História, religião e religiosidade

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    Revista Brasileira de Histria das Religies Ano I, no. 1 Dossi Identidades Religiosas e Histria.

    HISTRIA, RELIGIO E RELIGIOSIDADE.Ivan Ap. Manoel

    A abordagem das questes propostas pelo tema uma tarefa que exige,preliminarmente, um estabelecimento de conceitos operacionais e normativos quepermitam o entendimento razoavelmente seguro, ou menos problemtico, desseuniverso.

    Religio e religiosidade so produes humanas situadas na esfera da cultura, ouda superestrutura, se quiserem; so histricas, portanto, mas que por vezes sointerpretadas como a - histricas e, alm disso, se propem elas mesmas, estabeleceremum conceito e uma filosofia da histria.

    A complicar ainda mais o trabalho, sabemos que so mltiplas e multifacetadasas conceituaes existentes sobre religio, religiosidade e histria, de modo que necessrio, digamos, desbastar um pouco esse terreno para que possamos transitarmelhor por ele.

    O que podemos entender por histria? Pergunta aparentemente despropositadaaps tantos sculos de estudos sobre a histria humana.

    Deixa, entretanto, de ser absurda quando se verifica que, no mundo ocidental,isto , aquela parte da humanidade diretamente amoldada pelo eurocentrismo, so vriasas interpretaes elaboradas.

    Entretanto, a multiplicidade de interpretaes elaboradas no muno ocidentalapresentam um trao de unio, um elo ligando-as de algum modo. Iluministas,marxistas, positivistas, enfim, as racionalidades europias da passagem do sculo XVIIIpara o XIX em diante, das quais derivaram outras vertentes, tais como historicismo,

    culturalismo, existencialismo, etc. todas elas estabeleceram uma interpretao dahistria lastreada na certeza de que ela , foi e sempre ser uma produo daracionalidade e da ao humana.

    Em outros termos, a histria humana produto da ao humana, sem ainterferncia de nenhuma fora transcendente, isto , situada fora do muno fsico; ahistria, portanto, seria sempre imanente, conseqentemente sempre racional,inteligvel, um processo explicvel por mtodos e procedimentos apropriados, um devirperfeitamente cognoscvel e, em alguns casos, como no marxismo, previsvel.

    Sou tendente a concordar com as linhas gerais dessa forma de se conceber ahistria. Parece-me que, sem dvida alguma, a histria humana um processoestritamente humano. Cabe, entretanto, perguntar: processo de qu?

    Entendo que a histria o processo humano de sua autoconstruo, o longocaminho que trouxe o homem da condio de um gnero que se diferenciou dentro daordem dos primatas at nanotecnologia e exploraes espaciais.

    Uma objeo inicial a essa forma de se colocar o problema diz respeito noevoluo moral da humanidade que, no obstante a evoluo cientfica e tecnolgicacontinua a agir de modo semelhante no transcurso da histria, cometendo os mesmoscrimes e atrocidades, incluindo-se o genocdio, sofisticando-os conforme o elenco dosrecursos tecnolgicos disponveis.

    Det de Histria- FHDSS Unesp, Campus de Franca

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    exatamente nesse domnio que os conceitos racionalistas acabam por sedistanciarem e se diferenciarem dos conceitos religiosos ou derivados das formasreligiosas de se conceber a histria.

    Por religio entendo o conjunto de doutrinas e prticas institucionalizadas, cujoobjeto e objetivo fazer a ponte de ligao entre o sagrado e o profano, o caminho dereaproximao entre criatura e criador, o Homem e Deus. No por acaso, os sumossacerdotes da maioria das igrejas, tambm so denominados Sumos Pontfices, osSupremos Construtores da Ponte Sagrada.

    evidente que essa conceituao se refere ao campo religioso monotesta domundo ocidental no me atreveria adentrar sequer o Oriente Mdio, por no conhecera religio islmica o suficiente, quanto mais o Extremo Oriente e as religies africanas.Assim, me restrinjo ao cristianismo e alguns tpicos do Antigo Testamento, o que jno pouca coisa.

    No mundo ocidental, no Brasil, particularmente, o predomnio religioso seencontra concentrado nas igrejas crists, a Catlica Romana, a Metodista, Presbiteriana,Batista, etc. e nas derivadas do protestantismo histrico, vulgarmente denominadasevanglicas, de carter pentecostal algumas delas, como a Congregao Crist noBrasil, e assim outras mais.

    Essas igrejas se constituram historicamente como o canal de manifestao dareligiosidade; entretanto, devemos reconhecer que nem sempre a religiosidade semanifesta por meio de religies institucionalizadas.

    A religiosidade, na sua condio de caracterstica exclusivamente humana,revela um atributo humano de busca do sagrado, sem especificar o que seja essesagrado, tanto como fuga, quanto como explicao para o real vivido, ou ainda mesmopara negociaes e entendimentos com a ou as divindades na procura de resolues deproblemas cotidianos. Esse atributo humano no est referido a nenhuma religio

    especfica, e um domnio mais pertinente aos antroplogos e psicanalistas do que aohistoriador.Por essa razo, as prticas da religiosidade, muitas vezes entendidas como

    bruxaria, feitiaria, espiritismo, nada mais so do que manifestaes noinstitucionalizadas da religiosidade e exatamente por isso so sincrticas, livres e almde qualquer ortodoxia dominante.

    A forte marca heterodoxa da religiosidade impede que se encontre nelaelementos que permitam entender o dilogo existente entre as formas religiosas e asracionalistas de se conceber a histria. Por exemplo, uma religiosidade popular queincorpore elementos cristos e kardecistas, operar com dois conceitos distintos eexcludentes de histria, o retilinear e escatolgico cristo, desenvolvido a partir de

    Santo Agostinho, e os ciclos incontveis de recomeo da doutrina da reencarnao dokardecismo.Desse modo, imprescindvel que nosso olhar se fixe no dilogo, spero e

    contundente no mais das vezes, entre as igrejas crists institucionalizadas e osracionalismos.

