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Histórias de Natal 103 — Encontrámos tantos homens esfarrapados, tristes e pacientes que não soubemos distinguir aquele que tu procuras. Por isso, na manhã seguinte, o rei Baltasar, tendo despido os seus vestidos de púrpura, envolveu-se num manto de estamenha e saiu sozinho do palácio para procurar o homem. Desceu pelas ruelas estreitas da encosta, e, longe das grandes avenidas triunfais onde a brisa faz sussurrar as folhas duras das palmeiras, percorreu longamente os bairros pobres da beira do rio. Os carregadores do cais ergueram para ele a face sombria, e o homem que vendia os sapatos de corda poisou no olhar do rei o seu olhar cansado. Viu homens dobrados sob os fardos, viu os que puxavam carroças como bois, lentos e pacientes como bois, viu os que usavam grilhetas nos pés, viu os que deslizavam rente às paredes, silenciosos como sombras, viu os que gritavam, os que choravam, os que gemiam. Viu os que estavam sós, imóveis, encostados aos muros, atónitos, interrogando, para além da voz rouca das ruas, o silêncio opaco, fitando em sua frente a estrada recta do silêncio. Viu os que pescavam pequenos peixes nas águas sujas do rio. Viu os que tinham a cara cor de trapo e as mãos feitas de cinza, cinza leve que voava com o vento. Viu a sombra verde, o reino da paciência, o país da desolação sem margens, o império dos humilhados, o lado esquerdo da vida, a Pátria deserdada, o fundo do mar da cidade. E no dia seguinte o rei reuniu os seus ministros e disse-lhes: — Mandai distribuir os meus tesoiros e mandai distribuir as reservas acumuladas nos armazéns e nos celeiros. E reparti tudo entre os esfomeados e os pedintes.

Histórias de Natal

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Page 1: Histórias de Natal

Histórias de

Natal

103

— Encontrámos tantos homens esfarrapados, tristes e

pacientes que não soubemos distinguir aquele que tu procuras.

Por isso, na manhã seguinte, o rei Baltasar, tendo despido os

seus vestidos de púrpura, envolveu-se num manto de estamenha e

saiu sozinho do palácio para procurar o homem.

Desceu pelas ruelas estreitas da encosta, e, longe das grandes avenidas triunfais onde a brisa faz sussurrar as folhas duras das

palmeiras, percorreu longamente os bairros pobres da beira do rio.

Os carregadores do cais ergueram para ele a face sombria, e o homem que vendia os sapatos de corda poisou no olhar do rei o seu olhar

cansado. Viu homens dobrados sob os fardos, viu os que puxavam

carroças como bois, lentos e pacientes como bois, viu os que usavam grilhetas nos pés, viu os que deslizavam rente às paredes, silenciosos

como sombras, viu os que gritavam, os que choravam, os que gemiam.

Viu os que estavam sós, imóveis, encostados aos muros, atónitos,

interrogando, para além da voz rouca das ruas, o silêncio opaco, fitando em sua frente a estrada recta do silêncio. Viu os que

pescavam pequenos peixes nas águas sujas do rio. Viu os que tinham

a cara cor de trapo e as mãos feitas de cinza, cinza leve que voava com o vento. Viu a sombra verde, o reino da paciência, o país da desolação

sem margens, o império dos humilhados, o lado esquerdo da vida, a

Pátria deserdada, o fundo do mar da cidade.

E no dia seguinte o rei reuniu os seus ministros e disse-lhes:

— Mandai distribuir os meus tesoiros e mandai distribuir as

reservas acumuladas nos armazéns e nos celeiros. E reparti tudo entre

os esfomeados e os pedintes.

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Tendo ouvido isto, os ministros retiraram-se para deliberar.

E voltaram passados três dias, e responderam:

— Os teus tesoiros não chegam para resgatar os escravos, e as

reservas dos teus armazéns não chegam para saciar os esfomeados.

Nem o teu poder chega para alterar a ordem da cidade. Se

cumpríssemos aquilo que mandaste, os fundamentos que nos sustentam e os muros que nos protegem ruiriam. O teu desejo é

contrário ao bem do reino.

E o rei lhes respondeu:

— Procuro outra lei e procuro outro reino.

Então os ministros retiraram-se, murmurando entre si:

— Vemos que ele nos trai.

Na manhã seguinte, dirigiu-se Baltasar ao templo de todos os

deuses.

E leu estas palavras gravadas na pedra do primeiro altar:

Eu sou o deus dos poderosos e àqueles que me imploram concedo a força e o domínio, eles nunca serão vencidos e serão temidos como deuses.

Seguiu o rei para o segundo altar e leu:

Eu sou a deusa da terra fértil e àqueles que me veneram concedo o vigor, a abundância e a fecundidade e eles serão belos e felizes como deuses.

Encaminhou-se o rei para o terceiro altar e leu:

Eu sou o deus da sabedoria e àqueles que me veneram concedo o espírito

ágil e subtil, a inteligência clara e a ciência dos números. Eles dominarão os ofícios e as artes, eles se orgulharão como deuses das obras que criaram.

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E tendo passado pelos três altares, Baltasar interrogou os

sacerdotes:

— Dizei-me onde está o altar do deus que protege os

humilhados e os oprimidos, para que eu o implore e adore.

Ao cabo de um longo silêncio, os sacerdotes responderam:

— Desse deus nada sabemos.

Naquela noite, o rei Baltasar, depois de a Lua ter desaparecido

atrás das montanhas, subiu ao cimo dos seus terraços e disse:

— Senhor, eu vi. Vi a carne do sofrimento, o rosto da humilhação, o olhar da paciência. E como pode aquele que viu estas

coisas não te ver? E como poderei suportar o que vi se não te vir?

A estrela ergueu-se muito devagar sobre o Céu, a Oriente. O seu movimento era quase imperceptível. Parecia estar muito perto da

terra. Deslizava em silêncio, sem que nem uma folha se agitasse.

Vinha desde sempre. Mostrava a alegria, a alegria una, sem falha, o

vestido sem costura da alegria, a substância imortal da alegria.

E Baltasar reconheceu-a logo, porque ela não podia ser de

outra maneira.

Sophia de Mello Andresen Contos exemplares

Porto, Figueirinhas, 1997

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Os Magos que não chegaram a Belém

Há sempre os que conseguem e os outros. Os que ficam pelo

caminho. Com os magos aconteceu o mesmo. Só três – os reis

Baltasar, Melchior e Gaspar – chegaram a Belém e deixaram os seus presentes, de ouro, incenso e mirra, aos pés do Menino. Mas os

magos, sacerdotes que estudavam o céu e os seus astros, eram muitos.

E outros se puseram a caminho, seguindo aquela estrela, súbito, nascida no firmamento e mais brilhante do que todas as outras que

aqueciam a noite.

Desses, três sacerdotes da Caldeia, adoradores do sol e da

natureza, porque dela se sentiam dependentes, decidiram também partir juntos para melhor enfrentarem os perigos de uma viagem, sem

estrada conhecida, na esperança de alcançarem a Luz que aquele sinal

anunciava. Não eram reis, nem tinham coroa, nem sequer montada de camelo ou burrinho manso. Também não levavam presentes, apenas a

ansiedade dos seus corações. E, confiantes, abandonaram as margens

verdes do Eufrates, o trilho conhecido das caravanas e, guiados pela

estrela, puseram-se a seguir a liberdade dos caminhos, crentes de que a força da esperança e da fé (não conheciam ainda o Amor) lhes

permitiria chegar. Onde? Não sabiam. Mas lá, junto daquela Luz que

havia de transformar o mundo, de águas transparentes, fulvos desertos varridos pelo vento e frescos oásis, que reflectiam o azul

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A boneca

— Não leves sempre essa boneca suja contigo para a cama —

disse a mãe de Eva.

— A minha Anita não é nenhuma boneca suja. — respondeu Eva — A minha Anita é muito querida.

— Mas está muito feia — continuou a mãe. — Olha só para a

cara e para os cabelos dela!

Quando se olha para a boneca Anita, assim, sem se gostar dela,

tem de se admitir. Bonita, não é. As bochechas estão cinzentas e a

esboroar-se de tantos beijos e tantas lavagens. Já não tem

propriamente um nariz, apenas uma saliência suja, e dos cabelos castanhos já só ficou um pequeno tufo de cabelos ralos.

Isto não incomodava Eva, mas a mãe dizia-lhe constantemente:

— Não queres pedir uma boneca nova pelo Natal? — perguntava-lhe.

Eva apertava a Anita contra si e dizia:

— Não!

— Tenho outra ideia — disse a mãe. — Vamos levar a Anita a um hospital de bonecas e lá põem-lhe cabelo novo e outro nariz.

Eva defendia-se. Não queria entregar a Anita.

Mas, certo dia, Alex, o irmão mais velho, disse uma coisa feia,

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uma coisa muito má. Disse:

— A tua boneca é um careca tinhoso!

Eva desatou a chorar. Depois, observou a sua Anita pela

primeira vez com olhos de ver. Era verdade! A cara da Anita estava

cheia de nódoas e a descamar-se, e quase totalmente careca.

Eva correu para a mãe.

— Achas — disse a soluçar — que no hospital das bonecas

vão ser bons para a minha Anita?

— Mas claro que sim! — sossegou-a a mãe.

— Então… Por mim, podes levá-la…

Logo na manhã seguinte, a mãe foi ao hospital das bonecas.

Era o único na cidade, pois já não havia muita gente que mandasse consertar bonecas.

No hospital das bonecas, um homem examinou a Anita.

— Tem pouco que se aproveite. Precisa de uma cabeça nova, e

os braços e as pernas também deviam ser substituídos.

Apresentou à mãe diversas cabeças de bonecas, mas não havia

nenhuma que fosse igual à da Anita.

— Além disso — continuou o homem — a reparação custa mais do que uma boneca nova.

A mãe de Eva procurou em todas as lojas de brinquedos uma

boneca que, pelo menos, fosse mais ou menos semelhante à antiga

Anita. Acabou por comprar uma do mesmo tamanho e com os mesmos cabelos castanhos. No resto, a nova boneca era um pouco

diferente, mas encantadora, e tinha uma cara que se podia lavar com

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entre o verde nas palmeiras, no paraíso, aonde os homens ansiavam

regressar. E nessa esperança caminhavam. Não por carreiros atapetados pelo musgo dos presépios, que vieram séculos depois, e se

nos tornaram familiares, na infância, com seus trilhos fáceis de

serrim, lagos-espelhinhos onde nadavam patos, anacrónicas gentes

quotidianas: lavadeiras, vendedoras de castanhas e galinhas, pastorzinhos de gado tresmalhado por veredas, cortadas por mudos

riachos de papel prateado. Também não caminhavam por entre as

sombras frondosas e frescas, com possibilidade de pousada em palácios e castelos, como quis a pintura e os seus mestres.

Caminhavam pelo silêncio, com a sua fome e a sua sede, o calor do

dia e o frio das noites, solitárias. Palmilhavam o oceano das dunas do deserto, à luz da lua, como se o fizessem pelo pó de todas as

clepsidras do tempo. E nem sequer dormiam num leito, irmanados

pelo mesmo lençol de pedra, como o românico fixou os outros três,

mais conhecidos, com as suas coroazinhas na cabeça. Enrolavam-se apenas no sono que os descansava do cansaço dos dias e lhes dava

novas forças, que refaziam com a água e as tâmaras dos oásis, o pão e

os figos secos que tinham trazido.

Às vezes, quando o olho do sol se tornava ígneo ou paravam

para uma refeição ou um descanso, discutiam a direcção que vinham a

seguir.

— Não vos parece que a estrela aponta a Judeia? — perguntava um.

Os outros, incrédulos, pensavam secretamente se haveria

alguma coisa a esperar de um povo escravizado pelos romanos e

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encolhiam os ombros.

— A mim parece-me antes o Egipto o rumo indicado — atrevia-se o mais novo. — E a vós?

— É ainda cedo para uma certeza, mas em breve o saberemos...

E retomavam a caminhada até pela noite dentro – a estrela

sempre adiante, lanterna que os não deixaria perder. Duas noites de névoa, porém, esconderam-na aos seus olhos, ansiosos. E então,

desorientados, disputaram azedamente, perdidos e sem rumo.

Todavia, na terceira noite, a estrela reapareceu, mais cheia de brilhos, como se no seu bojo houvesse mil reflexos de espelho. Quem,

conhecendo a Luz, deseja continuar nas trevas? Nem sentiam o

cansaço, a língua encortiçada pela sede, o olhar enceguecido pelas tempestades de areia, o ventre cavado pela marcha e pelo magro

alimento. A esperança, serpente de água, a esgueirar-se, fugidia, entre

os juncos, tinha regressado aos seus corações.

A noite do solstício aproximava-se e eles estavam certos de que, se aquela Luz anunciava algum acontecimento, ele teria lugar na

noite sagrada, pois o sol era a alegria e o pão da terra. E, ao mesmo

tempo, não podiam deixar de sentir uma certa inquietação em face daquela claridade que aumentava de brilho como a anunciar uma

Outra que apagaria a do próprio astro de que eram adoradores. Seria

realmente aquela a Luz que tornaria o mundo de manhãs claras,

tardes ardentes e noites estreladas, mais perfeito, menos rasgado por ódios, guerras e injustiças? Quem podia ter a certeza? Do que parecia

não haver dúvidas era de que a estrela indicava a Judeia. Tinham de

render-se à evidência. E nessa direcção seguiam agora, os pés já

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água.

Quando chegou a casa com as duas Anitas, a nova e a velha, Eva ainda estava no infantário. Mas Alex já tinha vindo da escola e

descobriu a caixa no cesto de compras da mãe.

— Aha! — disse. — Compras de Natal!

— Uma boneca nova para a Eva — respondeu a mãe. — Mas ela não pode saber. Tem de pensar que é a sua Anita.

— Aha! — disse Alex. — Mentiras de Natal!

— Não sejas atrevido — disse a mãe. — É o melhor para a Eva.

— Deixa-a lá ficar com o careca tinhoso — disse Alex.

A mãe arrumou a caixa com a nova boneca no armário da roupa.

— Estou contente por nos vermos finalmente livres daquela

coisa tão estragada.

Atirou a Alex o saco de plástico com a antiga boneca.

— Toma — disse. — Mete-a no contentor do lixo, mas lá

para o fundo.

Alex pegou na boneca e saiu do quarto a assobiar baixinho.

Desde que a Anita desaparecera, Eva perguntava por ela todos

os dias.

— A minha Anita ainda está no hospital? O homem é

simpático com ela? Ela não tem saudades? Vou mesmo voltar a tê-la pelo Natal?

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E a mãe respondia sempre:

— Sim, Eva. Com certeza, Eva. Não te preocupes, Eva.

Para a noite de Natal, a mãe de Eva vestiu à nova boneca o

vestido da Anita e pô-la debaixo da árvore. Com o vestido vermelho,

achava a mãe, ficava mesmo parecida com a Anita.

Mas, quando estendeu a boneca a Eva e disse: — Ora vê como ficou linda a tua Anita! — Eva não aceitou e cruzou as mãos atrás

das costas.

— Não! — gritou. — Essa não é a minha Anita!

E olhava decepcionada para a nova boneca:

— Eu quero a minha Anita… a minha Anita! — e começou a

chorar baixinho sem parar.

A mãe não contara com isto e tentou consolar Eva. Mostrava-

-lhe outras prendas, levava-a à árvore de Natal, mas Eva mantinha os

olhos baixos. Não queria ouvir nada nem ver prenda nenhuma.

— Anita! — queixava-se a menina. — Onde puseram a minha Anita?

Disse então Alex:

— Se ela não receber de volta a careca tinhosa, vai estragar-nos a festa de Natal.

— Mas… — balbuciou a mãe — tu deitaste…

— Achas? — perguntou Alex.

Correu ao quarto e regressou com um saco de plástico que meteu nas mãos de Eva.

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feridos do caminho, cada vez mais áspero e pedregoso. Mas, mesmo

forçando a marcha e lutando contra o tempo e o cansaço, a noite desejada encontrou-os à boca do Mar Morto e a estrela fazia jorrar a

sua cratera de brilhos mais para além, mais para o norte. Exaustos,

não podiam seguir adiante. Mas o cristal de miríades de luzeiros, que

pareciam mais belos e mais luminosos no silêncio suspendido do ar gelado, permitia-lhes procurarem uma gruta para se abrigarem e

dormirem, antes de continuarem a jornada. E foi o que fizeram.

— Aqui! — gritou o mais jovem, que caminhava na dianteira.

Os outros, mais trôpegos e cansados, juntaram-se-lhe.

Era uma caverna escurecida pelo fumo das fogueiras dos

pastores e que, embora vazia, parecia uma boca de forno, ainda quente do bafo dos animais.

— Escutem! — disse um deles.

À medida que penetravam na gruta, ouviam vagidos, que

julgaram de animal ferido. Todavia, quando reacenderam o fogo, deparou-se-lhes uma criança recém-nascida, nua e roxa, a chorar de

frio e fome.

— Quem teria tido a coragem de a abandonar?! — indignou-se o mais velho, que rasgou logo um pedaço de manto e a envolveu.

— Pobrezinha, como chora!

Os outros debruçaram-se também, carinhosos e solícitos, sobre

o pequeno fardo. Depois olharam-se, perplexos. Que fariam? Podiam aquecê-la, protegê-la – mas como alimentá-la?

E foi então que ouviram, vindos do fundo da gruta, outros

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vagidos.

— Ide ver! — pediu o mais idoso, que se tinha sentado perto do lume, tentando aquecer a criança, enquanto a embalava,

desajeitadamente, nos seus braços, nodosos e velhos.

Os outros juntaram uns gravetos secos e atearam-nos nos

tições, acesos, e com aquela débil claridade varreram as sombras. No fundo da gruta estava uma ovelha, de úberes cheios e dolorosos, que

lambia a sua cria morta. Era uma noite santa aquela. Ali estava a

prova. E, contentes, arrastaram o animal até junto do companheiro e da criança. Depois, com muito jeito e devagar, enquanto um segurava

o animal, o outro fazia pingar umas gotas de leite para a boquinha,

que em breve se tornou sôfrega. Pacientes, continuaram a tarefa e viram-se recompensados. Aquecida e consolada, a criança aquietou-se.

O mago que a tinha nos braços, como um avô, e os outros

começaram a tratar da magra ceia e a assar, nas brasas, os figos secos

que lhes restavam.

— Temos de regressar... — disse, então, o mais velho,

depondo a criança adormecida num recôncavo largo de rocha, não

longe do borralho.

— Assim terá de ser — concordou logo outro.

— Somos homens e sacerdotes e nunca seremos uma família

para a criança. Temos de nos apressar a entregá-la a uma mulher

piedosa que cuide dela e a eduque juntamente com os filhos.

— Sim, ou a uma mulher estéril para quem seja a bênção

desejada — tornou o primeiro. — Mas isso resolveremos depois do

regresso. O urgente é regressarmos.

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— Anita! — gritou Eva, tirando do saco a velha boneca careca.

Alex sorria.

— E o que vais fazer agora à boneca nova?

— Esta? — perguntou Eva. — Vou dá-la a uma menina que

eu não conheça.

— A uma menina… — repetiu Alex. — Ah, claro. Ela não pode ficar a saber que tens uma boneca careca fantástica!

Tilde Michels

Anne Braun (org.) Weihnachtsgeschichten

Würzburg, Arena Verlag, 1991

Page 10: Histórias de Natal

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— Regressar?! E a Luz que vínhamos a seguir? — protestou o

mais novo, para quem era doloroso, depois de tantos trabalhos e canseiras, não levar a cabo o que se tinha proposto. — Desistimos

assim da Luz que nos guiou até aqui? Desistimos, agora, quando

estávamos já perto?

— Compreendo o que sentes, irmão, também já fui novo... Mas há a criança. Como poderemos abandoná-la?

— Sim... há a criança — e também o mais novo, que tanto se

tinha esforçado por alimentá-la, se inclinou e sorriu para vê-la dormir.

— A Luz que vínhamos a seguir — ponderou ainda o mais

velho — não poderá ser ocultada e dela teremos notícia. Lembremo--nos de que a Luz ilumina e nem mesmo as trevas podem escondê-la

para sempre. O nosso caminho é o do regresso e será longo, pois

teremos de nos revezar com a criança nos braços, embora seja já uma

bênção termos a graça de um alimento que ainda sobrará para um gole de sede nosso. Descansemos, agora, enquanto dorme.

— Tens com certeza razão — concordou o mais novo, que

também não se sentia capaz de recusar a criança, presente da noite santa e, quem sabe, daquela misteriosa Luz.

O braseiro consumia-se, lento, perfumado pelo açúcar dos

figos assados nas brasas. A ovelha deitara-se junto da criança,

aninhando-a na sua lã, também ela apaziguada, como se tivesse recuperado a sua cria. Uma paz despetalava-se no silêncio da noite e

caía sobre a gruta.

Esta foi a história. Não adoraram o Messias, salvador, o que

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devia chegar para que a paz e a justiça florissem até ao fim das luas, o

que teria compaixão do fraco e do pobre e havia de lançar a sua bênção sobre todas as raças, povos e línguas. O anjo do Senhor não

lhes apareceu, nem foram envolvidos na sua claridade. Não ouviram

cantar: «Glória a Deus nas alturas e paz na Terra aos homens de boa

vontade».

Mas tinham vivido o Amor, essência daquela doutrina que

ainda não tinha sido pregada e ninguém registara ainda. No mais

íntimo dos seus corações tinham sentido aquela verdade: «O que fizerdes ao mais pequeno e ao mais ínfimo a Mim o fareis». E

naquela noite, em que os animais falaram, as flores abriram o

esplendor das suas pétalas nas trevas como se as entregassem à luz do meio-dia, e as pedras puderam deslocar-se para se dessedentarem nos

regatos mais próximos, adormeceram com a criança aconchegada

entre eles.

Longe, a estrela fazia descer a sua cascata de fogo sobre Belém de Judá.

Luísa Dacosta Natal com Aleluia

Porto, Ed. ASA, 2002

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O primeiro Natal do pardalito

Aqui há coisa de três semanas, um pardal do Rossio, daqueles

que escolheram para poiso e morada os ramos das árvores que

circundam a dita praça, começou assim a história que vamos contar:

— Companheiros pardais, pardalitos e pardalões, escutem

todos, a notícia é importante.

Juntou-se a pardalada. Quem ali passe todas as tardes, à hora da saída dos empregos, não deve estranhar o arruído que vem das

árvores despidas de folha, mas cheias, cheiinhas de passarinhos

tagarelas. As pessoas andam na sua vida muito apressadas, e nem

sequer dão conta da chilreada doida dos pardais:

“Chega-te para lá! Aí sou eu”

“Olha o pardalão a querer tomar-me o lugar...”.

“Ai que ainda te dou uma bicada...”.

“Não me provoques!”.

“Toma que é para saberes”.

“Deixa-me em paz”.

Mas voltemos à nossa história.

Oiçamos o que o pardal tem para dizer:

— Peço silêncio, se não calo-me — piava ele, tentando impor a

ordem à assembleia.

Page 12: Histórias de Natal

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Demorou o seu tempo.

Os pardais são uns espalhafatosos e uns gralhadores incorrigíveis.

— A notícia que vos trago importa a todos. Há bocadinho,

estava eu poisado num ramo baixo, e ouvi uma conversa entre um

cauteleiro e um engraxador. Sabem do que estavam a falar?

— De futebol — arriscou um.

— Nada disso. Estavam a falar da Lotaria do Natal, imaginem!

Portanto, o Natal está à porta, meus amigos.

Espero que saibam o que isto significa...

Os pardais mais jovens não sabiam, mas calcularam que devia

ser coisa grave, porque os pardais velhos, mesmo os mais gaiteiros e risonhos, ficaram, subitamente, de bico caído. As expressões eram de

alarme e desalento:

— Temos de mudar de vida.

— Que desconforto!

— Deviam ter-nos avisado.

— O tempo não está para grandes voos.

E cada qual debandou para o seu ramo.

Neste ponto da história, parece-nos indispensável ouvir a fala

de um avô pardal para o seu neto que, tal como vocês, amigos

leitores, não percebera patavina do sucedido.

— Na quadra do Natal, que é uma grande festa dos homens — contava ele — multiplicam-se e crescem as luminárias por toda a

Page 13: Histórias de Natal

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“Não é possível!”, pensou o Pai Natal

Noite feliz! — cantava o Pai Natal.

Atarefadamente, ia consultando listas de pedidos, embrulhava

brinquedos e punha as respectivas etiquetas.

De repente, interrompeu o trabalho e lançou um olhar ao

calendário.

— Deus do céu! — exclamou. — Já é altura de ir para a Terra. A festa de Natal está próxima!

Atou ainda um pequeno embrulho, compôs um laçarote e

encheu o grande saco.

— O dever chama! — murmurou. Pegou num gorro e pôs-se a caminho da cidade.

Tinha nevado e o mundo resplandecia. As árvores estavam

envolvidas em mantas brancas, colchões de plumas estendiam-se sobre os telhados e as ruas tinham-se coberto de algodão doce.

— Que beleza! — murmurou o Pai Natal a caminho da terra,

ao passar por sobre os telhados, ofuscado pelo reflexo da neve.

Um raio de sol fez-lhe comichão no nariz. Soltou um grande espirro e aterrou de trambolhão no passeio.

— Ai! — disse uma voz. — Não podes prestar atenção onde

cais?

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parte. Nesta praça, então nem queiras saber! Fica tudo cheio de luzes

e luzinhas de muitas cores, amarelas, azuis, vermelhas, verdes, que nos põem tontos. Onde os homens encontram um sítio para

pendurar uma daquelas pêras de vidro que deita luz, penduram.

— Deve ser bonito — observou o neto.

— Bonito talvez seja, mas não para nós. Aparecem fios por toda a parte e, nos ramos das nossas árvores, estendem tantos, com as

tais pêras penduradas, que ninguém se entende. Há dois anos,

aproximei-me de uma dessas pêras, que se tinha partido, e apanhei um arrepio pelo corpo todo que julguei que me ficava de vez!

— Então para onde vão os pardais passar o Natal? —

perguntou o pardalito, atarantado.

— Saltinho aqui, saltinho acolá, alguns escondem-se numas

palmeiras, lá para cima, num sítio que os da cidade chamam Avenida.

Outros conseguem chegar a um jardim, que me dizem ser muito

tranquilo e saudável, um tal Jardim Botânico ou coisa parecida.

— E nós, avô?

— Nós ficamos. Podíamos ir para um telhado próximo, se não

andassem por lá os gatos que têm olhos mais perigosos do que todas as luminárias juntas. Olha, naturalmente, vamos para um sítio

sossegado que eu conheço, num buraco daquele edifício, ali, no cimo

da praça. É um bocado desabrigado e pouco cómodo, mas vais poder

dizer, daqui em diante, que dormiste no Teatro Nacional...

Assim que chegaram os electricistas com as escadas, os cabos e

os fios, a pardalada sumiu-se...

Page 14: Histórias de Natal

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Numa destas noites, o pardalito deixou o avô a dormir com a

cabeça debaixo da asa, e foi dar uma voltinha pelos arredores do seu novo poiso. O Rossio silencioso e exuberantemente iluminado

pareceu-lhe um jardim de sonho.

— Tanta luz de tanta cor! — exclamou.

Nesse momento, um avião sobrevoava a cidade, em direcção ao aeroporto. No escuro do céu só se distinguia as luzes vermelhas da

cauda.

— Olha, lá vão duas luzes a fugir...

E dispunha-se a voar atrás delas, se o avô não tivesse acordado,

entretanto.

— Para onde ias? — perguntou-lhe ele.

O pardalito explicou. Comentário do velho pardal:

— Que patetice! Ainda tens muito que aprender, pequeno, até

te transformares num pardalão sabido!

É o que nós também achamos, ao cabo desta história.

António Torrado

www.historiadodia.pt

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O Pai Natal recompôs-se, esfregou os olhos. À sua frente

estava alguém com roupas vermelhas, com uma barba branca e um gorro comprido.

— Desculpe — disse o Pai Natal. — Quem é o senhor? —

perguntou perplexo.

— Mas isso vê-se logo — respondeu o outro. — Eu sou um Pai Natal. E tu estás no meu caminho. Aqui não há espaço para dois,

por isso põe-te a andar.

O Pai Natal meneava a cabeça. Não devia ter ouvido bem. Se calhar o tombo tinha sido muito grande.

— O que tem dentro do saco para as crianças, se posso

perguntar? — informou-se cautelosamente.

— Vales para pequenas prendas — sorriu o outro

ironicamente. — Para as pessoas irem ali à loja.

Apontou para uma montra onde se viam peluches, bonecas e

brinquedos.

Estendeu um papel a um rapazinho que passava e gritou:

— Venham, crianças, há aqui coisas para vocês!

Mas a voz não soava alegre.

O sol passeava sobre os telhados. O Pai Natal continuou o seu

caminho, passou por lojas de brinquedos e centros comerciais.

Da porta da igreja saía uma luz, e uma canção pairava no ar. O

Pai Natal sentiu-se contente mas, ao erguer os olhos, lá estava outro. Tinha botas pesadas, uma argola no nariz e a fivela do cinto brilhava.

— É Natal, é Natal — cantava ele com voz rouca.

Page 15: Histórias de Natal

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— Desculpe, quem é o senhor? — perguntou o Pai Natal,

espantado.

— Acha que sou o Coelhinho da Páscoa? — respondeu o

outro, com indignação.

O Pai Natal assustou-se. Um segundo outro. Será que hoje

andaria a ver a dobrar?

— E o que oferece às crianças? — perguntou delicadamente.

O outro bateu com o indicador na testa.

— Oferecer? Mas tu acreditas no Pai Natal? Eles já têm tudo! Ando a distribuir rebuçados da tosse para as pessoas provarem. E

comprarem. É assim que isto funciona. Queres um? — perguntou a

uma menina que passava. — Tenho de continuar — disse depois, em tom apressado. — Ainda me faltam mais três ruas.

O Pai Natal meneou a cabeça.

— Incrível — disse.

O lusco-fusco empurrou o sol e deitou-se sobre a cidade. O Pai Natal prosseguiu o seu caminho cantarolando. A neve rangia sob

os sapatos.

De repente, deu de caras com um novo outro. Era pequeno e franzino, e tremia de fazer dó.

— O que tem? — perguntou o Pai Natal atenciosamente. O

outro assoou o nariz.

— Eu devia ser um Pai Natal — disse abatido — mas sou uma rapariga e a minha voz é demasiado aguda.

— Isso é mau? — perguntou o Pai Natal.

117

Noite de Natal

O amigo

Era uma vez uma casa pintada de amarelo com um jardim à

volta.

No jardim havia tílias, bétulas, um cedro muito antigo, uma cerejeira e dois plátanos. Era debaixo do cedro que Joana brincava.

Com musgo e ervas e paus fazia muitas casas pequenas encostadas ao

grande tronco escuro. Depois imaginava os anõezinhos que, se existissem, poderiam morar naquelas casas. E fazia uma casa maior e

mais complicada para o rei dos anões.

Joana não tinha irmãos e brincava sozinha. Mas de vez em

quando vinham brincar os dois primos ou outros meninos. E, às vezes, ela ia a uma festa. Mas esses meninos a casa de quem ela ia e

que vinham a sua casa não eram realmente amigos: eram visitas.

Faziam troça das suas casas de musgo e maçavam-se imenso no seu jardim.

E Joana tinha muita pena de não saber brincar com os outros

meninos. Só sabia estar sozinha.

Mas um dia encontrou um amigo. Foi numa manhã de

Outubro.

Joana estava encarrapitada no muro. E passou pela rua um

Page 16: Histórias de Natal

118

garoto. Estava todo vestido de remendos e os seus olhos brilhavam

como duas estrelas. Caminhava devagar pela beira do passeio sorrindo às folhas do Outono. O coração de Joana deu um pulo na garganta.

— Ah! — disse ela. E pensou:

«Parece um amigo. É exactamente igual a um amigo.» E do alto

do muro chamou-o:

— Bom dia!

O garoto voltou a cabeça, sorriu e respondeu:

— Bom dia!

Ficaram os dois um momento calados.

Depois Joana perguntou:

— Como é que te chamas?

— Manuel — respondeu o garoto.

— Eu chamo-me Joana.

E de novo entre os dois, leve e aéreo, passou um silêncio.

Ouviu-se tocar ao longe o sino de uma quinta. Até que o garoto disse:

— O teu jardim é muito bonito.

— É, vem ver.

Joana desceu do muro e foi abrir o portão.

E foram os dois pelo jardim fora. O rapazinho olhava uma por

uma cada coisa. Joana mostrou-lhe o tanque e os peixes vermelhos.

