculo XVI e inícios do XVII e, por outro,«actualizá-lo» tanto do ponto de vista das reflexõessobre práticas familiares e sociais do seu tempoquanto dos recursos literários e estilísticos que, naépoca, a literatura, sobretudo ibérica – com umQuevedo e um Baltasar Gracián à cabeça –, vinhaformulando. De facto, D. Francisco retomou, deum modo muito «discreto» – segundo um modeloque mostrou conhecer bem – e com uma aparente(mas bem estudada) espontaneidade, alguns debatese temas polémicos anteriores com o claro intuitode – por vezes muito ironicamente – discorrersobre as distintas facetas do casamento e da casa(sobretudo aristocrática), do comportamento con-jugal e familiar articulado com a imagem socialdeste (sobretudo num quadro cortesão e citadino),sobre os gostos e modas dos casados do seu tempoem comparação com os do passado (ou com osdo estrangeiro).

As Epanáforas(excerto)

JOEL SERRÃO*

* D. Francisco M. de Melo. Epanáforas de Vária História Portuguesa.Introd. e apêndice documental por Joel Serrão. Lisboa: IN-CM,1977, p. XL-XLI. Foram retiradas do texto as suas notas.

[...] Notemos que o livro principia com sucessosde 1637 – as alterações de Évora, que a Restauraçãode 1640 veio a considerar como seu prenúncio –e termina com a história da derrota dos Holandeses,em Pernambuco, em 1654, facto de importânciafundamental daquilo a que se poderá chamar oprolongamento dessa mesma Restauração, que,com maior ou menor consciência, intuía a suaprópria sobrevivência na redefinição do impérioluso-brasileiro. Entre esses dois marcos, como quemodulações anafóricas de um mesmo tema, situ-am-se, como é sabido, o Naufrágio da Armada Por-tuguesa em França (1627), o Descobrimento da Ilha daMadeira (1420) e o Conflito do Canal de Inglaterraentre as Armas Espanholas e Olandesas (1639). ONaufrágio reporta-se não só à juventude do autore à sua iniciação «política» mas também ao statuquo da monarquia dual hispânica; o Descobrimentoda Ilha da Madeira, ao início da colonização ultra-marina portuguesa; o Conflito do Canal de Inglaterra,à evidência de que começara a declinar o poderioespanhol.Apreendem-se, assim, três temas: o da Restauraçãoaquém e além-mar; o do domínio marítimo pelasesquadras hispânicas; o dos inícios da colonizaçãoportuguesa, o qual, ao fim e ao cabo, genetica-mente, se liga ao Brasil e ao que ele significava noshorizontes portugueses de 1660, data da publicaçãodo livro. Três temas que, como se vai tornando

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inteligível, entre si se ligam, ou entre si são ligadospela convergência, na cultura do autor, da preo-cupação política e da «técnica» do retórico, habitu-ado a «compor» um livro, embora com materiaismais ou menos dispersos, escritos ao sabor deinteresses mais ou menos momentâneos.Inclinamo-nos também a pensar que para a estru-tura das Epanáforas, convergentemente, concorreu,em termos psicológico-literários, aquilo queapreendemos já em D. Francisco Manuel, ou seja,o político doublé de poeta, o homem do mundopreocupado com harmonias que são da esfera dacultura e se prendem a modulações anafóricas deuma realidade maior, subjacente sempre – os«negocios publicos». Negócios esses que, ora sendopropriamente políticos, ou trágicos, ou amorosos, oubélicos, ou triunfantes, são relatados não só pelopolítico mas também pelo «poeta», enquanto tal.Pelo escritor que, como tal, se assume.

II

D. Francisco Manuel: uma cultura datada oudatável. Alguns dos seus aspectos, acaso maissignificativos, emergiram já das páginas anteriores.Busquemos, porém, zonas mais profundas e son-demos a prosa do escritor seiscentista acerca doque nela se contém, em termos de mentalidade,no tocante aos conceitos, por exemplo, de experi-ência, de espaço e de tempo, de necessidade e de con-tingência. Evidentemente, poderia alargar-se a pes-quisa; fiquemo-nos, todavia, por aqui, na intençãode soerguer apenas uma ponta do véu que nosvela a compreensão da mundividência de certosescritores do seiscentismo português, especialmentedaqueles que, como D. Francisco, usaram tanto daespada como da pena de pato.[...]

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TEXTOS LITERÁRIOS

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Sonetos eoutros poemas

* In D. Francisco Manuel de Melo. Obras Métricas. Tomo II.En Leon de Francia: Por Horácio Boessat y G. Remeus. 1665,9, 25, 27, 31, 32. (Leitura feita a partir de microfilme.)

“EL HARPA DE MELPOMENE”*

Comparandose al estado del mundo.

SONETO XVII

Barbaramente estremecida EuropaArde en fuego marcial, y le acompañaNo menos ciega de aquel humo EspañaQue al veneno beuió de la infiel copa.

La mar en una, y outra armada tropaDel mundo ayrado imitará lá saña,Bañando en sangre, quanto en agua baña,Si este a aquel coronado leño topa.

Ves Mario? Pues mañana los estruendosQue esta maquina grande descomponenA reposo, ó escarmiento haran mudança;

A my solo en combates más horrendos,Los duros casos, que a mi paz se opponen,Ni me dexan exemplo, ni esperança.

Glosase el verso siguiente de Garcilasso.

Conozco lo mejor, lo peor apruevo.

SONETO XXXXVIII

Que triunfante corre el vencimiento,Si atada la raçon al apetito,Huyo del bien, y al mal me precipito;Facil vengança de un costoso intento?

Bien de sus alas teme el pensamiento,A donde cada pluma es un delito;Mas antes, porque el buelo sea esquisito,

El riezgo busca màs que el escarmiento.Ella por su piedad, ó por costumbre,

No sin exemplos, mi carrera infama,Quanto màs reconoce que me atrevo.

Mas la raçon, que importa que me alumbre,Si apesar de su voz, y de su llama,Conozco lo mejor, lo peor apruevo?

Peligro de la esperança.

SONETO XXXXIX

Antes que esta coluna, que sustenta(Ya trepidante al peso) el edificio,Entre algun memorable precipicio,Sepulte el vano error, que no escarmienta.

Esta infiel esperança, que alimentaDel ayre el mas inutil desperdicio,Dime que espera, ó que pretende, Licio,Que ó no cree, ó no duda, y siempre afrenta?

Miserables constancias exercitaAl vil error, y al justo sufrimientoRehuye el rostro palido, y lloroso.

O si esta (que al desprecio assi se incita)Su gran fuerça aplicára al escarmiento!Ella fuera valiente, y yo dichoso.

Al Combento devotissimo de la Arrabida.

SONETO LII

No baxes temeroso, ó peregrino,Fia tus passos de la senda escura;Que esta que te parece aspera, y dura,Esta es del cielo el aspero animo.Si baxas, subirás a ser vecino

De la Ierusalen santa, y segura;Porque la santidad de essa espessuraFalda es del monte de Sion divino.

Ves quantas fuentes sus cristales muevenPara buscarte, el ayre te combida,El Sol te guia, y tu no te persuades?

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Entra, y verás lo que tus ojo deven:A qui todas las horas son de vida,Todas las esperanças son verdades.

SONETOS SACROS

Con Dios en un aprieto grande.

SONETO LIII

Baste, Señor; que al golpe repetidoDeste açote, y de aquel, ya la pacienciaSe passa de firmeça a contingencia,Com que temo perder lo padecido.

Si es flaqueça del animo afligidoFaltara la màs facil esperiencia,Socorre tu la flaca resistencia,O quitale del peso al oprimido.

La corta esfera del sufrir humanoCumplida esta de enojos, y aspereça,Que al possible dolor no se à escusado;

Entre agora tu braço, y pon tu mano,Porque a donde no llega mi flaqueça,Estàs tu (que eres Dios), más obligado.

En visperas de una confession.

SONETO LXI

Mañana al cadahalso misteriosoSaldràn mis yerros, pero todaviaOy los esconde la memoria mia,Como que tenga en ellos su reposo.

Mira, Padre, y Señor, mira piadoso,Que tal deve de ser su compañia!Si apenas un sentido se desvia,Quando el otro la busca cuydadoso.

Yerros, enfin, de una lisonja tierna,Rompelos tu, que a mas tu mano sobra,Antes que su prision se me haga eterna.

En ty mi livertad su aliento cobra,Pues los arrastro yo, tu los govierna;Tu sabes que sin ty no se hace el obra.

Venit Maria Magdalena. Matth. 28.

SONETO LXII

Ves, que huerfana triste, y que llorosaPergunta al marmol, si su amor le esconde,(Piedra enfin discortez, que no respondeAl llanto fiel) essa muger hermosa?

O querella altamente poderosa,Que calle el marmol, que te importa, donde,Quando el lo niega, amor lo correspondeEn dulce hallazgo de vision gloriosa?

O lagrimas, ó quexas, ó impossible,Quanto a Dios obligais! Y a se ve quanto,Por lo que pretendeis más que possible;

Parece le humanais outra vez tanto,Que aunque a todas passiones impassible,Buelve agora al dolor de vuestro llanto.

Laçaro resucitado.

SONETO LXIII

De un gran favor, de un alto benificioEn medio estais, ó muerto generoso,Llorado, ó vivo, siempre a Dios costoso,No se qual màs, por este, ó aquel indicio?

Sobre el funesto jazpe hallais propicioUn poder tierno, un llanto poderoso;Puede quien ama, que en amor dichoso,El amar, y poder, es un officio.

A qual, pues, de los dos se consideraOy vuestra vida más agradecida,Al dulce imperio, ó al lloro soberano?

Entrambos vida son; ma yo dixera,Que esta del llanto es tanto mejor vida,Quanto es el coraçon más que la mano.

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LA TIORBA DE POLYMNYA,TERCERA MUSA DEL MELODINO Y

TERCEIRA PARTE DE SUSVERSOS.*

METROS.

Lagrimas.

ODA. XXV

Estas lagrimas miasSon del alma raçones;O serán relacionesDe las batallas de mis fantasias.

Pero, que dirá el llantoDe aquel tan alto affeto,Que un silencio discreto,Quando no diga màs, no diga tanto?

Pues si han de errar los ojos,Y llamar, habladores,Dolor, a mis dolores,Que les quedan deviendo mis enojos?

Costosa grossería,Medir lo que no save;Porque lo que no caveEn su raçon, comprehenda su porfia.

Ojos, los atrevidosNo siempre son dichosos;Callad de respetosos,Que harto direis callados, y offendidos.

Las ansias soberanasNo las pongais indinas,Que verdades divinasNo se cuentan por lagrimas humanas.

Ya no son vanidadesLogro si, que se os prueva;Pues si el llanto os las lleva,Con menos quedareis de mis verdades.

Si el dolor os provocaQue publiqueis su furia;No veis como es injuriaHablar los ojos, y callar la boca?

Si al coraçon difuntoEl honra haceis postrera,Dexad que tondo muera,Y hareis el funeral de todo junto.

Ojos no sea queridaEssa passion, de fuerteQue perdais con mi muerte,Las lagrimas más proprias a mi vida.

Hermosura recatada.

LIRAS. XXVI

Rosa de amor primera,Que a las rojas niñeces de tu vida,En sus proprios verdores escondidaTu belleça, no puede vez ningunaEscapar de la embidia, a la fortuna;A donde vàs ligera,Si huyes a la misma Primavera?

Desata el verde ñudoAntes que digan locas fantasias,Que tambien de tu pompa desconfias;Mira que el bulgo de las otras floresNo mida tu esplendor, por sus verdores;Vano de que te acuerde,Que lo podrás perder, como ellos pierde.

Quien duda, que la RosaPretenda con igual atrevimiento,Que tomes de su gala el escarmiento,Como de tu tesoro, ella à robado,Lo blanco, lo encendido, y lo dorado;Qual si fuesse una cosaUna divinidad, y una hermosa?

[...]* Obras Métricas. Tomo II, p. 231-233; 238.

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Pendencia de Amor.

MADRIGAL. XXXIV

Salió a noche el Amor, por darse gusto,De valenton, al barrio del contento;Y al llamar a la puerta a una Esperança,Cátale aqui, le alcançaUn cierto bravo, que le llaman Susto,Con otro, que le llaman Escarmiento;Tiró el Susto un tormento,Repara Amor en el broquel del brio,Entróse a componellos un Desvio.Más quando se templavan sus vayvenes,Llegan quatro Desdenes,Saca Amor por espada la paciencia,Riñese la pendencia,Y al pelear gallardo, ayroso, y recio,Traspassale la punta de un Desprecio.Conoce Amor su herida,Teme perder la vida;Ya le assaltan las ansias de las dudas,Llamate, no le ayudas;Más como acudirás a sus clamores,Si andas tu con los mesmos matadores?

A TUBA DE CALLIOPE. QUARTA MUSADO MELLODINO.*

RIMAS.

Escuzase da gloria do Escarmento.

SONETO I. Proemial.

Preze-se, quem quiser, do roto lenhoPara eterna menção de seu naufrágio;Eu viva errado só, sem mais sufrágio,Que o mesmo horror, que do naufrágio tenho.

Iá nem da perdição do altivo empenho,Pois o fim não fugi, tema o preságio:E se exemplo não fui, seja contágio,Que perca, a quantos vem, por onde venho.

Também nas mãos resigno da esperançaA glória, que por trágicos escritosResulta de evitar d’Amor os danos.

Acabe nesta sorte, esta vingança;Sepultem-se comigo meus delitos,Antes que sirvaõ para desenganos.

Amor escudo de Amantes.

SONETO IV

Senhora: se não levo às vossas arasUm sacrifício igual; levo por eleUm impossível tal, que o vencer deleDe novo ao Mundo sei, que as fará raras.

Com mãos vence de glória sempre avaras,Quem vence humilde Fado: este, ou aquele;Ó deixai que a fortuna me atropele,Que tão grandes vitórias não são caras!

Glória vos pode ser ir defendendoA vida, contra quem com torpe estudoEm persegui-la à sorte não dispensa;

E obrigação também, em conhecendo,Que se no vosso Amor, não acho escudo,Não me fica no mundo outra defensa.

Contra as fadigas do desejo.

SONETO V

E quem me compusera do desejo,Que grande bem, que grande paz me dera?Ou (por força) com ele hoje fizera,Que me não vira, em quanto assi me vejo?

O que eu reprovo, eleje; e o que eu elejo,Ele o reprova; como se tiveraSortes a seu mandar, em que escolhera,Contra as quais só por ele em vão pelejo.

Anda a voar do árduo ao impossível:E para me perder de muitos modos,Finje que a honra é certa no perigo.

* In Obras Métricas. II Parte, p. 1, 3, 12.

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Pois se nunca pretende o que é possível,Como posso esperar ter paz com todos,Quando não posso, nem ter paz comigo?

Desgraça, enveja de tudo.

SONETO XXII. Lírico.

Junto do manso Tejo, que corriaPara o Mar, que nos braços o esperava,Jaz um Pastor, que no semblante davaMostras da dor, que o coração cobria,

Falava o gesto quanto n’alma havia,Que quiçá por ser muito, ela o calava:Mas vencido do mal, que o atormentava,Sem licença do mal, assi dezia:

Corre alegre, e soberbo, ó doce Tejo,Pois vives sem fortuna, de que esperesQue encaminhe teu passo a teu desejo;

Vás, e tornas, e irás, como vieres;Ditoso tu, que vês, o que eu não vejo,Ditoso tu, que vás, adonde queres.

Despedida.

SONETO XXIII

Parto, parto-me enfim, Senhora minha,O Fado o quis assi, que nos reparte;Mas quem cuidareis vos, que é, o que parte!Parte aquele, que só partir convinha.

É verdade que parte, e que caminha,Mas parte-se, e caminha por tal arte,Que cá vos deixa aquela ilustre parte,Que não terá melhor, nem melhor tinha.

Ao ceo, ao mar, ao vento, ao lenho, ao linhoA vida entregarei, que os satisfaça,Tomo quem dos perigos não tem medo.

A vinda temo mais, do que o caminho;Porque para me dar maior desgraça,Sei que me há-de trazer a sorte, cedo.

CONTRA AS FADIGAS DO DESEJO

E quem me compusera do desejo,Que grande bem, que grande paz me dera!Ou, por força, com ele hoje fizera,Que me não vira, em quanto assi me vejo!

O que eu reprovo, eleje; e o que eu elejo,Ele o reprova, como se tiveraSortes a seu mandar, em que escolhera,Contra as quais só por ele em vão pelejo.

Anda a voar do árduo ao impossível,E para me perder de muitos modos,Finge que a honra é certa no perigo.

Pois se nunca pretende o que é possível,Como posso esperar ter paz com todos,Quando não posso nem ter paz comigo?

(* Obras Métricas, tomo II, p. 3)**

QUANDO SE VÊ DO MALO QUE SE NÃO VIA ANTES

Se como haveis tardado, desenganos,Vindes hoje de novo apercebidos,A troco de vos ver tão prevenidosDou-vos por bem tardados tantos anos.

Tardastes; e entretanto estes tiranosCasos de Amor roubaram-me os sentidos.Se alcançá-los quereis, bem que são idos,Buscai-os pelo rastro dos meus danos.

Oh, segui-os, prendei-os, porque logoTeme o que foge, quem procura alcança,Pois é peso o temor, o gosto é vento.

** – Quando a referência vem precedida por um *, significaque a transcrição é de Maria Lucília Gonçalves Pires, emPoetas do Período Barroco. Lisboa: Comunicação, 1985.

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Vós só podeis mudar. Mas isto como?Como? Fazendo que a minha alma saiaDe mi, Senhora, e dentro de vós viva.

(* Obras Métricas, tomo II, p. 8)

ESCUSA-SE AO CÉU COM A CAUSADO SEU DELÍRIO

Pois se para os amar não foram feitos,Senhor, aqueles olhos soberanos,Porquê por tantos modos mais que humanos,Pintando os estivestes tão perfeitos?

Se tais palavras e se tais conceitos,Tão divinas, tão longe de profanos,Não destes por oráculo aos enganos,Com que Amor vive nos mais altos peitos,

Porquê, Senhor, tanta beleza junta,Tanta graça e tal ser lhe foi dotado,Qual ídolo nenhum gozara antigo?

Mas como respondeis a esta perguntaQue ou para disculpar o meu pecado,Ou para eternizar o meu castigo?

(* Obras Métricas, tomo II, p. 10)

DESGRAÇA, ENVEJA DE TUDO

Junto do manso Tejo, que corriaPara o mar, que nos braços o esperava,Jaz um pastor que no semblante davaMostras da dor que o coração cobria.

Falava o gesto quanto n’alma havia,Que, quiçá por ser muito, ela o calava;Mas, vencido do mal que o atormentava,Sem licença do mal, assi dizia:

E para quando os alcanceis vos rogo,Não que façais me tornem a esperança,Mas que sequer me deixem o escarmento.

(* Obras Métricas, tomo II, p. 6)

MUNDO É COMÉDIA

Dez figas para vós, pois com furtadoConsular nome vos chamais Prudência,Se, fazendo co’o Mundo conferência,Discursais, revolveis, e eis tudo errado!

Quem vos vir, Apetite, disfarçado,Digno vos julgará de reverência;E a vós, ódio, por homem de consciência,Vendo-vos tão sesudo e tão pesado.

Dois a dois, três a três e quatro a quatro,Entram, de flamas tácitas ardendo,Astutos Paladiões em simples Tróias.

Quem enganas, ó Mundo, em teu teatro?A mi não, pelo menos, que estou vendoDentro do vestuário estas tramóias.

(* Obras Métricas, tomo II, p. 6)

CADA UM É FADO DE SI MESMO

Mas adonde irei eu que este não seja,Se a causa deste ser levo comigo?E se eu próprio me perco e me persigo,Quem será que me poupe ou que me reja?

Porque me hei-de queixar do Tempo e Inveja,Se eu a quis mais fiel ou mais amigo?Fui deixado em mi mesmo por castigo:Triste serei enquanto em mi me veja.

Esta empresa que em mi tanto em vão tomo,Esta sorte que em. mi seu dano ensaia,Esta dor que minha alma em mi cativa,

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Corre alegre e soberbo, ó doce Tejo,Pois vives sem fortuna, de que esperesQue encaminhe teu passo a teu desejo.

Vás, e tornas, e irás como vieres.Ditoso tu, que vês o que eu não vejo!Ditoso tu, que vás adonde queres!

(* Obras Métricas, tomo II, p. 12)

ANTES DA CONFISSÃO

Eu que faço? que sei? que vou buscando?Conto, lugar ou tempo a esta fraqueza?Tenho eu mais que acusar, por mais firmeza,Toda a vida. sem mais como nem quando?

Se cuidado, Senhor, falando, obrando,Te ofende minha ingrata natureza,Nascer, viver, morrer, tudo é torpeza.Donde vou? donde venho? donde ando?

Tudo é culpa, ó bom Deus! Não u~a e u~aDescubro ante os teus olhos. Toda a vidaSe conte por delito e por ofensa.

Mas que fora de nós, se esta, se algu~aFora mais que u~a gota a ser medidaC’o largo mar de tua graça imensa?

(* Obras Métricas, tomo II, p. 30)

MEMÓRIAS E QUEIXAS

Esses mares que vejo, essas areiasRompi, pisei, beijei hoje há sete anos;Sete servi, sete perdi, tiranosSempre os fados nas vozes das sereias.

Tantos há que, arrastando cruéis cadeias,Não guardo ovelhas, mas aguardo danos,Das fermosas Raquéis vendo os enganos,Sem a promessa ouvir das Lias feias.

Sofra Jacó fiel Labão mentindo,Que, se dobra o servir, da alta consorteJá não pode negar-lhe a mão devida.

Ai do que espera, quanto mais servindo!Para um tão triste fim, tão leda a morte!Para um tão largo amor, tão curta a vida!

(* Obras Métricas, tomo II, p. 32)

EM DIA DE CINZA, SOBREAS PALAVRAS – QUIA PULVIS ES

Melhor há de mil anos que me gritaU~a voz que me diz: És pó da terra!Melhor há de mil anos que a desterraUm sono que esta voz desacredita.

Diz-me o pó que sou pó, e a crer me incitaQue é vento quanto neste pó se encerra;Diz-me outro vento que esse pó vil erra.Qual destes a verdade solicita?

Pois, se mente este pó, que foi do mundo?Que é do gosto? que é do ócio? que é da idade?Que é do vigor constante e amor jucundo?

Que é da velhice? que é da mocidade?Tragou-me a vida inteira o mar profundo!Ora quem diz sou pó falou verdade.

(* Obras Métricas, tomo II, p. 37)

MUNDO INCERTO

Eis aqui mil caminhos. Por venturaQual destes leva a gente ao povoado?Todos vão sós, só este vai trilhado;Mas se, por ser trilhado, me assegura?

Não, que desde o princípio há que lhe duraDo erro este costume ao mundo dado:

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ali mandava a verdadeque se fosse a conhecer.

Mas eu, vendo-me cativo,bradei na força da queixa:dize, pensamento esquivo,já que a memória me deixa,porque lhe dizes que vivo?

Ela, inda bem não se ouviunomear, quando já chega,tão vingativa e tão cega,que dum golpe destruiuquanta paz alma lhe entrega.

Eis aquela paz antiga,que sem memória gozava,já me mata e me castiga;e a dor, que antes se humilhava,ei-la soberba enemiga.

Fados maus, dura violência,vil afronta, triste história,grave dor, mudada glória,com tudo pode a paciência,só não pode co’a memória.

Memória tão diligente,faz estar quedos os anos!Passou-se a vida contente;deixa vir os desenganos,que eles vem por si somente

Eu me queixo, tu te queixas,eu grito, tu arrezoas;levas-me as lembranças boas,e dizes que nas que deixasgrandes culpas me perdoas.

Eu estava, que o não nego,sem ver, sem me lembrar nada;foste-me fazer tão cego,

Ser aquele caminho mais erradoO que é de mais passage e fermosura.

Enfim, não passarei, temendo a sorte?Também, tanto temor é desconcertoA quem passar avante assi lhe importe.

Que farei logo, incerto em mundo incerto?Buscar nos Céus o verdadeiro norte,Pois na terra não há caminho certo.

(* Obras Métricas, tomo II, p. 42)

“O CANTO DE BABILÓNIA”

Sôbolas águas correntesde aqueles rios cantados,que a Babilónia levadoscom lágrimas dos ausenteschegam ricos e cansados.

U~a tarde me assenteicheio de dor e fadigae hoje do que lá passeime manda o tempo que digaquanto em lágrimas direi.

Espalhei meu triste cantopelas desertas areias;os olhos foram as veias,a música foi o pranto,o instrumento as cadeias.

