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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA SOCIAL CARLOS EDUARDO DE ALMEIDA OGAWA HISTÓRIA, RETÓRICA, POÉTICA, PROVA: a leitura de Carlo Ginzburg da Retórica de Aristóteles SÃO PAULO 2010 1

História, retórica, poética, prova: a leitura de Carlos ... · modo de proceder do historiador italiano, que a partir de seu último livro – História Noturna – abandonou o

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UNIVERSIDADE DE SO PAULOFACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS

DEPARTAMENTO DE HISTRIAPROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA SOCIAL

CARLOS EDUARDO DE ALMEIDA OGAWA

HISTRIA, RETRICA, POTICA, PROVA:

a leitura de Carlo Ginzburg da Retrica de Aristteles

SO PAULO

2010

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UNIVERSIDADE DE SO PAULOFACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS

DEPARTAMENTO DE HISTRIAPROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA SOCIAL

HISTRIA, RETRICA, POTICA, PROVA:

a leitura de Carlo Ginzburg da Retrica de Aristteles

Carlos Eduardo de Almeida Ogawa

Dissertao apresentada Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo para a obteno do ttulo de Mestre em Histria Social.

Orientador: Francisco Murari Pires.

So Paulo

2010

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AGRADECIMENTOS

O momento em que considerei seriamente fazer um mestrado j conta quase cinco

anos. Em todo esse tempo natural que haja muito a agradecer, pois foram muitas as

pessoas que auxiliaram esta pesquisa e este autor a seguirem seu rumo.

Agradeo aos meus pais, pois o seu suor certamente est aqui. Meus sobrinhos

fizeram a vida mais leve em momentos difceis, e mal sabem eles o quanto sou grato por

isso. Conheci Letcya no meio do projeto, mas no consigo imaginar a dissertao

terminada sem sua dedicada ajuda e amor.

Francisco Murari Pires foi meu orientador, e creio que ele foi um dos grandes

responsveis pela minha formao nesses anos. No apenas pelas sugestes, livros, seu

vasto conhecimento de historiografia, que excedem as incumbncias de um orientador,

mas tambm por ter permitido com seu empenho que eu me beneficiasse da presena de

inmeros pesquisadores estrangeiros que participaram dos congressos e de cursos de

ps-graduao na faculdade. Francisco ainda me ps em contato com meus

companheiros de orientao: Rafael, Bruno, Leonardo, Miguel, os quais mantive dilogo

durante a todas as fases do projeto. A eles sou tambm grato.

Os professores Marcelo Rede e Sara Albieri fizeram parte da banca de

qualificao e suas sugestes e crticas forma muito apreciadas e importantes para o

trmino da dissertao.

A Faculdade de Filosofia tambm me permitiu ter um grande quantidade de bons

colegas e amigos: Tatiana, Gilberto, Camila, Alexandre, Thiago, Pablo, Vitor, Francine,

Roger, Carla, Raquel, todos da ps e aos quais agradeo no s pela amizade mas pelas

instrutivas conversas que sempre tivemos. H ainda os amigos acumulados em tantos

anos de vida e universidade: Milene, Janana, Michel, Lus Felipe, Thomas, Tereza, Ana

Letcia, Gilmar, a, Meire, Priscila, Laura, Clio, Fbio, Francisco, Andr, Luana e

Virglio.

Agradeo a Thiago Nicodemo pelas valiosas informaes sobre alguns textos,

assim como pelos livros emprestados. Ana Letcia conseguiu a cpia de vrios artigos de

Ginzburg obtidos em sua estadia na Itlia. Letcya revisou a dissertao e ainda

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encontrou referncias literrias escondidas. Rafael Benthien trouxe da Frana textos

importantes, que eu no conseguiria de outro modo, e com inestimveis conselhos e

conversas. A dissertao de Bruno Hbscher sobre Arnaldo Momigliano me permitiu

investigar com mais facilidade alguns aspectos relacionados minha pesquisa. de

praxe lembrar ao leitor que a participao deles em meus erros nula.

Agradeo em especial Fapesp, pelo financiamento sem o qual parte considervel

da dissertao no poderia ter sido executado. Faculdade de Filosofia, Letras e

Cincias Humanas por permitir minha formao profissional e dentro dela biblioteca, na

qual sempre fui bem atendido dentro de suas limitadas possibilidades. Este trabalho ainda

no teria sido possvel sem o auxlio das bases de dados eletrnicas, em especial o Jstor,

assinado pela Universidade. Archive.org e Google Books permitiram a obteno de livros

importantes dos sculos XIX e anteriores, sem custo algum, e no posso deixar de

agradecer.

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RESUMO

O historiador italiano Carlo Ginzburg envolveu-se ao longo das dcadas de 1980 e 90 nas

discusses norte-americanas sobre o ps-modernismo, investindo contra o que ele cha-

mava de tendncias cticas dos defensores do ps-modernismo. Sua caracterizao da

tendncia intelectual assimila o que ele chama de tendncia lingstica ao uso da pala-

vra retrica. Sua proposta para refutar as teses dessas tendncias passa pela recupera-

o da Retrica de Aristteles e do carter judicirio da prova. O presente trabalho tem

por objetivo expor e analisar sua proposta de uma retrica da prova, em contraposio a

uma retrica literria e ctica, conforme exposta no seu livro Relaes de fora: histria,

retrica, prova. Para isso, abordamos seus trabalhos anteriores; as possveis motivaes

de sua anlise da Retrica, assim como sua leitura do texto antigo; e, por fim, sua crtica

ao ps-modernismo.

Palavras-chave: Ginzburg, Aristteles, historiografia, retrica, ps-modernismo.

ABSTRACT

The historian Carlo Ginzburg was involved throughout the 1980s and 90 in the american

discussion on postmodernism, arguing against the postmodern tendencies pointing to their

skeptical relativism. Ginzburg associates the postmodern emphasis in linguistics to the

use of the word rhetoric. His proposal intends to refute those skeptical tendencies by re-

covering the first book of Aristotles Rhetoric, where the greek philosopher defends a rhet-

orical proof based on argumentation and evidence instead of passion rousing. The present

work tries to analyze the book where Ginzburgs reading of Aristotle appears, History, rhet-

oric, proof, and his attempt to create an evidentiary rhetoric. Our work takes account not

only of the reading itself of the ancient text but also to the possibles contexts in which the

reading can be placed.

Keywords: Ginzburg, Aristotle, historiography, rhetoric, postmodernism.

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SUMRIO

6

07

22

51

82

120

128

INTRODUO

CAPTULO 1

CAPTULO 2

CAPTULO 3

CONCLUSO

BIBLIOGRAFIA

INTRODUO

Em 7 de dezembro de 1993, Yosef Kaplan toma a palavra na Universidade

Hebraica de Jerusalm. Relembra na sua breve fala o colega Menahem Stern,

assassinado quando se dirigia Biblioteca Nacional de Israel, logo aps o incio da

Intifada palestina, assassinato ocorrido em 22 de julho de 19891. Em homenagem ao

colega, foram institudas as Menahem Stern Lectures, nas quais historiadores

proeminentes exporiam ao pblico acadmico seus trabalhos em um srie de

conferncias. Carlo Ginzburg inaugurou a srie das Menahem Lectures. Trs foram as

conferncias: Sobre Aristteles e a histria, mais uma vez; Lorenzo Valla e a Doao de

Constantino; As vozes do outro uma revolta indgena nas ilhas Marianas. Ao longo da

dcada de 1990, as conferncias foram publicadas separadamente: nos Quaderni Istorici

(n 85, abril de 1995); como prefcio edio francesa da Doao de Constantino, de

Valla, em 1993; e na revista grega Ta Istorik em 1994. Em 1999, as conferncias foram

lanadas em livro, como o ttulo History, Rhetoric, Proof: the Menahem Stern Jerusalem

Lectures, acrescidas de uma longa Introduo e de um quarto captulo, Decifrar um

espao em branco. No ano seguinte, a edio italiana foi lanada sob o nome de Rapporti

di Forza Storia, Retorica, Prova, sem apresent-las mais como as Menahem Lectures,

seno atravs dos agradecimentos, mantidos da edio de 1999. Houve tambm a

supresso do agradecimento de Yosef Kaplan e a adio aos captulos anteriores de um

captulo sobre Warburg e Picasso: Alm do exotismo: Warburg e Picasso. O mote das trs

conferncias era o de combater certa tendncia presente na historiografia da poca de

adotar o que ele denomina de ceticismo ps-moderno, ou ao menos fazer homenagem a

essa tendncia retrica ou lingstica sem, contudo, alterar sua prtica historiogrfica.

Uma situao em que a um desenvolvimento inapropriado de posies tericas e uma

prtica historiogrfica que se desenvolve apesar desse desenvolvimento.

A matria do trabalho a anlise da recuperao de Aristteles em Relaes de

Fora, recuperao esta que sinaliza uma interveno do autor do livro em um campo

epistemolgico: os debates em revistas acadmicas, certos acontecimentos e processos

exteriores academia. Os ensaios de Jerusalm no eram as primeiras manifestaes de

1 Sobre isso, veja-se a nota publicada no jornal New York Times de 23 de junho de 1989, disponvel em: http://www.nytimes.com/1989/06/23/world/an-american-relief-worker-is-abducted-in-the-gaza-strip.html?scp=1&sq=".

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http://www.nytimes.com/1989/06/23/world/an-american-relief-worker-is-abducted-in-the-gaza-strip.html?scp=1&sq=http://www.nytimes.com/1989/06/23/world/an-american-relief-worker-is-abducted-in-the-gaza-strip.html?scp=1&sq=

Ginzburg. Argumentaremos que essas conferncias so representativas de um novo

modo de proceder do historiador italiano, que a partir de seu ltimo livro Histria

Noturna abandonou o tema que o fez famoso, a bruxaria, para dar mais ateno a

questes tericas e filosficas e a mobilizar-se a favor de sua identidade judaica e da

prova historiogrfica. A relao entre as duas se d na medida em que h associao

entre as tendncias que Ginzburg denomina de cticas ps-modernas e o revisionismo do

holocausto, relao esta que d razo a essa mobilizao identitria do historiador italiano

e s conferncias em questo. Veremos no captulo apropriado que 1984 o ano

importante para essa mudana.