Mostrou-lhe o pomar, as laranjeiras e a horta. E chamou os cães para ele os conhecer. E mostrou-lhe a casa da lenha onde dormia um gato.

12

— As Raparigas Natais ainda não foram inventadas —

respondeu. Ergueu o casaco, puxou o gorro para as orelhas e desapareceu ao dobrar da esquina.

O Pai Natal franziu o sobrolho. Alguma coisa ali não estava

certa. Foi para o jardim e sentou-se num banco. Um véu perpassou

em frente da lua e começou a nevar. O Pai Natal apoiou a cabeça nas mãos, pensativo. Tantos Pais Natais! O que teria ali ainda a fazer?

Teria embrulhado as prendas erradas? Estariam os homens a precisar

de outras prendas diferentes? Um pardal poisou-lhe no gorro. O Pai Natal continuava a matutar e nem se deu conta.

— Descobri! — disse de repente. E fez-se novamente ao

caminho.

Os flocos de neve dançavam no ar, as lanternas projectavam

auréolas de luz sobre a rua, uma criança riu algures, uma bola de neve

passou-lhe a sibilar rente à cara.

Na praça principal, um violinista de rua enregelava, bem como o seu violino. Tinha um som débil e ofegante, como se fosse morrer

asfixiado a qualquer momento. O Pai Natal agarrou no saco e

ofereceu ao violinista um som encantador. Este rejubilou.

Numa cozinha, um rapazinho estava sentado, às voltas com os

trabalhos de casa de Matemática. O Pai Natal pensou um pouco e

passou ao rapaz uma ideia por debaixo da porta. Ele pegou no lápis e

começou a escrever com satisfação.

— Ora aí está! — murmurou o Pai Natal, atravessando a

estrada.

Page 17: Histórias de Natal

13

Perto do cruzamento, estava um polícia. Tinha os pés frios e

parecia encontrar-se de mau-humor.

O Pai Natal assobiou-lhe uma musiquinha.

Os carros passavam a apitar e pareciam empurrar-se uns aos

outros. Os condutores vociferavam. A todos o Pai Natal deu um

pouco de tempo e uma pitada de paciência. Os travões deixaram de chiar e de salpicar com lama de neve.

— Estão a ver? Assim também se consegue — disse o Pai

Natal, satisfeito.

Na casa de espectáculos encontrou uma cantora com dores de

garganta, que rouquejava desanimada. O Pai Natal tirou saúde do

saco. Acrescentou-lhe alguns sons agudos. Bem ia precisar deles, e ela experimentou-os todos imediatamente.

Numa casa, viu uma menina deitada de bruços em cima da

cama. À sua frente tinha uma lista de prendas, mas não sabia o que

pedir. Roía a ponta do lápis e olhava com ar triste para o ar.

Se calhar, ela já tem tudo — pensou o Pai Natal — mas ainda

lhe falta alguma coisa.

E a alegria de partilhar com os outros inundou o quarto.

Em seguida, começou a cantar Cai neve, cai neve… porque ela

estava de facto a cair e encantava a cidade.

— É bom quando podemos ser úteis — concluiu o Pai Natal,

esfregando as mãos.

Viu como os outros faziam o seu trabalho mal-humorados,

distribuindo vales e oferecendo bombons, e a todos enviou boa

119

E mostrou-lhe todas as árvores e as relvas e as flores.

— É lindo, é lindo — dizia o rapazinho gravemente. — Aqui — disse Joana — é o cedro. É aqui que eu brinco. E sentaram-se sob

a sombra redonda do cedro.

A luz da manhã rodeava o jardim: tudo estava cheio de paz e de

frescura. Às vezes do alto de uma tília caía uma folha amarela que dava voltas no ar.

Joana foi buscar pedras, paus e musgo e começaram os dois a

construir a casa do rei dos anões.

Brincaram assim durante muito tempo.

Até que ao longe apitou uma fábrica.

— Meio-dia — disse o garoto — tenho de me ir embora.

— Onde é que tu moras?

— Além nos pinhais.

— É lá a tua casa?

— É, mas não é bem uma casa.

— Então?

— O meu pai está no céu. Por isso somos muito pobres. A

minha mãe trabalha todo o dia mas não temos dinheiro para ter uma casa.

— Mas à noite onde é que dormes?

— O dono dos pinhais tem uma cabana onde de noite dormem

uma vaca e um burro. E por esmola dá-me licença de dormir ali também.

Page 18: Histórias de Natal

120

— E onde é que brincas?

— Brinco em toda a parte. Dantes morávamos no centro da cidade e eu brincava no passeio e nas valetas. Brincava com latas

vazias, com jornais velhos, com trapos e com pedras. Agora brinco no

pinhal e na estrada. Brinco com as ervas, com os animais e com as

flores. Pode-se brincar em toda a parte.

— Mas eu não posso sair deste jardim. Volta amanhã para

brincar comigo.

E daí em diante todas as manhãs o rapazinho passava pela rua. Joana esperava-o empoleirada em cima do muro.

Abria-lhe a porta e iam os dois sentar-se sob a sombra redonda

do cedro.

E foi assim que Joana encontrou um amigo.

Era um amigo maravilhoso. As flores voltavam as suas corolas

quando ele passava, a luz era mais brilhante em seu redor e os

pássaros vinham comer na palma das suas mãos as migalhas de pão que Joana ia buscar à cozinha.

A festa

Passaram muitos dias, passaram muitas semanas até que

chegou o Natal.

E no dia de Natal Joana pôs o seu vestido de veludo azul, os

seus sapatos de verniz preto e muito bem penteada às sete e meia saiu

do quarto e desceu a escada.

Quando chegou ao andar de baixo ouviu vozes na sala grande;

14

disposição.

De regresso a casa, acendeu as luzes de uma árvore de Natal. Pôs o seu gorro num boneco de neve, depois deu aos pássaros das

suas bolachinhas de Natal. O saco das prendas, tornou a levá-lo

consigo.

— Noite feliz! Noite feliz! — cantarolava baixinho. — Talvez venham a ser precisas no próximo ano!

Então, brilhou no céu a Estrela de Natal.

Sigrid Laube “Erstaunlich”, sagt der Weihnachtsmann

Wien, Annette Betz Verlag, 2003 Texto adaptado

Page 19: Histórias de Natal

15

Bolo-rei

Todos os anos, quando os velhos Reis Magos acabam de

atravessar a pequena estrada de areia que se esboça entre caminhos de

musgo e lagos feitos de bocados de espelho partido; quando a estrela de prata que se suspende entre os dois exemplares de “A Paleta e o

Mundo” de Mário Dionísio se recolhe para regressar à velha caixa de

papelão, com trinta anos de viagens, cheia de bocados de jornal amachucados que ainda guardam notícias de dias que já foram e onde

se embrulham os cordeirinhos, os pastores, as oferendas várias que o

Menino Jesus recebeu, apesar de já lhe faltar a mãozinha direita que

alguém partiu em excesso de limpeza; todos os anos, dizia, recordo a história que o Fernando Midões me contou, certa tarde em que

misturámos poemas com lágrimas.

De calças à golfe, lacinho à Baptista Bastos, fato de ver a Deus e celebrar o Dia de Reis, Fernando foi com a mãe jantar a casa das

senhoras, gente de talher de prata, criadas de avental branco e crista

engomada, cheias de silêncios e reverências.

Com olhos de amora madura, esse sorriso que ainda hoje conserva, sempre molhado de uma melancolia que tem de adivinhar-

-se mais do que ver-se, Fernando entrou na sala de jantar das

anfitriãs, cujas portas só o espírito natalício abria, raros que eram os gestos de caridade e partilha. Assim se explicava a presença do

121

eram as pessoas crescidas que estavam lá dentro. Mas Joana sabia que

tinham fechado a porta para ela não entrar. Por isso foi à casa de jantar ver se já lá estavam os copos.

Os copos passavam a sua vida fechados dentro de um grande

armário de madeira escura que estava no meio do corredor. Esse

armário tinha duas portas que nunca se abriam completamente e uma grande chave. Lá dentro havia sombras e brilhos. Era como o interior

de uma caverna cheia de maravilhas, e segredos. Estavam lá fechadas

muitas coisas, coisas que não eram precisas para a vida de todos os dias, coisas brilhantes e um pouco encantadas: loiças, frascos, caixas,

cristais e pássaros de vidro. Até havia um prato com três maçãs de

cera e uma menina de prata que era uma campainha. E também um grande ovo de Páscoa feito de loiça encarnada com flores doiradas.

Joana nunca tinha visto bem até ao fundo do armário. Não

tinha licença de o abrir. Só conseguia que a criada às vezes a deixasse

espreitar entre as duas portas.

Nos dias de festa, do fundo das sombras do interior do

armário saíam os copos. Saíam claros, transparentes e brilhantes

tilintando no tabuleiro. E para Joana aquele barulho de cristal a tilintar era a música das festas.

Joana deu uma volta à roda da mesa. Os copos já lá estavam,

tão frios e luminosos que mais pareciam vindos do interior de uma

fonte de montanha do que do fundo de um armário. As velas estavam acesas e a sua luz atravessava o cristal. Em cima da mesa havia coisas

maravilhosas e extraordinárias: bolas de vidro, pinhas douradas e

aquela planta que tem folhas com picos e bolas encarnadas. Era uma

Page 20: Histórias de Natal

122

festa. Era o Natal.

Então Joana foi ao jardim. Porque ela sabia que nas Noites de Natal as estrelas são diferentes.

Abriu a porta e desceu a escada da varanda. Estava muito frio,

mas o próprio frio brilhava. As folhas das tílias, das bétulas e das

cerejeiras tinham caído. Os ramos nus desenhavam-se no ar como rendas pretas. Só o cedro tinha os seus ramos cobertos.

E muito alto, por cima das árvores, era a escuridão enorme e

redonda do céu. E nessa escuridão as estrelas cintilavam, mais claras do que tudo. Cá em baixo era uma festa e por isso havia muitas

coisas brilhantes: velas acesas, bolas de vidro, copos de cristal. Mas

no céu havia uma festa maior, com milhões e milhões de estrelas.

Joana ficou algum tempo com a cabeça levantada. Não pensava

em nada. Olhava a imensa felicidade da noite no alto céu escuro e

luminoso, sem nenhuma sombra.

Depois voltou para casa e fechou a porta. — Ainda falta muito tempo para o jantar? — perguntou ela a uma criada que ia a

atravessar o corredor.

— Ainda falta um bocadinho, menina — disse a criada. Então Joana foi à cozinha ver a cozinheira Gertrudes, que era uma pessoa

extraordinária porque mexia nas coisas quentes sem se queimar e nas

facas mais aguçadas sem se cortar, e mandava em tudo, e sabia tudo.

Joana achava-a a pessoa mais importante que ela conhecia.

A Gertrudes tinha aberto o forno e estava debruçada sobre os

dois perus do Natal. Virava-os e regava-os com molho. A pele dos

16

rapazinho e sua mãe, viúva recente e que ali trabalhava de manhã à

noite, para que a vida se assemelhasse ao que já fora.

Servidos os manjares da época: a canja onde as bolhas de

gordura lembravam pequenos sóis fumegantes, o leitão de maçã

vermelha na boca que olhava Fernando em gritos de sufoco que só

ele, poeta em germinação, conseguia ouvir; os fritos vários que nas travessas exibiam a abastança, chegou finalmente e foi colocado em

lugar de honra, no centro da mesa, ladeado por dois castiçais onde as

velas vermelhas ardiam, o bolo-rei, roda magnífica de cores, frutas, pinhões, bocados de açúcar que lembravam neve e cujo esplendor

ofuscava o dourado das filhós, os reflexos das garrafas de licor, o

brilho dos copos de cristal.

Fernando, pequenino, queixo tocando a toalha de renda, olhava

aqueles mistérios de cor e perfume e falava, falava, dizia coisas tão a

propósito que as senhoras, enlevadas, não se cansavam de sorrir e

felicitar a mãe que tal filho tinha. Então, a mais velha, cabeção de renda e camafeu de marfim a fechar as golas, pega na faca de prata e

com solenidade, meticulosamente, parte o bolo. A criada ajuda à

distribuição nos pratinhos de sobremesa.

— Agora, não se esqueçam: aquele ou aquela a quem calhar a

fava terá de pagar o bolo-rei no ano que vem!

E entre comentários de enlevo, gula, elogios à tessitura e ponto

ideal do levedo da massa, à abundância das frutas, à maciez e agrado do paladar, se comeu a sobremesa.

A prenda calhou à criada.

— Que sorte! Mostre lá!

Page 21: Histórias de Natal

17

— Olhe que medalha tão bonita! Parece uma libra de verdade.

Até pode usar no fio que ninguém diz que não é autêntica.

— E tu, Fernandinho, não acabas de comer a tua fatia de bolo?

— Come que está bom e fofinho!

Fernando, subitamente silencioso, abanava a cabeça em

negativas.

— Então, filho! Não sabes falar? Responde às senhoras:

queres mais um bocadinho de bolo?

— Ao menos acaba esse!

— Está cansado, coitadinho! Deixe-o lá.

Fernando baixava a cabeça, cabelos lisos na testa. A noite ia

adiantada. A Miguel Bombarda, onde moravam, ainda ficava longe. Sim, minha senhora, amanhã às oito cá estarei, se Deus quiser, para

cortar o vestido novo e pôr em prova a saia do “tailleur”. Foi uma

noite muito bonita. Muito obrigada! Fernando dá um beijo às

senhoras e agradece. Diz obrigado, Fernando!

Fernando deu o beijo às senhoras, esticou a cara, pôs-se em

bicos dos pés, encheu os olhos de gratidão.

— Diz obrigado, filho! Mas o que te aconteceu?

— Deixe-o lá, coitadinho, perdeu a língua. É o sono, não é?

Descem o elevador, abrem a porta da rua. A mãe, agastada,

ralha:

— Mas que vergonha! Umas senhoras tão boas, recebem-nos como família, estavas a portar-te tão bem e agora isto, nem uma

palavra de agradecimento, nem boa noite, é esta a educação que te

123

perus, muito esticada sobre o peito recheado, já estava toda doirada.

— Gertrudes, ouve uma coisa — disse Joana.

A Gertrudes levantou a cabeça e parecia tão assada como os

perus.

— O que é? — perguntou ela.

— Que presentes é que achas que eu vou ter?

— Não sei — disse Gertrudes —, não posso adivinhar.

Mas Joana tinha a maior confiança na sabedoria de Gertrudes e

por isso continuou a fazer perguntas.

— E achas que o meu amigo vai ter muitos presentes?

— Qual amigo? — disse a cozinheira.

— O Manuel.

— O Manuel não. Não vai ter presentes nenhuns.

— Não vai ter presentes nenhuns!?

— Não — disse a Gertrudes abanando a cabeça.

— Mas porquê, Gertrudes?

— Porque é pobre. Os pobres não têm presentes.

— Isso não pode ser, Gertrudes.

— Mas é assim mesmo — disse a Gertrudes fechando a tampa do forno.

Joana ficou parada no meio da cozinha. Tinha compreendido

que era «assim mesmo».

Porque ela sabia que a Gertrudes conhecia o mundo. Todas as manhãs a ouvia discutir com o homem do talho, com a peixeira e com

Page 22: Histórias de Natal

124

a mulher da fruta. E ninguém a podia enganar. Porque ela era

cozinheira há trinta anos. E há trinta anos que ela se levantava às sete da manhã e trabalhava até às onze da noite. E sabia tudo o que se

passava na vizinhança e tudo o que se passava dentro das casas de

toda a gente. E sabia todas as notícias, e todas as histórias das

pessoas. E conhecia todas as receitas de cozinha, sabia fazer todos os bolos e conhecia todas as espécies de carnes, de peixes, de frutas e de

legumes. Ela nunca se enganava. Conhecia bem o mundo, as coisas e

os homens.

Mas o que a Gertrudes tinha dito era esquisito como uma

mentira. Joana ficou calada a cismar no meio da cozinha.

De repente abriu-se a porta e apareceu uma criada que disse:

— Já chegaram os primos.

Então Joana foi ter com os primos.

Daí a uns minutos apareceram as pessoas grandes e foram

todos para a mesa.

Tinha começado a festa do Natal.

Havia no ar um cheiro de canela e de pinheiro. Em cima da

mesa tudo brilhava: as velas, as facas, os copos, as bolas de vidro, as pinhas doiradas. E as pessoas riam e diziam umas às outras: «Bom

Natal». Os copos tilintavam com um barulho de alegria e de festa. E

vendo tudo isto Joana pensava:

— Com certeza que a Gertrudes se enganou. O Natal é uma festa para toda a gente. Amanhã o Manuel vai-me contar tudo. Com

certeza que ele também tem presentes.

18

tenho dado? Se o teu pai fosse vivo…

Então, já na rua, o frio de Janeiro a gelar-lhe as mãos e o nariz, a névoa a transfigurar a rua e as pessoas, Fernando, finalmente, abre a

boca e lá do fundo deixa voar o mistério da sua inesperada mudez:

— É que me calhou a fava, mãezinha. Eu sei que tu não tens

dinheiro para, no ano que vem, comprares um bolo-rei igual àquele.

E, na palma da mão pequenina, cuspiu a fava que ali nascia,

quente ainda, do esconderijo em que estivera.

E ainda hoje, nas horas mais dolorosas, quando se esquece de mastigar a comida que arrefece no tabuleiro da cantina e prefere

viajar no país da infância, Fernando Midões, meu irmão mais antigo,

sente a ternura solidária do abraço e o húmido das lágrimas com que a mãe o aconchegou junto de si.

Sem palavras, mãe.

Sem palavras.

Maria Rosa Colaço Viagem com Homem dentro (adaptação)

Leiria, Editorial Diferença, 1998

Page 23: Histórias de Natal

19

A manhã do dia de Natal

Rob tinha quinze anos e vivia numa quinta. Todas as

madrugadas se arrastava para fora da cama para ajudar a mungir. Às

vezes, sentia que o esforço era demasiado.

Rob gostava do pai. Não sabia até que ponto, quando um dia,

um pouco antes do Natal, ouviu o pai a dizer à mãe:

— Mary, custa-me muito chamar o Rob de manhã. Ele está a crescer muito depressa e precisa de dormir. Gostava de conseguir

desembaraçar-me sozinho.

— Mas não consegues, Adam.

A voz da mãe era determinada.

— Eu sei — disse o pai lentamente — mas a verdade é que me

custa mesmo ter de o chamar.

Ao ouvir estas palavras, Rob sentiu algo a mexer dentro dele: o pai amava-o! Nunca antes pensara nisso. Passou a levantar-se mais

depressa. O sono fazia-o tropeçar e vestia a roupa com os olhos bem

fechados. Mas, mesmo assim, levantava-se.

Na véspera de Natal do ano em que fazia quinze anos, estava deitado a olhar pela janela do sótão e a desejar ter um melhor

presente para o pai do que uma gravata de dez cêntimos comprada na

loja.

125

E consolada com esta esperança Joana voltou a ficar quase tão

alegre como antes.

O jantar do Natal era igual ao de todos os anos.

Primeiro veio a canja, depois o bacalhau assado, depois os

perus, depois os pudins de ovos, depois as rabanadas, depois os

ananases.

No fim do jantar levantaram-se todos, abriu-se de par em par a

porta e entraram na sala.

As luzes eléctricas estavam apagadas. Só ardiam as velas do pinheiro.

Joana tinha nove anos e já tinha visto nove vezes a árvore do

Natal. Mas era sempre como se fosse a primeira vez. Da árvore nascia um brilhar maravilhoso que pousava sobre todas as coisas. Era como

se o brilho de uma estrela se tivesse aproximado da Terra. Era o

Natal. E por isso uma árvore se cobria de luzes e os seus ramos se

carregavam de extraordinários frutos em memória da alegria que, numa noite muito antiga, se tinha espalhado sobre a Terra.

E no presépio as figuras de barro, o Menino, a Virgem, São

José, a vaca e o burro, pareciam continuar uma doce conversa que jamais tinha sido interrompida. Era uma conversa que se via e não se

ouvia.

Joana olhava, olhava, olhava.

Às vezes lembrava-se do seu amigo Manuel.

Um dos primos puxou-a por um braço.

— Joana, ali estão os teus presentes.

Page 24: Histórias de Natal

126

Joana abriu um por um os embrulhos e as caixas: a boneca, a

bola, os livros cheios de desenhos a cores, a caixa de tintas.

À sua volta todos riam e conversavam.

Todos mostravam uns aos outros os presentes que tinham

tido, falando ao mesmo tempo.

E Joana pensava:

— Talvez o Manuel tenha tido um automóvel.

E a festa do Natal continuava.

As pessoas grandes sentaram-se nas cadeiras e nos sofás a conversar e as crianças sentaram-se no chão a brincar.

Até que alguém disse:

— São onze horas e meia. São quase horas da missa. E são horas de as crianças se irem deitar.

Então as pessoas começaram a sair.

O pai e a mãe de Joana também saíram.

— Boa noite, minha querida. Bom Natal — disseram eles.

E a porta fechou-se.

Daí a um instante saíram as criadas.

A casa ficou muito silenciosa. Tinham ido todos para a Missa do Galo, menos a velha Gertrudes, que estava na cozinha a arrumar

as panelas.

E Joana foi à cozinha. Era a altura boa para falar com a

Gertrudes.

— Bom Natal, Gertrudes — disse Joana.

20

Lá fora, as estrelas brilhavam, e havia uma em particular que

lhe parecia ser a Estrela de Belém.

— Pai — perguntara uma vez — o que é um estábulo?

— É apenas um celeiro como o nosso — respondera o pai.

Então Jesus nascera num celeiro, e fora para um celeiro que os

pastores e os reis magos se tinham dirigido, com os seus presentes de Natal.

Ficou siderado com a ideia. Por que não dar um presente

especial ao pai? Podia levantar-se cedo, mais cedo do que as quatro horas, e esgueirar-se para o celeiro para mungir. Faria tudo – mungir

e limpar – sozinho. Quando o pai chegasse, veria tudo já feito. E

saberia quem o fizera.

Nessa noite, deve ter acordado umas vinte vezes. Às três menos

um quarto, levantou-se e vestiu-se. Desceu silenciosamente as

escadas, tendo especial cuidado com as tábuas que rangiam, e saiu.

Uma grande estrela cor de ouro avermelhado pairava por cima do celeiro. As vacas olhavam-no, sonolentas e surpreendidas.

Nunca antes mungira sozinho, mas parecia fácil. Não parava de

pensar na surpresa que o pai teria. Sorria e mungia com segurança, deitando para a selha dois fortes jactos, espumosos e perfumados. As

vacas estavam surpreendidas mas anuíam. Era a primeira vez que se

portavam bem, como se soubessem que era Natal.

A tarefa foi desempenhada com mais facilidade do que habitualmente. Pela primeira vez, mungir não era penoso. Era algo de

diferente: um presente para um pai que o amava.

Page 25: Histórias de Natal

21

De volta ao quarto, só teve tempo de tirar a roupa no escuro e

de saltar para a cama, porque já ouvia o pai a levantar-se. Cobriu a cabeça com os lençóis para silenciar a respiração ofegante. A porta

abriu-se.

— Rob! — chamou o pai. — Temos de nos levantar, filho,

mesmo sendo Natal.

— ‘Tá bem — disse com sono.

— Vou indo — disse o pai. — Vou pondo as coisas a andar.

A porta fechou-se e Rob ficou quieto, a rir com os seus botões. Os minutos nunca mais passavam – dez, quinze, não sabia quantos –

até que ouviu de novo os passos do pai.

— Rob!

— Sim, Pai?

O pai estava a rir, um riso esquisito, soluçante.

— Pensavas que me enganavas, não?

— É por ser Natal, Pai!

O pai sentou-se na cama e apertou-o contra si, num grande

abraço. Estava escuro e não conseguiam ver os rostos um do outro.

— Agradeço-te, filho. Nunca ninguém fez coisa mais bonita…

— Oh, Pai.

Não sabia o que dizer. O seu coração transbordava de amor.

— Bom, parece que posso voltar para a cama — disse o pai,

volvido um momento. — Espera… estás a ouvir? Os pequeninos já estão a acordar. Agora que penso nisso, nunca vos vi a olhar pela

127

— Bom Natal — respondeu a Gertrudes. Joana calou-se um

momento. Depois perguntou:

— Gertrudes, aquilo que disseste antes do jantar é verdade?

— O que é que eu disse?

— Disseste que o Manuel não ia ter presentes de Natal porque

os pobres não têm presentes.

— Está claro que é verdade. Eu não digo fantasias: não teve

presentes, nem árvore do Natal, nem peru recheado, nem rabanadas.

Os pobres são os pobres. Têm a pobreza.

— Mas então o Natal dele como foi?

— Foi como nos outros dias.

— E como é nos outros dias?

— Uma sopa e um bocado de pão.

— Gertrudes, isso é verdade?

— Está claro que é verdade. Mas agora era melhor que a

menina se fosse deitar porque estamos quase na meia-noite.

— Boa noite — disse Joana. E saiu da cozinha.

Subiu a escada e foi para o seu quarto. Os seus presentes de

Natal estavam em cima da cama. Joana olhou-os um por um. E pensava:

— Uma boneca, uma bola, uma caixa de tintas e livros. São tal

e qual os presentes que eu queria. Deram-me tudo o que queria. Mas

ao Manuel ninguém deu nada.

E sentada na beira da cama, ao lado dos presentes, Joana pôs-se

Page 26: Histórias de Natal

128

a imaginar o frio, a escuridão e a pobreza. Pôs-se a imaginar a Noite

de Natal naquela casa que não era bem uma casa, mas um curral de animais.

«Que frio lá deve estar!», pensava ela.

«Que escuro lá deve estar!», pensava ela.

«Que triste lá deve estar!», pensava.

E começou a imaginar o curral gelado e sem nenhuma luz onde

Manuel dormia em cima das palhas, aquecido só pelo bafo de uma

vaca e de um burro.

— Amanhã vou-lhe dar os meus presentes — disse ela. Depois

suspirou e pensou:

«Amanhã não é a mesma coisa. Hoje é que é a Noite de Natal.»

Foi à janela, abriu as portadas e através dos vidros espreitou a

rua. Ninguém passava. O Manuel estava a dormir. Só viria na manhã

seguinte. Ao longe via-se uma grande sombra escura: era o pinhal.

Então ouviu, vindas da Torre da Igreja, fortes e claras, as doze pancadas da meia-noite.

«Hoje», pensou Joana, «tenho de ir hoje. Tenho de ir lá agora,

esta noite. Para que ele tenha presentes na Noite de Natal.»

Foi ao armário tirou um casaco e vestiu-o. Depois pegou na

bola, na caixa de tintas e nos livros. Apetecia-lhe levar também a

boneca, mas ele era um rapaz e com certeza não gostava de bonecas.

Pé ante pé Joana desceu a escada. Os degraus estalaram um por um. Mas na cozinha a Gertrudes fazia muito barulho a arrumar as

panelas e não a ouviu.

22

primeira vez para a árvore de Natal. Estava sempre no celeiro. Anda

daí!

Rob levantou-se, vestiu-se de novo e desceram para ver a árvore

de Natal. Depressa o Sol tomou o lugar da estrela. Oh, que Natal

aquele, e como o seu coração quase rebentou de timidez e alegria

quando o pai contou à mãe e aos mais novos que ele, Rob, se tinha levantado sozinho.

— O melhor presente de Natal que alguma vez tive, e hei-de

recordá-lo, meu filho, todos os anos na manhã de Natal, enquanto for vivo.

Pearl S. Buck

M. Clark; E. Briggs; C. Passmore Lighting candles in the dark Philadelphia, FGC, 2001

Page 27: Histórias de Natal

23

A batalha de Natal

— Só mais seis dias — constata Neli, tentando em seguida

assobiar Noite Feliz.

— Ainda seis dias — repete a mãe pensativamente.

A voz não soa alegre. Após uma curta pausa, prossegue,

suspirando. — Se tudo tivesse já passado!

Com o assobio suspenso no ar, Neli olha para a mãe com ar estupefacto.

— Então não estás contente?

— Sim, mas já estou pelos cabelos com esta agitação toda!

Como Neli não tem aulas à tarde, vai patinar com uma amiga e, mais lá para a noite, dirige-se ao supermercado onde a mãe trabalha.

Há tanto movimento que mais parece estar-se numa colmeia. A mãe

encontra-se sentada numa cadeira giratória diante de uma das seis caixas registadoras. Os produtos chegam-lhe num tapete rolante e,

enquanto a mão direita está pousada no teclado e marca os números,

a mão esquerda roda os produtos de forma a poder ler os números, e,

em seguida, coloca-os, produto a produto, no carrinho de compras. Quando acaba de marcar tudo, a mão direita carrega na tecla do total

e rasga o talão, enquanto a esquerda afasta o carro cheio e puxa o

próximo, vazio, para junto dela.

129

Na sala de jantar havia uma porta que dava para o jardim. Joana

abriu-a e saiu, deixando-a ficar só fechada no trinco.

Depois atravessou o jardim. O Alex e a Ghiribita ladraram.

— Sou eu, sou eu — disse Joana.

E os cães, ouvindo a sua voz, calaram-se.

Então Joana abriu a porta do jardim e saiu.

A estrela

Quando se viu sozinha no meio da rua teve vontade de voltar

para trás. As árvores pareciam enormes e os seus ramos sem folhas

enchiam o céu de desenhos iguais a pássaros fantásticos. E a rua parecia viva. Estava tudo deserto. Àquela hora não passava ninguém.

Estava toda a gente na Missa do Galo. As casas, dentro dos seus

jardins, tinham as portas e as janelas fechadas. Não se viam pessoas, só se viam coisas. Mas Joana tinha a impressão de que as coisas a

olhavam e a ouviam como pessoas.

«Tenho medo», pensou ela.

Mas resolveu caminhar para a frente sem olhar para nada.

Quando chegou ao fim da rua virou à direita e meteu a um

atalho entre dois muros. E no fim do atalho encontrou os campos,

planos e desertos. Ali, sem muros nem árvores nem casas, a noite via-se melhor. Uma noite altíssima e redonda e toda brilhante.

O silêncio era tão forte que parecia cantar. Muito ao longe via-

-se a massa escura dos pinhais.

«Será possível que eu chegue até lá?», pensou Joana.

Page 28: Histórias de Natal

130

Mas continuou a caminhar.

Os seus pés enterravam-se nas ervas geladas. Ali no descampado soprava um curto vento de neve que lhe cortava a cara

como uma faca.

«Tenho frio», pensou Joana.

Mas continuou a caminhar.

À medida que se ia aproximando dele, o pinhal ia-se tornando

maior. Até que ficou enorme.

Joana parou um instante no meio dos campos.

«Para que lado ficará a cabana?», pensou ela.

E olhava em todas as direcções à procura de um rasto.

Mas à sua direita não havia rasto, à sua esquerda não havia rasto e à sua frente não havia rasto.

«Como é que hei-de encontrar o caminho?», perguntava ela.

E levantou a cabeça.

Então viu que no céu, lentamente, uma estrela caminhava.

«Esta estrela parece um amigo», pensou ela.

E começou a seguir a estrela.

Até que penetrou no pinhal. Então num instante as sombras fizeram uma roda à sua volta. Eram enormes, verdes, roxas, pretas e

azuis, e dançavam com grandes gestos. E a brisa passava entre as

agulhas dos pinheiros, que pareciam murmurar frases

incompreensíveis. E vendo-se assim rodeada de vozes e de sombras Joana teve medo e quis fugir. Mas viu que no céu, muito alto, para

24

— Que bem que fazes isso — dissera-lhe Neli uma vez. — Eu

faria tudo devagar, assim: tipp… tipp … … e, ainda por cima, metade saía mal.

— Ora — dissera a mãe a rir. — É uma questão de treino.

Quando comecei, também não era assim tão despachada. Não

encontrava a etiqueta com o preço, e muitas vezes carregava nas teclas erradas e as pessoas resmungavam porque tinham de esperar. Mas

agora já quase consigo fazer isto automaticamente.

— Como um robô! — Neli riu-se.

Um robô como mãe? Nunca teria dor de cabeça, nem à noite

estaria tão cansada. Mas um robô não tem coração. Por isso, Neli

prefere a mãe tal como é, mesmo quando certas noites quase nem consegue falar de tão cansada que está!

Só mais quatro dias.

Só mais três.

As filas nas caixas eram cada vez mais longas. As pessoas abasteciam-se de comida como se o Natal durasse meio ano. Com um

ruído sibilante, as portas automáticas abriam-se e fechavam-se,

abriam-se e fechavam-se. A mãe sentia nas costas a corrente de ar e os cartões pendurados no tecto balançavam de um lado para o outro.

Um sino de Natal, por cima da cabeça da mãe tinha escrito a

vermelho: PROMOÇÃO: Bombons, 250 gr, a preço especial.