Ali com grandes tormentosvi não passar minhas mágoas;vi voar meus pensamentos;vi que levavam as águasquanto trouxeram os ventos.

Tudo quanto em outra idadese fez amar e querer,antes de bem se entender,

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que de u~a glória passadame mandas fazer emprego.

E, para ver que passou,me vendes um vidro raro,por onde veja bem claroo bem. Mas, se me deixou,porque mo vendes tão caro?

Oh, que bem! Quem nunca o vira!Oh, que ser! Quem nunca fora!Falso Deus, que a quem o adoramais depressa se retirapara as sombras donde mora!

Não é este o desejado(que passou) Bem tão contino,que até tinha de divinodeixar que fosse esperado,como do justo, do indino.

Onde aquele dia é jáem que o sol alegre vi?Se escuro ou claro estará?E, porque fugiu de mi,quanto mundo alegrará?

Essas horas que passaramtão ledas, adonde vão?Ai, e em que parte serão?Que, pois tal vento levaram,quem sabe se tornarão?

Que é de aqueles medos levese as honestas cobardias,risos e lágrimas breves?Que é do bem daqueles dias,contra calmas, contra neves?

Onde é lançada a manhã?A noite adonde parou?E o ar, que brando assoprou

por dentro de nuvem vã,que tempestade o levou?

Aquela serenidadeda vida antiga e ditosa,quem a roubou desta idade?E quem de cousa saudosatolher-nos quer a saudade?

Logo, se eu saudoso forde tal vida eternamente,acha-me disculpa a gente,porque às vezes mata a dor,e de justa não se sente.

Ó terra Sião chamada,de cujo pó tive vida,se da sorte me és vedada,nunca outra terra nacidaa meus ossos dê morada!

Da alta esfera em que se encerra,me arrebate o fogo ou vento!Morra no estranho elemento,mas não caia em outra terranem cinza, nem pensamento!

Tu, por mais que lide a morte,serás sempre doce e quista,mas que o ferro ou pese, ou corte;vingue-se a sorte da vista,que o amor me vinga da sorte.

Serás o perpétuo ofíciodos olhos de alma queixosa,que, em vítima saborosa,se ofereça em sacrifícionas aras da fé piedosa.

Mas neste campo de errónia,de injúria e de maldição,que merece a cerimónia

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um foi bom, e outro também;o gosto, si, que é trocado.

Aquele sol me aquentou,e esse mesmo sol me aquenta;e a lu~a que alumiou,se se míngua, ou se acrecenta,a mesma lu~a ficou.

Passou um janeiro frio,voltou um março amoroso,chegou maio, e foi ventoso,veio agosto, e fez estio,e entrou novembro chuvoso.

Torna a vir outro janeiro,eis este como aquele ano,na ordem por derradeiro;porém no gosto ou no enganonenhum dia tem praceiro.

O verde da mocidadepouco e leve tempo dura;e aquela alegre verdura,vista despois de outra idade,já parece sombra escura.

Logo, se é nossa a mudança,não jogo do tempo vão,quem se mata ou quem se cansapela desesperação,por se vingar da esperança?

Calidade atroz da vidanão ter hora de firmeza;e, tendo tal natureza,ser tão buscada e tão cridada nossa forte fraqueza!

Pois quem no mesmo perigoquis fazer seu certo assento,que se queixa do castigo?

de se lembrar de Siãoquem padece em Babilónia?

Quem se lembra na miséria,não califica a vontade;lembrar na prosperidade,essa lembrança é matériade toda a amiga verdade.

Aqui donde se injuriaa desgraça como o erro,e a razão, presa à porfia,tem por certo ser o ferroo menos da tirania,

Que mereço em me lembrarde ti, cidade a melhor,pois, se a lembrança não for,como poderei levarnem a mi nem minha dor?

U~a só hora daquelasvale por muitos padeceres.Inda assi, tomara havê-las,mas que um só dos seus prazerescustara cem mil cautelas.

Ou que elas não foram tais,ou, se o fossem, não passassem,ou pelo menos tornassemalgu~as suas iguais,que as passadas consolassem.

Mas olhai que vão desejopedir ao tempo a tornada!Como se a vida que vejonão fora já tão cansada,que a passada é de sobejo!

Passa um dia, o outro vem.tal como essoutro passado.Não é o tempo mudado:

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Leve consigo o tormento,pois traz o engano consigo.

Um só modo descobriu,contra o tempo e a mudança,amor, que à leve balançadas gentes não consentiudesejo nem esperança.

Esta só virtude rara,mal usada dos humanos,de sorte o bem nos depara,que, detendo o pé dos anos,para imortais nos prepara.

Ditoso seja e louvadojustamente o pensamentoque, na glória e no tormento,se deixa ser governadopelas mãos do entendimento.

Ame-se o que é para amar;veja-se o que é para ver;ver só para venerar,venerar para entender,entender para louvar.

Se conheces no alto objeitoo valor e a perfeição,não temas a sujeição,porque do culto e respeitonace a justa adoração.

Transportar no amado esprito,unindo á pura vontade,e lá por modo esquisito,enxirir na eternidadecomo infinito o finito;

Cativar o fero brutoda liberdade atrevida,e a razão, sempre subida

sôbolo desejo astuto,viver triunfante e temida.

Quem nos diz que o mundo éinjusto? Quem nos diz tal,contra o que nele se vê,nem crê nos males do mal,nem nos bens do bem tem fé.

Amar o bem da virtudeé virtude e reverência;Agora gema a insolência,que eu fico que ao bem não mudeda fé para a contingência.

Nem as duras confusões,nem os casos, nem os erros,nem cadeias, nem grilhões,nem ausências, nem desterros,mudam do peito as razões.

Pois quem no deserto escuroviva luz lhe apareceu,que o bom caminho lhe deu,porque suspira o seguro,se ele próprio a luz perdeu?

Mas, se a segue, se conjuraa noite contra ele em vão,pois, por mais que cerre escura,firme passa o coraçãoe a vontade vai segura.

Contra o pinheiro do monteforceje o sul indinado,que, quando muito forçado,se a rama lhe muda a fronte,o tronco nunca é mudado.

Os tristes bens da riquezaramos são, podem dobrarc’o peso; mas a firmeza

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que pelo próprio caminhoa mi me encontre o parente.

Conto o pai, conto o irmão.Homem és? És inimigo.Oh fruto da maldição!Os dentes de Cadmo antigosomos os filhos de Adão.

Senhor, que forjaste logomais gládio que nos moleste,se aos homens nos homens destedura fome, ingrato fogo,guerra crua e mortal peste?

Que fome tão desumana,que fogo tão comedor,ou que guerra tão tirana,que peste, como o furordesta vil fraqueza humana?

Aquele rei que lançouDaniel aos leões u~a hora,(e qual se clemência fora)com que mistério mandoucerrar-lhe as portas por fora?

Que nos quis dizer então,senão que, no lago escuro,Daniel, se tem razão,ele o dava por seguro.das feras, dos homens não?

O tálamo conjugal,olhai por que o troca aquele:pela vida e pela peledo manso e pobre animal,que as merece melhor que ele!

Essa alimária escondidacom que doesto o afrontou,para lhe tirar a vida?

sempre no home há de estarde u~a própria natureza.

Os braços da adversidadequanto lutam c’o varão,fortes e destros serão;porém a contrariedadefaz-se ao corpo, à alma não.

Que era o que dizer queriacom tão valentes razõesEpicteto (entre aflições),quando a Júpiter pedianova chuva de paixões?

Quando Anaxarco ante o povopisado foi duramente,que bradava ao Rei e à gentesenão: Pisa-me de novo,porque Anaxarco não sente?

Que era comédia e grão festados deuses, disse o gentil,a mais justa e mais honesta,ver um peito varonillutar co’a sorte molesta.

Cruel condição que pôsa Fortuna em seu morgado,que não possa ser herdadojamais, acerca de nós,sem mudança e sem cuidado!

Quem se chama venturoso,sem contenda e sem perigo,ele pode ser mimosomas viver sem enemigo,não é sinal de ditoso.

Eu persigo ao meu vezinhoele ao seu, continuamente,e ordenou o Céu providente

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C’o trabalho que a buscouentre a espinhosa guarida.

Contra a lebre sempre ousado,do lobo foge que avoa;grande pesca na alagoa,e, em chegando ao mar salgado,treme do mar, porque zoa.

Redes, laços, esparrelas,que enganos e que falsia!E metido o zelo entre elas...Senhor, manda-nos um diaem que a luz mostre as cautelas!

Já com risos e branduraassegura a paz da gente;peçonha menos urgentenas águas da fonte puradeixa a fingida serpente.

Manda tu contra este mal(pois és das verdades centro)u~a vista divinal;ou, para nós vermos dentro,faz os peitos de cristal.

Do crocodrilo do Niloexclamam os naturais,porque, chamados com ais,mata como crocodriloquando criança o buscais.

Que dissera Plínio agoraà vista não do deserto,quando tão certo lhe foraque o crocodrilo mais certoentre nós nas cortes mora?

Triste idade fraudulenta,donde todo o mal respirae a verdade se retira,

porque os campos que apascentalhos vem pastando a mentira.

Foge tu, pelos presságiosdo que vês lá nas areias,gozando como sufrágiospelos ecos das sereiaso escarmento dos naufrágios.

Deixa a doutrina do dano,não fies da contingência,e adora com reverência,antes que o do desengano,o templo da Providência.

Se vês arder o casalou do parente ou do amigo,teme-te da sorte igual,que, se ele vira o perigo,nunca o dano fora tal.

Mas tu, mas eu que faremos,se nós mesmos fabricamoso cavalo que adoramose dentro de almas metemoso fogo em que nos queimamos?

Qual Sinon nos fez o dano,com que indústria ou que porfia,quem traçou, grego ou troiano,senão nossa fantesiaa traça do nosso engano?

Quem te obriga a levantaraltas torres sobre o vento?Quem lhe deu ao pensamentoas asas para voar,senão teu próprio ardimento?

Então, se a cera oportunanão saiu, e te desterraa luz do sol importuna,

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e por outro tal sentençaque foi dar o meu desejo.

Eu, carregado de ferros,ele, de lástimas feias,ambos passamos os erros;eu, arrastando as cadeias,ele, chorando os desterros.

Cada dia exprimentadanova dor, nova penúria;e, entre os golpes desta fúria,apenas u~a é passada,quando já chega outra injúria.

A enveja, a detracção,a fraude, o engano, o temor,a dúvida, a confusão,a indignação, o rigor,sobretudo a sem-razão.

Logo, com que confiança,Sião amado e propício,achar posso um leve indícioque me assegure a esperançano fumo do sacrifício?

Pois é já força que vivanesta escravidão incauta,e manda a fortuna esquivaque enterrada fique a frautae a liberdade cativa.

Alto Senhor sempiterno,sem primeiro e sem segundo,em cujo peito profundoconsiste o comum governodeste mundo e desse mundo,

Permita teu ser divinomostrar-lhe a via e a verdadeàquele espírito indino

quando caes sobre a terraporque infamas a fortuna?

Fortuna, não, providênciaé da mão que o mundo rege,por mais que o esprito forceje,pôr-lhe tudo em contingência,para que nada deseje.

Aquele sempre temer,aquele nunca acertar,aquele nada entender,aquele tanto enganar,que outra cousa quer dizer?

Quantas vezes persuadidoda fé dos olhos, errei,e quantas vezes busqueirosas no campo florido,onde só serpes achei!

E quantas, bem diferente,temendo-me dos abrolhos,caminhava impaciente,e contra o voto dos olhosfui parar ditosamente!

Ai de quem se persuadeda teima do pensamento,e para julgar o intentomanda assentar a vontadeno trono do entendimento!

Tal o processo seriaqual do juiz a eleição:a prova será profia,as razões, a sem-razão,e a sentença, tirania.

Eis-me aqui, sem diferença:doutro tal juiz que elejoexecutado me vejo,

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que vai à tua cidade,miserável peregrino.

Põe-lhe diante a esperança;acompanha-o c’o temor;acrecenta-lhe o valor;manda afastar a lembrança:caminhará vencedor.

Tu, que és fogo e que és coluna,dá luz e dá fortalezacontra essa força importunadas trevas da naturezae dos braços da fortuna.

Mas, pois que tenho acabadoquanto lá cantei ao vento,fique a voz ao esquecimento,e c’o canto sepultado,fique também o instrumento.

E se eu, por vida cruel,idolatrar contra ti,ó Jerusalém fiel,dure eternamente em mia confusão de Babel!

(* Obras Métricas, tomo II, p. 107-112)

CONTRA A IMPORTUNAÇÃODE UMA BORBOLETA

Eu te juro, borboleta,pelos santos Evangelhosque tu não foras sem trovase isto fora em outro tempo.

Menos sortes lhe bastavamquando o gosto era toureiro,antes que o tempo o tomasse,que é bravo touro por certo.

Salvajinha profiosa,não me deixarás, te peço?que se me enfadas nos livros,muito mais nos candeeiros.

Que é possível que não possater o meu postigo abertosem que tu venhas roubar-meu~a só luz a que escrevo?

[...]

Pois sabe, já que o não sabes,que neste recolhimentoo próprio fogo que gastoluz e queima como alheio.

Não basta todo o meu lumepara alumiar meus versos;vê tu como bastariapara te emprestar o incêndio.

Por falta de luz não douà luz hoje mil sonetos,porque como posso eu dar-lheso que para mim não tenho?

Não te canses nem me enfadescom voos e com passeios,que à míngua também de brasastambém já não borboleto.

Se queres aproveitar-te,toma por luz meu conselho:larga esta vela e te irásem popa a grandes mistérios.

Vai lá buscar sepulturanos claríssimos talentos,que de puro amanhacidoslhes contamos os argueiros

[...]

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Ai de mi, que me chega a sorte duraA querer que alivie o meu cuidadoPor exemplos de alhea desventura!

9

RESPONDE A UM AMIGOQUE MANDAVA PERGUNTAR A VIDA

QUE FAZIA EM SUA PRISÃO.

Casinha desprezível mal forrada,Furna lá dentro mais que inferno escura;Fresta pequena, grade bem segura,Porta só para entrar, logo fechada;

Cama que é potro, mesa destroncada;Pulga que, por picar, faz matadura;Cão só para agourar; rato que fura;Candea nem c’os dedos atiçada;

Grilhão que vos assusta eternamente;Negro boçal, e mais boçal ratinhoQue mais vos leva que vos traz da praça;

Sem Amor, sem Amigo, sem Parente!Quem mais se doi de vós diz: Coutadinho!Tal vida levo. Santo prol me faça!

10

AO SILÊNCIO DE U~AS BEMVISTAS PAREDES.

Paredes: vós guardais os resplandoresDaquele próprio Sol que eu n’alma guardo!Pois que guardais de mi, se eu neles ardo?Não guardais, acendeis mais meus ardores.

Crecem presos os raios vingadores,Certo efeito de todo o incêndio tardo.Que indústria contra o Céu achou resguardo,Que os estragos despois, não fez maiores?

Vai-te à casa dos amantesdonde valerás um reino,por que de empresa lhe sirvasa um fogo de amor eterno.

[...]

Vai-te e deixa-me te rogo,sobre este bufete velho,galé donde é remo a penae remoque o meu silêncio.

Assi Deus te dê tais fadosque enfades parvos discretose sempre em sinetes andesenxovalhando o universo.

(* Obras Métricas, tomo II, p. 216-217)

TUBA DE CALÍOPE 1

SONETOS

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TRISTE REMÉDIO O MALDE MUITOS.

Eu vi rir esta fonte; e deste rioA verdura regada, ser envejaDa que mais verde entre esmeraldas seja;Hórrido o bosque, o prado vi sombrio.

Vejo chorar a fonte, e que de frioO rio pára, o prado se despeja:Seca a verdura; a neve é só sobeja,O triste inverno assombra o claro estio.

Ora se servirá de ser vingadoVer quão mal da mudança se asseguraA fonte, o rio, o bosque, o estio, o prado.

1 Obras Métricas, Parte II. In D. Francisco Manuel de Melo:Poesias Escolhidas. Pref., sel., notas, tábua de concordância eglossário por J. V. de Pina Martins. Lisboa: Verbo Ed., 1969.

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De pedras como vós, e mais estreitas,Os Muros eram, donde a sorte duraRoubou, para vos dar, minha alegria.

Ora acabai de crer que estais sujeitasA perderdes, como eu, vossa ventura:Que eu também, quando a tive, nunca o cria.

12

DESENGANA-SE DE SI,PELO QUE VÊ NOS OUTROS.

Onde me acolherei? Tudo é tomado!Arde o monte, arde o Céu, cai da alturaO firme freixo: a estrela mais seguraVarre o chão, com desprezo antes olhado!

O docel d’ouro, o coronel douradoPende e desmente. A graça e a venturaPálida foge. O sangue, a fermosura,Tudo vai pela terra derramado.

Perde-se o grande, perde-se o fermoso.Sem que o valor do mais constante brioEscape d’acabar do assalto ou cerco.

Pois eu, fraco, ferido, e temeroso,Se inda despois de tantos me confio,De quem me hei-de queixar, quando me perco?

13

MEMÓRIAS E QUEIXAS.

Esses Mares que vejo, essas areasRompi, pisei, beijei hoje há sete anos:Sete servi, sete perdi, tiranosSempre os Fados nas vozes das Sereas.

Tantos há que, arrastando cruéis cadeasNão guardo ovelhas, mas aguardo danos;

Das fermosas Raquéis vendo os enganos,Sem a promessa ouvir das Lias feas.

Sofra Jacob fiel, Labão mentindoQue, se dobra o servir, da alta consorteJá não pode negar-lhe a mão devida.

Ai do que espera, quanto mais servindo!Para um tão triste fim, tão leda a Morte!Para um tão largo amor, tão curta a vida!

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VÁRIA IDEA ESTANDO NA AMÉRICA,E PERTURBADO NO ESTUDO POR

BAILES DE BÁRBAROS.

São dadas nove. A luz e o sofrimentoMe deixam só nesta varanda muda.Quando a Domingos, que dormindo estuda,Por um nome que errou, lhe chamo eu cento

Mortos da mesma morte o dia e vento.A noite estava para estar sesuda,Que desta negra gente em festa ruda,Endoudece o lascivo movimento.

Mas eu que digo? Solto o tão sublimeDiscurso ao ar, e vou pegar da pena,Para escrever tão simples catorzada?

Vedes? Não faltará pois quem ma estime:Que a palha para o asno, ave é de pena,Falando com perdão da gente honrada.

17

APÓLOGO DA MORTE.

Vi eu um dia a Morte andar folgandoPor um campo de vivos que a não viam.Os velhos, sem saber o que faziam,A cada passo nela iam topando.

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Seja sempre o pardo côr,não trabalho (ou não sei quê),roxo o roxo, e nanja amor;águas de côr e sabor,nunca delas Deus vos dê.

Deixai passar o galantedesfazendo-se em misurase torcícolos de amante;torça atrás, torça adiante,jeitos não mudam venturas,

Assente-se de cansado,cá no degrau do docel,de uns e de outros murmurado,contra as ordens que tem dado,o bom conde Dom Miguel.

Façam todos primorosossalás aos grandes da casa,quando vão mais aguçosos,ou se tenham por ditososcercando a cadeira rasa.

Estire esse, que presumede Adónis, o gesto, a verse vê brasas do seu lume;faça do penar costumee trajo do bem-querer.

Estremeçam bons e mausem lá bulindo co’a ceia,pois que lhes negam saraus;e dêm-se quatro quinaus,louvando a mão e a candeia.

E agora, enquanto o porteirose encalha entre a porta e vós,de enfadado ou de matreiro,tomando a vista primeirodiante quem se acinte pôs,

Na mocidade os moços confiando,Ignorantes da Morte, a não temiam.Todos cegos, nenhuns se lhe desviam:Ela a todos c’o dedo os vai contando.

Então quis disparar, e os olhos cerra:Tirou e errou. Eu, vendo seus empregos,Tão sem ordem, bradei: Tem-te, homicida!

Voltou-se e respondeu: Tal vai de guerra;Se vós todos andais comigo cegos,Que esperais que convosco ande advertida?

“A SANFONHA DE EUTERPE”:V MUSA (II DAS SEGUNDAS

TRÊS MUSAS)

ÉCLOGA

CASAMENTO

Égloga moral, a D. Francisco de Melo

Pastores: ANDRÉ E GIL

Carta dedicatória

Senhor, se do passearlá nessas salas do Paçonão se encoima o descansar,deixai ora tanto andar,perdei comigo um pedaço.

Não mateis, mas cesse a flamaque alma queima, a vista impede:tenha, e não debalde, a damaa fermosura que chamae a condição que despede.

Não sejam tudo questõessobre averiguar favores,tão pequenos como ouções;ouções que nos coraçõessão traça dos amadores.

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Dai-lhe férias à demanda,por vendimar bons conselhosque se dão cá desta banda:manda o nosso Sá Mirandaaos velhos ser evangelhos.

Quem disse galanteardisse tudo fantesia.Não me atrevo a declarar,mas, se eu não falo no ar,galanteio é zombaria.

Porém, pois que a ardente idademuito ao mancebo concede,se o sangue val, se a amizade,não o tendo à pouquidade,estes meus pastores lede.

São dous moços de um tamanho,conformes no pensamento;mas porém, por modo estranho,cada um busca o seu ganhocom diverso entendimento.

Ambos por jeito contrairobuscam mulher, buscam vida(não sei se buscam fadairo);cada qual mais voluntairoa corta à sua medida.

André quer mulher fermosa,mas que não tenha ceitil;Gil não quer mulher fumosa:qué-la feia e abondosa.Isto quer o André e o Gil.

André preza-se de nobre,Gil nada tem de vilão;um é sesudo, outro pobre;não há força por que dobreum do outro a opinião.

Um leva o primor por guia,outro o faro do proveito;um é fino em demasia;outro só do haver se fia.Não sei qual vai mais direito.

Eu agora os dous compasso(cousa que é folgar de ouvi-la)e bem medidos os faço:André, das côres do Paço,e Gil, das tintas da vila.

Vós, que não sois de escarcéuse sois também do mercado,dai sentença nestes réus;dai-lha, assi vo-la dê Deusde que sejais bem casado.

ANDRÉ E GIL

André Gil, tu sabes como há tantoque os olhos de Damianasão meu pouso e meu quebranto;sabes, mas não sabes quantoAmor desde eles me engana.

Amor, mandes ou desmandes,cada vez me poupo menos;andes, Fortuna, ou desalento;porque, a par de uns olhos grandes,que amores não são pequenos?

Não lh’os deu para pagar,nem lh’os deu para servirquem tais olhos lhe foi dar:deu-lh’os só para matar,deu-lh’os despois para rir.

Fez o que o Céu lhe ordenou;matou-me em a vendo; e entãoriu-se porque me matou.Se ela o fez, e ele o mandou,não me deve a vida, não.

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CARTAS

CARTA V

A Francisco de Sousa Coutinho,embaixador de Holanda

Aquela têmpera antigada nossa honrada nação,tão honrada e tão antiga,Senhor, não sei como diga,destemperou-a a ambição.

Os arneses vencedores,de Marte, que o mundo observa,são já de chumbo os melhores,e reluzem cem mil corespelos roupões de Minerva.

Já cuido que, de famintosda antigua glória passada,tecem novos laberintos,como se a termos sucintosnos fosse a presente data.

Tão cega corre a insolência,mãe da soberba e cobiça,que nos embarga a clemênciae nos taxa a providênciade soberana justiça.

Os filhos vão contra os pais;os pais contra eles sem siso.Para que é dizer-vos mais?Sem haver dele sinais,cada dia é do juízo.

[...]

Ora olhai: se se fizesseu~a feira universal,donde cada qual viessec’os trabalhos que tivesse,a trocá-los tal por tal,

Ora eu, morto jazo em mim,por mercê, só para verse por morto dela assimlhe mereço outro tal fim,e ando acinte a falecer.

Mas eu, que fui castigadoda força e não da razão,vou, mas vou como forçado;se o castigo pára então,eis-me outra vez obstinado.

Duros trabalhos da vidabem a puderam já terdesenganada e advertida;mas eu temo que inda quertornar a ver-se perdida.

Que importa que a liberdade,cativa sempre dos erros,tema da fatalidade,nem que viva o corpo em ferros,se vive solta a vontade?

Vontade assim tão ligeira,oh, quem te atara comigopois és tal, de aventureira,que, contra o exemplo, ao perigoousaste ser a primeira!

Ora vêde que rodeiofui dar para a perdição,buscando o mal que me veio,caminhando à confusãopor lágrimas e receio.

Vós que, partindo no diapróprio do meu desatino,chegastes por certa via,lá desse porto divinobradai, servi-me de guia!

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Viria o velho c’os anos,o mancebo c’os perigos,viria o rei c’os enganos,viria o pobre c’os danos,o rico c’os enemigos,

E, se cada um houveracerta informação do alheio,como é certo que escolherao mesmo mal que trouxerae se fosse c’o que veio!

Vossa dor conheço bem,pelo bem que vos conheço.Não temais qualquer vaivém:se a sorte seu preço tem,a virtude não tem preço.

Aqui, de mim bem defronte,vive um álamo, nacidosôbola testa de um monte;dá-lhe o sul, e, por que o afronte,deixa-o de folhas despido.

Pois, porque sem folha está,quando venha a primavera,dizei, não lhas vestirá?Vesti-lo-á, crecerá,será mais forte do que era.

Demétrio, o que possuiualtos louvores bem dados,tanto deceu e subiu,que trezentos vultos viu,erguidos, e derrubados.

Disseram-lho. Disse então:Fortuna, quando te mudes,os vultos derrubarão;as pedras, sim, cairão,mas ficarão as virtudes.

Diz que as lebres, como gente,um dia concelho houverampor não viver tristemente,e afogar-se de repentetodas juntas resolveram.

Duas rãs, como soíam,junto ao charco eram pastando,adonde as lebres corriam;e de medo do que ouviamvão-se no charco lançando.

Uma, lebre mais ladinaque isto viu, teve-se quedo,e gritou pela campina:tendo mão, gente mofina,que inda há rãs que vos tem medo!

Vêdes que assi padeceiso que dizeis, e calais,desses males tão crueis?Quantos homens cuidareisque vos trocaram seus ais?

CARTA VI

A Joane Mendes de Vasconcelos, estandoretirado na sua quinta de Mascote

Oh pesar e não de são,Como dói, como magoaum partir de u~a afeição!Deixa-nos n’alma um vergãodo tamanho que ela é boa.

Se lá contam os contaresde um Metrídates de Ponto,que com peçonhas aos paresviveu anos centenares,e lhe cremos todo o conto,

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Vi-vos vir, e vi-vos ir,e é tal a pouca razãodo vosso andar a ir e vir,que, certo, venho a inferirvos culpa minha feição.

Os coitados, os mesquinhossão como peros tocados:por uns podres poucochinhos,apodrecem seus vizinhos;faz um dano mil danados.

Vêdes a sorte ruimque vos persegue, e eu tireipelo qual a vejo em mim?Vêdes-vos tratar assim?Eu fui quem vo-la peguei.

Oh, Senhor, que é grão trabalhoandar o mal a rou-rou,e para tudo achar talho!E o bem, como um espantalho,Vêde-me vós, que aqui estou!

Tais caminhos tem, tais asos,a má malícia de agora!Mente sem tempos nem prazos,furta os dias, nega os casos,e a termo-la por senhora!

Ora, com vulgar espíritonão reprendamos o mundo,que vai como precito;mas ajudemos c’o gritoa estoutro mundo segundo.

A Providência, que é justa,grande alçada no homem pôs(seja embora à nossa custa):se a fortuna julga injusta,apelemos para nós.

Vede, amigo, se os venenos(sòmente por ser usadosdos homens desde pequenos)dão vida, se farão menospastos bons e costumados?

Por isso, muito convémà pessoa que se aveza,qual vezo toma olhar bem,pois deste mau olhar vemmil tortos à natureza.

Corre em cinco anos que estavametido nestas cancelas.De nada mais me lembrava.Certo cuidava e juravaque era o mundo dentro delas.

Eis que por fado ou costumede todo o nobre sujeito,vinde cá também por lume:derrancaste-me ora o gumedo meu viver satisfeito.

Quanta cousa a crer me destesque me esquecia, ou não cria(feito agreste entre os agrestes)!Que direi? Crer me fizestesque amizade inda hoje a havia.

Vi-me todo alvoraçadocom tal exemplo e tal nova:tudo em vós provado e achado,pois à fé que onde é provadoque deixa os peitos de prova.

Passou tudo como um sonho,e por tal arte passou,que comigo me envergonhode o sentir, quando me ponhoa cuidar que se acabou.

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Sabeis que tenho alcançado,por ciência exprimental,de longo estudo e cuidado?Que é cada qual mal julgadoporque a si se julga mal.

Que culpa tem os trovões,lá dessa linha abrasada,em tantas mil perdições?Não se culpem as monções,culpe-se a profia ousada.

Tenho o gosto e o alvedriocomigo, qual senhor seu;meti-me no desvario;se comigo me confio,quem tem culpa, senão eu?

Vão os erros mais sem contoque as patacas no Peru.Quem chegou a um alto pontonão quer dele ter desconto,quer cantar o lá sem u.

Quando tudo era falantediz que a raposa caíunum poço de água abundanteChegou um lobo arrogante,que passava, acaso, e a viu.

De u~a polé, pindurava(porque o poço era profundo)u~a corda, a qual atavadous baldes; um no alto estava,noutro a raposa no fundo.

Pois a bicha, que era arteira,chama o lobo, e diz: senhor,já que eu não fui a primeira,socorrei vossa parceira,que eu sei que tendes valor.

Ora assim, sem mais profia,o lobo, que é fanfarrão,já no balde se metia.Ele cai, ela subia,por u~a mesma invenção.

Toparam-se ao prepassar,e o lobo, meio caindo,nem lhe ousava de falar;ela, a rir, e a arrebentar,de se ver também subindo.

Enfim ao medo venceu.Fala o lobo, e diz: Comadre,isto vos mereço eu?Ela, a zombar do sandeu,nem lhe quis chamar compadre.

Mas diz-lhe: Dom Vagabundo,teus queixumes não me empecem.Acaba já de ir-te ao fundo.Isto são cousas do mundo:quando um sobe, os outros decem.

Eis aqui, nem mais, nem menos(mas que não haja i mais Frandesnos estados mais serenos):por levantar dous pequenos,abaxa o mundo dez grandes.

Pois, se lhe amarga de todomudar-se, sem quem o ajude,desta andar c’os bons a rodo,fique o mundo c’o seu modo,seja o home o que se mude.

Oh, que triste maldiçãosobre nós outros viera,se a má, se a boa eleição,não de nós, da alheia mão,pendurada se nos dera.

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Mas eu, cá dentre as ortigas,donde estou de espreita, corro,dou-lhe nos olhos mil figas;digo-lhe: faças, e digas,já de ti sou negro forro.

Sabeis quem me dá a ousiacontra esta fera malvada?Não é, certo, a valentia,mas aquela grão profiacom que a tenho acostumada.

São tão cruas, tão estranhasnossas lutas diferentes,que não sei se (inda tamanhas)melhor me sabe as entranhas,se lhe sei melhor os dentes.

E como é certo que algumcondene no trato nossomeus conselhos, um por um!Mas, amigo, aqui nenhumpode dizer quanto eu posso.

Oh que vozes, que alaridosvão lá, no mundo! De lá,se espertais ora os ouvidos,eu vos ponho que os gemidosouçais dos que gemem cá.

Um diz: ui!, outro diz: ai!;nenhum não cumpre o que diz;outro diz (sem dar): tomai;outro toma, e diz: guardai.I também era o juiz.

Bem haja quem do alto montefaz palanque forte e bom,que o antigo risco desconte!Troa o céu, arde o horizonte,não lhe chega mais que o tom.

Mas, ó bom Deus, que tal sejasque nos deste habilidadecontra as malícias e envejas(por mais que sejam sobejas),para atinar co’a bondade!

Vistes já como o navio,apesar da névoa escura,nem perde o rumo, nem fio,mas, entre o mór desvario,a agulha o rege segura?

Ora, sem mais contingência,tal a prudência presumo,que (se ela é firme prudência)faça a névoa resistência,que ela não perde o seu rumo.

Os sabedores antigostiveram para si todosque, nos asos e perigos,quanta casta há de enemigos,de valor há tantos modos.

Pois vós, havendo mostradoo vigor que em vós se encerracontra o imigo declarado,que temeis da haver entradoc’os encobertos em guerra?

Ui, Senhor, saia a peçonha,que do coração faz centro(bem que a grão risco nos ponha)!Mais val no rostro vergonhaque nanja a mágoa cá dentro.

Certo que escutando estoumil vezes o ódio bramar,da raiva com que ficoupor, que tudo nos tirou,não ter mais que nos tirar.

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De mistura o afão e o ócionem bem suporta ou aparece,e o mais árduo seu negócioé, do solstício ao equinócio,ver se o dia ou míngua ou crece.

Oh três, oh quatro, oh mil vezesditoso de quem puderpraticar co’as mansas rezes,e lá, por jeitos monteses,dizer-lhe quanto quiser!

Côrra Cesar trás Pompeu;um fuja, vença outro, astutono golpe de Tolomeu,que eu fico que Melibeununca molhe o ferro a Bruto.

Que carro de Aurilianoescalou de Roma o muroem triunfo tão soberanocomo um carro em todo um anocruza as veredas seguro?

Para a vida e para a morte,que estilo como a água clara?Que bom ar como o de um norte?Que côrte como u~a cortedessas donde o boi velho ara?

Misericórdia o Céu chove,Senhor! Lá vai a tormenta.Quem for cego que o reprove.Mas, feitas corenta e nove,não passo das cincoenta.

CARTA IX

A Francisco de Sousa Menezes,arcediago de Valdige

A esta Torre, que o mar cansa,onde tenho a libardadeenterrada, e a esperança,tal força teve a amizadeque chegou cá co’a lembrança.

Porém, que espanto é o meu(bem que foi raro entre nós)de ver este tiro seu,amigo, se fostes vósquem tantas forças lhe deu?

Que ausente estais bem parecede Babilónia, lá dondese gasta o que se merece.Cá, senhor, ninguém responde,e menos se compadece.

Acerto Conde, que não acabavade dar uma volta, que tinha prometido.*

REDONDILHAS

Como sempre há linguas soltas,Murmura o vulgo ruim,Que não sois bom bolatim,Porque não sabeis dar voltas,

Que houvereis de mandar,Dizem, logo sem tardançaChamar um mestre de dança,Que vo las ensine a dar.

Pois desta arte tão commuaTão cedo vos esquecestes,Que de quantas voltas destesHoje não sabeis dar uma.

* Fénix Renascida. Vol. V, p. 357-359.

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E jura alguém, a quem malVossa grandeza é notória,Que vos varreo da memóriaPor ser arte liberal.

Dará vossa fama estouro,Se quando aos touros entrais,Como esta volta guardais,Guardais a volta do touro.

E para espada em revoltaTendes têmpera estremada,Que a boa folha de espadaDiz, que não há-de ter volta.

Porém segundo atégoraTem passado toda a festaSem a volta, não é estaA volta, que me namora.

Ou eu devo estar muy grosso,Ou vós mal deveis de andar,Pois n’um mês não podeis darUma volta ao meu pescoço.

Em pouco mais houve não,Que uma volta ao mundo deu,Pois sou mais que o mundo eu?Ou vós sois menos que um pau?

Ambos ao mesmo compassoNavegamos com bonança,Eu na volta da esperançaVós na volta do sargasso,

É tal a vossa durezaQue esta volta, que heis-de dar,Inda é peyor de tomarQue as mesmas voltas da Andreza.

Muito há que o pensamentoUm receo me não solta,Que pois não quereis dar volta,Deveis de estar ferrugento.

E assim por forrar petrechosPoderá ser que aproveite,Vos quisera untar de azeite,Pois sois tão duro dos fechos.

Ou um músico emprestadoBuscarei que a voz levante,

E a toda a hora vos canteBuelta a cá pastor cansado.

Praza a Deos sem mais propostos,Que sejais tão esquecido,Que lanceis o promettidoCá para detrás das costas.

Pois nisto o sentido atoloCom tal ânsia, e tal extemo,Que se a volta tarda, temoQue me dê volta o miolo.

E já que o Parnaso aos potesNos dá do licor, que esconde,Não será razão, meu Conde,Deixar sem volta estes motes.

POR ASSUMPTO ACADEMICO

A una fuente, en que se via una Dama.

DECIMAS

Vago pintor de las flores,Tu, que en luzientes matizesPara hurtar la luz de LizésHurtaste al Sol los colores:Justamente sus primoresMuestra tu claro reflejo,Quando en tus aguas consejoToma su ardiente arrebol,Porque al fin siempre del SolFueron las ondas espejo.

Tu, que a ser crystal dós vezesDe esse marmol te desatas,Una, por la que retratas,Y outra, por lo que parecesBien de la copia, que offreces,Quedar puedes com jactancia,Si es tan poca la distancia,Que a un se vé mas naturalQue en tu crystal su crystalSu inconstancia en tu inconstancia.

Al verte en ti Lizes, siento,Que amor maravillas fragoa

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Pues verse el fuego en el agoaNo está fuera de portento:Mas si es que deste elementoProcede amor, bien en sumaDe mar tu crystal presuma,Pues quando su bulto haze,Com razon piensa que nazeNueva Venus de su espuma.

Aunque es breve tu corriente,Nadie se deve admirarQue amor conceda de marPrivilegios a una fuente;Pues si de Lizes la ardienteLuz baña tu curso incierto,Bien que en tan estraño puertoRaudal tan pequeño escondas,Si el Sol se pone en tus ondas,Que eres Oceáno es cierto.

(Fénix V, p. 360-61)

Autodo FidalgoAprendiz*

* D. F. M. de Melo. O Fidalgo Aprendiz. Texto establ., introd.e notas de A. Corrêa de A. Oliveira. 6.ª ed.; Lisboa: MoraesEd., 1979. São retiradas do texto quase todas as notas.

FIGURAS QUE FALAM

DOM GIL COGOMINHOAFONSO MENDES

BELTRÃOISABELBRITES

UM MESTRE DE ESGRIMAUM MESTRE DE DANÇAR

UM POETAUM MOÇO DE CAVALOS

U~A COMADREUM HOMEM QUE PASSAUM HOMEM DAS ALMAS

PRIMEIRA JORNADA

Sai Afonso Mendes vestido à portuguesa antiga – botas,barbas, festo, pelote, gorra, espada e talabarte

Sou velho, já fui mancebo,cousa que, mal que lhes pês,virá por vossas mercês.Naci no Lagar do Sebo,faz hoje setenta e três.

Fui presado, fui temido,passei sóis, passei serenos,rompi bons vintadozenos,já nunca mudei vestido,e inda fato muito menos.

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porque o tal Beltrão1 pretendea menina, tal qual era.A velha está como cera,mas faz que de nada entende,só pelo ganho que espera...

Eis meu amo!

Sai D. Gil como de por casa – gualteira, balandrau echinelas, e um pito ao pescoço; e venha assoviando

GIL Olá criados!Almeida! Costa! Miranda!Malovento! A essoutra banda,que desta já são lançados.

Sacratário! Há tal dormir?!Estribeiro! Aio!

AFONSO Senhor!GIL Se chamara o confessor,

tinha jeito de não vir!AFONSO Que manda vossa mercê?GIL Que tenhais mais cortesia.AFONSO Que mandais?GIL A senhoria

não sei para quando é...AFONSO Basta que tomou teiró

de querer mais do que é seu!GIL Aio não sejas sandeu,

que nisso não sou eu só.Os criados donde são?

AFONSO Todos são dos seus lugares.GIL Folgais de me dares pesares?!

Pergunto-vos donde estão.AFONSO Em casa do inculcador.GIL Que dizeis, Afonso Mendes?AFONSO Que os tenhais, já que, os não tendes,

e então pedi-mos, senhor...GIL Só por isso eu os terei!

1 Beltrão: usa-se para indicar pessoa de quem se ignora ounão se quer dizer o verdadeiro nome. Idêntico a Fulano eFuão. Personagem da comédia italiana (Beltrane).

Sei o açougue no Ressio,os Estaus na Inquisição.Vi El-Rei D. Sebastião.Sem dinheiro, quis ter brio:fiquei perpétuo rescão.

Hoje sirvo, não sei dondelá de riba, um escudeiro,enfronhado em cavaleiro,que, de andar posto em ser conde,se não conde, é condandeiro.

Com dous mil e cento, a seco,me tomou para seu aio:sou seu paje e seu lacaio,e ainda hei de ser seu pacheco,conforme a tudo me ensaio.

Se nu~a sandice encalha,dou-o ó demo que é testudo!Presume de homem sisudo:de nada sabe migalha,e anda enxovalhando tudo,

morto por ser namorado,contrabaxo e trovador,cavaleiro e dançador,enfim, fidalgo acabado,valentão e caçador.

Mas u~a comadre minha,mulher para muita aquela,anda armando-lhe esparrelacuma filha bonitinha,que eu fico que caia nela.

Oh pesar do meu pai torto(descreo dos castelhanos!),pois à fé que é de bons panos,e ressurgir pode um morto,mas que seja de cem anos!

Entra na dança comigoum chapado velhacão,que eu crismei em D. Beltrão ...Inculquei-lho por amigo,e o negócio anda em feição,

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AFONSO Bem podeis, quando quiserdes,que, para quando os tiverdes,conta deles vos darei.

Batem à porta

GIL Enquanto não há porteiro,vede quem bate a essa porta.

AFONSO Isso, sim, é o que importa:ser ginete e ser sendeiro!

Chega à porta e torna logo

O mestre de esgrima chama.Que vos vem a dar lição.

GIL Venha, mas como quem são,que bate como u~a dama.

Ensinai-o a falar fora.

Entra o Mestre da esgrima, com grandes guedelhas, coletede ante, espada muito comprida, e embuçado como valente

MESTRE Guarde Deus a vossancê.GIL O’aio, pois isto é

o que eu vos disse inda agora?AFONSO Pois se ele termo não tem,

que importa que fale assim?GIL Vem-me ele ensinar a mim?

Pois ensinai-o também!MESTRE Se lição há-de tomar,

despachemos, que tem homemoutros mil que lição tomem!

GIL Que me haveis vós de ensinar?MESTRE Quê?! Dous talhos sacudidos,

um mãodobre, um altabaxo,três tretas de unhas abaxo,quatro panos, seis surzidos.

GIL Sabeis mais?MESTRE Não, não sei al.GIL Pois se vós, bem que secreta,

não me dais algu~a treta,que ninguém me empeça em mal,

que, posto que faça amouco,nem por toque ou por remoque,ferro nenhum me não toque,digo-vos que sabeis pouco.

MESTRE Se disto para que valhoquer saber, ensinar-lhe-emos.

GIL Ora sus, aprenderemos,já que tomastes trabalho!

MESTRE Há espadas?GIL Sou quieto.MESTRE Nem adaga?GIL Faz-me mal.MESTRE Há montante?GIL Não.MESTRE Mangual?GIL Menos que tudo.MESTRE Há espeto?GIL Tenho a casa sem adorno:

Vim há pouco...AFONSO Não riais

de tal dito...GIL Quanto mais,

que eu como assado do forno(com que os espetos escuso),porque é mais tenro ao trinchar.

MESTRE Há cana de esfulinhar?GIL Nem há cana, nem fuso.MESTRE Vou-me logo.GIL Tende mão!

Ó aio, aindai sem tardançae havei-me na vezinhançacom que possa dar lição.

AFONSO Pois eu, mesquinho de mi!,quem me há a mim de dar arneses?

GIL Ora buscai, que mil vezesacha homem as cousas per i.

Vai-se Afonso Mendes

Olhai, Mestre: eu sou morgadonão tenho, irmão, nem irmã,tenho um casal na Alousã,

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MESTRE Logo os peis 3 hav’reis de pôr ...GIL Já sei.MESTRE Onde?GIL Em polvorosa.MESTRE Depois dessa, entendei logo

que, em vos chegando a puxarò ponto, haveis de tomar...

GIL Já sei: as de Vila-Diogo!MESTRE Dais dous talhos ao giolho,

com quem faz remoinho.GIL Mestre, jogai de mansinho,

que me vazareis um olho!

Esgrima só

AFONSO Ó Deus, que grão desconcórdia!

Batem à porta

GIL Batem?AFONSO Sim.GIL Respondei lá.AFONSO Já vou.GIL Visita será?AFONSO Da Santa Misericórdia ...

Vai-se Afonso Mendes. Esgrime D. Gil e o Mestre

GIL Axopra, que isso é cortar,por são tal, que vos desmembre!

MESTRE Calai, que é por que vos lembre!GIL Prometo de me alembrar.

Torna Afonso Mendes

AFONSO Quatro mestres juntos vêm.GIL Eles têm mui boa andança!

Vem o da solfa?AFONSO E o da dança.GIL E o das trovas?

e não me quero arriscadoem prefias nem arrufos.

MESTRE Eu sei já [o] que quereis.

Entra Afonso Mendes com dois chapins velhos na mão

AFONSO Ora sus 2, descansarei!Aqui trago dois pantufos.

GIL Chapins trazeis?! Ora ide!Aio, não sejais assim!

AFONSO Pois sei eu quem cum chapimfaz fataxas como um Cide!

GIL Ouvi sempre a minha tia:«tomar o que o tempo dá,que é grão siso». Dai-os cá.

Beje Afonso Mendes os pantufos e los entregue

AFONSO Tome vossa senhoria.

Toma D. Gil os pantufos e convida ao Mestre com qual-quer deles

GIL Escolhei, não haja engano...Já sou frio como a neve!

Faz que lhe toma o peso

Vistes vós cousa mais leve?Brigarei com ele um ano.

Ponha-se cada um com seu chapim na mão, em posturade esgrimir

MESTRE Seja a primeira lição,que desta arte se vos dê,que andeis ligeiro de pé,muito mais do que da mão.

GIL Tá, tá! Escusai a prosa,que eu sei que sois de primor.

2 Sus: ânimo, coragem. 3 peis: plural de pés.

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AFONSO Vem também.GIL Todavia nenhum tarda.

São finíssimos ...AFONSO ... basbaques!GIL Falta algum?AFONSO Sim: Mestre Jaques.GIL E para vós Mestre Albarda.MESTRE Vós tendes lição tomado;

vou-me andando.GIL Afonso Mendes,

dai-lhe ora aí, se o tendes,um meo vintém selado.

MESTRE Oh, enfreado ele o fora,Se nos topáramos sós!

GIL Eu me lembrarei de vós,sem mais talhos... Ide embora.

Vai-se [o] Mestre de esgrima

AFONSO Qual quereis que entre primeiro?GIL O da dança.

[Vai Afonso Mendes à porta e chama o Mestre da dança]

AFONSO Entra, e nô mais.

Entra o Mestre da dança, muito polido, fazendo mesuras;põe-se de joelhos diante de D. Gil; pega-lhe nas mãospara lhas bejar

MESTRE Dai-me as mãos!GIL Não mas comais,

que não são mãos de carneiro.Sois o Mestre?

MESTRE E o rei Davidmais antigo da cidade.

GIL Tereis grande habilidade?MESTRE Estive já em Madrid.GIL Oh, se fostes a Castela,

sabereis cem mil mudanças!MESTRE Para mudanças, e danças,

todos sabemos mais que ela.

GIL Ora tiro o balandrau,que o aprender sempre é virtude.

Tira o capote

MESTRE Há em casa algum laúde?AFONSO Não há mais que um birimbau.MESTRE Violas?AFONSO Sim, achareis

na botica ...MESTRE Harpa?!AFONSO De couro! ...MESTRE Nem um sestro?!AFONSO Um sestro agouro!MESTRE Nem sequer dous cascavéis?GIL Eu andei coa alma nos dentes

estoutros dias passados,porque diz os namoradosnunca podem ser contentes.

Despedi toda a capela,que em desafinando estroje:de sorte que, quanto é hoje,fareis som numa panela.

Mas, por vida dos Coutinhos,que isto se fique entre nós,Mestre, que bem sabeis vósque o tempo vai de escarninhos.

Eu quisera-me encampar,sem primeiro andar em contos,costumando-se homens tontosque o seu viver é matar.

MESTRE Senhor, das portas adentro,todos passam dela e dela...Mandai que venha a panela.

AFONSO Ontem deu cos tampãos dentro!GIL Quebrou-se?! Sou desgraçado!AFONSO Pois agastai-vos de nada?GIL Não é ela a destampada,

que vós sois o destampado!E calaste-lo?! Está bom!

MESTRE Eu vos tangerei coa mão.

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ApólogosDialogais*

* Vol. I. “Os Relógios Falantes”; “A Visita das Fontes.” Ediçãode Pedro Serra. Braga/Coimbra: Angelus Novus, 1998.

PRÓLOGO

Senhor já ouviríeis a graciosa indecência com quedisse um de nossos discretos que a imaginação eracurral do conselho donde, por não ter portas, todoo animal tinha entrada. Se isto algu~a vez foi verdade,na imaginação dos solitários se verefica. Persua-do-me que, do próprio modo que ao homem sóo envestem seus inimigos, ao homem só o assaltamseus pensamentos, entre os quais não há nenhumtão cobarde que deixe de fazer sorte naquele aquem ninguém defende. Todavia não sei que fei-tiços nos dá a solidão que, apesar de esses incon-venientes, quem u~a vez a experimentou sempre aprocura. Será porque, nela, entre o entendimentoe o céu há pequeno intervalo, larga distância entrea vida e o perigo, quando racionalmente se buscae sabiamente se dispende?Ora eu não avogo esta vez por ela, sendo seguroda afeição que vos deve. Porém, vós, em tudo nãosó varão da Justiça, mas varão justo, não podíeis,sem perjuízo da República, querer da solidão aposse; contentai-vos com a reverência. Nem elaespera de vós mais que a aprovação por exercício.Os fortes capitães tenham (como costumam), poraposento, os perigosos cornos da lua em os deseus exércitos. Alojem os sábios ministros (segundovemos) nas ourelas dos tronos, que não estarão aímenos em seu lugar do que os homens desenga-nados escondidos pelas tocas agrestes.

GIL Tangei, que eu não dou liçãoassim sem tom e sem som!

MESTRE Passeai por essa casa,que vos quero dar o ar.

GIL Isso é querer-me aleijar,dar-me o ar, estando em brasa!

MESTRE Fazei mesuras.

[...]

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Foi sempre a Fortuna pintora de pausagens. Assi,de longes e de peitos, de vistas primeiras e segundas,compõe esta fermosa prespectiva do mundo; dondeé para notar que aqueles baixos materiais que emsi não são outra cousa que tábuas, lenços, terras eazeites, de que a pintura se serve, ela os realça,levanta e ilustra de tal modo que agora nos parecemaltos montes, agora soberbos edifícios, talvez rioscaudalosos e talvez fresquíssimos arvoredos.Mas, ó senhor, adonde vou que, deixando (comoa princípio vos disse) de par em par a imaginação,não tornei mais a entrar naquela da qual parecehaver partido. Consenti-me tornar atrás; e, assen-tando que vivo só e que como só discurso e quecomo só entendo, ficará logo corrente a confiançada oferta que vos faço, enviando-vos este humildeconceito que u~a vez cá me entrou na imaginação,por achar a porta aberta, e entrou para não sair atécomunicar-vo-lo.São os conceitos como as figuras que se vazamem moldes: sempre hão-de trazer a própria formada matriz em que se engendraram. E, quando estaseja ilustre, pouco importa que a matéria o nãoseja. Estátuas vemos de barro altamente prezadasou, ao contrário, as de ouro valem pouco, quandoinformes.O primeiro fim com que escrevi este apólogo foisó por divertir-me dos penosos cuidados que hátantos anos me acompanham ou, por melhor dizer,me perseguem. Comparo eu a memória aos bu-gios (perdoai tão baixa comparação com que sejaprópria): se os não atais a um pesado cepo, em vezde entreterem com seus jogos, são proluxos e da-ninhos contra quem os cria. Assim é a memóriavendo-se solta. Quando algu~a ponderosa obrigaçãoa não oprime, tudo revolve, tudo acarreta, lança aperder tudo e, no cabo, lastima e maltrata ao pró-prio que a alimenta. Depois, digo, prossegui estepapel com nova esperança de interesse – bordãode todas as obras –; porque, desde que teve jeitode ser alguma coisa, o guardei para vo-lo apresentar.

Pouco vai em que vá errado se há de parar emvossas mãos, u~a de mestre, outra de amigo. Nãoperigará em nenhum, sendo certo que se tornamdefeitos próprios aqueles que os amigos uns aosoutros dessimulam. Fará, pelo menos, certo aquilode que eu mais necessito; que, como todas estasrezões se derigiam a vós somente, não pus aquipalavra que não fosse de vós u~a lembrança. Doaplauso vos desabrigo e até da censura; porquevós nada lereis sem conserto e eu não quero deoutrem ser lido. Escusai-me a este troco de queme gabe ou me desculpe, fugindo ao costume dosmais que, a cada passo, em o que julgam de seusescritos, se nos convertem de autores a leitores, di-zendo-nos de si o que nós havíamos de dizer deles.Para u~a só acção vos peço voto, e seja para aprovara eleição que fiz de vosso nome, por que, entretanto merecimento, ficasse dessimulada a curta valiadesta obra. Quanto ela algu~a hora montar na esti-mação de aqueles que lhe podem dar preço, a vósse deve e esse interesse vós o lograi, pois de vós háprocedido, sabendo-se como eu tenho há dias feitoum contrato com o tempo: quito-lhe a glória quepudera dever-me pelo que bem obrasse, com con-dição que me não injurie pelo que fizer a seu des-contentamento. Tomo-vos por meu juiz conser-vador, para que lhe façais observar as condiçõesdeste contrato a que estou prestes.

Sobretudo vos guarde Nosso Senhor comodesejo, etc...Nesta aldea, em 20 de Sept[embro] de 1654

V. A. e D.

D. F. M.

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[Relógio da Aldeia:] Também nesta pouquidadenos trapaceam os grandes: porque de ordinário, acarta não é do mesmo pano que a amostra.[Relógio da Cidade:] Nem a nota irmã da fir-ma. Mas deixemos para outra hora o ler por sen-tença, e vamo-nos hoje por carta de nomes. Comoé o nome de V.M. [?][Relógio da Aldeia:] Sou, com perdão, o Reló-gio da Vila de Belas; ou sem perdão (para melhordizer), porque nunca fiz erro que se me perdoasse.Parece que só para mim anda o mundo concertado.[Relógio da Cidade:] Tá, tá, tá. V. M. é o Reló-gio de Belas. Grandes cousas tenho ouvido de seubom gosto. Dizem por cá, finalmente, que V. M. éRelógio de Belas mas não é belo relógio...[Relógio da Aldeia:] Zomba V. M., porque mevê aldeão. Pois também cá dizem que cantam asmoças: «Relógio que andais errado, que não daisas horas certas».[Relógio da Cidade:] Quem queres tu que tapea boca aos namorados, ou lhes acerte com a von-tade com que o mesmo amor não atina? Dondeeu cuidei já que, por isso, o pintaram com os olhoscobertos, como mula de atafona, porque, às muitasvoltas que os amantes lhe fazem dar, o coitadoendoudecera, se vira.[Relógio da Aldeia:] Tenho feito minha obriga-ção nomeando-me; fazei vossa cortesia correspon-dendo-me. Quem quereis ser? Por qual mandaisque vos tenhamos?[Relógio da Cidade:] Quem gostareis vós queeu vos saia? Sou [esse] cansado, esse negro, essemaldito Relógio das Chagas, de Lisboa.[Relógio da Aldeia:] Chagado e ferrugento vejoeu a V.M., para ser tão grande e tão antigo cortesão,de quem a fama publica mil galantarias.[Relógio da Cidade:] Ó saloio, por bom modome desonrais de mentiroso.[Relógio da Aldeia:] E vós a mim de vilão combem mau modo?[Relógio da Cidade:] Por isso se diz que não háalfaiate bem vestido. Nunca veríeis menos cortesia

OS RELÓGIOS FALANTES

APÓLOGO DIALOGAL

PRIMEIRO

Fazem a interlocuçãoum Relógio da Cidade

eoutro da Aldea

[Relógio da Cidade:] Seja V. M. muito bemvindo. Quem diremos?[Relógio da Aldeia:] Conserte Deus a V. M.,senhor Relógio.[Relógio da Cidade:] Tristes de nós, que logonos conhecem pelas mãos como Damas![Relógio da Aldeia:] E às vezes pelas badaladascomo galantes; mas não é isso senão que nos correa ferrugem pelas rodas, como aos homens o sanguepelas veas.[Relógio da Cidade:] Logo, relógio é tambémV. M.?[Relógio da Aldeia:] Si, senhor, ainda que indigno.[Relógio da Cidade:] E donde, se se pode dizer?[Relógio da Aldeia:] Vilão sou; não há aí negá-lo,que é a peor das vilanias.[Relógio da Cidade:] Antes já ouvi dizer a umPregador, na minha igreja, que cada um é obrigadoa conhecer-se.[Relógio da Aldeia:] Si é, para emendar ou dissi-mular seus defeitos; não para se prezar deles.[Relógio da Cidade:] Contudo, V. M. me digacomo se chama, que sua gentil presença me pro-mete grande achado em tão boa companhia.[Relógio da Aldeia:] Não se fie de aparências,senhor Relógio, porque dessa maneira nos estáenganando todo o mundo; e até o mesmo céu,que cada dia nos parece azul, não tem cor algu~a. Oofício dos olhos é ver e chorar e enganar.[Relógio da Cidade:] Sem embargo, a agradávelpresença é como sobreescrito de boa letra, quemostra será a carta da própria mão.

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que na corte. Anda o mundo desconcertado e opeor é que nos põem a nós a culpa.[Relógio da Aldeia:] Essa manha sempre ele ateve; e muitas vezes, cá pelas minhas mossas deferro, hei notado que de contínuo os baixos pa-gam os encontros dos altos, que é justiça de ca-nhoto ou esquerda justiça. Opõem-se lá no céudois planetas, eclipsa-se o sol ou a lua, e nada detudo aquilo perjudica ao céu. Pagam os campos,as sementeiras e talvez os homens, as paixões quepassam as estrelas no seu firmamento e os planetasem suas esferas, como se nós os atiçássemos – oque me cheira a sem rezão de duas em carga. Naterra é do mesmo modo; os homens desmanchamo mundo, e os relógios tem a culpa.[Relógio da Cidade:] Ora, pois todos somos decampanário, será bom que nos vejamos os jogos,como bons praceiros. A que vindes a esta casa?[Relógio da Aldeia:] Ao que vós estais nela.[Relógio da Cidade:] Dir-vo-lo-ei: sou tão mal[escançado] que, sendo eu dos mais anciãos reló-gios da Cidade, me deram por aio um mentecato.Vede que gentil censor podiam ter os meus des-varios.[Relógio da Aldeia:] Muito tempo há que otempo é esse! U~a cousa vos digo: que, quando pormais não fora que estar sujeito à censura dos parvos,se não podia ser discreto.[Relógio da Cidade:] Vou avante. O meupedagogo era torto e mandavam que me enderei-tasse; cousa impossível, por quem já disse o ditadocastelhano, que «sólo Dios acierta a reglar con[regla] tuerta». Enfim, era um tesoureiro queentesourava quanto lhe davam, por ter cuidado demeus descuidos. Jamais me untou as rodas, pelasuntar ao carro de seu proveito; jamais me limpou,temendo sujar-se. E, então, porque pela culpa alheaeu não sou a mesma pontualidade, em lugar dospesos, que me não levantava, me levantou mil fal-sos testemunhos. Tantos que, juntos à ruim sus-peita que o povo do meu bairro sempre teve deminha verdade, não descansaram meus inimigos

até não darem comigo em casa deste malditocaldeireiro donde nos vemos e donde dizem quejá não sairei senão para o ferro velho, depois dehaver em vão tomado mil suores de fornalha, doismil banhos de forja e quatro mil esfregações debigorna, que não sei como sou vivo. De sorte,amigo, que as mentiras e trapaças de aquele taca-nho eu hei-de ser quem as pague. A fama de men-tiroso ficará para sempre comigo, e o falsário serásatisfeito. Não só as rodas me andam todas ao re-dor, ou me desandam, mas a mão, a cabeça e tudose me desconcerta, cada vez que cuido no enganodos tolos dos meus fregueses e na malícia do mal-vado sancristão, por quem se me azaram tantosmales. A isto vim, nesta afronta me vejo. Notaicomo anda a nossa Corte bem governada.[Relógio da Aldeia:] Como quem se governapelo Relógio das Chagas?[Relógio da Cidade:] Por mim, não, mas poroutros melhores sim; porque todos os que nos go-vernam trazem seus relógios consigo, por ser in-sígnia do homem de estado, os quais eles tempe-ram sempre à sua vontade... De maneira que, go-vernando eles como querem a seus relógios, segovernam por eles, e assim vivem sempre ao gostode seu gosto. Boa ordem? E então, que só sejaconhecido por fabuloso o pobre Relógio dasChagas, que com ninguém se mete. Assi vai tudodireito.[Relógio da Aldeia:] Sempre ouvi dizer queera manha de ministros fazerem-se eles os relógiosda República, e fazerem que os mais dessem horascomo relógio.[Relógio da Cidade:] Tendes rezão; e por issoum pintor astuto, mandando-se-lhe pintar o sím-bolo de um ministro, pintou um relógio ao revés:a campainha para baixo e os pesos para cima.[Relógio da Aldeia:] Que queria dizer nisso?Diria, por ventura, que os ministros trazem sempresobre si os pesos e os pesares da República e quea língua, significada no sino para baixo, é a quedeve andar por baixo de tudo sem aparecer?

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gança como a de u~a ruim fama; porque, tendo cadapessoa mais inimigos que amigos, sempre erammais os que a criam que os que a duvidavam. Nemseria pequena vingança deixar (pelo menos) o cré-dito do contrário duvidoso. Isto apeteces? Istosolicitas?[Relógio da Cidade:] Vindes tão sabedor queme pareceis antes Relógio da Universidade deCoimbra que da aldea de Belas.[Relógio da Aldeia:] Não há vilão que não saibapara seu proveito.[Relógio da Cidade:] Assim deve de ser, segundoos que eu via aproveitados desde a minha torre,quando Deus queria.[Relógio da Aldeia:] Essa cousa é natural: os[pequenos] são os que crecem. Nenhu~a árvorevereis que se contente com ficar baixa e aparada:ou se levanta ou se seca. As grandes param e, sefazem mudança, é para deminuírem; murcham-see caem. Em os homens passa da mesma maneira:os que são muito crecidos não podem ser maiores,antes, se se abalam, é só para a ruína; os que sevem em estado ínfimo procuram avantejar-se, etanto se esforçam até que se estiram. Enfim, tudoaquilo que já é, não cuida de ser; e tudo aquiloque ainda não é, de nenhu~a outra cousa cuida.Donde vem...[Relógio da Cidade:] Já sei o que vem: ergue-rem-se as tripeças, abaixarem-se as cadeiras. É essebom governo do mundo? Se terão também dissoa culpa os relógios da cidade? Mas V. M., senhorRelógio de Belas, com toda sua prática vai dessi-mulando muito bem a causa de sua santa vinda.[Relógio da Aldeia:] Pecadora, e por meus pe-cados, lhe chamai vós, se não chamar-lho-ei eu.[Relógio da Cidade:] Arrebeçai, arrebeçai, quevos vejo com engulhos de desgraciado. Salvo sesois de uns hipócritas de desaventuras que, por sefazerem gente, se metem também em reste comos mofinos.[Relógio da Aldeia:] A esses tenho enveja por-que, ao menos, está em sua mão deixarem de ser

[Relógio da Cidade:] Não, por certo. Mas por-que diz lá um provérbio que a nós outros os reló-gios todos nos crem e nenhum nos adora. Por isso,o pintor, agudamente [pintando] um relógio àsavessas, quis dizer que aos ministros todos os ado-ram mas ninguém os crem.[Relógio da Aldeia:] Senhor Relógio da Cidade,badalemos limpo que as paredes ouvem e as decampanários nunca foram de segredo.[Relógio da Cidade:] Olhai ora cá. Se o estarsempre à dependura me não há-de valer para tiraro medo de não morrer enforcado, melhor é acabarlogo por u~a vez.[Relógio da Aldeia:] Cal-te, que te fundirão.[Relógio da Cidade:] Pois que importa? Farãode mim campainhas e então lhes direi por cembocas o que não querem ouvir de u~a. Pardeus, masque me fundam, mas que me confundam, eu hei-detanger sempre a verdade.[Relógio da Aldeia:] Por isso tu cá vens pormentiroso. Diz que a verdade da língua dos que anão falam, é como a água do chafariz d’el-Reique, por correr por canos de enxofar, sempre fazmal ao fígado.[Relógio da Cidade:] Fígados há aí tão danadosque da água pura e clara fazem peçonha.[Relógio da Aldeia:] E tu, amigo, que ganhasem desenganar o mundo, que se não quer desen-ganar? O sumo grau da sandice é perder-se um peloganho do outro.[Relógio da Cidade:] É nobreza de coração eainda proximidade não deixar perseverar a nin-guém no seu engano.[Relógio da Aldeia:] Vou vendo que V. M. terámaior bem que bom ofício; mas se [sabeis] comose paga?[Relógio da Cidade:] Como?[Relógio da Aldeia:] Nunca ouvistes de um quese vingava dos cães que lhe ladravam levantando-lheque eram danados? Pois o próprio sucede entreos homens. Donde, em nossos tempos, já houvealgum tão desapiedado que disse não havia vin-

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desgraciados cada vez que o Diabo os atenta comserem verdadeiros.[Relógio da Cidade:] Muito me retinis a letra-do, relogiozinho de por aí além! Dizei vosso dito.[Relógio da Aldeia:] [Direi]. Porque, na comé-dia do tempo, tais são já nossos tempos e feitos,que todos podemos dizer nossos ditos.[Relógio da Cidade:] Valha-me Deus. Sendorelógio que tantas horas dais para os outros, sópara vós falta u~a hora?[Relógio da Aldeia:] Das muitas que tenho mepesa. Mas ouvi. Penduraram-me há trinta anos,não sei se é cheminé ou campanário a casa daminha vivenda; e assim, sem mais nem mais, man-daram-me ser relógio que governasse a terra sobreminha palavra. Eu, vendo-me donde nunca mehavia visto, como não fora outra vez gente, fazia--me pedaços e cursava todo o dia e noite sematinar jamais com minha obrigação. Donde vi quea boa vontade, desarmada da ciência e experiên-cia, não basta para fazer homens peritos, como cácuidamos. Depois que, com ruim satisfação dosmoradores e peor grado dos passageiros, nãorelojava cousa com cousa, resolvi-me a parar e nãose me dar de nada. Assim o fiz e amuei-me defeição que, nas 24 horas do dia, minha boca se nãodespregava. Entendia eu que o silêncio me podiafazer benquisto, como se o não fazer nada malfeito pudesse suprir a obrigação dos que são obri-gados a fazer cousas bem feitas.Ora os vezinhos, vendo-me parado, encomenda-ram-me a um alveitar que vivia junto de mim, oqual aceitou logo a comissão, muito persuadidode que, por eu ser de ferro e ele tratar em ferraduras,logo atalharia meus desconcertos. De aqui proce-deu que o pobre ferrador, empregado em o quenão sabia, deu comigo e deu consigo de avesso.Porque os viandantes, vendo-o já mestre de reló-gios, não ferravam na sua tenda; e os moradores,sabendo quão mal relojoeiro lhes saíra, não lhepagavam o selário.

[Relógio da Cidade:] Mofino homem! Quantoseu conheço que por isso mesmo medram: uns portomarem os ofícios que não são seus, outros porfazerem o que não sabem.[Relógio da Aldeia:] De que sorte?[Relógio da Cidade:] Porque vendem a suaignorância por mistério; e, como ninguém quermostrar que ignora o que outro mostra que sabe,fica-lhes mais perto aprovar a parvoíce alhea quedescobrir a própria.[Relógio da Aldeia:] Deixai-me já fenecer omeu conto.[Relógio da Cidade:] Até a vós, se quiserdes.[Relógio da Aldeia:] Pois eu, vendo-me tão mal-tratado, fiz-me louco.[Relógio da Cidade:] Tende mão se de essa laiaé o vosso pano, em boa hora cá viestes.[Relógio da Aldeia:] Porquê?[Relógio da Cidade:] Porque nos custam cá osdoudos os olhos da cara. Val aqui a doudice pesadaa peso de ouro; e de aí nace que são mil as castasde nossas teimas. Cada qual se quer trajar de aseda do costume e a que se costuma, ainda queseja de ruim lei e feitio, é a que val mais cara.Parecer-vos-á agora bem um saio de [arbim] deespadas? Ou um sainho de palmilha, como já ves-tiram os Reis e as Princesas? Pois isto mesmo éagora um sesudo.[Relógio da Aldeia:] Pois, se assim é, bem disselogo o outro, antigamente, que «na doudice sóconsiste o siso».[Relógio da Cidade:] E outro mais antigo queeste: «arrenego de meu pai se desta água me nãomolho!».[Relógio da Aldeia:] Sempre os desvarios acha-ram maré de rosas e mar bonança para o aplausodo vulgo.[Relógio da Cidade:] Vamos ao ponto. Comovos fizestes doudo? Ensinai-mo pelo que pode ser.[Relógio da Aldeia:] Desta maneira: nunca davahora com hora. Ainda os louros raios do sol nãopungiam nos beiços do Oriente já eu escascava o

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“O ESCRITÓRIO AVARENTO”*

APÓLOGO DIALOGAL

SEGUNDO

[...] O engenho humano, como os próprios huma-nos, necessita de algu~a variedade para que produzaobras convenientes. Eu, que há muitos anos tenhoo bofete por barco e a pena por remo, confesso-vosque, às vezes, de afligido e desesperado largo arédea do pensamento ao pescoço da fúria quearrastando me leva por donde quer – mas, quantomenos forçada, por menos perigosos desvios.Achava-me a este tempo escrevendo, em benefí-cio da pátria, u~a matéria grave e, por isso, malen-cólica. Quis minha sorte que estes próprios diasme faltassem alguns documentos competentes aosujeito da obra e, porque enquanto trabalhavamoutros para ajuntá-los eu ficava ocioso (que é paramim um género de descanso muito mais sensívelque o mesmo trabalho a que serve de alívio), bus-quei modo para, no entretanto, desafogar o engenhoou devirti-lo em mais aprazível ocupação. Porque,haveis de saber, amigo, que nosso entendimento écomo a teta da mulher que cria, a qual, se amiúdoa não despejam de aquele humor que está produ-zindo, em vez de se poupar se corrompe.Por esta causa, em meio de enfadamentos tais etantos como padeço, vereis que me entrego a obrassemelhantes, cuja diferença e desigualdade das or-dinárias são os maiores incentivos para elegê-las.Ainda que este não julgo por mim, tão pouco aestimo por tão boa que vos peço a vejais comtoda a atenção que os maiores estudos vos mere-cem, porém, que sequer ouçais esta nova porfiacomo ouvis quiçá outras que vos serão mais mo-lestas – o que esta vos não será nunca porque seacaba (fazei conta) u~a ora antes que vos falte ogosto de a prosseguirdes. Deus vos guarde.

Baía, em 13 de Novembro de 1655

meio dia. Era alta noite quando apenas acudia comas seis ou sete.[Relógio da Cidade:] Estou vendo que te não[apupariam] por dar mais de seu direito. A libera-lidade, até do que não val nada, sempre valeu muito.Mas que proveito conseguistes dessa insânia?[Relógio da Aldeia:] Grande. Primeiro, fazerminha vontade.[Relógio da Cidade:] Sanha de vilão. E depois?[Relógio da Aldeia:] Despois... que, sendo geral-mente malquisto de meus vezinhos, me tiraram oofício em breves dias. Porque diziam eles que assazmelhor e mais barato lhes serviria de relógio agula do sancristão ou a preguiça do cura.[Relógio da Cidade:] Bem afirmou, logo, o queafirmava não trazia o relógio n’algibeira mas noestâmago. E tal houve que disse tinha sempre ashoras na ponta da unha porque, com ela, acomo-dava como queria a mão do seu mostrador.[Relógio da Aldeia:] Oh Diabo, se unhas foramrelógios, quem se entendera com as horas da nossaterra? Mais horas tivera então um dia que agoraum ano![Relógio da Cidade:] Muita graça tinha aqueleescolar que consultava à candea que horas erampelo relógio do sol.[Relógio da Aldeia:] Que me dizeis?[Relógio da Cidade:] Pois acrecentai-lhe quemorreu ministro do maior tribunal do seu tempo.[Relógio da Aldeia:] E como sentis do outroque, desmentindo o sol o seu relógio, jurava etrejurava que o sol era errado?[Relógio da Cidade:] Esse era como o nossoBarraça, que queria matar o sol porque lhe nãoenxugara o seu mantéu enrocado. Esta é u~a relé demalhadeiros gloriosos, que tem por certo que tudoo seu é melhor que o da outra gente. Não matoumais a peste grande que esses, com suas presunçõese profias, tem morto de pessoas.[Relógio da Aldeia:] Mas, como vos ia dizendo...[...]

* Apólogos Dialogais. Vol. II. Introd., fixação de texto e notasde Pedro Serra, Braga - Coimbra: Angelus Novus, 1999.

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INTERLOCUTORES

PortuguêsDobrãoCruzadoVintém

[Português:] Já vos disse, Senhores meus, comoera Português, nado e criado na Casa da Moedade Lisboa. Haverá hoje isto? Sim, haverá o melhorde cento e cinquenta anos! Contudo, meus avo-engos lá vieram de África mas eu, pela graça deDeus, de ser velho me consolo com ser cristão--velho, sem raça de judeu ou mouro, como o jurapela sua mesma cruz este hábito de Cristo quetrago nos peitos e que el-Rei me mandou lançarno berço, tanto pela antiga nobreza de meus passa-dos (porque não há vea de sangue mais real que avea do ouro), quanto pelos serviços que de mimesperava S[ua] A[lteza], sendo certo que não temos Príncepes, para todo o sucesso da guerra e paz,criado de melhor lei que o dinheiro desta nossageração.Reinava por aquele tempo em Castela D. Fernandoo V a quem, não sem injúria dos outros reis cató-licos, parece que deram em chamar Católico; oqual, vendo-se abundante de ouro, que o parvodo Colón à força lhe meteu em casa, mandou batercerta moeda de vinte e cinco reales de peso, àqual chamou Castelhanos. Correu [com] ela suafama. E, vindo às orelhas do nosso rei D. João o II,que não sofria cócegas na grandeza, disse: – «Orabem está; se em Castela há Castelhanos de tanto preço,eu mandarei fazer em Portugal Portugueses que cadaum valha por sete Castelhanos». Seu dito, seu feito.Lavraram-nos do ouro mais fino das minas de S.Jorge, e valemos sete vezes vinte e cinco reales,que isto soma em português miúdo sete mil réis.E logo, sem outro aparato que esta cruz e o dessasquinas que trazemos às costas, ela nos serve deespada e elas de escudo com que confiadamenteatravessamos o universo, benquistos, bem hospe-dados e melhor guardados das gentes (ainda mal

porque tanto!), o que eu sempre exprimentei atéque, por avessos casos, vim a poder deste malditorico avarento donde, como vós outros, há tantosanos que al não faço senão gemer e chorar minhatriste sorte, pois ao tempo que mil moedinhas falsas,de por aí além, ocupam as mãos dos Príncepes eos olhos do povo, eu, pobre de mim, sendo ourofino de vinte e quatro quilates, me vejo preso, inútile esquecido, sem ser visto dos homens, que a ne-cessidade me deu para criados, ou dos grandes, quea cobiça me destinou para amigos; nem, enfim, aface do sol que me engendrou poder de mim servista, passando miserável vida ferrolhado nas mal-ditas masmorras destas gavetas que, vivo, me ser-vem de sepultura.Mas vós, que de lá me falais tão sentido, pareceque em língua estranha, segundo cá duvidosamentevos percebo, dizei-me ora quem sois e por queesquerdos fados viestes a ser nesta escravidão meucompanheiro.[Dobrão:] Largo é o período dos meus trabalhos,amigo Português; porque sem falta fomos vindosao mundo para instrumento deles, à maneira demartelo na bigorna, que ele não dá maiores golpesdos que recebe. É verdade que por nós padecemos homens grandes danos; mas os que nós pade-cemos por eles não são pequenos. Finalmente, eu,Senhor Português, sou o Dobrão Castelhano tãoconhecido e nomeado de todas as nações entrequem vivo como natural de todas, donde procedemeu enleio, sem que ao certo possa afirmar qual éminha nação própria. Sobre que os sinais que achoem mim me persuadem haver nacido em Castela,não poderei afirmar-vos se em Sevilha ou se emSegóvia, que anos e desgostos cansam não só amemória mas o juízo da gente.[Português:] Assim é. Porém, agora, que melhorvos esforçastes para ser melhor ouvido, entendoque se vos não trocam na boca as linguagens, queé, falando em bom português, parvoíce a quem ofinge e desgraça a quem o padece.[Dobrão:] Eu procurarei alentar-me, enquanto

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a poder de vinagre, vem à fouce antes do tempo,perdendo o gosto, fermosura e saúde, de contado.Não sereis vós destes, porque também há talentostão férteis como parreiras de S. Tomé, que dãofruta duas vezes no ano.[Cruzado:] Advertências e lisonjas cabem peornum saco que honra e proveito. Mudai estilo oumudarei lugar.[Português:] Seja, embora, a troco de que medigais quem é esse que lá se sorri ou rosna quandoeu falo.[Cruzado:] Tenho aqui um velho meu criadoque me criou, homem de aquele bom tempo emque a pobreza não impedia o bom contentamento.[Português:] Como é a sua graça?[Vintém:] Se por sua desgraça preguntáreis, de-vagar vos pudera satisfazer. Mas, por sua graça, logo!O meu nome, com perdão, é Vintém Navarro.[Português:] Melhor nome tendes para doutorque para moeda...[Vintém:] Vedes isso? Pois dizia-me minha mãe,Deus lhe perdoe, que me chamavam assim Vintémporque havia de valer por vinte; como quem diz:vinte tem.[Português:] Fadas de mãe são como tesouro demoura encantada: ao primeiro és não és, eis carvãotudo.[Vintém:] Menos sou eu que carvão porque todosou cinza, muito, muito velho.[Português:] Não o pareceis na fala que é sutil etem um retintim bem engraçado.[Vintém:] Nunca espereis alcançar o verdadeiroconhecimento das cousas por aqueles que podemfingir-se.[Português:] Logo, ninguém será conhecido, poistodos vivemos simulados.[Vintém:] Sim, pode ser, porque as obras são con-trastes das intenções e pedra de tocar os ânimos.[Português:] Dai-as, dai-as a Deus, que ainda dasobras me não fio, porque há mais obras falsas queverdadeiras hoje no mundo; bem que já sei quemuita desconfiança é manha ruim e de vilão ruim.

dura a ocasião de que nos aliviemos. Mas, segundocreo, muita outra gente se entremete na conver-sação.[Português:] Si, será, porque é sem número onúmero dos mofinos.[Dobrão:] Não estão longe, a meu ver.[Cruzado:] Perto e mui perto estamos, SenhorPortuguês.[Português:] Quem me nomea aqui pelo meunome, que é nova obrigação de lhe valer, segundoo Livro do Duelo?[Cruzado:] Um pobre cavaleiro africano do pró-prio hábito que vossa mercê.[Português:] Português da nação?[Cruzado:] Si, Senhor, e nobre assaz, posto quede linhagem moderna; mas em lustre e pessoa nãodevemos nada a ninguém.[Português:] Quanto por esse sinal, nunca tu ésgrande fidalgo. O vosso nome?[Cruzado:] O Cruzado me chamam.[Português:] Homem sois que nunca vi em meutempo, bem que já ouvi nomear-vos. Mas, sejacomo for, o nome e a fortuna sobre o trajo, sobejampara nos fazer parentes, porque a semelhança dossucessos e dos humores é pai e mãe das simpatias.[Cruzado:] Em mim o exprimento, sentindo u~ainterior sanguinidade com toda a desgraça; e nãoé a menor das que padeço padecer as alheas comoas próprias.[Português:] Guardai-vos disso, que por outrotal disse já outro: ninguém se faça mel que o lam-berão as moscas. Quem muito há mister para si aslástimas, não as esperdice com quem lhas não pede,que, por isso, eu já ouvi dizia um sabedor: homemque hás-de chorar muito, chora pouco. Além deque o Tempo, Amor e Dinheiro não se podemgastar salvo com quem muito o merece.[Cruzado:] Cedo começais a doutrinar-me, paraque sinta mais quão tarde fui vosso discípulo.[Português:] A doutrina dos dias é vagarosa masfirme. A muitos chega primeiro o aviso que a expe-riência. Mas eu nunca me fiei de juízos madurospor arte, porque são como ameixas mozinhas que,

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[Vintém:] As más dos nobres lhas fizeram tãomás a eles.[Cruzado:] Para que é mais porfias? Cal-te, amigoNavarro, que o pouco dinheiro sempre foi malouvido.[Vintém:] Pardeus, dir-vos-ei: muito e poucotudo é um, e nenhum era bem que fosse escutado,porque suas vozes são mais atreiçoadas que os ais doslagartos do Nilo. Dizem que lá Alexandre injuriavaum dia fortemente certo pirata que, com os remosde duas pobres barcas, lhe açoutava o reino nascostas macedónicas. Ao que lhe respondeu o ve-lhaco bem sem fastio: «Tá, tá, Senhor Alexandre,não me maltrates, que tu e eu ambos temos um próprioofício, mas com tal diferença: que a ti, porque roubas omundo cercado de exércitos, te saúdam as gentes pormonarca, e a mim, porque com poucos companheiros façopequenos danos, me infamam de cossário». Eis aquicomo os homens fazem suas medidas.[Português:] Por certo, se a descrição dá valor,bem podeis dizer quanto quiserdes.[Vintém:] Mas certo é que valia faz discretos,cousa com que eu estou a fogo e sangue. Passeque a fortuna faça aos homens maiores do quesão subindo-os sobre as pianhas dos altos postosque lhes mete debaixo dos pés; mas que a estepasso queira também estirar-lhes o entendimento,isso – má hora! – é muito.[Português:] Antes então confessa ela que osgrandes devem ser entendidos; pois, não lhe achan-do verdadeiro juízo, lho dá fingido, pelo menos,advertindo-nos de que é tão grande falta a falta deentendimento nos maiores que, logo que os en-grandece, lhes deve buscar um talento que calcepela forma de sua ventura.[Dobrão:] Senhores, tratemos ora de nós e deixe-mos o mundo, por não incorrer na maldição deuns birbantes que, não se sabendo reger a si mesmos,toda a sua ânsia é governar os Monarcas.[Vintém:] Pois ajuntai-lhe que ainda é maior odesemparo dos Príncepes que por tal gente segovernam.

[Cruzado:] Não o fez assim aquele Grão Turco– só então grande – quando em nossos temposmandou espetar o judeu português alvitrista, quelhe propunha se fizesse Pontífece de seus vassalos,despensando-lhes os impedimentos da natureza apeso de ouro.[Vintém:] Contudo, u~a cousa mal feita fez entãoesse canaz.[Português:] Que tendes que condenar em acçãotão justa?[Vintém:] Ora simples. Sabeis qual? Não mandara pele do justiçado chea de palha a mostrar pelomundo, como quem pede com pele de lobo, paraexemplo de reis e medo de bargantes.[Dobrão:] Outra vez nos enredamos em políticasescusadas... O mesmo que abominamos, cometemos.[Vintém:] Não te espantes, que o dinheiro é omelhor conselheiro de Estado que tem os Reis;porque, como disse não sei quem, a majestade sema potência é gigante de palha. E daí veio que, deno-tando os antigos espanhóis o poder dos grandes,lhe sinalaram por insígnias pendão e caldeira. Poronde aqueles sengos de Atenas proibiam com leiáspera que ninguém desse conselho sem dar re-médio. Se isto assi é, visto que nós somos o verda-deiro, o geral remédio dos Monarcas, nós, só, de-vemos ser seus conselheiros.[Dobrão:] Isso está bem; mas falemos em nossocaso que é o que nos faz ao caso.[Português:] Dizei. Ora vinde já com esses vossosartigos de nova rezão que todo o discurso nosembargam.[Dobrão:] Digo, pois (como a este Senhor Cru-zado lhe parece), que estas breves horas em que,por ilusão ou prodígio, gozamos o soberano domde voz e juízo humano, o empreguemos no quemais importa, tratando do que à nossa liberdadeconvém, sem devirtir-nos a extravagância dos aci-dentes do mundo que nos não foi encomendado.[Português:] Tem rezão o Castelhano.[Vintém:] Também é um dos milagres deste diaque lha ache um Português!

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“A VISITA DAS FONTES”*

APÓLOGO DIALOGALTERCEIRO

INTERLOCUTORES

Fonte VelhaFonte NovaApoloSoldadoSoldado [:] Quem vem lá?Fonte Velha [:] Este é soldado. Escrúpulo tenho delhe responder «Amigos», porque estes tais dos quechamam maltrapilhos não são amigos das Fontes.Mas dezia minha avó que, para escapar de todo otranse, não há melhor invenção que falar verdade.[Soldado:] Quem vem lá?, digo outra vez.[Fonte Velha:] Amigos, senhor Soldado.[Soldado:] Que amigos?[Fonte Velha:] Bons amigos! Sempre achei muitagraça neste costume: fazer distinção de bons e mausamigos; que tudo há no mundo.[Soldado:] Nomee-se por seu nome.[Fonte Velha:] Sou a Fonte do Rossio, que venhovisitar a senhora Fonte do Terreiro do Paço vindaagora para aqui de mando d’el-Rei.[Soldado:] Que linda jóia! Não te bastava serfonte de água chilra, senão remelosa? Nunca violhos de fonte, que tantas fontes hajam mister,como estes da nossa Fonte do Rossio. Donde sevem agora cá a velha tonta![Fonte Velha:] Ele resmunga. Parece que me nãoquer dar licença para que chegue. Ora digo queainda o poder é pior em mãos dos vilões que asarmas nas mãos dos doudos![Soldado:] Podeis chegar, se quiserdes, visto quesois a primeira visita. Dezia um amo que eu serviantes de ser soldado, que falhas de fidalgos e pon-tualidades de escudeiros o tinham tísico.[Fonte Velha:] Dai aviso, se é costume, que simserá em casa de Fonte que vive parede em meiocom as casas d’el-Rei.

[Português:] Mal é, e peor fora, se nós lhes pedí-ramos que no-la achassem; mas bastou que Deusno-la descobrisse.[Dobrão:] Por isso se diz lá, na minha terra: «antesenvidia que mansilla».[Português:] Olhai, entre os sábios não há nações.Eu não sou natural senão da verdade. Mas vósoutros, dou-vos a são, sois terríveis![Dobrão:] A disgraça faz a todos uns e baralhabens e males. Pois aqui estamos todos captivos,não haja mais meu e teu.[Cruzado:] Tem justiça. E, para fazer a práticamais agradável e mais segura nossa determinação,bem a propósito será dar cada qual de nós a todosjuntos conta de sua vida, porque cada um saiba dequem se fia.[Português:] A grande pena me obrigareis, sendocerto que as mágoas n’alma são como as setas nocorpo, que fazem maior ferida na saída que quandoentram; o que só sente quando forceja por arrancá--las aquele que as padece.[Dobrão:] Para isso se fizeram os mofinos; para queaté eles próprios tenham mão contra si mesmos.[Cruzado:] Parece que está vencido em votosque digamos o que nos lembrar de nossos sucessos.[Dobrão:] Quem lhe dará princípio?[Cruzado:] O Português, que é mais velho.[Português:] Renego da dignidade que nos per-tence por via dos anos ou das desgraças.[Vintém:] E tu fazes isso diferente?[Cruzado:] Todos esperamos a ouvir-te.[Vintém:] Ouve e cala.[Dobrão:] Escuto.[...]

* In vol.I.

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[Soldado:] Amiga, muito pedes a um soldadopobre! Dar aviso é cousa que só Deus o pode dar;e às vezes não quer, segundo os muitos homenssem-aviso que por aí vemos: que são todos aquelesa quem chamam parvos na minha terra.[Fonte Velha:] Dai logo recado, se aviso não podeser.[Soldado:] Ruim modo tendes de negociar.«Tomai», havíeis de dizer, senhora, antes que não«dai, dai», se quiséreis ser bem servida.[Fonte Velha:] Tomai logo as graças da mercêque me fizerdes.[Soldado:] Graças são graças, e não indulgências...Pois à fé que não é tão longe do Rossio ao Terreirodo Paço, para que não saibais. Lá, como cá, senegocea. Não vedes o que diz o nome, donde está,antes que «Paço», «Terreiro»? Parece que ignoraso costume.[Fonte Velha:] E qual costume é esse?[Soldado:] Pagar entradas e saídas, como portasde Argel.[Fonte Velha:] Maldito seja quem tais a-la-mo-das nos trouxe à terra.[Soldado:] Mulher, olha lá como amaldiçoas. Nãotoques no campanário![Fonte Velha:] Ainda me não arrependo de trocarpragas por injúrias, porque o dar agradecimentospor agravos mais pertence aos lisonjeiros que aosprudentes. Já disse um discreto que a fidelidadedo cão toda consistia em muito interesse e poucavergonha, porque sofrem o pau a troco do pão. Eaquele que, a poder de afrontas, vos não desampara,vos deixa logo o primeiro dia que lhe não daisque roer.[Soldado:] Ora, se me vindes visitar a mi ou àFonte?[Fonte Velha:] Dizeis bem: com ela falo. GuardeDeus a V. M. Como está fermosa e bem estreada.Ora seja por muitos anos.Fonte Nova [:] Quem direi eu que me faz estamercê?[Fonte Velha:] Tantos creo, senhora, que com razão

vos abençoam, que por isso me não conheceis. Eusou u~a velha muito vossa parenta.[Fonte Nova:] Razão é essa para desejar maisentender quem sois, porque estou muito só nestaterra, e ninguém é mais estranho que o solitário.[Fonte Velha:] Sou a Fonte do Rossio, para fazero que me mandardes.[Fonte Nova:] Ó senhora Tia, sentai-vos paraaqui, muitas vezes me lembra ouvir falar em vós ameu Pai, que Deus haja, o senhor Dom Chafarizd’el-Rei.[Fonte Velha:] Deus lhe perdoe, Deus lhe per-doe, que tantos anos serviu a esta cidade com tãoruim galardão, que jamais lhe acudiram com umladrilho velho. São pagos do mundo.[Fonte Nova:] Muito vos pudera eu dizer disso,se o dia não fora hoje para mi de alegrias e não desaudades. Mas esta não há-de ser a derradeira vezque nos vejamos. Contudo, o sangue não se querrogado, que porventura em sua lealdade consistiuser, antes que outro humor ou afecto, o solar danobreza da gente.[Fonte Velha:] Não choreis, senhora Sobrinha,pelo que já não tem remédio.[Fonte Nova:] Antes devia chorar, porque já nãotem remédio aquilo por que choro. Ai, meu bompai e senhor, que nem para vos enterrarem vosacharam um real de água à cabiceira, pedindo-setantos em vosso nome.[Fonte Velha:] Filha, não vos entisiqueis mais doque estais. Vós viveis agora às abas do Paço, e quemestá ao pé da árvore sempre come, sequer, a frutaque lhe cai de cima. Eu espero que vossa boa sorteemendará a desgraça de nossos antepassados.[Fonte Nova:] Assi o queira Deus, senhora Tia.[Fonte Velha:] Tende-me em lugar de mãe, queamor e anos há em mi para esse ofício. Mas, postoque mal pregunte, quem diremos que é este vadioque aqui tendes à ilharga, em foro de rufião, comose fôsseis regateira de lenço rocado?[Fonte Nova:] É um soldado de sentinela queaqui me mandam pôr, para que me guarde.

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Apolo [:] Certo que se não pode ser Deus depedra por quanto há no Mundo, se já não é forçaque sejam de pedra todos os que se querem fazerDeuses; porque como pudera eu agora sofrer (anão ser insensível) os injuriosos descursos dessasduas fontes que levam jeito de me fazerem hojeaqui meu cadafalso?[Fonte Nova:] Ah, senhor Soldado![Soldado:] Que dirá?[Fonte Nova:] Ouço eu bem, ou fala o senhorApolo lá para consigo.[Soldado:] Ou para convosco, segundo se me afi-gura que vos ouvi nomear por entre dentes.[Apolo:] Ora tende paciência, e não façais se-quer como fez a estátua de Jove com o médicoMarco Clínico, que, aborrecida de que a tocassecada dia quando passava, se deixou cair sobre ele eo fez num bolo.[Fonte Velha:] Graças a Deus que somos em eraem que os homens se calam como pedras e aspedras falam como gente.[Soldado:] E tu [falas]?[Apolo:] Melhor será escutá-las que repreendê-las,porque, como a repreensão seja a modo de san-gria (segundo deixou dito meu filho Esculápio),ela mata também, fora de tempo, sendo a seu temposingular mezinha.[Soldado:] À fé, que se me afigurava que entendio que disse; donde já afrmou um galante que, nocabo de um ano de companhia, todo o homemfalava com o seu cavalo. Atrevo-me a lhe adevinharos pensamentos, se cá torno.[Apolo:] Não já, se tu foras meu criado.[Fonte Velha:] Parece-me que podemos falar largo,sendo sem falta antolho tudo o que presumimos.[Soldado:] Não há presunção que o não seja.[Fonte Nova:] O bom dia metamo-lo em casa.[Fonte Velha:] Também lá me haveis de ir ver aminha, que não é pouco aprazível.[Fonte Nova:] Vós, Tia, me parece que tendespor aí mais desenfados no vosso bairro.[Fonte Velha:] Não, filha, isso quero-vos? Nãodigais isso, que se não pode dizer, despois que Deus

[Fonte Velha:] E quem te há ti de guardar dele?Este será o primeiro que te destrua.[Fonte Nova:] Não, senhora Tia, porque me dizemque os soldados todos são nobres.[Fonte Velha:] Como os carniceiros de Gante.Sabe que todo o ouro dessa fanfarrice há misterpara se dourar a sua má ocupação, a fim de haverquem a tome. Que por esta causa não faltou jáalgum bragante que lhes chamou magarefes hu-manos, pois uns como outros matam e trinchamcarne por dinheiro.[Fonte Nova:] Será assim, mas eu cuido que estesque aqui acodem nunca matarão ninguém, salvode mau olho, porque de tortos e sarnentos nãosou farta.[Fonte Velha:] Olhai, menina, guardas às moçassão escusadas: o que se não faz pela honra não sefaz pela força. Arrenego de virtudes esprimidas doartifício. A mulher é como a laranja: se muito aapertam, logo amarga. Quer-se levada a bem, masnão pelos cabelos.[Fonte Nova:] Pois o pior é que, além do soldado,tenho outro padastro de noute e de dia, que nãosou ousada a deixar decorrer meia hora.[Fonte Velha:] Isto é, mais padece quem faz acasa na praça. Mas quem é esse que dizes?[Fonte Nova:] É um Apolo de pedra que aquimora em cima, de quem me dizem que foi deusdas pavanas no outro tempo.[Fonte Velha:] Tá tá tá, por isso ele está tanto deré-mi-fá-sol.[Fonte Nova:] Mana, é o seu mundo agora: maislhe tiram o chapéu a ele que à Cruz de Val deCavalinhos.[Fonte Velha:] Dias há que as gentes não olhampara as pessoas, senão para os lugares donde as vem.Já vi cruzes menos bem afortunadas u~as que outras.E vi estátuas, u~as que nasceram para sagrado asilo,como em Roma a estátua de Júpiter, e outras parajogo e escárnio, como lá mesmo as de Paschino eMarfódio, tão celebradas por sua insolência.

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nos deu Rei a Portugal. É verdade que um grandecortesão de nossos tempos provava galantemente,por afirmativas universais, que a melhor parte doMundo eram as casas de seu Pai.[Fonte Nova:] E como sabia ele isso, se o Mundoé tão grande?[Fonte Velha:] Dezia assi: «A melhor parte do mundoé Europa. A melhor parte de Europa, Espanha. A melhorparte de Espanha, Portugal. A melhor parte de Portugal,Lisboa. A melhor parte de Lisboa, o Rossio. A melhorparte do Rossio, as casas de meu Pai, que estão no meioe vem os touros da banda da sombra».[Apolo:] Ou pouco viu ou amava muito, essePortuguês.[Fonte Velha:] Porém, agora que u~a Corte tãoluzida como a da nossa Lisboa, a qual não há envejaa nenhu~a da Cristandade, vos anda aqui sempre àroda como gado vacum em torno da Ermida deSão Mamede, quem podeis envejar, que não sejade vício?[Fonte Nova:] Não há dúvida que este sítio ébem assombrado.[Fonte Velha:] Devagar o dizeis, porque tais trêscousas juntas, como aqui concorrem, não sei queoutras três iguais honrem algu~a cidade do Mundo.E mais eu, sobre velha, sou curiosa e sempre pre-gunto àqueles que de longas vias nos trazem longasmentiras.[Fonte Nova:] Quais são essas três cousas?[Fonte Velha:] Rio, praça e forte.[Apolo:] À fé, que sois ladina. O mesmo possoeu jurar, que, vendo inteiramente o Universo tantasvezes como há dias no ano, não vi nunca juntasoutras três cousas que lhe competissem, quantomais que lhe excedessem.[Soldado:] Bem parece que nunca foste à grim-pa da minha terra![Fonte Velha:] Tu és como o que gabava Ovelha,onde nascera, sendo aldea de cinco casas ao pé doMonte Marão, à vista de Nápoles, Roma, Paris,Lisboa e Constantinopla. Mas, contudo, não háno homem afeição mais desculpável que a da pá-

tria. Assi ela a soubesse pagar. Se não foi porventuraprovidência, pois como se poderia povoar o mundonas províncias distantes, quando a pátria desse bomagasalho aos filhos, assi como eles professam suaafeição? Jamais, por este modo, haveria homemque saísse do regaço da pátria. Escusaram-se osheróis, e os famosos conquistadores nunca teriamglória.[Soldado:] Essas são outras mil e quinhentas.[Apolo:] Não sabem estes que permite Deus aingratidão excessiva por castigo do amordesordenado. Esquecem-se os homens de amar aDeus, a quem tudo devem, e dão em amar cousasque não merecem ser queridas. Então de aí vemque estas mesmas cousas os desamem. Parece caso– e é providência! – a ver se há emenda na ruimeleição da vontade, porque verdadeiramente nãose sabe que haja cautério mais próprio à cura dachaga de u~a afeição que saber é desprezada.[Fonte Nova:] Senhora, o dia que é meu nãomo esperdiceis com outrem. Contai-me muito devossa vida, para que tenha regra por donde a minhase governe.[Fonte Velha:] Confesso-vos, filha, que este negromoço foi hoje minha tentação.[Soldado:] Dias há, que não é de hoje, atentaremos moços às velhas.[Fonte Velha:] Mas se sois presumido, despeço--vos de meus favores, porque eu nunca esperdiceimargaritas com porcos.[Soldado:] Mais cortesã palavra esperava eu deu~a dona nascida em o Rossio de Lisboa.[Apolo:] Caiu-me agora em graça o nojo e me-lindre deste patife. Um dos maiores desvarios emque deu o primor da gente vulgar foi esta da des-cortesia de algu~as palavras: como se fosse maishonesto «boi» que «porco», ou «cavalo» que «asno»,ou fossem menos beneméritos de andar na lem-brança da gente estes dous animais, cujo nome oseu uso tem feito infame, sendo eles proveitosos einocentíssimos. Nenhum asno derribou a Príncipe,e já muitos cavalos lhes foram traidores. Como

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sorte a esse bravo touro do Mundo. Senão vede--me a mi aqui, que, por mais desencadernado detrajo e desprezível de figura que esteja, sei dançar,esgrimir, toco minha guitarra, leo e escrevo comoqualquer, e para a minha trovazinha não meacobardo. Porque, a todos que nascemos ao redorde Lisboa, nos não faz medo nem a graça, nem atravessura, como os filhos de Atenas que se des-mamavam com a Filosofia.[Fonte Velha:] Folguei de vos ouvir quanto mepesou de ler àquele Licenciado, que do seu livrodesonra vossa profissão com termos tanto deregateira que o pudera encoimar o vendeiro dasBrabas.[...][Fonte Nova:] Estranhamente me alegro de vosouvir. Basta que dessa maneira se governa o mundo,ou há quem queira governá-lo![Fonte Velha:] Mas, se cuidáreis que são fábulas?!Sendo vivos entre nós os Directores do Bagaço,que foi ainda pior que isto, metendo um não seiquem em cabeça a certos Ministros de Portugalque tomassem para a fazenda d’el-Rei o bagaçoda azeitona, para que, remoído por conta da Fa-zenda Real, tornasse a dar azeite, que ficaria livrea el-Rei com grande utilidade.[Soldado:] Pardeus, que por homens que tal alvi-tre aceitaram, bem se podia dizer que entendiampouco de lagar de azeite![Fonte Velha:] Mas tudo fica atrás do papel selado,cujo selo foi o selo que se pôs na sentença deperdição daquela Monarquia, porque não valessesem selo, para maior solenidade.[Apolo:] Confesso-vos que me deu riso, sobreindinação, quando li nesse tempo a cédula real,donde se manifestavam as razões de sua conveni-ência, tomando-se, entre os mais, por principalmotivo que, porquanto Sua Majestade desejavaatalhar os vícios e fraudes que nas escrituras sefaziam, mandava interpor aquele papel público, afim de evitar conluios e desconcertos. De maneiraque, neste caso, como o trapaceiro comprasse mais

aquele maldito murzelo que em Alfange foi ho-micida do Príncipe Dom Afonso, nascido parapacífico Rei de Espanha inteira. E como essoutrodesastrado ruão que despenhou ao infelice rei D.João-o-Primeiro de Castela. Tróia que dirá do seuPaládio? E, do seu Marte em fora, que dirá a anti-guidade dos javalis? Ou que os modernos dos ca-seiros porcos, quando estes fartam e deleitam u~afamília sem mal e dano? Andam os touros nas praçasfazendo tourarias, despois que (fossem Africanosou Godos) se inventou aquela solene parvoíce defazer jogo e festa do perigo da gente. Por isto commuita razão notou aquele que notou que, quandose diz «ladrão», «mentiroso», «traidor», sendo nomesfacinorosos, ninguém pede perdão de nomeá-los,como se tão feas palavras foram doces e perten-centes aos ouvidos humanos; e logo todas as escusase perdões se guardaram para o pobre do asno ino-cente e do porco simples, que nunca fizeram mala ninguém, mas muito bem a muitos. Afirmo que,se por algu~a cousa desejo de tornar a ser gente, ésó para reformar as Cortes do Parnaso, castigandonelas as falsas «Relações» de Trajano Bocalino, quetantos testemunhos me levantou em benefício dosseus Italianos; e, mais que tudo, para pôr emendanos abusos que estão no vulgo introduzidos e sevão já nele metendo como a unha pela carne.Porque abusos e povo são como unha com carne.[Fonte Velha:] Não vos tinha, senhor Soldado,por tão escrupuloso em matérias de prosa.[Soldado:] É para que se saiba, se se inora, e, se sesabe, para que se crea, que a disciplina militar é amelhor escola para se aprenderem gentilezas epolícias mais solicitamente que nas próprias escolasdas Letras. Porque, como a guerra é tão violentaem suas acções, em breve tempo nos ensina muitoe vai variando as matérias segundo a variedadedos acontecimentos; pelo que, todos os soldadosbem nascidos vereis limpos, liberais, advertidos egrandes cortesãos, e aos mais destes não ignoran-tes, por ser esta nossa vida larga, um largo corro,donde todo o mancebo de arte folga de fazer sua

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caro o papel, bem podia escrever nele seus em-bustes e estelionatos sem escrúpulo: que foi u~agalante farsa![Fonte Velha:] E ao doze avo desse tempo, quese cerceou à vara de medir, não lhe dizeis nada?[Apolo:] Que hei-de dizer-vos? Dir-vos-ei o quejá disse, que os alvitres para a República são comoos remédios das velhas (em que falámos há pouco)para os doentes de grave enfermidade: todos paramem riso e dano dos que os admitem. Quereis aregra geral para conhecer os alvitres, ainda que anenhum de nós toque sua averiguação e a nãoqueiram fazer nunca os a quem toca? Pois, olhai.Como vós ouvirdes que os alvitres são de grandeimportância, de muita facilidade, e que sem penada República se podem reduzir a efeito, não lheespereis mais para os dardes logo por falsos e fa-bulosos. A razão é clara: porque a ilha que os pilo-tos não descobriram, a vereda que os arrieiros nãosabem, mal a pode achar e descobrir aquele quejamais cruzou os mares ou pisou as estradas, comoos Ministros dos Reis e Repúblicas, que manejama substância e réditos das Províncias, ignoram dondeestão esses tesouros. Certo é que os não há nomundo, nem podem rastrejá-los esses bargantesembaidores, vagabundos, charlatães, mentirosos,entermetidos, que se introduzem a falar e discorrersobre o que não viram, nem sabem, nem entendem.Um de três vícios tem todos os alvitres, e muitostem todos três, fora alguns mais.[Fonte Velha:] Não deveis de contar aí os víciosdos alvetristas, segundo tomastes pouco campo aonúmero...[...][Fonte Nova:] Porventura que nossa antiga ru-deza, como gentes a que poucas gentes tratavam,nos pudesse pegar algu~as fezes da incultura pri-meira, e que venha daí a inconstância com quenossos naturais vivem em seus costumes, comoquem os recebe e exercita até ver outros melhores.O que, bem olhado, mais cheira a virtude quedilito.

[Fonte Velha:] Essa fora boa razão, se nós pelanovidade e extravagância nos víramos enobrecidos;antes é pelo contrário, e podemos dizer por nossoscostumes, no trato destes, o que já em seus tratosdisseram alguns bons repúblicos pelos estrangeiros:que eles nos levam o ouro e a prata, e nos deixamem seu lugar bonifrates e cascavéis. [...][Fonte Nova:] E que me dizeis dos que dão emcupidíssimos?[Fonte Velha:] Dos íssimos em fora, é nos man-cebos tais, esse afecto, o menos repreensível, aindaque não é o menos perigoso dessa idade.[Apolo:] Isto de galantear damas em terra alhea,há mister não só arte, mas fortuna. Porque o queparece bem a uns olhos, parece bem, ou há pare-cido bem a outros; e como não haja polhas que osjogadores mais sintam perder que as levadas decodilho’, convém serem destros os que se não de-sejam ver neste lanço.[Fonte Velha:] Pois outros, que se entregam àvida que com razão se chama estragada, quantoque padecem, os tristes, de enganos de moças, dequimeras de velhas, donde, além da conciência,periga a saúde, a fazenda, a reputação! Anda anexaa esta vida desordenada a crueldade, ou crueza,como eles dizem. Logo a todos que se encomen-dam em suas mãos, vereis comidos de patifes que osarriscam e os desamparam, fazendo-os tropeçar ecair em desastres indinos. Não é pequeno incon-veniente essoutro das amizades, com a qual jogamtambém os exercícios e divertimentos. Quais per-dem a opinião, elegendo amigos que os despre-zam; quais outros por quem são desprezados. Es-tes ficam atrás por curtos; aqueles por sobejos seadiantam. [...][Fonte Velha:] Tendes razão, porque não são es-sas palavras as que cabem na boca de um homemhonrado. Gramáticos como aquele, menina, é u~apraga de gente bem escusada no mundo. São comoos cães das boas-letras: não servem senão de roerossos e espinhas, até que as põem na espinha.[Apolo:] Nunca vi fonte correr mais claro!

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talvez algum contentamento, porque, como já dissealgum deles, não falta Deus tão ocioso que lhesassista, se Apolo, que está presente, os não deixamentir. Porém, os gramáticos nunca dão gosto,porque, além de ser turba por si mesmo sem-sabor,a profissão é inútil, usada fora de tempo. Sabeiscomo são? São, propriamente, como uns melin-drosos que sempre se curam e sempre estão do-entes. Pelo mesmo caso que os gramáticos decontino desentranham os idiomas e fazem u~avarrela, e muitas varrelas, à linguagem, são de con-tínuo os que pior falam, escrevem e conversam;senão, veja--se Fulano e Fulano, que, gramaticandoperpetuamente, não lhes falta, no cabo, para bár-baros, a grossura de um patacão.[Fonte Nova:] Que nome é este, gramática? Ouque sinifica e donde veo?[Fonte Velha:] Não me toca essa averiguação, es-tando o quem está presente.[Apolo:] Como a Grécia fosse província dilatada,sucedeu à sua língua o que sucede às mais domundo que são estendidas por várias gentes; dondeu~as, sendo mais sutis que outras em juízo e pro-nunciação, pronunciam com maior suavidade aspalavras e as escolhem com maior prudência. Osmais grosseiros tudo isto fazem rudamente. Daquiprocedeu que os Gregos dividiram seu idioma emquatro classes, das quais era mais sublime, regulare concertada a língua dos Áticos, por cair em seudistrito a Universidade de Atenas que lhe deunome, e ao mundo todo: como se cá, entre vós,disséssemos se falava mais elegante em Coimbraque em outra parte, não mentiríamos, sendo ali ocoração e alma das ciências que se ensinam e apren-dem. Logo, porque os Gregos chamam gramma aoque vós «letras», juntando-se estes dous nomes,gramma e Ática, fizeram aquele nome compostoque dizem gramática, que vale o mesmo que «letrasdos Áticos». Qual nome, alargando-se com o tem-po, veio a sinificar o regulado estilo de falar qual-quer língua do universo; porque em todos há suaperfeição e contextura, a qual, por semelhança da

[Fonte Velha:] Sobre se um tu ou um eu (que sãopalavras bem pequeninas, aqui nadas e criadas entrenós) vem de Grécia ou de Palestina, sem que nissová ou venha cousa algu~a a, e se tem raiz hebrea ougrega, se vem o mundo abaixo, como se as taispalavras importasse muito serem gentias ou cris-tãs-novas. Pessoa há, destas, tão maldita e porfiosaque, por averiguar o tamanho de u~a letra e levar asua avante sobre se é longa ou breve, gasta quantodinheiro tem em papel e quanto tempo lhe nãosobeja em ler Calepinos e Varrões, e no cabo ficamal informada como de antes; sendo a pior partedeste brinco, que ninguém lhe paga ou agradeceesse trabalho, repartido e repetido em tantas arengasenganosas, impertinentes e desaproveitadas. Porque,se nós vemos que ainda pelos críticos não estáaveriguado se se há-de dizer antes xapéo, se chapéo,se tostaens ou tostoens, se até que ou se intés que,sendo palavras caseiras com quem nos criamos,como o estará cá entre nós se o ómega dos Gregos,vindo lá de tão longe, se há-de dizer depressa oudevagar – ómega ou omega –, que é u~a das mo-dernas contendas destes míseros?[Fonte Nova:] Ai, senhora Tia, grande pensão éessa! Sempre fui enemiga de tal gente. Quem contaas letras, melhor contará os bocados... Não há cousacomo um falar desabotoado, de sorte que as pessoasdigam tudo quanto lhes faz mister sem pedir outrasregras que as que lhe dá a Natureza de mão co-mum com a necessidade, ocasião e compostura,que a todos em seu modo pretence. Mas, andarfalando como quem bebe por púcaro penado oucomo a história do Calcinha, que não haveis dedizer sim nem não, é um maldito costume.[Apolo:] Adiante vá quem assi te criou, minhaágua pura![Soldado:] À fé, que a fontainha, para lançar poucaágua, já mija fora do testo.[Fonte Nova:] Mas dizei-me, senhora: essoutragente, a que chamam poeta, é tão proluxa e escu-sada como a gramática?[Fonte Velha:] Maus são os poetas, porém dão

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observância dos Áticos, se chama gramática. Destatal observância se deduziram as regras e leis do bem-falar e escrever, que vem a ser, em suma, o ofíciodos gramáticos; porém, fizeram eles dele tão im-pertinentes guisados, que na maior fome do mundoos não comerá o Diabo; porque, com desordenadozelo de sua profissão, não há cousa que não arras-trem para ela, sendo assi que, por fim de contas,não se estende a mais a senhora Gramática que aoque vos tenho dito.[Fonte Velha:] Folgo de saber isto, porque, quandovia a estes homens tão entonados, cuidava delesque eram os pais da sabidoria. [...]

“O HOSPITAL DAS LETRAS”*

Apólogo Dialogal Quarto

Interlocutores:Os Livros deJusto Lípsio,Trajano Bocalino,D. Francisco de Quevedo,o Autor desta obra.

[Autor:] Donde força há, direito se perde![Bocalino:] E às vezes donde não há força, por-que isto de quebrantar a rezão é u~a das cousas quese faz tão bem por manha como por força.[Autor:] Saiu hoje por Acórdão da Relação deApolo que vós, Senhor Trajano Bocalino, o SenhorJusto Lípsio, o Senhor D. Francisco de Quevedo eeu déssemos u~a vista a este Hospital, donde tambémjazemos como os mais pecadores, víssemos, ou-víssemos e remediássemos seus enfermos. Já nãohá para quem apelar, senão fazê-lo.[Lípsio:] Uma vez escrevi a minha Crítica emen-dando, melhorando, mais que acusando, aos autores;e, por u~a vez que fiz tal livro, cento me arrependi.Oxalá o não houvera feito, porque não há cousamais sem propósito que curar de propósito a quemnão quer saúde.

[Quevedo:] Não direi eu outro tanto pelos meusSonhos dos quais estou tão satisfeito que, pois todaa vida é sonho, me pesa agora muito de não haversonhado toda a minha vida.[Autor:] Ainda não posso prezar-me nem entris-tecer-me de haver escrito os meus Diálogos ouApólogos, porque todavia ignoro a fortuna que lhesespera.[Lípsio:] Finalmente, Senhor, nos quereis dizer que,por sermos os presentes, todos quatro, escritoresde repreensões e emendas de vícios e costumes daRepública – eu com a minha Crítica, Bocalinocom os seus Regáglios, Quevedo com os Sonhos evós com os Diálogos – nos manda a Relação deApolo, como Rei da Sabedoria, que visitemos estaBiblioteca convertida em Hospital, ouçamos osdoentes, nos informemos dos males e lhe consul-temos o remédio? Difícil comissão nos é dada![Autor:] Sim, senhor Justo Lípsio, mesmissima-mente é o que dizeis.[Bocalino:] Pois não fora bem juntar todos oupelo menos os mais dos filósofos gregos e latinose admitir os médicos, quer fossem mouros querpagãos, e, com esta Junta, dar cura e mezinha atantos languentes, como ouço gemer por essas es-tantes?[Quevedo:] Médicos e Quevedos não se podemajuntar em um próprio caso e menos em u~a casaprópria. Ou eu ou eles havemos de assistir nestecongresso.[Lípsio:] Aos Príncepes toca a consideração e amedida das pessoas que elegem, e aos eleitos sóservir e obedecer. Façamos como bons servos e,pois o Hospital é do distrito deste Reino, seja onosso Autor que nos inculque e nos informe àcercados que devem ser curados e dos que não tem cura.[Bocalino:] Se nós houvéssemos de observaraquela sentença do Rei egípcio ou as regras daprudente caridade, por nós mesmos havia [de] co-meçar a varrela. Porém, já que o senhor Lípsio,sendo nosso mestre, assi o ordena, sua palavra váadiante.

* In vol.II.

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todas as dicções nela acabam suas cláusulas, donde(se notardes) procedem dous galantes secretos: oprimeiro que, sem comprensão de palavras, se podeaveriguar qual seja a língua em que se proferem; osegundo, que, pela frequência das letras, se dicifraqualquer segredo escrito nelas.[Bocalino:] Não lhe faltava agora mais a esteflamengo presumido, senão ensinar-nos o ABC![Autor:] A menos custo de prosa, eu sei já, Se-nhores, quem é o doente.[Lípsio:] Quem?[Autor:] É o pobre de Luís de Camões que estáali lançado a um canto, sem que todos os seus cantostão nobremente cantados lhe negociassem melhorjazigo, pois só achou na piedade o que podiaalcançar por parte dos dotes de bem afortunado.[Bocalino:] De que se queixa o famoso poetaportuguês?[Quevedo:] De nós todos se poderá queixar, por-que, sendo honra e glória de Espanha, tão mal tor-namos por ele que, se são poucos os que o lêem,são menos os que o entendem.[Bocalino:] Cuidei que se queixava de quatrotradutores e dois comentadores que o tem postona espinha. Pois na inteligência do que não en-tendem passam além do imaginado.[...]

[Autor:] Perigoso ofício me dais; porém, a trocode ser mais depressa advertido de minhas faltas,mostrarei as alheas.[Bocalino:] Assim dizia um galante bastardo:«Nunca sei quem foi minha mãe, senão quando el-Reime faz algu~a mercê».[Quevedo:] Por essa conta, o Autor e nós outros,se não sairmos honrados da festa, sairemos pelomenos advertidos.[Lípsio:] Com elegância política disse o Fénixde África, Santo Agostinho, que mais dano rece-bera Roma da vitória que alcançou de Cartagoque de toda a guerra que lhe havia feito, porque,tirando os olhos da emulação que Roma punha,com cuidado, de defronte, e vivendo ela sem eni-migo, vivera sem concerto; donde não só proce-deram os descuidos, mas os vícios do Império. Tãosaudável cousa é a repreensão e emenda ministradacomo e quando convém![Quevedo:] Mas quem acertará com o tempo ecom o modo, se são pontos indevisíveis?[Bocalino:] Senhores, para que é agora deter nes-sas pouquidades? Em tendo idade, logo é tempode enfrear o potro, que, se for por sua vontade,jamais haverá animal que seja doméstico.[Autor:] Escusai a disputa, porque as lástimas equeixas que ali está dando um doente, acusam jávossa ponderação por impiedosa. Oh, coitado!Como se mostra dolorido![Quevedo:] Vozes soam de grande aflição; mas,se me não engana o eco, portuguesas parecem.[Bocalino:] Pelo menos, não são italianas nemfrancesas.[Lípsio:] Nem flamengas nem latinas. E, de ca-minho, vos descubro este segredo, como versadonele. Sabei que todos os ediomas do mundo temseu tom particular sobre que armam sua lingua-gem. Como Latinos, Espanhóis e Ingleses fazemsobre a letra «on», Franceses sobre «ea», como jáforam os Gregos, e são mais frequentes que todosos Etíopes na letra «e», os Bárbaros das Índias Oci-dentais se afeiçoaram tanto à letra «v» que em quasi

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Carta de Guiade Casados*

* Carta de Guia de Casados. Edição de Maria de LurdesCorreia Fernandes. Porto: Campo de Letras, 2003.

Em meio estou, senhor N., de aquelas duas cousasmais poderosas com os homens: amor e obediência.Amo a V. M., manda-me V. M. E suposto que memanda uma cousa bem dificultosa, a obediência eo amor, que já fizeram impossíveis, não se negarãohoje a vencer dificuldades.Diz-me V. M. que se casa e que lhe dê eu, para segovernar nesse seu novo estado, alguns bons con-selhos. Esta é uma das cousas de que eu cuido quefalta mais a quem peça que a quem a dê, pois porcerto que aquele que deseja bons conselhos jáparece que deles não necessita, porque é tão grandeprudência pedir conselho que do homem que osabe pedir crerei que nenhum lhe fará falta.O primeiro que aconselharei a V. M. será que senão fie em nada só do meu voto, pois, supostoque em mi possa haver vontade para o bem servir,pode ser que nem por isso haja entendimento parao bem aconselhar, porque entendimento e vontadeainda se ajuntam menos vezes que a honra e oproveito; e ela, com que seja potência poderosa,nem sempre guia ao acerto, se lhe faltam olhos desuficiência.Grandes cousas deixou escrito a antiguidade, paraadvertência dos casados. Muitas são e graves são, aque também os modernos acrecentaram outras,ou nos puseram em outras palavras as antigas.Mas nós aqui, senhor N., nos havemos de entenderambos em prática como do lar, a cujo abrigo, nestaslongas noites de Janeiro, vou escrevendo a V. M.estas regras, em estilo alegre e fácil, qual requer oestado e idade de V. M., bem que tão diverso domeu humor e da minha fortuna. [...]

Provemos a ver se será possível dar alguma regraao amor. Ao amor, que sói ser a principal causa defazer os casados mal casados, umas vezes porquefalta e outras porque sobeja. Armemos-lhe, se quer,as redes; caia ele se quiser; e o mais certo será queavoe e fuja delas, porque quiçá por isso o pintaramcom asas. Ame-se a mulher, mas de tal sorte quese não perca por ela seu marido. Aquele amor cegofique para as damas e para as mulheres o amorcom vista. Ou cure os olhos que tem, ou os peçaemprestados ao entendimento de esses que lhesobejam. Digo, perder pela mulher, perder por elaseu marido a dignidade de homem a troco de lhenão contradizer sua vontade quando é justo quelha contradiga. Saiba-se e tema-se, que tambémhá narcisos do amor alheio como de seu próprio.[...]Cuidam, com falso discurso, algumas mulheres que,como elas guardem a lei devida à honra de seusmaridos, em tudo o mais lhes devem eles de sofrerquando elas quiserem que lhes sofram. É este ummero engano, por duas razões. A primeira, porquenada se lhes deve às honradas de guardarem a obri-gação em que Deus, a natureza, o mundo, o medoas tem posto. Lembra-me que, estando em Madrid,tinha uma vizinha muito braba que, peleijandoum dia, como sempre fazia, não cessava de dizerao marido e com verdade: Hermano, soy muy hon-rada; e ele respondia-lhe: Pues anda a Dios que te lopague, que a mi cuenta no está el pagarlo quando lo seas,sino el castigarlo cuando no lo seas.A segunda, porque não só a honra de seus mari-dos se perde por sua descontinência, mas nãomenos pelas ocasiões a que põem os homens pormuitos outros excessos que cometem. Foi assi gra-ciosa, mais que segura, a opinião de certa pessoaque ninguém tanto sofria como quem tinha boamulher, bom criado e boa cavalgadura porque, àconta de boas peças, cada uma fazia sua vontade enunca a de seu dono. Não fosse ora por isso odizer a chocarrice castelhana: Buena mula, buenacabra, buena hembra, son tres malas bestias.

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A doença, que muitas vezes aflige, é também umnão pequeno trabalho. Vê-se penar a pessoa a quese quer bem e porventura soem ser estas as quemenos o merecem, porque males e bens muito háque costumam andar desordenados. Deve a mulher,quando enferma, ser tratada de seu marido comtodo o regalo possível, sofrida com toda a paciên-cia. Pode-se fazer esta conta: que, estando dispostohaja de padecer o homem em ametade de sua alma,favor foi grande de Deus padecesse antes naquelaparte que menos falta faria à sua família. Conside-re-se (para que se bem sofra) que a obrigação dofiel companheiro é guardar companhia, tanto pelomau como pelo bom caminho. Se as sortes se mu-dassem, da mesma maneira quisera o marido sertratado e sofrido da mulher.Há não poucas mulheres proluxíssimas e de con-dição impertinente, cuja demasia de ordináriodescarrega sobre os criados, a quem são insupor-táveis, donde à casa resulta ruim fama e achar osenhor dela com dificuldade quem o sirva. Convémque a estas tais se lhes aperte o freio, se lhes dêpouca mão no governo e, como a pessoas feridasde mal contagioso, as sirvam e ministrem ao longe,ouvindo-as pouco e dando-lhes a ouvir menos.Mostrem-se-lhes por experiência os frutos de suacondição, faltando-lhes tal vez com o serviço ne-cessário porque, se com este garrote não tornamem si, são por outro lado de dificultoso remédio evem a pagar o marido, sem culpa, os desabrimentosda mulher agressora e merecedora da ruim vontadedos servos que, como pouco prudentes, não dis-tinguem em acções tão próprias como as de mulhere marido qual deles é digno de amor e qual dedesamor.Acontece serem escassas e, dos defeitos mais levesque nelas se acham, é este um deles. Não julgoque seja de algum perigo (posto que pode ser dedescontentamento e azo de pouca paz), porque seo marido é liberal ele dará logo remédio à condiçãoda mulher; se tiver o mesmo costume, vivirão commiséria, mas com contentamento. Não cuido certo

As mulheres de rija condição, a quem comum-mente chamam brabas, são as que menos cura tem,porque até da temperança do marido, que era asua melhor mezinha, tomam causa de sedemasiarem, sendo já antigo que o soberbo se fazmais insolente à vista da humildade, o brabo seenfurece diante da mansidão. A violência e o cas-tigo não tem lugar na gente de grande qualidade,pelo que já disse um muito discreto que entre ascousas que os vilãos traziam lá usurpado aos fidalgosera uma o poderem castigar suas mulheres cadavez que lho mereciam. Pouco mais remédio soemter estas tais condições que uma grande prudênciacom que se atalhem. Aconselharia a aquele a quemtal sucedesse se apartasse o possível de viver nascortes e grandes lugares. Quem grita no despovoadoé menos ouvido. Atalham-se assi inconvenientes,não se ficará sendo a fábula do povo donde, deordinário, servem de iguaria aos murmuradores asacções de tais casados. Procede de aqui não leveinjúria, pelo menos um escrúpulo de afronta queanda sempre zunindo nos ouvidos do pobre ma-rido como os gritos da própria mulher braba.A feia é pena ordinária, porém que muitas vezesao dia se pode aliviar, tantas quantas seu maridosair de sua presença, ou ela da do marido. Consi-dere que mais vale viver seguro no coração quecontente nos olhos e desta segurança viva con-tente, que pouco mais importa haver perdido porjunto a fermosura que vê-la ir perdendo cada dia,com lástima de quem a ama. Isso sucede semprenas mulheres, já pela idade, já pelos achaques aque toda a fermosura vive sujeita; donde, commuita razão, se queixava um discreto, não de quea natureza acabasse às fermosas, mas de que as en-velhecesse.Mulher nécia cousa é pesada, mas não insofrível.Procure o marido emprestar de seu juízo às acçõesde sua mulher aquela discrição que vir que lhefalta. Assi o fará o entendido. E se ele também onão for, pouca pena lhe dará que ela o não seja.

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que os egípcios, com toda a sua agudeza, inventarammais excelente geroglífico do que o descobre umnosso provérbio português: O marido barca, a mulherarca. Ouvi-o dias há a uma velha e o escutei comoda boca de um sábio. Traga o marido e guarde amulher.Mulher ciosa é bem ocasionada mulher para quese viva sem contentamento. Dizia uma de bomjuízo: A mulher ciosa tende a ociosa. Queria dizer:não lhe deis causa, que ela a não tomará. Esta nãovinha distinguir a queixa do ciúme, porque aque-la que com razão se sente não chamo eu ciosa. Aciosa é aquela que sem causa se queixa, e estas sãoas trabalhosas, porque emendar cada um as suasfraquezas, sobre que é dificultoso, não é impossível;mas emendar as alheias não é dificultoso porque éimpossível.Contra as ciosas sem razão, o melhor remédio éque elas não tenham, porque assi se segura aconciência e a honra. Contra as ciosas com razão,curando-se o marido da leviandade, fica a mulhercurada do ciúme. Para desconfianças leves, que umdiscreto chamava sarna do amor que faz doer egostar juntamente, digo eu que como se satisfi-zeram as damas se satisfarão as esposas. Aquele amordesordenado mais furioso é, e assi mais veementesseus ciúmes (como é do melhor vinho o melhorvinagre). Quem soube (que todos souberam) des-mentir os ciúmes de sua dama quando a teve, poresse mesmo modo desminta os de sua mulherquando a tenha.Eis aqui vem as gastadoras, fogo perenal das casase das famílias. Sempre foi causa de muitos malesesta tal condição, porque lá tem suas cores de cousaboa e sobretudo é mui aceita. Digo, senhor N.,com verdade que me parece deve uma mulherhonrada tratar o dinheiro com aquele mesmo temorque ao ferro e fogo e outras cousas de que convémsejam medrosas. Parece o dinheiro em mãos damulher arma imprópria. Pergunto: se para despedire lançar de sua casa um criado a mulher casada porsi não tem bastante autoridade, porque a quererá

ter para despedir e lançar fora de casa sua fazenda,em que consiste o bem e repouso de amos e cria-dos? [...]Fuja-se como de peste de repartir casa e recebercriados com distinção, tais para o senhor e taispara a senhora. Se o casamento é união, de queserve dividi-lo? Este ponto é mais proveitoso àadvertência que agradável à especulação. De aquivem que nem lhe fujo nem a persigo.Tem-se hoje por grandeza lavrar quartos e apo-sentos aparte, conservarem-se por toda a vida assientre os casados e há homem que vive tão dimi-nuto de sua mulher como das de seus vizinhos.Perguntem-se neste casos as paredes das casas maisantigas que, pois as paredes falam, elas dirão oscostumes dos passados. Vê-se no seu modo deedificar que donde hoje não cabe um pobre escu-deiro antes cabia um senhor grande. Eu não soutão amartelado da antiguidade que cegamente sigaseus costumes, mas parecia-me bem aquela singe-leza e não bem esta cautela. Vivam todos em todasas casas, maridos e mulheres, que o contrário certoé abuso cheio de perigos.Afirmo ser erro que traz grandes inconvenienteshaver em casa gente parcial e que cuide algumadela que só a sua ama deve fidelidade e segredo, sóa ela queira servir e dar gosto, só tema seu enojo eespere seu prémio. Costumam dizer os grandes:tantos criados, tantos inimigos, sentença de quefoi autor não menos que o Espírito Santo, poisestoutra casta de criados que o são e que o nãosão é a quinta essência dos criados inimigos. [...]Mulheres que são como o rio Nilo, a quem se nãosabe o nacimento e toda a sua corrente, fugir,senhor, delas como dos próprios crocodilos quedizem leva esse rio. Há umas que dão em ter Dons;outras que se prezam de nobilíssimas (e praza aDeus que não seja por afinidade); muitas que sevendem por filhas bastardas de fulano e fulano, asquais (se o são), sendo mal criadas ao bafo dasmães, são pouco a propósito para boas criadas; al-gumas que se introduzem por descasadas; algumas

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na sua câmara, enquanto a idade lhe permitisseessa alegria. Não louvo o trazer castanhetas naalgibeira, o saber jácaras e entender de mudançasdo sarambeque, por serem indícios de desenvol-tura. Mas aquilo de ser engraçada e aguda na visita,na igreja, no coche e no paço traz grandes incon-venientes consigo e dificílimos de atalhar, porquedas cousas a que se segue aplauso, bem ou malganhado, ninguém se arrepende. Vele-se disso seumarido e, se com ela acabar a emenda, creia quefez muito, porque deste mal nunca vi a nenhumdoente convalecido. [...]É cousa rija que a senhora de casa de tudo sejaamiga, senão de sua casa, como acontece àquelasque, ou perdem a casa porque nunca estão nela,ou porque o estar nela as ajuda a que a lancem aperder.Disse que seria bom ocupar a mulher no governodoméstico; e é bom, e é necessário, não só paraque ela viva ocupada, senão para que o maridotenha menos esse trabalho. Cousas tão miúdas nãoé bem que pejem o pensamento de um homem epara os da mulher são muito convenientes. Per-gunto: não se rira V. M. se vira ir um elefante carre-gado com um grão de trigo na tromba? Si, porcerto, e logo louvara a Deus se o visse levar nobico a uma formiga. Diz por isso o rifão: Do homema praça, da mulher a casa. Os maridos que em tudoquerem mandar são dignos de reprensão, igual-mente aos que não querem mandar em nada. [...]Não há para que me detenha no modo de vestir-se;vista-se conforme sua idade, mude-se com ela.Tem-se nisto respeito aos filhos, à saúde, ao gosto,à presença ou ausência do marido e também àidade dele. Se o houvéssemos de regular, pareceque até os três filhos e até os vinte e cinco anos sepermite toda a gala. E ainda nesse mesmo tempotenha suas crescentes e minguantes, que nos mes-mos altares de Deus se mudam as cores e adornose vez há em que se mostram tristes. Avorrecem-meumas maias muito enfeitadas, sempre de bordadose jóias que parecem Fama de procissão ou Rainha

que se lhe foram há tantos anos seus maridos paraa Índia e nada daquilo é seguro e apenas é certo.Estas costumam ser discretas, músicas, comediantas,sabem fazer toucados extravagantes, bordadoras,costureiras e, com o cevo das boas habilidades,enfeitiçam as senhoras que, mal advertidas de aqueleslaços que na aparência se encobrem, caem facil-mente em seus enredos; são as logo mimosas equeridas, erguem-se de repente sobre as mais; andaa casa revolta e ainda este é o menor inconveni-ente. Contam histórias a suas amas, mostram-lheàs vezes a facilidade de vencer um impossível, ale-gam-lhe com casos passados e, finalmente, sãocomo sarna da honra que, sendo uma ruim e as-querosa doença, passa por gosto e dana com graçaà pessoa que a padece. [...]Perguntou alguém, algumas vezes, se seria lícitodeixar usar a mulher própria de aquelas boas partesde que a dotou a natureza, como o cantar, o dançare ainda o fazer versos e outras semelhantes prerro-gativas que em algumas se acham e em muitaspudera haver se o receio as não suprimisse. Certa-mente que, se V. M. me fizera esta pregunta, mevira eu em grande enleio, porque o aniquilar emqualquer pessoa as perfeições que Deus lhe deuimpiedade parece; fazer-lhas exercitar naqueles li-mites que a prudência requere parece impossível.Dizia a este propósito a Princesa de Roca-Sorionem França, que foi discretíssima e não bem casada,que das três potências com que entrara em poderde seu marido duas lhe tomara ele e lhe deixarauma só, que ela lhe dera bem facilmente, porquenem a potência do entender nem a do querer tinhajá, e só lhe ficara a memória de que as tivera emalgum tempo para sentir mais a pena de se veragora sem entendimento nem vontade.De todas as graças das mulheres a graça é a quetenho por mais perigosa, porque para se usar delanecessita menos aparelhos, sendo, a meu juízo, estagraça a mais perigosa desgraça.Cantar a mulher a seu marido e filhos, se os tem,cousa parece lícita e o seria o dançar alguma hora

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Moura de comédias. Seja mais confiada em si afermosura se são fermosas e mais reportada a feal-dade se são feias. Dizia um marido galante à suamulher destas muito arraiadas que em a vendo deaquela sorte lhe fazia mais devação que amor,porque aquele seu andar não era andar vestidasenão revestida.Outras há que são uma perpétua pastilha e umacaçoula perene. Muito conforme cousa é com elaso cheiro; mulheres e perfumes, tudo são fumos, ese eles fossem bem adubados da discrição, eu ficoque recendessem mais ainda. Confesso que nuncafui desafeiçoado ao concerto das casas e das pessoas,como por concertá-las se não desconcertem. Lem-bra-me haver ouvido e lido (tudo conto com poucoaplauso meu) do Emperador D. Fernando o Se-gundo, pai do que hoje impera (se ele impera)que não quis dormir em uma câmara porque lhatinham perfumado. Se foi achaque de natural re-pugnância é desculpável; se não mais que hom-bridade, não vi eu maior impertinência. Há quemdiga que foi religião, porque dizem tinha D.Fernando para si que os cheiros eram só devidos aDeus. Do nosso rei D. Sebastião também contamnão ser muito caroável de cheiros. Não sei comoisto é, porque como eu sempre ouvi chamar reaisa todas as cousas boas, cuidava sermos obrigados acrer que todas as cousas boas eram reais; eram,digo, aceitas e dignas dos reis. A experiência mostraalguma vez que esta regra não é infalível; contudo,se tem por certo sinal de um bom espírito terinclinação para todas as cousas boas. Não sei senestes perfumes das mulheres entram tantas filo-sofias, mas, ainda que não sejam virtude,contentemo-nos com que não sejam vício. [...]Faça o marido de quando em quando uma estaçãoa sua mulher: amoeste-a que, nem no seu estrado,nem em o alheio, apode ninguém; cousa muitocerta é de que as apodadas, sendo mulheres, secansam assaz e também apodam; e de que, se ho-mens, logo lançam mão para queixas ou agradeci-mentos; que não desenrole os cuidados alheios, se

fulano olha ou se passeia a fulana. Parece cousaimprópria que uma senhora, que não é bem quesaiba mais que de si e sua casa, traga registados ospensamentos do outro. Nunca a algum homem,dos do lugar em que viver, louve ou injurie. É nasmulheres este diverso efeito (de ordinário) proce-dido de uma própria causa.De aqueles de quem muito mal se diz e de aquelesde quem muito bem se conta, julguei sempre umigual mistério e foi o pior que nunca me enganeinestas sentenças. Deve ser a prática das mulheresdo seu lenço de amostras, do ruim tempo que vaipara curar pastilhas, queixar-se das criadas, e aindapara que se queixem dos despegos de seus maridoslhes dou licença, mas [não] que lhes levantem falsotestemunho. [...]Há umas mulheres ídolos que, ou são inutilíssimas,ou se prezam de o ser e só lhes parece que nacerampara ser adoradas e disso só querem servir. Ora eume contento com que não façam mais de um ser-viço em suas casas e seja este: sirva a mulher de sersenhora de sua casa, satisfaça as obrigações desteseu ofício que assaz fará de serviço a sua casa, aseu marido, se o fizer como deve. [...]Nos cuidados e empregos dos homens não semetam as mulheres, fiadas em que também temcomo nós entendimento e em que a alma não émacho nem fêmea, como alguma em seu favoralegava. Mas saibam os maridos que nem por estataixa que lhes ponho é justo que a mulher sisudadeixe de dar a seu marido, modestamente, seu pa-recer, nem deixa ele de ser obrigado a lho pedir.Não cuide V. M. que me contradigo ou arrependodo que tenho escrito; declaro-me com um bomsemelhante. Seja a mulher como a mão do relógioe o marido seja o relógio. Aponte ela e soe ele.Um mostre, outro resolva, que andando desta ma-neira temperado o relógio todos o crem, todos otem por oráculo. Não só se concerta a si mesmo,mas faz andar aos outros concertados e, ao contrá-rio, se se desconcerta, também aos outros. Ó, comofolgo de ver uma mulher ignorar aquilo que não é

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circunlóquios, que tem modos de gabar fora douso, que praticam ao som do meneio das mãos oudo movimento dos olhos. Fora, fora tudo isto, queparece ficção e nem verdadeiro nem fingido é bemque seja. Não me tenha V. M. por maldizente; maisvale que poluxo, mas em verdade que tudo o queaponto é digno de ser lembrado.Pedia uma dama a um seu irmão, homem discreto,que lhe desse uma letra para certa empresa suaque queria mandar abrir em um sinete; respon-deu-lhe: Minha irmã, deixai as empresas para as adargasdos cavaleiros andantes; as empresas que haveis de mandarabrir sejam chavões para fazerdes bolos a vosso maridoquando o tiverdes.Falar sempre é mau, rijo é malíssimo e, em lugaresindecentes, pior que tudo. Acontece que muitasque se prezam de discretas respondem alto nasigrejas, para que as ouçam e aplaudam, entendemcom as amigas, que lhes ficam longe, a fim de se-rem ouvidas. Também o suspirar à pregação, fazergestos com a cabeça, como que lhe contenta oque se disse, rezar desentoado, compassar a música,são cousas que não houveram de ser.Fale a mulher discreta o necessário, brando, a tem-po, com tom que baste para ser ouvida da pessoa aquem fala e não das outras. Comparou bem umentendido as pessoas com os sinos, que pela voz seconhece se estão sãos ou quebrados. Escuso demostrar como as palavras informam do ânimo,porque, assi como pelo correio que vem de talparte sabemos as novas que lá vão, assi pelas pala-vras que vem do juízo sabemos o que lá vai.Elas já sei que me terão por suspeito, pois até osmovimentos lhes hei-de medir. Uma das terríbeiscousas que há na mulher é usar de meneios de-compostos. Sei que nem todas podem ser airosas,mas graves todas o podem ser. Faz grande danouma maldita palavra que se nos pegou de Castela,a que chamam despejo, de muitas que se prezam;e certo é que, em bom português, despejo é des-compostura. Outra explicação lhe ia eu a dar, masesta baste. E claro está que o despejo é cousa ruim,

razão saber, mas que verdadeiramente o saiba! Achogrande perfeição quando erram aquelas cousas quelhe podiam pôr imperfeição se as acertassem.Entenda a mulher como mulher; seja tal sua liçãoquando ler, sua prática quando praticar e tal omesmo que se lhe ler e se lhe praticar.Pois comecei com os meus adágios, hei-de acabarcom eles. Ouvi um dia, caminhando, e não era elemenos que a um chapado recoveiro (veja V. M.que enjeitei os filósofos para citar estes autores),enfim, ouvi-lhe que Deus o guardasse de mulaque faz him e de mulher que sabe latim. O riso egosto com que lhe escutei esta engraçada sentençame faz agora lembrar dela. Não se julgue por in-decente se é proveitosa. O ponto está em que olatim não é o que dana, mas o que consigo traz deoutros saberetes envolto aquele saber.Já que estou ao fogo e como desde este lugar faloa V. M. e V. M. me ouve e me perdoa, irá outra nãopior história. Confessava-se uma mulher honradaa um frade velho e rabujento e como começasse adizer em latim a confissão, perguntou-lhe o con-fessor: Sabeis latim? Disse-lhe: Padre, criei-me emmosteiro. Tornou-lhe a perguntar: Que estado tendes?Respondeu-lhe: Casada. A que tornou: Onde estávosso marido? Na Índia, meu padre (disse ela). Entãocom agudeza repetiu o velho: Tende mão, filha, sabeislatim, criaste-vos em mosteiro, tendes marido na Índia?Ora ide-vos embora e vinde cá outro dia que vós é forçaque tragais muito que dizer e eu estou hoje muito depressa.Tomara que as mulheres não soubessem de guerras,nem estados, nem procurassem por isso. Enfadam--me umas que se metem em eleições de governos,julgar de brigas, praticar desafios, mover demandas,outras que se prezam de entender versos,abocanham em linguagens alheias, tratam questõesde amor e de fineza, decoram perguntas para gentesdiscretas, trazem memorial de motes dificultosos;umas que dão significação às ervas, que adevinhamas cores; outras que as tem de sua tenção; outrasque examinam pregações, que lhes tomam pala-vras; outras que as usam esquisitas e falam por

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porque o pejo era cousa boa. Nada disto se lheperdoe, sendo, senhor meu, tão importante queestes costumes exteriores andem concertadoscomo é a fermosa frontaria a um nobre edifíciopara que se tenha por nobre.Ora, do riso, que diremos? Pois se elas tem bonsdentes e aquilo que chamam graça na boca e covana face, aí lhe digo eu a V. M. que está o perigo. Hámulher destas que rirá a todo o sermão da Paixãocomo se fosse ao de dia de Páscoa somente porassoalhar aquele seu tesouro. Não disse Platão, nemSéneca, cousa melhor que o disseram as nossasvelhas: Muito riso, pouco siso.Longe estou eu de persuadir à mulher que sejamelancólica, porque antes a sempre triste induzpouca satisfação de sua vida. Alegre-se e ria-se emsua casa, à sua mesa e na conversação de seu marido,filhos e familiares; deixe o riso em casa, quandofor fora, a modo da serpente que vomita a peçonhaprimeiro que vá beber e, despois que bebe, tornaoutra vez a recolher a sua peçonha. Venha paracasa e tome a sua boa graça.Ainda fico com escrúpulo sobre a lição em quemuitas se ocupam. O melhor livro é a almofada eo bastidor, mas nem por isso lhe negarei o exercíciodeles. Estas que sempre querem ler comédias eque sabem romances delas de cor e os dizem àsvezes entoados, não gabo. Outras são mortas porlivros de novelas, tais pelos de cavalarias. Aqui émais perigosa a afeição que o uso. Bem vejo quese lhes pode permitir este desenfado, mas seja commaior cautela a aquelas que excessivamente se lhesentregarem, visto que podemos temer se ama nelesantes a semelhança dos pensamentos que a varie-dade da lição. Não quisera que ninguém gostassesenão de aquilo e que era justo que tivesse gosto.[...]Obrigam-se muito as casadas de que seus maridoslhes contem o que sabem e o que ouvem e o quepassa pelo lugar. Que os homens sejam secos émeio caminho andado para serem aborrecíveis; quesejam faladores, é todo o caminho andado para

serem desprezados. Deve-se eleger um bom meio,de sorte que a mulher não cuide que seu maridoa tem em pouca conta, nem que ele faça de ma-neira que em outra semelhante seja tido dela. Asmais logo trazem decorado aquele rifão: Quem mea mi quer bem, diz-me do que sabe, dá-me do que tem.Guarde-se o discreto de contar a sua mulher ashistórias passadas de seus amores e de sua moci-dade. Causam assi dous males: darem a conheceràs mulheres a fraqueza de seu natural e entenderemcomo há outras pelo mundo que se deixam enganarfacilmente. [...]Estas galantarias do marido não podem ser recí-procas para a mulher, que tem muito menores li-cenças, sem ter alguma razão de queixa, comoacontece que uma cidade tem muito menorcomarca que a outra e nem por isso terá justiçapara a pretender igual. Não gabe a mulher a outrohomem diante de seu marido, salvo de aquelascousas que, tidas ou não tidas, vem a ser a mesmacousa. [...]Ora, muito há que lhe não digo nada às casadas, àsquais tenho para encomendar uma acção não inútil,antes de grande conveniência. Há muitas que, dedesgostos que não podem remediar, tomam em sio castigo, cousa totalmente indigna, como injusta.Umas, por serem mal casadas, se desmancham emsi mesmo e desfiguram, com o que vem a ser piorcasadas. Aquelas a quem lhes morrem os filhos,aquelas a quem lhes não nascem, vivem não so-mente desconsoladas no ânimo, mas o dão a en-tender no trajo e rostro, de que os maridos pru-dentes, e que mais as estimam, se entristecem evivem afligidos, e os de leve condição tomammotivo para procederem mais levemente, achandofácil a disculpa, que não tem, no exquisito mododas mulheres. Nascem desta desordem outras mai-ores, em grande ofensa da paz, porque de ordinárioos homens não são da condição de um meu amigoque dizia a sua mulher noutro tal caso: Senhora,desenganai-vos, que por mais que me façais, nem voshei-de querer mal, nem me haveis de parecer mal. [...]

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CartasFamiliares*

* Cartas Familiares. Pref. e notas de Maria da ConceiçãoMorais Sarmento. Lisboa: INCM, 1981.

CARTA DO AUTOR AOS LEITORESDE SUAS CARTAS

Senhores: Assi como pede a cortesia que saiamosa receber à porta de nossas casas, com algu~a cortêsdemostração a nossos hóspedes, manda a urbani-dade que, com algu~a advertência, vamos a encon-trar nossos leitores ao princípio de nossos livros.Lá costumam aqueles desculpar-se aos outros deque não sejam bem agasalhados; e cá estes se es-cusam a estoutros de que sejam mal instruídos.Ora, segundo a boa lei deste costume, se a mi mevalessem as escusas que posso dar-vos por satisfa-ções, todos ficaríamos satisfeitos. Vós que sabeismeu natural e não inorais meu cabedal, é certoque não recebereis com sobressalto a inutilidadedeste livro. Do mesmo vos peço que vos lembreis,quando o julgares, para que vos não deis por ofen-didos de sua pobreza. Assi o espero quando euseja tão venturoso que antes comece que acabecom pequena opinião de discreto; pois de ordinárioos afectos valem como os números, segundo olugar donde estão postos.Se desde logo começardes a ler sem presumir deachar tesouros, nada sentireis quando vos faltem.Pode a alhea afeição convidar-vos com a leituradestas cartas. Já se sabe que a Amizade é filha doAmor, de quem não degenera em ser mal vista; edo pai ninguém duvidou ser criado tanto à suavontade que pretende que todos estimem e apro-vem o que ele aprova e estima.

Mas se contudo parecer às mulheres excessiva-mente rigorosa esta minha doutrina, certifico-lhesque meu ânimo não foi esse, senão encaminhartudo à sua estimação, regalo e serviço.E porque assi se veja mais certamente, haja quemqueira de mi outra Carta para as casadas e entãoverá quão bem avogo por sua parte quando, peloque aos maridos deixo dito, as mulheres se nãodem por satisfeitas.Senhor meu. Casa limpa. Mesa asseada. Prato ho-nesto. Servir quedo. Criados bons. Um que osmande. Paga certa. Escravos poucos. Coche a ponto.Cavalo gordo. Prata muita. Ouro o menos. Jóiasque se não peçam. Dinheiro o que se possa. Alfaiastodas. Armações muitas. Pinturas as melhores. Li-vros alguns. Armas que não faltem. Casas próprias.Quinta pequena. Missa em casa. Esmola sempre.Poucos vizinhos. Filhos sem mimo. Ordem emtudo. Mulher honrada. Marido cristão. É boa vidae boa morte.

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Cinco centúrias de cartas minhas se vos oferecemneste livro: as mais foram escritas com sangue,enxutas com lágrimas, dobradas com singeleza,seladas pela desgraça, levadas pela mofina.Só se deleitará de as ler a Fortuna, que as fez ditar:como quem nelas está vendo o dibuxo das façanhasde sua sem-razão. Em os assuntos há pouca varie-dade, porque sempre o humor da sorte estava fixona melancolia. Aquelas que com melhor pena seescreveram, não esperou a tempestade da desgraçaque as levasse outro vento, porque, enfim, comoobra de penas e de palavras, haviam de ter no arsua sepultura, bem que no fogo tivessem seunacimento. Por todas cintila o queixume, apesarda modéstia que procura embaraçá-lo e desmen-ti-lo; mas a dor é tão atrevida, como quem nuncalhe falta coração, de avezada a viver nele.O mais que não cautelou o temor por mãos doartifício, não passa de frasis naturais, palavras sãs emodos comuns, que, se acaso se meteram em or-dem, mais se deve à natureza que ao estudo: opeito aberto mal pode fingir, e menos compor-sea inorância. É verdade que lhe amanheceu despoisoutro tempo mais sereno, mas o gosto é como odia que mais depressa torna outro de que o passadoressuscita.As cartas sérias e de negócios de estado, em quepodia descobrir-se algu~a, senão agradável, útil espe-culação, não podem comunicar-se, nem o permi-tirá o lugar, ainda que a matéria o concedesse; masse o agasalho destas é qual deve esperar-se de vossabeninidade, brevemente poderão oferecer-se avosso juízo, em outras tantas centúrias, outras tantasocasiões de vos mostrardes sábios com minhainorância. Suprirá a riqueza do número a desvaliade calidade. Não vos maravilhe a promessa, sendofácil de cumprir, despois de haver ajustado que sónos primeiros seis anos da minha prisão escrevivinte e duas mil e seiscentas cartas. E que seráhoje sendo doze os de preso, seis os de desterradoe muitos os de desditoso?

Da infelicidade da composição, erros da escritura,desmancho dos números e outras imperfeições daestampa, não há que dizer-vos: vós os vedes, vósos castigais, que eu por força havia de perdoá-los:ou por que entre os alheios se dissimulassem osmeus ou por que a par dos meus se não viram osalheos. Deus vos guarde.

O Autor

CARTAS

1

A Dom Lourenço de Altaíde,com u~a Comédia

Antes que representada le ofrezco a V. M. estaComedia, porque en lo que tan verdaderamentees suyo, siquiera se lleve las estrenas. Deseo quesalga al desafío (que eso es el teatmo) con sunombre de V. M. por padrino. Este es el mayoracierto que pudo asegurarle mi elección. Si al caboella flaquea, entonces se echará de ver harto mejorel valor de V. M. volviendo por ella. A mi por lomenos no me faltará el consuelo de las lágrimasde muchos, si es que la comunidad del dolo esalivio. No son pocos los grandes sujetos que res-balaron, subiendo esta eminencia antes de subirla.El desliz de un águila consuelo puede ser, por lomenos disculpa, de un esmerejón. Yo procurécaminar despacio. Ojalá que no me sea de aquellosque, errando a sus anchuras, ni siquiera puedenexcusarse con la diligencia.Estando en la Corte, hoy hace un año, la di prin-cipio. En verdad, Señor mío, que no fue antojo,tanpoco envídia y menos vanidad. Procure vestiral ingenio de aquella tela de entender de que porallá veía vestirse a los otros. El uso se atreve darleyes el juicio; y no es maravilla si se le peguan alentendimiento los achaques de la voluntad, vi-viendo tan cercanos. Las Damas, los Grandes, todo

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Consigo leva esta obra, e com seu nome, todos oslouvores e recomendações, começando desde aboca de Deus até à do mais bárbaro infiel. Nãotenho logo para que escusar-me de atrevido emoferecê-la a V. S. E, se ainda há que perdoar, muitohá, Senhora, que o Bautista é o maior padrinhodo mundo. E agora se verá bem, no agasalho comque V. S. tratar esta minha confiança, que tambémse pode desculpar humanamente, considerandoque de um juízo retirado e agreste, que se podiamesperar senão rudezas? Contudo, se a fé salva (comosalva) já posso estar seguro de que V. S. aceite eprossiga este Ofício; e ainda a mercê de me mandara sirva em outros escritos; para o que não faltaráalento, mas que o furtemos a nossa perseguição,empregando-se assi melhor em obedecer aos man-dados de V. S. que em meu remédio. Guarde Deusa vida e saúde de V. S. como desejo. Deste Monte,em 9 de Maio, 1637.

11

A Manuel de Faria e Sousa pedindo-lhe oavisasse de certo secreto que lhe importava

Nenhu~a filosofia basta (não me oiçam os estóicos)para sossegar as inquietações de um ânimo ofen-dido. Porque os afectos podem-se temperar masnão se podem negar; e mais fácil é aos homensfingi-los ali onde eles não estão, que sumi-los ondeestão, de sorte que se não enxerguem. Despois queV. M. me avisou tinha que dizer-me, ando bata-lhando comigo por ver se posso desmentir estesmeus temores; e eles tomam novo brio na con-tenda. Nada tem de apetite, de necessidade si, odesejar saber este segredo. No tempo da peste nãohá mal que não seja contagioso. Senhor meu, quemais claro poderei confessar minha cobardia? Seporventura vileza, pode (como com alguns) sermerecimento. Eu me não posso comprimir semque ouça, e peço a V. M. me diga o que tem paradizer-me (e bofé, Senhor, que estou tal que, até oque não me quiser dizer, estou para lhe perguntar).

el Mundo favorecía este empleo.¿ Qui mercaderhay que no ponga su caudal en lo que mejor sedespacha?¿Pero yo dónde voy, que parece me disculpo? Noera esto lo que pensaba decir, porque la culpa noestá en escribir [...]

5

A uma senhora, oferecendo-lhe um ofíciode São João Bautista

A quem melhor convém o ofício de um penitente,que a quem busca a penitência por ofício? E quemse pagará mais destas Horas, senão quem assi gastasuas horas? Por dívida, Senhora, melhor que poreleição, são estas de V. S. Elas mesmas o afirmam,porque, logo que foram estas, foram suas. Eu nãotenho aqui mais que guiá-las às mãos de V. S., quasirestituição e não já oferta. São vulgares como seuautor, por que supram na facilidade do estilo oque no espírito lhe falta de alteza. Quanto maisque para u~a devação tão fácil de persuadir qual-quer linguagem basta.Louvam-se as obras de um João como as palavrasde outro, que foi seu maior cronista, contra osabusos de nossa inorância, que cuida acrescenta aum o que pretende tirar ao outro. Inorância, enfim,de homens, que até aos justificados queremperfilhar suas paixões. O santo Evangelista pode-mos afirmar que foi Bautista, segundo falou dele.O santo Bautista que foi Evangelista, conformeprofetizou verdades. O Evangelista sem dúvida foiquem teve ao Bautista pelo maior santo. Nempodia ser menos, sendo Secretário de Cristo, decujo peito o sabia. O santo Bautista se teve a si portão pequeno, que, julgando-se indigno da com-panhia dos homens, se escondeu nos desertos.Donde nem a sua humildade, nem a sua inocênciao seguraram. De lá veo a padecer entre os cortesãosinveja e morte. Grande consolação é esta, por certo,aos desterrados e perseguidos.

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Bem pode ser que a adivinhação dos males meinduza a esta curiosidade. Seja o que for, eu per-gunto, e afirmo a V. M. que me vejo com assazcuidado sobre as cousas de aquém e de além; porquede banda a banda alcança a minha má fortuna.Queira V. M. lançar-me o fio a este laberinto, aindaque seja o fio de u~a regra, já que o tempo me nãodeixa ver a V. M., e dá agora em me perseguir,como os do tempo. De tudo livre Deus a V. M. eguarde muitos anos. Castelo, 23 de Setembro, 1637.

21

A Jorge da Câmara, estando doente

Senhor meu: Males são de um amigo os achaquesde outro. Por mi se disse que tardei e arrecadei.Faltou-me o tempo de saber os de V. M., mas nãome faltou o de senti-los. Se não é mais que sazão,V. M. não está doente porque sempre a teve. Nóssi, porque não temos a V. M.. Livro, versos, tudo éjá menos para desejar que a saúde. Ela também écomo o dinheiro, que, para que se tenha, convémque se tenha. Quem não manda doces, oferececonselhos. Eu há dias que, por parte do amor, deiem ser fiscal da saúde de V. M. Enfim, Senhor, vivercomo são, perdoar como doente. Nosso Senhor,etc. Lisboa, 27 de Junho, 1638.

Epanáforas*

* Epanáforas de Vária História Portuguesa. Introd. e apêndicedocumental por Joel Serrão. Lisboa: INCM, 1977, p. 181;184-85; 190; 223-24.

NAUFRÁGIO DA ARMADAPORTUGUESA EM FRANÇA (1627)

EPANÁFORA TRÁGICA

PRIMEIRA

[...] Foram os Portugueses os últimos, q abraçaramas regras desta Milícia, q ainda hoje, cõ gravissimodano da guerra do Ori~ete, se não pôde introduzir.Era a razão, porque nas guerras particulares de nossag~ete, que se reduziam a conquistas da Índia, & praçasde África, não parecia de grande conveniência, mu-dar a forma primeira, com a qual elas se ganha-ram, & foram conservadas.O mesmo se puderaentender na India, em quanto não foi invadida dasnações [...] mas os accidentes da nova guerra dePernanbuco, não evitado o efeito do posto, breve-mente cõseguido, lhe divertio pelo menos, o dolugar; aplicãdo-se ao Estado do Brasil, aquele Ter-ço levãtado para Frandes. Porém despois, senãoserena, aliviada a República, por este, ou por ou-tros fins (como cuidarão algu~s Estadistas) foi pordiãte a prática, & execução dos Terços, para aqueleserviço consignados; dos quais a mi me coube boaparte, sendo ocupado, em aquele q se pret~edia con-servar nos Paízes baixos, adõde passei, esperandoalcançar a imitação dos nobres exemplos, que alime haviam deixado tão grãdes antecessores; masas mudãças de Reinos, & Monarquias, maioresintentos costumam mudar: porque os negóciosgrandes, nunca param em pequenas consequências.

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esquecer dos companheiros nos trabalhos, entreos quais, os homens contraem maior afeição; por-que como da fortuna triste, sempre fuja a ambição,& se desvie a enveja, vemos que nessa fortuna seamam os homens cordealmente: porque obramentão como devem, as obrigações da natureza.Quanto mais, que se por tirar seus nomes do es-quecimento, nos puzemos a este trabalho, parti-cular obrigação nos corre, de os fazer manifestos.[...]O Governo de Portugal, com repetidas ordens, &meios proporcionados dispunha desde Lisboa, aexecução, do que o nosso Conselho de Madridhavia resoluto, porque o Governo igualmente como Conselho, estava receando: Que se desse em algu~adificuldade invencível, suposto haverem-se já vencido asprimeiras que se opuseram. É porq~ a cobiça tendopresente, o que deseja, nunca se acobarda, em pro-curar seu logro, à custa dos maiores inconveni~etes.Afirmo, q~ havia razão, para que temessem aquelesMinistros; suposto q~ a não houvesse para tam so-beja cautela. Quantas diligências se fizeram porhomens, & tempos, pela cõservação de aquele te-souro, podemos dizer: Que foram enxadadas, que lheabriram em meio das ágoas, miserável sepultura.O General, avisado da jornada, que se lhe mandavafazer, em benefício do cõgresso, partio por mar aaquela Cidade, levando consigo algu~as pessoas par-ticulares, além dos officiais deputados para a con-ferência. [...]

Entende-se por este largo, mas não inútil discurso,como em nossas empresas, não tínhamos usado,antes deste tempo, a cõdução dos Terços militares;servindo-se todos aqueles anos as Armadas doReino, de gente colecticia; junta som~ete para u~a,ou outra ocasião; a qual, cessando se espalhava; demaneira, que jamais podíamos conservar, nem Ca-pitães, nem soldados velhos. Este incõveniente pro-curou se atalhasse, & atalhou, Dom António deAtaíde, sendo provido de General perpétuo, daArmada Portuguesa (como temos dito) porquelogo que se lhe conferio o cargo de ela, alcançouordem del Rei, para que em Portugal se levantasse,& fosse fixo na Armada um Terço de Infantarianatural; cujo primeiro Mestre de Campo, foi oAlmirante (tambem perpétuo) Dom Francisco deAlmeida, pessoa de grande suficiência, para maio-res ocupações, como já tivera passando à Índia; &despois quando lhe encarregaram os governos deMazagão, & de Ceita, donde por condição dost~epos, foi o último Português q~ a governou: masnão será o último dos Portugueses que a governem.Durou este Terço só, e em boa disciplina, até quecom a perda da Bahía, se entendeo era necessáriofazer maior esforço de gente, para sua restauração;pelo que resoluto o governo do Reino, sobrereclutar o antigo, mandou levantar novo Terço, comnome de: Terço do socorro (porq~ ao velho chamavam:da Armada) & cõ ânimo de que acabada a empresado Brasil, se reformasse: porque os Ministros Caste-lhanos, com algu~a estudada dissimulação, fomen-tavam nosso descuido; não lhe sendo intrinsica-mente desagradável, ver desarmados os Portugue-ses; já como preságos do sucesso de nossa liberdade,que insensivelmente lhes pruía nos corações: deque eu posso dar grandes provas, pelo muito tempode minha vida, que gastei na prática de aquelesMinistros, em guerra, & paz. [...]Agora parece, que neste lugar devo fazer mençãodas pessoas de calidade, & postos, q~ por aquelesnavios se embarcaram; não achando outra maisconveniente parte, para referi-las, nem sendo razão,

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DESCOBRIMENTOS DA ILHADA MADEIRA*

Anno 1420

EPANÁFORA AMOROSA

SEGUNDA

Escrita a um amigo

Amigo. Muitos tempos há que desejo aliviar o âni-mo, escrevendo alguma obra de mais divertimentoque as passadas; porque ele, oprimido de cuidadosgrandes, acurva como o ombro, ao peso da desi-gual carga. Até o próprio Atlante, a cujas forças afabulosa antiguidade confiou o mundo inteiro, seviu necessitado das robustas costas de Hércules,para que sobre elas descansasse ou pelo contráriocorriam perigo o mundo e o Atlante que o sustinha.Já sabeis, e os nossos, e os estranhos, como ao meugénio (bem ou mal) apetece este exercício da penae tinta; e que dos vários empregos que fiz, comminha escritura, mais repreensível pode ser a obraque a matéria. Provei as Histórias, as Poesias, asPolíticas, as Moralidades: em todas achei inconve-niente. E supondo que aos maiores vence a glóriaou o interesse, eu ignorando ambos estes afectos,confesso-vos que me acho medroso para Cronista,rude para Poeta, confuso para Filósofo, melancó-lico para Moral; mas para tudo me acho aindamenos que para me achar ocioso.Comecei nos anos passados a escrever algumasmemórias de sucessos notáveis de nossa nação, queforam mal escritos ou o não foram. Aqueles cujasinformações eu não pedisse ao estudo dos livros, esó de minha lembrança facilmente os recebesse;porque além de que faltando (como a mim mefaltam) o gosto e saúde, logo o estudo é molesto;haveis de saber, Amigo, que de ordinário vêm aesquecer no Mundo as cousas que nele trazíamos

mais presentes: a razão é que, por vê-las de contí-nuo circunstantes, nunca tememos que nos faltem,à maneira que da água ninguém faz tesouro, porser cousa, ainda que estimável, ordinária.Alguns discursos que vos digo, tenho acabado, eoutros perto do fim, nenhum da perfeição. Mashavendo (já há muitos anos) lido aquelas singularesRelações do Cardeal Bentivollo, tanto há que fizpropósito de o imitar com outras em nossa línguaPortuguesa. E quando cheguei a ler a fuga do Prín-cipe de Condé, e notei o vagar e galanteria comque um tão grave juízo se deteve a retratar os afectosdo amor humano, certifico-vos que me fez inveja,entendendo eu então de mim que, para semelhantesmatérias era mais conveniente a minha pena que ado Cardeal, posto que sábio, velho e religioso.Vendo-me agora nesta solidão, a cujo favor vimfugindo da justiça, ou da injustiça do povoado, mepus a discorrer vagarosamente sobre de que ma-neira eu poderia satisfazer aquela interior promessa,escrevendo a relação de algum sucesso grande quepertencesse a este Reino, procedido ou ilustradode afectos amorosos. Mas depois de larga volta dediscursos, me pareceu que nenhum era mais pro-porcionado ao que eu desejava que o notável des-cobrimento da nossa celebrada Ilha da Madeira;em o qual (como vereis nesta Relação que delevos ofereço) se acham todas as várias acções quefizeram intrincadas, e por isso agradáveis, as histó-rias do Mundo, ou com adorno retórico ou sin-geleza histórica se relatam, na erudição profanados Gregos e Latinos.Resta acomodar-vos o presente. Porém, qual dosque vos conhecem duvidará que, nos casos deAmor e de ousadia, não há entre nós outro maisprático? Assim vos estimam, galante, as damas,como os inimigos vos confessam valoroso; porquenão sem propósito o vosso Cupido lá foi ser filhode Marte: nem se ignora que costumam ser Martestodos os filhos de Cupido. Filhos chamarei doAmor (por esta razão Martes) aqueles cuidadostão valentes, aquelas resoluções tão deliberadas

* Epanáfora Amorosa [...]. Versão de Maria Alberta Menéres.Lisboa: Expo 98, 1998.

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contra o maior perigo; ou então chamar-lhes-eiHércules, que por jogo no berço se ensaiavaespedaçando serpentes. Assim, um amoroso pen-samento já ao primeiro dia se esforça a lutar comimpossíveis e se aveza a vencê-los.Pois se por parte do amor, vejo em vós tantas afini-dades com este meu assunto, quantas mais podereiachar, discorrendo pelos outros acontecimentosde que é composto? Porque se por viagens, pornaufrágios, peregrinações, perigos e tragédias o vouvendo, de todas essas acções a vossa vida é umretrato. Navegastes, moço, a climas inclementes.Combatestes, na menor idade, com varonil esforço.As tempestades do Oceano deixaram em vossoânimo, não receio, mas disciplina. Os perigos etragédias militares, antecipando-se em curso aotempo, e em número aos anos, só vos servirampara polir, não contrastar a fortaleza. Pois na pere-grinação, quem vos igualou? Ainda os próprioscompanheiros que vos imitaram na sorte, na cons-tância com que a sofrestes, vos puderam emular masnão competir, vos puderam competir mas nãoexceder. Quando os mancebos ilustres, vossosiguais, pisavam em Portugal os estrados do Paçoou o mimo dos jardins de Lisboa, com mole passeio,vós então sem abrigo, quanto mais adorno, íeisatravessando os incógnitos desertos de nossa bár-bara América: ásperos até para as feras que antes osrecebem por pátria que morada. Lá vos fizestesdigno daquele nome que, para não perderdes, soisobrigado a conservar com obras árduas; do qual,nem a inveja nem a ingratidão, quando se vos opo-nham, consintais que vos despojem. Mas se vosvimos madrugar ao trabalho, também vimos queo aplauso não foi preguiçoso para vós. De aí veioque os postos grandes e as empresas estimadas cor-ressem para vosso cuidado, antes que vós para asua pretensão. Desta maneira costuma o Sol tocarprimeiro os montes mais altos, sem que se queixemos vales de que depois lhes amanheça. [...]

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B I B L I O G R A F I A

S U M Á R I A

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Bibliografia

OBRAS de Francisco Manuel de Melo(1608-1666)

Fontes usadas na selecção de poemas:

Fenix Renascida. Vol. V. (http://purl.pt/261)

Obras Métricas de Don Francisco Manuel.1 . EnLéon de Francia: Por Horacio Boessat, y GeorgeRemeus, 1665. Com Licencia de los Superiores.Leitura feita a partir de microfilme.

Alguns dos poemas de Obras Métricas foram transcritos apartir da selecção feita por Maria Lucília Gonçalves Piresem Poetas do Período Barroco. Apres. crítica, sel., notas e suges-tões para análise literária de Maria Lucília Gonçalves Pires.Lisboa: Comunicação, 1985. Outros, escolhidos de As Segun-das Três Musas, a partir da Antologia elaborada por PinaMartins: D. Francisco Manuel de Melo: Poesias Escolhidas. Pref.,sel., notas, tábua de concordância e glossário por José V. dePina Martins. Lisboa: Ed. Verbo, 1969.

Auto do Fidalgo Aprendiz (escrito em 1646). Textoestabelecido, introdução e notas de AntónioCorrêa de Oliveira. 6ª ed.; Lisboa: Moraes Ed.,1979.

Apólogos Dialogais. (1650; publ. 1721). Vol. I: OsRelógios Falantes, A Visita das Fontes. Introdução,Fixação de Texto e notas de Pedro Serra. Braga-Coimbra: Angelus Novus, 1998; Vol. II: O Escri-tório Avarento, O Hospital das Letras. Introdução,Fixação de Texto e Notas de Pedro Serra. Braga-Coimbra: Angelus Novus, 1999.

Edição anotada: Le Dialogue Hospital das Letras de D. F. M.de Melo. Texte établi d’après l’édition princeps et lesmanuscrits variantes et notes. Vol. III. Paris: CCP/FCG,1970.

1 Nesta obra estão reunidos quase todos os poemas dasdiversas colectâneas de D. Francisco Manuel de Melo.

Carta de Guia de Casados. (1651). Porto: Campodas Letras, 2003.

Cartas Familiares. (1664) Edição Completa. Pref.e notas de Mar ia da Conceição MoraisSarmento Lisboa: CM-IN, 1981.

1.ª edição: Primeira Parte das Cartas Familiares de D. FranciscoManuel Escritas a Várias Pessoas sobre Assuntos Diversos. Reco-lhidas e Publicadas em Cinco centúrias. Por António Luizde Azevedo […]. Roma: 1664.

Epanáforas de Vária História Portuguesa. (1660) –“Naufrágio da Armada Portuguesa em França(1627). Epanáfora Trágica. Segunda”. Introd. eapêndice documental por Joel Serrão. Lisboa:IN-CM, 1977.

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