O texto que se desenvolve a partir daqui tem esse carter quase parasitrio da

anlise. De fato, do trabalho do historiador italiano que ele se nutre. No tentamos

matar o hospedeiro, mas certamente nos alimentamos dele. O livro Relaes de Fora,

em nenhum momento, escapa escritura do nosso texto. Talvez tenhamos cometido uma

indelicadeza com o leitor, por conta dessa proximidade, chegando a supor um leitor

duplamente comprometido com a leitura, assim como estvamos duplamente

comprometidos com a leitura do livro e a composio do trabalho. Se nosso foco de

ateno est neste livro, podemos dizer que ele o centro de nosso corpus documental.

Mas em que bases se justifica um trabalho como esse, pode-se perguntar. Trata-

se, de fato, de uma pergunta importante. Os livros de Ginzburg so amplamente

difundidos no Brasil, o que j justifica seu estudo; h grupos que se inspiram no trabalho

do historiador italiano para conduzir suas pesquisas, como o Ncleo de Estudos e

Pesquisas Indicirias, na Universidade Federal do Esprito Santo. Interesse tambm pode

ser manifestado pelos debates acalorados ocorridos fora do Brasil, sobretudo nos EUA,

mas no apenas, a respeito do chamado ps-modernismo e ps-estruturalismo, da

chegada dessas vertentes tericas historiografia. Ginzburg, atravs das conferncias e

de sua publicao, entre outros artigos, marcou posio nesse debate. H trabalhos

brasileiros que analisam tal conjuntura, como os de Carlos Berberti Jr. e Jos

Vasconcelos. Julgamos, alm disso, que o caso presente seja um entre as inmeras

leituras dos textos da Antigidade e, embora incomum, deve ser levado em considerao.

A presena de Aristteles no debate no gratuita, e cremos que seja essa uma das

nossas contribuies. Por fim, trata-se tambm de uma investigao sobre os modos

como o historiador italiano construiu uma interpretao, e nesse caso, devemos ver esse

trabalho como a histria de uma interpretao.

Dividimos o material de pesquisa em trs captulos. O primeiro comea por

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constatar uma diviso na obra do autor; Ginzburg costumava escrever mais livros que

ensaios, e, em certo momento de sua trajetria acadmica sumiram os livros e restaram

apenas os artigos. Os artigos, por sua vez, transformaram-se em ensaios com

peculiaridades compositivas prprias, e que serviram como ferramenta de mobilizao

poltica atravs da historiografia. A partir do ponto de chegada, o primeiro captulo de

Relaes de Fora, tentamos detectar na obra anterior os problemas que foram mantidos,

e a consolidao da mudana de sua produo historiogrfica. O segundo captulo

analisa a interpretao da Retrica de Aristteles, luz da tese de Ginzburg de que a

proposta de Aristteles para a historiografia estaria na Retrica e no na meno a

Herdoto e histria no livro IX da Potica. O captulo, porm, no se restringe ao texto,

levando em conta as possveis motivaes do historiador e o cotejamento com a obra do

filsofo grego. O terceiro e ltimo captulo analisa a Introduo do livro, feita para a edio

americana em 1999. Reparamos, logo no incio, que apesar de criticar uma tendncia que

ele denomina ps-moderna ou ctica (a de Barthes e Hayden White), Ginzburg se dedica

a analisar e criticar outra (a de Derrida e dos seus intrpretes franceses e americanos). A

hiptese de leitura a de que o captulo uma resposta a certa conjuntura encontrada

pelo historiador italiano quando este comeou a lecionar e pesquisar em solo

estadunidense, no final da dcada de 1980. Reconstrumos ento os possveis motivos

para a mobilizao poltica e historiogrfica de Ginzburg. A parte final do segundo captulo

tem ainda uma tentativa de interpretao do texto de Derrida sobre a metfora, texto esse

ligado tese de Ginzburg do captulo, a metfora em Nietzsche, que tem suas razes na

definio primeira de metfora da Potica.

Deixamos, como de costume, algumas observaes sobre as ferramentas que

utilizaremos ao longo da dissertao para a introduo. Longe de ser algo sistemtico,

listamos apenas algumas referncias que nos auxiliaram a compor o trabalho. Um dos

problemas interpretativos que exigiu uma soluo metodolgica diz respeito forma em

que o dilogo com Aristteles ocorre. Os ensaios de Ginzburg possuem destinatrio, so,

portanto, assemelhadas a uma carta nesse aspecto. No se trata de um direcionamento

pessoal ou a referncia a um grupo, mas um destinatrio fictcio: o envolvido com certo

ofcio o de historiador que se v ou sob influncia ou em contato com as tendncias

(ps-modernas, cticas) que ele critica. Assim, uma das principais ferramentas

metodolgicas de que nos servimos a de contexto, pois apenas ela nos ajuda a ver

quais so os possveis destinatrios, isto , quem estava sob influncia ou em contato

com tais tendncias. atravs da noo de contexto que delimitaremos as formas de

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memorizao e intriga dos conceitos, a maneira como os conceitos so colocados em

jogo. Porm, a palavra contexto possui tantos significados que sua utilizao sem ter

antes traado os limites de sua aplicao prejudicaria a anlise em vez de torn-la

possvel. A dificuldade ao empregar o conceito o de dar justa medida ao contexto no

estabelecimento de nossa estratgia de leitura dos textos historiogrficos, seja de

Ginzburg, seja de outros. No podemos tomar o contexto apenas por algo que est fora

do texto, seja outro texto, seja a realidade. Nosso estudo trata da leitura de Aristteles

por Ginzburg e como este formula uma teoria da prova a partir da retrica respondendo a

uma certa configurao epistemolgica. Leituras e teorias so, no mbito da historiografia,

tratados nos domnios da histria intelectual. Nas ltimas dcadas, consolidou-se como

uma das principais vertentes tericas da histria intelectual a corrente inglesa de

Cambridge, bem representada por Quentin Skinner e J. Pocock. O sentido em que

empregaremos a palavra no ser exatamente o mesmo dos historiadores de Cambridge,

mas eles nos ajudaro tornar o emprego do vocbulo mais preciso.

O problema metodolgico seria ento o de considerar o texto de Ginzburg em dois

nveis: o primeiro como um texto historiogrfico, o segundo como uma interveno no

campo das discusses epistemolgicas e acadmicas. Este ltimo seria, a princpio, o tal

do contexto. Skinner, em Razo e retrica em Hobbes, publicado originalmente em 1996,

j havia percebido a necessidade de distinguir esses dois nveis:

A essncia de meu mtodo consiste em tentar situar esses textos em contextos que nos permitam, por sua vez, identificar o que seus autores estavam fazendo ao escrev-los. Como isso deixa implcito, estabeleo uma clara distino entre o que considero serem duas dimenses discernveis da linguagem. Uma delas tem sido convencionalmente descrita como a dimenso do sentido, o estudo do significado e do referente supostamente ligado s palavras e frases. A outra encontra sua melhor descrio como a dimenso do ato lingstico, o estudo da gama de coisas que os falantes so capazes de fazer em (por meio de) seu uso das palavras e frases. A hermenutica tradicional tem-se encontrado, de modo geral e amide exclusivo, na primeira dessas dimenses; quanto a mim, concentro-me muito na segunda. (SKINNER, 1999: 22-23).

Por identificar o que seus autores estavam fazendo, Skinner tem em mente um

uso especfico da linguagem, que o da linguagem como performance. John Pocock

afirma que esta uma das condies sem as quais no possvel restabelecer aos

atores a historicidade de seus atos:

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Mas para poder dar a eles [os atores de nossa histria] ou aos seus pensamentos uma histria, precisamos apresentar uma atividade ou uma continuidade de ao, constituda por coisas sendo feitas e acontecendo, por aes e performances, bem como as condies sob as quais essas aes e performances foram representadas e realizadas. (POCOCK, 2003: 64)

Ao considerar o uso estratgico da linguagem, coloca-se em evidncia o uso

atualizado das significaes tendo em vista a interao com outros atores discursivos.

esse sentido preciso que a linguagem assume quando considerada como ao. O

significado efetivo (isto , o que obtm sucesso ou, na linguagem de Austin, uma

proposio feliz) se d na interao entre os atores discursivos e no tanto no

enunciado ele prprio (um enunciado pode assumir diversos significados performativos

possveis para um leitor que o considere isoladamente).

A compreenso das obras de pensamento poltico s ocorrem em contexto ou, nas

palavras do historiador britnico in recognizing instead that our ideas constitute 'a

response to more immediate circunstances,' e que por isso we should in consequence

study not the texts in themselves, but rather "the context of other happenings [entendidos

aqui como atos de discurso equivalentes e no meramente aes] which explains them.

(SKINNER, 1969: 39). O contexto , portanto, a discusso especfica em que cada obra

de pensamento poltico surgiu e apenas nessa dimenso particular que ocorre a

compreenso. Skinner ainda argumenta que observando o contexto lingstico, ns

podemos mensurar as intenes do autor ao desempenhar um ato de fala, pois as

expresses de inteno so sempre convencionais e, na medida em que podem ser

identificadas essas convenes, podem ser identificadas as intenes (SKINNER, 1969:

133). Desse modo, o iderio (em ingls ideology) poltico determinante para a

compreenso das idias polticas.

No que nos diz respeito, no podemos aderir a essa metodologia, seno

parcialmente. Cabe notar que ela foi criada para o estudo do pensamento poltico

moderno, centrado em autores como Hobbes e Maquiavel, o que j de sada coloca um

problema de foco. Alm do mais, a formulao de Skinner soa um tanto radical. A

diferena entre compreenso e significado que permaneceu entre seu artigo de 1969 e

Razo e Retrica em Hobbes, de 1997 supe que o significado obtido em qualquer

leitura e mutvel; a compreenso, por sua vez, s se d na apreenso dos atos de fala

aos quais o autor tinha por inteno responder. No acreditamos em uma diferena to

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grande entre esses dois nveis. John Pocock respondeu a este tipo de crtica, matizando

um pouco a sua posio:

No estamos dizendo que o contexto lingstico seja o nico contexto que confere ao ato de fala um sentido e uma histria embora fatalmente venhamos a ser acusados disto. Dizemos apenas que esse um contexto promissor para se comear. (POCOCK, 2003: 64).

Skinner tambm se defende das crticas feitas a respeito de seu mtodo:

Mas no meu objetivo promover sua morte como autor, afogando-o num oceano de discurso. verdade que encaro sua viso da filosofia civil como largamente formada pela linguagem das discusses renascentistas sobre a natureza das cincias morais. Alm disso, no vejo nenhuma perspectiva de podermos compreender seu pesamento, a menos que tratemos desse discurso mais amplo como o objeto primrio de nossa pesquisa. Meu objetivo ltimo, entretanto, voltar aos textos de Hobbes, armado com o tipo de informao histrica que considero indispensvel para lhes dar sentido (SKINNER, 1999: 28).