Próximo, balançava um anjo de papel com uma faixa nas mãos, como nas igrejas, mas onde não estava escrito Paz na terra aos

homens de boa vontade, mas sim Fiambre para o Natal a 15,80/Kg.

Page 29: Histórias de Natal

25

Os altifalantes pingavam música de Natal:

Noite feliz…

Cabeça de anho

Noite feliz…

Café suave

Papel higiénico de três folhas

O Senhor …

Lenços com monograma

Mostarda

Nasceu em Belém…

A mãe gemia e, com um movimento rápido, limpava o suor do

lábio com as costas da mão. Os clientes, impacientes, esperavam, apoiando-se ora numa, ora na outra perna. De olhar ausente, nem

olhavam para a senhora da caixa, pensando no regresso com os sacos

pesados, o eléctrico cheio.

Uff!

Só mais três dias, e acaba tudo.

— Vou fazer um jantar como o do ano passado — disse à

noite a mãe, virando-se para a Neli — Peru assado com a laranja e batatas assadas e, como sobremesa, rabanadas e bolo-rei.

No dia 24 de Dezembro, a loja só estava aberta até às quatro

horas da tarde. Em seguida, os empregados podiam comprar, com um

desconto de 15%, os produtos que sobravam. A mãe de Neli achava que valia a pena, por isso tinha guardado as compras maiores para

131

além de todas as sombras, a estrela continuava a caminhar. E seguiu a

estrela.

Já no meio do pinhal pareceu-lhe ouvir passos.

«Será um lobo?», pensou.

Parou a escutar. O barulho dos passos aproximava-se. Até que

viu surgir entre os pinheiros um vulto muito alto que vinha caminhando ao seu encontro.

«Será um ladrão?», pensou.

Mas o vulto parou na sua frente e ela viu que era um rei. Tinha na cabeça uma coroa de oiro e dos seus ombros caía um longo manto

azul todo bordado de diamantes.

— Boa noite — disse Joana.

— Boa noite — disse o rei. — Como te chamas?

— Eu, Joana — disse ela.

— Eu chamo-me Melchior — disse o rei. E perguntou:

— Onde vais sozinha a esta hora da noite?

— Vou com a estrela — disse ela.

— Também eu — disse o rei —, também eu vou com a

estrela.

E juntos seguiram através do pinhal.

E de novo Joana ouviu passos. E um vulto surgiu entre as

sombras da noite.

Tinha na cabeça uma coroa de brilhantes e dos seus ombros caía um grande manto vermelho coberto de muitas esmeraldas e

Page 30: Histórias de Natal

132

safiras.

— Boa noite — disse ela. — Chamo-me Joana e vou com a estrela.

— Também eu — disse o rei —, também eu vou com a estrela

e o meu nome é Gaspar.

E seguiram juntos através dos pinhais. E mais uma vez Joana ouviu um barulho de passos e um terceiro vulto surgiu entre as

sombras azuis e os pinheiros escuros.

Tinha na cabeça um turbante branco e dos seus ombros caía um longo manto verde bordado de pérolas. A sua cara era preta.

— Boa noite — disse ela. — O meu nome é Joana. E vamos

com a estrela.

— Também eu — disse o rei — caminho com a estrela e o

meu nome é Baltasar.

E juntos seguiram os quatro através da noite.

No chão, os galhos secos estalavam sob os passos, a brisa murmurava entre as árvores e os grandes mantos bordados dos três

reis do Oriente brilhavam entre as sombras verdes, roxas e azuis.

Já quase no fundo dos pinhais viram ao longe uma claridade. E sobre essa claridade a estrela parou.

E continuaram a caminhar.

Até que chegaram ao lugar onde a estrela tinha parado e Joana

viu um casebre sem porta. Mas não viu escuridão, nem sombra, nem tristeza. Pois o casebre estava cheio de claridade, porque o brilho dos

anjos o iluminava.

26

essa altura: uma pasta escolar para a Neli, uma boneca, lápis de cor,

um anoraque para o pai, a comida para a ceia de Natal.

Na sala do pessoal, havia um lanche para todos os empregados.

— A batalha de Natal foi mais uma vez vencida — repetia o

chefe do pessoal. Dizia, depois, mais umas palavras elogiosas e eram

servidos pãezinhos com fiambre e um copo de vinho.

Após o lanche, a mãe de Neli deixou ficar os gordos sacos de

compras esquecidos na sala do pessoal. Só reparou quando já estava

na paragem do autocarro. “As minhas prendas! Todas aquelas coisas boas para a ceia!” — pensou assustada.

Mas a loja já estava fechada e, antes do dia 27, não se voltava a

lá entrar. Foi de mãos vazias que chegou a casa.

Nessa noite, apesar de tudo, festejaram o Natal. O pai acendeu

as velas da árvore de Natal e Neli recitou um poema. Só se lembrou

das duas primeiras estrofes e depois encravou, mas a mãe achou-o

muito bonito e o pai nem reparou que ainda continuava. O jantar foi mais curto do que o planeado. Por sorte, a mãe já tinha comprado o

assado e havia batatas em casa, mas não houve entrada nem

sobremesa. Trincaram simplesmente nozes e comeram maçãs.

— Assim, não fico com o estômago tão pesado como no ano

passado — disse o pai. — Comidas pesadas não me assentam bem.

Também não havia muito que desembrulhar.

Por isso, sobrou tempo. Muito tempo.

Neli foi buscar o jogo Memory que recebera no Natal anterior.

Durante o ano inteiro, esperara, em vão, todos os domingos, que

Page 31: Histórias de Natal

27

alguém tivesse tempo para jogar com ela.

Agora, os pais tinham tempo.

O pai nunca tinha jogado Memory. Ao fim de algum tempo,

Neli já tinha encontrado sete pares de cartas, a mãe três, e o pai, que

geralmente quer ganhar sempre, procurava constantemente no sítio

errado.

Tentava ajudar-se com truques, pondo, sem ninguém dar

conta, migalhinhas de pão em cima das cartas que tinha decorado, ou

pousava as mãos na mesa, de tal forma que o polegar indicava a direcção em que estava uma determinada carta. Neli descobriu-lhe a

jogada. Jogaram mais duas ou três vezes e o pai não se zangava por

perder sempre. Depois, ainda jogaram o jogo do assalto.

À meia-noite, o pai apagou a luz e ficaram a olhar pela janela. A

neve reflectia uma luz clara e ouviam-se os sinos a tocar.

— A esta hora, há quase dois mil anos, nasceu Jesus — disse a

mãe, e Neli reparou como ela afinal sempre estava contente por ser Natal.

Ao ir para a cama, Neli disse:

— Este foi um Natal muito bonito.

— A sério? — perguntou a mãe admirada. — Mas não houve

ceia nem prendas quase nenhumas.

— Mas houve muito tempo — respondeu Neli.

Jutta Modler (org) Brücken Bauen

Wien, Herder, 1987

133

E Joana viu o seu amigo Manuel. Estava deitado nas palhas

entre a vaca e o burro e dormia sorrindo.

Em sua roda, ajoelhados no ar, estavam os anjos. O seu corpo

não tinha nenhum peso e era feito de luz sem nenhuma sombra.

E com as mãos postas os anjos rezavam ajoelhados no ar.

Era assim, à luz dos anjos, o Natal de Manuel.

— Ah — disse Joana — aqui é como no presépio!

— Sim — disse o rei Baltasar — aqui é como no presépio.

Então Joana ajoelhou-se e poisou no chão os seus presentes.

Sophia de Mello Breyner Andresen

A Noite de Natal Porto, Figueirinhas, 1989

Page 32: Histórias de Natal
Page 33: Histórias de Natal

29

O Viajante

Quando Eva entrou na Arca, apenas da estrela da tarde restava

um pouco de luz. Havia muito já que os largos horizontes da planície

se tinham diluído e uma noite imensa parecia anunciar o final dos tempos. Um cheiro sufocante e húmido inundava todo o espaço,

enquanto, lentamente, o caminho se fazia, num rio sem margens que

o assinalassem. Seres escuros, de rostos invisíveis, embrulhados nos xailes de merino ou grossos capotes, dormitavam, as cabeças

oscilando, uma das mãos segurando a asa das cestas donde emergia o

pescoço dos patos e perús que, daí a horas, seriam sacrificados no

altar das tradições natalícias.

Eva sentou-se ao lado do timoneiro que tentava vislumbrar o

rumo para lá dos grossos cordões de chuva ou, um só que fosse, dos

antiquíssimos sinais que há anos lhe serviam de bússola e estrela do norte: o perfil do monte da barra azul, o moinho sem velas, a oliveira

com uma cruz pintada a cal onde Justa se enforcara, a velha ponte

romana, a capelinha, se nesta viagem houvesse dados, referências e

aquela chuva diluviana não ocultasse tudo num manto de desolação.

Pelo espelho lateral, Eva tentava descobrir o rosto dos viajantes

mas, só as cabeças das aves saindo das cestas vermelhas, se agitavam

em gritos intervalados. De repente, um chiar de travões sacudiu a Arca e, na claridade difusa dos faróis, recortado de encontro ao vidro,

135

O bolo-rei

O bolo-rei tomava-se muito a sério. Não havia discussão: ele

era o rei dos bolos.

Como tal, quando lhe caiu uma passa da coroa, ordenou ao bolo-inglês:

— Traz-me essa passa de volta.

O bolo-inglês fez-se desentendido e respondeu:

— Sorry! I don’t understand...

O que queria dizer, na língua dele, que pedia desculpa, mas não

tinha entendido.

Então, o bolo-rei virou-se para um bolo de natas e deu a mesma ordem. Queria, outra vez, a passa a ornamentar-lhe a coroa.

O bolo de natas tinha uma fala atrapalhada, por causa do

excesso de natas.

— Flá, plefe, pflu, pfló...

Não se percebia nada.

O bolo-rei, muito irritado, ordenou o mesmo ao bolo de

amêndoa, que lhe respondeu:

— Também a mim me caiu uma amêndoa torrada e não me

queixo.

Page 34: Histórias de Natal

136

O bolo-rei, cada vez mais exasperado, deu a mesma ordem a

um pudim de gelatina, mas o pudim de gelatina era muito frágil, muito nervoso e só tremeu, tremeu, incapaz de dizer ou fazer o que

quer que fosse.

— São uns rebeldes estes meus súbditos — concluiu, numa

grande exaltação, o bolo-rei. — Condeno-os a que sejam todos cortados às fatias.

E assim aconteceu. Mas nem o bolo-rei escapou.

António Torrado

www.historiadodia.pt

30

surgiu o rosto. Tinha uns olhos imensos, tristes, o cabelo e a barba

compridos, brilhantes da água que o enquadrava numa moldura líquida. Ergueu as duas mãos como se quisesse segurar a luz, impedir

que a Arca o esmagasse ou esperar que se detivesse para ele entrar.

Entre impropérios, pragas à vida, ao tempo, à profissão que

escolhera, o timoneiro não parou. Pelo contrário, acelerou. Por fragmentos de segundos, o Homem pareceu ter oscilado. Levantou os

braços como quem tenta proteger-se, depois, diluiu-se em noite e

ausência, não sem que antes, o seu olhar, que tinha a fosforescência dos eleitos ou dos animais livres e puros, iluminasse mais uma vez o

negrume que cobria o mundo.

— Não viu o Homem? — sussurrou Eva.

— Vi muito bem. Parecia um fantasma vindo sabe Deus donde

e para quê.

— Não vai parar e recolhê-lo?

— Aqui não é lugar de paragens. Muita sorte a dele em não ter sido atropelado. Só um doido é que anda por aí, numa noite destas,

num caminho assim, sem princípio nem cais de desembarque.

Eva tentou imaginá-lo atravessando sozinho as ondas daquele novo dilúvio que desabara na terra e parecia já ter apagado a

lembrança das coisas, a respiração viva das horas mais antigas e os

sonhos. Todos os sonhos. Talvez esta Arca encontre um dia, de novo,

o alto dos montes e tudo se refaça como no princípio. Talvez amanhã ou daqui a muito tempo – o que é o Tempo? – o timoneiro abra uma

nesga de vidraça e solte, não a pomba dos mitos mas um pato que

regressará, grasnando, para confirmar que são longe as oliveiras e

Page 35: Histórias de Natal

31

perdidas para sempre as cores do arco-íris. E, nesse dia, só o olhar do

Homem permanecerá, colado à memória de quem o encontrou, no espaço visível e mínimo que os faróis em trânsito consentiram. Ficará

ali, para sempre, implorante e acusador, como uma pintura antiga,

como o vestígio de um fóssil onde se assinalará para as gerações

vindouras o remorso e o amor não consentido.

Eva levantou a gola do seu capote alentejano. Sem desfitar o

abismo perguntou:

— Ainda chegaremos antes da meia-noite?

— E se não chegarmos que diferença faz? Acha que existe

algum deus que mande o filho nascer numa noite como esta, de lama,

frio e miséria? Bem sei que para lavar tanta imundície da terra, não existe água que baste mas, escusava de ser logo hoje. Apesar de tudo,

o Natal é um tempo desejado, a única altura em que parece

amansarem as feras que trazemos à solta dentro de nós. Esta lata que

conduzo já deixou de ser uma camioneta: é uma barca perdida, talvez a Arca de Noé, e esses todos que aí estão atrás, a dormir, sonhando

com grandes ceias, prendas, vinho, esse todos, olhe-os bem:

descontando os patos e os perús que estão bem acordados adivinhando talvez o que os espera, o resto é gente que já morreu há

muito e não deu por isso.

Eva fecha os olhos.

Um pranto convulso inunda-lhe os pensamentos e o rosto do Homem cresce, furtivo, na sua ternura.

Apetece-lhe sair daquele sarcófago ambulante, mergulhar na

noite, caminhar no vazio, ir ao seu encontro onde quer que esteja: ou

Page 36: Histórias de Natal

32

caído nas pedras, ou pregado numa cruz, ou sendo açoitado no átrio

dos templos, ou coroado de espinhos, ou vestido com o manto escarlate e áspero da solidão. De repente, soube que o viajante

nocturno veio de outras margens, outros dilúvios, dos escombros das

guerras, atravessando cinzas e risos, fugido dos altares. A mão que se

ergueu contra os faróis, Eva recorda-se agora, tinha uma pequena cratera cercada de azul, da espessura de um prego. Assim, enquanto a

Arca navega na noite, por entre o ruído brando dos pequenos

imprecisos sinais com que figuramos os sonhos e os poemas, se foram reconstituindo as sombras e o cheiro a húmus que brotava não

se sabia bem donde. Um nevoeiro espesso e repentino cresce do chão

e oculta o resto do que já era invisível, como se um enorme animal enfurecido tivesse começado de súbito a respirar.

Eram onze horas da noite desse dia vinte e quatro de

Dezembro quando a Arca encalhou, finalmente, no largo da vila.

De súbito, sem que se percebesse porquê, deixou de chover, mas por muito tempo, as pedras guardaram ainda no dorso de

granito, reflexos puros.

As sombras mexeram-se. Reanimaram-se. Pegaram nos embrulhos, nos imensos guarda-chuvas, nos cestos, nos sacos de

plástico, na resignação. Abraçaram outras sombras que os esperavam.

Os patos, as galinhas, os perús gritaram na noite: o deus das aves,

implacável, avisara-as dos rituais de sangue em que iam ser imolados. Protestavam. Inutilmente como acontece com todos os inocentes.

Eva avista a Mãe.

O mundo refaz-se quando os seus olhos se cruzam com o seu

Page 37: Histórias de Natal

33

olhar angustiado e doce.

— Que susto, filha! Que noite de Natal mais estranha. Há cinco horas que esperamos a camioneta. Já não sabíamos que pensar.

Caminhavam pela rua da infância.

Quando a porta da casa se abre, Eva sente o calor da lenha que

crepita, olha a mesa posta e que sabe de cor: são seis os pratos, seis os talheres, dezoito os copos de pé alto, brilhantes sobre a toalha alva

e engomada, com grandes flores em matiz branco e rosa pálido, feita

há cinquenta anos para o baptizado da Mãe. Ao centro, uma vela vermelha cresce dos ramos de azevinho, das flores e dos frutos. E

ainda duas garrafas cheias de vinho branco e tinto que ninguém

beberá. Nos pratos das cabeceiras da mesa que se destinam a Eva e à Mãe, duas lembranças atadas com fita às riscas douradas e também

um pequeno ramo de pinheiro. Nos outros pratos, uma discreta flor

sobre os guardanapos presos em argola de prata com nomes gravados:

são os ausentes. Os que partiram para o outro lado do Tempo. Ali estão, em todos os Natais, em todos os aniversários e celebrações:

sentados, hirtos, solenes, a impedir que os esqueçam, que se solte

uma gargalhada feliz, um riso claro. Ali estão, a espreitar as prendas que Eva e a Mãe trocam ao soar a meia-noite, com um beijo e uma

frase: «Feliz Natal e que Deus os conduza aos caminhos da Luz e nos

guarde no Seu amor.» Ali estão, a gelar a sala, a controlar as palavras,

a exigir que os recordem, que falem dos seus hábitos, dos gestos que lhes eram perfil.

Há anos que é assim. Por isso, chegar é quase igual a partir.

Sobre a tábua da chaminé, o pequeno presépio que já foi da bisavó da

139

O Natal das bonecas

A rua tinha luzes de muitas cores que, encavalitadas nos

postes, faziam desenhos de Natal. E dançavam ao som duma música

cheia de sonoridades leves como algodão. De vez em quando passava um automóvel apressado. Apesar disto, ali da montra onde se

encontravam, tudo era frio e distante. Eram duas bonecas que

ninguém quis comprar.

— Este é o nosso primeiro Natal...

— E, decerto, o último. Se ninguém nos comprou, vamos ser

retiradas da montra e arrumadas, ou entregues à caridade, ou

destruídas.

— Assim será, com certeza. A nossa vida depende das leis do

mercado.

E foram conversando para passar o tempo, ora filosofando sobre a sua efémera existência, a sua matéria breve, ora imaginando

como seria o Natal das pessoas, que só conheciam de ver passar na

rua, ou da loja, quando entravam para comprar bonecas.

— Esta é belíssima, elegante, tem um belo vestido e uma cintura fina.

— Esta tem uma expressão de felicidade, um olhar doce.

— Aquela, de cabelos louros, tem no rosto o sol abrasador do

Page 38: Histórias de Natal

140

Verão.

Mesmo para uma boneca, era triste ficar ali na noite de Natal a olhar a solidão da rua. Sobretudo quando imaginavam a alegria das

outras bonecas que tinham sido vendidas: a emoção de sair de dentro

dos embrulhos, de sentir todas as atenções, de receber um nome, de

entrar na família fantástica das crianças.

Todas as pessoas deviam ter uma casa, porque ninguém passava

na rua. Todos os meninos deviam ter brinquedos na noite de Natal,

porque os brinquedos mais bonitos tinham sido vendidos. Em todo o mundo devia haver alegria e surpresa e magia naquela noite, porque

era dessa forma que a imaginavam.

Dentro das casas, o ar estaria povoado de seres fantásticos, que se moviam como se não tivessem peso. Esvoaçavam como se fossem

pequenos pássaros transparentes. E isto criava uma grande excitação

entre as crianças. Elas próprias se sentiam tão leves que os seus

movimentos eram como os movimentos dos astronautas: dançavam, elevavam-se, sorriam, tocavam-se, cantavam melodias afinadíssimas e

finas como um fio de cristal. As bonecas entravam também nesta

dança fantástica como se fossem pessoas de verdade. A árvore de Natal transformara-se numa enorme tília de grandes ramos. Havia

baloiços pendurados nos ramos. Havia pequeninas casas suspensas

nos ramos. As estrelas desciam e poisavam nos ramos. E todos

aqueles seres – crianças, anjos, pássaros, estrelas e bonecas – percorriam os ramos, como se fossem caminhos, entravam nas

casinhas, dançavam nos baloiços, agarravam-se à cauda das estrelas.

Entre os ramos mais distantes construíam passadiços e imaginavam

34

avó, que também partiu. Mas ali está o seu nome, na argola de prata:

Lucrécia.

— Vai mudar de roupa. Veste uma camisola mais quente. Vou

buscar o bacalhau, é quase meia-noite.

Eva dirige-se ao guarda-louça. Tira mais um prato, dois copos,

talher, um guardanapo e coloca-os na mesa. Do prato que está à cabeceira e lhe pertence, retira a prenda e, em seu lugar, coloca uma

bola azul brilhante que roubou da árvore de Natal.

Sentam-se.

Eva dá a direita à Mãe.

— Mas aí não é o teu lugar. Sabes que gosto de conservar os

hábitos.

— Aqui, a teu lado, em todos os dias de festa, vai ser o meu

lugar de hoje em diante. Fico mais perto de ti. O dia foi muito longo,

já tinha muitas saudades tuas, do cheiro da casa, deste calor manso

que nasce onde estás.

— E ali, onde puseste a bola azul, na cadeira de honra, quem

se senta?

— Um Homem que vi esta noite no meio do temporal e ninguém recolheu.

— Um Homem? Quem?

— Não sei. Mas vai ficar aqui, no lugar dos vivos, nesta casa e

entre nós. Para sempre.

Lá fora, o relógio velho da torre, atravessou com doze

badaladas o ar frio e quase transparente da noite que amansara e se

Page 39: Histórias de Natal

35

enchera de estrelas.

Eva tinha quinze anos, nesse tempo.

Já perdeu a casa.

A Mãe.

A mesa onde os ausentes vigiavam.

Às vezes, ela própria já se vê ausente.

Mas, sabe-se, ainda guarda a bola azul.

Maria Rosa Colaço Viagem com Homem dentro

Leiria, Editorial Diferença, 1998

141

rios por onde às vezes desciam: bebericavam, tomavam um banho,

atiravam salpicos de água uns aos outros.

Estavam assim imaginando, quando se aproximou da montra

uma figura muitíssimo estranha: tinha umas roupas sujas e gastas, os

cabelos sujos e desalinhados, a barba suja e por fazer e nos seus olhos

havia fome, desolação e desprezo. Falava sozinho palavras imperceptíveis.

— Esta figura não deve ser de cá...

— Talvez tenha descido de outro planeta, um planeta onde não há Natal, nem casas, nem anjos, nem estrelas, nem amigos...

A rua continuava deserta e o homem continuava ali fitando a

montra e falando desordenadamente. De nenhum lado surgia uma sombra, uma voz, um movimento, um pássaro branco, um anjo de

tule, um caule de luz. Até a música de algodão pendurada nos postes

se tinha já calado.

— Como deve ser triste a vida na terra, na cidade ou no planeta donde veio...

Nada no seu rosto fazia lembrar a alegria: nenhuma expressão,

nenhum traço, nenhuma palavra.

De vez em quando estendia o braço, apontando não se sabia o

quê, apontando por apontar; e o vento gelado da noite alinhava os

seus cabelos na direcção do braço. E nada lá ao longe fazia lembrar a

liberdade. Outras vezes ficava estático e imóvel, fitando o infinito. Parecia uma estátua feita do mais cruel abandono; parecia um tronco

velho de uma árvore; parecia a coluna de um palácio abandonado. E

Page 40: Histórias de Natal

142

nada na sua pose fazia lembrar a paz. Outras vezes ajoelhava-se

fitando o chão, como se o chão fosse um enigma por decifrar, como se na pedra do chão estivesse gravado um vestígio de Deus; como se

Deus se tivesse esquecido, por acaso, de uma marca, um indício, um

grão de poeira, um cabelo que fosse.

— Há tempos ouvi falar aqui na loja de um país ou planeta onde as pessoas são desprezadas, onde lhes negam o pão e as obrigam

a matar-se umas às outras. Os que as governam são maus e obrigam-

-nas a viver na rua como animais vadios.

O homem não tirava os olhos da montra como se estivesse a

falar com as bonecas, mas utilizando uma linguagem que elas não

entendiam. Poisou no chão umas sacas que trazia consigo e começou a esbracejar. Mas nenhum dos seus gestos fazia lembrar a justiça. Ora

estava de pé, ora de cócoras, ora se sentava no passeio. Mas sempre

desenhando a mesma veemência, a mesma impaciência.

— Talvez queira dizer-nos alguma coisa. Talvez pense que somos pessoas. Talvez procure em nós uma resposta para as suas

perguntas.

— Talvez tenha pena de nós e ficasse ali a distrair a nossa solidão.

Passado muito tempo, adormeceu encostado à montra. Um cão

que passava remexeu-lhe nas sacas e fugiu abocando alguma coisa que

não puderam ver o que era. Depois veio outro cão e deitou-se ao calor dos seus pés. Assim ficaram ali pela noite dentro. Era quase de

madrugada quando apareceu, não se sabe de onde, uma mulher

igualmente desgrenhada, cambaleante e com os olhos cheios de

Page 41: Histórias de Natal

37

Um gato debaixo do pinheiro de Natal

Porque a vida habitava nela, a possuía, a menina reconhecia a morte inscrita

no reverso de qualquer momento de felicidade, de qualquer instante feliz. Brincava no cemitério como se fosse um jardim.

— O gato cinzento está com mau aspecto — observa Laura,

empoleirada no alto do pequeno muro que separa o jardim do baldio.

Mas o pai está a cortar a sebe e não ouve o que ela diz.

— O gato cinzento está com mau aspecto; acho que está

doente… — insiste ela.

A mãe não ouve, ocupada também a arrancar as ervas do

passeio, o que Laura, aliás, também devia estar a fazer para a ajudar.

Então Laura repete para si, em voz baixa e grave:

— Parece que o gato cinzento vai morrer.

O gato sem nome nem casa tem o pelo descaído e o salto lento; não liga aos pássaros, já não tem fome, foge do sol e abriga-se

entre dois pés de urtigas.

— É preciso chamar o veterinário — sugere Laura.

— Nem penses! Ele tem mais que fazer do que tratar os gatos

vadios.

Desta vez, a mãe sempre resolvera responder.

143

amargura e abandono. Trazia nos braços algo que poderia ser uma

criança. Deitou-se também, puxou um dos sacos para a cabeça a fazer de travesseiro e adormeceu.

— São estranhas estas figuras... Como é que no país ou no

planeta lá onde moram não há Natal?

— Como devem ser infelizes as pessoas... Um planeta sem Natal devia ser extinto, devia explodir nos ares, ficar desfeito em

poeira fina e disperso pela imensidão dos céus.

— Provavelmente foram expulsas e tiveram de caminhar dias e noites até encontrar este recanto.

— Tiveram sorte de não serem assaltadas pelo caminho, nem

de morrerem de frio, de sede ou de fome.

— Talvez tenham uma resistência e uma energia maior do que

a das pessoas que conhecemos.

— Talvez o seu corpo não sinta frio nem calor. Talvez não

precisem de alimento, de carinho, de amizade.

— Pelo menos numa coisa são diferentes de nós, bonecas:

precisam de dormir...

— Devem ser alimentados e encorajados durante o sono por um anjo ou outro ser invisível.

Por um tempo deixaram-se destas conjecturas e voltaram a

pensar como seria o Natal dentro das casas. Agora todos estariam já a

dormir, sonhando com os anjos, os pássaros transparentes, as estrelas; sonhando com um tal Jesus, que não sabiam muito bem

quem era, mas devia ser tão maravilhoso que até lhe chamavam

Page 42: Histórias de Natal

144

Salvador.

Estavam assim imaginando, quando surgiu um carro da polícia. Parou em frente à montra. De dentro saiu um homem com uma farda

e deu um pontapé no cão, que ganiu e fugiu a coxear. Depois fez o

mesmo ao homem e à mulher e obrigou-os a entrar no carro, o que

fizeram ensonados e sem oferecer resistência.

— Sempre não devem ser de cá...

— Talvez as autoridades os tenham levado para analisar e

estudar como é a vida no país ou planeta de onde vieram.

— Ah! Já sei porque vieram buscá-los. Não te lembras de ouvir

falar do Presépio? Era um homem, uma mulher, uma criança e um

animal. Decerto andavam à procura de um presépio raro, e encontraram este e levaram-no para um museu.

— O que é um museu?

— É uma casa muito grande cheia de coisas antigas, raras e

valiosas onde também há pessoas com olhos, boca, ouvidos e mãos; mas não vêem, não falam, não ouvem, não cumprimentam ninguém.

Chamam-se estátuas.

— E dentro dos museus também há Natal?...

Natal de 1997

Nuno Higino A mais alta estrela – Sete histórias de Natal

CENATECA, Associação Teatro e Cultura, Marco de Canaveses, 2000

38

— Não é vadio, porque eu acolhi-o e gosto dele — retorquiu

Laura.

Laura só faz o que lhe apetece. Amanhã, a caminho da escola,

vai bater à porta do veterinário, como fez da outra vez por causa de

um passarinho caído do ninho e de um ouriço-cacheiro meio

esmagado por uma bicicleta. É um veterinário idoso muito simpático, que não a manda dar uma volta.

“Amanhã vou esconder o gato na minha pasta, está decidido.”

No dia seguinte, não consegue encontrar o gato em lado nenhum e são já mais que horas de ir para a escola. Laura vai então

sem o gato. Bate à porta do veterinário para pedir um conselho.

Mas é a mulher que vem à porta e lhe dá uma resposta seca:

— O meu marido está inundado de trabalho.

“Inundado”? O rio inunda as terras; a banheira, quando

demasiado cheia, inunda o quarto de banho… mas um veterinário

“inundado”? Então, quem há-de aconselhar Laura? Não quer que se riam dela, não quer ser motivo de troça.

Durante o recreio do meio-dia, Laura escapuliu-se do pátio. Se

a professora soubesse! Se a mãe a visse! Laura sabe que pode ser suspensa por três dias: “Que falta de responsabilidade!”. Ela bem

sabe, mas o gato cinzento está com tão mau aspecto…

Que surpresa! É um rapaz novo que vem atender.

— O meu pai vai aposentar-se e sou eu que vou substitui-lo — explica com gentileza, ao ver o espanto de Laura.

Ela gaguejou ao falar do gato e o veterinário compreendeu num

Page 43: Histórias de Natal

39

ápice:

— Esta tarde, Laura, não tenho muito trabalho, e por isso vou dar uma volta para esse lado.

Depois das quatro horas, ao regressar da escola, Laura

encontrou um bilhete que a mãe lhe leu:

Lamento! Tive de ajudar o teu gato a partir sem sofrer demasiado… Foi pena, mas era melhor para ele. Quando quiseres…

Até breve, Laura!

Sérgio

Laura ouviu a mãe falar a sério de eutanásia, de injecção, e

concluir por fim:

— Tens um amigo novo. Sérgio é um nome estranho, que me faz pensar no tecido do casaco que eu usava quando tinha a tua idade

e que…

Mas Laura não tinha vontade de ouvir as recordações da mãe.

Foi chorar sozinha para cima do pequeno muro. Perguntou a si mesma para onde teria Sérgio levado o gato morto. Pareceu-lhe tê-lo

visto, cinzento e de pêlo brilhante, escapar-se por entre as ervas altas;

bem sabe que foi uma ilusão. Depois, o pintarroxo-que-tinha-medo--do-gato voltou para o terraço e Laura riu-se das suas bicadas ávidas.

Saltou rapidamente do seu posto de observação para ir buscar

migalhas frescas.

Junto do pinheiro de Natal, está um presente que dá saltos.

145

David e a estrela

Ao Ciryl. A Paola que sabem acender a ternura.

A casa de Ciryl e Paola fica mesmo no alto da serra da

Malveira. Quando se chega lá acima, o ar é leve e, se levantarmos os braços, podemos tocar nas nuvens e agarrar o sol.

É uma casa antiga, de grossas paredes de pedra, com salas

enormes onde se ouve música antiga, canções e poemas porque os

corações de Ciryl e Paola estão sempre abertos à beleza e à amizade. Talvez por isso, porque Ciryl e Paola da serra da Malveira são

pessoas especiais e lindas, esta história aconteceu.

Da varanda da casa que lembra um desses castelos com reis, princesas e fadas boas, avista-se o mar. Até lá, muito longe, onde o

olhar quase se perde, crescem as árvores, flores, e o vento que nos

despenteia carrega o perfume de coisas que nos enchem de paz e alegria. Mas, o ano passado, alguém deitou fogo à serra.

Por entre as sirenes dos carros de bombeiros, os gritos, o voo

assustado das aves, o gemido dos pequenos animais sem abrigo,

ouviam-se as árvores a chorar. Primeiro erguiam os seus grandes ramos para o céu, depois, as pequenas folhas estalavam e, com um

ruído ensurdecedor, víamo-las tombar como gigantes feridos. Foi tão

triste! Nos meses seguintes o que se avistava da varanda mais alta da

Page 44: Histórias de Natal

146

casa, eram apenas os caminhos queimados cobertos de tristeza e

silêncio.