    A bem do andamento do nosso dilogo, convm cautela em relao ao termoracionalismo e seu antnimo, irracionalismo. O seu emprego indiscriminado pode levar concluso de que as formas religiosas de pensar dispensam o uso da razo, o que seriaum absurdo at do ponto de vista fisiolgico. O que est em pauta a afirmao de quea concepo religiosa da histria, no nosso caso, a concepo cristo da histriaprescinde da ao e do pensamento humano, da porque seria irracional.

    Assim posto o problema, as questes so bem mais complicadas.

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    As religies derivadas do cristianismo se sustentam em uma concepo dahistria que tem dois fundamentos, sendo o primeiro a noo de retilinearidade e deescatologia e o segundo a noo de histria como processo progressivo. Entrelaandoessas duas noes est a concepo de ser a vontade humana o motor e a direcionadorada histria.

    Temos a, portanto, uma filosofia da histria: um processo progressivo, que deum ponto inicial se desenvolver at chegar a um final, e esse processo conduzidoexclusivamente pela vontade humana. Essa filosofia, ao estabelecer que o processohistrico retilinear, se contrapunha frontalmente idia grega de histrica, concebidacomo uma circularidade, um eterno repetir-se sem fim e sem sada. A filosofia crist dahistria esticou a linha da histria .

    Coube a Santo Agostinho a tarefa de esticar a linha criando, com isso, a linhado tempo, at hoje empregada pelas escolas historiogrficas e pela prpria filosofiacatlica da histria que , concomitantemente, o alicerce da doutrina dessa religio. Suaescatologia somente ter sentido se o percurso da histria humana for retilinear; melhordizendo, sem a concepo de percurso retilneo da histria no haveria a escatologiacatlica.

    Rigorosamente, no foi Santo Agostinho quem inventou a retilinearidade domovimento histrico. Essa idia j estava na lgica dos textos sagrados do judasmo,que o cristianismo veio a consolidar.

    Em Daniel, Isaas e outros profetas do Antigo Testamento, j estava em germeou explicitada, a concepo escatolgica e teleolgica da histria, isto , a idia deincio, transcurso linear e final da histria em um futuro longnquo. No havia,entretanto, explicitada a idia de um futuro alm da materialidade. Foi aps So Pauloque os evangelistas Mateus, Marcos, Lucas e Joo, com o seu Apocalipse, introduzirama idia de alm, de eternidade que est nos fundamentos do Novo Testamento, portanto

    nos alicerces da doutrina das igrejas crists.Uma vez que, depois da partida de Jesus (j em Paulo) os interesses sedeslocam para um alm e se individualizam, passa-se a entender o aqumantes como lugar de deciso e provaes das quais os crentes so salvos porinterveno de Deus que os transforma e os transfere para uma dimenso dealm (o cu), no se prometendo nenhuma salvao para o aqum mesmo.1

    Nos profetas veterotestamentrios, o texto indicava sim o apocalipse, o final dostempos e a vitria do Senhor, mas a idia no era de uma soluo de continuidade noprocesso histrico aps esse evento, mas a idia de fim do sofrimento do povo judeu,constantemente oprimido por invases e dominaes estrangeiras conforme se l em

    Daniel e Isaas Alegrem-se o deserto e a terra seca, rejubile-se a estepe e floresa; como onarciso, cubra-se de flores, sim rejubilem-se com grande jbilo eexulte./Assim voltaro os que foram libertado por Jav, chegaro a Siogritando de alegria, trazendo consigo uma alegria eterna: o gozo e a alegria osacompanharo, a dor e os gemido cessaro.2

    o fim das desgraas e do pecado, e o advento do Reino dos Santos, governadopor um Filho de Homem, e o seu reino no passar.3

    1 VORGRIMLER, H. Escatologia/Juzo. In, EICHER, Peter (dir.) Dicionrio de conceitos fundamentaisde Teologia, p. 230.2 EDIES PAULINAS. A Bblia de Jerusalm . P. 1412-14153 Idem, ibidem

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    Fica consignada nesses textos a idia de uma nova situao, mas no seidentifica a noo de um reino eterno e metafsico.

    Em So Paulo, e a partir dele, a concepo ser outra tratava-se, ento deprojetar a idia de fim da histria para a eternidade, profetizando-se a volta de Cristo e aressurreio dos mortos em uma outra dimenso, a dimenso do eterno, do tempo semtempo. Por isso, sua insistncia na idia de os homens ressuscitarem como matriaincorruptvel, ou seja, no sujeita transitoriedade da matria.

    Digo-vos, irmos: a carne e o sangue no podem herdar o Reino de Deus,nem a corrupo herdar a incorruptibilidade. Eis o que vos dou a conhecer ummistrio: nem todos morreremos, mas todos seremos transformados, numinstante, num abrir e fechar de olhos, ao som da trombeta final; sim, atrombeta tocar, e os mortos ressurgiro incorruptveis, e ns seremostransformados. Com efeito necessrio que este ser corruptvel revista aincorruptibilidade, e que este ser mortal revista a imortalidade.4

    Entretanto, seja na concepo veterotestamentria, seja na concepo paulina e

    neotestamentria, os fundamentos escatolgicos do conceito de linearidade j estavampostos a histria da humanidade tem um incio e ter um final aps um transcursoretilneo em que os homens devero buscar o seu aperfeioamento moral visando salvao e a vida eterna.

    No cabe no cristianismo (e em nenhum dos monotesmos modernos, dada a suaorigem comum) a concepo circular, repetitiva da histria. Na concepo crist,segundo a leitura paulina, obrigatoriamente a histria ter um final que corresponder vitria de Deus sobre o Mal e a Morte.