Ao contrrio de Skinner, no preferiremos a contextualidade lingstica como

mtodo privilegiado. certo que a noo de contexto no est descartada, mas uma

abordagem como a de Skinner traz alguns obstculos que, caso fossem considerados de

forma estrita, impediriam a realizao do trabalho. Um deles a prpria idia de contexto

da forma como os historiadores de Cambridge a concebem:

Pois agora se v que, quando recuperamos os termos do vocabulrio normativo de que qualquer agente dispe para descrever seu comportamento poltico, estamos indicando, ao mesmo tempo, uma das limitaes aplicveis a esse mesmo comportamento. Isso sugere que, a fim de explicarmos por que tal agente faz o que faz, ser preciso referir-nos a seu vocabulrio, j que este com toda a evidncia se delineia como um dos fatores a determinar sua ao. E isso, por sua vez, sugere que, se concentrarmos nossas histrias no estudo desses vocabulrios, teremos condies de entender exatamente por que meios a explicao do comportamento poltico depende do estudo do comportamento poltico. (SKINNER, 1996: 12-13).

Como j foi dito, o significado da linguagem empregada obtida pelo historiador na

medida em que seu uso pode ser determinado, e segundo esses historiadores isso s se

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daria em contexto, uma vez que determinado livro, discurso ou qualquer outra

manifestao atravs da linguagem teria como fator predominante os debates nos quais

estariam envolvidos. Os atores sociais, por sua vez, dispem de repertrios de linguagem

ou de idiomas, especializados ou no, dos quais se servem para compor suas estratgias,

o que muitas vezes implica em alterar o prprio repertrio de que se serviu (considerando

que o repertrio nunca individual). Em termos prticos, significa uma base documental

muito ampla, apta a permitir ao historiador a identificao dos diversos idiomas que um

texto ou conjunto de textos podem conter. Nossa abordagem, centrada em um nico

historiador e sem a possibilidade de amplas bases documentais, no adequada para

uma metodologia estritamente contextualista. Isso se d por razes diversas: seja porque

os atores sociais ainda esto vivos, o que impede o acesso a uma srie de documentos

pessoais; seja porque os debates de que tratamos ainda esto em andamento, o que

um grande obstculo identificao dos idiomas; ou, como dissemos, porque nosso foco

est em um historiador apenas e por isso as inovaes lingsticas nos escapariam. Da

noo de contexto de Skinner nos resta, portanto, um uso parcial.

Alm da noo de contexto, utilizaremos a de performance, novamente com

modificaes. A ideia de performance de Skinner contrastiva, isto , o foco est nas

afirmaes envolvidas em um debate e a partir delas se define determinada performance.

Nosso uso se distancia um pouco ao uso de Skinner, pois d mais nfase prpria

composio formal. Por performance entendemos os traos formais que permitam

identificar o texto como um ato de fala. Por conseguinte, algumas figras retricas, como a

veemncia, surgiro ao longo da dissertao. A adoo de teorias tambm pode ser vista

como um ato performativo. Portanto, a diviso entre as dimenses do ato lingstico (a da

compreenso, segundo Skinner) e do significado (ou sentido, os dois termos so

empregados) no suficiente para nossos fins.

Uma soluo mais conveniente parece ser a de Claude Lefort. Provavelmente

alheio teoria do speech-act, ao seu uso como princpio interpretativo e falando sobre

filosofia poltica (embora o assunto principal dos contextualistas seja filosofia poltica e da

mesma poca que Lefort privilegia), ele distingue nos Discorsi (Discursos sobre a primeira

dcada de Tito Lvio) de Maquiavel vrios nveis: o que se pode chamar de contextual

num sentido prximo dos cambridgeanos, isto , o das discusses em Florena nas quais

Maquiavel era interlocutor; o figurativo, nome que damos atividade de escolher traos

para compor uma imagem, no caso do texto de Lefort, a comparao entre Roma e

Veneza feita por Maquiavel; o da Histria ou da filosofia poltica como tais; e, por fim, do

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prprio pensamento de Maquiavel como estrutura objetiva fenomenolgica. Mais que

apenas distinguir os nveis, Lefort afirma que impossvel dissoci-los ou ainda privilegiar

um aspecto ou outro:

No basta, com efeito, dizer que os Discorsi se desdobram em vrios registros ao mesmo tempo, que sua virtude de nos constranger a passar de um a outro. O essencial que nos tornam impossvel qualquer pausa em um lugar ou qualquer ancoragem em uma representao. desta impossibilidade que convm tomar medida pois graas sua provao que a presena da obra se nomeia (LEFORT, 1979: 162).

A posio de Lefort defende a unidade da obra como essa mescla indissocivel de

registros. A condio de obra (de pensamento), por seu lado, tem no leitor seu

condicionante, pois apenas ele o intrprete interpelado pelos vrios nveis

registrados na obra. Temos que ter em mente que Lefort lida com apenas uma obra de

Maquiavel, os Discorsi. Desnecessrio dizer que no podemos tratar os ensaios de

Ginzburg como uma s obra de pensamento (em parte pelo prprio gnero de escritura,

como veremos adiante). Porm, achamos til a diviso dos registros e nos reservamos a

opo de no abord-los como uma obra de pensamento nica, o que poderia acarretar

em uma exigncia de coerncia de pensamento que, acreditamos, Ginzburg no prope a

si e ao leitor. Muito pelo contrrio, ele preferiu expor suas posies de forma indireta e

esparsa. A discusso do ensaio como gnero tentar deixar essa posio melhor

delineada.

Outra forma de se ver as divises internas e externas ao texto a sugerida por

Roland Barthes, no terceiro tpico das disposies operatrias (expresso que ele prefere

palavra mtodo), chamada Coordenao, presente em sua Anlise Estrutural da

Narrativa. Por coordenao, ele entende estabelecer as correlaes das unidades, das

funes ajustadas e que esto muitas vezes separadas, sobrepostas, misturadas ou

ainda entranadas, pois que um texto, como a prpria etimologia da palavra o diz, um

tecido, uma trana de correlatos [...] (BARTHES, 1975: 166). Dessa forma, pretendemos

no apenas considerar a nossa documentao da maneira como prioriza o contextualismo

ingls, mas tambm as inmeras camadas presentes no texto.

Pouco falamos at agora da opo pela leitura de Aristteles. Podemos em parte

dizer que a presena do estagirita (Aristteles nasceu em Estagira, no antigo reino

macednico) se justifica na prpria opo de Ginzburg em eleger a retrica de Aristteles

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como a retrica recomendvel. Embora Aristteles no se faa presente em boa parte da

dissertao, ele uma dos eixos ordenadores da pesquisa, na medida em que ele nos

auxilia a demarcar os limites da narrativa. Trata-se, na verdade, de uma ocorrncia

estranha, essa linha narrativa que parece ser atrada para enredamentos Antigos, seja de

nossa parte, seja por parte dos autores que sero analisados.

H grande bibliografia sobre Aristteles, e seria necessrio mais de uma existncia

para dar conta dela. A valia de Aristteles seria pouca para nosso trabalho, pois resultaria

em uma comparao entre a leitura dos autores e suas verses do filsofo grego em que

um est necessariamente certo e o outro errado. Esse tipo de aferio no nos interessa,

pois nos exime de investigar o motivo de tal leitura, que o nosso interesse. Por isso,

quando usarmos atribuirmos algo ao filsofo grego, no se tratar tanto de uma referncia

de autoridade ao filsofo real, mas ao que foi dito dele, isto , o que restou de suas obras

e foi incontavelmente re-elaborado ao longo dos sculos. Embora parea uma obviedade,

necessrio assim fazer pois Aristteles se diz de vrias formas. Assim, a expresso as

obras de Aristteles significa no apenas o corpus, mas tambm a prtica interpretativa

acerca dos textos atribudos a Aristteles. No podemos deixar de esquecer que o nome

pode significar a figura histrica de Aristteles, da qual temos alguns testemunhos. Ou

ainda, o nome de Aristteles pode significar, por metonmia, toda a tradio filosfica da

Antigidade ou mesmo todo o conjunto de textos herdados. Evidentemente, essas

significaes podem estar presentes quando o leitor se depara com essa expresso ou

simplesmente o nome e este um problema semntico que no pode ser resolvido.

Nesse sentido, a leitura de Aristteles implica em seleo de traos ligados ao nome, seja

nos textos ou na tradio interpretativa, e no nosso caso trata-se mais de um Aristteles

figurado e intertextual2. Mas preciso deixar claro que se trata no de um Aristteles real,

mas de um Aristteles que foi construdo segundo os modos com que foi lembrado, um

Aristteles vivo que est no jogo de foras hodierno. Nos cabe, ento, investigar como

esse Aristteles foi construdo, quais so as condies de sua recuperao e mobilizao.

Comum ao estudo da Antigidade o carter mediado da maior parte da

documentao escrita. Nesse sentido, a pergunta sobre a origem do documento no pode

ser feita a seu aspecto material, mas apenas ao texto. Em termos prticos, isso significa

2 Evitarei a longa discusso acerca da intertextualidade, existente desde sua introduo por Julia Kristeva. Adotaremos a verso de Roland Barthes, que em Anlise Estrutural da Narrativa, define intertextualidade como um trao do enunciado [que] remeta para um outro texto, no sentido quase infinito da palavra,[...]. O ponto que mais nos interessa , contudo, o da tradio implicada no conceito, pois Naquilo a que se chama o intertextual, preciso incluir os textos que vm depois: as fontes de um texto no esto s antes dele, esto tambm depois dele (BARHTES, 1970: 167).

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que muitas vezes um texto reconstitudo a partir de inmeros manuscritos com o mesmo

texto ou, o que pior, poucos manuscritos. Nos casos mais dramticos, como os da

filosofia helenstica, temos apenas relatos de compiladores, como Digenes Larcio e

Sexto Emprico, que alm de mediados so testemunhos indiretos, normalmente relatos

sobre determinado autor ou assunto ou ainda anedotas. Longe de ser apenas uma

caracterstica particular ou ainda obstculo para a perfeita compreenso da Antigidade, o

carter mediado da documentao o principal conformador da rea, sobretudo porque

em muitos casos tudo o que temos so j interpretaes reiteradas sobre um determinado

autor, acontecimento, instituio ou costume j nos prprios compiladores antigos.