Certa manhã de Dezembro, já perto do Natal, Ciryl e Paola

tiveram uma ideia: foram pelas escolas e desafiaram as crianças:

«Vamos semear pinheirinhos novos e deixar a nossa serra toda verde

como era dantes.»

«Vamos!», disseram os meninos. «Vamos!», disseram as

meninas.

De súbito, foi como se um sino tivesse tocado no coração do mundo.

Parecia uma só voz o que se ouviu e ecoou por todo o lado, das

casas ao mar.

E tinha tanta força essa voz que os pais dos meninos, e as

mães, e as avós, e os tios, e as tias, e os primos, e as primas, e as

madrinhas, e os padrinhos vieram também. Traziam pás, ancinhos,

enxadas, pequenos sachos, regadores. Era como um filme.

Pela serra inteira, gente que andava, parava, ria, abria buracos e

plantava árvores. Árvores, dezenas de árvores que o Ciryl e a Paola

mandaram vir de todas as partes do mundo: pinheiros, abetos, araucárias, cedros do Líbano.

As pessoas, pela serra, pareciam borboletas voando: corriam

aqui, escorregavam ali, levantavam-se, trocavam pequenas palavras,

muitas sugestões. Uns plantavam a sua árvore na encosta; outros, nas faldas da serra.

Ao fim da tarde, cansados, os pais e as mães, os primos e as

40

Contrariamente ao habitual, a mãe sugere que se abram as prendas de

Natal antes da missa do galo. Laura nem quer acreditar. Há muitas coisas a mudar nesta casa, de há uns tempos para cá. Talvez desde

que o pai “esteve às portas da morte”, como diz a avozinha. Laura

ficou a saber que isso significa escapar à morte. Terá ela suspeitado

da gravidade do estado de saúde do pai, encontrado desmaiado no jardim enquanto ela estava na escola?

No entanto, ele está aqui esta noite, o pai, bem vivo e a rir-se,

quando a mãe mostra à Laura a prenda que mexe: um gatinho cinzento.

— Parece filho do gato cinzento. Amanhã vou logo apresentá-

-lo ao Sérgio.

Colette Nys-Mazure Contes d’Espérance

Paris, Desclée de Brouwer, 1998

Page 45: Histórias de Natal

41

O Pinheirinho

Pensa no Natal e, provavelmente, pensarás numa árvore de

Natal. Na maioria dos locais onde o Natal é celebrado, a árvore é muito importante. Significa uma vida nova e promete a vinda de dias mais claros na Primavera. A versão de Jenny Koralek deste

conto de Hans Christian Andersen é melancólica, mas gosto da intensidade do seu sentimento, cheio da ansiedade e da tristeza que sentimos, à medida que a festa chega ao fim. Guarda este conto

para o leres em voz alta com toda a família no dia de Reis. Não comeces, até que todos tenham ajudado a arrumar as luzes e as decorações e até que haja um trilho de fagulhas castanhas desde a

sala de estar até à fogueira ao ar livre. Então, estarás, precisamente, num momento de boa disposição para o fazer...

Lá fora, na floresta, encontrava-se um pequeno e belo

Pinheirinho. Nasceu num lugar agradável, onde havia muita luz e

muito ar. Estava rodeado de muitas árvores maiores — pinheiros, e abetos também — mas o Pinheirinho ansiava por crescer mais. Não

dava valor ao ar fresco, ou às crianças que vinham tagarelar para a

floresta e procurar morangos e framboesas. Passavam muitas vezes com um cesto cheio, sentavam-se junto do Pinheirinho e diziam:

“Que bonito que é aquele pequenino!”, mas não era nada disso que o

147

primas, os tios e as tias, os padrinhos e as madrinhas, as crianças, os

velhos e os assim -assim juntaram o pão e a salada, o queijo e a Coca--Cola, os pastéis de bacalhau e o bolo-rei, a alegria e o coração

contente e fizeram uma grande festa.

A serra parecia pintada de verde fresco e nos olhos de todas as

pessoas havia um brilho diferente. Todos se falavam, mesmo os que de manhã não se conheciam e as gargalhadas que davam eram como

água fresca que apetecia beber e repartir.

Só David, um dos mais pequeninos, o que tinha olhos azuis e reflexos de ouro nos cabelos lisos, indiferente à festa, continuou a

subir a serra. Queria que a sua árvore fosse a mais alta, a que ficasse

lá mais acima e se pudesse contemplar da terra inteira.

Subiu, subiu. Subiu muito. Rasgou a pele nas silvas, bebeu o

sumo das amoras porque tinha sede. Subiu mais ainda.

Com a sua pequena enxada de plástico cavou um buraquinho.

Quando acabou de plantar o seu cedro do Líbano, deitou-se na terra fresca e adormeceu. Então, inexplicavelmente, a árvore começou a

crescer, a crescer, e cobriu-o de sombra. Uma ave, veio dos lados do

sol nascente e embalou-lhe o sono com seu cantar. Quando a noite desceu, perfumada, uma estrela desceu de mansinho e pousou no

ramo mais alto, iluminando todos os caminhos. De repente, no meio

da festa, alguém deu pela falta de David. Chamaram, chamaram e

nada. Ninguém respondia. Então, como se fosse um formigueiro em movimento, as pessoas começaram a espreitar na urze, no sumo dos

frutos, no espelho de água do tanque, dentro da chaminé, debaixo do

piano. Chegaram à varanda. Olharam a serra.

Page 46: Histórias de Natal

148

Lá no alto, iluminado, enorme, o cedro era um sinal.

Correram todos para lá.

Um grande silêncio desceu na serra. Todos se olhavam

estupefactos. Ninguém sabia explicar por que crescera assim, em tão

poucas horas, aquela árvore que uma estrela iluminava.

E quando viram David a dormir, segurando ainda na mão o pequeno sacho, com a cara toda lambuzada de amoras e terra, Ciryl

disse sorrindo e simplesmente: «Oh! Parece o Menino Jesus!»

E regressaram.

Cantando.

Maria Rosa Colaço Não quero ser grande

Lisboa, Editorial Escritor, 1996

42

Pinheirinho queria ouvir.

No ano seguinte, tinha crescido um rebento novo e no ano que se seguiu cresceu ainda mais. Pode-se sempre dizer, pelo número de

anéis que tem no tronco, há quantos anos uma árvore está a crescer.

— Oh, se eu ao menos fosse tão grande como os outros! —

suspirava o Pinheirinho. — Então, espalharia os meus ramos para bem longe e, do meu topo, estaria atento a todo o mundo. Os

pássaros construiriam ninhos nos meus ramos e, quando o vento

soprasse, apenas abanaria, tão orgulhoso como as outras árvores.

No Inverno, quando a neve pousa por todo o lado branca e

brilhante, uma lebre veio a correr e saltou por cima do Pinheirinho, o

que o pôs zangado. Mas, três Invernos passado, a pequena árvore tinha crescido tanto que a lebre teve de a contornar.

“Oh, crescer, crescer e envelhecer! É, de certeza, a melhor coisa

do mundo”, pensou a árvore.

No Outono, os lenhadores vinham sempre para abater algumas das árvores maiores. O Pinheirinho estremeceu de medo, pois as

árvores grandes caíam estrondosamente no chão e os ramos eram

cortados para que parecessem bastante despidas. Eram colocadas em camiões e levadas dali. “Para onde iriam?”, perguntou-se o

Pinheirinho.

Na Primavera, quando as andorinhas e as cegonhas chegaram, a

árvore perguntou-lhes:

— Sabem para onde vão as árvores? Viram-nas?

As andorinhas responderam que não, mas a cegonha disse:

Page 47: Histórias de Natal

43

— Sim, penso que sim. Vi muitos navios novos, quando deixei

o Egipto. Tinham mastros muito altos; penso que eram as árvores. Cheiravam a abetos. Tudo o que posso dizer é que eram altas e

imponentes — muito imponentes.

— Quem me dera ser suficientemente grande para ir para o

mar! — suspirou o Pinheirinho. — Que tipo de coisa é o mar e a que se assemelha?

— Levaria muito tempo para explicar tudo isso — disse a

cegonha. E partiu.

— Devias estar feliz por ainda seres jovem e forte — disseram

os raios de Sol. E o vento e a chuva beijaram a árvore, mas o

Pinheirinho não queria saber do que eles diziam.

Por altura do Natal, foram cortadas muitas árvores jovens;

árvores que eram mais jovens e mais pequenas do que este

Pinheirinho impaciente. A estas belas e jovens árvores não foram

cortados os ramos quando foram colocadas nos camiões e levadas para fora do bosque.

— Para onde vão? — perguntou o Pinheirinho. — Algumas

são muito mais pequenas do que eu. Porque é que não lhes cortaram os ramos? Para onde vão ser levadas?

— Nós sabemos! Nós sabemos! — chilrearam os pardais. —

Andamos sempre a espreitar pelas janelas na cidade e, por isso,

sabemos para onde vão. Vão ser decoradas da maneira mais bonita que possas imaginar. Olhámos pelas janelas e vimos que eram

colocadas em vasos, numa quente sala de estar, e decoradas com as

coisas mais bonitas — maçãs douradas, bolos de mel, brinquedos e

149

Uma estrela

Todos os anos, pelo Natal, eu ia a Belém. A viagem começava

em Dezembro, no princípio das férias. Primeiro pela colheita do

musgo, nos recantos mais húmidos do jardim. Cortava-se como um bolo, era bom sentir as grandes fatias despregarem-se da areia, dos

muros ou dos troncos das árvores velhas, principalmente da

ameixieira. Enchia-se a canastra devagar, enquanto a avó ia montando o que hoje se chamaria as estruturas, ou mesmo as infra-estruturas,

junto da parede da sala de jantar que dava para o jardim. Eram

caixotes, caixas de chapéus e de sapatos viradas do avesso, tábuas, que

pouco a pouco ela ia cobrindo de musgo, ao mesmo tempo que fazia carreiros e caminhos com areia e areão. Mais tarde, os rios e os lagos,

com bocados de espelhos antigos, de vidros ou mesmo de travessas

cheias de água. Até que todos os caixotes, caixas e tábuas desapareciam. Ficavam montanhas, planícies, rios, lagos. Era uma

nova criação do mundo. Aqui e ali uma casinha ou um pastor com

suas cabras. E todos os caminhos iam para Belém.

Não era como o presépio da Igreja que estava sempre todo pronto, mesmo antes de o Menino nascer. A cabana, a vaca, o burro,

os três reis do Oriente. Maria, José, Jesus deitado nas palhinhas. Via-

-se logo que era a fingir. Não o da avó, que era mais do que um presépio, era uma peregrinação, uma jornada mágica ou, se quiserem,

Page 48: Histórias de Natal

150

um milagre. Nós estávamos ali e não estávamos ali. De repente era a

Judeia, passeávamos nas margens do Tiberíades, andávamos pelo Velho Testamento, João Baptista baptizava nas águas do Jordão e

aquele monte, ao longe, podia ser Sinai ou talvez o último lugar onde

Moisés, sem lá entrar, viu finalmente a terra onde corria o leite e o

mel. Mas agora era o Novo Testamento. A avó ia buscar as figuras ao sótão, eram bonecos de barro comprados nas feiras, alguns mais

antigos, de porcelana inglesa, como aquele caçador que a avó colocava

à frente dizendo: Este é o pai. Seguia-se a mãe, de vestido comprido, dir-se-ia que ia para o baile, mas não, saía de cima de uma mesinha da

sala de visitas e agora estava ao lado do pai, olhando levemente para

trás onde, entretanto, a avó já tinha colocado figuras mais toscas, eu, a minha irmã, os primos, alguns amigos, todos a caminho de Belém.

— E a avó? — perguntava eu.

— Eu já estou velha para essas andanças.

De dia para dia mudávamos de lugar. E todas as manhãs deparávamos com novas casas, mais rebanhos, pastores, gente que

descia das serras, atravessava os rios e os lagos. Os caminhos ficavam

cada vez mais cheios. E todos iam para Belém. À noite tremulavam luzes. Acendiam e apagavam. Mas ainda não se via a cabana, nem

Maria, nem José.

Então uma noite, entre as estrelas do céu, aparecia uma que

brilhava mais que todas.

— Esta é a estrela — dizia a avó.

44

centenas de velas. — E depois? — perguntou o Pinheirinho, com

todos os ramos a tremer. — E depois? O que acontece depois?

— Bem — disse o pardal — só vimos isso, mas era

maravilhoso.

— Talvez isso me aconteça um dia! — gritou o Pinheirinho.

— Isso ainda era melhor do que viajar pelo mar. Se pelo menos agora fosse Natal! Oh, se ao menos me levassem! Se ao menos estivesse

numa sala de estar quente, decorado com coisas bonitas! E depois? O

que aconteceria? Devia ser ainda mais maravilhoso. Porque me enfeitariam? Oh, quem me dera que isto me acontecesse!

— Sê feliz aqui connosco — disseram o ar e a luz do Sol. —

Sê feliz aqui na floresta.

Mas o Pinheirinho não era nada feliz. Crescia, crescia e

continuava ali, verde, verde-escuro. As pessoas que o viam diziam:

— É uma árvore muito bonita!

E, por altura do Natal, foi cortada antes dos outros. O machado cortou-a bem fundo, no tronco, e a árvore caiu para o chão

com um suspiro: sentiu uma dor, e agora estava triste por ter de

deixar o lar. Sabia que nunca mais iria ver os amigos, os pequenos arbustos e as flores, talvez até os pássaros.

A árvore só voltou a si quando estava a ser descarregada num

quintal, juntamente com outras árvores, e ouviu um homem dizer:

— Esta é a melhor. Só queremos esta!

Depois, vieram dois criados vestidos com uniformes brilhantes

e levaram o Pinheirinho para uma sala enorme e bonita. Havia, por

Page 49: Histórias de Natal

45

todo o lado, quadros pendurados nas paredes e, junto do fogão,

estavam enormes jarros chineses com leões.

Havia cadeiras de baloiço, sofás de seda, mesas cobertas de

livros ilustrados e centenas de brinquedos por todo o lado.

O Pinheirinho foi posto dentro de um vaso grande com areia.

A árvore tremeu! O que iria acontecer a seguir? Os criados e as crianças começaram a enfeitá-lo. Nos ramos, penduraram pequenos

sacos feitos de papel colorido. Cada saco era enchido com

guloseimas; maçãs douradas e nozes pendiam, como se tivessem nascido ali, e centenas de velinhas foram atadas aos galhos. Bonecas

que pareciam pessoas de verdade pendiam de outros ramos e, mesmo

no topo da árvore, estava fixada uma estrela de latão. Era magnificente, extraordinário!

— Esta noite — disseram todos — esta noite, a estrela

brilhará.

— Oh — disse o Pinheirinho — se ao menos já fosse noite! Oh, espero que acendam as velas brevemente. Será que as árvores vêm

da floresta para me ver? E será que os pardais vão espreitar pelas

janelas? Será que vou ficar aqui ornamentado para sempre?

Todas estas perguntas causaram dores de costas à árvore e as

dores de costas são tão más para as árvores como as dores de cabeça

para as pessoas. Por fim, as velas foram acesas. Que brilho, que

esplendor! O Pinheirinho tremeu tanto que uma das velas pegou fogo a um ramo verde, mas foi rapidamente apagado.

E, naquele momento, as portas foram abertas de par em par e

as crianças entraram cheias de pressa. Olharam fixamente e em

151

Era uma estrela que nos guiava. Na manhã seguinte lá estavam

eles, os três reis do Oriente, Magos, explicava o pai, que também não dizia Pai Natal, dizia S. Nicolau, talvez por influência de uma misse

de origem russa que em pequeno lhe falava de renas e trenós e de

S. Nicolau atravessando as estepes.

Cheirava a musgo na sala de jantar. Cheirava a musgo e a lenha molhada que secava em frente do fogão. E os Magos lá vinham, a pé,

de burro, de camelo. Traziam o oiro, o incenso, a mirra. Às vezes

nós, os mais pequenos, juntávamo-nos e cantávamos: “Os três reis do Oriente/Já chegaram a Belém.”

— Não chegaram nada — atalhava a avó — ainda não.

Estávamos cada vez mais perto. E também nervosos. Confesso que às vezes fazia batota. Empurrava-os um pouco mais para a frente,

para mais perto de Belém e do lugar onde eu sabia que mais tarde ou

mais cedo a avó ia pôr a cabana. Mas ela descobria.

— Não lucras nada com isso, podes apressar toda a gente, não podes apressar o tempo.

Cada vez havia mais luzes na Judeia. Por vezes surgiam novos

lagos, eram mistérios da minha avó. E a estrela lá estava, a grande estrela de prata que brilhava mais do que todas as outras, às vezes eu

ia à janela e via a projecção daquela estrela, ficava confuso, já não

sabia se era a estrela da sala ou uma estrela do céu, era uma estrela

nova, uma estrela de prata, era uma estrela que nos guiava. No céu, na sala, na Judeia, talvez dentro de nós.

Até que chegava o primeiro dos grandes momentos solenes. A

avó chamava-nos ao sótão (nós dizíamos forro), abria uma velha arca

Page 50: Histórias de Natal

152

e desempacotava a cabana. Depois, muito comovida, quase sempre

com lágrimas nos olhos, as figuras de Maria e José.

— Não há nada tão antigo nesta casa, já eram dos avós dos

meus avós.

Impressionava-me sobretudo o manto muito azul de Maria e o

rosto magro, quase assustado, de José. A avó limpava-os com muito cuidado e mandava-nos sair. Nunca nos deixou ver o resto.

À noite, quando regressávamos da missa do galo, a que a avó

não ia, chegávamos a casa e finalmente estávamos em Belém.

A estrela brilhava intensamente sobre a cabana, Maria e José

debruçavam-se sobre o berço, onde Jesus, todo rosado, deitado nas

palhinhas, agitava os braços e as pernas, envolvido pelo bafo quente dos animais, enquanto os três reis do Oriente, agora sim, chegavam a

Belém para depositar aos pés do Menino o oiro, o incenso, a mirra. E

vinham os pastores, e vinha o pai, de caçador, a mãe, de vestido de

baile, e vínhamos nós, eu, a minha irmã, os primos, não eramos de porcelana nem de barro, estávamos ali em carne e osso, era noite de

Natal, uma estrela nos guiava, brilhava sobre a Judeia e sobre o

presépio, brilhava cá fora entre as estrelas, brilhava dentro de nós. Naquela noite, naquele momento, nós não estávamos na sala de

jantar em frente do presépio, tínhamos chegado finalmente a Belém

para adorar o Menino ao lado de Maria e José e dos três reis do

Oriente, Magos, não consegui deixar de corrigir o meu pai. Mas mágica, verdadeira mágica, era a avó. Era ela que fazia o milagre da

transfiguração, trazia o Natal para dentro de casa, levava-nos a todos

até Belém. O cheiro a musgo e a lenha. Os montes, os vales, os rios,

46

silêncio para a árvore, mas apenas por um minuto. Começaram a

gritar de alegria e a dançar à volta da árvore, puxando os presentes.

“O que estão a fazer?”, pensou o Pinheirinho. “O que se está a

passar?”

As velas arderam até ao fim, as crianças tiraram as guloseimas

da árvore e dançaram com os brinquedos novos. Já ninguém olhava para a árvore, excepto um homem idoso que se aproximou e espreitou

por entre os ramos para ver se todas as nozes e maçãs tinham sido

comidas.

— Uma história! Uma história! — gritavam as crianças, e

levaram, para junto da árvore, um homem divertido, que se sentou

mesmo debaixo dela.

— Vamos fingir que estamos no bosque verde — disse — e

que a árvore consegue ouvir o conto.

E o homem divertido contou o conto de Klumpey-Dumpey,

que estava sempre a cair pelas escadas abaixo e, já no fim, casou com uma princesa. O Pinheirinho ficou bastante silencioso e pensativo.

Os pássaros do bosque nunca tinham contado uma história como

esta. Klumpey-Dumpey sempre a cair pelas escadas abaixo e, mesmo assim, casou com uma princesa.

— Bem! Bem! — disse o Pinheirinho. — Quem sabe? Talvez

eu também tenha de cair pelas escadas abaixo e casar com uma

princesa!

E estava ansioso por ser de novo decorado com velas,

brinquedos e frutos, na noite seguinte.

Page 51: Histórias de Natal

47

Mas, de manhã, os criados vieram tirá-lo da sala, levaram-no

para o sótão e puseram-no num canto, onde não entrava a luz do dia. “O que significa isto?” pensou a árvore. “O que estou a fazer aqui? O

que está a acontecer?”

Encostou-se à parede, pensou e pensou. E teve tempo

suficiente, pois passaram-se dias e noites e ninguém voltou lá a subir. A árvore parecia ter sido totalmente esquecida.

— Agora, é Inverno lá fora — disse o Pinheirinho. — A terra

está dura e coberta de neve, e as pessoas não podem plantar-me. Suponho que devo ficar aqui abrigado, até que venha a Primavera.

Que atenciosos! Mas que pessoas boas! Se ao menos aqui eu não

estivesse tão às escuras e tão sozinho!... Era bonito lá fora, na floresta, quando a neve pousava espessa, e aquela lebre vinha saltar

por cima de mim; mas, na altura, eu não gostava. Isto aqui em cima é

terrivelmente solitário! Mas que pessoas boas!

De repente, dois ratinhos aproximaram-se lentamente. Cheiraram o Pinheirinho e, depois, subiram para os ramos.

— Está muito frio aqui em cima — disseram os dois ratinhos.

— Também achas, árvore velha?

— Não sou velha — disse o Pinheirinho.

— De onde vens? — perguntaram os ratos. — E o que

conheces?

Eram muito inquisitivos.

— Conta-nos sobre o lugar mais bonito do mundo! Já

estiveste lá?

153

os lagos. Caminhos e caminhos que iam para Belém. E a estrela de

prata, a estrela que nos guiava. Era uma estrela no céu, dentro de casa, dentro de nós. Pela mão da avó ela brilhava. Pela sua magia,

Belém estava dentro de casa. E a casa também ia até Belém.

Mais tarde, muito mais tarde, eu estava no exílio. Na noite de

Natal, os revolucionários ficavam tristes e nostálgicos. Talvez recordassem outras avós, outros presépios, outros lugares. Reuniam-

-se em casa deste ou daquele, improvisava-se uma árvore de Natal,

trocavam-se presentes. Mas ninguém, nem mesmo os mais duros, os que faziam gala em dizer que o Natal para eles não significava nada,

nem mesmo esses conseguiam disfarçar uma sombra no olhar.

Saudade, dir-se-á. Mas talvez fosse mais do que saudade e solidão e o pior de todos os exílios é o de se sentir estrangeiro no mundo.

Talvez fosse a consciência de que, para lá de todas as crenças ou não

crenças, havia um irremediável sentimento de perda. Muitas vezes me

perguntei o que seria. Mas não conseguia responder. Sentia o mesmo aperto, o mesmo buraco por dentro, o mesmo sentimento de algo

para sempre perdido.

Uma noite de Natal, em Paris, eu estava sozinho. Comprei uma garrafa de vinho do Porto, mas não fui capaz de bebê-la assim,

completamente só, num quarto de criada num sexto andar duma

velha rua do Quartier Latin. Peguei na garrafa e fui até aos Halles.

Procurei o bistrô onde costumava comer uma omelete de fiambre. Felizmente estava aberto. Pedi a omelete e abri a garrafa. Havia mais

três solitários no bistrô, um velho de grandes barbas, um tipo com

cara de eslavo, um africano. Convidei-os para partilharem comigo a

Page 52: Histórias de Natal

154

garrafa de Porto, que não resistiu muito tempo. Encomendámos

outras bebidas.

— Conta uma história de Natal do teu país — pediu o velho.

— Só se for a do presépio da minha avó.

— Então conta.

Eu contei. Era já muito tarde e o patrão disse-nos que queria fechar. Chegados à rua, o africano apontou para o céu e disse-me:

— Olha.

E eu vi. Uma estrela que brilhava mais que as outras estrelas. Era uma estrela de prata. A estrela da avó. Brilhava no céu, brilhava

outra vez dentro de mim, quase posso jurar que brilhava dentro dos

outros três.

Então eu perguntei ao africano como se chamava. Ele

respondeu:

— Baltazar.

Perguntei ao velho e ele disse:

— Melchior.

E sem que sequer eu lhe perguntasse, o eslavo disse:

— O meu nome é Gaspar.

Era noite de Natal e talvez ainda por magia da avó eu estava na

rua, em Les Halles, com os três reis do Oriente, Magos, diria o meu

pai.

— E agora? — perguntei a Baltazar.

— Agora — respondeu o africano apontando a estrela —

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— O lugar mais bonito do mundo — disse a árvore — é a

floresta, onde o Sol brilha e os pássaros cantam. E, depois, contou aos ratos tudo sobre a sua juventude. Os ratinhos ouviram e

disseram:

— Tantas coisas que já viste! Deves ter sido muito feliz!

— Fui — disse o Pinheirinho. — Aqueles foram, realmente, tempos de felicidade.

Mas, depois, contou-lhes sobre a Véspera de Natal, quando

tinha sido enfeitado com guloseimas e velas.

— Oh! — disseram os ratinhos. — Como foste tão feliz,

árvore velha!

— Não sou velha — disse a árvore. — Só saí da floresta este Inverno.

— Mas que histórias maravilhosas podes contar! — disseram

os ratinhos.

E no dia seguinte, vieram com mais quatro ratinhos para ouvir o que a árvore tinha para contar. Assim, o Pinheirinho contou-lhes a

história do Klumpey-Dumpey e os ratinhos correram direitos para o

topo da árvore, cheios de satisfação. Na noite seguinte, vieram muito mais ratos, e o Pinheirinho contou outra vez a mesma história. Mas,

quando descobriram que a árvore não sabia mais histórias, os ratos

ficaram aborrecidos e foram-se embora.

O Pinheirinho ficou triste.

— Era muito agradável, quando os ratinhos divertidos ouviam

a minha história, mas em breve vai chegar a Primavera. Vou ficar tão

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49

feliz quando me tirarem deste local solitário!...

Quando chegou a Primavera, as pessoas vieram remexer no sótão. Um criado levou a árvore para baixo, onde a luz do dia

brilhava.

“Agora, a vida vai começar de novo!”, pensou a árvore.

Sentiu o ar fresco e os raios do Sol no pátio. O pátio estava perto de um jardim, onde as rosas estavam em flor, as árvores cheias

de folhas e as andorinhas a cantar.

— Agora, tenho de viver! — disse a árvore, alegremente, e esticou os ramos. Mas, meu Deus! Estavam todos murchos e

amarelos. Ficou a um canto, entre as urtigas e as ervas daninhas. A

estrela de latão ainda lá estava e brilhava com a luz do Sol.

No pátio, as crianças, que no Natal tinham dançado à volta da

árvore, estavam a brincar. Uma delas trepou à árvore e tirou a estrela

dourada.

— Vejam o que está agarrado a este velho e feio Pinheirinho — disse a criança, e começou a pisar-lhe os ramos até partirem

debaixo das botas.

E a árvore olhou para todas as flores e para o belo jardim e, depois, para ela própria, e desejou ter ficado no canto escuro do

sótão. Pensou na juventude fresca na floresta, na Véspera de Natal

feliz e nos ratinhos que ouviram com tanta alegria a história do

Klumpey-Dumpey.

— Passado! Passado! — disse a velha árvore. — Acabou tudo.

Se ao menos tivesse sido mais feliz naquela época.

155

agora vamos para Belém.

Lisboa, 3.10.2000

Manuel Alegre Uma Estrela

Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2005

Page 54: Histórias de Natal

50

E veio um criado e cortou a árvore aos pedacinhos. Estava ali

um feixe enorme. Ardia resplandecente no fogão, suspirava profundamente e cada suspiro era uma pequena explosão. As crianças

sentaram-se junto da lareira, olharam para ela e gritaram:

— Zás! Trás!

Mas, a cada explosão, que era um suspiro profundo, a árvore pensava num dia de Verão na floresta, ou numa noite de Inverno,

quando as estrelas brilhavam. Pensava na Véspera de Natal e no

Klumpey-Dumpey, a única história que tinha ouvido ou que sabia contar; e, depois, a árvore foi queimada.

As crianças brincaram no jardim e o mais novo usou a estrela

dourada que a árvore tinha usado na sua noite mais feliz.

Agora, tudo acabara. A vida da árvore tinha terminado e o

conto também.

Hans Christian Andersen

Ian Whybrow (org.) O grande livro do Natal

Porto, Edições Asa, 2004

Page 55: Histórias de Natal

51

A filhó dourada

A história que vou contar chama-se “A Filhó Dourada”.

Douradas, muito douradinhas são elas todas, empilhadas na travessa,

como um castelo por conquistar.

As últimas são as melhores. Têm mais açúcar, desfazem-se mal

lhes tocamos… A gente pega delicadamente numa das que sobraram,

dá-lhe um impulso que a ponha a deslizar na travessa, para ensopar bem e, num gesto rápido, sem pingar a toalha, mete-a na boca. O

estalar dela, de encontro aos nossos dentes, é música com açúcar.

Naquela ceia de Natal, todos tinham comido filhós.

— Estão uma delícia — comentavam.

E, porque estavam uma delícia, não tinha sobrado senão uma,

no fundo da travessa. Era uma ilha minúscula e redondinha, rodeada

por um mar de açúcar. Todos os olhos fitavam a filhó, que estalava em reflexos de oiro. Uma tentação.

À roda da mesa, diziam para o avô:

— Só ficou uma filhó. Porque é que a não come?

O avô, então, virava-se para a avó e segredava-lhe:

— Come tu, anda lá.

A avó não queria.

— Comam vocês — dizia ela, apontando para a filhó e para os

157

Lídia

Lídia era bonita porque tinha um nome bonito e porque a uma

história de Natal convém uma menina bonita. Vivia num

apartamento muito alto, voltado para o mar. Tinha um quarto onde dormia, um quarto onde estudava e um quarto onde brincava. Este

era o mais bonito de todos. Tinha imensos brinquedos vindos das

mais diversas partes do mundo. Tinha brinquedos com música dentro, daquela música duma melodia finíssima e límpida, como uma

filigrana. Tinha brinquedos de onde saía uma música que parecia vir

de dentro da terra, espessa, distante, quase triste. Tinha brinquedos

que exalavam música como se nascesse nas altas montanhas, rarefeita e leve, trazida em asas de condor.

Todos estes brinquedos alegravam Lídia que, muitas vezes,

chamava os seus amigos e, no fim da escola, ficavam ali a brincar, a olhar o mar e a ouvir aquelas músicas que saíam de dentro dos

brinquedos.

Os pais de Lídia eram viajantes e raramente estavam em casa.

Aliás, a sua casa era o avião, tantas as vezes que voavam de cidade para cidade, de continente para continente. Mas quase todos os dias

telefonavam a Lídia, perguntando se estava bem e prometendo mais

um presente para o regresso. Lídia ficava feliz com os telefonemas, mas quando desligava o telefone, pensava: “Eu gostava tanto de ter os

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158

meus pais sempre à minha beira. Gostava tanto que os meus amigos

os conhecessem melhor. Gostava tanto de adormecer a seu lado ou acordar com os seus beijos...”

E assim ficava muito tempo suspensa na recordação dos pais.

Uma vez ou outra não conseguia evitar uma lágrima mais atrevida.

Mas tudo passava e quando os pais regressavam, Lídia matava as saudades, abraçava-os muito, ia com eles jantar fora ou a casa de

algum amigo. Só não gostava quando esses encontros eram com

pessoas que chegavam sempre atrasadas, passavam a refeição a falar pelo telemóvel e não lhe ligavam importância nenhuma. Se calhar não

tinham filhos nem podiam perder tempo com as crianças. Eram

homens de negócios.

Regressavam a casa e, logo de seguida, novamente tinham de

partir.

— Amanhã sairemos cedo para um país distante...

— Que país é esse? — perguntava Lídia.

— É um país onde há muitas crianças pelas ruas: umas a

trabalhar, outras a mendigar, outras a olhar para quem passa. É um

país muito grande e muito pobre. Os meninos não têm casa como a nossa, nem escola, nem brinquedos.

— E pais, têm pais? — perguntou Lídia.

— Muitos têm pais, mas são tão pobres, tão desprezados pela

vida, que é como se não tivessem.

— Mas eu pensei que vocês só faziam negócios com países

ricos, que com os pobres não se negoceia...

52

filhos.

— Eu já comi muitas — desculpava-se um.

— Também tenho a minha conta — dizia outro.

— Nem mais um bocadinho — declarava um terceiro.

Parecia que nenhum queria tomar a responsabilidade de comer

a filhó. No entanto, ela lá estava muito dourada, a recortar-se no meio da calda de açúcar. Apetecia mesmo ver e… comer.