    Por essa razo que Santo Agostinho ir dizer queOs filsofos pagos introduziram ciclos de tempo em que as mesmas coisasseriam restauradas e repetidas pela ordem da natureza e afirmaram que

    esses rodopios de idades passadas e futuras prosseguiro incessantemente A partir dessa zombaria, so incapazes de por em liberdade a almaimortal, mesmo depois que ela atingiu a sabedoria, e acreditam que ela estincessantemente caminhando para uma bem aventurana falsa eincessantemente retornando a uma misria verdadeira apenas atravsda slida doutrina de um curso retilinear que podemos escapar de no seiquantos falsos ciclos descobertos por sbios falsos e enganosos.5

    Longe de ns repito, acreditar em semelhante insensatez. Cristo morreuuma vez apenas por nossos pecados e ressuscitado dentre os mortos, j nomorre e a morte no ter domnio sobre ele. Depois da ressurreio,estaremos eternamente com o Senhor.6

    A nica morte de Jesus e sua nica volta, num futuro incerto, no indicariam aretomada da circularidade da concepo clssica de histria, mas confirmam seu carterretilinear e escatolgico voltando, Cristo por fim ao tempo histrico e a ressurreiodos homens de modo incorruptveis indicar, segundo So Paulo, o ingresso no ReinoEterno.

    Segundo o conceito cristo, particularmente o catlico, a histria humana teriase iniciado com Ado e com a segunda volta de Cristo, ter o seu final. A finalidade do

    4 Idem, p. 21705

    AGOSTINHO, Santo, A cidade de Deus . Apud. WHITROW, G.J.O tempo na histria , p. 796 AGOSTINHO, Santo. A cidade de Deus . V.II, livro 12, cap. 13, p. 76/77

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    transcurso retilinear do processo histrico pode ser interpretada, consoante a doutrinacrist, como a oportunidade oferecida por Deus para que os homens se santifiquem, justificando a sua salvao eterna.

    Entretanto, a santificao, isto , que se justifiquem diante de Deus, um atodecisivo para a histria do homem e depende inteiramente de sua vontade.

    A filosofia catlica da historia entende que ela a histria da salvao humana.Portanto, primeiro, a histria da humanidade e no de grupos, classes sociais ou denaes, e isso porque o projeto salvfico de Deus se refere a todos os homens e noapenas a alguns deles. Depois, porque a finalidade da histria no se refere temporalidade, mas eternidade; finalmente, porque o projeto salvfico de Deus no serealizar sem o pleno consentimento da humanidade.

    Trata-se, portanto, de uma filosofia que se prope dialogar com dois universosdistintos um, material, concreto, onde se realiza a histria humana; outro, abstrato,idealizado, para onde a histria dever levar os homens. Ser esse final bom ou ruim, algo que depende inteiramente da vontade humana.

    Posta assim a questo, explicita-se que o problema todo radica na vontade e naliberdade humana, atributos que conhecemos pela denominao de livre-arbtrio.

    Qual foi o incio da histria, segundo a doutrina da Igreja? Foi um ato humanoditado pela sua livre opo por no seguir as determinaes divinas. Ao escolher noobedecer e adquirir uma sabedoria no prevista por Deus, o homem perdeu a eternidadee entrou na temporalidade. O final da histria ser o reingresso na eternidade, e se essereingresso levar o homem ao prmio ou ao castigo, algo que novamente est referidoao seu arbtrio. Se ele optar por seguir os ensinamentos da Igreja e a doutrina de Cristo,ele estar salvo; caso contrrio ...

    Nesse contexto, o ponto nodal a vontade humana e os atos dela decorrentes.Tudo quanto o homem fez ou far no concreto da histria reflete sua opo ou ele age

    conforme os preceitos catlicos e isso se reflete no equilbrio social, ou ele age contraesses preceitos e gera o caos social.Essa constatao invalida a convico de que a Igreja ensina a passividade. Ela

    ensina, ao contrrio, que o homem deve agir fortemente para direcionar sua histria paraum final feliz, para o reencontro com Deus e no para perdio eterna.

    Atribuo essa concepo retilinear a uma origem comum, mas interpretada emduas vertentes distintas. A raiz dessa concepo, entendo ter sido a prpria origem douniverso, interpretada pelas doutrinas judaica e crist e pela racionalidade cientfica.

    O relato bblico contido no Gnesis descreve um processo de evoluo douniverso a partir de um ato criador de Deus. A seqncia descrita na Bblia se iniciacom a criao da luz e avana at criao da Humanidade, no sexto dia, passando pela

    criao do cu e da terra, do dia e da noite, dos mares e dos continentes e dos seresvivos de todas as espcies. (Bblia de Jerusalm, p. 31 32).As pesquisas biolgicas, geolgicas e da astrofsica confirmam a seqncia

    bblica em suas linhas gerais da luz da exploso primordial (Big Bang) ao ser humano,o mais recente dos animais. Entretanto, nessa teoria cientfica o processo no teveorigem em um ato criacionista, mas em movimentos da prpria natureza.

    Penso que essas teorias provocaram um desdobramento no prpriodesenvolvimento das filosofias da histria. Se tudo um processo evolutivo, desde osmovimentos transformadores da geologia at as transformaes biolgicas, por que ahistria humana deveria ser diferente? Por que a histria humana deveria ser circular setodos os processos so retilineares?

    Ao menos essa idia parecia consolidada at o estabelecimento das modernasteorias da relatividade, e desenvolvidas as pesquisas a partir da teoria do caos e da

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    mecnica quntica. A percepo de que o tempo no uniformemente distribudo emuma linha contnua; a percepo de que os corpos celestes e a prpria matria esto emconstante modificao no seguindo necessariamente uma linha evolutiva contnua e,finalmente, que no plano das nano dimenses os conceitos de espao, tempo emovimentos devem ser avaliados com outros critrios, provocaram, inevitavelmente, areviso dos conceitos de evoluo progressiva.

    Essas novas descobertas e novas teorias, entretanto, ainda no surtiram efeitosconsistentes nas filosofias da histria. Nesse terreno ainda imperam a idia de temporetilinear e a idia de processo evolutivo, ressalvados alguns autores ligados NovaHistria que tm reservas com o conceito de processo evolutivo e progressivo.

    Feita essa exceo, percebe-se que a idia de trajeto retilinear e progressivo estna organizao da filosofia da histria dos autores que se dispuseram essa discusso,do Iluminismo em diante, com pequenas diferenas entre eles.

    Notvel a concepo marxista.Marx propunha uma ruptura radical, revolucionria, com todas as formas

    anteriores de pensamento histrico e conseguiu, at certo ponto. No entanto, repetiu o jestabelecido no que dizia respeito idia de trajeto progressivo e retilinear.

    A concepo marxista se fundamentava na tese de que as idades histricas sesucederam linearmente, desde as formaes pr-capitalistas, passando peloimperialismo escravista da Antigidade, pela servido de gleba, no Medievo, chegandoao capitalismo industrial e continuaria seu trajeto inelutvel levando a humanidade, emuma marcha ininterrupta, at o reino de paz e justia na sociedade comunista, e esseprocesso teria sua dinmica na contradio dialtica entre as classes sociais. Em outrostermos, empregando uma palavra muito usada, em especial no Brasil dos anos de 1970,o fio condutor, a mola propulsora da histria seria a luta de classes.

    Revolucionria, sem dvida, essa idia proposta por Marx de que a histria se

    movimenta, no pela ao das elites ou da providncia divina, mas pelas contradiesinternas ao prprio processo da histria. Entretanto, no avanou ao reafirmar umaconcepo escatolgica (uma escatologia materialista, mas nem por isso menosescatolgica) e a idia de avano retilinear, de marcha progressiva.

    Por isso, ser muito freqente, na escrita dos marxistas a idia de um fiocondutor a orientar a marcha da humanidade para o pleno progresso, expresso nasociedade sem classes. Por isso, o marxismo,

    foi o porta-estandarte do progressivismo, a idia de que existe umadireo para a histria e que tipos apropriados de interveno polticapodem nos ajudar a demarc-la e acelerar a jornada. A literatura do

    socialismo est repleta de falas sobre o caminho a ser seguido, a marchapara a frente do socialismo, a estrada para o socialismo, e assim pordiante. As formas mais radicais de pensamento socialista h muito tmargumentado que s existe o movimento para a frente ou para trs: ou ahumanidade avana em sua jornada ou provavelmente cair na barbrie.7

    Mesmo quando, no18 Brumrio , analisava e interpretava as derrotas polticasdas classes trabalhadoras, Marx reafirmava suas concepes progressivas eescatolgicas da histria:

    ...as revolues proletrias, como as do sculo XIX, se criticamconstantemente a si prprias, interrompem continuamente seu curso, voltam

    7 GIDDENS, Anthony.Para alm da esquerda e da direita , p. 63

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    ao que parecia resolvido para recome-lo outra vez, escarnecem comimpiedosa conscincia as deficincias, fraquezas e misrias de seusprimeiros esforos, parecem derrubar seu adversrio apenas para que estepossa retirar da terra novas foras e erguer-se novamente, agigantado,diante delas, recuam constantemente ante a magnitude infinita de seus

    prprios objetivos at que se cria uma situao que torna impossvelqualquer retrocesso...8 Revolucionrio, sim em suas anlises, interpretaes e propostas, Marx, todavia,

    era fruto e herdeiro das contribuies intelectuais da Europa dos sculos XVIII e XIX,de modo que sua concepo progressiva da histria no foi uma ruptura total em relaoao passado europeu. Encontramos nos pensadores do fim do Iluminismo j a mesmaconcepo evolutiva.

    Se em Marx o fio condutor da histria seria a luta de classes, os iluministas,iriam identificar o fio condutor aos avanos da tica e da moral com fundamentos nasluzes da cincia, a partir do projeto estabelecido pela natureza para o homem. Em Kant,essa concepo explicitada na afirmao de que,

    a histria humana, no seu conjunto, pode considerar-se como a realizaode um plano oculto da natureza, no sentido de estabelecer-se umaconstituio politicamente internamente perfeita e, em ordem a este mesmofim, perfeita tambm no plano externo, pois esta a nica situao em quea natureza pode desenvolver plenamente na humanidade todas as suasdisposies.9

    Entretanto, em ambos os casos, a histria avana, evolui segundo a direodeterminada por um fio condutor e deve levar o ser humano a algum lugar, em umfim distante uma concepo escatolgica, portanto.

    Nos dois trechos citados, alm da concepo de histria dirigida por um fio

    condutor, aparece tambm a concepo de inexorabilidade caminhar em direo perfeio, seja ela a sociedade sem classes ou a sociedade politicamente perfeita daconcepo kantiana, a marca inexorvel do processo histrico, um caminho sem voltae sem alternativas. Tal como na concepo religiosa, h um destino para a humanidade,inelutvel, passvel de ser retardado pelas contingncias polticas conservadoras ereacionrias, mas impossvel de ser definitivamente obstado.

    As diversas filosofias racionalistas da histria do mundo ocidental, aotrabalharem com essas idias construram textos que se so diferentes e irreconciliveisentre si, apresentam o mesmo fundamento sobre um alicerce semelhante, alicercecomum, herdado das concepes agostinianas, construram edifcios filosficosdistintos, e sua semelhana fundamental a crena proftica e messinica no devir

    imanente ao prprio processo histrico.As filosofias da histria comportam essa crena proftica e messinica, portantoescatolgica e teleolgica (em um futuro que se espera no muito distante) ahumanidade chegar ao fim de sua jornada e encontrar... O que, afinal, encontrar ahumanidade no final de seu percurso?

    Kant imaginava que o final da trajetria humana seria a construo de umasociedade moralmente perfeita, pacfica, harmonizada pela racionalidade das leis e pelaconscincia de que a paz seria prefervel guerra.

    Tendo por estabelecido que o mundo moderno dever chegar inelutavelmente perfeio, ele assenta todo esse processo na certeza de que a Razo humana produzir

    8 MARX, K. & ENGELS, F.O 18 Brumrio de Lus Bonaparte . p. 206. 9 KANT, I. Idia de uma histria universal de um ponto de vista cosmopolita , p. 37

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    um saber que ilumine os prprios atos do Estado, cujo melhor exemplo muitoprovavelmente teria sido o Despotismo Esclarecido. Por isso, ele nos diz que

    ... mistura com muitas iluses e caprichos, vai surgindo, pouco a pouco, aera das Luzes. Estas luzes, porm, e com elas um certo interessesentimental que o homem esclarecido no pode deixar de ter pelo bem que

    ele compreende perfeitamente, deve alar-se progressivamente at os tronose influenciar os seus prprios princpios de governo10 Escrevendo na abertura do sculo XIX, Kant sintetizava a racionalidade

    moderna do mundo burgus somente a igualdade e a liberdade garantidas pela leipoderiam dar ao Homem a condio de realizar os projetos que a natureza lhe preparara,e esse posicionamento sem dvida era um avano em relao sociedade de privilgiose regalias herdadas do medievo e aprofundadas pelo Antigo Regime.

    Se a profecia kantiana se explicitava no seu texto como promessa de umasociedade pacfica e harmnica, sua consecuo dependeria de um demiurgo Estado e de um instrumento a educao, que aspergiria sobre todos as Luzes da Cincia epromoveria o aperfeioamento moral da sociedade humana, conforme tambm se l noseguinte texto de Kant..embora os governantes do mundo no tenham presentemente dinheiro

    disponvel para as instituies de educao pblica, nem para tudo aquilo queem geral represente o melhor do que h no mundo 0 pelo fato de todos osrecursos se encontrarem j aplicados de antemo na guerra prxima noentanto no deixaro certamente de achar vantajosos para eles pelo menosno impedirem os esforos de seu povo nesse sentido, embora fracos e lentos.11

    O posicionamento e a forma de Kant propor e desenvolver a questo no eramseu apangio. Pode-se citar tantos outros, como Condorcet e Comte. Entretanto, no

    seria o caso agora de aprofundamento nos outros, exceto Condorcet, considerado ocriador da teoria da histria como evoluo do esprito humano.Condorcet, considerado por muitos o criador da teoria do progresso do esprito

    humano, traduz o seu pensamento na seguinte passagem:Mas, se considerarmos este mesmo desenvolvimento tal como se manifestanos indivduos que coexistem num dado espao , e se o seguirmos degerao em gerao, ele apresenta ento o quadro do progresso do espritohumano. Este progresso est submetido s mesmas leis gerais que seobservam no desenvolvimento das faculdades dos indivduos, visto que oresultado desse desenvolvimento, considerado ao mesmo tempo numgrande nmero de indivduos reunidos em sociedade. Mas, o que aconteceem cada instante o resultado do que aconteceu em todos os momentosanteriores; e tem, por sua vez, influncia sobre o que acontecer no futuro./ Este quadro portanto histrico, visto que, estando sujeito a perptuasvariaes, se forma pela observao sucessiva das sociedades humanas nasdiferentes pocas que percorreram.12

    Os dois pensadores apontados, s vezes identificados sem muita cautela aopensamento burgus, circunscreveram o conceito de progresso humano ao mbito damoral e da tica. Isto , a humanidade no progrediria apenas porque desenvolveriacincia e tecnologia, mas acima de tudo o progresso se daria pelo controle dos avanos

    10KANT, I. Idia de uma histria universal de um ponto de vista cosmopolita , p. 3811 Idem, ibidem.

    12 CONDORCET, N. A.O progresso do esprito humano . P. 63

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    materiais e das relaes sociais e polticas por princpios morais e ticos que osdirecionariam para o bem, levando quela sociedade moral e racional de que nos falaJos Carlos Reis, acima citado.

    Na leitura de Kant, por exemplo, a sociedade que desenvolvesse plenamentesuas potencialidades materiais, mas no as empregasse para a construo da paz, noteria progredido. Mais ainda, conforme o pensador alemo e o francs Condorcet, aperfeio poltica estaria na converso de toda sociedade humana em sociedadegovernada pelos princpios da constituio do Estado de Direito.

    Assim, em Kant, a esperana de uma histria cosmopolita se firmava naconcepo de que o Estado de Direito seria o desdobramento lgico e irrevogvel dotranscurso da histria europia:

    ... se partirmos da histria grega... se seguirmos de perto sua influncia naformao e deformao das instituies polticas do povo romano, queabsorveram o estadogrego , e depois a influncia deste povoromano sobreos Brbaros , que por sua vez destruram aquele e assim por diante atnosso tempo; se a conjugarmosepisodicamente com a histria poltica deoutros povos, cujo conhecimento foi chegando lentamente at nsprecisamente atravs dessas naes mais esclarecidas, descobriremos entouma marcha regular de melhoramento da constituio poltica de nossocontinente (que um dia, provavelmente, vir a dar leis a todos os outros).13

    Para eles, a histria seria a histria do progresso do esprito humano, um trajetopenoso, difcil, mas retilneo, que levaria a humanidade da barbrie plenitude darealizao dos projetos da natureza na sociedade pacfica e harmonizada pelo saber,pelas leis, pela igualdade, pela liberdade e pela paz, naquele novo mundo que seconstrua na Europa e que se deveria tornar cosmopolita, esse mundo que os analistasposteriores denominaram, acertadamente, de capitalista, burgus.

    Por isso, Condorcet condensava sua filosofia em esperanas que acondio futura da espcie humana podem reduzir-se a estes trs pontosimportantes: a destruio da desigualdade entre as naes; os progressos daigualdade num mesmo povo; e, finalmente, o aperfeioamento real dohomem.14

    No universo das filosofias racionalistas, a marca distintiva de Marx est em doispontos. Primeiro, a idia de que o reino da paz e da justia no poderia ser aconsolidao universal da sociedade burguesa europia, mas a construo de umasociedade que lhe superasse, sendo igualitria, sem classes sociais, em que a proposta deharmonizao pela Lei, to presente em Kant, no teria mais sentido. Segundo, que essasociedade se constituiria a partir de um paradoxo, isto , o reino da harmonia seconstituiria como trmino de um processo histrico movimentado pelas contradies.

    Ressalvadas essas diferenas, as escolas historiogrficas racionalistas europias,que fundamentaram o pensamento historiogrfico dos ltimos duzentos anos,construram uma concepo retilinear, progressiva e escatolgica da histria, portantono muito diferente da concepo judaico crist, em particular a construo terica docatolicismo.

    Essa abordagem do problema mantm em aberto o debate sobre a tese daoposio entre a irracionalidade das teorias e filosofias de raiz religiosa e aracionalidade que seria prpria e inerente ao pensamento produzido pelas pesquisas eexperincias cientficas e seus desdobramentos em todas as esferas do saber humano.

    13 KANT, I. Idia de uma histria universal de um ponto de vista cosmopolita , p. 39 40.14 Idem, p. 69

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    , seno consensual, ao menos muito freqente na literatura especializada acolocao do problema como ruptura entre racionalismo e irracionalismo, a partir doRenascimento, de modo que, desde ento, o ambiente intelectual europeu pode avanar(progredir?) por ter se libertado das amarras teolgicas do cristianismo em suainterpretao catlica romana.

    A interpretao dessa forma de se propor o problema leva concluso de que osaber racional, isto , o saber elaborado pela especulao filosfica e pela pesquisacientfica somente foi possvel pela laicizao e, no extremo limite, pela constituio doatesmo na sociedade europia. No inverso da leitura, chega-se concluso de que todopensamento de raiz crist catlica , por isso mesmo, irracional.

    No se pode ignorar, verdade, que todo referencial do modo catlico de pensar a vida espiritual ps-morte, o reino celeste. Posto assim, tudo quanto possa significarum obstculo ascese humana deve ser afastado, proibido e, em ltima anlise,eliminado, por exemplo, toda pesquisa cientfica que negue a existncia de Deus ou levaa prticas sociais e individuais contrrias doutrina catlica.

    Se essa atitude da Igreja Catlica Romana sua tnica, mesmo nos dias atuais,em que no se pode duvidar da prevalncia da pesquisa cientfica e da laicizao doEstado no mundo ocidental, mais ainda o era no incio dos tempos modernos em que aIgreja de Roma estava no centro da sociedade e era referncia para todos os atoshumanos. Naqueles prenncios da modernidade, a acelerao da cincia e aliberalizao, ainda que relativa, da filosofia em relao teologia significaram, semdvida, um abalo, uma ameaa ao predomnio poltico, social e cultural exercido pelaIgreja Catlica Romana, ameaa que se tornou ainda mais pungente no sculo XIX.

    Posto assim, tudo indica que o maior problema da Igreja Catlica naquelemomento, bem como em todo desenvolvimento subseqente da filosofia, da cincia e,finalmente, das teorias e prticas polticas, era a manuteno de sua condio de centro

    de referncia para o mundo ocidental.O problema maior era que o racionalismo moderno poderia significar no limiteextremo da questo, a ruptura do predomnio catlico exercido sobre a produo edistribuio do conhecimento no mundo ocidental, desde o Imprio Carolngio, e essasituao a Igreja no queria e no podia aceitar15.

    Essa ruptura se dera exatamente porque, desde o humanismo renascentista, asnovas (ou renovadas) formas de pensar provocaram uma transformao no interior dateoria do conhecimento, estabelecendo que o saber humano no dependia da RevelaoDivina teoria catlica do conhecimento mas era produto mesmo da experincia doshomens no seu contato sensrio-motor com o mundo natural. Mais ainda, essatransformao fora correlata a uma redefinio do prprio objeto do conhecimento,

    colocando, desde ento, o Homem como objeto privilegiado da busca do saber.Continuando a tradio teocntrica e teolgica, a doutrina reforada pelo catolicismoultramontano no via com bons olhos a preocupao, considerada excessiva, comassuntos demasiadamente humanos que freqentava o pensamento moderno.

    Em outras e mais simples palavras segundo a doutrina catlica, o racionalismomoderno, ao ser excessivamente antropocntrico, esquecera-se de que o verdadeirosaber aquele que conduz ao entendimento da doutrina crist, e por meio dela, oconhecimento de Deus, e aquele que conduz ao avano material, apesar dos resultadosimediatos, um falso saber.

    15 MANOEL, Ivan A. Igreja e educao feminina: uma face do conservadorismo (1859 1919 ), cap. IV

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    Transtornando ainda mais o ambiente intelectual, a moderna teoria doconhecimento transbordou os limites das teorias e especulaes e penetrou no prpriombito da pedagogia, e passou a exigir uma transformao no sistema educacional paratorn-lo leigo, pblico, gratuito e solidamente alicerado no racionalismo e noempirismo e livre do controle doutrinrio da Igreja. A proposta dos pedagogos, filsofose polticos burgueses, do sculo XVIII em diante, continuando uma tradio queremontava ao sculo XVI era, alm de substituir a pedagogia catlica pela pedagogiamoderna, afastar a Igreja de qualquer possibilidade de ingerncia administrativa sobre osistema escolar. Nesse contexto, a secularizao do sistema educacional foi a soluoencontrada, comeando esse processo pela Frana ps-revolucionria.16

    Se a doutrina catlica condenava o mundo burgus naquilo que se referia organizao scio-poltica e naquilo que dizia respeito vida material, a sua reaodiante das novas atitudes filosficas, tericas e educacionais foi muito mais vigorosa.Segundo a leitura catlica, qual a implicao maior do racionalismo moderno?Conforme essa leitura, ser racionalista e moderno implicava, necessariamente, em serateu, inimigo de Deus e da Igreja e, no limite extremo, em ser um comunistapotencial.17

    Contudo, cabe perguntar se haviam condies, nos incios dos tempos modernos,para a constituio de um modo laico, materialista e ateu de pensar. Lucien Febvrepensava que no. Segundo ele, no existiam sequer as palavras para exprimir idias dascincias e muito menos idias materialistas:.

    Trata-se do problema de saber que tipo de clareza, de profundidade efinalmente que eficcia poderia ter (...) o pensamento dos homens franceses- que, para especular, no dispunham ainda em sua lngua de algumasdestas palavras costumeiras, que fluem por si mesmas na nossa pena, tologo nos pomos a filosofar./Grave constatao: as palavras que seofereciam a estes homens quando se punham a raciocinar em francs (...)no eram palavras destinadas ao raciocnio, explicao e demonstrao.No eram palavras sbias.18

    Penso que ele tinha razo e a leitura de vrios filsofos daquele perodoconfirma a sua tese. Bacon, por exemplo, embora tivesse sido um crtico severo dafilosofia escolstica catlica no desejava uma ruptura abrupta e total com a doutrinacrist. Talvez por isso, no Aforismo LXXXIX, do Novum Organun, se posicionoucontra aos que

    parecem temer que a investigao da natureza acabe por subverte ou abalara autoridade da religio, sobretudo para os ignorantes. Mas estes doisltimos temores parecem-nos saber inteiramente a um instinto prprio dosanimais, como se os homens, no recesso de suas mentes e no segredo de

    suas reflexes, desconfiassem e duvidassem da firmeza da religio e doimprio da f sobre a razo e, por isso temessem o risco da investigao da

    16 DEBESSE, M. & MIALARET, G. Tratado das cincias pedaggicas , v. 02 (Histria da pedagogia).17 Fazia parte da estratgia do catolicismo ultramontano identificar linearmente o comunismo comoresultado do racionalismo e da educao leiga. Abaixo, um exemplo tpico dessa atitude, datado de 1874: A imensa populao obreira das grandes cidades europias, alistadas neste momento debaixo dasbandeiras do socialismo e do comunismo, l todos os dias os jornais mpios, e depois de l-los que sai rua para levantar barricadas e derramar sangue. Em vez de til, um imenso perigo para a sociedade essainstruo puramente literria, essa instruo defeituosa e incompleta/Eis, senhores, at onde se chega comeducao sem ensino religioso. COSTA, Antnio de Macedo. Discurso na inaugurao da SociedadePromotora da Instruo Pblica do Par , Apud. MANOEL, Ivan A D. Macedo Costa e a laicizao doEstado... In, Histria , N Especial, p.18518 FEBVRE, L. O domnio da religio sobre a vida, p. 55

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    verdade da natureza. Contudo, bem consideradas as coisas, a filosofianatural, depois da palavra de Deus, a melhor medicina contra asuperstio e o alimento mais substancioso da f.19

    Mesmo os filsofos do final do sculo XVIII e incio do XIX no romperamcom certa forma religiosa de pensar ou, ao menos, no vislumbraram outros horizontes

    a no ser aquele que continha uma pitada de religiosidade. Kant, por exemplo, emboraquestionando a possibilidade de a Razo alcanar a essncia das coisas e, portanto, oconhecimento de Deus, no o negou como tambm no o negou o positivismo comteanoque, no avanar de suas especulaes acabou por se converter em uma religio. Naesteira das reformas religiosas, os filsofos do perodo propuseram forma agnsticas,testas ou no catlicas de concepo do sagrado e no o materialismo e o atesmoabsoluto.

    Marx, na segunda metade do sculo XIX, ao elaborar suas teorias, essas simmaterialistas e atias, fez severa e profunda crtica ao agnosticismo, considerando-o ummodo acanhado e no corajoso de se enfrentar o mundo moderno cujo limite seria oreformismo pequeno burgus e no um projeto revolucionrio. Talvez fosse um piopior do que a prpria religio, segundo seu entendimento.

    Penso que est posto o debate sobre a oposio entre a irracionalidade e aracionalidade no mundo ocidental ps-Renascimento, tendo o seu pice no sculo XIX.Nesse debate, tudo leva constatao de que no se tratou de uma simples oposiofilosfica ou terica entre racional e irracional, aquele, moderno, smbolo e sinnimo doavano humano, este, retrgrado, representando tudo quanto a moderna cincia e afilosofia livre da teologia estavam a suplantar em um longo embate que poderiaperdurar por sculos.

    Antes, tudo indica que se tratava do embate poltico entre duas racionalidadesdistintas, irredutveis entre si, ao menos naquele momento20. Eram duas racionalidadesdistintas, que desenvolveram inteleces incompatveis entre si sobre o universo, seumovimento e sobre a histria humana; uma, criacionista e sacralizadora, a catlica, aoutra, os diversos matizes do pensamento laico ps-Renascimento, evolucionista esecularizadora.

    Giacomo Marramao tem razo, portanto, ao situar o problema como poder esecularizao ou quando ope cu e terra21 - era disso que se tratava em ltima anlise,uma disputa pelo poder que estava embutida na busca pela completa secularizao dasociedade, indo da pesquisa cientfica laicizao do Estado e seus servios, tais como,cemitrios pblicos, educao pblica, casamento civil, etc. passando por especulaesfilosficas livres dos estreitos formalismos escolsticos, como j propusera Bacon,chegando instaurao do poder republicano.

    Secularizar o mundo significava muito mais do que a simples laicizao,significava trazer o homem para o Sculo, para a temporalidade, situar sua histria noslimites da finitude humana e, nesse novo mundo, secular, finito, materialista, pensavam,o clero catlico, herdeiro e defensor da irracionalidade religiosa e das estruturaspolticas monrquicas, nada mais teria a dizer nem a fazer, sua funo histricaterminara e ele no precisaria mais existir.

    19 BACON, Francis. Novum Organum (verdadeira indicaes acerca da intrepretao da natureza) , p. 6520 Muitos tericos, de diversas reas do conhecimento, tm procurado estabelecer ligaes, pontes quepossam unir a cincia e a religio. Exemplo disso o livro, publicado j nos anos 2000, cujo elucidativottulo :Construindo pontes entre a religio e a cincia . Curioso notar que, em um livro com esse ttulo,encontram-se alguns textos de filsofos e cientistas recusando a possibilidade de se construir essa ligao.21 MARRAMAO, Giacomo.Poder e secularizao . So Paulo, Edunesp, 1995.

    ____________________.Cu e terra . So Paulo, Edunesp, 1997.

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    No por acaso o corolrio da secularizao foi a perseguio anti-clerical emparte da Europa e no Mxico, situao que no Brasil foi evitada pelas negociaes entreRui Barbosa e D. Antnio de Macedo Costa, Bispo do Par, em 1890.22

    Mas, h uma contradio, um verdadeiro paradoxo nesse contexto representadopela herana cultural do mundo ocidental, particularmente o europeu. Os fundamentoscristos, particularmente o catlico uma realidade da qual no se pode fugir,particularmente no que diz respeito aos fundamentos da filosofia da histria, comunsaos cristos e aos racionalistas. A herana da linha evolutiva e escatolgica da histria,recebida de S. Agostinho, por mais incmoda que pudesse ser, no foi abandonadapelos filsofos e historiadores leigos, que a secularizam, mas no a rejeitaram.

    Portanto, se verdade que os avanos cientficos na astronomia, na geologia, nabiologia, etc. conjugados aos avanos da tecnologia levaram os mitos do cristianismo aum verdadeiro colapso (contra o qual a Igreja do sculo XIX lutou desesperadamente),no menos verdadeiro que sculos de predomnio do cristianismo, em sua vertentecatlica, moldaram em grande parte a forma ocidental de pensar. Essa tenso dialticaentre o sagrado e o profano estar presente nas filosofias da histria: de um lado, afilosofia crist catlica que aponta a eternidade como referncia, mas sabe que ahistria se d na temporalidade, temporalidade que ela rejeita e pretende transformar; deoutro, as filosofias leigas, que embora trazendo a histria para dentro da temporalidade,sabem que o solo onde vicejam est fertilizado pela herana crist catlica querejeitam, e querem a todo custo minimizar.

    Quando os autores leigos estabeleceram que a histria humana o trajeto queleva de um ponto X a um ponto Y, onde Y mais avanado do que X, estavam usando omesmo esquema interpretativo empregado pela filosofia crist catlica, ressalvadas asdiferenas impostas pelo racionalismo e mesmo materialismo, tais como sobre asorigens do homem e a escatologia materialista, que aponta para um final do processo

    histrico dentro da temporalidade. Do mesmo modo, quando a filosofia crist catlicaestabeleceu que a temporalidade o espao prprio para a realizao da histria dasalvao, estava admitindo, com as filosofias leigas, que a histria concreta,ressalvando-se que estabeleceu uma origem e um fim para o homem e sua histria forada temporalidade.

    Parece-me ser esse o centro e o fundamento do problema. Garantir sua existnciainstitucional, sua condio de centro de referncia para a humanidade significou, para aIgreja Catlica Romana, uma luta, ao longo do perodo que vai do Renascimento, eesmo antes, at fins do sculo XIX, caracterizada pela desqualificao do oponente oRacionalismo considerando-o herege, pernicioso, causador da perdio humana e,quando pode, pela eliminao do oponente as fogueiras da Inquisio so uma das

    provas iniludveis desse processo. Para os racionalistas de todos os matizes, adesqualificao da herana cultural crist, na sua vertente catlica, era estratgiaprioritria; no limite, eliminaram o tanto quanto pudera os adversrios, o clero catlico,em meio a ferozes perseguies anticlericais.

    No entanto, o debate foi e salutar porque propiciou profundas transformaesno modo de pensar, no mbito da cincia e da filosofia, de ambas as partes. No s podeesperar, evidente, que a Igreja de Roma deixe de acreditar em Deus ou destrua suaestrutura hierrquica centrada no papa, o Sumo Pontifex, aquele que comanda oprocesso de construir pontes de religao entre o sagrado e o profano. Porm, no se

    22Manoel, Ivan A. D. Antnio de Macedo Costa e Rui Barbosa: a Igreja Catlica na ordem republicanabrasileira. In, Ps-Histria (revista de Ps-Graduao em Histria). Assis, Unesp. V.5, 1997.

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    pode ignorar que, embora continuando como instituio religiosa, a Igreja CatlicaRomana, considerada institucionalmente no tem mais a mesma posio inflexvel detempos passados.

    Mas, no se pode ignorar, do mesmo modo, que no campo do racionalismohouve tambm flexibilizaes importantes, de modo que o dilogo entre cincia ereligio, religio e filosofia racionalista da histria est se tornando possvel.

    Um exemplo elucidativo, vindo do terreno dos catlicos a posio assumidapelos telogos da libertao, para quem o dilogo entre doutrina social catlica e omarxismo era necessrio por ser, segundo eles, a nica possibilidade de, mantendo adoutrina catlica, conseguir realizar a justia social.

    Por essa razo, Frei Beto, no artigo Cristianismo e marxismo, insistia que...marxistas e cristo tm mais arqutipos em comum do que supe nossa v filosofia... e, mais adiante no mesmo texto, defendia a tese de um dos pontos a unir ambas asposies era a luta comum pela justia:

    Um deles a utopia da felicidade humana no futuro histrico, esperanaque se faz mstica na prtica de inmeros militantes que no temem osacrifcio da prpria vida. Marx chama essa plenitude de reino da liberdadee, os cristos, de reino de Deus. Ora, nada na poltica ou na histria garantea realizao dessa meta, como tambm a salvao esperada pelos cristosno tem explicao histrica, dom de Deus. Mas h, no mais profundo denosso ser, o desejo comum de inmeros marxistas e cristos de que ahumanidade elimine todas as barreiras e contradies que separam oshomens.E a esperana incontida de que o futuro ser como a mesa posta emtorno da qual, irmanados, todos havero de partilhar a fartura do po e aalegria do vinho23

    A proposta de dilogo est posta h muito tempo. O tempo dir se houveresultados.

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    23 FREI BETO, Cristianismo e marxismo, 1999, p. 485.

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