Aristteles um desses casos em que isso se deve levar mais em conta. Ao

contrrio dos dilogos platnicos, as obras de Aristteles passaram por um processo

dramtico de reformulao e transmisso. A edio considerada normativa para a citao

das obras de Aristteles, a edio de Immanuel Bekker de 1831, conta com mais de cem

manuscritos para a obra de Aristteles e seus comentadores. Grande parte desses

cdices so dos sculos X dC a XVI dC. H, alm desses, uma obra descoberta no final

do sculo XIX no Egito, um cdice contendo a Constituio de Atenas (MURARI PIRES,

1998: 389-391). Os textos de que dispomos atualmente so resultado do trabalho intenso

de edio e crtica a partir desses manuscritos, e no o trabalho fixado pelo autor. Mesmo

na Antigidade as obras de Aristteles passaram por inmeras vicissitudes. Perdidas duas

geraes aps a morte do filsofo, elas voltaram a ser conhecidas amplamente apenas na

poca de Ccero. O que nos conta a tradio anedtica3 de que as obras foram editadas

por Andrnico de Rodes no sculo I dC, edio da qual, especula-se, temos a base das

edies modernas. Que no se ache que temos um bom panorama das obras

aristotlicas, mesmo as editadas. Da lista fornecida por Digenes Larcio em sua Vida de

Aristteles, as obras que dispomos reduzem-se, grande parte, s chamadas teorticas.

No temos as obras chamadas exotricas, feitas para o pblico geral, assim como os

dilogos aristotlicos, sob influncia platnica, ou suas cartas. Ainda sobre a Retrica, h

um manual anterior listado por Digenes Larcio, chamado de Retrica ou Gryllus (nome

do filho de Xenofonte, personagem do dilogo). As obras que temos, especula-se, eram

notas dos cursos dados no Liceu. Livros como o da Metafsica existem por serem uma

reunio de textos reunidos sobre o mesmo tema, e no raro sua unidade disputada4.

3 As fontes so a Vida de Sila, de Plutarco (Vidas Paralelas, Vida de Sila, 26), alm de um comentrio presente no livro XIII da Geografia de Estrabo (Geografia, XIII, 1,54). Estrabo (de 63 e 64 aC a 24 dC) contemporneo descoberta.

4 W. D. Ross, em seu Aristotle, j aponta o problema: Many entries in Diogenes' Laertius' list with titles at first sight

16

Citamos todos esses percalos apenas para tornar evidente a especificidade dos estudos

aristotlicos, compartilhadas em certo grau por todos que estudam as obras que tm sua

origem na Antigidade. No caso deste, a natureza do texto o resultado da apreciao e

aplicao de seus leitores, que, da forma mais literal possvel, conformaram a

estruturao de suas obras. Essa caracterstica, embora exagerada no caso do filsofo

grego, comum a toda tradio manuscrita de transmisso de textos gregos e latinos.

A melhor ilustrao de nosso argumento o prprio texto da Retrica de que

dispomos hoje. Os fillogos separaram as trs fontes para o estabelecimento do texto. O

primeiro, mais antigo e mais confivel o Parisinus 1741, que contm a Potica e a

Retrica de Aristteles alm de tratados de Retrica de outros autores. A segunda o

original grego que teria sido usado por Guilherme de Moerbeke para compor sua

traduo, chamada de Vetusta Translatio; cabe notar que essa verso hipottica,

retraduzindo o texto latino para o grego5. A terceira fonte e menos confivel so as duas

verses, uma compostas por diversos manuscritos parisienses (Parisinus 1869, 1818,

2038, 2116) por Thomas Gaiford em 1820, e outra por Bekker provavelmente para sua

edio de 1831 que se vale de manuscritos do Vaticano e de Veneza (Vaticannus 23 e

1340, Marcianus 200) (DUFOUR, 1932: 19-23). Cabe notar que cada manuscrito tem

seus percalos interpretativos, e mesmo o manuscrito considerado mais confivel passou

por dificuldades de edio uma das edies da Retrica consultada afirma que a verso

de Bekker desse manuscrito ignora as correes feitas pelo prprio copista nas margens

(idem, ibidem). A prpria consistncia interna da obra est sujeita a debates. Embora uma

certa doutrina sobre a retrica seja reconhecida (RORTY, 1996: 1 ss.), supe-se que

exista uma reviso apressada da obra, que leva a inconsistncias internas e imprecises

terminolgicas, alm da composio heterognea pelo prprio filsofo ou editores

(RORTY, 1996: 419). Essas so as conjecturas de George Kennedy, estudioso

estadunidense de retrica responsvel, entre outros trabalhos seus, por uma traduo da

Retrica. H ainda evidncias internas e externas como a lista de obras que h em

unfamilliar seem nevertheless to refer to parts of extant works. In this connexion it must be noted that the longer existing works are not unitary wholes but collections of essays on connected themes, and that the separate essays are the original units, which were connected together sometimes by Aristotle and sometimes (as in the case of the Metaphysics) by his editors. (ROSS, 1996:8). Jonathan Barnes, no Companion to Aristotle, editado por ele, avalia a lista de Digenes Larcio da seguinte forma: The original source of this catalogue is disputed (did it come ultimately from the Lyceum, or did it derive from a catalogue from the great library at Alexandria?); and its general level of reliability is uncertain. It is not complete it omits some of Aristotle's mosr celebreted surviving works. It contains some some things which were surely not written by Aristotle all ancient book-lists have their spurious items. It includes a number of dublets - that is to say, the same work may be included twice, under two different titles. (BARNES, 1995: 7).

5 George Kennedy, por sua vez, chama de Old Translation a que foi feita por, talvez, por Bartholomew of Massina, e lista alm desta a de Moerbeke como as tradues latinas da Retrica (RORTY, 1996: 423).

17

Digenes Larcio de que o tratado de Retrica possusse originalmente dois livros,

enquanto o terceiro seria o tratado Sobre o estilo, como indicado nessa listagem.

Kennedy supe, nesse caso, que a ligao entre as duas obras pode ter sido feita por

Aristteles mesmo ou pelos editores responsveis pela publicao romana das obras em

grego, o gramtico Tyrannio e Andrnico de Rodes.

A tradio filosfica e filolgica tem procurado encontrar indcios textuais que

indiquem certa ordem de composio dos tratados e as linhas gerais dessa ordem at

existem. Os expoentes desse tipo de interpretao o fillogo alemo Werner Jaeger,

alm do filsofo britnico W. D. Ross (tanto o Aristteles de Jaeger quanto o Aristteles de

Ross apareceram no mesmo ano, e este ltimo endossa as teses de Jaeger no prefcio

da primeira edio). Como aponta o filsofo italiano Enrico Berti, essas interpretaes que

levam em conta a dinmica histrica da composio so reinterpretaes que livraram o

filsofo grego da fama de escolstico, (m-)fama obtida ao longo da Idade Mdia e da

qual s se livrou no sculo XX. O livro de Berti tem por objetivo justamente mostrar a

fecundidade filosfica do estudo dos textos aristotlicos ao longo do sculo XX,

abrangendo a boa parte das correntes filosficas, de Heidegger, Austin neo-retrica. O

mote do livro de que as melhores interpretaes de Aristteles so as que colocaram os

textos do filsofo grego (o verdadeiro Aristteles, segundo ele) em contato com os

problemas contemporneos6. Com proposta radicalmente diferente de Jaeger e Ross,

h uma abordagem que privilegia a interpretao do sistema filosfico de Aristteles

independentemente da ordem de sua composio, evitando problemas que poderiam ser

chamados de histricos. No Brasil, temos o trabalho do professor Oswaldo Porchat

Pereira Cincia e dialtica em Aristteles, no qual investiga noo de cincia nos

Primeiros e Segundos Analticos e nos Tpicos. Porchat estudou na Frana sob a

orientao de Victor Goldschmidt, autor de A religio de Plato e com o mesmo

direcionamento interpretativo7, direcionamento este defendido, sobretudo, por Martial

Guroult em seu Descartes e a ordem das razes. As obras de Jaeger e a de Porchat so

exemplos de direcionamentos interpretativos opostos, cada um fruto de padres

epistemolgicos diversos, no caso de Jaeger no apenas histrico mas do neo-

humanismo alemo fundado por ele, e no caso Porchat de uma tendncia a

6 Idia essa que ele expressa de forma geral no prefcio, ao se referir a Leibniz (BERTI, 1997: 8) e retoma com clareza na Concluso, ao citar as contribuies Fsica e Biologia proporcionadas pela releitura sem preconceitos das obras de Aristteles.

7 Sobre os princpios hermenuticos de Goldshmidt, veja-se um dos captulos de A religio de Plato, Tempo histrico e tempo lgico na interpretao dos sistemas filosficos.

18

interpretaes estruturais que ocorreu na Frana em meados do sculo XX8.

Nosso objetivo ao expor as condies em que os textos de Aristteles se

apresentam a de justificar nosso modo de leitura. Os textos de Aristteles so um

testemunho de uma intensa e prolongada prtica interpretativa, e dessa forma que

pretendemos mobiliz-lo. De que forma a interpretao de uma massa de textos at certo

ponto malevel pode ter ajudado a criar divises disciplinares e conceitos? Como a

organizao dos textos aristotlicos, ao privilegiar um texto em vez de outro, podem

formar uma imagem aceitvel ou inaceitvel do filsofo ateniense? Embora gerais, so

perguntas importantes para o direcionamento do estudo. O Aristteles grego ou o

verdadeiro Aristteles como afirma Berti em contraposio ao Aristteles escolstico

s nos interessa na medida em que nos permite vislumbrar as opes interpretativas e

como essas opes serviram para a constituio de outros saberes, atualizando a

Antigidade e colocando em operao as linhas de fora de suas memorizaes. Essas

memorizaes de Aristteles podem ser escolhidas como um dos panos de fundo sobre o

qual esta dissertao se apoia e veremos, nos captulos dois e trs, que as selees e

memorizaes esto operantes na interpretao da Potica e da Retrica.

Outro problema que julgamos pertinente o colocado pela historiadora e helenista

francesa Nicole Loraux na conferncia O elogio do anacronismo, publicada em 1993 no

Brasil. No artigo, fortemente inspirada pela reflexo de Michel de Certeau, ela afirma que

o anacronismo o pesadelo do historiador, o qual deve evitar importar noes que sua

poca de referncia supostamente no conheceu, e evita mais ainda proceder a

comparaes por princpio indevidas entre duas conjunturas separadas por sculos

(LORAUX, 1993: 57). Ao citar exemplos de sua prpria gerao, contudo, ela mostra

como a tentativa de restituir a voz aos gregos (sua rea de atuao a da democracia

clssica ateniense), necessria em certa conjuntura poltica e acadmica, impediu a

reflexo sobre a prpria profisso. O resultado de sua reflexo o de que, ao tomar os

gregos como portadores de uma historicidade ou alteridade absolutas, impede-se o

conhecimento de suas categorias. Uma certa dose de (an)acronismo, ento, necessria,

ou, em suas palavras, de uma maneira ou de outra que partilhssemos algo de seus

sentimentos e pensamentos (LORAUX, 1993: 60). Importante para a nossa considerao

tambm o comentrio que vem a seguir no texto:

8 E que no se deve confundir com o estruturalismo lingstico, embora as duas tendncias tenham estabelecido laos de solidariedade no campo acadmico francs da poca. Sobre a assimilao da obra de Gueroult e Goldschmidt a essa tendncia estrutural, h a obra de Franois Dosse sobre a histria do estruturalismo (DOSSE, 2007: 125-129).

19

Mas isso supunha tambm que no se fizesse tbula rasa das leituras mltiplas que, deles a ns, haviam sido feitas na Grcia antiga; pois essas leituras, sobretudo se eram recentes, como as de Nietzsche ou de Freud, no se podia contentar em trat-las pelo silncio, porque so parte integrante de uma tradio sedimentada que nos informa sem que sequer nos apercebamos disso. (LORAUX, 1993: 60).

Para defender o que ela chama de regime de anacronismo, ela evoca a autoridade

do exemplo de Marc Bloch, que defendia que o historiador deveria compreender o

presente pelo passado e o passado pelo presente (idem, p. 61). A prtica heurstica do

anacronismo consistiria, enfim, em assumir o risco de colocar questes do presente ao

passado, de forma controlada. A aplicao de conceitos anacrnicos documentao faz

surgir a diferena entre passado e presente (idem, p. 62), o que permite ao historiador

retornar do passado com questes pertinentes ao presente (idem, p. 64). Nicole Loraux

termina seu texto defendendo uma histria que no contnua nem descontnua, mas

uma histria do repetitivo. Porm, uma implicao pode ser obtida da proposta da

historiadora francesa. Ao considerar no apenas os textos da Antigidade mas as suas

sucessivas leituras, ela reconhece que a sua prpria leitura participa desse

encadeamento quase inumervel de atualizaes desses textos. Como considerar o

anacronismo nessa multiplicao das interpretaes? A sugesto de Loraux, cremos, ia

mais na direo de aplicar modelos os quais se sabe de antemo anacrnicos. Porm,

nem todos os anacronismos so detectveis ou inevitveis e isso o que torna possvel

identificar uma interpretao. Trata-se, sem dvida, de um problema delicado, do qual ns

poderemos ao longo do trabalho adotar uma soluo provisria.

Um outro texto de Loraux mostra-se mais prximo do que almejamos para nosso

estudo. Trata-se do ensaio escrito a quatro mos com Pierre Vidal-Naquet, La Formation

de lAthnes Bourgeoise: Essai dHistoriographie 1750-1850, onde localiza-se uma certa

imagem de Atenas. Loraux e Vidal-Naquet procuram responder o motivo pelo qual

Athnes est devenue pour les professeurs franais et pour nombre de leurs lves de la

modle de la socit librale et bourgeoise; modelo criado por valores prprios e atuais

do contexto de sua formulao moderna: Libert, commerce, proprit, famille: les

lments dune Athnes bourgeoise sont rassembls pour la joie des petits et des grands.

(LORAUX; VIDAL-NAQUET, 1990: 163). Os autores viram, ao longo de cem anos, a

criao e disperso de uma imagem de Atenas, imagem na qual as lacunas da

documentao eram preenchidas segundo as necessidades da poca, de natureza tica,

20

econmica ou epistemolgica. As diferenas entre as leituras tornam evidentes tanto a

historicidade quanto o anacronismo.

21

CAPTULO 1

Neste primeiro captulo, achamos por bem melhor delinear tanto a obra de

Ginzburg, atravs de suas obras e artigos precedentes, quanto mostrar a mudana

significativa que houve em seu modo de produzir. Anteriormente conhecido por seus livros

monogrficos, seja os que tratam de temas relacionados cultura popular, em especial os

de bruxaria, seja os que tratam de cultura erudita, em especial histria da arte, o

historiador italiano passou a produzir somente artigos ou conferncias que depois eram

transformados em ensaios. Os ensaios de Relaes de Fora pertencem a essa segunda

maneira de trabalhar desenvolvida ao longo dos anos, e tentaremos descrever aqui essa

passagem das monografias aos ensaios. Entendemos que , por si, tarefa ingrata fazer

uma sistematizao abrangente do pensamento de Carlo Ginzburg, algo semelhante a

uma evoluo. A expresso evoluo do pensamento j inadequada o suficiente. Ela

supe um movimento interno, uma espcie de lgica intrnseca, que direciona este

conjunto indefinido que chamamos de pensamento. Contudo, no encontramos outro

formato adequado, e no podemos nos esquivar da tarefa de encontrar pontos comuns na

trajetria intelectual para compor um quadro de referncia geral para suas interpretaes.

No caso do historiador italiano, os problemas historiogrficos so retomados ao longo dos

anos e reformulados para atingir novos objetivos. Esperamos conseguir expor ao menos

os traos principais da reflexo feita por Ginzburg atravs de seus ensaios e livros nas

ltimas dcadas. O objetivo aqui mais traar um parmetro interpretativo que nos

aprofundarmos no sujeito histrico Ginzburg, afinal nos faltam documentos para isso.

A mudana j apontada no modo de apresentao do seu trabalho no gratuita, e

vem acompanhada com outras mudanas igualmente importantes. Ginzburg no tem

pesquisado mais sobre bruxaria, ou publicado sobre isso. Uma hiptese que explica essa

interrupo ou ao menos suspenso a de que seus livros sobre a bruxaria esto

ligados a um contexto poltico e historiogrfico pertencente s dcadas de 1970 e 80.

Outra caracterstica o tom autobiogrfico que se tornou freqente nas introdues de

seus livros e que pode ser visto sem dificuldade como subtexto de alguns de seus

ensaios; acompanhado a esse trao est sua mobilizao judaica, que direcionou o seu

interesse j existente por temas de teoria e mtodo em histria9. No se deve ignorar, 9 Infelizmente, o tom autobiogrfico no poder ser tratado sistematicamente, a no ser como evidncia no caso de

sua mobilizao judaica. Constatamos apenas que ele se tornou mais freqente a partir da dcada de 1990, sobretudo

22

alm disso, a permanncia e aperfeioamento de prticas anteriores, e sua adaptao ao

seu novo modo de fazer. Procederemos assim reviso dos trabalhos anteriores tambm

com esse fim.

Antes de iniciar a breve (porque um captulo certamente no o suficiente) anlise

da carreira acadmica de Ginzburg, devemos citar a referncia principal que nos ajudou a

organizar o relato. A anlise das obras de Ginzburg at Histria Noturna, enfatizando a o

micro-historiador que h nelas, foi empreendida pelo brasileiro Henrique Espada Lima.

Em livro publicado em 2006, no qual analisa os principais autores da Micro-histria

italiana, com um captulo sobre Carlo Ginzburg. Cotejaremos, portanto, nossa narrativa

com a dele, a qual certamente se deve recorrer em temas no tratados aqui. Espada Lima

mapeia algumas das opes intelectuais de Ginzburg, como a escolha de uma

abordagem mais filolgica de Pisa ao meio intelectual de Turim, o qual seu pai pertencera

e onde certamente teria recepo calorosa de seus antigos colegas (de escola e de

miltncia poltica no Giustizia e Libert) como Norberto Bobbio e Giulio Einaudi (ESPADA

LIMA, 2006: 281).

Ainda atravs da narrativa de Espada Lima, vemos o apreo pela abordagem

filolgica aos documentos. O peso dessa abordagem pode ser mensurado ao ler suas

narrativas autobiogrficas sobre seus anos de formao em Pisa, nos quais Ginzburg

aponta Arsenio Frugoni e Delio Cantimori como os principais professores que o

orientaram nessa direo. Tanto o trabalho de Cantimori quanto de Frugoni seriam

decisivos para a que se formasse no jovem Carlo Ginzburg a opo pela histria e que se

consolidasse nele suas primeiras prticas historiogrficas; os dois professores seriam

ainda importantes por apresentarem a ele escolas de historiografia e histria da arte que

seriam objeto de reflexo de Ginzburg por anos. Frugoni incentivou Ginzburg a entrar ter

contato mais prolongado e profundo com a historiografia do grupo dos Annales, em

especial Marc Bloch; Cantimori10 o apresentou, em viagem de ambos a Roma, ao Instituto

Warburg. Espada Lima faz um esboo geral do modo como Ginzburg faz histria, atravs

da mistura de inmeras influncias interpretativas aplicadas a objetos diferentes:

'Deslocamento' poderia ser chamado o seu mtodo favorito - a transferncia de questionamentos e ferramentas de um lugar para outro: a filologia textual aplicada a textos no literrios, problemas de

nas introdues dos livros e nas entrevistas. 10 " um pouco dessa qualidade [de fazer sentir as vozes humanas] que Cantimori via em Warburg - e a partir dele a

tradio de estudos que fundara - que acaba por confluir nos interesses filolgicos que Ginzburg alimentara em seus trabalhos" (ESPADA LIMA, 2006: 296).

23

histria social aplicados histria da arte, interrogaes prprias da anlise iconolgica recolocadas diante de mitos, morfologia empregada para a anlise de materiais histricos (ESPADA LIMA, 2006: 281).

Ora, embora tenha desde o incio interesses amplos, Ginzburg acabou conhecido

por causa de seus trabalhos de micro-histria. Porm, o rtulo no satisfatrio.

Corrente a partir da segunda metade da dcada de 1970, a denominao se aplica a

trabalhos de inmeros historiadores italianos e entre eles Carlo Ginzburg. A referncia

mais apropriada no tanto aos autores, mas ao conjunto de textos publicados na revista

Quaderni Storici ao longo da dcada de 197011. A variedade de interesses e mtodos,

nota Espada Lima, no pode ser restringida ao rtulo: o termo 'micro-histria' no d

conta de abranger o conjunto de discusses que marcam o trabalho desse historiador

(ESPADA LIMA, 2006: 281). O mapeamento feito por Espada Lima torna evidente a

importncia dos estudos filolgicos e literrios para sua posterior formulao do

paradigma indicirio. Torna evidente tambm a relao entre a anlise dos detalhes e o

ensaio como forma privilegiada de reflexo, o qual Ginzburg soube transportar para a

historiografia.

Mesmo antes de saber dos precedentes intelectuais de Carlo Ginzburg, o contato

freqente com seus textos nos fez levantar a suspeita de que, caso se queira estud-los

de forma sistemtica, seria necessrio compreender sua forma de escrita para alm do

que considerado como estilo. Acreditamos que h um entrelaamento entre, por um

lado, forma de escrita o que inclui o gnero ensaio como forma privilegiada de reflexo

e os problemas conceituais encontrados em sua prtica historiogrfica, por outro.

Ao tratar do ensaio, argumentamos que existe alguma intencionalidade em

diversos elementos textuais aos quais chamamos a ateno. No que tudo seja

premeditado desde o incio, mas que o prprio autor costuma rever as prprias prticas e

tentar alcanar nveis de formalizao sobre elas. O mesmo ocorre com os propsitos

polticos e suas declaraes de subjetividade. Esses momentos de reflexo so os

indcios que utilizamos para tentar elaborar um esboo do historiador a partir de suas

obras.

Entre os inmeros nveis que podemos isolar nos textos de Ginzburg (podemos

focar apenas os aspectos metodolgicos, a reconstruo historiogrfica, a leitura das

11 Novamente a referncia principal o trabalho de Espada Lima, desta vez o captulo 1 que relata a histria da revista e seu papel na renovao da historiografia italiana a partir da dcada de 1960 (ESPADA LIMA, 2006: 59-135, em especial 129-135).

24

fontes, a cadeia argumentativa, a relao entre os textos...), cremos que seria

especialmente adequado levar em considerao a conformao escrita dos textos. Mais

que textos, so ensaios. A qualificao de ensaio para seus textos aparece j na

introduo de Mitos, emblemas, sinais, de 1986. A palavra ali empregada em sentido

amplo, como sinnimo de texto ou artigo; ele descreve, por exemplo, o seu

direcionamento para os problemas especificamente morfolgicos na documentao

atravs do encontro com os ensaios de Lvi-Strauss (GINZBURG, 1989: 9). No se

trata, portanto, de uma referncia estrita ao gnero ensaio. Ginzburg demonstra, contudo,

inquietao com a forma com que as pesquisas histricas eram apresentadas, nas

limitaes de mtodo implicadas nessas formas consolidadas de apresentar um texto

histrico. Escrita e mtodo esto aqui intimamente ligados:

A anttese [entre narrativa e morfologia] parecia-me ento intransponvel, visto que ligada a uma limitao intrnseca da disciplina. Mas eu no tinha certeza de que a escolha feita esgotasse as possibilidades oferecidas pela documentao sobre os andarilhos do bem. Por algum tempo, joguei com a possibilidade de apresentar as concluses de minha pesquisa sob formas tambm literariamente diferentes: uma concreta e narrativa, outra abstrata e diagramtica. (GINZBURG, 1989: 9).

Outra introduo, escrita dezesseis anos aps esta primeira, traz a rememorao

acerca do uso dos mtodos de crtica literria aplicada a textos histricos. Ao relembrar a

introduo de Mitos, emblemas, sinais, em Nenhuma ilha uma ilha, Ginzburg novamente

demonstra certo receio acerca das prticas de apresentao da pesquisa:

No sei se retroceder a partir do final, da soluo, um hbito corriqueiro no trabalho intelectual. Tenho a impresso de que, no meu caso, essa propenso se acentuou com o tempo, por motivos tanto objetivos quanto subjetivos. (GINZBURG, 2004: 12).

No poderemos responder, mas cabe perguntar se o hbito da retrodico no

ocorre tambm pela necessidade de provar, de onde se parte de uma situao dada

sobre a qual se formula uma hiptese. Porm, cremos que a diferena fundamental entre

as duas reservas, que a da dcada de 1980 diz respeito a consideraes de mtodo,

onde h a possibilidade de apresentar de formas distintas o que foi pesquisado. J a

segunda faz parte de uma justificao retrospectiva da forma de escrever onde tal opo

no se apresenta. Em seguida, refere-se agora ao ensaio como gnero textual, tanto que

o prprio autor questiona sua fidelidade ao gnero:

25

Mas sero esses ensaios genunos? Quem pensar na tradio majoritariamente inglesa, inaugurada por Addison e Lamb uma conversa urbana e cosmopolita, elegantemente informal, sobre temas que muitas vezes so meros pretextos -, negar o atributo a estas pginas to pouco ligeiras, carregadas de observaes eruditas. Mas quem identificar a espinha dorsal do gnero ensastico na linha que vai de Montaigne a Diderot e alm no se assustar com a presena de notas de rodap (GINZBURG, 2004: 12).

Nossa inteno ao expor o problema do gnero ensastico na obra de Ginzburg

tentar demonstrar as implicaes tericas desse gnero. Segundo acreditamos, trata-se

de uma forma de posicionamento do autor nos debates acerca da natureza da

historiografia, polarizada entre literria e ficcional ou cientfica. Nesse sentido, nos cabe

ento conhecer a codificao que o autor d a seus textos. O prprio Ginzburg reconhece

que tem praticado quase exclusivamente o gnero ensaio na ltima dcada (a data final

da composio do livro de junho de 2002), englobando assim as coletneas temticas

surgidas a partir de 1998 (isto , a partir de Olhos de Madeira). O recorte significativo,

pois envolve o perodo aps seu envolvimento na polmica (que trataremos com mais

vagar em outro momento da dissertao) com Hayden White j mencionada. Na

introduo de seu livro mais recente, O fio e os rastros, ele afirma ter sido alertado para

as implicaes de trabalhos como os de White atravs de um texto de Arnaldo Momigliano

que data de 1981 (GINZBURG, 2007:8). O resultado do engajamento na causa seria o

posfcio ao livro de Nathalie Zemon Davis, O retorno de Martin Guerre, de 1984. O

posfcio, republicado (e provavelmente modificado pelo autor para a ocasio), possui um

trecho onde h um posicionamento explcito:

Analisar historicamente essas relaes [entre cdigos estilsticos e as selees de aspectos da realidade; entre as relaes mutveis entre narrativa historiogrfica e outros tipos de narrativas] feitas, pouco a pouco, de trocas, hibridaes, contraposies, influncias num s sentido seria muito mais til do que propor formulaes tericas abstratas (com freqncia, implcita ou explicitamente normativas) (GINZBURG, 2007: 320; itlico adicionado).

A referncia velada (ou no to velada assim) a Hayden White e seu Meta-histria

(que trataremos em outro momento da dissertao) , a nosso ver, um indcio do que

Ginzburg no pretende fazer, isto , propor uma soluo para o problema em um nvel

abstrato, que poderia ser aplicado tambm teoria da histria tradicional. Ele tambm

26

no pretende atribuir a um nvel superior e prescritivo a validade do discurso

historiogrfico, da a importncia cognitiva do ensaio. Analisar historicamente essas

relaes, em nossa opinio, significa exatamente a prtica ensastica.

A principal referncia terica para o gnero ensaio apresentada na (j mencionada)

Introduo de Nenhuma Ilha uma ilha outro ensaio, este de Theodor Adorno, O ensaio

como forma. Nele, um ensaio sobre o ensaio, Adorno nota o carter no-sistemtico dos

conceitos tecidos na argumentao do gnero, afirmando que sua preciso depende, em

grande parte, da argumentao tecida e no de uma fundamentao prvia:

O ensaio, em contrapartida, incorpora o impulso anti-sistemtico em seu prprio modo de proceder, introduzindo sem cerimnias e imediatamente os conceitos, tal como eles se apresentam. Estes s se tornam mais precisos por meio de relaes que engendram entre si. [...] A cincia necessita da concepo de conceito como uma tabula rasa para consolidar sua pretenso de autoridade, para mostrar-se como o nico poder capaz de sentar-se mesa. Na verdade, todos os conceitos j esto implicitamente concretizados pela linguagem em que se encontram. O ensaio parte dessas significaes e, por ser ele prprio essencialmente linguagem, leva-as adiante; ele gostaria de auxiliar o relacionamento da linguagem com os conceitos, acolhendo-os na reflexo tal como j se encontram inconscientemente denominados na linguagem (ADORNO, 2003: p. 28-29).

Para um eventual leitor de Ginzburg, difcil no associar a caracterizao de

Adorno do ensaio ao gnero praticado pelo historiador italiano. No raro que este

comece enunciando um problema atravs de um caso concreto (o sentido dado a esse

caso concreto s se sabe, contudo, ao final do texto) e retome o argumento atravs de

leituras de autores, no raro retomando a tradio clssica e moderna. no final do texto

que se retoma o problema em sua contemporaneidade, como se brotasse das densas

camadas sedimentadas de interpretaes das geraes passadas.

A relao entre narrativa e a documentao no se d em um espao interpretativo

sem fronteiras ou universal, mas muito bem delimitada pela historicidade dos eventos

retomados atravs da prpria documentao. O carter provisrio e fragmentado do

ensaio tambm descrito por Adorno como uma de suas caractersticas principais,

estreitamente relacionadas histria:

Mesmo as criaes da fantasia, supostamente liberadas do espao e do tempo, remetem existncia individual, ainda que por derivao. por isso que o ensaio no se deixa intimidar pelo depravado

27

pensamento profundo, que contrape verdade e histria como opostos irreconciliveis (ADORNO, 2003: 26).

Este trecho do ensaio de Adorno ilumina, a nosso ver, a afirmao de Ginzburg de

que a investigao sobre trocas, hibridismos e influncias seria muito mais til do que

propor formulaes tericas abstratas (GINZBURG, 2007: 320). A conformao dos

textos em ensaios, portanto, revela uma atitude reticente do autor para propor respostas

para os problemas da historiografia hodierna; talvez mais do que isso, uma tentativa de

no distinguir (na escrita) os nveis de linguagem linguagem objeto e metalinguagem

para no atribuir nveis de realidade desiguais entre os dois. Um trecho um tanto

enigmtico da Introduo de Relaes de Fora pode ser lido a partir dessa ambigidade:

Raramente a distncia entre reflexo metodolgica e prtica historiogrfica efetiva foi to grande quanto nos ltimos decnios. Parece-me que o nico modo de super-la tomar a srio o desafio cptico, procurando expressar o ponto de vista de quem trabalha com os documentos, no sentido mais amplo do termo. A soluo que proponho transfere para o mago da pesquisa as tenses entre narrao e documentao (GINZBURG, 2002: 14).

O gnero ensaio, nesse sentido, parece ser a forma de escrita adequada para

ultrapassar o desafio cptico. Diante do ensaio de Adorno, sua convenincia

argumentativa se torna evidente: facilita a traduo dos termos da discusso para seu

prprio campo; permite expressar a historicidade dos indcios; e remete, mesmo as

criaes da fantasia, existncia individual (e no a grandes divises como histria ou

literatura). No poderemos, ainda, nessa etapa da pesquisa, fornecer uma posio

definida sobre as demais implicaes, uma vez que partes importantes das concepes

de Ginzburg sobre a prtica e escrita da histria ainda no foram investigadas (como a de

fato histrico ou ainda a de narrativa). A afirmao de que Estes [os conceitos] s se

tornam mais precisos por meio de relaes que engendram entre si. nos parece

adequada para explicar a atitude de Ginzburg, seu lance, ao recolocar os problemas em

seus prprios termos.

Outras influncias podem ser reivindicadas. O historiador britnico Peter Burke, ao

resenhar Mitos, emblemas, sinais, nota as influncias de Warburg e Auerbach, s quais

ns poderamos talvez adicionar Momigliano:

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It is at once a compliment and a criticism to wish these three essays were longer. They are all written with the author's usual elegance and verve. They often start, like the essays of Warburg or Erich Auerbach (not to mention Freud and Morelli), from apparently trivial details which turn out to be significant12.

Os pontos indicados por Burke no podero ser seguidos aqui, mas sem dvida

so importantes. A influncia de Auerbach sobre Ginzburg reivindicada pelo prprio

inmeras vezes como uma de suas leituras marcantes durante sua juventude13.

Montaigne citado freqentemente nos ensaios, e, como pde ser visto, o historiador

italiano (curiosamente) se coloca na tradio de ensastas iniciada pelo moralista (ctico)

francs. Dentro da perspectiva da histria da arte (na qual se inclui Morelli), veremos

principalmente a adeso de Ginzburg aos preceitos interpretativos correntes no Instituto

Warburg; o tpico sobre Freud ainda um veio a ser explorado; Momigliano, por fim, ns

veremos no momento oportuno.

Outra influncia que julgamos importante para o florescimento da sua produo

ensastica, desta vez no to destacada na bibliografia, a do Instituto Warburg.

Originalmente fundado em Hamburgo na Alemanha por Aby Warburg, chamava-se

originalmente Biblioteca Warburg. Das relaes que Warburg tinha na universidade de

Hamburgo, tendo lecionado l a partir de sua fundao em 1919, saram os principais

membros da Biblioteca e depois Instituto Warburg: Fritz Saxl, Ernst Cassirer, Gertrud Bing.

Saxl o responsvel em transformar a Biblioteca em instituio de pesquisa acadmica

(Kulturwissenschaftliche Bibliothek Warburg), em 1921, e era j o diretor quando Warburg

morreu em 1929. Alguns anos mais tarde (1934) a Biblioteca foi transferida para Londres,

em decorrncia do regime nazista. Em Londres, ela foi vinculada Universidade de

Londres (1944)14. O Instituto agregou especialistas estrangeiros refugiados, como Arnaldo

Momigliano a partir da dcada de 1940 e Ernst Gombrich, que acabou por se tornar

diretor do instituto em 195915.

Foi durante a gesto de Gombrich que o Instituto recebeu um jovem pesquisador

italiano, professor assistente na universidade de Roma. Ginzburg permaneceu no Instituto

por um ano, entre 1967 e 1968. Antes desse perodo mais longo de pesquisa, Ginzburg

12 Review: [untitled] The Journal of Modern History, Vol. 62, No. 1 (Mar., 1990), pp. 108-110.13 [...] decidido a prestar concurso para entrar na concorrida Scuola Normale de Pisa, passei o vero lendo autores que

aidna so cruciais para o meu trabalho, como Erich Auerbach, Leo Spitzer, Gianfranco Contini, ou seja, criticismo literrio baseado em detalhes... (PALLARES-BURKE, 2000: 274).

14 texto de Saxl na biografia de Warburg por Gombrich15 A primeira publicao de Gombrich pelo Instituto de 1944, a de Momigliano de 1942.

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havia recebido uma bolsa de estudos pelo perodo de um ms; e subseqente a essa

breve estada em Londres, ele publicou um longo artigo sobre o Instituto em 1966,

republicado em Mitos, emblemas, sinais. A partir de ento recebeu o convite para um

perodo maior, de pouco mais de um ano, em que aprofundou o contato com a

historiografia cultural do Instituto:

Uma ocasio, quando eu ainda estudava em Pisa, fui a Londres visitar minha me, que se havia casado novamente com um professor de literatura inglesa em Roma. Eles estavam em Londres, e fui encontr-los. Cantimori tambm estava l, e me levou para conhecer o Warburg Institute. Fiquei fascinado pelo instituto, pela histria da arte, pela possibilidade de trabalhar com histria da arte numa perspectiva mais ampla. Em 1964, quando estava preparando meu livro Os andarilhos do bem, ganhei uma bolsa de um ms e fui para Londres. Trabalhei como um louco, descobri a obra de Gombrich, sobretudo Art and illusion, comprei os livros de Saxl, voltei para a Itlia com uma mala cheia de livros. Comecei a ler Gombrich, e foi uma experincia extraordinria, algo que me marcou muito. Escrevi ento um artigo sobre a tradio da Biblioteca Warburg, que depois foi publicado na coletnea Mitos, emblemas, sinais. Enviei o artigo a Gombrich, e a seu convite voltei a Londres por um ano. E isso para mim foi muito importante (GINZBURG; ABREU; GOMES; OLIVEIRA, 1990: 258-9).

O resultado mais evidente de sua temporada britnica , sem dvida, seu

Indagaes sobre Piero, de 1981. Antes de chegar ao livro e aos artigos, interessante

diferenciar nossos interesses no grupo relacionado ao Instituto Warburg. Classificamos o

interesse de Ginzburg em relao metodologia de histria da cultura aplicada arte

como uma primeira fase do interesse. O contato mais intenso com Arnaldo Momigliano no

ltimo perodo da vida deste seria a segunda fase, com a adoo das teses de sua

histria da historiografia.

No trecho da entrevista que selecionamos, Ginzburg menciona o artigo de 1966:

Escrevi ento um artigo sobre a tradio da Biblioteca Warburg. Tradio da biblioteca

Warburg, uma expresso intrigante, porm no deslocada ou despropositada. O dbito

declarado de Ginzburg com o Instituto se d tambm em relao a outro historiador

italiano de renome, Arnaldo Momigliano. outro aluno do Instituto Warburg, Anthony

Grafton no peridico American Scholar, quem relata a histria da adaptao de

Momigliano ao ambiente ingls. Momigliano com muita relutncia participou de um

nmero da revista do Instituto dedicada apenas a pesquisadores italianos, remetendo sua

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participao apenas aps a solicitao de Fritz Saxl. Saxl, contudo, entendeu que a forma

com que Momigliano havia escrito o artigo no favorecia o leitor leigo, e sugeriu

alteraes. O resultado foi que Momigliano acatou o conjunto de alteraes sugeridas

como estilo pessoal, que foi aprimorado com o tempo:

Momigliano immediately obliged. In fact, he not only transformed the Creuzer article but also made the form of exposition that Saxl suggested his standard one for decades, in The New York Review of Books as well in learned periodicals. Evidently Momigliano developed the appealing form of exposition in which he introduced a British and American public to Creuzer, Vico, Hardouin, and many other quaint and curious authors of forgotten lore16 in dialogue with editors and advisers whom he respected. The Warburg style was the creation not only of prolific celebrities like Gornbrich and Momigliano but also of Saxl and others (GRAFTON, 2004: 129 e ss.).

Assim como para Momigliano, a experincia acadmica proporcionada pelo

Instituto foi decisiva para a formao de Ginzburg. Tentaremos, em seguida, observar as

influncias dessa historiografia da arte e da cultura em alguns textos de Ginzburg, em

especial os dedicados ao Instituto.

O artigo a que Ginzburg se refere no trecho de entrevista que citamos h pouco

De A. Warburg a E. H. Gombich notas sobre um problema de mtodo. Logo no incio do

ensaio, declara-se que o principal problema metodolgico o da utilizao dos

testemunhos figurativos como fontes histricas (GINZBURG, 1989: 42). O ensaio

excepcionalmente longo e, contando as notas cobre cerca de setenta pginas em um livro

de pouco menos de trezentas, escrito em razo da traduo de trs obras relacionadas ao

Instituto para o italiano, entre elas Arte e Iluso, de Gombrich. A extenso do ensaio,

assim como a gama de problemas abordados, no nos permite dar um relato

pormenorizado, porm notamos dois problemas principais e entrelaados, a saber, o da

utilizao do documento visual como documento seu propsito declarado e a relao

entre fontes escritas, estilo e iconografia. Teremos que deixar o primeiro ponto em

suspenso, pois ele s se resolver em Indagaes sobre Piero.

Para o Ginzburg de 1966, o mais notvel nos trabalhos de Warburg era seu apelo

documentao para solucionar problemas tradicionais de histria da arte, problemas os

quais no encontravam soluo satisfatria atravs da anlise estilstica:

16 Referncia ao poema de Edgar Allan Poe, The Raven. "Once upon a midnight dreary, while I pondered, weak and weary, / Over many a quaint and curious volume of forgotten lore,"

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Testamentos, cartas de mercadores, aventuras amorosas, tapearias, quadros famosos e obscuros como escreve Bing, Warburg ensinou que se pode fazer ouvir vozes humanas articuladas tambm a partir de documentos de pouca importncia, talvez catalogados entre as curiosidades capazes de interessar apenas aos historiadores dos costumes. (GINZBURG, 1989: 46).

Ginzburg passa ento continuao dessa tradio warburguiana (com Saxl e

Panofsky) que apesar das inmeras qualidades reconhecidas ao longo do texto, ele no

deixa de criticar. Saxl usado para ilustrar os perigos do tal mtodo warburguiano:

O fim dessas anlises de Saxl evidente: sair dos limites estreitos de uma leitura puramente formalista e considerar a obra de arte singular como uma reao complexa e ativa (sui generis, bem entendido) aos acontecimentos da histria circundante. Correto mas aqui tambm, parte dos resultados obtidos, o mtodo de Saxl no convence. Ler imediatamente nessas imagens, tumultuadas ou apaziguadas, as vicissitudes alternadas do itinerrio religioso de Drer , mais do que evidentemente, arbitrrio, e legitimado apenas pela presena, ou no, de outros tipos de documentos, introduzidos sub-repticiamente (idem, p. 63).

O ensaio prossegue com anlises de Panofsky e Gombrich. Panofsky, que possui

no ensaio poucas pginas, tratado apenas na relao entre iconologia e iconografia

(entre as pginas 65 e 70). Gombrich abordado do ponto de vista da histria dos estilos,

como ele procurou recuperar e conciliar a histria do estilo com as pesquisas do Instituto.

Sobre o sentido geral do texto podemos afirmar que h nele um roteiro (tortuoso) que leva

do papel da documentao escrita como apoio para a interpretao da obra de arte para,

em seguida, considerar a interpretao de uma obra de arte segundo esses critrios como

forma confivel de se conhecer o passado. Este seria, assim acreditamos, o seu problema

de mtodo, relatado no ttulo do ensaio. Ao propor determinado mtodo de leituras de

obras arte na qual a sntese de Gombrich entre histria do estilo e iconografia lhe

parece a forma mais bem acabada, embora este no se caracterize por relacionar arte s

demais esferas da sociedade (idem, p. 88) Ginzburg acaba propondo a iconografia

como mtodo de leitura de fontes.

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diferena dos fatos estilsticos [por natureza equvocos, isto , passveis de mltiplas interpretaes], os dados iconogrficos constituem um elemento de mediao inequvoco entre um determinado ambiente cultural, religioso e poltico, e a obra de arte inequvoco, isto , objetivamente controlvel (idem, p. 79).

Podemos ento sintetizar o interesse de Ginzburg em Warburg nesse fio que

traamos: do papel do apoio documental interpretao dos smbolos, o seu mtodo

iconogrfico, como a interpretao desses smbolos testemunha traos da sociedade de

interesse histrico geral e no apenas de histria da arte.

Como justamente observou C. G. Heise, o objetivo da pesquisa de Warburg era duplo: por um lado, era preciso considerar as obras de arte luz de testemunhos histricos de qualquer tipo e nvel, em condies de esclarecer a gnese e o seu significado; por outro, a prpria obra de arte e as figuraes de modo geral deveriam ser interpretadas como uma fonte sui generis para a reconstruo histrica (idem, p. 56).

O mesmo problema de mtodo reaparece na introduo de Indagaes sobre

Piero, publicado originalmente em 1981. Ao comentar as mudanas na cronologia dos

quadros de Piero efetuadas ao longo dos anos em especial de Reberto Longui

Ginzburg tece a respeito deste comentrio, semelhante ao direcionado a Saxl: Em

realidade, na datao a corda da leitura estilstica est sempre presa, com resultados

mais ou menos convincentes, aos pontos de apoio da documentao disponvel

(GINZBURG, 1989: 22). A censura a Panofsky (muito mais aos seus seguidores

americanos) surge novamente: Como sucede em muitas pesquisas iconolgicas, a obra

acaba por se tornar um pretexto para uma srie de livres associaes, baseadas

geralmente sobre uma pretendida decifrao simblica (idem, p. 23). Segundo Buruca

(2003: 127), Indagaes sobre Piero o livro mais warburguiano de Ginzburg e, de fato,

desde o incio Ginzburg se filia a essa tradio de historiografia da arte:

Seus ensaios [de Warburg] testemunham uma amplitude de viso e uma riqueza de instrumentos analticos s em parte relacionados decifrao dos smbolos, com que identificado o mtodo warburguiano. preciso notar a este propsito que, ao contrrio, a ateno ao contexto social e cultural especfico salvou Warburg dos

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excessos interpretativos em que incorreu por vezes mesmo um grande estudioso como Panofsky (para no falar de seus seguidores) (GINZBURG, 1989: 24-25).

A argumentao de Ginzburg ressalta a fidelidade ao fundador da tradio,

corrigindo desvios, os quais lhe parecem pouco produtivos quando comparados s

formulaes originais de Warburg. O apelo aos documentos inevitvel mesmo para as

dataes estilsticas, e assim Ginzburg reafirma o que ele considera a essncia do

mtodo e da tradio de histria da arte e da cultura de Aby Warburg. Esta avaliao

acerca de seu mtodo (que j aparece no primeiro ensaio) compartilhada por Gombrich,

na sua biografia de Warburg:

Having learned in the years of work among the Florentine records to see such situations concretely, moreover, he also learned to understand the work of art as the outcome of a situation which involved the patron no less than the artist. [] It is in focusing on a given comission, and on the solution that emerges from the conflicting possibilities which the historical situation presented, that Warburg's approach achieved its greatest triumph (GOMBRICH, 1970: 315).

O livro, em si, pelas crticas tecidas sobre a interpretao de outros e por causa da

adoo de hipteses controversas17 no foi bem recebido; talvez pela ousadia das

reconstrues, algumas comparaes morfolgicas que possam ser estranhas histria

da arte, e por preferir a documentao escrita anlise estilstica. Os argumentos de

Ginzburg versam sobre a natureza dos programas atravs da reconstruo hipottica dos

comitentes das pinturas de Piero. Desse modo, Ginzburg chega a Giovanni Bacci,

humanista que entre outros servios trabalhou na Cria, e que provavelmente pertencia

ao crculo do Cardeal Bessarion. O caso sobre o qual Ginzurg mais se estende o da

Flagelao de Cristo, onde Ginzburg identifica Bacci e Bessarion entre os personagens da

cena principal, enquanto o imperador bizantino Joo Fillogo torna-se Pilatos na segunda

cena da pintura. A cena remeteria ao fracasso da reunio das igrejas catlica e ortodoxa,

na qual Bessarion tomou parte como partidrio da reunificao. Ao fracasso da

renegociao seguiu-se o fim do Imprio Bizantino.

17 ver a esse respeito a resenha de Robert Black, em especial as pginas 68 e 69: BLACK, Robert. Review: The Uses and Abuses of Iconology: Piero della Francesca and Carlo Ginzburg. Oxford Art Journal, Vol. 9, No. 2 (1986), pp. 67-71.

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Indagaes sobre Piero importante, pois permite balizar o quanto suas obras

posteriores se aproveitam desse contato que Ginzburg teve com os historiadores da arte

e cultura do Instituto Warburg. Cabe notar que j na Introduo de Indagaes, j existe

uma referncia do retorno de Ginzburg aos problemas historiogrficos de Os andarilhos

do bem e O queijo e os vermes: Outras pesquisas por exemplo, sobre a cultura

camponesa, preponderantemente oral, das sociedades pr-industriais esto s voltas

com problemas anlogos. (GINZBURG, 1989: 23). No podemos tambm descartar a

proximidade cronolgica entre a primeira publicao de Sinais, em 1979 e Indagaes, de

1981. O historiador argentino Jos Emlio Buruca lista o paradigma indicirio como

diretamente dependente do mtodo warburguiano:

[] la presentacin del paradigma indicirio que l mismo propuso para la ciencia histrica em 1979 como alternativa a qualquier adaptacin del modelo galileano, no slo fue colocada bajo la advocacin de Aby Warburg desde el epgrafe (Dios est en lo particular), sino que tal paradigma es per se uma forma generalizada y sistemtica del mtodo warburguiano, cuya simultaneidad com outros ensayos de regulacin de las ciencias del hombre em el fin del 1900 tambin aquel ensayo Spie [Senles] contribuye a poner de manifesto (BURUCA, 2003: 127).

Buruca caracteriza Sinais como um desenvolvimento do mtodo warburguiano,

mas esta apenas uma das perspectivas possveis. Considerar apenas dessa forma seria

ignorar o conjunto de problemas e dilogos estabelecidos por Ginzburg ao longo das

primeiras dcadas de sua produo. Da mesma forma como a mudana de gnero foi

importante para a sua reflexo posterior, algumas caractersticas foram mantidas de seus

trabalhos prvios e com elas as marcas dos dilogos estabelecidos e problemas

historiogrficos abordados em sua fase anterior. Nas pginas seguintes, tentaremos

demonstrar o aparecimento desse modo peculiar de praticar a escrita da histria, e nossa

tentativa ser, menos a de reduzir a princpios que a de esclarecer e tornar evidente as

referncias principais e os principais problemas que direcionaram o historiador italiano at

o ponto que nos interessa, os ensaios de Relaes de Fora. A tentativa de tornar visvel

a gnese de uma prtica ao mesmo tempo to particular e to ampla nos obriga a

acompanhar a trajetria de Ginzburg em seus termos, sob pena de deixar escapar o fio de

Ariadne.

Um dos elementos desse modo singular de escrever ns podemos chamar, por

falta de melhor nome, de uma abordagem radiciria, associada ao seu conhecido

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paradigma indicirio. A metfora das razes de determinado assunto aparece em alguns

nos textos do historiador italiano sem, contudo, que seu procedimento fosse explicitado

enquanto tal. No caso da retrica aristotlica, esta a raiz de uma retrica centrada na

prova; Nietzsche, por outro lado, a raiz de outra retrica, a no-referencial. Outro

exemplo est na noo ciceroniana de estilo a qual a raiz da incomensurabilidade das

teorias em Contra o Mtodo, de Paul Feyerabend, conforme argumentado em Estilo:

incluso e excluso. Uma passagem das Meditaes de Marco Aurlio a fonte da

reflexo de Tolsti sobre as relaes sociais que, por sua vez, levaram Chklvski a

formular seu princpio do estranhamento, uma das bases de sua Arte como procedimento.

As trajetrias tortuosas que remontam ao passado assumem a imagem de uma raiz; a

metfora, por sua vez, est embasada na sua capacidade de perseguir os fundamentos

inusitados de muitos conceitos. Ginzburg percorre sem receio sculos e sculos atravs

da documentao, seja em uma trilha composta de tijolos slidos de informao histrica,

focada nos documentos e formando um contexto, seja em comparaes morfolgicas

entre fenmenos distantes no tempo e/ou espao, muitas vezes em hipteses ousadas18.

Os dois procedimentos possuem sua matriz prpria, e o autor passou algum tempo

tentando concili-las. Dessa tenso entre dois tipos de leitura de documentos no

apenas, evidente que seu modo de exercer o ofcio se consolidou. A forma ensastica,

por sua vez, a que melhor se adequa a esse tipo de tenso metodolgica impingida pelo

historiador italiano em seus trabalhos.

A leitura atenta, a sensibilidade, o faro, o detalhe revelador; todas essas

caractersticas parecem enfatizadas no seu ensaio Sinais, onde a descoberta de detalhes

muda completamente a interpretao corrente sobre determinada obra ou acontecimento.

O trabalho de Espada Lima nos mostra o quanto isso pode atribudo