Mas, à volta da mesa, não se decidiam. E a filhó, a última filhó,

andava de boca em boca, sem se fixar na boca de ninguém. De oferta em oferta, chegou a vez da tia Luísa propor:

— Os pequenos que comam. Sempre quero ver qual dos meus

sobrinhos chega primeiro à filhó.

Os meninos não se precipitaram sobre a filhó apetitosa, como

seria de esperar. Cada um ficou à espera do primo ao lado, e o primo

ao lado do outro primo ao lado… Fosse por acanhamento ou fosse

por que fosse…

— Afinal ninguém a come — observaram do outro extremo da

mesa. — Esta filhó deve ser mágica.

Olharam uns para os outros e sorriram.

A ceia estava no fim. Os meninos tinham sono. O avô

cabeceava. Começou a ouvir-se o arrastar das cadeiras. Era a

debandada.

— Amanhã se arruma a casa — disse a tia Luísa, e apagou a luz da sala de jantar.

Quando todos já se tinham ido embora, a filhó, no lusco-

Page 57: Histórias de Natal

53

-fusco, ao meio da mesa, começou a brilhar. Intensamente. Acreditem

ou não, como se tivesse luz dentro. Como um pequeno sol ou um bocadinho de oiro, a desfazer-se em açúcar.

António Torrado www.historiadodia.pt

159

— Também fazemos negócios com os ricos, mas, negociando

com os pobres, podemos ganhar mais dinheiro, e assim tu terás sempre mais e mais brinquedos.

No meio das conversas, Lídia acabava por adormecer e de

manhã, quando acordava, já estava a casa novamente vazia. O que lhe

valia é que tinha muitos amigos, com os quais ia tornando menos duras as prolongadas ausências dos pais. Mas o pior foi quando, ao

aproximar-se o Natal, Lídia soube pela mãe que tinham uma viagem

importantíssima. Por isso não podiam passá-lo em casa.

— Mas nesse país, as pessoas fazem negócios no dia de Natal?

— perguntou Lídia.

— Sabes — respondeu-lhe o pai — nesse país o Natal é um dia como outro qualquer. As pessoas têm outros costumes, outra

cultura, outra religião.

— Eu pensei que o Natal era Natal em todo o mundo... —

disse Lídia com desencanto.

A conversa ficou por ali. Mas Lídia, apesar da tristeza,

começou a sonhar com a noite de Natal em casa dos avós. Viriam os

primos: a Teresa, a Helena, o Miguel, a Ana e o Luís. Lídia queria fazer-lhes uma surpresa.

Pensou durante alguns dias e, uma noite, teve uma ideia: “Já

sei. Vou fazer um teatro em verso.” Lídia gostava de escrever versos e

foi escrevendo no seu caderno os versos para o presépio. Mas não os mostrou a ninguém para poder fazer uma surpresa.

Quando chegou a noite de Natal, toda a família se juntou em

Page 58: Histórias de Natal

160

casa dos avós. Era uma casa muito grande com um terreiro cheio de

árvores, umas que tinham folhas todo o ano, outras que no Inverno ficavam todas despidas e à noite pareciam fantasmas gigantes com

uma só perna e muitos braços. Entre as árvores havia canteiros de

arbustos e plantas. A noite estava de tempestade: a chuva e o vento

pareciam dançar uma dança violenta e desconcertada. Os ciprestes que estavam nos cantos do terreiro vergavam-se tanto que pareciam

bailarinos em fúria. Mas, na alegria daquela noite, ninguém ligava

nada à tempestade.

A consoada era na sala maior: uma sala cheia de brilhos que,

reflectidos no espelho ao fundo, a tornavam ainda mais brilhante.

Quando a porta de vai-e-vem que dava para a copa se abria, vinham os aromas do Natal e via-se a azáfama das pessoas que estavam na copa e

na cozinha e andavam de lado para lado.

Quando todos já tinham consoado, Lídia chamou os primos ao

andar de cima e explicou-lhes o seu teatro de verso.

— Todos têm de decorar o seu verso — disse.

Seguiu-se um grande alvoroço com cada um a disputar o seu

verso preferido. Quando chegaram a acordo, ensaiaram durante algum tempo e, por fim, desceram, cada um muito senhor do seu

papel.

Puseram-se por detrás de um biombo que havia na sala e Lídia

pediu silêncio.

— Senhoras e senhores, vamos apresentar: Versos para o Presépio.

Ouviram-se palmas, muita excitação e depois fez-se silêncio. No

rosto de todos havia um sorriso de felicidade e curiosidade. Cada um

Page 59: Histórias de Natal

55

O cesto de Natal da tia Cyrilla

Quando Lucy Rose encontrou a tia Cyrilla a descer as escadas,

algo ofegante e ruborizada pela ida ao sótão, com um cesto enorme,

com tampa, enfiado no braço roliço, soltou um pequeno suspiro de desespero. Há alguns anos que Lucy Rose fazia o melhor que podia –

de facto, desde que tinha prendido o cabelo e aumentado ao

comprimento das saias – para que a tia Cyrilla perdesse o hábito que tinha de levar aquele cesto com ela, sempre que ia a Pembroke; mas a

tia Cyrilla insistia em levá-lo e só se ria do que ela apelidava de

«ideias afectadas» de Lucy Rose. Lucy Rose achava horrível e

extremamente provinciano a tia carregar sempre o cesto consigo, cheio de coisas boas do campo, de cada vez que ia visitar Edward e

Geraldine. Geraldine era tão elegante que talvez achasse aquilo

estranho; e depois, a tia Cyrilla levava-o sempre no braço, e dava biscoitos, maçãs e chupa-chupas de melaço a todas as crianças que

encontrava e, de vez em quando, também a pessoas de idade. Quando

Lucy Rose ia à cidade com a tia Cyrilla, sentia-se desgostosa com isto

– mas Lucy era ainda muito nova e tinha muita coisa a aprender neste mundo.

Aquela preocupação incómoda sobre o que Geraldine pensaria

encorajou-a a protestar naquele instante.

— Ora, tia Cyrilla — apelou — de certeza que, desta vez, não

161

foi saindo na sua vez e dizendo o verso que lhe competia:

Vejo no céu uma estrela Muito bela. Navega num mar de prata Vou com ela.

O seu destino é Belém Vou também.

Levo flores neste raminho Para o Menino. Eu levo um brinquedinho Para o Menino.

Eu não tenho que levar Mas vou e oferecerei Estes versos de cantar.

E todos remataram em coro:

Com as flores e o brinquedo E estes versos de cantar; Com a estrela sobre a gruta E os pastores a dançar, Meu Menino de Belém Dança connosco também.

As palmas encheram a sala e parece que os seus brilhos se

multiplicavam, dançando nas paredes, no ar, em todos os sítios. Se não fosse a ventania que atirava a chuva contra as portas e as janelas,

todos pensariam que, lá fora, o céu era realmente um mar de prata,

cheio de estrelas e calmaria.

Ana, que era a mais pequena, não se cansava de saltar, enquanto

repetia o seu verso: vou com ela...vou com ela...vou com ela...

Page 60: Histórias de Natal

162

Durante um tempo manteve-se este ambiente de excitação e

alegria. Tanto mais que, de seguida, foi a distribuição das prendas. Da árvore de Natal cada um foi recebendo os seus presentes: jogos,

bonecas, livros de histórias, puzzles, carros telecomandados e até um

computador. De todos os presentes que recebeu, Lídia gostou

sobretudo do que lhe foi deixado pelos pais: um presépio esculpido em madeira com um Menino negro, sorridente e acariciando o

focinho do burro que lhe estava ao pé. Lídia sempre vira o Menino

Jesus, branco, deitado nas palhas. Aquela imagem trouxe-lhe à lembrança os meninos negros que tantas vezes via na televisão,

esqueléticos, de grandes ventres e um olhar raso de resignação, um

olhar de quem foi vencido pela humilhação da fome e do desprezo. Lídia como que ficou ausente da sala, alheia à excitação geral.

Entretanto, veio uma ordem para os meninos se irem deitar.

Contrafeitos, lá foram subindo com os seus presentes. Aos poucos, o

silêncio foi tomando toda a casa.

Lídia não tinha sono. Quando entrou no seu quarto, sentou-se

junto à janela, abriu as portadas, puxou a cortina, colocou o presépio

no peitoril e ficou a olhar a tempestade. O vento continuava a agitar as árvores com violência, soltando gemidos tremendos e esmagando a

chuva contra as paredes, os muros, as janelas. Mais ao longe, o mar

rosnava feroz. Mas, mesmo assim, a sua voz tinha beleza, uma beleza

inexplicável.

Lídia encostou o rosto na vidraça para sentir a fúria da

tempestade. E pensou nos pais. E pensou nos meninos a quem a

miséria roubou o Natal. E pensou que também na sua cidade havia

56

vai levar aquele cesto velho e esquisito consigo para Pembroke. É Dia

de Natal e tudo!

— Claro, claro que vou — respondeu a tia Cyrilla, enquanto o

punha em cima da mesa e começava a limpá-lo. — Nunca fui visitar o

Edward e a Geraldine, desde que estão casados, sem levar o cesto das

coisas boas comigo e não vai ser agora que vou deixar de o fazer. Se é Natal, mais uma razão. O Edward fica sempre muito contente por ter

algumas das coisas antigas da casa da quinta. Diz que são muito

superiores às cozinhadas na cidade, e são mesmo.

— Mas é tão provinciano — lamentou-se Lucy Rose.

— Bem, eu sou da província — disse a tia Cyrilla, firmemente

— e tu também. E depois, não vejo motivo para sentirmos vergonha disso. Tens um amor-próprio excessivo, Lucy Rose. Com o tempo

há-de passar-te, mas neste momento está a causar-te muitos

problemas.

— O cesto é um problema — disse Lucy Rose, zangada. — A tia está sempre a esquecer-se dele, ou com medo de se esquecer. E

parece tão estranho andar pelas ruas com esse cesto grande e bojudo

no braço!

— Não estou nada preocupada com as aparências —

respondeu a tia Cyrilla, calmamente. — Quanto a ser um problema,

ora, talvez seja, mas é um hábito meu e outras pessoas apreciam. O

Edward e a Geraldine não precisam disto – eu sei – mas pode haver quem precise. E se caminhares ao lado de uma mulher velha e

provinciana, com um cesto, fere os teus sentimentos, ora, podes ficar

para trás como dantes.

Page 61: Histórias de Natal

57

A tia Cyrilla meneou a cabeça e sorriu bem-humorada, e Lucy

Rose, embora mantivesse a sua opinião pessoal, também teve de sorrir.

— Agora, deixa-me ver — disse a tia Cyrilla, reflectindo e

batendo com a ponta do dedo indicador em cima da mesa da cozinha

branca como a neve — o que levo? Para já, aquele bolo grande de frutas – o Edward gosta do meu bolo de frutas; e aquela língua

cozida fria. Aquelas três tortas de carne picada, também, se não

estragam-se antes de voltarmos, ou, então, o teu tio fica doente ao comê-las – torta de carne picada é o seu pecado mortal. E aquele

frasco de barro cheio de natas – a Geraldine pode ter muita classe,

mas ainda tenho de a ver desprezar umas natas do campo, Lucy Rose! E outro frasco do meu vinagre de framboesa. Aquele prato de

biscoitos de geleia e dónutes vão agradar às crianças e encher os

pequenos espaços vazios, e podes trazer-me aquela caixa de caramelos

que está na despensa e aquele saco de barras de bombons às riscas que o teu tio me trouxe, ontem à noite, ali da esquina. E maçãs, claro

– três ou quatro dúzias daquelas boas – e um frasquinho da minha

compota de ameixa rainha-cláudia – o Edward vai gostar. E algumas sanduíches e bolo inglês para um lanche para nós. Agora, acho que de

mantimentos já chega. Os presentes para as crianças podem ir por

cima. Tenho uma boneca para a Daisy, um barquinho que o teu tio

fez para o Ray, um lenço de mão em renda de bilros para cada um dos gémeos e a touca de crochet para o bebé. Agora está tudo?

— Há uma galinha assada fria na despensa — disse Lucy Rose

com maldade — e o porco, que o tio Leo matou, está dependurado

163

meninos pobres. Mas moravam do outro lado da cidade. E teve

vontade de fazer como a menina que conhecia de uma história. Chamava-se Joana e, na noite de Natal, foi levar os brinquedos que

recebera ao seu amigo Manuel, que morava do outro lado do pinhal e

não ia ter prendas na noite de Natal1. Mas Lídia não tinha nenhum

amigo pobre. Na sua escola não havia meninos pobres. No seu prédio não havia meninos pobres. No seu bairro não havia meninos pobres.

Lídia só conhecia os meninos pobres de que lhe falavam os pais, ou

os que via na televisão, ou os que moravam do outro lado da cidade, junto ao rio, ou os que, no Verão, vinham arrumar automóveis na

praia que havia em frente à sua casa.

Lídia estava muito triste por não poder vencer esta distância entre si e os meninos pobres e por nada poder fazer para alterar a

ordem do mundo. E perguntou-se: “Será que os pobres hão-de ser

sempre pobres...?” Desencostou o rosto da vidraça e pegou no

presépio. Aconchegou-o no colo e acariciou o Menino. Do andar de baixo vinha um ruído distante de talheres e cristais e vozes

indistintas. Mas novamente se encostou à janela a ver, ouvir e sentir a

tempestade. E, embalada na música da tempestade, Lídia começou a sentir sono. Levantou-se da cadeira, correu a cortina, fechou as

portadas, beijou o seu Menino negro, deitou-se e adormeceu.

Natal de 1996

Nuno Higino A mais alta estrela – Sete histórias de Natal

CENATECA, Associação Teatro e Cultura, Marco de Canaveses, 2000

1 A Noite de Natal, Sophia de Mello Breyner Andresen

Page 62: Histórias de Natal

58

no alpendre. Também quer metê-los aí dentro?

A tia Cyrilla exibiu um sorriso amplo.

— Bem, acho que deixamos o porco em paz; mas uma vez que

me lembraste, a galinha também pode ir. Arranjo espaço.

Apesar dos preconceitos, Lucy Rose ajudou a embalar e,

mesmo não tendo sido supervisionada pelo olho da tia Cyrilla, fez tudo muito bem, com muita inteligência e economia de espaço. Mas

depois de a tia Cyrilla ter colocado, como toque de acabamento, um

ramo de perpétuas cor-de-rosa e brancas, e fechado as tampas bojudas com mão firme, Lucy Rose ficou junto do cesto e murmurou

vingativamente:

— Um dia, vou queimar este cesto – quando tiver coragem suficiente. Então, será o fim e deixará de o levar consigo para todo o

lado, como uma velha vendedora da praça.

O tio Leopold entrou naquele preciso momento, meneando a

cabeça com ar de dúvida. Não iria passar o Natal com Edward e Geraldine, e talvez a perspectiva de cozinhar e de comer o seu jantar

de Natal sozinho o deixasse pessimista.

— Desconfio que vocês não vão conseguir chegar a Pembroke amanhã — disse com sabedoria. — Vem aí uma tempestade.

A tia Cyrilla não se preocupou com isso. Acreditava que

assuntos deste tipo estavam predeterminados, e dormiu

tranquilamente. Mas Lucy Rose levantou-se três vezes durante a noite para ver se havia temporal e, quando adormeceu, teve pesadelos

horríveis com lutas no meio de tempestades de neve ofuscante que

Page 63: Histórias de Natal

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arrastavam para longe o cesto da tia Cyrilla.

De manhã cedo, não estava a nevar e o tio Leopold levou a tia Cyrilla, Lucy Rose e o cesto até à estação, que ficava a quatro

quilómetros de distância. Quando chegaram lá, o ar estava carregado

de flocos flutuantes. O chefe da estação vendeu os bilhetes com um

ar mal-disposto.

— Se vier mais neve, os comboios talvez atrapalhem o Natal

— disse.

— Tem nevado tanto que o tráfico já está a ficar bloqueado, e é difícil retirar a neve para restabelecer a circulação.

A tia Cyrilla disse que, se estivesse previsto que o comboio

chegasse a tempo do Natal a Pembroke, chegaria; abriu o cesto e deu ao chefe da estação e a três rapazinhos uma maçã a cada um.

— Isto é só o começo — suspirou fundo Lucy Rose.

Quando o comboio delas chegou, a tia Cyrilla instalou-se num

banco, colocou o cesto no outro e olhou sorridente à sua volta para os companheiros de viagem.

Havia poucos – uma mulher delicada ao fundo da carruagem,

com um bebé e mais quatro crianças, uma jovem no meio do corredor com um rosto pálido e bonito, um rapaz, três bancos à frente, vestido

com um uniforme caqui, uma senhora, na frente dele, muito elegante

num casaco de pele de foca, e um homem jovem, magro e de óculos,

do lado oposto.

— Um sacerdote — reflectiu a tia Cyrilla, começando a

classificar — que cuida melhor da alma dos outros do que do seu

165

Sei um ninho

À Fernanda. Ao Monteiro.

Como no poema de Torga, sei um ninho. A tarde, ontem,

estava agreste e um vento frio, antigo, soltava as últimas folhas douradas dos plátanos da avenida. Foi então que uma mulher que

usava a minha capa vermelha me olhou do lado de lá da montra, onde

nascera aquele milagre de interpretação e poesia sobre o tema

natalício.

De um lado, à direita surgia um tronco antigo, carcomido, que

contava a história de muitos dias que já foram e os sinais das estações

do ano.

Do outro, via-se um ramo de espinheiro, onde um ninho de

cotovia espreitava. Dentro do ninho, um ovo. Branco, pequenino,

redondo, assinalando a esperança que em cada Natal renasce, a vida que se renova quer acreditemos ou não nos deuses, quer aceitemos ou

não que todos os anos há uma criança que espera nascer no coração

cansado do mundo. Às vezes, com os nossos olhos primeiros, o nosso

sorriso antigo e à tona; às vezes, com o rosto de Emanuel, o da Galileia. Apenas.

Tanto faz, porque ele nasce na mesma, quer o aceitemos no

espaço macio dos nossos sonhos, quer lhe fechemos as portas e o

Page 64: Histórias de Natal

166

deixemos lá fora, ao relento da indiferença e do cepticismo mais

duro.

Mas ali, na montra, entre um tronco velho e o ninho frágil,

quem dormia era uma criança amassada em barro de Estremoz,

alongada, não em palhinhas no meio de animais ingénuos como conta

a tradição, mas, num banco de jardim. Assim, talvez por casualidade, pelo olhar sensível da artista que montara aquele presépio tão

original, ela resumia violentamente a história de todas as crianças sem

lar, sem árvores, crescendo, sem datas para assinalar, sem milagres que lhe adocem os dias ou os projectos.

Ao relento, num banco de jardim, dorme uma criança que não

vai ter Natal.

Tem as mãos frias e abertas.

Cresce, emergindo da flor do espinheiro e olhando a doçura do

ninho, que sempre lhe estará interdita. É tão legível o que descubro

nos símbolos que me detenho, comovida.

A legibilidade dos dias é, afinal, acessível. Basta estar atento.

Basta descobrir e percorrer, com disponibilidade, o outro lado das

cabalas.

Embrulhada na tarde e no vento, penso que a dona da livraria,

sempre tão discreta, quase silenciosa, que comunica com os clientes

com um sorriso triste mais do que com palavras, escreveu um poema

sem preço, nos deu uma prenda linda sem papel de embrulho nem fita de enfeite, pelo qual nunca lhe pagarão direitos de autor.

Só espero que, porque é Natal, e nestes dias o impossível pode

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próprio corpo; e aquela mulher de casaco de pele de foca está triste e

zangada com alguma coisa – talvez se tenha levantado demasiado cedo para apanhar o comboio; e aquele jovem companheiro deve ser

um dos que saíram há pouco tempo do hospital. Os filhos daquela

mulher é como se não tivessem comido uma refeição decente desde

que nasceram; e se aquela rapariga do outro lado tem mãe, gostaria de saber o que significa deixar a filha sair de casa, com este tempo, com

uma roupa daquelas.

Lucy Rose apenas se perguntava desconfortavelmente o que pensariam os outros do cesto da tia Cyrilla.

Contavam chegar a Pembroke naquela noite, mas à medida que

o dia passava, a tempestade cada vez tornava-se mais violenta. O comboio parou duas vezes para que os ajudantes retirassem a neve. À

terceira vez não conseguiu continuar. Estava escuro quando o

condutor deu uma volta pelo comboio, respondendo bruscamente às

perguntas dos passageiros ansiosos.

— Uma boa vigília de Natal — não, é impossível continuar ou

voltar — o caminho está bloqueado durante milhas — o que é isso

minha senhora? — não, não existe nenhuma estação perto — só existem bosque ao longo do caminho. Ficamos aqui esta noite. Estas

últimas tempestades têm causado muitos prejuízos em todo o lado.

— Oh, meu Deus — suspirou Lucy Rose.

A tia Cyrilla olhou para o cesto com satisfação.

— De qualquer forma, não morreremos de fome — disse.

A rapariga bonita e pálida parecia indiferente. A senhora com o

Page 65: Histórias de Natal

61

casaco de pele de foca parecia mais zangada do que nunca. O rapaz de

caqui disse «só a minha sorte» e duas das crianças começaram a chorar. A tia Cyrilla tirou do cesto algumas maçãs e barras de

caramelos às riscas, e deu-lhos. Pôs o mais velho no seu colo amplo, e

rapidamente os tinha todos à sua volta, rindo satisfeitos.

Os passageiros restantes afastaram-se para um canto e começaram a falar casualmente. O rapaz de caqui disse que, afinal de

contas, era pouca sorte não chegar a casa para o Natal.

— Fui, há três meses, afastado do serviço militar na África do Sul por invalidez, e desde então, tenho estado no hospital. Cheguei a

Halifax há três dias e telegrafei aos meus velhos amigos a dizer que

jantaria com eles no dia de Natal e que tivessem um perú de tamanho extra, porque não comi nenhum o ano passado. Vão ficar

extremamente desapontados.

O rapaz também parecia desapontado. Uma das mangas do

uniforme caqui estava vazia. A tia Cyrilla passou-lhe uma maçã.

— Nós íamos todos passar o Natal a casa do avô — disse, com

tristeza, o filho mais velho da jovem mãe. — Nunca lá estivemos

antes. É terrível!

Parecia que queria chorar, mas pensou melhor no assunto e

encheu a boca com mais uma dentada de rebuçado.

— Será que vai haver Pai Natal no comboio? — perguntou a

irmã pequena a chorar. — O Jack diz que não.

— Tenho a certeza de que o Pai Natal vai descobrir-te —

disse a tia Cyrilla de uma forma tranquilizadora.

167

acontecer, do ovo nasça uma ave branca. E que a ave fique esvoaçando

na livraria, interrompa os olhos distraídos de quem passa, obrigando--os a entrar.

Para comprar muitos, muitos livros.

Para folhearem os postais e descobrirem as ínfimas coisas belas

que há na livraria do meu bairro.

Para ouvirem a música boa que lá está, sempre presente.

Para sorrirem e se aquecerem por dentro, porque a vida é fria, a

rua é árida e a fraternidade é uma palavra velha que se deve acender, sobretudo agora, no Natal.

Maria Rosa Colaço Não quero ser grande

Lisboa, Ed. Escritor, 1996

Page 66: Histórias de Natal

62

A jovem bonita e pálida aproximou-se e tirou o bebé à mãe

cansada.

— Que coisinha fofa — disse com meiguice.

— Também vais a casa passar o Natal? — perguntou a tia

Cyrilla.

A rapariga meneou a cabeça.

— Não tenho casa. Neste momento, não passo de uma

empregada de balcão sem trabalho, e vou até Pembroke para ver se

arranjo alguma coisa.

A tia Cyrilla dirigiu-se ao cesto e tirou a caixa de caramelos de

nata.

— Penso que também devemos divertir-nos. Vamos comer tudo e passar o tempo da melhor maneira possível. Talvez cheguemos

a Pembroke de manhã.

O pequeno grupo começou a ficar cada vez mais animado à

medida que petiscavam, e até a rapariga pálida ficou mais alegre. A jovem mãe contou a sua história à tia Cyrilla. Tinha sido afastada da

família há muito tempo, porque não estavam de acordo com o seu

casamento. O marido tinha morrido no Verão passado e tinha-a deixado em circunstâncias muito precárias.

— O meu pai escreveu-me a semana passada e pediu-me para

esquecer o passado e vir a casa passar o Natal. Fiquei tão contente. E

as crianças não pensavam noutra coisa. É horrível não conseguir lá chegar. Tenho de voltar para o emprego na manhã a seguir ao Natal.

O rapaz de caqui aproximou-se de novo e partilhou do

Page 67: Histórias de Natal

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caramelo. Contou histórias divertidas sobre as operações militares na

África do Sul. O sacerdote também se aproximou e ficou a ouvir, e até a senhora do casaco de pele de foca olhou para trás.

Mais tarde, as crianças adormeceram, uma no colo da tia

Cyrilla, outra no de Lucy Rose e duas no banco do comboio. A tia

Cyrilla e a rapariga pálida ajudaram a mãe a fazer camas para eles. O sacerdote cedeu o sobretudo e a senhora do casaco de pele de foca

aproximou-se com um xaile.

— Isto serve para o bebé — disse.

— Temos de arranjar um Pai Natal para estes jovens — disse

o rapaz de caqui. — Vamos pendurar as meias deles na parede e

enchê-las o melhor que pudermos. Não tenho mais nada, a não ser umas moedas e um canivete.

— Eu também só tenho dinheiro — disse a senhora do casaco

de pele de foca. A tia Cyrilla olhou para a jovem mãe. Tinha

adormecido com a cabeça encostada às costas do banco.

— Tenho ali um cesto — disse a tia Cyrilla com firmeza — e

tenho lá alguns presentes que estavam destinados aos filhos do meu

sobrinho. Vou dá-los a estas crianças. Quanto ao dinheiro, penso que a mãe está a precisar. Contou-me a sua história e é digna de pena.

Vamos fazer uma colecta entre nós para um presente de Natal.

A ideia foi bem acolhida. O rapaz de caqui passou o boné e

todos contribuíram. A senhora de casaco de pele de foca colocou lá uma nota amarrotada. Quando a tia Cyrilla a endireitou, viu que se

tratava de uma nota de vinte dólares.

169

A esperança brilha como um diamante

A menina escreve a giz no passeio: Aqui é o inferno e lá o paraíso.

— Já não se vê a Sr.ª Bravoure ir comprar o jornal.

— A Sr.ª Bravoure tem um ar triste. Compreende-se. Depois

do que passou nestes seis meses.

— A Sr.ª Bravoure não anda bem. Já não liga ao jardim.

Junto da casa tapada pela sebe, o coro da vizinhança aumenta o

seu murmúrio de amizade. Mas a Sr.ª Bravoure não tem cura. Para

falar a verdade: não se preocupa com nada. Juntamente com o seu velho, com o seu companheiro, enterrou o prazer de existir no dia-a-

dia: a primeira chávena de café tomada lado a lado na varanda com a

janela escancarada sobre o jardim, o jornal longamente comentado na

cozinha iluminada por um ramo de chagas cor-de-laranja, as compras feitas em amena cavaqueira na mercearia, os serviços prestados a este

e àquele, a expedição mensal à cidade próxima para se encontrarem

com a neta recém-casada, o cheiro dos crepes à quarta-feira – um hábito herdado das merendas de antigamente, quando o pequeno

(que tem agora cinquenta anos) partilhava da vida deles – a missa das

seis da tarde na igreja matriz, o telejornal…

Já não tem gosto em nada. Ela, que atravessou com tanta

valentia a doença prolongada de Paulo, o seu esposo – “Ainda tem

Page 68: Histórias de Natal

170

mais três meses, no máximo” prevenira o médico do hospital. À força

de cuidados, ela prolongou-os por seis meses – ela, que lhe deu a mão até ao último instante com um sorriso corajoso, não para lhe mentir,

mas para ele se não sentir demasiado culpado por lhe tornar os dias

pesados, por a deixar pelo caminho. E eis que agora se vai abaixo.

A Sr.ª Bravoure já nem se reconhece e preocupa-se em saber onde estará a energia, a sua diligência por todos conhecida. Um

grande buraco negro. De noite, ela sonha: as suas mãos escorregam

na parede a que tenta agarrar-se para subir. Não há nada a fazer. Nem as visitas calorosas, nem as cartas de encorajamento, nem as atenções

com que uns e outros a rodeavam. Ouve as palavras deles, sim, mas

como um murmúrio longínquo. Mordisca com a ponta dos lábios a tarte ainda quente, lê cada vez com mais dificuldade os postais

enviados de Itália pelo filho. Tudo fica de fora sem a atingir.

“Desta vez desço um degrau da escada.”

Nunca esqueceu a representação da vida, observada no museu das artes populares por altura de uma visita com o marido (Há

quanto tempo isso foi?)

— Sr.ª Bravoure, porque não se anima? Não devia ficar assim sozinha. Venha tomar o café a minha casa, é descafeinado.

— Muito obrigada, D.ª Lara, agora não. Ainda não acabei de

separar os fatos do meu Paulo.

A Sr.ª Bravoure sabe muito bem que ainda não é hoje que vai realizar aquela tarefa superior às suas forças. Vai ficar sentada na

penumbra e esperar, nem ela sabe bem o quê, e, com certeza, amanhã

será igual.

64

Entretanto, Lucy Rose tinha trazido o cesto. Sorriu para a tia

Cyrilla, enquanto o arrastava até ao corredor, e a tia Cyrilla devolveu--lhe o sorriso. Lucy Rose nunca tinha tocado naquele cesto por

iniciativa própria.

O barco de Ray foi para Jack, a boneca de Daisy para a irmã

mais velha, os lenços de mão em renda dos gémeos para as duas meninas mais pequenas e o gorro para o bebé. Depois, as meias foram

enchidas com dónutes e biscoitos de geleia, e o dinheiro foi colocado

dentro de um envelope e preso com um alfinete ao casaco da jovem mãe.

— Aquele bebé é tão fofinho — disse a senhora do casaco de

pele de foca. Faz-me lembrar o meu filhinho. Morreu há dezoito natais.

A tia Cyrilla pôs a mão em cima da luva de pelica da senhora.

— O meu também — disse.

E depois, as duas mulheres sorriram com ternura uma para a outra. Mais tarde, descansaram um pouco das tarefas e todos

comeram o que a tia Cyrilla chama um «lanche» de sanduíches e bolo

inglês. O rapaz de caqui disse que nunca tinha provado nada nem de longe tão bom, desde que saíra de casa.

— Na África do Sul não nos davam bolo inglês — disse.

Quando amanheceu, a tempestade ainda era intensa. As

crianças acordaram e ficaram loucas de alegria com as meias. A jovem mãe encontrou o envelope e tentou exprimir um agradecimento, mas

não conseguiu; e ninguém sabia o que dizer, nem o que fazer,

Page 69: Histórias de Natal

65

quando, felizmente, o condutor veio fazer uma digressão para lhes

dizer que talvez tivessem de se conformar com a ideia de passar o Natal no comboio.

— Isto é grave — disse o rapaz de caqui — considerando que

não temos provisões. Por mim não há problema, estou habituado a

rações de combate, ou até a nada. Mas estas crianças vão ter um apetite enorme.

Então, a Tia Cyrilla mostrou-se à altura para a ocasião.

— Tenho aqui algumas rações de emergência — anunciou. — Há comida suficiente para todos e vamos ter o nosso jantar de Natal,

embora frio. Primeiro, o pequeno-almoço. Há uma sanduíche para

cada um e só temos de completar com o que sobrou de biscoitos e dónutes, e guardar o resto para uma refeição verdadeiramente boa ao

jantar. A única coisa que não tenho é pão.

— Tenho uma caixa de bolachas de água e sal — disse a jovem

mãe, ansiosa.

Ninguém na carruagem iria esquecer aquele Natal. Para

começar, depois do pequeno-almoço, tiveram um concerto. O rapaz

de caqui deu dois recitais, cantou três canções e fez um solo de assobio. Lucy Rose deu dois recitais e o sacerdote fez uma leitura de

histórias cómicas. A pálida empregada de balcão cantou duas canções.

Todos concordaram que o solo de assobio do rapaz de caqui tinha

sido o melhor número, e a tia Cyrilla deu-lhe um ramo de perpétuas como prémio de mérito.

Depois, o maquinista veio com notícias mais animadoras,

dizendo que a tempestade estava quase a passar e que pensava que o

171

Quem estará a tocar à campainha a esta hora?

“Depois das onze horas, não abra a porta a ninguém”, recomenda-lhe o filho em todas as cartas. “Há por aí pessoas mal-

-intencionadas”. Mas a campainha continua a tocar e a Sr.ª Bravoure

não resiste. Pega no casaco à entrada, acende a luz do pátio e corre

até à grade de madeira que já devia ter sido pintada. Uma silhueta um pouco volumosa… uma mulher.

