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HISTÓRIA E FICÇÃO NO TEMPO HUMANO. BRUNA TAVARES CAMARGOS És um senhor tão bonito Quanto a cara do meu filho Tempo Tempo Tempo Tempo Vou te fazer um pedido Tempo Tempo Tempo Tempo Compositor de destinos Tambor de todos os ritmos Tempo Tempo Tempo Tempo Entro num acordo contigo Tempo Tempo Tempo Tempo Por seres tão inventivo E pareceres contínuo Tempo Tempo Tempo Tempo És um dos deuses mais lindos Tempo Tempo Tempo Tempo (..) (VELOSO, CAETANO, 1979). Resumo: A sensibilidade humana relativa ao tempoestá presente em distintas reflexões e suportes. Como no trecho citado acima da música “Oração ao tempo” (1979) do compositor Caetano Veloso, que através da métrica, da rima e do estilo poético, declara sua inquietude e percepção a cerca deste. O enigma entre a relação das jurisdições da temporalidade tem sido objeto de reflexão não só da poética, como de filósofos, antropólogos, cientistas políticos e historiadores, compondo inúmeras abordagens sobre a tessitura do tempo, com uma diversidade de enfoques. Nesta breve análise, iremos nos ater as reflexões acerca do tempo da história e da ficção no tempo humano, examinando em particular, as reflexões de três autores - Paul Ricoeur, em Tempo e Narrativa - Tomo III (1997), especialmente o que concerne ao capítulo “O entrecruzamento da História e da Ficção”; Reinhart Koselleck na coletânea de ensaios Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos (1979) e Giorgio Agamben, em O que é o contemporâneo? E outros ensaios (2009). Mestranda em História Social da Cultura, PUC-Rio. Graduada em História, UERJ.

História e Ficção No Tempo Humano

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diálogo entre a História e a Filosofia na concepção do tempo e sua ficcionalização através da literatura.

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  • HISTRIA E FICO NO TEMPO HUMANO.

    BRUNA TAVARES CAMARGOS

    s um senhor to bonito

    Quanto a cara do meu filho

    Tempo Tempo Tempo Tempo

    Vou te fazer um pedido

    Tempo Tempo Tempo Tempo

    Compositor de destinos

    Tambor de todos os ritmos

    Tempo Tempo Tempo Tempo

    Entro num acordo contigo

    Tempo Tempo Tempo Tempo

    Por seres to inventivo

    E pareceres contnuo

    Tempo Tempo Tempo Tempo

    s um dos deuses mais lindos

    Tempo Tempo Tempo Tempo (..)

    (VELOSO, CAETANO, 1979).

    Resumo:

    A sensibilidade humana relativa ao tempo est presente em distintas reflexes e

    suportes. Como no trecho citado acima da msica Orao ao tempo (1979) do compositor

    Caetano Veloso, que atravs da mtrica, da rima e do estilo potico, declara sua inquietude e

    percepo a cerca deste. O enigma entre a relao das jurisdies da temporalidade tem sido

    objeto de reflexo no s da potica, como de filsofos, antroplogos, cientistas polticos e

    historiadores, compondo inmeras abordagens sobre a tessitura do tempo, com uma

    diversidade de enfoques.

    Nesta breve anlise, iremos nos ater as reflexes acerca do tempo da histria e da

    fico no tempo humano, examinando em particular, as reflexes de trs autores - Paul

    Ricoeur, em Tempo e Narrativa - Tomo III (1997), especialmente o que concerne ao captulo

    O entrecruzamento da Histria e da Fico; Reinhart Koselleck na coletnea de ensaios

    Futuro passado: contribuio semntica dos tempos histricos (1979) e Giorgio Agamben,

    em O que o contemporneo? E outros ensaios (2009).

    Mestranda em Histria Social da Cultura, PUC-Rio. Graduada em Histria, UERJ.

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    As reflexes acerca do tempo no so privilgios da contemporaneidade. Na

    Antiguidade, Aristteles (384 - 322 a.C.) e Santo Agostinho (354 - 430 d.C.), destinavam ao

    tempo grandes reflexes, que so utilizadas como ponto de partida dos dilogos para filsofos

    contemporneos como Heidegger (1889 - 1976) e Paul Ricoeur (1913 - 2005). O enigma do

    tempo e de sua adequao histria humana tem de fato atravessado os sculos,

    acompanhando a histria da filosofia e a historiografia.