— Maria!

Caíram nos braços uma da outra. Ao apertar Maria contra si, a Sr.ª Bravoure sentiu-lhe o ventre redondo de grávida.

— Maria! Bons olhos te vejam! Não contava contigo a esta

hora… Vá, entra!

A Sr.ª Bravoure retomou a sua natural vivacidade para tirar o

casaco da jovem, aquecer água, acender as luzes.

— Não tens frio? Posso aumentar o aquecimento.

Segura as perguntas impacientes.

— Comes uma sopinha de ervilhas?

— Dá-me licença que me deite um bocadinho?

— Estás em tua casa, Maria.

Paulo não suportava que nenhuma criança ou Maria se deitasse

no canapé da sala de visitas.

— Isso não se faz — protestava ele.

— Mas, Paulo, não faz mal a ninguém e bem vês que ela está cansada!

Page 70: Histórias de Natal

172

A Sr.ª Bravoure dirigiu-se mentalmente ao ausente, como faz

cada vez com mais frequência. Uma recordação de infância: a avó — que resmungava sozinha na cozinha. “Tenho de estar atenta. Vou

acabar por ficar meio maluca.”

Deitada, Maria recompõe-se. Terá sido pela sopa com que se

deleitava durante os meses em que partilhara a vida do casal?

O director da escola tinha anunciado, pouco à vontade:

— O Sr. e a Sr.ª Bravoure podiam prestar-me um serviço?

Acolher por seis meses uma professora provisória, assegurar-lhe estadia e alimentação. Como sabem, não há hotel na aldeia e eu ficava

tranquilo se ela ficasse em vossa casa. É muito jovem.

Disseram sim sem hesitar: o quarto do filho continuava vazio.

Assim surgira Maria: as suas saias floridas, o seu entusiasmo,

as buzinadelas, as pilhas de cadernos para corrigir.

— Sr. Paulo, o senhor, que tem uma boa caligrafia, será que

podia dar uma olhadela a estes ditados? Ainda tenho uma aula para acabar de preparar para amanhã.

Enquanto preparava a refeição da noite, a Sr.ª Bravoure

regozijava-se ao ver Paulo pôr os óculos, munir-se de uma caneta Bic vermelha e consultar o dicionário. Ela sorria quando o ouvia

indignar-se:

— Não é possível! Eles estão a fazer de propósito! No meu

tempo…

— Ainda têm de aprender, Sr. Paulo. É para isso que vêm à

escola. E depois gostam mais de ver a telenovela do que estudar a

66

caminho ficaria livre dentro de algumas horas.

— Se conseguirmos chegar até à próxima estação, ficaremos todos bem — disse. — O ramal une-se ali à linha principal e os

trilhos estarão limpos.

À tardinha, jantaram. Os ajudantes do comboio foram

convidados a participar. O sacerdote trinchou a galinha com o canivete do homem do vagão do travão, e o rapaz de caqui cortou a

língua e as tortas, enquanto a senhora do casaco de pele de foca

misturava o vinagre de framboesa com a devida proporção de água. Pedaços de papel serviram de pratos. O comboio forneceu dois

copos, e foi encontrada uma lata de meio litro de água e dada às

crianças.

Todos declararam que nunca tinham desfrutado tanto de uma

refeição em toda a sua vida. Foi, de facto, uma refeição muito

divertida, e os cozinhados da tia Cyrilla nunca foram tão apreciados;

de facto, só sobraram os ossos da galinha e os frascos das compotas. Não puderam comer as compotas, porque não tinham colheres, por

isso, a tia Cyrilla deu-as à jovem mãe.

Quando tudo terminou, foi feito um voto sincero de agradecimento à tia Cyrilla e ao seu cesto. A senhora do casaco de

pele de foca quis saber como é que ela fazia o bolo inglês e o rapaz de

caqui pediu-lhe a receita dos biscoitos de geleia. E quando, duas

horas mais tarde, o maquinista veio anunciar que o limpa-neve tinha chegado e que, em breve, retomariam o caminho, todos se

interrogaram se só teriam passado menos de vinte e quatro horas

desde que se conheceram.

Page 71: Histórias de Natal

67

— Sinto que estive com a senhora no campo de batalha toda a

minha vida — disse o rapaz de caqui.

Saíram todos na primeira estação. A jovem mãe e os filhos

tiveram de apanhar o comboio seguinte de volta para casa. O

sacerdote ficou ali, o rapaz de caqui e a senhora do casaco de pele de

foca mudaram de comboio. A senhora do casaco de pele de foca deu um cumprimento de mão à tia Cyrilla. Não voltara a mostrar-se triste

nem zangada.

— Foi o Natal mais agradável que alguma vez passei — disse com convicção. — Nunca irei esquecer-me desse seu cesto

maravilhoso. A empregadinha de balcão vai para minha casa. Prometi-

-lhe um lugar na loja do meu marido.

Quando a tia Cyrilla e Lucy Rose chegaram a Pembroke, não

havia ninguém à espera delas, pois todos haviam desistido. A casa de

Edward não era muito longe da estação e a tia Cyrilla decidiu ir a pé.

— Eu levo o cesto — disse Lucy Rose.

A tia Cyrilla acedeu com um sorriso. Lucy Rose sorriu

também.

— É um velho cesto abençoado — disse a última — e adoro--o. Por favor, esqueça todas as patetices que sempre disse sobre ele,

tia Cyrilla.

L. M. Montgomery

Ian Whybrow (org.) O grande livro do Natal

Porto, Edições Asa, 2004

173

gramática.

Seis meses, tinha dito o director. Os Bravoure desejavam que a substituição se prolongasse, mas o professor, já curado, retomara o

seu posto e Maria, sem trabalho, tinha aceite um compromisso em

África.

Tinham-na acompanhado à estação. Riam, mas nenhum dos três se sentia à vontade.

— Escrevo-lhes já amanhã, prometo! — gritava Maria pela

janela, enquanto o comboio ia ganhando velocidade.

Cumprira o que prometera durante um ano. Envelopes aéreos

chegaram à caixa do correio e mantiveram-nos ao corrente das

actividades de Maria. De facto, ela quase não tinha outra família a não ser eles, visto que, depois da morte da mãe, o pai se afastara

lentamente dela para se dedicar aos filhos pequenos nascidos de um

segundo casamento.

Depois, o correio começou a rarear. Uma breve mensagem pelo Natal “Tenho-vos presentes no meu pensamento”. Talvez tenha uma

paixão, sugerira Paulo, com os olhos postos no mapa detalhado da

região onde Maria exercia os seus talentos.

— Está sempre ao fogão! — exclamou Maria, ao vê-la na

cozinha. — Tinham-me dito numa carta que iam seguindo os locais

por onde eu andava, mas eu não…

A Sr.ª Bravoure lembra-se daquela rapariga, de cabeleira loura a esvoaçar quando corria “Vou chegar atrasada! Até ao meio-dia…” e o

portão já estava a bater.

Page 72: Histórias de Natal

174

Estes jovens são incapazes de acordar a horas – dizia Paulo

mal-humorado.

— É porque esteve a trabalhar até à meia-noite com os

preparativos para o dia da mãe, Paulo.

A Sr.ª Bravoure pergunta:

— Quando é que a criança vai nascer?

— No princípio de Janeiro. Estou com medo…

É a mesma Maria ousada e sem medo que disse aquilo? A Sr.ª

Bravoure observa o rosto marcado pelas manchas da gravidez sob o tufo de cabelos macios, presos por um elástico.

— De que tens medo, Maria?

E é o dilúvio, as lágrimas tanto tempo contidas. Vem tudo arrastado pela corrente: em África, o enfermeiro admirado, amado,

desaparecido, o período atrasado, a suspeita de gravidez, o diálogo

com esta criança que já mexe e que nada pedira, a anemia e o regresso

forçado ao país, a desorientação e, de repente, a esperança “O Sr. e a Sr.ª Paulo”. Na estação, o empregado reconhecera-a e informara-a da

morte do Sr. Bravoure. Demasiado tarde para recuar caminho.

— Está-se bem em sua casa.

A Sr.ª Bravoure olha para a sala de visitas aquecida pelas três

lâmpadas. Amanhã tenho de substituir o ramo das flores secas. Não,

vou ao mercado comprar ásteres.

— Queres crepes para a noite?

— Como é que adivinhou? — Maria admira-se. — A criança

vai sentir o cheirinho. É um rapaz. A ecografia é nítida. Posso voltar

Page 73: Histórias de Natal

175

a ocupar o meu quarto?

*

— A Sr.ª Bravoure recuperou o ânimo desde que a filha —

bem, é como se fosse — regressou. Já voltou ao que era.

— Eu reparei. Maria está quase no fim do tempo, não?

— Estou a tricotar um casaquinho para o menino.

*

Murmúrios. Vozes conhecidas. Fadas à volta de um berço.

Na noite de Natal, quando começava com os preparativos para a ceia a duas, Maria perdeu as águas. A Senhora Bravoure

acompanhou-a na ambulância até à maternidade da cidade.

— O seu companheiro não está presente para a acompanhar na sala de parto? — perguntou a parteira de serviço.

— É a minha avó que vai ficar ao meu lado — soprou Maria

entre duas contracções.

À meia-noite, a Sr.ª Bravoure, extenuada, tem nos braços um minúsculo Paulo aos berros.

Natal. Nasceu-nos um menino.

Colette Nys-Mazure Contes d’Esperance

Paris, Desclée de Brouwer, 1998

Page 74: Histórias de Natal
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71

O Tomás, que não acreditava no Pai Natal

Era uma vez um menino que não acreditava no Pai Natal e

fazia troça de todos os outros meninos da escola, e dos irmãos e dos

primos, e de qualquer pessoa que dissesse que o Pai Natal existia

mesmo e vivia no Pólo Norte.

— Isso são histórias para bebés — dizia o Tomás.

E quando via alguém a escrever uma carta ao Pai Natal, tentava

agarrar o papel e, se conseguia, rasgava-o mesmo! E dizia que não era nada um dos anões do Pai Natal que vinha buscá-la.

O Tomás ia para a escola todos os dias de autocarro. A mãe

levava-o até à paragem e, se fosse preciso, ele ficava lá sozinho um bocadinho à espera que o autocarro passasse. Naquele dia foi assim

que fez. Mas estava tão distraído que nem reparou que o autocarro

era encarnado e não cor-de-laranja. E quando ia mostrar o «passe» ao

condutor, deu um salto de susto:

— O que é que faz uma rena de nariz encarnado a conduzir

um autocarro!? — gritou ele.

A rena é que não ficou nada incomodada com a má-criação do Tomás e respondeu a rir:

— Sempre guiei este autocarro!

— Mas para onde é que ele vai? — quis saber o Tomás, já

177

O caminho para Belém

Joaquim e Cristina têm uma avó bastante idosa e que já vê

muito pouco. Em contrapartida, sabe dar ordens como um general e

contar histórias como um marinheiro viajado. Não admira, pois o avô, já lá vão mais de cem anos, andara no mar e trazia para casa

barcos carregadinhos de histórias. Até se diz que certa vez chegou a

ter a bordo Napoleão, o imperador dos franceses.

É na estação do ano em que os dias começam a ficar mais

pequenos e em que tudo, tanto a Natureza como os homens, se

prepara para o Natal, que a avó melhor conta histórias. Mas melhor

ainda nos domingos do Advento. É sempre divertido estar em casa dela, mas nunca como no primeiro domingo do Advento.

Cristina e Joaquim vão visitá-la por essa altura e os três bebem

chocolate quente e provam as primeiras bolachas de noz. Mal têm acabado de comer e já a avó está a dar ordens. É o que faz todos os

anos no primeiro domingo do Advento, e os dois irmãos já sabem há

muito o que aí vem:

— As bolachas estavam boas, meninos? Então, agora vamos ao trabalho!

— Mas, avó — diz Joaquim — isto não é um trabalho, é um

prazer.

Joaquim foi incumbido de ir buscar uns caixotes ao sótão.

Page 76: Histórias de Natal

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— Às suas ordens, senhor General! — diz Joaquim

arregaçando as mangas, pois sabe que vai transpirar. Os caixotes estão cheios de maravilhosas figuras talhadas muito antigas em madeira.

Todos os anos, no primeiro domingo do Advento, começa a fazer-se,

em casa de Anai, um grande presépio para o Natal. Nunca é cedo

demais para começar, porque é um trabalho diversificado. Tem de construir-se o cenário, o prado dos pastores, a cidade de Belém com a

hospedaria, os caminhos e as estradas, jardins, um lago, campos e

montanhas e bosques. E é naquela pequena simulação de mundo que se colocam as figuras coloridas de madeira: cento e catorze figuras.

Anjos, pastores, caminhantes, animais nos prados, no estábulo e em

liberdade, os reis do Oriente com o seu séquito, soldados romanos que, ao tempo do nascimento de Jesus ocupavam a Terra Santa,

vagabundos que iam de viagem por aquela altura, e muitos mais.

Afinal Belém também tinha habitantes. Em resumo, grandes e

pequenos, novos e velhos, todos têm de lá estar. E não pode faltar a Sagrada Família, claro. É isto tudo o que está nos caixotes que

Joaquim tem de ir buscar ao sótão. Mas também há ordens para a

irmã:

— Tu, Cristina, vais à cozinha buscar o cesto das caixas de

musgo, as pedrinhas, os ramos, a areia.

Todos os anos, os irmãos têm de recolher tudo isto para o

cenário bíblico. Também há raízes e ramos com formas originais. Enquanto Cristina e a avó separam e preparam as coisas para erguer o

cenário, Joaquim desce as escadas do sótão com passos pesados.

Quando acabou de trazer tudo, empurram a grande mesa de para um

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muito aflito.

— Para o Pólo Norte, claro. Temos de que levar pessoas de todo o mundo para ajudar a tratar dos presentes para o Natal, e por

isso vimos buscá-las a casa, porque há muito poucos aviões para lá... e

são muito caros.

— Mas o Pai Natal não existe e o Pólo Norte também não! — exclamou o Tomás, furioso, a bater com força com as mãos no varão

onde as pessoas se seguram para não cair.

Aí ouviu-se uma gargalhada enorme, que encheu o autocarro todo. O Tomás virou-se para trás e viu que os lugares estavam todos

cheios de pessoas, de duendes e ursos, e de anões e de rapazes e

raparigas como ele. Iam todos para o Pólo Norte ajudar o Pai Natal, e achavam que a frase do Tomás era a mais idiota que já tinham

ouvido:

— Ah, és daqueles que não acreditam em nada que não vejam

— disse um duende, de orelhas em bico e chapéu verde, enfiado quase até aos olhos.

— Também não precisas de esperar muito para acreditar,

porque daqui a duas horas estamos lá — acrescentou um anão, de picareta pousada no banco do lado.

O Tomás pensou: «Desde esta história dos atentados, não

deviam proibir de entrar nos transportes públicos as pessoas que

trazem picaretas de pontas afiadas?!»

Mas calou-se e não disse nada, porque se havia coisa que

detestava, era que fizessem troça dele. Fazer troça dos outros, como

Page 77: Histórias de Natal

73

fizera com todos os que acreditavam no Pai Natal, era divertido, mas

ser gozado era completamente diferente...

Sentou-se no primeiro banco que viu vazio. Ufa! Ainda bem

que não tinha uma daquelas criaturas sentadas ao lado a seringar-lhe

o juízo.

Quando um urso polar pequenino se virou para trás e lhe deitou a língua de fora, o Tomás ainda explodiu:

— Quando a minha mãe disser à polícia que desapareci, vocês

vão ver!!!

Mas aí a gargalhada ainda foi maior:

— A polícia não anda atrás de meninos que estão à guarda do

Pai Natal! — disseram todos em coro.

E o Tomás achou mesmo melhor não voltar a abrir a boca.

Foi olhando pela janela e percebeu que o autocarro já não tinha

as rodas na estrada, mas voava pelos céus.

O dia tinha-se transformado em noite e o Tomás, que sabia alguma coisa de geografia, percebeu que estavam a ir para muito

longe. Lá ao longe via neve, e estrelas... quando na terra dele ainda

eram hora de estar na escola.

— Pólo Norte, última paragem! — ouviu-se a voz da rena-

-motorista a gritar.

Toda a gente se levantou e começaram a empurrar-se uns aos

outros, tal era a pressa de sairem.

O Tomás esperou que se fossem embora e ficou ali sem saber o

que fazer. Talvez o autocarro voltasse agora para Portugal e passasse

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canto livre da sala. A mesa é do tempo do trisavô deles, por isso é que

é tão grande. Hoje em dia, já quase não há mesas como aquela. Vai servir de palco ao grande presépio mudo mas, antes de começarem,

ainda têm de deitar mais chocolate na chávena da avó. Se fosse ela a

deitar, podia vertê-lo em cima da toalha branca, porque já vê mal.

Talvez tenha sido por isso que se habituou a dar ordens secas e curtas para que tudo decorra como ela imaginou. Como o presépio

tem tantas peças, haveria muita confusão. Cada ano, ele tem de ficar

um pouco diferente do dos anos anteriores e por isso os irmãos têm de prestar muita atenção ao que a avó idealizou para aquele ano. Ela

dá as indicações e as crianças executam-nas:

— Primeiro o cenário, meninos: um monte no meio, atrás, o campo dos pastores; à frente, a cidade de Belém com as casas e as

ruas…

E devem colocar-se logo as primeiras figuras, claro, pois um

cenário sem pessoas mais pareceria um cenário lunar. Mas, no primeiro domingo do Advento, apenas podem colocar-se as

personagens mais afastadas, as que vinham de longe para Belém. A

avó conhece cada uma das figuras do tempo em que ainda podia vê--las. Sabe até a história da vida de cada uma delas e dentro em pouco

chegará o momento de ela se mostrar uma grande contadora de

histórias. A avó sempre imaginava tudo com uma tal precisão, que, na

sua cabeça, as coisas imaginadas ganhavam vida. Sentada na sua cadeira com a chávena de chocolate à frente, escuta com atenção o

que Joaquim e Cristina fazem. É como se visse com os ouvidos. Pelos

ruídos que ouve, a avó sabe o que estão a fazer. E tem sempre alguma

Page 78: Histórias de Natal

180

coisa a dizer-lhes:

— Não estás a fazer Belém de uma só vez, pois não, Joaquim?

— Isso não vai assim tão depressa, senhora General —

responde ele. — Ainda só estão um par de casas e o estábulo da

hospedaria no monte.

— O estábulo é construído no fim de tudo — diz a avó. — O mais cedo, a vinte e três de Dezembro. O presépio é a coroa e a coroa

vem sempre no fim. Estás com o campo dos pastores, Cristina?

— Sim — diz Cristina. — Estou a prepará-lo com areia e musgo e já comecei a fazer algumas estradas e caminhos para as

primeiras pessoas que vão chegar.

— Está bem — responde a senhora. — Faz os caminhos de acesso com areia e pedrinhas.

— O que é isso de caminhos de acesso? Isto aqui são umas

autênticas auto-estradas! — exclama Joaquim.

— Que tolice, meninos. Quando Jesus nasceu, ainda se viajava de burro, de cavalo e de camelo, ou ia-se a pé. Mas auto-estrada? Que

tolice!

— Não te preocupes, avozinha — consolou-a Cristina. — Eu ponho umas pedrinhas e uns bocadinhos de musgo na auto-estrada

do Joaquim e ela fica logo a parecer um caminho a sério. Que figuras

coloco em primeiro lugar? O velho de barba branca comprida guiado

por um rapaz de pele escura?

— Certo, esse mesmo — responde a avó, reclinando-se

confortavelmente na cadeira para se lembrar da vida dessa figura do

74

outra vez na rua dele... E assim ele voltava para casa, sem se assustar

mais. Porque o Tomás estava assustado... E um bocadinho envergonhado.

Mas não teve sorte nenhuma, porque, quando levantou os

olhos, viu o Pai Natal em pessoa, de pé, parado ao lado do banco

onde estava sentado.

— Não me vens ajudar a fazer presentes de Natal? —

perguntou o senhor de barba muito branca.

«Realmente, parece o Pai Natal», pensou o Tomás, «se o Pai Natal existisse, claro». E porque o Tomás era teimoso e não gostava

de dar o braço a torcer (quem é que gosta?), ainda estendeu a mão

para puxar a barba, não fosse isto tudo ser um teatro e o Pai Natal um daqueles velhos que trabalham nos centros comerciais. Mas a

barba não saía, e o Tomás percebeu que nada daquilo era um sonho e

que estava mesmo no Pólo Norte. E que aquele era o Pai Natal de

carne e osso.

E como o Tomás era casmurro, mas não era burro, percebeu

que se tinha enganado e que, já que estava ali (e ainda por cima não

tinha de ir à escola!), o melhor era divertir-se o mais que podia. Durante muitos dias, ajudou a fazer e a embrulhar presentes para

todos os meninos do mundo, e ficou muito amigo de duendes, anões,

ursos e renas, e de todas as outras criaturas estranhas que por ali

apareciam.

Mas, uma noite, não conseguiu adormecer. Não queria dizer

nada a ninguém, mas estava triste porque sabia que não tinha

mandado nenhuma carta ao Pai Natal e que, por isso, não ia receber

Page 79: Histórias de Natal

75

presentes.

— E até é bem-feito, para ver se aprendo a não ser estúpido — pensou baixinho o Tomás, cheio de remorsos por ter rasgado as

cartas dos irmãos mais pequenos e de ter troçado tanto dos amigos.

Mas, na manhã seguinte, o Urso Polar Grande, que era tio dos

mais pequeninos, veio ter com ele às escondidas e deu-lhe um papel e um lápis:

— Escreve depressa a tua carta, que eu depois meto-a no cesto

das cartas que o Pai Natal ainda não abriu.

O Tomás nem queria acreditar na sorte que tinha! E escreveu,

escreveu e escreveu, porque sabia que era tudo verdade.

Na noite de Natal, o Pai Natal levou-o com ele no trenó e deixou-o cair pela chaminé com os presentes para a mãe, para o pai e

para os irmãos. A mãe nem ligou aos presentes dela, só queria pegar

no Tomás ao colo e enchê-lo de beijinhos. O Tomás dizia:

— Blhec, mãe, não me lambuze todo... — mas continuava muito encostadinho a ela.

A mãe fez-lhe um leite com chocolate quente e, quando ia

metê-lo na cama, disse:

— E já foste ver se o Pai Natal te deixou alguma coisa na tua

Meia de Natal? — (nesta casa punham meias ao fundo da cama, em

lugar de sapatos na chaminé).

Mas o Tomás abanou a cabeça e respondeu:

— Acho que não tenho nada, porque o Pai Natal deixou-me cá

com todos os presentes e eu não vi nenhum para mim.

181

presépio.

— Vou pô-la no início do caminho — explica Cristina para Anai ficar a saber, e prossegue:

— No ano passado também teve de ficar neste sítio. Porque é

que todos os anos tenho de colocar o velho de barbas com o rapaz no

princípio do caminho?

As crianças levantam os olhos para a avó na expectativa.

Quando ela se senta assim, quando se põe confortável, começa

imediatamente a contar uma história. Vai falar da vida do velho de barbas. Cada ano conta a história de determinadas figuras do

presépio. A maioria das pessoas conhece apenas as histórias de Maria

e José e do Menino Jesus. Também sabem alguma coisa dos pastores e dos reis do Oriente. Mas de todos os outros que estavam em Belém

– e havia mais gente – desses, ninguém sabe nada. Só a avó é que

imagina todo o tipo de histórias como se estivessem escritas na sua

mente. Já não consegue ler com os seus olhos cansados, por isso inventa-as. E, enquanto Joaquim e Cristina vão trabalhando

afincadamente no presépio, ela começa a falar do velho de barbas.

— Ninguém sabe ao certo de onde vem, é difícil de dizer. Provavelmente de um país do sul, pois a pele é escura, embora não

tão escura como a do rapazinho que o guia.

— Porque é que ele tem de ser guiado? — pergunta Cristina.

— Espera! — sibila Joaquim, que tem muita curiosidade em saber a história e não gosta que a avó seja interrompida.

— Isso mesmo — diz a avó. — Esperai, que já ides saber. O

Page 80: Histórias de Natal

182

homem procurara durante toda a vida um enorme diamante azul, do

qual ouvira falar quando era novo. Quem possuísse esse diamante, dizia-se, detinha o poder sobre o coração dos homens. Aquilo soava

tão tentador, que se enraizou no homem de barbas e fê-lo andar toda

a vida de terra em terra. Procurou por todo o lado o enorme

diamante de que o marinheiro lhe falara, que por sua vez tinha ouvido a outros. Nos portos de mar contam-se sempre destas

histórias, onde a verdade e o sonho, ou até o delírio, são difíceis de

separar. O certo é que o nosso barbudo acreditou na história da pedra mágica e, como já tinha idade suficiente, juntou os seus bens e

pôs-se a caminho à procura da pedra. Primeiro, foi para o Egipto,

onde estavam a ser construídas as pirâmides. Numa daquelas pirâmides bem podiam estar escondidos todos os tipos de tesouros…

Desta vez, foi Joaquim a interromper a narrativa.

— Hoje sabe-se o que estava nas pirâmides: múmias, vasos,

pinturas e, aqui e ali, um escaravelho petrificado!

— O que é isso? — perguntou Cristina.

— É um escaravelho que se transformou em pedra e não é

nenhum diamante gigante, não é assim, Anai?

— Tens razão. Não encontrou o diamante nas pirâmides.

Anai faz agora uma pequena pausa. Quer encontrar a

continuação da história. Para isso tem de perscrutar dentro de si. E

os seus ouvidos, sempre tão apurados, não ouvem que os dois irmãos pararam naquele momento, fascinados, a olhar para ela.

— Também passou a pente fino a ilha de Creta, no

76

Só que, quando olhou para a meia, ela estava cheia de presentes

até acima. O Tomás ficou tão comovido (que é quando os olhos picam de lágrimas e um nó bom aperta a garganta), que foi a correr

para a janela para ver se ainda ia a tempo de agradecer ao Pai Natal.

Lá longe, viu um trenó e um homem de barbas brancas a dizer-

-lhe adeus. O Tomás, naquela excitação, chamou a mãe:

— Mãe! Mãe! É o Pai Natal! A mãe consegue vê-lo?

— Claro que consigo — disse a mãe.

E conseguia mesmo.

Isabel Stilwell Histórias para contar em 1 minuto e ½

Lisboa, Verso da Kapa, 2005

Page 81: Histórias de Natal

77

A menina dos fósforos

Estava tanto frio! A neve não parava de cair e a noite

aproximava-se. Aquela era a última noite de Dezembro, véspera do

dia de Ano Novo. Perdida no meio do frio intenso e da escuridão, uma pobre rapariguinha seguia pela rua fora, com a cabeça descoberta

e os pés descalços. É certo que ao sair de casa trazia um par de

chinelos, mas não duraram muito tempo, porque eram uns chinelos que já tinham pertencido à mãe, e ficavam-lhe tão grandes, que a

menina os perdeu quando teve de atravessar a rua a correr para fugir

de um trem. Um dos chinelos desapareceu no meio da neve, e o outro

foi apanhado por um garoto que o levou, pensando fazer dele um berço para a irmã mais nova brincar.

Por isso, a rapariguinha seguia com os pés descalços e já roxos

de frio; levava no avental uma quantidade de fósforos, e estendia um maço deles a toda a gente que passava, apregoando:

— Quem compra fósforos bons e baratos?

Mas o dia tinha-lhe corrido mal. Ninguém comprara os

fósforos, e, portanto, ela ainda não conseguira ganhar um tostão. Sentia fome e frio, e estava com a cara pálida e as faces encovadas.

Pobre rapariguinha! Os flocos de neve caíam-lhe sobre os cabelos

compridos e loiros, que se encaracolavam graciosamente em volta do pescoço magrinho; mas ela nem pensava nos seus cabelos

183

Mediterrâneo, à procura do diamante azul — diz a avó em voz baixa,

falando para si. — Nessa ilha, os habitantes tinham como deus um terrível touro. O monstro quase comia o homem. É verdade! Ele

ousara entrar no labirinto da gruta do monstro porque se convencera

de que talvez este estivesse de guarda à pedra que procurava. Mas

acabou por escapar ao monstro. Depois de se ter certificado de que no palácio do rei de Creta também não havia nenhum diamante

gigante, pediu mais informação aos marinheiros. Os marinheiros

costumam saber sempre de alguma coisa. Talvez na Índia… diziam uns.

Então o nosso caçador de tesouros decidiu ir à Índia. Fretou

um navio mercante e partiu. A viagem durou quase um ano. Naquela altura o Canal de Suez ainda não existia e para se chegar à Índia era

preciso contornar-se toda a costa africana. Além disso, também não

havia barcos a vapor ou a motor. Para velejar era preciso vento e, na

sua ausência, braços fortes para remar. Foram precisos onze meses e alguns dias para o nosso viajante calcar finalmente terras da Índia.

Que palácios e templos maravilhosos ele viu! Torres de marfim e

janelas com caixilhos de ouro, jardins esplendorosos com colibris coloridos e elefantes brancos. Não havia dúvida, a Índia era o país

certo para diamantes azuis gigantes. Só que não se alcançam tesouros

daqueles a troco de nada. O nosso viajante teve de comprar um

elefante e, montado nele, entrar na floresta, onde certamente estariam ocultos palácios ainda mais sumptuosos, a acreditar no que

se ouvia nas tabernas dos portos. Porém, na selva, espreitam muitos

perigos: tigres, panteras, crocodilos, tarântulas e cobras venenosas,

Page 82: Histórias de Natal

184

para não falar do terrível calor durante o dia, e das ainda piores

enxurradas durante a noite. E foi contra tudo isto que o nosso viajante teve de lutar. Mas a ambição do poder torna os homens

persistentes; ela é como um demónio e leva ao extremo aquele que

por ela se deixa dominar. Finalmente, numa manhã, após longa

cavalgada de várias semanas pela floresta virgem e muita fadiga, o homem deparou-se com as ruínas enormes e antiquíssimas de um

templo. Em épocas há muito submersas pelo tempo, devia ter sido

uma das construções mais sumptuosas à face da terra, pelo que ainda se podia ver daquilo que restava. Aqui, aqui e em mais nenhum lugar

teria de estar escondido o mítico diamante azul.

— E então? — perguntou Cristina. — Encontrou-o?

A avó meneou a cabeça, e continuou:

— Vamos com calma! Perto dali vivia um povo indígena cujos

antepassados teriam construído aquela obra. Eram pessoas amáveis e

pacíficas, mas também medrosas. Ajudaram o viajante na sua busca, embora isso não lhes tenha sido fácil. Até ali tinham-se mantido

sempre afastados das ruínas do templo porque pensavam que era

habitado por espíritos maléficos, mas o homem tinha prometido recompensá-los caso o ajudassem. Dia após dia, revolveram as ruínas

do velho edifício coberto de trepadeiras e que ocupava uma grande

área. Finalmente depararam com umas escadas misteriosas que

desciam para a cave…

A senhora faz uma pequena pausa na narrativa e inspira fundo,

como se ela própria estivesse em frente das escadas da cave, na Índia.

Cristina e Joaquim estão neste momento a fazer, com musgo e areia,

78

encaracolados. Através das janelas, as luzes vivas e o cheiro da carne

assada chegavam à rua, porque era véspera de Ano Novo. Nisso, sim, é que ela pensava.

Sentou-se no chão e encolheu-se no canto de um portal. Sentia

cada vez mais frio, mas não tinha coragem de voltar para casa, porque

não vendera um único maço de fósforos, e não podia apresentar nem uma moeda, e o pai era capaz de lhe bater. E afinal, em casa também

não havia calor. A família morava numa água-furtada, e o vento

metia-se pelos buracos das telhas, apesar de terem tapado com farrapos e palha as fendas maiores. Tinha as mãos quase paralisadas

com o frio. Ah, como o calorzinho de um fósforo aceso lhe faria

bem! Se ela tirasse um, um só, do maço, e o acendesse na parede para aquecer os dedos! Pegou num fósforo e: Fcht!, a chama espirrou e o

fósforo começou a arder! Parecia a chama quente e viva de uma

candeia, quando a menina a tapou com a mão. Mas, que luz era

aquela? A menina julgou que estava sentada em frente de um fogão de sala cheio de ferros rendilhados, com um guarda-fogo de cobre

reluzente. O lume ardia com uma chama tão intensa, e dava um calor

tão bom! Mas, o que se passava? A menina estendia já os pés para se aquecer, quando a chama se apagou e o fogão desapareceu. E viu que

estava sentada sobre a neve, com a ponta do fósforo queimado na

mão.

Riscou outro fósforo, que se acendeu e brilhou, e o lugar em que a luz batia na parede tornou-se transparente como tule. E a

rapariguinha viu o interior de uma sala de jantar onde a mesa estava

coberta por uma toalha branca, resplandecente de loiças finas, e

Page 83: Histórias de Natal

79

mesmo no meio da mesa havia um ganso assado, com recheio de

ameixas e puré de batata, que fumegava, espalhando um cheiro apetitoso. Mas, que surpresa e que alegria! De repente, o ganso

saltou da travessa e rolou para o chão, com o garfo e a faca espetados

nas costas, até junto da rapariguinha. O fósforo apagou-se, e a pobre

menina só viu na sua frente a parede negra e fria.

E acendeu um terceiro fósforo. Imediatamente se encontrou

ajoelhada debaixo de uma enorme árvore de Natal. Era ainda maior e

mais rica do que outra que tinha visto no último Natal, através da porta envidraçada, em casa de um rico comerciante. Milhares de

velinhas ardiam nos ramos verdes, e figuras de todas as cores, como

as que enfeitam as montras das lojas, pareciam sorrir para ela. A menina levantou ambas as mãos para a árvore, mas o fósforo apagou-

se, e todas as velas de Natal começaram a subir, a subir, e ela

percebeu então que eram apenas as estrelas a brilhar no céu. Uma

estrela maior do que as outras desceu em direcção à terra, deixando atrás de si um comprido rasto de luz.

«Foi alguém que morreu», pensou para consigo a menina;

porque a avó, a única pessoa que tinha sido boa para ela, mas que já não era viva, dizia-lhe muita vez: «Quando vires uma estrela cadente,

é uma alma que vai a caminho do céu.»

Esfregou ainda mais outro fósforo na parede: fez-se uma

grande luz, e no meio apareceu a avó, de pé, com uma expressão muito suave, cheia de felicidade!

— Avó! — gritou a menina — leva-me contigo! Quando este

fósforo se apagar, eu sei que já não estarás aqui. Vais desaparecer

185

o campo para os rebanhos dos pastores, mas, quando a avó

interrompe, levantam os olhos para ela, impacientes.

— Então? O que é que o homem de barbas fez? Desceu à cave?

— E se havia cobras lá dentro? — lembra-se Cristina.

A avó anuiu com um movimento de cabeça e continua:

— Pior do que cobras: trezentos e sessenta e cinco degraus. Tantos, quantos os dias do ano.

— Então a cave devia estar muito funda! — diz Joaquim.

— Se estava, filho! Apesar disso, o viajante viu, ao espreitar para baixo, um brilho azul-prateado que só podia vir de um diamante

de grandes dimensões! Mas nenhum dos nativos se atrevia a descer.

Não tinham a ambição do poder, mas sim medo. Receavam cobras, monstros ou espíritos maléficos; avisaram o aventureiro e

imploraram-lhe que voltasse para trás, mas em vão. Agora que ele se

encontrava tão perto do fim, ao cabo de tanto tempo de busca, o

desejo de poder crescera demasiado. Não lhes deu ouvidos e iniciou a descida.

— Trezentos e sessenta e cinco degraus — calculava Joaquim

— descem-se em cinco minutos, se não estiverem a desfazer-se!

— Não estavam. O homem não precisava de luz pois, à medida

que ia descendo, o brilho da pedra misteriosa ia ficando mais intenso,

depois mais claro e mais forte, assustadoramente ofuscante, até, por

fim, quase dilacerar. Os olhos começaram a doer-lhe, mas os pés não hesitaram uma única vez. Precipitou-se para o fogo azul, saltou os

últimos degraus e ali estava o diamante do tamanho de uma cabeça,

Page 84: Histórias de Natal

186

ainda mais cintilante do que o sol num dia de Verão. Porém essa luz

era fria, terrivelmente arrepiante e ofuscante, e não havia olhos humanos que conseguissem suportá-la.

Pois é, a ambição do poder pode cegar os humanos. Quando o

homem descia apressadamente os últimos degraus, já os olhos haviam

começado a doer-lhe terrivelmente. Não se importara, embora a dor se intensificasse e se fosse tornando cada vez mais dilacerante. Ao

chegar junto do diamante, o raio azul matou-lhe os olhos e o homem

ficou cego para toda a vida.

— Mesmo cego? — perguntou Cristina. — Mas então como é

que ele subiu as escadas?

— Oh, de início não pensou que tivesse ficado cego. Achava que o fogo do diamante o tinha momentaneamente encandeado, por

isso chegou junto da pedra às apalpadelas e tentou levantá-la para a

levar. O diamante, porém, estava agarrado ao chão e crescia com a

terra como uma árvore milenar. Ninguém conseguiria pegar no diamante azul…

— Nem com uma grua?

— Não, nem com uma grua.

— Não conseguiu, pronto — Cristina tenta fazer a avó

apressar a história. — E como é que a história continua?

— Como é que continua? Bem é que não será. Passaram-se

horas de grande tormento, de esforço e de decisões amargas, até ele se dar conta de que a pedra não podia ser erguida nem transportada.

E novamente se passaram horas até que os indígenas, que esperavam

80

como o fogão de sala, como o ganso assado, e como a árvore de

Natal, tão linda.

Riscou imediatamente o punhado de fósforos que restava

daquele maço, porque queria que a avó continuasse junto dela, e os

fósforos espalharam em redor uma luz tão brilhante como se fosse

dia. Nunca a avó lhe parecera tão alta nem tão bonita. Tomou a neta nos braços e, soltando os pés da terra, no meio daquele resplendor,

voaram ambas tão alto, tão alto, que já não podiam sentir frio, nem

fome, nem desgostos, porque tinham chegado ao reino de Deus.

Mas ali, naquele canto, junto do portal, quando rompeu a

manhã gelada, estava caída uma rapariguinha, com as faces roxas, um

sorriso nos lábios… morta de frio, na última noite do ano. O dia de Ano Novo nasceu, indiferente ao pequenino cadáver, que ainda tinha

no regaço um punhado de fósforos. — Coitadinha, parece que tentou

aquecer-se! — exclamou alguém. Mas nunca ninguém soube quantas

coisas lindas a menina viu à luz dos fósforos, nem o brilho com que entrou, na companhia da avó, no Ano Novo.

Hans Christian Andersen Os melhores contos de Andersen

Editora Verbo, s/d

Page 85: Histórias de Natal

81

A estrela de prata

Numa árvore que eu cá sei – que nós sabemos – estão uma

estrela de prata e uma bola de cristal.

— O que fazemos aqui? — perguntou a estrela.

— Estamos a enfeitar — respondeu a bola.

— O que é enfeitar? — perguntou a estrela.

— É fazer vista, ornamentar, alindar... — respondeu a bola de cristal.

Passou-se um tempo e a estrela perguntou de novo:

— Porque estamos a enfeitar?

— Porque esta árvore não é como as outras. Os frutos dela são raros. Aparecem um dia, luzem o seu quê, conforme sabem ou

podem, e depois são colhidos e guardados, até para o ano.

A bola de cristal tinha muita experiência de outros Natais, ao passo que a estrela era nova, de prata fresca, e não sabia quase nada.

Mas tinha ouvido falar que havia estrelas cadentes, estrelas que caem

do céu e no céu desaparecem, num sopro de luz.

— Não serei uma dessas? — perguntou à bola.

— Talvez sejas, talvez não sejas... Mas não experimentes.

Passou-se um tempo mais, e a estrela guardou para si aquela

187

por ele em cima, o viram subir as escadas de joelhos, como um

animal. Teve de tactear degrau a degrau. A procura da riqueza e do poder tinha-o cegado e, dessa forma, levado ao desamparo. Sozinho,

nunca teria encontrado a saída para fora da selva. Os indígenas,

amáveis, deram-lhe um rapazinho órfão esperto e forte, que passaria a

guiá-lo. O rapaz conhecia a selva e os animais selvagens. Crescera nela e sabia vencer todos os perigos. Iria doravante ficar com o cego,

e assim deambularam pelo mundo, dia após dia, o homem de barbas,

que entretanto envelhecera, e o rapaz de pele escura.

— E de que é que ele andam agora à procura? — pergunta

Cristina.

— De paz. Só procuram a paz.

— E essa também é uma busca assim tão perigosa e difícil

como a do diamante azul?

— Mas vocês não vêem que eles vão a caminho de Belém, a

caminho do filho de Deus? Quem parte ao Seu encontro quer paz e é lá que a encontra. Vá, colocai o velho de barbas e o rapaz a meio do

caminho que leva ao estábulo da hospedaria. Fazem ambos parte do

nosso presépio, assim como os pastores e os três reis do Oriente, que hão-de aparecer mais tarde, claro. Em que ponto é que vocês vão?

Joaquim ainda está a dar forma ao cenário, enquanto Cristina

retira as figuras de madeira, cuidadosamente embrulhadas em papel

de seda. Bem, o velho caçador de diamantes já lá está.

— Qual é a figura que ponho a seguir? — pergunta ele, ao que

a avó responde:

Page 86: Histórias de Natal

188

— Peguem no negociante de gado com o boi.

— Eles também vão a Belém, ao Menino Jesus?

— O boi, vai. Quando o filho de Deus vier ao mundo, ele vai

lá estar com o burro e os outros animais.

— E qual é o papel do vendedor no meio de tudo isto? —

insiste Cristina. Os netos bem sabem que, para a avó contar algumas das histórias, tem de levar um empurrãozinho.

— Já vou contar. E vocês pegaram na figura certa? Ora

descreve-ma lá, Cristina.

— É de madeira, tem cabelos ruivos despenteados, e está

talhada com muita perfeição. Até se consegue ver cada pêlo do

bigode. É bastante gordo e tem um avental verde.

Satisfeita, a senhora acena a cabeça.

— É esse mesmo. Põe-no mais adiantado no caminho, mais

perto de Belém do que o cego, para o boi chegar a tempo.

— Estes dois também percorreram um longo caminho, como o cego e o guia?

— Oh, não! O vendedor vem de Jerusalém, onde tem um

negócio de gado. Negoceia com vitelos, carneiros e porcos e, quando calha, também com aves.

— Ah! Então é por isso que também há galinhas na caixa! —

exclama Cristina. — Ponho-as à volta dele?

— Tolinha! — responde-lhe a avó. — Primeiro, ele nunca as deixaria andar à solta, pois as galinhas não seguem uma pessoa, como

os cães. Depois, as galinhas pertencem à estalagem. Mais tarde hão-

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ideia, uma ideia pequenina. "Não experimentes", dissera-lhe a bola. E

se experimentasse? Foi o que fez.

Caiu, num susto, mas como era leve, inocente e frágil, uma

corrente de ar, vinda de uma porta aberta, algures, levou-a consigo.

Levou-a consigo e fê-la poisar, sem estrago, no fofo musgo.

— Olha, é a estrela da gruta — disse alguém que estava a armar o presépio.

E estrela do presépio ficou.

Donde estava, onde a puseram, via o presépio, os pastores, os reis magos, as lavadeiras com a trouxa à cabeça, as leiteiras com a

bilha à cinta, os vagabundos, o moleiro, o azeiteiro e todo o povo do

presépio e mais as pessoas de carne e osso, que vinham admirar aquela lindeza, sorrir para o Menino Jesus e olhar para a estrela,

suspensa do alto da gruta.

Estrela de oito pontas que era, a apontar em todas as direcções,

nem ela sabia para onde, brilhou imenso.

Brilhou o mais que pôde.

Para o ano, a estrela de prata já tem muito que contar à bola de

cristal.

António Torrado www.historiadodia.pt

Page 87: Histórias de Natal

83

O presente de Natal do Pequeno Anjo

Era uma vez – segundo a contagem do tempo dos homens, há

muitos, muitos anos, segundo o calendário do céu, há apenas um dia

– um anjinho triste, conhecido em todo o reino celestial por Pequeno Anjo.

O Pequeno Anjo tinha exactamente dez anos, seis meses, cinco

dias, sete horas e vinte e dois minutos quando chegou junto do venerável Guarda da Porta do Céu e pediu para entrar. Ali estava ele,

desafiador, as perninhas curtas teimosamente abertas, a fazer de

conta que não estava nada impressionado com todo aquele brilho

celestial. Mas o lábio superior tremia-lhe, traiçoeiro, e também não conseguia evitar que uma lágrima lhe rolasse pela cara, já

completamente vermelha do choro, e só fosse parar no nariz

sardento.

Mas isto ainda não era tudo. Claro que, como de costume, se

tinha esquecido do lenço de assoar, e quando o amável porteiro estava

a registar o nome no seu grande livro, o Pequeno Anjo fungou para

dentro tão alto… mas tão alto, que, com o susto, aconteceu ao bom porteiro o que nunca lhe tinha acontecido. Fez um grande borrão na

página limpa!

A partir daquele instante, a paz celeste ficou perturbada e o Pequeno Anjo tornou-se de imediato o terror de todos os habitantes

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-de ficar pousadas nas traves do estábulo a olhar para o presépio.

— E o negociante quer oferecer o seu boi ao menino Jesus — conclui Joaquim.

A avó começa a rir.

— Ele? Nunca! Não dá nada a ninguém, nem um grão de

milho. “A mim também nunca ninguém me dá nada!”, costuma ele dizer, e “Negócio é negócio!”. Só pensa no negócio. Nem sequer vai

reparar que, no estábulo, veio ao mundo o filho de Deus.

— Nesse caso, porque é que tem de estar aqui no presépio? — pergunta Cristina indignada.

— Tem de lá estar porque também há pessoas assim. Ele

pertence ao mundo onde Jesus vai nascer. Pessoas destas há-as sempre. E vós? Tendes a certeza de que, na noite de Natal, ides

pensar no menino Jesus, de que ides fazer alguma coisa por ele?

Cristina meneia a cabeça e diz, olhando de esguelha para o

irmão:

— De certeza que o Joaquim só vai pensar na bicicleta nova

que pediu.

— E tu? — sibila Joaquim em resposta. — Tu só pensas em vestidos chiques e nos teus discos.

A avó bate com o punho na mesa energicamente.

— Silêncio! Agora não se discute!

— Às suas ordens, senhor General!

— Vocês são uns tolinhos! Ouçam mas é o que o comerciante

vai fazer na noite de Natal, enquanto o boi aquece o menino com o

Page 88: Histórias de Natal

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seu bafo. Vai sentar-se na taberna mais próxima e esfregar as mãos,

porque conseguiu vender o boi ao estalajadeiro por bom preço. E como fez um bom negócio, vai festejar com uma aguardente.

— Só isso? — pergunta Cristina desiludida. Não consegue

imaginar que o vendedor vá desprezar um acontecimento que será

festejado durante séculos, por milhões de pessoas.

Mas a avó responde simplesmente:

— Só isso. Para ele, festejar alguma coisa é com aguardente. E

só festeja os bons negócios. Puseste-o no caminho, Cristina?

— Sim, embora ele não devesse lá estar.

— Claro que devia! Ele tanto pertence à festa de Natal como

tu e eu e as outras pessoas todas. Jesus não veio à terra só para alguns eleitos! Tira agora as próximas figuras da caixa, Cristina. Tem de ser

o grupo: avô, pai, mãe e dois filhos. Já os encontraste?

Claro que Cristina os encontra imediatamente. Um grupo

daqueles não passa despercebido. Mas o que é que eles estão a fazer em Belém, e logo um grupo?

— Vêm fazer o recenseamento que o imperador Augusto

ordenou por aquela altura. Por isso é que José e Maria também vêm a Belém, como está escrito na Bíblia: “Naqueles dias foi publicado um

decreto de César Augusto convocando toda a população do império

para recensear-se. Todos iam alistar-se, cada um à sua própria

cidade.” Esta família faz parte dessas pessoas.

— E o que lhes acontece em Belém? — perguntam as crianças.

A avó pensa um pouco e responde:

84

do céu. O seu assobiar estridente ouvia-se de tal forma pelos

caminhos de ouro que, de cada vez que o ouviam os profetas estremeciam sobressaltados e eram arrancados às suas contemplações.

E, nas aulas de canto do coro celestial, cantava tão alto e tão

desafinado, que as delicadas harmonias celestes eram destruídas.

Ainda por cima, por causa das suas perninhas curtas, chegava sempre atrasado para a oração da noite, e batia contra as asas dos outros

anjos ao tentar passar por entre as filas para se colocar no seu lugar.

Podia ter-se desculpado este mau comportamento, mas o aspecto exterior do Pequeno Anjo era totalmente imperdoável. A

princípio, os querubins e as serafinas apenas segredavam entre si, mas

depressa os anjos e os arcanjos começaram a dizer, em voz alta, que ele nem parecia um anjo. E tinham razão. A sua auréola estava cheia

de nódoas nos sítios onde ele a segurava com os dedos sujos, quando

corria. E, por acaso, andava sempre a correr.

Mas, mesmo quando parado, a auréola estava sempre torta ou então caía para o chão e rolava por uma das ruas de ouro, e o

Pequeno Anjo tinha de correr atrás dela. Sim, e também tem de se

dizer que as suas asas não eram bonitas nem úteis. Todos sustinham a respiração quando ele se colocava no rebordo de uma nuvem como

um pardal medroso que voa há pouco tempo e se prepara para voar.

Fechava então os olhos, apertava o nariz sardento com as duas mãos,

contava até três e atirava-se para o espaço de cabeça para baixo. E, porque se esquecia de pôr as asas em acção, um voo daqueles acabava

quase sempre com um acidente.

Todos viam que, mais cedo ou mais tarde, aquela situação

Page 89: Histórias de Natal

85

havia de levar a um castigo. E assim aconteceu. Num eterno dia, de

um eterno mês, de um eterno ano, ele foi chamado à presença do Anjo da Paz.

O Pequeno Anjo penteou-se com cuidado, escovou as asas

desgrenhadas e vestiu rapidamente um hábito quase limpo, e pôs-se a

caminho, apreensivo. Ao aproximar-se do Palácio da Justiça Celeste, ouvia já ao longe soar um cântico alegre. Voltou a polir rapidamente

a auréola na veste e entrou em bicos de pés.

O cantor, que no céu é conhecido por Anjo da Compreensão, olhou para baixo, na direcção do Pequeno Anjo, que fez

imediatamente uma tentativa frustrada para se tornar invisível,

enfiando a cabeça no colarinho da roupa, como uma tartaruga.

À vista disto, o Anjo da Compreensão não conseguiu manter-se

sério. Soltou um riso afável e quente, e disse:

— Então tu é que és o delinquente que pôs o céu nesta

agitação. Anda cá, querubinzinho, e conta-me lá o que se passa!

O Pequeno Anjo piscou primeiro um olho ao grande anjo,

depois o outro… e, de repente, sem ele próprio saber como, estava

sentado no colo a contar-lhe como era difícil para um rapazinho transformar-se, de repente, num anjo. E só se tinha balançado uma

vez na Porta Dourada… Está bem, duas vezes… Pronto, se calhar

foram três, mas só porque estava muito aborrecido.

E esse era também o grande problema: o Pequeno Anjo não tinha nada que fazer. E sentia saudades de casa. Não que no Paraíso

não fosse bom! Só que a terra também tinha sido boa, com as árvores

às quais se podia trepar, com os peixes na água, que se podiam

191

— Pode ser que tenham reparado na estrela por cima do

estábulo e perguntado o que significaria aquele sinal. De certeza que encontraram bom alojamento numa estalagem. No presépio é que não

ficaram, senão viria nas Sagradas Escrituras. Talvez venham a

compreender o que aconteceu no estábulo e cheguem a ver o filho de

Deus e nunca O esqueçam. Seja como for, vão a caminho de Belém. São pessoas prestáveis e boas, penso eu. Não têm aspecto de ser

ordeiras e trabalhadoras? Talvez estas pessoas deparem mais tarde

com o séquito sumptuoso dos três reis do Oriente. Ou, pelo menos, com os pastores que vêm dos campos.

E neste ponto a avó lembra-se da figura do pequeno pastor,

quase ainda uma criança.

— Deve ser uma figurinha quase de menino, Cristina. De

certeza que está na mesma caixa.

Quando Cristina o encontra, repara que já tem braços, pernas e

músculos fortes como os de um homem.

— Não admira — responde a senhora. — É do trabalho duro

por que teve de passar. Deve ter, no máximo, quinze anos e já tem de

lutar pela vida. Não tem pais, nem uma avó que o mime com chocolate e bolachas, nos domingos do Advento. Era um rapazinho

pobre e rude, sem lar, que não sabia quem eram os pais e com quem

ninguém se preocupava…

Joaquim abana a cabeça e diz:

— Isso é tão triste! Até parece uma história de jornal!

— Seu fala-barato! — critica-o a avó, um pouco zangada. —

Page 90: Histórias de Natal

192

Se não houvesse vidas destas na realidade, não viriam no jornal. Não

quer dizer que todas as coisas tristes tenham de vir nos jornais. Da maior parte delas ninguém fala, mas ainda hoje lá podes ler histórias

como a deste rapaz. Aos doze anos perdeu os pais; morreram um a

seguir ao outro numa epidemia que atingiu muitas pessoas. Ou terão

morrido numa guerra? Já não sei ao certo. A verdade é que, desde então, o rapaz passou a vaguear pelo país. Naquela altura ainda não

havia associações, como há hoje, que tentam ajudar estas crianças.

Aquele que acordaria as consciências para a dor do próximo, ainda não tinha nascido. Ah, e em algumas pessoas, ela ainda hoje está por

nascer. Precisa de tempo. A única solução era mendigar. Também

tentava uns trabalhos aqui e ali, junto dos lavradores e dos jardineiros, mas as pessoas aproveitavam-se do infeliz, matavam-no

com trabalho e como forma de pagamento nem sequer lhe davam

comida suficiente. Já se pode imaginar a ideia que ele foi formando

dos homens. Começou a odiá-los e o ódio é o sentimento que causa mais danos; torna uma pessoa má. Do ódio nascem pensamentos de

vingança. O rapaz começou a roubar e a fazer coisas ainda piores para

se vingar dos homens que se tinham aproveitado dele. Quando se deram conta, as pessoas ficaram muito zangadas e expulsaram-no; era

a solução mais fácil, e ele teve de continuar a vaguear sem destino.

Certo dia, chegou a uma cidade à beira-mar… Sim, pode ter sido isto

que aconteceu. Pela primeira vez na vida, estava a ver um porto com barcos grandes e maravilhosos que vinham de Nápoles e de Roma, da

Grécia, do Egipto, da Espanha e da Pérsia. E foi lá que ouviu dos

homens do mar contar histórias e relatos fantásticos, infelizmente nem sempre verdadeiros. Naquela altura, ele ainda não sabia que

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apanhar, com os lagos para se nadar, com o sol, a chuva e a argila

castanha, tão suave e quente sob os pés!

O Anjo da Compreensão sorriu compreensivamente, e em

seguida perguntou ao Pequeno Anjo o que é que no Paraíso o faria

mais feliz. Ele pensou e depois segredou-lhe ao ouvido:

— Em casa, debaixo da cama, está uma caixa. Se eu pudesse tê-la!

O Anjo da Compreensão assentiu com a cabeça.

— Vais tê-la — prometeu, e enviou de imediato um mensageiro do céu.

Nos dias intemporais que se seguiram, todos estavam

admirados com a notável mudança que se tinha operado no Pequeno Anjo. Era o anjo mais feliz de todos, e o seu comportamento e

aspecto exterior eram tão exemplares, que ninguém tinha nada a

criticar.

Certo dia, chegou a notícia de que Jesus, o Filho de Deus, iria nascer da Virgem Maria, em Belém.

Um regozijo geral encheu os ares e todos os anjos e arcanjos,

as serafinas e os querubins, o porteiro do céu e todos os demais habitantes do céu puseram os seus trabalhos quotidianos de parte

para prepararem presentes para o Filho de Deus.

Todos trabalhavam diligentemente, menos o Pequeno Anjo.

Sentado no alto da escada do céu, com a cabeça apoiada nas mãos, esperava por uma boa ideia para uma prenda adequada. Mas, por mais

que pensasse, não se lembrava de nada que fosse digno do Filho de

Page 91: Histórias de Natal

87

Deus.

O momento do grande milagre aproximava-se perigosamente, quando, de repente, lhe veio a ideia salvadora. No Dia dos Dias,

retirou do esconderijo, por detrás de uma nuvem, a sua caixa, e

pousou-a em frente do trono de Deus. Era apenas uma pequena caixa,

simples e já gasta, mas continha todas aquelas coisas maravilhosas que causariam prazer até ao Filho de Deus.

Lá estava agora a pequena caixa, simples e já gasta, no meio dos

valiosos presentes dos anjos do Paraíso, presentes de tal esplendor e beleza tão admirável, que o céu e o restante universo estavam

iluminados pelo seu simples reflexo.

Ao ver este esplendor, o Pequeno Anjo sentiu um grande desânimo, pois reconheceu que o seu presente não era digno.

Gostaria de o retirar, mas agora era tarde demais. A mão de Deus já

se movia por cima de todos os presentes, deteve-se, de repente,

baixou… e pousou sobre o pobre presente do Pequeno Anjo.

O Pequeno Anjo tremia ao ver abrir a sua caixa. Diante dos

olhos de Deus e dos outros habitantes do céu encontrava-se agora

aquilo que ele tinha oferecido ao Filho de Deus: uma folha vermelha que apanhara na floresta num dia de sol, um ovo de passarinho da cor

do céu, que tinha caído de uma oliveira, dois seixos brancos, que ele

encontrara na margem lodosa do rio, e um pedaço de couro

esfarrapado, que fora, noutros tempos, a coleira do seu fiel companheiro de quatro patas…

O Pequeno Anjo chorava lágrimas quentes e amargas. Como

pudera alguma vez pensar que coisas tão inúteis iriam agradar ao

193

muitas coisas são substancialmente mais bonitas em algumas cabeças

aventureiras do que na realidade. Só ouvia as fascinantes palavras das histórias encantadas. Não admira que o desejo de viajar num barco

para maravilhosas terras distantes se apoderasse dele de repente.

Talvez os homens fossem mais amáveis noutro sítio do que ali,

pensava ele. Talvez recebesse comida suficiente a bordo de um barco, sem antes ter de esfalfar-se a trabalhar até cair meio-morto.

“Talvez…” Sim, o que não se sonha quando se vê pela primeira vez

um porto cheio de navios. Mas para que serve um rapaz que não aprendeu a fazer nada? Não tem valor para ninguém e está disposto a

fazer qualquer tarefa, mesmo a mais baixa. Ninguém se preocupa

com ele, ninguém quer saber se tem fome, se dormiu o suficiente, se não leva carregos demasiado pesados para a idade. Quem é que pensa

nisso? Não interessa ao timoneiro nem ao capitão. Mas vocês ainda

estão a ouvir-me, meninos?

A avó não reparara que os dois quase haviam esquecido o presépio e já só a escutavam.

— Então o rapaz esteve num barco? — pergunta Joaquim.

— Certamente. Onde é que teria arranjado aqueles músculos? Nos velhos tempos, o trabalho a bordo era difícil. Com vento bom,

velejava-se. Içar e recolher velas num navio, era um trabalho colossal,

garanto-vos. Sei isso muito bem pelo meu avô. Era preciso ser-se

rápido, ágil e forte e estar-se atento dia e noite sem parar. Claro que punham o rapaz de vigia durante mais tempo e com mais frequência,

e era ele que tinha de subir ao mastro mais alto. Tudo piorava

durante a calmaria, quando as velas não serviam e o navio ficava

Page 92: Histórias de Natal

194

parado no mar tal como uma ilha! Em baixo, no porão do navio, os

escravos comprados ou roubados iam presos a correntes. Homens que, quem quer que fosse o dono, poderia fazer com eles o que

quisesse, porque tinha mais poder e força. E o que faz o capitão de

um navio durante uma calmaria? Manda os escravos remar. Imaginem

o que é remar num barco gigantesco, já de si pesado, e ainda por cima carregadíssimo. E da Palestina à Índia, se fosse preciso! Vocês bem

sabem que na altura ainda se contornava a África, dia após dia, noite

após noite, no calor abrasador e sufocante dos trópicos, sempre a respirar o ar viciado do interior do navio. Não admira que algumas

destas pobres almas sucumbissem. E quem tinha de ocupar o lugar

vago quando era preciso, quem tinha de mourejar como um escravo? O nosso órfão, claro.

— Se ele tivesse ficado em terra — suspira Cristina.

A avó acena que não, com a mão no ar.

— Tivesse! Tivesse! Se!... Depois é muito fácil falar. Mas, para vos sossegar, digo-vos que, depois de ter participado numa

viagem destas e o barco, ao fim de alguns meses, ter regressado à

pátria, ele foi o primeiro a abandoná-lo. Tinha tanta pressa, que nem esperou que pusessem um passadiço ou um escaler. Mal viu a costa

do seu país, passou a amurada com um salto desenfreado. Há

semanas que andava com medo que o dono do navio o acorrentasse

também a ele no porão. Não, saltou cinco metros para o fundo do mar e nadou para terra à força de braços.

Joaquim bateu na figura de madeira que representava o rapaz e

disse:

88

Filho de Deus?

Em pânico, voltou-se para fugir e esconder-se da cólera divina do Pai Celeste. Mas, de repente, tropeçou e caiu tão desajeitadamente

sobre uma nuvem, que foi a rolar até ao trono do Todo-Poderoso.

Reinava um silêncio paralisante na cidade celeste, um silêncio

onde só se ouviam os soluços dolorosos do Pequeno Anjo. Mas, de repente, elevou-se uma voz, a voz de Deus, que disse:

— De todas as oferendas, esta caixa é a que mais me agrada.

Ela contém coisas da terra e dos homens, e o Meu Filho nasceu para ser o rei de ambos. Por isso, aceito esta oferenda em nome do

Menino Jesus, que hoje nasceu de Maria, em Belém.

Seguiu-se um silêncio profundo e a caixa do Pequeno Anjo começou de repente a resplandecer com uma luz sobrenatural. O

brilho tornou-se tão claro e radioso, que cegou os olhos de todos os

anjos. Nenhum deles pôde, por isso, ver como este objecto

resplandecente se elevou do seu lugar em frente ao trono de Deus. Só o Pequeno Anjo viu como ele tomou o seu caminho pelo firmamento

e, como, transformado numa estrela resplandecente, parou sobre um

estábulo onde uma criança tinha nascido. Charles Tazewell

Anne Braun (org.) Weihnachtsgeschichten

Würzburg, Arena Verlag, 1991

Page 93: Histórias de Natal

89

Os três reis do Oriente

Gaspar

Naquele tempo, na cidade de Kalash, o príncipe Zukarta

instaurou o culto do bezerro de oiro.

A estátua poisava nas multidões submissas os seus olhos espantados, muito abertos, pintados de branco e de preto. No fundo

das suas pupilas aflorava quase uma interrogação, como se a extensão

do seu poder o surpreendesse. Era um jovem bezerro de pequenos cornos torcidos e pernas musculosas, de testa obtusa, curta e

franzida. As suas quatro patas, firmemente poisadas na terra, davam

uma grande impressão de firmeza e estabilidade que tranquilizava o

coração dos seus fiéis. E em todo o seu corpo brilhava o oiro, oiro compacto, duro, pesado, faiscante.

Em frente do ídolo as mulheres curvadas sacudiam sobre o

mármore claro dos degraus os sombrios cabelos quase azuis. Dos confins do deserto, dos longínquos oásis, das aldeias perdidas,

chegavam homens que depunham em frente do altar a sua oferta:

vinham oferecer oiro ao oiro. E os homens bons de Kalash, juízes e chefes guerreiros, desfilavam reverentes em frente do bezerro. Atrás

deles vinham os comerciantes, os vendedores, os oleiros, os tecelões.

Beijavam os degraus do altar e depunham no chão a sua oferta:

195

— E deve ter sido perseguido por algum tubarão que lhe

comeu um bocado.

— Porque é que dizes isso? — perguntou a avó admirada.

— Porque falta uma pontinha do pé esquerdo.

— Isso tanto pode ter sido um tubarão como o bicho da

madeira — respondeu a senhora.

— E o que é que lhe aconteceu depois? — pergunta Cristina.

— O que havia de ser? Entretanto, nem ele nem as pessoas da

sua pátria se tinham tornado melhores. E já tinha tido viagens pelo mar que chegassem. “Nunca mais!”, jurou a si próprio. “Prefiro

guardar porcos e enregelar até aos ossos, à noite, ao relento, do que

voltar a sentar-me no interior abrasador de um navio, preso a um remo de um metro de comprimento, tão grosso como um tronco de

árvore, ensanguentar as mãos e esgotar o coração a trabalhar”. E

pronto, podia recomeçar novamente com a vagabundagem. Na cidade

portuária não havia porcos para guardar. Num local daqueles, um esfomeado como ele só poderia ter maus pensamentos ao ver no cais

os armazéns cheios de comida: sacos com figos e cocos, cestos cheios

de tâmaras e bananas, montanhas de amendoins, laranjas e azeitonas, tudo coisas que os grandes navios tinham trazido da Índia e de

África. O rapaz foi novamente tentado a vingar-se outra vez dos

trabalhos forçados a bordo.