    Diante da formulao de Santo Agostinho Se ningum me pergunta, sei o que ; mas

    se quero explic-lo a quem me pergunta, no sei:

    No entanto, digo com segurana que sei que, se nada passasse, no existiria o

    tempo passado, e, se nada adviesse, no existiria o tempo futuro, e, se nada

    existisse, no existiria o tempo presente. De que modo existe, pois, esses dois

    tempos, o passado e o futuro, uma vez que, por um lado, o passado j no existe,

    por outro, o futuro ainda no existe? Quanto ao presente, se fosse sempre presente,

    e no passasse a passado, j no seria tempo, mas eternidade. Logo, se o presente,

    para ser tempo, s passa a existir porque se torna passado, como que dizemos que

    existe tambm este, cuja causa de existir aquela porque no existir, ou seja, no

    podemos dizer com verdade que o tempo existe seno porque ele tende para o no

    existir? (Santo Agostinho, Confisses, Livro XI, item 14.).

    Paul Ricoeur ir formular sua hermenutica baseada nas vrias interpretaes sobre o

    tempo, partindo do dilogo de Santo Agostinho para Aristteles. Cabe-nos elucidar,

    sobretudo, dois conceitos desta hermenutica: primeiro, o conceito de experincia que no se

    reduz a empiria ou a mera subjetividade; segundo, o conceito de tempo, o que o tempo?

    Espcie de tratado hermenutico da relao entre tempo e narrativa, o filosofo no vai

    formular uma clara resposta a esta questo, mas dir que vivemos o tempo, e no no tempo,

    sua riqueza est, talvez, na adoo do ato de leitura como o momento interpretativo,

    caracterizador tanto das narrativas histricas, quanto das ficcionais. Na diviso em trs tomos,

    Ricoeur oferece ao leitor reflexes mltiplas acerca do tempo, dentre elas, a proximidade

    entre as intenes do historiador e as do romancista quanto ao ato de narrar. Para o filosofo

    a temporalidade no se deixa dizer no discurso direto de uma fenomenologia, mas requer a

    mediao do discurso indireto da narrao, e a refigurao efetiva do tempo, tornado assim

    tempo humano, pelo entrecruzamento da histria e da fico (RICOEUR, 1997, p.417).

    Todavia, necessrio trazermos algumas reflexes do campo historiogrfico sobre o

    tempo, para nos auxiliar na anlise relacionada ao tempo humano formulada por Paul Ricoeur,

    antes de prosseguirmos com o entrecruzamento da histria e da fico. Reinhart Koselleck

    figura entre os autores que mais forneceram um instrumental terico para compreender esta

    questo no campo historiogrfico.

  • 3

    Na notvel obra Futuro passado: contribuio semntica dos tempos histricos (1979),

    Koselleck, desenvolveu uma contribuio significativa para a Teoria da Histria, com o

    refinamento perceptivo da tenso estabelecida entre o Passado, Presente e Futuro ou entre o

    espao de experincia e o horizonte de expectativas. Conforme assinalado pelo historiador

    Jos DAssuno Barros:

    Cada presente no apenas reconstri o passado a partir de problematizaes

    geradas na sua atualidade (...) mas tambm de que cada presente ressignifica tanto

    o passado (referido na conceituao de Koselleck como campo da experincia) como o futuro (referido conceitualmente como horizonte de expectativas). Cada presente conceberia ainda de uma nova maneira a relao entre futuro e passado.

    (BARROS, 2010, p. 66).

    A experincia refere-se ao passado, que somente pode ser materializado no presente,

    isso ocorre de mltiplas maneiras: memrias, vestgios, fontes histricas. As expectativas

    estariam atreladas ao futuro, correspondendo ao universo de sensaes e antecipaes do

    devir, inserindo-se em tudo aquilo que em determinado presente visa ao futuro, sendo

    atravessado pelas mais diversas sensaes. Tanto o espao de experincia como o horizonte

    de expectativas se realizam no presente, segundo Koselleck, constituindo, portanto o Passado

    Presente e o Futuro Presente, essas duas categorias entrelaam o futuro e o passado.

    Atravs das categorias da experincia e da expectativa, passado, presente e futuro podem

    imaginariamente se alterar, contrair ou se expandir conforme cada poca ou sociedade,

    modificando-se tambm a maneira como so pensadas e sentidas as relaes entre eles

    (BARROS, 2010, p. 67).

    A noo de imaginrio, tambm requerida por Paul Ricoeur como uma operao

    central na refigurao do tempo, partindo dos pressupostos de Hayden White (1973), sobre a

    representncia do passado, e de R. Ingarden (1931), sobre a teoria da leitura, Ricoeur vai

    assinalar que mesmo dilaceradas por aporias, histria e fico trabalham com o ato de leitura

    refigurando o tempo. O ato de ler funcionaria como o momento efetivo, visto que tanto na

    produo historiogrfica, quanto na literatura, ele o responsvel pela efetuao do texto, ou

    seja, pela concretizao de uma intencionalidade que tem por base a refigurao do tempo,

    comum histria e fico. Essa concretizao corresponde, na teoria narrativa, ao fenmeno

    do ver como, pelo qual, em A Metfora Viva (2000) foi caracterizado como a referncia

    metafrica, essa concretizao recproca assinala o triunfo da noo de figura, na forma do

    figurar-se que.

  • 4

    Na ficcionalizao da histria, o lugar do imaginrio assinalado no somente sobre o

    papel da imaginao na narrativa histrica no plano da configurao, mas tambm o papel do

    imaginrio no encarar do passado tal como foi, j que nas narrativas histricas, o imaginrio

    atrelado s consideraes do ter sido, o que, para o autor, no significa em nada menosprezar

    o tom realista destas pesquisas, mas aceitar certa configurao do tempo nas consideraes

    histricas. Para Paul Ricoeur a histria reinscreve o tempo da narrativa no tempo do universo.

    A utilizao de alguns conectores especficos torna pensvel e manejvel o tempo histrico,

    aproximando o tempo do mundo e tempo vivido.

    Sempre possvel estende a lembrana, pela cadeia das memrias ancestrais,

    remontar o tempo, prolongando pela imaginao esse movimento regressivo; assim

    como possvel a cada um situar a sua prpria temporalidade na sequncia das

    geraes, com o auxlio mais ou menos obrigatrio do tempo do calendrio.

    (RICOEUR. Paul, 1997, p. 319-320).

    Em O que o contemporneo? E outros ensaios (2009), Giorgio Agamben, vai

    empreender uma reflexo sobre as aporias do tempo, marcando as conexes entre passado,

    presente e futuro, como meio de apontar para a relevncia do prprio pensamento na cultura

    contempornea. O no aprisionamento do tempo, a busca do ser contemporneo, capaz de

    oscilar entre passado, presente e futuro; ver na sombra do presente e interpretar/interpenetrar

    o que j se passou, voltando a um presente mesmo naquele que jamais estivemos; pensar o

    por vir, ainda que venha de modo inesperado, e principalmente experienciar intensamente o

    que se vive no instante presente.

    Partindo de um paradoxo herdado da Segunda Considerao Intempestiva (1844-

    1900), de Nietzsche, Agamben utiliza a alegoria da vertebra quebrada do tempo, e das

    fulguraes entre as luzes e as sombras, para retratar o ser contemporneo, o filosofo italiano

    vai propor o confronto do homem com o seu tempo, inserindo um deslocamento espao-

    temporal entre o homem e o tempo. O contemporneo inatual, ou seja, aquilo que se situa

    fora do espao e do tempo entregues ao ser humano pelas circunstncias. Os textos que

    compe a obra de Agamben datam de 2006, 2007 e 2008, com traduo em portugus em

    2009, reunindo num nico livro alguns ensaios que investigam a questo do tempo de uma

    perspectiva moral e poltica.

    Ancorado na poesia de Osip Mandelstam, de 1923, intitulada O sculo 1, Agamben

    percorre o caminho figurativo do poema, trazendo a reflexo no sobre o sculo, mas sobre a

    relao entre o poeta e o seu tempo, ou seja, entre o homem e o seu tempo e o tempo histrico

    1 A palavra russa vek significa tambm poca. Podem ser encontradas verses em portugus com o ttulo Era.

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    coletivo. A contemporaneidade uma singular relao com o prprio tempo (AGAMBEN,

    2010, p.59), sem que se mantenha sobre a poca um olhar fixo, mas sempre distncia, para

    poder sobre ela se verter, embora j numa dissociao anacrnica, entrevendo sua ntima

    obscuridade (AGAMBEN, 2010, p.64).

    O escuro do tempo, a no ausncia, tudo aquilo que no somos capazes de perceber em

    nosso prprio tempo. Deixar-se interpelar pelo presente para ver nas trevas, eis a necessidade

    de uma relao singular com o tempo, de um distanciamento, no o distanciamento cientfico,

    mas o distanciamento produzido pelo estranhamento do presente, pelo sentido do no

    familiar. Por exemplo, quando Nietzsche se coloca contra o historicismo, ele no est se

    posicionando contra a histria, mas sim contra o consenso temporal de sua poca, desta forma

    ao ver no escuro e na singularidade de seu tempo, Nietzsche se aproxima do seu prprio

    tempo, sendo contemporneo a ele.

    Agamben no desenvolvimento de sua anlise combina pilares estticos, com a

    interpretao da relevncia das fraturas do tempo, interpenetrando a sensibilidade da potica,

    com a dupla ressignificao da imagem: descontinuidades e re-ligamentos. Sentidos criados

    pelo tempo no prisma do encontro entre o arcaico e o moderno, o passado retomado no

    presente, transforma-se em um passado presente (conceito amplamente analisado por

    koselleck) e no presente nos torna contemporneo da antiguidade, ainda assim, marcando a

    diferena entre os tempos. Segundo Agamben a riqueza est em ser inatual no presente,

    perceber a articulao das temporalidades e suas fissuras, ou como chamar Silviano Santiago

    (2013), o entrelugar onde se relacionam as fraes do tempo expostas por ele de modo

    inexorvel.

    Oferecido pela lgica da moda, o intervalo cria a heterogeneidade na dimenso

    temporal e serve para que o atual mantenha com o passado e com o futuro uma

    relao particular, dita por Agamben como sendo a que proposta pela citao. Ali, no entrelugar, o contemporneo pode revocar e revitalizar, pode reeditorar

    tudo aquilo que tinha sido descartado por ter sido declarado morto. (SILVIANO,

    2013, p.1).

    Nesse percurso onde o tempo no se deixa fixar, as mediaes culturais manifestam-se

    como suporte ou categorias que permitem ao homem o jogo com as temporalidades. Essa

    complexa reconfigurao do tempo pode ser percebida tanto na pesquisa histrica como na

    literatura. Em entrevista ao programa de TV Roda Viva 2, Mario Vargas Llosa nos fornece

    substncia para pensar este entrecruzamento da Histria e da Fico inscritos no tempo.

    Questionado sobre o tipo de romance produzido por ele, que se aproximaria de um romance

    2 Programa exibido em 13/05/2013, no canal TV Cultura. Na ocasio Mario Vargas Llosa, esteve no Brasil para

    participar do ciclo de palestras Fronteiras do Pensamento.

  • 6

    do tipo realista tradicional, e sua eventual decadncia frente s construes do romance na

    contemporaneidade, que estariam ligados as experincias da linguagem e rupturas das formas,

    o autor peruano, ganhador do Nobel de Literatura de 2010, vai dizer:

    [...] O romance um gnero que representa a experincia do indivduo imerso

    numa sociedade. Essa a grande tradio do romance, todos os grandes romances

    tm essa caracterstica, Don Quixote, Guerra e Paz, Dickens, Flaubert, Tolstoi,

    Faulkner, para citar um brasileiro, Guimares Rosa [...] O romance um jogo de

    competir com Deus. Criar uma realidade intensa, tambm extensa, e mostrar quem

    o indivduo dentro do movimento da sociedade numa poca estabelecida. Ao

    mesmo tempo, a viso da realidade no romance muito mais complexa do que a

    viso sociolgica, ontolgica ou etnolgica, porque agrega uma dimenso muito

    subjetiva, onde no interessa tanto o vivido, sim o sonhado, o imaginado ou

    desejado que se incorpora ao mundo real, para nos dar uma viso mais completa

    sobre a verdade da vida. [...] Ns temos uma grande limitao que ter uma vida,

    mas a capacidade de inventar e sonhar muito maior. E isso cria uma grande

    frustrao no ser humano, e acho que a fico preenche esse vazio. [...] E nesse

    sentido d pra dizer que o romance tem sido uma extraordinria locomotora do

    progresso humano. Porque nos fez sonhar mundos diferentes, melhores daquele que

    temos, e criou em ns essa insatisfao. Isso o ponto de partida do progresso e da

    mudana. (VARGAS LLOSA, 2013, traduo nossa).

    A narrativa compreende o tempo de sua escrita, exercitando o ser na

    contemporaneidade, como proposto por Agamben. O tempo se ergue como monumento,

    restabelecendo a partilha do sensvel 3, a narrativa sempre histrica no sentido de

    acontecer no espao e no tempo, permitindo a compreenso da nossa prpria historicidade, ou

    seja, de seres eventuais que passam pela terra num certo tempo e habitam certo espao, isto ,

    a condio humana.

    no fenmeno do rastro que culmina o carter imaginrio dos conectores que marcam

    a instaurao do tempo histrico. O rastro possui uma estrutura mista como efeito-signo que

    realiza a mediao imaginria, numa complexa estrutura de interferncias de tipo causal e

    atividades de interpretao ligadas significncia como coisa presente de uma coisa passada.

    Segundo Paul Ricoeur, o rastro nesse sentido um fenmeno mais radical do que o

    documento ou o arquivo, porm o processamento dos arquivos e documentos que faz do

    rastro um operador com efeito do tempo histrico. O trabalho de pensamento, de interpretao

    que acompanha a investigao de pistas de um passado, atravs de um monumento, uma pea

    de museu, uma runa, atestam o rastro e o carter imaginrio das atividades que o mediatizam

    e o esquematizam, esse valor de rastro ou efeito-signo somente lhe atribudo ao nos

    afigurar o contexto de vida, o ambiente social e cultural. Por assim dizer o imaginrio atua

    3 Conceito empregado por Jacques Rancire para xxxxxxx

  • 7

    como mediador do tempo narrado, servidor da representncia, a tropologia se torna o

    imaginrio da representncia.

    No fenmeno do rastro e na sua ressignificao do tempo histrico, vamos de encontro

    ao espao de experincia e horizonte de expectativa de Koselleck, que se tornam presente a

    partir da mediao das conscincias dos homens em determinadas pocas. Nessa direo est

    resposta de Vargas Llosa a pergunta que lhe feita sobre o romance realista, o autor atribui

    a fico tanto a capacidade de representncia de um indivduo imerso numa sociedade, como

    a inveno subjetiva das vidas que no foram vividas, o alheio, presente na irrealizao do

    real. Ricoeur vai citar Dilthey em ltima anlise sobre o tema central de sua sociologia ao

    dizer que toda inteligncia histrica se enraza na capacidade que um sujeito tem de se

    transportar para uma vida psquica alheia (RICOEUR, 1997, P.321).

    O homem para Ricoeur s pode conhecer-se atravs de suas expresses, em tudo

    aquilo que ele cria do ponto de vista cultural, no jogo continuo e sempre inacabado da sua

    figurao (Mimeses I), da sua refigurao (Mimeses II) e a sua reconfigurao (Mimeses III).

    Ao admitir que a histria imita em sua escrita os tipos de armao da intriga

    herdados da tradio literria, e, ao atrelar esses gneros literrios aos tropos da tradio

    retrica, Paul Ricoeur no enfraquece o projeto de representncia da histria, mas atribui a

    eles a contribuio para a realizao da prpria histria.

    Podemos ler um livro de histria como um romance. Com isso, entramos no pacto

    de leitura que institui a relao cmplice entre a voz narrativa e o leitor implicado.

    Em virtude desse pacto, o leitor abaixa a guarda. De bom grado suspende sua

    desconfiana. Confia. Est pronto para conceder ao historiador o direito

    exorbitante de conhecer as almas. (RICOEUR, 1997, p. 323).

    A narrativa de fico tambm imita de certa maneira, a narrativa histrica. O como

    se passado essencial significao-narrativa. As narrativas so contadas num tempo

    passado, a ideia de que a narrativa esteja s voltas com algo como um passado fictcio, o

    tempo passado na narrativa, seria ento, um quase passado, os acontecimentos contados

    numa narrativa de fico so fatos passados para a voz narrativa, que podemos considerar

    como idnticas ao autor implicado, ou seja, um disfarce fictcio do autor real. H um pacto na

    leitura entre o leitor e o autor a crena de que os acontecimentos relatados pela voz narrativa

    pertencem ao passado dessa voz (RICOEUR, 1997, p. 329). Segundo Ricoeur, pode-se dizer

    desta forma que a fico quase histrica, tanto quanto a histria quase fictcia.

  • 8

    A histria quase fictcia, to logo a quase-presena dos acontecimentos colocados

    diante dos olhos do leitor por uma narrativa animada supre, por sua intuitividade, sua vivacidade, o carter esquivo da passadidade do passado, que os

    paradoxos da representncia ilustram. A narrativa de fico quase histrica, na

    medida em que os acontecimentos irreais que ela relata so fatos passados para a

    voz narrativa que se dirige ao leitor; assim que eles se parecem com

    acontecimentos passados e a fico se parece com a histria. (RICOEUR, 1997, p.

    329).

    O entrecruzamento entre a histria e a fico na refigurao do tempo, baseia-se,

    nessa sobreposio recproca, quando o momento quase histrico da fico troca de lugar

    com o momento quase fictcio da histria.

    Desse entrecruzamento, dessa sobreposio recproca, dessa troca de lugares,

    procede o que se convencionou chamar de tempo humano, em que se conjugam a

    representncia do passado pela histria e as variaes imaginativas da fico,

    sobre o pano de fundo das aporias da fenomenologia do tempo. (RICOEUR, 1997,

    p. 332).

    Desta forma, Ricoeur de forma esquemtica configura a sua hiptese de trabalho, no qual

    considera a narrativa como a guardi do tempo, na medida em que s haveria tempo pensado

    quando narrado.

    A aporia da temporalidade persiste em sua dialtica, o tempo narrado como uma

    ponte lanada sobre a brecha que a especulao no cessa de abrir entre o tempo

    fenomenolgico e o tempo cosmolgico(RICOEUR, 1997, p. 421). Essa aporia acaba por

    corresponder ocultao mtua das duas perspectivas na qual a potica da narrativa de

    Ricoeur ambiciona responder. A atividade mimtica da narrativa pode ser esquematicamente

    caracterizada pela inveno de um terceiro-tempo, que intencionaria uma rplica ocultao

    recproca das duas perspectivas: fenomenolgica e cosmolgica, este terceiro-tempo

    surgiria a partir do entrecruzamento da histria e da fico.

    Este terceiro-tempo fruto do entrecruzamento da histria e da fico atribudo a

    um indivduo ou a uma comunidade de uma identidade especifica, que Ricoeur vai chamar de

    identidade narrativa 4. Dizer a identidade responder questo: Quem fez tal ao? Quem

    o seu agente, o seu autor? Esta questo primeiramente se responde identificando o algum,

    designando-o pelo nome prprio, na sua sustentabilidade a resposta da identidade somente se

    justifica de forma narrativa. Responder questo quem, como dissera Hannah Arendt (1958)

    contar a histria de uma vida. A histria narrada responde ao quem da ao, a identidade deste

    , portanto uma identidade narrativa. (RICOEUR, 1997, p. 424).

    4 O termo identidade tomado por Paul Ricoeur no sentido de uma categoria da prtica.

  • 9

    Sem o auxlio da narrao, o problema da identidade pessoal est, com efeito,

    fadado a uma antinomia sem soluo: ou se coloca um sujeito idntico a si mesmo

    na diversidade de seus estados, ou se considera na esteira de Hume ou de Nietzsche,

    que esse sujeito idntico somente uma iluso substancialista, cuja eliminao s

    revela um puro diverso de cognies, de emoes e de volies. Desaparece o

    dilema de substituirmos a identidade compreendida no sentido de um mesmo (idem)

    pela identidade compreendida no sentido de um si mesmo (ipse); a diferena entre

    idem e ipse no seno a diferena entre uma identidade substancial ou formal e a

    identidade narrativa. A ipseidade pode escapar ao dilema do Mesmo e do Outro, na

    medida em que sua identidade se baseia numa estrutura temporal conforme ao

    modelo de identidade dinmica oriunda da composio potica de um texto

    narrativo. O si mesmo pode, assim, ser dito refigurado pela aplicao reflexiva das

    configuraes narrativas. Ao contrrio da identidade abstrata do mesmo, a

    identidade narrativa, constitutiva da ipseidade, pode incluir a mudana, a

    mutabilidade, na coeso de uma vida. (RICOEUR. Paul, 1997, p424-425).

    A histria de uma vida se constitui por uma sequncia de retificaes aplicadas a narrativas

    anteriores, da mesma forma como a histria de um povo ou de uma instituio. A histria

    sempre procede da histria. Um sujeito reconhece-se na histria que conta a si mesmo sobre si

    mesmo. O sujeito aparece como constitudo ao mesmo tempo como leitor e como escritor da

    sua prpria vida, a histria de uma vida no se detm a ser refigurada por todas as histrias

    verdicas ou fictcias que um sujeito conta sobre si mesmo. Essa refigurao faz da prpria

    vida um tecido de histrias narradas.

    Haver, perguntvamos, uma experincia que j no seja o fruto da atividade

    narrativa? No final de nossa investigao sobre a refigurao do tempo pela

    narrativa, podemos afirmar sem medo que esse crculo um crculo saudvel: a

    primeira relao mimtica s remete, no caso do indivduo, semntica do desejo,

    a qual no comporta ainda seno os traos pr-narrativos ligados demanda

    constitutiva do desejo humano; a terceira relao mimtica define-se pela

    identidade narrativa de um indivduo ou de um povo, oriunda da retificao sem fim

    de uma narrativa anterior por uma narrativa ulterior, e da cadeia de refiguraes

    que da resulta. Numa palavra, a identidade narrativa a soluo potica do

    crculo hermenutico. (RICOEUR. Paul, 1997, p. 427).

    Mas h limites na identidade narrativa, em primeiro lugar ela no uma identidade

    estvel e sem falhas, como sinaliza Paul Ricoeur, assim como possvel compor variadas

    intrigas acerca dos mesmos incidentes, os quais se transformam em outros acontecimentos,

    tambm possvel tramar sobre sua prpria vida intrigas diferentes ou opostas. Nesse sentido

    a identidade narrativa no se detm em fazer e se desfazer, tornando-se um problema no

    mesmo passo que uma soluo. Em segundo lugar, a identidade narrativa no esgota a

    questo da ipseidade do sujeito (sujeito entendido como individuo ou uma comunidade de

    indivduos), a prtica da narrativa consiste numa experincia de pensamento atravs da qual

    nos exercitamos a habitar mundos estranhos a ns mesmos.

  • 10

    De qualquer forma, cabe ao leitor, tornado novamente agente, iniciador de ao,

    escolher entre as mltiplas propostas de correo tica veiculadas pela leitura.

    nesse ponto que a noo de identidade narrativa encontra seu limite e deve unir-se

    s componentes no-narrativas da formao do sujeito que age. (RICOEUR, 1997,

    p. 429).

    Abre-se ento o campo de outra aporia da temporalidade, a totalidade e a totalizao, a

    primeira nascente de uma no congruncia entre as perspectivas sobre o tempo da

    fenomenologia e a da cosmologia, a segunda nasce da dissociao do tempo: futuro, passado e

    presente, a despeito da noo do tempo entendido como um singular coletivo. Esse papel

    mediador da narrativa se torna evidente no que diz respeito transmisso das tradies, que

    so essencialmente narrativas, entretanto o lao entre horizonte de expectativa e narrativa

    menos direto. Ele no , porm inexistente, podemos considerar as antecipaes do futuro

    como retrospeces antecipadas, por via das propriedades da voz narrativa de se estabelecer

    em qualquer ponto do tempo, se tornando um quase presente e olhando para este

    observatrio como quase passado o futuro de nosso presente, ou seja, um intercmbio entre

    por -vir, ter-sido e presente, no sentido de uma totalidade que se faz e se desfaz.

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