— Ele pensou em roubar! — adivinha Joaquim.

— Sim — anuiu a avó pensativa — quando um esfomeado

perdido tira, sem autorização, o excesso de outros, isso também é

Page 94: Histórias de Natal

196

roubar. Mas só podia roubar se, antes disso, eliminasse o guarda-

nocturno.

— Matá-lo? — exclama Cristina. — Matá-lo só por causa da

fome?

— Tu nunca tiveste fome a sério — diz Joaquim rudemente à

irmã.

— E tu, já? — pergunta ela ironicamente.

— Dai graças por isso — atalha a avó. — Quando a fome se

torna insuportável, quando a vida e a morte estão em jogo, isso pode tornar os homens maus. E o estômago do jovem já fazia tanto

barulho como um cão a rosnar. A fome tornava a cabeça dele

estranhamente vazia, de tal forma que se sentiu atordoado e teve de se acocorar durante algum tempo para ganhar forças. Os seus

pensamentos eram confusos e tão sombrios como a noite. E no

momento em que estava ali miseravelmente sentado no pó, deu-se

conta daquilo em que se tinha tornado e apercebeu-se de como a vida podia piorar se continuasse a viver como até ali. Não tinha também

aprendido a trabalhar? Com uns músculos daqueles ia tornar-se um

bandido? A meio da noite, só e ajoelhado no porto às escuras, escutava dentro de si e, de repente, sentiu nojo de si próprio porque

tinha querido matar um homem para ele sobreviver. Foi nesse

momento que decidiu partir para Belém. Levantou-se. Não queria

voltar a pensar nos armazéns cheios. Talvez tenha ficado ali de pé por um instante a pensar nisso. Um instante daqueles pode decidir uma

vida inteira, pode mudar um homem radicalmente — dependendo do

que o indivíduo decide. Nós temos este poder.

90

traziam oiro ao oiro. Até os sacerdotes da Lua e os seus fiéis e

acólitos se prostravam, de joelhos, com a cabeça tocando o solo, em frente do ídolo novo de Kalash.

Zukarta olhava todas estas coisas com grande alegria, pois o

culto do oiro era o fundamento do seu poder.

Raros eram aqueles que não acorriam ao templo, cada vez mais raros. Os muito pobres, os muito envergonhados, os muito

humilhados, não ousavam apresentar-se. Eles eram como uma raça à

parte, pois a pobreza era olhada como o estigma que marcava aqueles que o Bezerro não amava. No fundo das suas almas tão humilhadas

que mal ousavam pensar o seu próprio pensamento, os muito pobres,

os muito envergonhados esperavam outro deus.

Eles e Gaspar.

Uma delegação de homens importantes veio ao palácio de

Gaspar. E disseram:

— Porque não te apresentas no templo do Bezerro? Por acaso te falta oiro para a oferta? Que tens tu de comum com a ralé das

docas? Não estás por acaso vestido de púrpura e de linho como um

rei? Porque desafias o poder de Zukarta? Serás um traidor? No culto do Bezerro está a prosperidade e a grandeza de Kalash. Estarás

vendido aos nossos inimigos?

Gaspar respondeu:

— Não posso adorar o poder dos ídolos. O meu deus é outro e creio no seu advento, que a Terra e o Céu me anunciam.

Ouvindo esta resposta, os chefes das tribos e os homens bons

Page 95: Histórias de Natal

91

de Kalash disseram:

— Separamo-nos de ti porque te separaste de nós e renegaste os nossos caminhos. Não terás mais parte nas nossas assembleias.

Nem serás mais ouvido nos nossos conselhos, nem partilharás dos

nossos festejos e banquetes. E também não terás lugar na nossa força.

Os soldados não protegerão a tua casa nem as tuas caravanas. E serás presa fácil dos bandidos. Não receberás a protecção das nossas leis, e

os nossos juízes julgarão em sentença contra ti, e a tua razão será

como um punhado de cinza. Como a gente da ralé, não terás nem protecção nem defesa enquanto não te curvares perante o altar do

Bezerro para adorar os ídolos que nós adoramos.

E Gaspar respondeu:

— O meu deus é em mim como uma fonte que não pára de

correr e é em meu redor como o muro de uma fortaleza.

Então os notáveis de Kalash sacudiram a poeira dos seus

sapatos e saíram do palácio.

Depois desse dia, muitas calamidades se abateram sobre

Gaspar. Os bandidos assaltaram as suas caravanas e os ladrões

saquearam os seus palmares. Mãos misteriosas apedrejavam de noite a sua casa e na água das suas cisternas apareciam frutos podres e aves

mortas a boiar.

E começou o tempo da solidão.

Nos frescos pátios do palácio não penetraram mais os visitantes e a água correndo nos tanques deixou de acompanhar o leve

rumor das conversas. Os parentes e os amigos desapareceram como

197

— Mas o que é que ele fez depois? — pergunta Cristina. — O

que é que decidiu?

— Virou costas aos armazéns e saiu dali, seguindo pelas ruas

da cidade portuária, sempre, sempre na direcção do campo. Às portas

da cidade encontrou uma caravana que queria aproveitar o fresco da

noite para fazer a viagem pelo deserto. A seu pedido, levaram-no com eles, pois mais um menos um não faz diferença a uma caravana.

Quando descansavam, o rapaz tinha de dar de beber aos camelos e de

manter acesa a fogueira. Como paga, dividiam com ele as provisões de pão e água. Alguns dias mais tarde, chegaram ao destino e deixaram

de precisavar dele. Na despedida, recompensaram-no com três peças

de prata, pois sempre se mostrara prestável e queriam agradecer-lhe por isso e também ajudá-lo. Foi em Jerusalém que se despediu da

caravana e vai agora a caminho de Belém.

— Disseste que lá iria ser ajudado — lembrou Joaquim.

— No caminho qualquer um pode ser ajudado, filho. Mais uns passos e encontrará os pastores a guardar os rebanhos. Vão tomá-lo

como aprendiz e assim vai acabará a vagabundagem. E além do mais,

vai aprender uma profissão a sério.

— E na Noite de Natal — continua Cristina — vai ouvir,

juntamente com os pastores, o coro dos anjos e dirigir-se-á com eles

ao presépio.

— Talvez… — responde a avó e pergunta:

— Onde é que o colocaste?

— É o que vai mais adiantado no caminho.

Page 96: Histórias de Natal

198

— E é mesmo — diz a avó num tom como se por hoje tivesse

acabado a construção do presépio e as histórias.

Mas os irmãos ainda não terminaram. Por terem ficado tanto

tempo à escuta, não conseguiram trabalhar muito. No entanto

Cristina tem uma queixa a apresentar, e com razão.

— Até agora só contaste histórias com homens, avó, mas também há mulheres e meninas no meio das figuras. Aqui, por

exemplo, esta pequenita de cabelo preto comprido.

— Ah, sim, é a Hanneh — a senhora reconhece-a de imediato e começa a dar orientações aos netos. — Tens de a pôr antes de

Belém, longe da cidade, no meio da floresta.

— Ainda não acabei a floresta — anuncia Joaquim — mas se entretanto contares a história de Hanneh, de certeza que acabo.

— Vocês são muito espertos! — suspira a avó. — Conseguem

sempre dar-me a volta. Mas esta é mesmo a última história por hoje!

— Também já está a ficar escuro — diz Cristina — e de qualquer maneira temos de acabar em breve. Então o que é que se

passou com Hanneh?

— Quando Hanneh andava perdida pela floresta próxima de Belém, também já estava escuro — recomeça Anai novamente. —

Hanneh tinha-se perdido e estava com medo. Podiam aparecer lobos,

algum leão, ou até ladrões! De manhã, não tinha pensado nestas

coisas tão terríveis. De manhã apenas se sentira furiosa. A mãe acordara-a ao nascer do sol. “Hanneh, levanta-te! Depressa!” E logo

de manhã, que era quando ela mais gostava de dormir.

92

que devorados pela penumbra e todas as coisas pareciam envolvidas

em escândalo e terror.

Porém o tempo crescia.

E Gaspar escutava o crescer do tempo. A solidão criava em seu

redor um transparente espaço de limpidez onde os instantes

avançavam um por um e o universo inteiro parecia atento. O silêncio era como a mesma palavra inumeravelmente repetida.

E debruçado sobre o tempo, Gaspar pensava: «O que pode

crescer dentro do tempo senão a justiça?»

Ajoelhado no terraço, Gaspar olhava o céu da noite. Olhava a

alta e vasta abóbada nocturna, escura e luminosa, que

simultaneamente mostrava e escondia.

E disse:

— Senhor, como estás longe e oculto e presente! Oiço apenas

o ressoar do teu silêncio que avança para mim e a minha vida apenas

toca a franja límpida da tua ausência. Fito em meu redor a solenidade das coisas como quem tenta decifrar uma escrita difícil. Mas és tu

que me lês e me conheces. Faz que nada do meu ser se esconda.

Chama à tua claridade a totalidade do meu ser, para que o meu pensamento se torne transparente e possa escutar a palavra que desde

sempre me dizes.

Primeiro pareceu a Gaspar que a estrela era uma palavra, uma

palavra de repente dita na muda atenção do céu.

Mas depois o seu olhar habituou-se ao novo brilho e ele viu

que era uma estrela, uma nova estrela, semelhante às outras, mas um

Page 97: Histórias de Natal

93

pouco mais próxima e mais clara e que, muito devagar, deslizava para

o Ocidente.

E foi para seguir essa estrela que Gaspar abandonou o seu

palácio.

Melchior

A placa de barro tinha passado de geração em geração, de idade em idade, de mão em mão. Nela estava escrito que ao mundo seria

enviado um redentor e que uma estrela se ergueria no Oriente para

guiar aqueles que buscavam o seu reino.

A placa era um pequeno rectângulo de argila, enegrecido pelo tempo, de aspecto frágil, pobre e gasto. Era um prodígio que tivesse

atravessado, sem se perder, tantos séculos de ruínas e opulências,

saques, incêndios e guerras. Era um prodígio que tivesse podido atravessar, sem se perder, a ambição, a violência, a agitação e a

indiferença dos homens.

Estava ali, no palácio, alinhada ao lado de milhares de placas

que enumeravam vitórias, batalhas, massacres e riquezas.

Os seus caracteres estavam semi-apagados pelo tempo e a sua

escrita era tão antiga que se tornava difícil decifrá-la com exacto

rigor. Muitas leituras eram possíveis.

Por isso o rei Melchior convocou três assembleias de sábios

para que juntos averiguassem qual era a justa interpretação daquele

texto antiquíssimo.

Primeiro vieram os historiadores, aqueles que tinham

199

— Como a Cristina.

— Está calado, Joaquim! Por favor, avó, continua. Porque é que a mãe acorda Hanneh tão cedo?

— O irmãozinho havia adoecido durante a noite, dissera a

mãe, e Hanneh tinha de ir a correr à aldeia vizinha chamar o

curandeiro. “Ai, ai, ai”, pensava Hanneh. “É sempre o irmãozinho. Então e eu? Ele não há-de ter nada de grave.” Estava um pouco

zangada e levou mais tempo a vestir-se, por birra e ciúme. “Quando

estou doente”, pensava ela, “limitam-se a dizer: – Coragem! Isso passa depressa! – dão-me um chá horrível e acabei sempre por ficar

boa. Que dêem ao meu irmão desse chá horrível! Lá há-de parar com

a choradeira.” Hanneh não estava com pena nenhuma do pequenito, mas sim dela, que tivera de se levantar tão cedo. Também tomou de

propósito o pequeno-almoço tão devagar, que os pais, preocupados,

começaram a ralhar-lhe, o que só piorou a teimosia de Hanneh.

Então eles queriam que ela fizesse, tão de madrugada, aquele longo caminho e ainda por cima estavam a ralhar com ela? Queriam que ela

fosse à aldeia vizinha, a correr, de barriga vazia?

— Só mesmo uma rapariga — resmunga Joaquim. — Têm sempre de fazer teatro.

Cristina faz de conta que não ouviu a observação

despropositada, e a avó continua a contar, após um pequeno aceno de

cabeça:

— Quando finalmente Hanneh saiu de casa, estava tão furiosa

que decidiu vingar-se da repreensão dos pais. Queria fazer de

propósito um desvio para ficar mais tempo fora de casa. Assim os

Page 98: Histórias de Natal

200

pais também teriam de preocupar-se com a filha. Ela também existia,

não era só o irmãozinho, por quem todos tinham de acordar cedo! Hanneh queria fazer um desvio, meter medo aos pais… e o que

aconteceu com aquela palermice? Hanneh saiu do caminho e perdeu-

-se. Andou perdida durante todo o dia pelo leito dos rios, no meio de

prados secos e de arbustos espinhosos. O sol dava-lhe na cabeça e não havia sombras. A garganta de Hanneh ardia-lhe de sede, mas a menina

não encontrava água em parte alguma. A fome aparecerá também mas

com o que é que havia de a calar? No ar, por cima dela, planavam abutres, também eles com fome, e Hanneh sabia de que é que eles

estavam à espera.

— De Hanneh, talvez? — pergunta Cristina assustada.

— De quem é que havia de ser? — responde Joaquim,

conhecedor, como se todos os dias estivesse em contacto com

abutres.

— Quando começou a escurecer — prossegue a avó, imperturbável — Hanneh ainda estava no meio daquele deserto. A

cólera já tinha desaparecido e dera lugar a um medo horrível. Por

detrás de cada arbusto podia estar à espreita uma fera e, por detrás de cada rochedo, um ladrão. Também não deixava de pensar no

irmãozinho a chorar em casa. E se ele estivesse de facto gravemente

doente e precisasse de facto de socorro rápido? Talvez o pai,

entretanto, se tivesse posto a caminho da casa do curandeiro, talvez tivesse partido à procura de Hanneh. Chamou por ele, gritava como

um cordeirinho perdido, mas não recebia resposta. Ficou tonta com o

medo e deixou-se cair na areia. Hanneh não podia mais porque já não

94

aprendido toda a ciência das bibliotecas e que conheciam até ao

menor detalhe a escrita, a linguagem, os usos, os costumes, os anais e os códigos dos tempos idos.

A assembleia reuniu-se durante um mês no palácio do rei. Era

o meio do Verão e o calor poisava pesadamente sobre os terraços

cegos de sol. Nos jardins as palmeiras roçavam umas nas outras, com um rumor metálico, as suas folhas afiadas e duras como serras.

Ao cair das tardes os sábios sentavam-se em círculo no pátio

interior do palácio. Melchior presidia. Um fino murmúrio de água correndo nos tanques acompanhava os debates. Os escravos descalços

circulavam em silêncio servindo vinho de tâmara temperado com neve

das montanhas.

O círculo de homens sentados descrevia uma área vazia e no

centro dessa área tinha sido colocada uma mesa de pedra sobre a qual

estava poisada a placa de barro. Parecia extremamente pequena e

insignificante, no meio de tanto espaço e opulência, parecia um detrito das eras antigas que ali tinha sido abandonado pelo tempo.

Durante longos debates, durante trinta dias, os sábios

estudaram e examinaram meticulosamente cada linha dos caracteres antiquíssimos.

E ao trigésimo dia ergueu-se Negurat, arquivista-mor do

templo da Lua, e disse:

— Creio que a leitura que tu, ó rei, fizeste deste texto não é a verdadeira. Pois leste: «Ao mundo será enviado um redentor, e uma

estrela subirá no Oriente para guiar aqueles que buscam o seu reino.»

Mas verdadeiramente é outra a significação deste texto antigo: assim,

Page 99: Histórias de Natal

95

os caracteres onde leste «redentor» significavam, na remota era em

que foi gravada esta placa, não «redentor» mas sim «grande rei»; e os caracteres onde leste «será» e «subirá» não exprimem formas verbais

do futuro mas sim formas verbais do passado; e o verbo buscar não

está no presente mas sim no pretérito perfeito; e onde leste «para

guiar» deverá ser lido, de acordo com os métodos de decifração dos textos antigos, «guiando». Portanto, ó rei, ao contrário daquilo que

julgaste ler, este texto não se refere ao futuro mas sim ao passado, e

não anuncia o advento de nenhum salvador, mas antes glorifica as obras de um grande personagem dos tempos idos. Assim a leitura

correcta deste texto é, em minha opinião, a seguinte: «Ao mundo foi

enviado um grande rei que como uma estrela dominou o Oriente guiando aqueles que buscaram o seu reino.»

Quando Negurat acabou de falar, levantou-se Atmad,

arquivista-mor do palácio, e disse:

— Grande é a ciência de Negurat. Mas a interpretação da escrita antiga tem terríveis dificuldades. Não há dúvida que no texto

apresentado devemos ler «grande rei» e não «redentor». No entanto,

não concordo com aquilo que diz respeito às formas verbais: creio que o verbo ser e o verbo subir se encontram realmente no futuro. E

também discordo da forma como foram lidas as palavras «guiar»,

«buscam» e «reino». E penso ainda que o verbo «subir» tem aqui o

sentido de «dominar». De forma que, na minha opinião, a leitura correcta do texto é esta: «Ao mundo será enviado um grande rei que

como uma estrela dominará o Oriente para engrandecer aqueles

povos que aceitarem o seu poder.» Pois esta inscrição é de facto uma

201

tinha esperança de alguma vez sair daquele lugar desértico. De

certeza que iria aparecer imediatamente um animal selvagem para a comer, como castigo pela sua impertinência. Se encontrasse o

caminho para Belém, o caminho para casa, para junto do pai e da mãe

e do pobre irmãozinho!

Em grande aflição lembrou-se que o pai lhe dissera uma vez que, de noite, era possível encontrar o caminho a partir das estrelas.

Muito bonito, mas como? “Talvez”, pensava ela, “as estrelas

estendam o dedo, ou algumas setas, ou outro sinal qualquer”. E Hanneh olhou para o céu, à procura. Ficou sem respiração. Nunca

vira nada de tão maravilhoso brilhar assim! Longe, no céu, à sua

frente, estava uma estrela grande e brilhante com um feixe de raios cintilantes a formar uma cauda.

Hanneh levantou-se. Não olhava onde punha os pés. Só queria

ver a estrela. Não a perdia de vista e seguiu-a. Não era preciso ser-se

Mago do Oriente para perceber que uma estrela daquelas indicava um caminho. Para cada um, um caminho diferente. Nós sabemos qual o

da menina, pois a estrela maravilhosa estava sobre Belém. Hanneh

encontrou o caminho para casa, a corta-mato pelos campos e terrenos selvagens. Estava tão contente por regressar a casa que nem tinha

medo da eventualidade de ser castigada pelos pais. Não podia

esconder-lhes que ela, que conhecia tão bem o caminho para casa do

curandeiro, andara, por maldade, a correr pelo deserto. Hanneh só temia por uma coisa: pelo irmãozinho.

Mal entrou em casa, encontrou o pequenito a dormir

calmamente e os pais em aflição pela sua menina perdida. Felizes,

Page 100: Histórias de Natal

202

tomaram a filha nos braços sem lhe ralharem. E, admirados,

deixaram-se conduzir por ela outra vez para fora de casa, para verem a estrela maravilhosa que pairava acima deles e que Hanneh queria

mostrar-lhes. Quanto não se tinham preocupado uns pelos outros

naquele dia! E tanto os pais como Hanneh tinham aprendido algo de

importante: era preciso ter mais amor e compreensão uns pelos outros. Mas a noite trazia-lhes finalmente paz.

A avó está muito cansada de tanto contar e reclina-se

confortavelmente na sua cadeira.

— Em que ponto é que estão? — pergunta.

Joaquim acabou o deserto. Cristina ainda tem na mão a menina

e olha para ela pensativamente.

— Por hoje conseguimos fazer tudo — responde. — Só não

sei agora onde pôr Hanneh.

— Antes de Belém, no deserto, como disse há pouco, meninos,

pois na Noite de Natal ela ainda vai a caminho. Só mais tarde é que chegará a casa.

Cristina coloca obedientemente a menina no ermo artificial tão

bem preparado por Joaquim.

— Ainda faltam três domingos — suspira, feliz. — Tantas

figuras ainda… e o mesmo número de histórias!

— Vendo bem — afirma Joaquim — ainda vão todos a

caminho, tanto o cego com o rapaz, como Hanneh e o negociante de gado, o órfão e a família, os pastores e os reis.

— Foi assim na altura — responde a avó — e assim é hoje em

96

profecia, mas uma profecia que já foi cumprida. É evidente que o

grande rei é o grande Alexandre que dominou todo o Oriente até ao reino de Pórus e que morreu, como sabeis, em Babilónia.

E quando Atmad acabou de falar, levantou-se o velho sábio

Akki, que disse:

— Admirei as sapientes palavras que ouvi. Mas na verdade a leitura deste antiquíssimo texto levanta tantas dúvidas e são tantas as

interpretações que podemos propor, que verdadeiramente, ó rei, nada

podemos concluir. Então levantou-se Melchior e disse:

— Ide em paz e continuai os vossos estudos. Eu continuarei a

perguntar, a escutar e a esperar.

E no mês seguinte reuniu-se no palácio real a assembleia dos letrados.

Melchior propôs-lhes as dúvidas e as interpretações dos

historiadores e durante trinta dias os letrados estudaram o texto.

E no trigésimo dia, ao cair da tarde, estando todos sentados em círculo e estando no meio do círculo a mesa de pedra sobre a qual

estava poisada a placa de barro, levantou-se Ken-Hur e disse:

— A poesia não se exprime directamente. Ora o texto que temos em nossa frente é um poema e por isso mesmo deve ser

tomado como uma metáfora que não se refere nem ao passado nem

ao presente nem ao futuro do mundo em que vivemos, mas só ao

mundo interior do poeta, que é o mundo da poesia sempre voltado para o devir e para a esperança. Este texto não fala de factos reais e

apenas simboliza o espírito criador do homem.

Page 101: Histórias de Natal

97

Falou em seguida Amer, que disse:

— Este texto é um poema e coloca-se por isso à margem do vivido. O poema não se refere àquilo que é, mas sim àquilo que não é.

Pois a natureza é uma caixa cheia de coisas da qual o poeta extrai

uma coisa que lá não está.

E levantou-se depois o irmão de Amer, que disse:

— Num poema não devemos buscar sentido, pois o poema é

ele próprio o seu próprio sentido. Assim o sentido de uma rosa é

apenas essa própria rosa. Um poema é um justo acordo de palavras, um equilíbrio de sílabas, um peso denso, o esplendor da linguagem,

um tecido compacto e sem falha que apenas fala de si próprio e,

como um círculo, define o seu próprio espaço e nele nenhuma coisa mais pode habitar. O poema não significa, o poema cria.

E tendo terminado o debate, levantou-se Melchior, que disse:

— Eu vos agradeço as vossas palavras. Por mim continuarei a

buscar, a escutar e a esperar.

Então retiraram-se os letrados e o rei ficou sozinho no pátio,

em frente da placa de barro, escutando o correr da água e o cair da

noite.

E no mês seguinte reuniram-se no palácio os homens sapientes.

Melchior propôs-lhes as dúvidas dos historiadores e dos letrados e a

nova assembleia deliberou durante trinta dias.

E no trigésimo dia levantou-se Kish, que disse:

— As multidões ignorantes curvam-se em frente dos ídolos,

mas aqueles que meditam conhecem a solidão do universo. Que

203

dia. Há sempre alguém a caminho do presépio. Também nós e

muitos daqueles que conhecemos seguimos por este caminho em direcção à estrebaria de Belém.

Eva Rechlin Der Weihnachtsweg

Wuppertal, Johannes Kiefel Verlag, 1970

Page 102: Histórias de Natal

98

redentor poderemos esperar? O universo é como uma máquina bem

regulada que sem princípio nem fim gira lentamente através das idades e dos ciclos. Nas constelações e nas luas, nos triângulos e nos

círculos, encontrarás as leis dos números que se cumprem e se

cumprirão inexoravelmente. Que redenção poderemos esperar?

E falou depois Maro, que disse:

— Os deuses que existiram extinguiram-se há muito, e aquilo

que adoramos é apenas a cinza do divino. Qual é, na idade em que

vivemos, o homem que viu um anjo? Onde está aquele que ouviu, com os seus ouvidos de carne, a palavra de Ísis ou de Assur? Vivemos

um tempo de viuvez e todas as coisas se tornaram cegas e surdas.

Num mundo de injustiça e de desordem tentamos sobreviver como animais perseguidos. Quebrou-se o laço que nos ligava ao universo

atento. Podemos bater com os punhos na terra, podemos implorar

com a cabeça tocando a poeira. Ninguém responderá. Cegou o olhar

que nos via e o ouvido que nos escutava secou. Tudo nos é alheio como um lugar que não nos reconhece. E o brilho dos astros

impassíveis cintila sobre a nossa tristeza. Quem pode esperar que

uma estrela se mova?

Falou em seguida Tot, e disse:

— Nascemos para morrer. Toda a nossa esperança se resolverá

em cinza. Onde está o homem que não morreu? O próprio

Alexandre, filho de Ámon, que estabeleceu o seu Império desde o Egipto até ao reino de Pórus, morreu miseravelmente nos palácios da

Babilónia. E no entanto a sua radiosa juventude parecia mostrar a

natureza de um Deus, e era tão grande a sua perfeição que ninguém

Page 103: Histórias de Natal

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podia julgá-la mortal. Quem poderia acreditar que morresse o seu

corpo equilibrado e liso como uma coluna, a sua inteligência aguda e limpa como o sol, o seu olhar direito que simplificava todas as coisas,

o seu rosto brilhante como um estandarte e a sua alegria invencível?

Alexandre, príncipe da Macedónia, filho de Ámon, maravilhamento

dos povos, conduziu o destino do homem a seus últimos limites, de tal forma que nele todos julgaram que a natureza humana tinha

conquistado o divino. Mas Alexandre morreu no trigésimo terceiro

ano da sua vida, no cimo da sua força e da sua glória, em pleno esplendor da sua juventude. E assim os deuses nos disseram que o

homem não pode ultrapassar o seu destino, e que o seu destino é um

destino para a morte. Por isso, ó rei, que poderemos esperar? Nada pode modificar a condição do homem e nesta condição não há lugar

para a esperança.

Quando os pensadores se retiraram, Melchior levantou-se do

trono e avançou até à mesa de pedra. Entre as grandes colunas que rodeavam o pátio, a placa de argila parecia extraordinariamente frágil

e pequena. Mas o rei tocou com a sua fronte as letras quase apagadas.

Nessa noite, depois da Lua ter desaparecido atrás das montanhas, Melchior subiu ao terraço e viu que havia no céu, a

Oriente, uma nova estrela.

A cidade dormia, escura e silenciosa, enrolada em ruelas e

confusas escadas. Na grande avenida dos templos já ninguém caminhava. Só de longe em longe se ouvia, vindo das muralhas, o

grito de ronda dos soldados.

E sobre o mundo do sono, sobre a sombra intrincada dos

205

Índice

Os Magos que não chegaram a Belém ............................................ 1

“Não é possível!”, pensou o Pai Natal ........................................... 9

Bolo-rei ........................................................................................... 15

A manhã do dia de Natal ............................................................... 19

A batalha de Natal.......................................................................... 23

O Viajante ...................................................................................... 29

Um gato debaixo do pinheiro de Natal........................................ 37

O Pinheirinho ................................................................................ 41

A filhó dourada .............................................................................. 51

O cesto de Natal da tia Cyrilla ..................................................... 55

O Tomás, que não acreditava no Pai Natal ................................ 69

A menina dos fósforos................................................................... 77

A estrela de prata............................................................................ 81

O presente de Natal do Pequeno Anjo ........................................ 83

Os três reis do Oriente.................................................................. 89

A boneca........................................................................................107

O primeiro Natal do pardalito....................................................113

Noite de Natal .............................................................................117

O bolo-rei .....................................................................................135

O Natal das bonecas ....................................................................137

David e a estrela ...........................................................................145

Page 104: Histórias de Natal

206

Uma estrela................................................................................... 149

Lídia .............................................................................................. 157

Sei um ninho ................................................................................ 165

A esperança brilha como um diamante....................................... 169

O caminho para Belém................................................................. 177

* A maioria dos textos desta antologia foi adaptada do original.

100

sonhos onde os homens se perdiam tacteando, como num labirinto

espesso, húmido e movediço, a estrela acendia, jovem, trémula e deslumbrada, a sua alegria.

E Melchior deixou o seu palácio nessa noite.

Baltasar

O rei Baltasar amava a frescura dos jardins e sorria ao ver na água clara dos tanques o reflexo da sua cara cor de ébano.

E amava a alegria, o rumor e a abundância dos banquetes, e

muitas vezes as suas festas duravam até ao romper do dia.

Porém, certa madrugada, depois de se terem retirado todos os convivas, o rei ficou na grande sala, sozinho com um jovem escravo

que tocava flauta.

E pareceu-lhe que a melodia desenhava no ar o contorno de um espaço vazio.

Então o seu coração ficou pesado de tristeza, e Baltasar

pensou: «Será possível que um dia eu me retire da vida como um

conviva saciado que se retira de um banquete? Ou terei sempre a mesma sede, a mesma fome, o mesmo desejo dos momentos e dos

dias?»

E tendo pensado isto atravessou a porta da sala e saiu para o jardim.

Cá fora, na luz indecisa da antemanhã, o jardim parecia

suspenso. A bruma confundia o desenho claro dos tanques e diluía no ar o contorno das ramagens.

Page 105: Histórias de Natal

101

Baltasar caminhou longamente entre flores e palmeiras até

romper o Sol. E quando já era dia chegou a um pequeno terraço que ficava no extremo do jardim. Debruçou-se no parapeito e viu, do

outro lado da rua estreita, um homem jovem, encostado a uma

parede, que o olhava.

Baltasar ficou imóvel, como se o rosto do outro lhe tivesse batido na cara. Ou como se o rosto do outro de repente fosse o seu

rosto. Ou como se pela primeira vez na sua vida tivesse visto a cara

de outro homem.

O que naquele rosto mais o surpreendia era a nudez, a

evidência nua. Era como se naquele rosto o cerimonial da vida tivesse

retirado a sua máscara e a realidade mostrasse, sem nenhum véu, o abandono, a dor consciente, a condição do homem.

Era um rosto de homem jovem e magro onde os ossos

desenhavam, sem nenhum equívoco, o ideograma da fome. A tristeza

subia da mais profunda morada da memória e aflorava inteira à tona das pupilas. A paciência, como uma leve cinza, poisava na testa, sobre

os beiços, sobre os ombros. E havia nessa paciência uma doçura tal

que Baltasar sentiu de súbito uma vontade aguda de chorar e de se prostrar com a sua própria cara encostada à terra.

E perguntou:

— Tu, quem és?

— Tenho fome — murmurou o homem.

— Entra — disse Baltasar. — Vou mandar que te sirvam os

melhores frutos, as melhores carnes, os melhores vinhos. Vou

Page 106: Histórias de Natal

102

mandar que lavem os teus pés com água perfumada numa bacia de

ouro. Vou mandar que te vistam de púrpura. Vou mandar aos meus músicos que toquem para te aprazer as mais belas melodias. Vou

mandar vir para ti a tocadora de cítara. Eu próprio colocarei debaixo

dos teus pés o tapete mais precioso, e ficarei sentado ao teu lado para

desfazer a tua solidão, e escutarei as tuas palavras para que possas tomar parte na alegria e para que as fontes e os jardins do palácio

apaguem a tua tristeza.

Porém o homem, ouvindo estas palavras, assustou-se. No rosto negro, debruçado na luz branca do terraço, reconheceu com terror o

rosto do rei. E pensou:

«Ai de mim! Para que me chama o rei? Vim espreitar o seu palácio e isto sem dúvida é um crime. É melhor que eu fuja antes que

os guardas cheguem.»

Pois aquele homem, como todos os muito pobres, sabia que o

mundo era governado por leis que o perseguiam e condenavam, e por isso temia a cada instante ser acusado e preso por uma razão

desconhecida. Caminhava num país que não era o seu e onde tudo era

para ele insegurança e temor.

E por isso fugiu, sumiu-se ofegante entre as curvas da ruela

estreita, sem ver o gesto de Baltasar que o chamava.

E no palácio o rei disse aos seus guardas:

— Ide e procurai nas ruas um homem jovem magro, vestido de farrapos e que tem os olhos cheios de tristeza e de paciência.

Porém, ao cair da tarde, os guardas voltaram e disseram: