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Histórica – Revista Eletrônica do Arquivo Público do Estado de São Paulo, nº 50, out. 2011

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IMPRENSA PROTESTANTE E IMIGRAÇÃO:

A distribuição de textos religiosos aos imigrantes no Brasil (1850-1930)

Micheline Reinaux de Vasconcelos1

Resumo: O artigo aborda a impressão e distribuição de impressos religiosos aos imigrantes no Brasil, prática adotada e promovida por instituições e agentes protestantes (missionários, colportores e membros de várias denominações) desde meados do século XIX até os anos 1930. Enfatiza-se a relevância que tais impressos tiveram nas estratégias daqueles agentes ao buscarem fortalecer ou promover uma cultura protestante entre os imigrantes, que vinham viver em um país predominantemente católico. Palavras-chave: Impressos. Religião. Imigração. Abstract: The article approaches printing and supplying of religious printed papers to immigrants in Brazil, what it was practiced and fostered by protestant agents and institutions (missionaries, colporteurs and members of several denominations), since middle 19th century up to 1930s. It is stressed the relevance of such printed papers in those agent’s strategies in search of upholding or furthering a protestant culture among the immigrants, which came to live in a overwhelmingly catholic predominant country. Keywords: Printed papers. Religion. Immigration.

A relação entre a atuação protestante e o recurso à imprensa precede a presença dos

missionários no Brasil, uma vez que tem sido enfatizada desde que os primeiros reformadores

começaram a ter êxito na Europa2. Não obstante, o papel da imprensa nos primórdios da

Reforma Protestante tem sido relativizado pela historiografia mais recente3, que aponta que a

relação entre uma e outra não era tão simples nem imediata, dado que, de início, a maior

relevância dos impressos deveu-se à “guerra de panfletos”4, ajudando a difundir as novas ideias

1 Graduada em História pela UFPE. Mestre e Doutora pelo Programa de Estudos de Pós-Graduados em História da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). 2 Em Wittenberg, a fundação de uma universidade havia favorecido o surgimento de uma tipografia, a qual permitiu a Lutero publicar em 1517 suas 95 teses. De acordo com Martin Dreher a “imprensa não cansava de reimprimir seus escritos [Lutero], que eram divulgados em diversos países”. Ainda segundo o autor, “houve época em que três impressoras editavam simultaneamente seus livros, tantos eram os títulos que produzia, polemizando com seus adversários, publicando tratados teológicos ou textos de edificação”. Cf. DREHER, Martin N. A Crise e a Renovação da Igreja no Período da Reforma. São Leopoldo: Sinodal, 1996. p. 31. Por outro lado, no ano 1535, Calvino edita as Institutas, sua principal obra sobre teologia, dedicada aos leigos. Já em 1539 sai uma segunda edição desta obra, que foi traduzida para o francês em 1541, pois havia sido escrita em latim. Calvino também contou em Genebra, assim como Lutero em Wittenberg, com o auxilio de vários tipógrafos dispostos a publicarem seus textos. Ibidem, p. 95-97. 3 GILMONT, Jean-François. Reformas protestantes e leitura. In: CAVALLO, Guglielmo; CHARTIER, Roger. (Org.). História da Leitura no Mundo Ocidental. v. 2. São Paulo: Ática, 1999; CHARTIER, Roger. As práticas da escrita. In: CHARTIER, R. (Org.). História da Vida Privada. v. 3: Do Renascimento ao Século das Luzes. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. p. 113-161. 4 GILMONT, Jean-François. Reformas protestantes e leitura. In: CAVALLO, Guglielmo; CHARTIER, Roger. (Org.). História da Leitura no Mundo Ocidental. v. 2. São Paulo: Ática, 1999. p. 49.

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por meio da publicação dos escritos de seus primeiros líderes5. Em todo o caso, a relação entre

protestantismo e imprensa tornou-se tão peculiar que “no decurso de algumas gerações, o

abismo entre protestantes e católicos havia se ampliado a ponto de gerar culturas literárias e

modos de vida contrastantes.”6

Compreende-se, assim, que as tentativas de propagação do protestantismo estiveram

normalmente relacionadas com as atividades de imprensa7, o que também pôde ser observado

no Brasil, onde as publicações religiosas foram largamente usadas como uma forma de

proselitismo junto à população local, à qual os missionários se dirigiam de forma abrangente,

mas também como parte de sua atuação em relação aos imigrantes.

Desse modo, o objetivo deste artigo é demonstrar que as publicações denominacionais,

assim como foram parte constitutiva de uma cultura impressa protestante, permearam as

tentativas dos missionários e outros religiosos de formar e consolidar essa cultura entre os

grupos de imigrantes protestantes no país8.

Pode-se entender a cultura na acepção que Raymond Williams procurou construir, ou

seja, a que engloba, num único domínio, a totalidade da experiência social, ou nas palavras do

autor, “trata-se de um conjunto de práticas e de experiências que envolvem a vida toda: nossos

significados, [...], nossas percepções formadoras da subjetividade e de visão de mundo”9.

Williams pretende não lidar com a cultura ou, em seu sentido mais restrito, com as produções

culturais, como um campo à parte da sociedade. É na convergência de dois sentidos

consagrados na tradição de estudos sobre cultura que ele se situa: de um lado, cultura como

“‘modo de vida’ global, distinto, dentro do qual percebe-se, hoje, um ‘sistema de significações’

bem definido não só como essencial, mas como essencialmente envolvido em” todas “as

formas de atividade social”; de outro, “o sentido mais especializado, [...], de cultura como

‘atividades artísticas e intelectuais’ [...] não apenas as artes e as formas de produção intelectual

tradicionais, mas também todas as práticas significativas [...].”10

É nesse sentido, portanto, de superação da dicotomia cultura/sociedade (ou

5 FEBVRE, Lucien; MARTIN, Henry-Jean. O Aparecimento do Livro. São Paulo: UNESP; Hucitec, 1992. p. 283. 6 EISENSTEIN, Elizabeth L. A Revolução da Cultura Impressa. Os primórdios da Europa Moderna. São Paulo: Ática, 1998. p. 174. 7 Na Nova Inglaterra, a primeira tipografia surge no ano de 1638, como iniciativa de um pastor protestante. Ela ficava localizada próximo a um colégio em Cambridge; desse modo, suas publicações eram principalmente voltadas para essa instituição de ensino. No entanto, também publicaram almanaques, catecismos, uma tradução dos Salmos e uma Bíblia em língua indígena. FEBVRE, Lucien; MARTIN, Henry-Jean. O Aparecimento do Livro. São Paulo: UNESP; Hucitec, 1992. p. 305-306. 8 Abordei a imprensa e os impressos protestantes no Brasil de forma mais ampla em minha tese de doutorado, na qual argumentei que tais impressos foram parte da constituição de uma cultura protestante no Brasil. VASCONCELOS, Micheline Reinaux de. As Boas Novas pela palavra impressa: impressos e imprensa protestante no Brasil (1837-1930). Tese (Doutorado em História)– PUC, São Paulo, 2010. 9 WILLIAMS, Raymond. Marxismo y Literatura. Madrid: Península, 1980. p. 131-2. 10 WILLIAMS, Raymond. Cultura. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. p. 13.

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artes/sociedade) que o autor fala que a “cultura” é “ordinária”, isto é, uma “cultura comum”,

presente nas várias práticas da “esfera da vida cotidiana”11. Dessa forma, pode-se argumentar

pela definição de cultura ou culturas “como expressão de todas as dimensões da vida, incluindo

valores, sentimentos, emoções, hábitos, costumes e, portanto, associada a diferentes

realidades”12. Assim, o constituir-se de uma cultura impressa protestante é perceptível no

recurso à imprensa pelos grupos protestantes quando se tem em conta que a imprensa “é uma

prática social constituinte da realidade social, que modela formas de pensar e agir, define

papéis sociais, generaliza posições e interpretações que pretendem compartilhadas e

universais.”13

Desde os primórdios de sua atuação, os protestantes utilizam os impressos com vistas à

formação dos grupos denominacionais14, na difusão de sua crença e de suas ideias, como

recurso pedagógico ou, ainda, nos embates com os grupos que consideravam como opositores.

No entanto, como o uso de “culturas” ao invés de “cultura” indica, a própria diversidade das

práticas e das experiências aparece como um obstáculo à busca pela homogeneidade, ou seja,

de fazer das “culturas” uma “cultura”.

No período em que iniciamos a abordagem da história dessa imprensa protestante no

território nacional, o catolicismo romano ainda era, como se sabe, a religião oficial no Brasil.

Não obstante, lançando mão de algumas liberdades que as relações entre a Grã-Bretanha e o

Brasil proporcionavam aos súditos britânicos, os missionários puderam iniciar sua atividade de

proselitismo ainda no século XIX. Essa atividade tinha que lidar, no entanto, com a própria

tradição católica da sociedade e os obstáculos legais decorrentes dela, tais como as limitações

aos direitos civis dos residentes não-católicos, como direito ao casamento e sepultamento em

igrejas e cemitérios acatólicos, bem como, consequentemente, ao registro dos filhos de

pessoas de outra religião. Sendo assim, os protestantes tiveram que disputar, desde o início, o

espaço religioso do país com a religião majoritária.

No entanto, além de visar a conversão de brasileiros ao protestantismo, os missionários

voltaram-se também aos imigrantes que passaram a desembarcar no Brasil depois de meados

11 CEVASCO, Maria Elisa. Para ler Raymond Williams. São Paulo: Paz e Terra, 2001. p. 47, 51 e 55. 12 FENELON, D.; CRUZ, H. de F.; PEIXOTO, M. do. R. C. Introdução. Muitas memórias, outras histórias. In: FENELON, Déa Ribeiro et all. (Org.). Muitas memórias, outras histórias. São Paulo: Olho d’Água, 2004. p. 9. 13 MACIEL, Laura Antunes. Produzindo notícias e histórias: algumas questões em torno da relação telégrafo e imprensa – 1880/1920. In: FENELON, Déa Ribeiro et all. (Org.). Muitas memórias, outras histórias. São Paulo: Olho d’Água, 2004. p. 15. 14 O termo “denominação” será empregado aqui segundo Israel B. de Azevedo, para quem esse termo é a forma específica e histórica que uma igreja toma. No interior do cristianismo, as denominações podem ser vistas como conjuntos de tradições seguidas por igrejas. A seita do século XVII inglês torna-se a partir do século XIX norte-americano uma denominação, que pode ser caracterizada pela tomada de posse dos valores cristãos como se lhes fossem exclusivos. AZEVEDO, Israel B. de. A Celebração do indivíduo: a formação do pensamento batista brasileiro. Piracicaba, SP: UNIMEP, 1996. p. 18.

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do século XIX e, crescentemente, em fins deste mesmo século. Um dos pioneiros da

missionação, durante sua estadia em São Paulo, afirmou ter encontrado a “presença de tantos

protestantes ingleses e alemães, e o sentimento a favor da colonização”. Por isso, dispunha-se

a, caso não fosse possível iniciar o proselitismo junto aos brasileiros, procurar “os alemães para

abrir caminho por meio deles”15. A pluralidade de nacionalidades e de idiomas na São Paulo

oitocentista, mesmo antes do grande fluxo imigratório de fins do século XIX, refletia-se na

primeira igreja presbiteriana organizada pelos missionários em 1865: compunha-se de 18

pessoas, entre as quais um inglês, um suíço, um alemão e cinco norte-americanos16. Diante

dessa babel, fazia-se necessária a multiplicidade de idiomas que se verifica nas publicações

produzidas e/ou distribuídas pelos protestantes.

A intenção de prover aos imigrantes leituras afins com sua confissão ou para intentar a

sua conversão depreende-se da existência e distribuição no Brasil de títulos como El Sendero

Perdido pela Sociedade Americana de Tratados; Las Cartas de Pablo á los gálatas, efesios,

filipenses, colosenses, tesalonicenses, Timoteo, Tito y Filemon – editados em espanhol pela

tipografia Las Buenas Nuevas de Los Angeles; Il Camino Perduto, Che Credono i protestanti? e

Il Ritratto de Maria in Cielo17 – publicados pela Società dei Tratatti Religiosi de Nova York –, que

revelam a preocupação de atingir os imigrantes que chegavam ao Brasil.

Esse aspecto denota um significativo paralelo com a pequena imprensa secular, uma

vez que a presença de milhares de imigrantes no estado de São Paulo refletiu-se, igualmente,

no perfil da imprensa operária da capital paulista. Muitos periódicos operários se tornaram

bilíngues a partir do fim do século XIX, enquanto outros, originalmente editados em português,

vieram a circular em alemão, espanhol e italiano18. Isso também se confirma em relação a

outros segmentos da pequena imprensa, pois, segundo afirma Heloisa de F. Cruz, no final do

século XIX a imprensa paulistana “assume um caráter plurilingüístico, [...] inúmeras publicações

são editadas em italiano, espanhol, alemão, francês e sírio”19. Provavelmente, os missionários

viram naqueles grupos uma oportunidade de evangelização, porém sabiam que suas

publicações em português não os atingiriam. Entende-se, portanto, as edições em seus idiomas

pátrios. Apenas entre 1850 e 1890 desembarcaram no território brasileiro quase 2,5 milhões de

imigrantes e, nas quatro décadas seguintes, pouco mais de 3 milhões.

15 SIMONTON, Ashbel Green. O diário de Simonton: 1852-1866. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Cultura Cristã, 2002. p. 144. 16 DREHER, Martin. (Org.). Imigrações e História da Igreja no Brasil. Aparecida, SP: CEHILA; Santuário, 1993. p. 141. Os demais membros eram portugueses (sete deles) e brasileiros. 17 Centro de Documentação e História Rev. Vicente Themudo Lessa. Coleção Folhetos Evangélicos. 18 FERREIRA, Maria Nazareth. A Imprensa Operária no Brasil, 1880-1920. Petrópolis, RJ: Vozes, 1978. p. 103. 19 CRUZ, Heloisa de Faria. São Paulo em Papel e Tinta: periodismo e vida urbana 1890/1915. São Paulo: EDUC; Fapesp; Arquivo do Estado; Imprensa Oficial, 2000. p. 121.

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Entre os diversos idiomas contemplados nas edições oferecidas, incluíam-se

publicações em inglês, como se vê no seguinte anúncio:

English Periodicals: Sunday at Home Leisure Hour Boys own paper Child’s companion English books Scripture Pictures Pictures Books for Children English Bibles in Great Variety20

No caso acima, havia a publicação e a venda de periódicos e livros em inglês, alguns

destinados às crianças e, por isso mesmo, ilustrados, além da Bíblia. Entre os possíveis

destinatários desses textos incluem-se os imigrantes dos Estados Unidos, em sua maioria do

sul (confederados), que vieram para o Brasil logo após o final da Guerra de Secessão. Cerca de

3 mil norte-americanos estabeleceram-se em estados do Sul, Sudeste, Norte e Nordeste do

país, embora a maioria das comunidades não tenha se consolidado, exceto em São Paulo21, na

cidade de S. Bárbara do Oeste. Para os residentes dessa comunidade, o missionário William B.

Bagby solicitava à Junta de Missões Estrangeiras o que se segue22:

Outra vez estou lhe fazendo o pedido para remessa de mais três dúzias de exemplares do “Gospel Hymns”, números 1, 2 e 3, juntos. Desejo, como antes, que deles, duas dúzias sejam sem música e um dúzia com música. Já vendi rapidamente para os americanos todos os outros enviados pelo irmão. Mas, eles ainda desejam mais.23

Entre esses mesmos imigrantes foram fundadas uma igreja batista e outra metodista,

esta fundada por Junius Eastham Newman, em 187124. Embora tais congregações fossem

constituídas por estrangeiros, a igreja batista daquela comunidade solicitou à Junta de

20 Periódicos ingleses: Domingo em casa; Hora de descanso; Jornal para rapazes; O Guia da criança; Livros ingleses; Imagens das Escrituras; Livro de Figuras para Crianças; Bíblias inglesas em grande variedade. In: O RAPAZ do Realejo ou “minha casa, doce lar”. Lisboa: Typographia de Adolpho, Modesto e Cia, 1883. (Na contra-capa). COLEÇÃO Folhetos Evangélicos. Centro de Documentação e História Rev. Vicente Themudo Lessa. São Paulo. 21 BANDEIRA, Moniz. Presença dos Estados Unidos no Brasil. Dois séculos de história. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1973. p. 119. 22 Essas juntas eram órgãos de uma ou várias igrejas ou denominações que congregavam diversos indivíduos dedicados a organizar e financiar a pregação protestante por seus missionários pelo mundo afora. 23 CARTA de William Buck Bagby para Junta de Missões Estrangeiras. Campinas, 27/03/1882. In: OLIVEIRA, Betty Antunes de. Centelha em Restolho Seco: uma contribuição para a história dos primórdios do trabalho batista no Brasil. São Paulo: Vida Nova, 2005. p. 496. 24 MENDONÇA, Antonio Gouvêa; VELASQUES FILHO, Prócoro. Introdução ao Protestantismo no Brasil. São Paulo: Loyola, 1990. p. 102.

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Richmond o envio de missionários para atuarem no Brasil. Comunicando as “resoluções”

daquela comunidade, pediam à Junta das Missões Estrangeiras (de Richmond) “para receber-

nos como uma filha afetuosa, adotiva, no grande campo missionário”. Propunha-se, ainda, a

cooperação com a Junta, quando “algum ministro, solteiro ou casado, vier para o Brasil,

recomendado pela Junta, procuraremos fazer identificados os interesses mútuos” e

comprometia-se a lhe prover um amplo sustento25.

A mesma preocupação concernente aos imigrantes reflete-se na aquisição por Robert

Kalley26 de vários volumes da Bíblia e do Novo Testamento em idiomas diversos. No primeiro

semestre de 1859, ele comprou no Rio de Janeiro, com o intuito de vender ao público, 847

Bíblias, dentre as quais 731 em português e as demais nos seguintes idiomas: 95 em alemão,

18 em inglês, duas em italiano e uma em hebraico. Os Novos Testamentos, por sua vez, foram

1.100, dos quais 971 em português, 100 em alemão, 12 em francês, seis em italiano, 10 em

espanhol e um em grego27. Pouco antes do final do mesmo semestre, Kalley informava: “Não

tenho Bíblia nem Testamento Alemão [sic], por isso, gostaria que me mandasse sem demora a

quantidade que lhe pedi: 30 Bíblias e 50 Testamentos”28. Portanto, os que havia comprado

antes já os tinha vendido ou distribuído. De forma semelhante, dentre os 15.227 exemplares

que o agente da Sociedade Bíblica Britânica e Estrangeira (SBBE), Corfield, disseminou no

Brasil entre 1857 e 1859, mais de 7 mil não eram escritos em português29.

Nesse aspecto da atuação de Kalley acima referida, a maior quantidade de exemplares

em alemão devia-se ao fato de que ele se estabelecera em Petrópolis, onde havia uma

comunidade alemã, assim como em Nova Friburgo. Nessa região, atuou um alemão residente

no Brasil, que procurou Kalley oferecendo-se para vender escrituras e folhetos em Petrópolis30.

Parece ter sido bem sucedido, pois cerca de um mês depois Kalley solicitava o envio de mais

60 Novos Testamentos, 20 Bíblias em vernáculo e 20 Novos Testamentos em alemão,

25 VINTE e uma resoluções da Igreja. 01/10/1878. In: OLIVEIRA, Pedro A. Ribeiro de. Religião e Dominação de Classe: gênese, estrutura e função do catolicismo romanizado no Brasil. Petrópolis, RJ: Vozes, 1985. p. 447. 26 As iniciativas do missionário inglês Robert Reid Kalley, que chegou em 1855 ao Rio de Janeiro, deram início ao proselitismo em língua portuguesa pelo país. Kalley manteve boas relações com o imperador D. Pedro II, tornando-se uma figura importante para o período de inserção do protestantismo no Brasil. Merece destaque sua atitude de ameaçar divulgar aos países dos quais viriam imigrantes para o Brasil os problemas de intolerância religiosa sofridos pelas comunidades protestantes no país. 27 ROCHA, João Gomes da. Lembranças do passado: Primeira fase: 1855 – 1864. Rio de Janeiro: Centro Brasileiro de Publicidade, 1941. p. 84-5. 28 ROCHA, João Gomes da. Lembranças do passado: Primeira fase: 1855 – 1864. Rio de Janeiro: Centro Brasileiro de Publicidade, 1941. p. 93. 29 ROCHA, João Gomes da. Lembranças do passado: Primeira fase: 1855 – 1864. Rio de Janeiro: Centro Brasileiro de Publicidade, 1941. p. 107. 30 ROCHA, João Gomes da. Lembranças do passado: Primeira fase: 1855 – 1864. Rio de Janeiro: Centro Brasileiro de Publicidade, 1941. p. 40; 83.

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alegando nos “últimos quinze dias” ter “vendido mais livros que em qualquer mez antes.”31

A preocupação em atingir os imigrantes também aparece, uma década mais tarde, num

anúncio do Depósito das Escrituras do Rio de Janeiro, que afirmava que “nesta casa vendem-

se Bíblias novas e Testamentos em todas as línguas”32. Igualmente, a Livraria Evangélica

anunciava que nela era possível encontrar a Escriptura Sagrada em diversas línguas33. Por sua

vez, nos anos 1880, diante do ingresso crescente de italianos no Brasil, o reverendo Hugh C.

Tucker (missionário metodista e agente da Sociedade Bíblica Americana) importa Bíblias,

Novos Testamentos e separatas do Evangelho em italiano, desenvolvendo um programa de

distribuição por meio de colportores contratados para visitar esses imigrantes. Ele mesmo

empreendeu uma viagem de 34 semanas pelas províncias do centro-sul do Império do Brasil,

fazendo-se acompanhar por quatro colportores. Durante o périplo, pregou e distribuiu as

Escrituras em praça pública, logrando a venda de mais de oito mil exemplares34.

A presença crescente de imigrantes no Brasil durante a passagem do século XIX ao

seguinte também despertou os cuidados da Igreja Católica. Numa carta pastoral de 1890, pode-

se ler o seguinte:

Tendo em conta que os colonos vindos da Europa são em sua maioria católicos mas não encontram nos núcleos coloniais e nas fazendas os cuidados espirituais que recebiam em seus países de origem, é necessário ter um zelo especial por eles, contando para isso com a colaboração de congregações religiosas européias35.

Analogamente, num Memorial daquele mesmo ano, escrito por Dom Macedo Costa,

um capítulo foi dedicado aos imigrantes, assinalando suas necessidades espirituais e os

esforços envidados para satisfazê-las. Em seguida, apresenta um projeto (para ser enviado a

Roma) com o propósito de fundar no Sul e Sudeste, entre os núcleos de colonos, uma “casa

religiosa central de Missões”, a qual estabeleceria filiais, cujos missionários católicos visitariam

os imigrantes e se encarregariam da educação básica das crianças36.

As organizações protestantes também tiveram iniciativas oficiais direcionadas ao

proselitismo junto aos imigrantes, como a da Junta das Missões, que entre as suas atividades

no Brasil incluiu, no início da década de 1930, pregar aos imigrantes que desembarcavam nos

31 ROCHA, João Gomes da. Lembranças do passado: Primeira fase: 1855 – 1864. Rio de Janeiro: Centro Brasileiro de Publicidade, 1941. p. 83-4. 32 IMPRENSA Evangélica. Rio de Janeiro, 16 de junho de 1870. v. 6, n. 15, p. 120. 33 IMPRENSA Evangélica. Rio de Janeiro, 19 de novembro de 1870. v. 6, n. 23, p. 183. 34 GIRALDI, Luiz Antonio. História da Bíblia no Brasil. Barueri, SP: Sociedade Bíblica do Brasil, 2008. p. 61. 35 Apud: OLIVEIRA, Pedro A. Ribeiro de. Religião e Dominação de Classe: gênese, estrutura e função do catolicismo romanizado no Brasil. Petrópolis, RJ: Vozes, 1985. p. 281. 36 Apud: DREHER, Martin N. A Igreja Latino-Americana no Contexto Mundial. São Leopoldo: Sinodal, 1999. p. 207.

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dois principais portos do país (Santos e Rio de Janeiro), “distribuindo-lhes bíblias e folhetos em

suas próprias línguas”37. No mesmo momento, a Sociedade Bíblica Americana (SBA) publicou o

Evangelho de S. João, numa edição bilíngue português/japonês, destinada aos imigrantes

japoneses que desembarcavam no país38.

Quando remontamos aos princípios da atuação daquelas instituições no Brasil, já por

volta dos anos 1850, percebemos que ao trabalho dos agentes das sociedades bíblicas veio

somar-se o dos colportores39, muitos dos quais eram empregados por aquelas organizações e

pelos missionários que atuavam no país. A atuação de colportores na difusão de textos

religiosos, que se observaria no Brasil, tem seus precedentes na colportagem europeia

quinhentista. O uso de impressos para a divulgação das ideias dos protestantes, igualmente,

remonta ao início da Reforma na Europa. No século XVI, na França e na Alemanha,

vendedores ambulantes vendem livros e almanaques nos burgos e nos campos,

desempenhando um papel essencial na difusão das ideias reformadoras. Quando do advento

da Reforma, esses vendedores multiplicam-se e, fugindo mais facilmente da fiscalização

policial, disseminam em terras alemãs e, após 1540-1550, na França e por toda a Europa, a

literatura proibida, com ataques à autoridade papal e eclesiástica40.

De forma análoga, os vendedores ambulantes, conhecidos como colportores,

desempenharam no Brasil a difícil tarefa de distribuir literatura religiosa, incluindo Bíblias, Novos

Testamentos, livros, folhetos e até periódicos, pelas capitais e sertões do país. Muitos desses

vendedores ambulantes foram enviados pelas sociedades bíblicas ou por denominações

protestantes, enquanto outros eram pagos por particulares e alguns, ainda, trabalhavam

voluntariamente.

É necessário, então, perguntar-se pelas formas de atuação dos colportores, no Brasil

oitocentista e nas primeiras décadas do século seguinte, em meio a um mercado editorial

rarefeito, dado que eles também se inseriam “no processo de difusão”41, desempenhando a

tarefa de ofertar impressos protestantes ao público em potencial. Seria, provavelmente, escassa

a possibilidade de êxito comercial por parte de editores e livreiros que se aventurassem a

comercializar apenas textos religiosos na maior parte do território nacional. Não obstante se

tratar de outro contexto, são elucidativas as considerações de Natalie Z. Davis sobre a ação dos 37 O JORNAL Batista, 29 de janeiro de 1931. Apud: ROSSI, Agnelo, Pe. Diretório Protestante no Brasil. Campinas: Paulista, 1938. p. 79. 38 ROSSI, Agnelo, Pe. Diretório Protestante no Brasil. Campinas: Paulista, 1938. p. 144. 39 Isto é, vendedores ambulantes de impressos (livros, folhetos, etc.). 40 FEBVRE, Lucien; MARTIN, Henry-Jean. O Aparecimento do Livro. São Paulo: UNESP; Hucitec, 1992. p. 326 e 342. 41 DARNTON, Robert. O Beijo de Lamourette. Mídia, cultura e revolução. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. p. 114. Este autor refere-se aos colportores ou o vendedor de livros, que ele considera o elo menos familiar do processo de difusão de livros na Europa do século XVIII.

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colportores na Europa do século XVII: “Mas os zelosos protestantes podiam passar por cima de

tudo isto, podiam enfrentar a possibilidade de destruição da mercadoria, e até a morte, em

benefício do ‘consolo de pobres cristãos e para instruí-los na lei do Senhor’”42. Desse modo, os

vendedores ambulantes de impressos protestantes, animados por suas crenças, poderiam

alcançar um público afastado das grandes cidades, onde a possibilidade de acesso a textos

impressos era muito menor.

A atuação de colportores estrangeiros e brasileiros também se dirigiu, desde o século

XIX, aos contingentes estrangeiros no país. Em relação à atuação missionária por meio da

colportagem junto aos imigrantes, há registro da atuação de estrangeiros que pregavam nas

línguas dos adventícios. É o caso de um alemão, que residira no Texas, vindo posteriormente

morar em S. Paulo, onde se dedicou ao proselitismo e atuou como colportor. Chamava-se Jacó

Wingerther, falante do português, inglês e, claro, do alemão.

O agente da Sociedade Bíblica Americana (SBA) James Fletcher, em sua passagem

pela cidade de Joinville no ano de 1855, ressaltava a importância de se ter “um pastor

itinerante, que fosse de colônia em colônia através de todo o Brasil, com Bíblias e folhetos,

encorajando essas comunidades a ter pastores; pela palavra impressa e trabalhos religiosos

congregando os que vivem privados de sacerdotes”43. Antes mesmo de Fletcher, o pastor Karl

Leopold Voges, alemão que tinha a seu cargo as comunidades alemãs do Rio Grande do Sul,

solicitava à Sociedade Bíblica Britânica e Estrangeira, em 1827, o envio de Bíblias e Novos

Testamentos a serem distribuídos entre os imigrantes. Entretanto, ele também pediu duzentos

Novos Testamentos escritos em português para “ascender a luz verdadeira da Sagrada

Escritura entre os pobres portugueses” [sic]44.

As comunidades a que se refere este missionário eram compostas de imigrantes

estabelecidos no Sul do país. De acordo com Martin Dreher, estudioso dos aspectos religiosos

referentes aos imigrantes estabelecidos naquela região do país, estas comunidades passavam

“longos períodos sem qualquer pastor com formação regular”, tendo por isso “que criar sua

própria vida religiosa”45. Para tanto, “três livros foram básicos: a Bíblia, o Catecismo e o Livro

42 Explica, ainda, a autora: “Quem abriu o mercado rural para os vendedores ambulantes de livros do século XVII? Não foi um simples gráfico de origem rural: ele se lembraria do analfabetismo de sua aldeia. Não foi um editor comum de literatura popular: ele ficaria preocupado com lucros magros”. Cf. DAVIS, Natalie Z. O povo e a palavra impressa. In: ______. Culturas do povo. Sociedade e cultura no início da França moderna. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990. p. 169. 43 RIBEIRO, Boanerges. Protestantismo no Brasil Monárquico, 1822-1888: aspectos culturais de aceitação do protestantismo no Brasil. São Paulo: Livraria Pioneira, 1973. p. 84. 44 Apud: REILY, Duncan A. A História Documental do Protestantismo no Brasil . 3. ed. São Paulo: Aste, 2003. p. 62. 45 DREHER, Martin. (Org.). Imigrações e História da Igreja no Brasil. Aparecida, SP: CEHILA; Santuário, 1993. p. 120.

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dos Cânticos”46. Pode-se, assim, apontar como outra razão para a distribuição de Bíblias e

outros impressos pelos protestantes junto aos imigrantes a necessidade que estes possuíam

em obter certas publicações religiosas.

O missionário judeu holandês Emanuel Vanorden, presbiteriano, figura relevante na

editoração protestante no Brasil, idealizador do jornal Púlpito Evangélico, afirmava, um ano

após a fundação do periódico, que “o número de pregadores é ainda pequeno neste país”;

portanto, poucas eram as pessoas que poderiam ser atingidas diretamente pela pregação

pessoal. No entanto, ele julgava que “por meio deste periódico pregam eles a milhares as

mesmas doutrinas [...] e que nutrem aqueles que assistem ao culto evangélico”47.

A mesma apreciação sobre o papel das publicações é reiterada em período posterior.

Comentando os fins a que se destinavam alguns folhetos que seriam distribuídos pelo Centro

Brasileiro de Publicidade (CBP), diziam os seus organizadores: “colloquem esses livros nas

mãos das pessoas que, na ausencia dos ministros, dirigem o culto, afim de os auxiliar na

instrução religiosa do povo”. Consideravam ainda que os folhetos em questão adaptavam-se

“especialmente á leitura no culto publico, na falta de pregador48.

A análise de Boanerges Ribeiro sintetiza bem essa relação entre a missionação e a

editoração:

O caos vai sendo modelado pela Bíblia; escassas visitas pastorais; pela Imprensa Evangelica; pelos hinos cantados; pelos livros e panfletos, tanto planejados pela Missão para dar forma ao movimento, como produzidos pela iniciativa privada para o mercado (Laemmert, em parte; Vanorden), além dos que brotam de conjunturas pessoais ou nacionais: Conceição, com a Sentença de Excomunhão; Miguel Torres; Antonio Pedro. Os sermões do Púlpito Evangélico são lidos e/ou soletrados em cidades e na roça49.

O argumento do autor reforça o ponto que assinalamos antes, ou seja, o papel dos

vários tipos de impressos protestantes como parte da construção da cultura impressa

protestante no Brasil, contribuindo para suprir a desproporção entre o número de missionários e

pregadores e a vastidão territorial e a população do país ou, mais especificamente, entre

aqueles e o número de igrejas e convertidos. Por meio da produção de sua imprensa, os

protestantes pretendiam, entre outros fins, dar coesão interna aos grupos de conversos

disseminados pelo país. No caso das edições em outros idiomas, os impressos visavam

46 DREHER, Martin. (Org.). Imigrações e História da Igreja no Brasil. Aparecida, SP: CEHILA; Santuário, 1993. p. 120. 47 Apud: FERREIRA, Júlio Andrade. História da Igreja Presbiteriana do Brasil. v. I. 2. ed. São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1992. (3 volumes). p. 169. 48 AS PUBLICAÇÕES da Cooperação. Norte Evangélico. Garanhuns, 31 de outubro de 1922. Ano XVI, n. 29, p. 3. 49 RIBEIRO, Boanerges. A Igreja Presbiteriana no Brasil, da autonomia ao Cisma. São Paulo: Livraria o Semeador, 1987. p. 162.

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fortalecer a fé dos imigrantes protestantes e converter os adventícios não-protestantes. Esse

aspecto permite-nos retomar uma das funções que se pode atribuir aos editores dessa

imprensa, a de constituírem uma “formação cultural”, isto é, a de estabelecer práticas de

organização e/ou autoorganizacão como um grupo de produção cultural, em particular do tipo

baseado na “participação formal de associados”50, como é o caso das denominações

protestantes.

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ASPECTOS DA MÚSICA RELIGIOSA NA COLÔNIA:

Regentes, compositores e instrumentistas pardos (Vila Rica, 1770-1808)

Daniel Precioso1

Resumo: Este estudo pretende discutir o estatuto socioprofissional do músico em Vila Rica entre 1770 e 1808. Para tanto, analisamos trajetórias individuais, identificamos famílias de músicos e inventariamos a contratação destes pelas irmandades mineiras. Amparados em fontes inéditas, coletadas no Arquivo do Museu da Inconfidência de Ouro Preto (AHMI) e no Arquivo da Paróquia de Nossa Senhora do Pilar de Ouro Preto (APNSP), procuramos reconstituir os contornos gerais da prática musical de homens pardos residentes na sede política da Capitania das Minas. Palavras-chave: Irmandades. Minas Gerais. Músicos pardos. Abstract: This study intends to discuss the musician's social-professional statute in Vila Rica between 1770 and 1808. For this purpose, we analyzed individual paths, identified musicians’ families and inventoried the music recruiting for the brotherhoods. Aided in unpublished sources, collected in the File of the Museum of the Disloyalty of Ouro Preto (AHMI) and in the File of the Parish of Ours Mrs. of Pilar from Ouro Preto (APNSP), we tried to reconstitute, although in a fragmentary way, the general outlines of the resident pardo men's musical practice in the political thirst of the Capitany of Minas. Keywords: Brotherhoods. Minas Gerais. Pardos (brown men) musicians.

Nas Minas Setecentistas, o surgimento de núcleos urbanos em torno da atividade

mineradora foi acompanhado de grande diversificação das atividades produtivas2. A

dinâmica da vida social que se instalava na região possibilitou a mobilidade social de

indivíduos com ascendência africana, forros ou livres3. Uma parcela significativa de homens

pardos, crioulos e pretos, uma vez egressos do cativeiro, puderam se integrar à estrutura

social, sobretudo por meio do desempenho de atividades manuais (artesanais) ou

artísticas4. Muitos conseguiram acumular pecúlio suficiente para a compra de escravos e

casas de morada, legando aos seus descendentes seus bens e sua condição social5.

O pertencimento à comunidade religiosa era uma premissa para o reconhecimento

social dos homens coloniais. Na região mineira, as Ordens Religiosas Regulares foram

proibidas de se instalarem, ficando a organização do culto católico sob os cuidados dos 1 Doutorando em História Moderna pela Universidade Federal Fluminense (UFF), mestre em História e Cultura Social pela Universidade Estadual Paulista (UNESP-Franca) e bolsista do CNPq. Atualmente é editor da Cantareira, revista discente do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense. E-mail: [email protected]. 2 CANO, Wilson. A economia do ouro em Minas Gerais (século XVIII), Contexto, São Paulo, n. 3, jul. 1977. p. 102; HOLANDA, Sérgio Buarque de. Metais e pedras preciosas. In: História geral da civilização brasileira. A época colonial: administração, economia e sociedade. São Paulo: DIFEL, 1977, vol. 2, tomo 1. p. 292. 3 COSTA, Iraci Del Nero da; LUNA, Francisco Vidal. Minas Colonial: Economia & Sociedade. São Paulo: Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas/Pioneira Editora, 1982. p. 12. 4 BOSCHI, Caio César. Os Leigos e o Poder: irmandades leigas e política colonizadora em Minas Gerais. São Paulo: Ática, 1986. p. 161. 5 Cf., entre outros, PRECIOSO, Daniel. Legítimos Vassalos: pardos livres e forros na Vila Rica colonial (1750-1803). Dissertação (Mestrado em História)–FHDSS/UNESP, Franca, 2010. (especialmente os capítulos 3 e 4.)

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leigos. Na Capitania de Minas Gerais, as irmandades leigas frutificaram, principalmente, nas

áreas urbanas. Vila Rica possuía 29 confrarias em pleno exercício de suas funções,

“certamente as mais opulentas e freqüentadas das Minas”6. Em observação à hierarquia

sociorracial, os sodalícios reuniam brancos, pardos, crioulos e pretos7.

Nesse estudo, por meio dos resultados obtidos em uma pesquisa empírica, apoiada

em livros particulares da Confraria de São José dos Bem Casados dos Homens Pardos de

Vila Rica e em testamentos e inventários post-mortem8, procuraremos reconstituir a

trajetória de um pequeno grupo de pardos livres que, desempenhando a profissão de

músico9 e ocupando lugares de destaque em irmandades e milícias, atingiram boa fama

pública numa sociedade escravista.

História da Música na Capitania de Minas: um debate

Estudos de fôlego sobre a música colonial brasileira só foram realizados a partir de

1944, quando o musicólogo uruguaio Francisco Curt Lange começou a realizar pesquisas

em arquivos particulares das irmandades mineiras e nos códices dos Conselhos

Municipais10. Essas pesquisas resultaram em dois volumosos projetos financiados pelo

governo do Estado de Minas Gerais: “História da Música na Capitania Geral das Minas

Gerais” e “História da Música nas Irmandades de Vila Rica”. Os trabalhos de Curt Lange

revelaram uma intensa atividade musical nas Minas Gerais do século XVIII, demonstrando

que, assim como a arquitetura e as artes plásticas, a música também passou por um

desenvolvimento significativo no “século do ouro”.

A partir da década de 1960, os estudos da música colonial ganharam um caráter

mais crítico, desvencilhando-se das abordagens factuais da concepção musicológica de

6 AGUIAR, Marcos Magalhães de. Vila Rica dos Confrades. A sociabilidade confrarial entre negros e mulatos no século XVIII. Dissertação (Mestrado em História)–FFLCH, USP, São Paulo, 1993. p. 22. 7 BOSCHI, Caio César. Os Leigos e o Poder: irmandades leigas e política colonizadora em Minas Gerais. São Paulo: Ática, 1986. p. 161. 8 Os livros particulares da irmandade foram consultados no Arquivo da Paróquia de Nossa Senhora do Pilar de Ouro Preto (APNSP) e os testamentos e inventários dos confrades foram compulsados no Arquivo Histórico do Museu da Inconfidência/Casa do Pilar de Ouro Preto (AHMI). 9 “[...] a maior parte da música profissional composta e praticada no período colonial foi religiosa e os exemplos profanos são quase sempre tardios, a maioria já de inícios do século XIX.” CASTAGNA, Paulo. “Música na América portuguesa”. In: MORAES, José Geraldo Vinci de; SALIBA, Elias Thomé (Orgs.). História e Música no Brasil. São Paulo: Alameda, 2010. p. 39. 10 Curt se apropriou da visão de “mulatismo artístico”, defendida por Mário de Andrade em relação aos estudos sobre as “artes plásticas” no Brasil. Cf. LANGE, Francisco Curt. A música na Irmandade de São José dos Homens Pardos ou Bem Casados, Anuário do Museu da Inconfidência – Ministério da Educação e Saúde/Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Ouro Preto, ano III, v. 2, p. 11-231, 1979. (Coleção Da História da Música na Capitania Geral das Minas Gerais). Segundo essa concepção, o mulato teria sido o elemento propulsor da criação monumental do Barroco Mineiro, isto é, de uma arte genuinamente nacional. Cf. ANDRADE, Mário de. Aspectos das Artes Plásticas no Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, 1984. Outros trabalhos reiteraram essa máxima. Cf. BAZIN, Germain. A arquitetura religiosa barroca no Brasil. Rio de Janeiro, Record, 1956, v. 1; BOSCHI, Caio César. O Barroco Mineiro: artes e trabalho. São Paulo: Brasiliense, 1988; MELLO, Suzy de. Barroco mineiro. São Paulo: Brasiliense, 1985.

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Curt Lange11. Sob essa óptica, autores como Elmer Corrêa Barbosa, Antônio Alexandre

Bispo, Robert Stevenson, Luís Paulo Horta, Guilherme Werlang e Willy Correia de Oliveira,

influenciados pelos estudos de Curt Lange e pelas novas abordagens da história da música,

debruçaram-se, especificamente, sobre a história da música em Minas Gerais. Em seus

estudos, discutiram os conceitos de “clássico” e “barroco”, a fim de enquadrar a música

mineira colonial nesses referenciais. Em sentido mais abrangente, indagavam também

sobre as características sincréticas que conferiam a “suposta” originalidade da música

produzida em Minas, em nítido diálogo com os postulados de Mário de Andrade.12

Nas décadas de 1980 e 1990, Flávia Toni, Maurício Dottori, Paulo Castagna e

Maurício Monteiro, em suas dissertações de mestrado, e Sílvio Augusto Crespo Filho, em

sua tese de doutoramento, realizaram importantes debates acerca da caracterização da

música mineira.13 Dottori salienta a influência de compositores napolitanos do “setecento” na

definição do estilo dos mineiros, concluindo que “a música mineira tem características

marcantes do barroco europeu e traços predominantes de sua estilística”14. Crespo,

discordando de Dottori, caracteriza a música mineira como uma “fusão de estilos clássicos e

barrocos, observando principalmente as influências da Escola de Mannheim”15. No mesmo

caminho, mais recentemente, Otto Maria Carpeaux, em O Livro de Ouro da História da

Música da Idade Média ao Século XX, rechaçou a caracterização da música colonial mineira

como “música barroca”, por meio da análise de importantes compositores mineiros16.

Segundo Carpeaux, “habitualmente fala-se em ‘música mineira barroca’”. O termo é inexato.

O estilo das obras em questão é o da música sacra italianizante de Haydn, do qual também

se executavam em Minas os quartetos de cordas; os compositores mineiros certamente

11 Vide, por exemplo, os trabalhos de Duprat e Matos na coletânea organizada por RESENDE, Maria da Conceição. A música na história de Minas colonial. Belo Horizonte: Itatiaia / Edusp, 1989. 12 TONI, Flávia Camargo. A música nas irmandades da vila de São José e o Capitão Manoel Dias de Oliveira. Dissertação (Mestrado em Artes)–ECA/ USP, São Paulo, 1985; DOTTORI, Maurício. Ensaio sobre a Música colonial mineira. Dissertação (Mestrado em Artes)–ECA/USP, São Paulo, 1992; 13 CASTAGNA, Paulo. O “estilo antigo” na prática musical paulista e mineira nos séculos XVIII e XIX. Dissertação (Mestrado em Artes)–ECA, USP, São Paulo, 2000; MONTEIRO, Maurício. João de Deus de Castro Lobo e as práticas musicais nas associações religiosas de Minas Gerais (1794 -1832). Dissertação (Mestrado em História)–FFLCH, USP, São Paulo, 1995; CRESPO, Sílvio Augusto. Contribuição para a caracterização da música colonial mineira. Tese (Doutorado em Artes)–ECA/USP, São Paulo, 1989. 14 MONTEIRO, Maurício. João de Deus de Castro Lobo e as práticas musicais nas associações religiosas de Minas Gerais (1794 -1832). Dissertação (Mestrado em História)–FFLCH, USP, São Paulo, 1995. p. 12. Em seus escritos, Curt Lange aderiu com cautela à classificação da música mineira do século XVIII como barroca, visão que abandonou definitivamente na década de 1970. Portanto, na contramão da tendência geral dos musicólogos, autores como Elmer Corrêa Barbosa e Maurício Dottori, endossaram a antiga caracterização da música sacra mineira como “barroca.” Cf. CASTAGNA, Paulo. O “estilo antigo” na prática musical paulista e mineira nos séculos XVIII e XIX. Dissertação (Mestrado em Artes)–ECA, USP, São Paulo, 2000. 15 MONTEIRO, Maurício. João de Deus de Castro Lobo e as práticas musicais nas associações religiosas de Minas Gerais (1794 -1832). Dissertação (Mestrado em História)–FFLCH, USP, São Paulo, 1995. p. 12-3. 16 CARPEAUX, Otto Maria. O Livro de Ouro da História da Música. Da Idade Média ao século XX. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001. p. 156.

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ignoravam a arte barroca de Bach e Handel; mas descobrem-se neles resíduos do estilo de

Pergolese, além de uma indubitável originalidade brasileira na melodia e até na harmonia17.

Paulo Castagna, tratando do “estilo antigo” da música mineira entre os séculos XVIII

e XIX, “traz subsídios bibliográficos e iconográficos para entender a prática da música na

sociedade escravista”18. Já Flávia Toni e Maurício Monteiro realizaram case studies: a

primeira se debruçou sobre a obra do compositor Manoel Dias de Oliveira, atuante na Vila

de São José del Rey (atual Tiradentes), e o segundo examinou a prática musical do padre

João de Deus de Castro Lobo, atuante em Vila Rica (atual Ouro Preto) e Mariana, entre fins

do século XVIII e início do XIX.

A abordagem a seguir conectará História Social e História da Música19.

Música profissional na Capitania das Minas: o caso dos homens pardos

Sem dúvida, a presença de músicos nos principais núcleos urbanos mineiros, ao

longo do século XVIII, foi de grande magnitude. Segundo Curt Lange, o número de músicos

“foi proverbial em todo o território da Capitania, calculando-se que a cifra total deles tenha

ultrapassado um milhar ou mais”20. Em 1780, o desembargador João José Teixeira Coelho

relatou que a maioria dos mulatos empregava-se “no ofício de músicos, e são tantos na

capitania de Minas que certamente superam o número dos que há em todo reino”21. O

florescimento musical em Minas Gerais, ao longo do século XVIII, pode ser entendido,

afirma Curt Lange, por meio do melting pot mineiro. A música, a pintura e o artesanato

teriam sido as ocupações profissionais mais frequentemente entregues aos mulatos. Curt

Lange chega até mesmo a afirmar que não existiram músicos brancos nas Minas

Setecentistas22, sugerindo uma espécie de “exclusivismo étnico” relativo ao desempenho de

atividades musicais profissionais.

17 CARPEAUX, Otto Maria. O Livro de Ouro da História da Música. Da Idade Média ao século XX. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001. p. 155-6. 18 MONTEIRO, Maurício. João de Deus de Castro Lobo e as práticas musicais nas associações religiosas de Minas Gerais (1794 -1832). Dissertação (Mestrado em História)–FFLCH, USP, São Paulo, 1995. p. 12-3. 19 Em outro estudo, argumentamos que as pesquisas sobre irmandades, milícias, ofícios mecânicos e artes liberais (dentre as quais, a música) pecam ao não levarem em consideração uma “caracterização total” do grupo dos pardos. Cf. PRECIOSO, Daniel. Legítimos Vassalos: pardos livres e forros na Vila Rica colonial (1750-1803). Dissertação (Mestrado em História)–FHDSS/UNESP, Franca, 2010. p. 18. 20 LANGE, Francisco Curt. A música na Irmandade de São José dos Homens Pardos ou Bem Casados, Anuário do Museu da Inconfidência – Ministério da Educação e Saúde/Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Ouro Preto, ano III, v. 2, p. 11-231, 1979. (Coleção Da História da Música na Capitania Geral das Minas Gerais). p. 12. 21 COELHO, José João Teixeira. Instruções para o governo da Capitania de Minas, 1780, RAPM, Belo Horizonte, n. 8, 1903. 22 LANGE, Francisco Curt. A música na Irmandade de São José dos Homens Pardos ou Bem Casados, Anuário do Museu da Inconfidência – Ministério da Educação e Saúde/Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Ouro Preto, ano III, v. 2, p. 11-231, 1979. (Coleção Da História da Música na Capitania Geral das Minas Gerais). p. 12 e 14.

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Na Capitania das Minas do Ouro, os músicos profissionais eram requisitados nos

cerimoniais das Câmaras Municipais, bem como nas procissões, missas, novenas, ofícios e

ladainhas23. Essa demanda era geralmente suprida por padres regentes com suas

“corporações de músicos” ou por conjuntos de músicos que integravam terços auxiliares ou

tropas de ordenança24. De acordo com Curt Lange, os músicos da Capitania de Minas

alcançaram um nível social apreciável, “a tal ponto que não poucos possuíam um ou mais

escravos”25. O musicólogo observou, ainda, que, gozando de tal posição social, muitos se

tornaram especializados na “arte da música”, por meio da qual puderam manter-se

permanentemente ao longo do século XVIII, sobretudo na fase áurea da economia mineira.

Doravante, analisaremos o estatuto social e a atividade musical de quatro músicos

de etnia parda, cujas trajetórias de vida acompanharemos. A escolha da amostragem em

meio aos oficiais e mesários da Confraria de São José de Vila Rica justifica-se tão somente

pelo fato de, entre eles, encontrarmos os homens pardos mais bem sucedidos do grupo26.

Em meio aos administradores da confraria, vislumbramos uma “elite” parda, que teria sido

gestada em torno do arcabouço de instituições constituído pelos ofícios mecânicos, pelas

artes liberais, pelas milícias e, sobretudo, pelas irmandades. Ademais, o fato de pleitearem

as causas dos homens pardos — que ocorria, por exemplo, por meio de missivas enviadas

ao Conselho Ultramarino e assinadas pelos “oficiais e mais mesários” da confraria — denota

a autoidentificação de nossos agentes históricos com uma “identidade sócio-religiosa parda” 27 e, assim, demonstra afiliação étnica.28

23 A música profissional se contrapõe à música amadora. Em relação à última, destacamos os “batuques” ou “calundus”, isto é, as danças, os folguedos e as músicas dos rituais religiosos africanos. Essas manifestações musicais não oficiais, por estarem associadas aos africanos e aos seus descendentes, eram alvo de perseguição. TINHORÃO, José Ramos. Os sons dos negros no Brasil. Cantos, danças, folguedos: origens. São Paulo: Editora 34, 2008. 24 Curt Lange utiliza a expressão “corporação de músicos” para se referir aos conjuntos de músicos (o regente e seus músicos) que supriam a demanda por música das irmandades e do Senado da Câmara. LANGE, Francisco Curt. História da Música nas Irmandades de Vila Rica: Freguesia de Nossa Senhora da Conceição de Antônio Dias. v. 5. Belo Horizonte: Imprensa Nacional, 1981. p. 109. 25 LANGE, Francisco Curt. A música na Irmandade de São José dos Homens Pardos ou Bem Casados, Anuário do Museu da Inconfidência – Ministério da Educação e Saúde/Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Ouro Preto, ano III, v. 2, p. 11-231, 1979. (Coleção Da História da Música na Capitania Geral das Minas Gerais). p. 12. Os músicos de nossa amostragem, como se verá, não introduziram seus escravos no aprendizado da música. Provavelmente, a transmissão dos conhecimentos musicais ocorria de uma geração familiar para outra, tanto em ambiente familiar quanto confrarial/miliciano. 26 Foram encontrados 21 testamentos e 24 inventários e identificados 36 irmãos da Confraria de S. José, dos quais 31 ocuparam cargos de direção. Estes exerciam profissões diversas, conforme haviam constatado os estudos anteriores sobre a irmandade realizados por Curt Lange (1979) e Marília Ribeiro (1989): eram militares (alferes, capitão, quartel-mestre e tenente), oficiais mecânicos, artistas liberais (pintor ou músico), professores de primeiras letras, boticários, mineiros e padres. Destaca-se, porém, a presença dos oficiais mecânicos, que geralmente conjugavam a estas profissões alguma patente militar. PRECIOSO, Daniel. Legítimos Vassalos: pardos livres e forros na Vila Rica colonial (1750-1803). Dissertação (Mestrado em História)–FHDSS/UNESP, Franca, 2010. 27 VIANA, Larissa Moreira. O Idioma da Mestiçagem: as irmandades de pardos na América Portuguesa. Campinas: Editora da UNICAMP, 2007. 28 A noção de “grupos étnicos” é aqui empregada no sentido dado por Barth. BARTH, Fredrik. O guru, o iniciador e outras variações antropológicas. Rio de Janeiro: Contracapa, 2000.

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O primeiro músico de nossa amostragem é o alferes Bernardo dos Santos, flautista

da tropa auxiliar dos pardos, filho legítimo de Narciza Maria da Conceição, crioula forra.

Bernardo nunca foi casado e não teve filhos na condição de solteiro, não deixando herdeiros

forçados. Sua mãe e sua irmã, Maria dos Santos, residiam no Serro Frio, o que permite

conjecturar que ele tenha nascido na mesma vila e se dirigido, posteriormente, a Vila Rica.29

Entre os bens deixados pelo alferes, destacam-se casacas, fardas, chapéu e

calções, isto é, vestes próprias do ambiente miliciano. Também é descrito em seu inventário

uma “gibata de alferes” e, em seu testamento, Bernardo menciona um “espadim de prata

Lavrado”, que deveria ser entregue ao capitão Leite da Silva, seu inventariante. Bernardo

provavelmente estimava muito o seu mode de se vestir, pois possuía ainda uma “cabeleira

em bom uso” e uma “camiza de Bretanha”. Além desses pertences, excluídos os parcos

bens domésticos de sua morada na Rua de São José da Freguesia do Ouro Preto, Bernardo

possuía uma “flauta Transversa com dois canudos”, avaliada em 4$800 (quatro mil e

oitocentos réis), instrumento com o qual desempenhava sua atividade musical30. Aliás, a

prática musical parece ter sido a única fonte de renda para o alferes.

Já que muitos dos militares pardos se armavam e se vestiam por conta própria, pois

não recebiam soldo, o prestígio e os privilégios do cargo eram os grandes atrativos para os

que procuravam ser providos com patentes. Como ficou dito, Bernardo dos Santos vivia com

parcos bens, majoritariamente peças do vestuário, demonstrando a sua inclinação para o

desvelamento da condição social por meio da indumentária, que, no século XVIII (quando

ainda eram publicadas as leis suntuárias ou as pragmáticas) demarcavam o lugar de cada

vassalo na hierarquia social e “racial”.

Em seu testamento, anexo ao inventário de seus bens, Bernardo declarou que era

irmão da Confraria de São José de Vila Rica, onde foi sepultado, em 177231. Devoto do

“Glorioso Patriarca”, ocupou cargos administrativos no sodalício, tendo sido eleito escrivão

para o ano de 1770 e mesário para o de 177132. Quanto ao desempenho profissional da

“arte da música”, Curt Lange, que escarafunchou os livros de recibos e despesas da

irmandade, não encontrou qualquer referência a pagamentos realizados ao alferes em

ocasiões como festas, procissões, funerais, novenas, missas, etc. Como pouco (quase

nada, melhor dizendo) se conhece sobre a música sacra mineira anterior a 1770, é provável

que os registros da atuação de Bernardo tenham sido perdidos ou destruídos.

29 Arquivo Histórico do Museu da Inconfidência/Casa do Pilar de Ouro Preto (AHMI), inventário, códice 26, auto 290, 1773, 1° ofício, fls. 5, 5v e 6. 30 Idem, fls. 3, 3v. e 4. 31 AHMI, inventário, cód. 26, auto 290, 1773, 1°ofício, fls. 5v. 32 “Eleições dos juízes e mais oficiais (1727-1854)”, Arquivo da Paróquia de Nossa Senhora do Pilar/Casa dos Contos de Ouro Preto (APNSP/CC), códice micro filmado, rolo 7, volumes 158 a 160.

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Outro músico pardo irmão de S. José foi o cabo Francisco Gomes da Rocha,

“Timbaleiro da tropa de Linha” do regimento dos pardos de Vila Rica33 e morador da Rua da

Ponte Seca, filho natural de Maria da Costa Souza e de “pai incógnito”34. Morreu solteiro e

não deixou herdeiros forçados, nomeando como herdeira a sua afilhada Maria Francisca do

Pillar, filha legítima de seu compadre, o furriel José Rodrigues Nunes, e de sua comadre

Maria Jacole do Nascimento. Em seu testamento, Francisco declarou ter uma irmã, Vitória

Inácia de Barcellos, e dois sobrinhos, filhos da dita irmã, Domingos Fernandes e Manuel

Inácio, aos quais deixou uma chácara situada no Morro da Água Limpa, ao pé do Morro do

Ramos, em Vila Rica. Como primeiro testamenteiro foi nomeado Narciso José Bandeira,

confrade de S. José com ativa participação na mesa administrativa, o que demonstra que a

sociabilidade confrarial norteou a eleição dos testamenteiros.

Morador da Rua da Ponte Seca da Freguesia do Ouro Preto, Francisco dispôs em

seu testamento que todos os seus pertences fossem entregues “com toda a música e

papeleira e assim mais um rabecão grande com sua caixa, uma viola sem caixa e uma

flauta a Isidoro Pinto Rezende”35. A “papeleira” a que se refere era, provavelmente, um

conjunto de partituras de músicas de sua autoria e cópias das de outros compositores. Na

descrição de bens de seu inventário consta, ainda, uma “folha de fagote”36, avaliada em

$900 (novecentos réis) e, em seu testamento, um “rabecão pequeno”, que foi comprado pelo

capitão Manoel Antonio Moreira por 18$000 (dezoito mil réis)37. Francisco também declarou

que devia seis oitavas de ouro à “viúva do falecido José Pereira que morava em Congonhas

de Sabará e, para mais clareza, fazia instrumentos de flautas, clarinetes e fagotes.”38

Ao tratar dos créditos, Francisco revelou a sua intensa atividade musical, afirmando

que ganhou trinta oitavas de ouro procedidas da “novena e festa do Senhor do Bom fim”,

duas oitavas e três quartos “em boletos” que deveriam ser cobrados “dos soldados que

deviam do beneficio [de uma] ópera”, cinco oitavas de ouro das “óperas que representou por

conta da Santa Casa” e trinta e sete oitavas e dois tostões de ouro procedidas das “óperas

representadas no último ano em que o [capitão Antônio de Pádua] foi empresário.”

Depreende-se, portanto, que Francisco Gomes da Rocha era regente, “representando”

óperas e tocando em novenas, tendo a si atrelado um grupo de instrumentistas formados

33 MATHIAS, Herculano Gomes. Um Recenseamento na Capitania de Minas Gerais: Vila Rica – 1804. Rio de Janeiro: Ministério da Justiça / Arquivo Nacional, 1969. p. 77. 34 Em 1751, quando foi votada a primeira Mesa da Ordem Terceira de S. Francisco de Assis de A. Dias, apareceu entre os eleitos José Gomes da Rocha, “[...] homem abastado que foi talvez o progenitor de Francisco Gomes da Rocha, o grande compositor mineiro.” LANGE, Francisco Curt. A música na Irmandade de São José dos Homens Pardos ou Bem Casados, Anuário do Museu da Inconfidência – Ministério da Educação e Saúde/Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Ouro Preto, ano III, v. 2, p. 11-231, 1979. (Coleção Da História da Música na Capitania Geral das Minas Gerais). p. 193-4. 35 AHMI, inventário, códice 14, auto 142, 1809, 2° ofício, fls. 4. 36 “InStrumento MuSico de aSSopro. He de páo, & Se dobra em duas partes.” BLUTEAU, D. Raphael. Vocabulario Portuguez e Latino. Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de Jesus, 1712. tomo 2. p. 14. 37 AHMI, inventário, códice 14, auto 142, 1809, 2° ofício, fls. 4 v. 38 Idem, fls. 9.

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por soldados do regimento de milícia dos pardos. Assim, transitando nos ambientes

confrariais e milicianos, Francisco conciliou, profissionalmente, as práticas musicais sacras e

profanas. Em sua profissão, teria sido “empresariado” pelo capitão Antônio de Pádua,

provavelmente, o responsável pela contratação dos trabalhos que desempenhava. Além das

rendas com os serviços musicais, Francisco lucrou com os jornais de um escravo

especializado, José Angola, oficial de carapina.39

Embora não exista referência no inventário post-mortem à patente militar, segundo

Curt Lange, D. João VI recusou o pedido de Francisco Gomes da Rocha para usar uniforme

de furriel, grau superior ao qual ocupava, negando o soldo, “tudo pela sua condição de

mestiço”40. Além da assinatura de Francisco, constam, ainda, em seu testamento, as

rubricas das testemunhas Caetano Rodrigues da Silva, Marcos Coelho Neto e do quartel-

mestre Joaquim Higino de Carvalho, “pessoas livres”, residentes em Vila Rica e confrades

da irmandade de S. José. Caetano Rodrigues da Silva e Marcos Coelho Neto eram regentes

e compositores41. A exemplo do quartel-mestre Higino de Carvalho, ambos tiveram notável

participação na administração da Confraria de S. José. Francisco Gomes também participou

da direção da irmandade, tendo ocupado o cargo de escrivão (1775) e o de mesário (1770,

1776, 1789 e 1806)42, sendo também confrade das irmandades da Senhora da Boa Morte,

de São Francisco de Paula e do Senhor do Bom Jesus de Matozinhos de Congonhas do

Campo. Faleceu em 1808, tendo a sua alma sufragada pela irmandade de S. José.43

Caetano Rodrigues da Silva, que testemunhou as últimas disposições de Francisco

Gomes da Rocha, também é um dos músicos de nossa amostragem. Era tocador de rabeca,

organista e regente44, porém, no inventário de seus bens e nas suas disposições

testamentárias, não constam quaisquer referências a créditos advindos de atividades

musicais. A única referência à prática musical consiste no inventário de um instrumento,

“tambor com sua caixa de tocar”, avaliado em 130 mil réis45. Além do instrumento, no que

concerne à sua ligação com a “arte do som”, Caetano nomeou como seu segundo

39 MATHIAS, Herculano Gomes. Um Recenseamento na Capitania de Minas Gerais: Vila Rica – 1804. Rio de Janeiro: Ministério da Justiça / Arquivo Nacional, 1969. p. 77. 40 LANGE, Francisco Curt. A música na Irmandade de São José dos Homens Pardos ou Bem Casados, Anuário do Museu da Inconfidência – Ministério da Educação e Saúde/Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Ouro Preto, ano III, v. 2, p. 11-231, 1979. (Coleção Da História da Música na Capitania Geral das Minas Gerais). p. 12. 41 Marcos Coelho Netto era também “clarim, trompa e [...] timbaleiro do primeiro Rigim. to de Melicias, Morador no Ouro Preto.” MATHIAS, Herculano Gomes. Um Recenseamento na Capitania de Minas Gerais: Vila Rica – 1804. Rio de Janeiro: Ministério da Justiça / Arquivo Nacional, 1969. 42 “Eleições dos juízes e mais oficiais (1727-1854)”, APNSP, cód. micro filmado, rolo 7, vols. 158 a 160. 43 AHMI, inventário, códice 14, auto 142, 1809, 2° ofício, fls. 3 v. 44 LANGE, Francisco Curt. A música na Irmandade de São José dos Homens Pardos ou Bem Casados, Anuário do Museu da Inconfidência – Ministério da Educação e Saúde/Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Ouro Preto, ano III, v. 2, p. 11-231, 1979. (Coleção Da História da Música na Capitania Geral das Minas Gerais). p. 69. 45 AHMI, inventário, códice 8, auto 78, 1783, 2° ofício, fls. 9 v.

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testamenteiro o renomado músico Marcos Coelho Neto, que também assinou como

testemunha as disposições derradeiras de Francisco Gomes da Rocha.46

Natural da Vila de São João Del Rei, filho de Guilherme da Silva e de Perpétua da

Costa, Caetano foi casado duas vezes. No segundo matrimônio, com Francisca Tavares

França, teve sete filhos, todos eleitos, em 1783, herdeiros universais de seus bens. No

recenseamento de Vila Rica (1804), a “viúva parda” aparece como chefe de fogo na Ladeira

de Ouro Preto, seguida dos filhos “Caetano Rodrigues, com idade de 40 anos, [que] ocupa-

se de arte de música”, “Jerônimo Rodrigues, com idade de 38 anos, também músico”, e

“Manuel Rodrigues, com idade de 20 anos, [que] aprende o ofício.”47 O capitão possuía,

além de uns parcos utensílios domésticos, uma morada de casas assobradadas com quintal

na Rua Detrás do Rosário e dois escravos, Joaquim Angola e Joana Mina. O monte-mor de

seus bens importou o valor de 543$234 (quinhentos e quarenta e três mil e duzentos e trinta

e quatro réis).48

O capitão Caetano Rodrigues da Silva assentou-se como irmão de S. José em

174649, desempenhando papel proeminente no diretório da irmandade, pois ocupou os

cargos de juiz (1753), de escrivão (1760 e 1761) e de irmão de mesa (1754, 1757, 1763 e

1767)50. Também era filiado às irmandades de S. Francisco de Paula e da Senhora do

Rosário do Alto da Cruz, ambas de Vila Rica. Caetano Rodrigues faleceu em 1783 e foi

enterrado na capela de S. José.

O último músico de nossa amostragem é Francisco Leite Esquerdo, filho de Paloma

Maria da Conceição e de Isidoro Leite. Francisco aparece no Recenseamento de 1804,

chefiando um fogo. Na ocasião do censo, declarou que se ocupava como “trombeta do

Regimento de Linha” e “clarim das Tropas pagas de Minas Gerais”51. Em relação à atividade

musical, Curt Lange afirmou que Francisco atuou para o Senado da Câmara como cantor,

em 1787.52

46 “Marcos Coelho Netto foi tutor dos órgãos do Cap.m Caetano Rodrigues (da Silva). Documento do 2.º Ofício, n.º 1091, códice 85, 1797.” LANGE, Francisco Curt. A música na Irmandade de São José dos Homens Pardos ou Bem Casados, Anuário do Museu da Inconfidência – Ministério da Educação e Saúde/Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Ouro Preto, ano III, v. 2, p. 11-231, 1979. (Coleção Da História da Música na Capitania Geral das Minas Gerais). p. 77. 47 MATHIAS, Herculano Gomes. Um Recenseamento na Capitania de Minas Gerais: Vila Rica – 1804. Rio de Janeiro: Ministério da Justiça / Arquivo Nacional, 1969. p. 1969. 48 AHMI, inventário, códice 8, auto 78, 1783, 2° ofício, fls. 9v, 10 e 10 v. 49 LANGE, Francisco Curt. A música na Irmandade de São José dos Homens Pardos ou Bem Casados, Anuário do Museu da Inconfidência – Ministério da Educação e Saúde/Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Ouro Preto, ano III, v. 2, p. 11-231, 1979. (Coleção Da História da Música na Capitania Geral das Minas Gerais). p. 69. 50 “Eleições dos juízes e mais oficiais (1727-1854)”, APNSP, cód. Micro filmado, rolo 7, vols. 158 a 160. 51 MATHIAS, Herculano Gomes. Um Recenseamento na Capitania de Minas Gerais: Vila Rica – 1804. Rio de Janeiro: Ministério da Justiça / Arquivo Nacional, 1969. A despeito dos estudos sobre as relações entre música sacra e irmandades, o exame da relação entre música profissional e ambiente militar continuou à margem dos inquéritos de especialistas. 52 LANGE, Francisco Curt. A música na Irmandade de São José dos Homens Pardos ou Bem Casados, Anuário do Museu da Inconfidência – Ministério da Educação e Saúde/Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico

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Francisco foi casado em face da Igreja com Maximiana Gonçalves Torres, eleita

testamenteira e inventariante de seus bens. Do matrimônio, tiveram cinco filhas e três filhos.

Em seu testamento, Francisco deserdou as filhas Francisca e Isabel “pelos grandes

desgostos que sempre deram e paixões até chegarem a sair fora da [sua] companhia para o

mundo”, instituindo os demais filhos como seus universais herdeiros. A fuga desautorizada

das duas filhas mencionadas com homens de qualidade inferior pode ter ocasionado a

deserção de ambas, pois, no momento da redação do inventário, elas encontravam-se

casadas. Os pardos, conscientes da luta que empreendiam para se distinguirem

socialmente, procuraram dotar suas filhas e arranjar matrimônios vantajosos para sua

linhagem familiar, visando uma melhor “fama pública”.

Além de utensílios e ferramentas domésticas, Francisco era proprietário de três

escravos: Lourenço Cabra, Manoel Angola e Antônio Benguela53. Quanto aos bens de raiz,

possuía duas roças e uma morada de casas na Freguesia de Santo Antônio da Itatiaia. Em

Vila Rica, era dono de duas minas de extração de ouro (uma em sociedade com seu vizinho,

o latoeiro Estevão Rodrigues Barbosa) e duas moradas de casas no Caminho das Lages54.

Além da mineração, a hipoteca de escravos por meio da cobrança de “jornais” (diárias

pagas por serviços prestados) e o aluguel de casas consistiam em outras fontes de renda55.

O monte-mor, derivado da soma bruta de seus bens, foi avaliado em 1:336$289 (um conto,

trezentos e trinta e seis mil e duzentos e oitenta e nove réis). Francisco assinou seu

testamento. Sua mulher e seu filho Antônio deixaram rubricas em seu inventário. Apesar de

não ser possível afirmar que eles teriam sido alfabetizados, a assinatura demonstra certo

grau de instrução e diferenciação perante os demais indivíduos de ascendência africana.

Francisco ingressou como irmão de S. José em 1780. Foi eleito mesário em 1785,

juiz em 1797 e novamente mesário em 179856. Em outubro de 1809, “o procurador da

irmandade de S. José [relatou] que, falecendo da vida presente o irmão Francisco Leite

Esquerdo, ficou a dever à dita irmandade a quantia de sete oitavas e três quartos [de ouro]

como serve pela conta corrente”57. Francisco faleceu em 1809, sendo sua alma sufragada e

seu corpo enterrado em uma cova pertencente à Confraria de S. José na Matriz de Antônio

Dias.58

Considerações finais

Nacional, Ouro Preto, ano III, v. 2, p. 11-231, 1979. (Coleção Da História da Música na Capitania Geral das Minas Gerais). p. 62. 53 AHMI, inventário, códice 51, auto 623, ano 1809, 1° ofício, fls. 8 v, 27 e 32 v. 54 AHMI, inventário, códice 51, auto 623, ano 1809, 1° ofício, fls. 9 v, 13, 18 v. e 19. 55 Idem, fls. 26 v. 56 “Eleições dos juízes e mais oficiais (1727-1854)”, APNSP, cód. micro filmado, rolo 7, vols. 158 a 160; “Livro 1º de Termos e Entradas de Irmãos (1728-1788)”, APNSP, cód. micro filmado, rolo 7, vol. 161. 57 AHMI, inventário, códice 51, auto 623, ano 1809, 1° ofício, fls. 15 e 16. 58 AHMI, livro de testamento 17, fls. 196 v.

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É notório que na classe destes leais vassalos [os homens pardos] são os que exercitam as artes da música, além do mais, estes são os que nos festejos das aclamações dos senhores Reis e Senhoras Rainhas, e nascimentos dos Senhores Príncipes Infantes, todos que fazem as músicas nas Igrejas e folguedos públicos com aquele asseio e alegria que permitem as ditas funções.59

Os músicos de nossa amostragem eram pardos livres, filhos reputados de homens

brancos. Por trás das trajetórias de vida acompanhadas, encontramos homens que

desempenhavam atividades musicais profissionais, possuíam patente militar e

administravam uma confraria de seu grupo étnico. Apesar das agruras sofridas por eles em

uma sociedade escravista, em virtude do estigma da herança do ventre escravo materno,

nossos agentes conseguiram alcançar boa fama pública, arrecadar pecúlios e amealhar

somas em ouro ou réis.

Representaram eles a última geração de músicos mineiros que viveram antes da

decadência pela qual passou a sua profissão60, já que morreram antes da redação, em

1815, dos “capítulos exclusivistas” do Compromisso da Irmandade de Santa Cecília dos

Cantores e Professores de Música de Vila Rica61. A fase áurea da música mineira acabou

com o século XVIII. Com a decadência da profissão, os músicos passaram a tocar em troco

de diárias e de comida.62

59 Carta de Miguel Ferreira de Sousa, morador na cidade de Mariana, expondo a D. Maria I a situação dos homens pardos e pretos libertos que estão sujeitos a todos os serviços e perigos, pedindo para eles justiça (19.06.1796). AHU/MG, Cx. 142, Doc. 23. 60 A partir da década de 1810, a primeira fase da música profissional mineira chegava ao fim. 61 O compromisso trazia cláusulas que controlavam a prática musical em termos corporativistas. 62 Cf. Carta do Músico José Marcos de Castilho ao músico João Nunes Maurício Lisboa, 1815. APM, AVC - Cx.18, documento 18.

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A RELIGIÃO E A URBANIZAÇÃO BRASILEIRA NA VIDA DA MOÇA DE SOBRADO:

Breves considerações sobre a obra Sobrados e Mucambos

Camila Guidini Camargo1

Aires Zitkoski2

Resumo: O presente trabalho desenvolve algumas considerações referentes à obra Sobrados e Mucambos, do escritor pernambucano Gilberto Freyre, com o objetivo de analisar como a Igreja trabalhou e produziu mecanismos para a vigilância feminina, bem como perceber como o desenvolvimento e a urbanização modificou o cotidiano da elite do Brasil, observando as novas influências europeias do século XIX nos gostos e hábitos da moça de sobrado. Palavras-chave: Brasil. Ocidentalização. Religião. Abstract: This paper develops some considerations concerning the work Sobrados e Mucambos, by the writer Gilberto Freyre, from Pernambuco, with the aim of examining how the church worked and produced mechanisms for monitoring women and see how development and urbanization changed the daily lives of the elite of Brazil, observing the new influences in nineteenth-century European tastes and habits of the girl left. Keywords: Brazil. Westernization. Religion.

Considerações iniciais

Em meados do século XVIII e no decorrer do século XIX ocorreu o desenvolvimento

dos principais centros urbanos brasileiros, dando início à decadência do patriarcado rural, o

qual passa a ser substituído por uma nova burguesia. Isso ocorre em um primeiro momento,

com a transferência da corte portuguesa para o Brasil, o que atribuiu à colônia o status de

sede da metrópole, desenvolvendo e moldando a partir desse período uma nova

organização estrutural no país, para fins de comportar a realeza D. João VI e sua corte.

Assim, inicia-se de forma efetiva o progresso “das cidades e das indústrias ou

atividades urbanas”3. Em contrapartida, o sistema rural acumula nesse período várias

dívidas devido aos financiamentos e financiadores agiotas das lavouras, que enriqueceram

à custa dos senhores de engenhos. Todavia, algumas dívidas foram perdoadas em troca de

1 Graduada em História pela Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões (URI) – Campus de Frederico Westphalen. Pós-graduanda do Curso de Aperfeiçoamento em Docência no Ensino Superior pela mesma universidade. E-mail: [email protected]. 2 Especialista em História do Brasil e a Perspectiva Regional pela Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões (URI) – Campus de Frederico Westphalen. Professor da Escola Estadual Técnica José Cañellas e professor titular da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões (URI) – Campus de Frederico Westphalen. E-mail: [email protected] 3 FREYRE, Gilberto. Sobrados e Mucambos: decadência do patriarcado e desenvolvimento do urbano. 16. ed. São Paulo: Global, 2006a. p. 106.

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casamentos arranjados “entre a moça burguesa e o filho de senhor de engenho, ou então

entre o filho do mercador, ou o próprio mercador, e a sinhazinha fina da casa-grande”4.

A partir desse período, priorizou-se o desenvolvimento das cidades, o avanço do

comércio e o enriquecimento dos comerciantes e burgueses por meio de benefícios

monetários, com o estabelecimento deles nos espaços dos setores políticos e econômicos,

ao contrário dos agricultores, que a partir do século XIX foram alvos de pesados impostos e

juros que se tornaram obstáculos para o patriarcado rural.

Contribuiu também para a queda da hegemonia dos engenhos o descaso, de muitos

filhos formados médicos e bacharéis, pela vida na fazenda, pois não tinham interesse por

um sistema ainda feudal de produção agrícola – neste caso, o açúcar –, atrasado e pouco

atraente para a geração que se formava. Por esse motivo, eles deixavam a casa-grande,

construindo suas vidas nas cidades, as quais os alegravam e seduziam para um mundo de

novas oportunidades. Dessa forma, os filhos diplomados e estudados do campo

avolumaram a população urbana.

[...] as próprias gerações mais novas de filhos de senhores de engenho, os rapazes educados na Europa, na Bahia, em São Paulo, em Olinda, no Rio de Janeiro, foram-se tornando [...] afrancesados, urbanizados e policiados. [...] bacharéis e médicos raramente voltavam às fazendas e engenhos patriarcais depois de formados. Com o seu talento e sua ciência foram enriquecendo a Corte [...]. As cidades tomaram das fazendas e dos engenhos esses filhos mais ilustres [...].5

Outro fator importante a ser considerado é o descobrimento e o trabalho nas minas,

que contribuiu para acelerar o crescimento das cidades e a riqueza da aristocracia brasileira,

sendo esse trabalho, ao contrário da fase do açúcar, uma atividade urbana. Neste período,

em Minas Gerais, surgiram os primeiros “magnatas do ouro e animadores de cidades que

tiveram um caráter especialíssimo em nossa formação. [...] Autocratas de sobrados, ou de

casas nobres, levantadas dentro das cidades e envolvendo as casas menores nas suas

sombras”6.

Nesse sentido, a aristocracia urbana brasileira do século XIX adaptou-se a um novo

estilo de vida, em vários aspectos diferenciados do Brasil colonial, evidenciado por meio do

vestuário, da gastronomia, da cultura e da educação, distinções representadas nas escolhas

4 FREYRE, Gilberto. Sobrados e Mucambos: decadência do patriarcado e desenvolvimento do urbano. 16. ed. São Paulo: Global, 2006a. p. 113. 5 FREYRE, Gilberto. Sobrados e Mucambos: decadência do patriarcado e desenvolvimento do urbano. 16. ed. São Paulo: Global, 2006a. p. 121-122. 6 FREYRE, Gilberto. Sobrados e Mucambos: decadência do patriarcado e desenvolvimento do urbano. 16. ed. São Paulo: Global, 2006a. p. 110.

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do ethos7, da produção e customização de gostos, de hábitos e costumes que foram sendo

cada vez mais ocidentalizados.

Assim, produziu-se um novo sistema de relações psicossociais e culturais,

intensificado com a influência externa8 do continente europeu, o qual traz “uma série de

atitudes e de padrões de vida que, espontaneamente, não teriam sido adotados pelos

brasileiros”9 e que alteraram significativamente a sociedade, produzindo uma nova

mentalidade burguesa, com conceitos diferenciados que interferiram e modificaram o

cotidiano familiar, bem como as atividades das moças e mulheres de sobrado.

O sobrado e a moça de elite: alguns aspectos relevantes

O sobrado, por muito tempo, manteve um conflito diário com a rua, pois “a maior luta

foi travada em torno da mulher por quem a rua ansiava, mas a quem o pater familias

procurou conservar o mais possível trancada na camarinha10 e entre as molecas, como nos

engenhos [...]”11.

Na concepção religiosa e familiar da época, a função do sobrado era a de proteger e

guardar as mulheres, temendo que as jovens donzelas ficassem faladas diante da

sociedade e recebessem más influências, como observa Gilberto Freyre: “iaiá que saísse

sozinha de casa, rua afora, ficava suspeita de mulher pública. [...] O lugar de iaiá a

camarinha; quando muito a janela, a varanda, o palanque”12.

Todavia, aos poucos o sobrado – sempre contra a sua vontade – foi cedendo ao

contato da mulher e da moça com a rua, como descreve Freyre:

A varanda e o caramanchão marcaram uma das vitórias da mulher sobre o ciúme sexual do homem e uma das transigências do sistema patriarcal com a cidade antipatriarcal. [...] Quando as urupemas foram arrancadas à força dos sobrados do Rio de Janeiro, já no tempo de D. João, e dos sobradões

7 Segundo Freyre, por ethos entende-se o “conjunto de traços que exprimem o caráter de um grupo social [...]. Esses traços constituem também uma cultura regional ou nacional.” FREYRE, Gilberto; FONSECA, Edson Nery da (Org.). Antecipações. Recife: EDUPE, 2001. p. 240. 8 Neste trecho da obra o autor analisa a imposição das modas europeias e, em especial, da moda inglesa, devido ao Tratado de Methuen ou Tratado dos Panos e Vinhos (1703), referente ao acordo comercial entre Portugal e Inglaterra, o qual, no século XVIII, consolidou o comprometimento de Portugal em consumir os produtos têxteis britânicos, bem como o da Inglaterra em consumir os vinhos portugueses, o que introduziu no Brasil, durante a colônia e depois já no império, costumes e modas europeias. 9 FREYRE, Gilberto. Sobrados e Mucambos: decadência do patriarcado e desenvolvimento do urbano. 16. ed. São Paulo: Global, 2006a. p. 431. 10 Entende-se por camarinha quartos que geralmente eram encontrados nas casas grandes. Nos sobrados, as moças ficavam reclusas nas alcovas que eram os aposentos, onde na maioria dos casos se escondiam quando chegavam visitantes e pessoas estrangeiras. As moças na época viviam em casa e raramente saiam para a rua, e quando o faziam eram praticamente escondidas nos palanquins, nas liteiras (cadeiras portáteis carregadas por escravos) e nos carro de boi, ainda assim em poucos casos, como missas e determinados bailes. 11 FREYRE, Gilberto. Sobrados e Mucambos: decadência do patriarcado e desenvolvimento do urbano. 16. ed. São Paulo: Global, 2006a. p. 139. 12 FREYRE, Gilberto. Sobrados e Mucambos: decadência do patriarcado e desenvolvimento do urbano. 16. ed. São Paulo: Global, 2006a. p. 269-270.

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do Recife e das cidades mais opulentas da colônia já quase independente de Portugal, pode-se dizer que se iniciou nova fase nas relações entre os sexos.13

O sobrado foi por muito tempo, para as filhas da aristocracia, uma espécie de exílio.

No entanto, com as novas tendências burguesas, o gênero feminino passa a ter gradual e

timidamente maior presença na sociedade, a partir do segundo reinado e com o advento dos

novos estilos de vida instalados nos trópicos.

A Igreja: atribuição às mentalidades femininas na sociedade patriarcal

Pôr em voga a Instituição de maior preponderância durante muitos séculos no Brasil

e na América Latina é como entrar em um labirinto de difícil saída, devido a alguns

obstáculos culturais, sociais, psicológicos, históricos, paradigmáticos e ideológicos.

Com sua doutrina de base ocidental, a Igreja ditou e defendeu bravamente os

valores da sagrada família, da busca pela salvação eterna, a fim de que os indivíduos não

caíssem em tentação, livrando-se dos males que rondam a humanidade, sendo a “casa

sagrada” o elixir para a purificação.

Com um enorme ufanismo ao Deus maior e supremo, a religião desenvolveu

mecanismos de fé e pecados, para que homens e mulheres seguissem os ensinamentos e a

vontade suprema. Não obstante, fez da mulher um ser ocioso, quase inanimado em relação

às práticas sociais, comuns no sistema em questão.

Todavia, o confessionário teve um dos papéis de maior destaque na vida do gênero

feminino, principalmente na das mulheres de engenho, não deixando de considerar, é claro,

que esse instrumento foi muito utilizado no Brasil já aburguesado, porém com menor fervor,

mas que ainda assim influenciava as mentalidades femininas, libertando-as da ditadura

intransigente das figuras mais temidas: o pai e o marido.

Mesmo assim, a Igreja, aliada à estrutura patriarcal, colaborou para a mulher se

tornar mais reprimida, desenvolvendo e nutrindo sentimentos de culpa, tendo dentro das

Igrejas a postura de esconder-se com as “capotas, os xales, as mantilhas, tapando a

metade do rosto”14, talvez pela moda, mas muito mais pela cultura que se formou nesse

período de inferioridade, de exclusão social, de pecado.

Devido à constante opressão da mulher no período patriarcal, era por meio da

confissão que moças e senhoras desabafavam todo o peso mental, angústias e medos.

Desejos reprimidos, convertidos em pecados, acabavam por atormentar muitas mulheres

13 FREYRE, Gilberto. Sobrados e Mucambos: decadência do patriarcado e desenvolvimento do urbano. 16. ed. São Paulo: Global, 2006a. p. 272. 14 FREYRE, Gilberto. Sobrados e Mucambos: decadência do patriarcado e desenvolvimento do urbano. 16. ed. São Paulo: Global, 2006a. p. 452.

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devido às doutrinas morais e aos valores sociais, que as sufocavam e as faziam,

inconscientemente, excluir suas ideias, seus sentimentos, sua forma natural de ser,

introduzindo em suas mentes as representações da época.

Sobre essa ótica, verifica Gilberto Freyre que “pode-se atribuir ao confessionário, nas

sociedades patriarcais em que se verifique extrema reclusão ou opressão da mulher, função

utilíssima de higiene, ou melhor, de saneamento mental.”15 Assim, o confessionário foi a

solução para o desequilíbrio psicológico ao qual as mulheres estavam vulneráveis, em razão

do sistema de opressão vigente.

Ao contrário de Gilberto Freyre, que, de maneira geral, relaciona com palavras

brandas de complacência o gênero feminino e a Igreja, observando que a Instituição, por

meio do confessionário e da religião, trouxe um alívio para toda a tirania machista que

pairou no período patriarcal brasileiro, Padre Lopes da Gama, sob um viés clerical, escreve

em um de seus vários artigos reunidos e organizados por Evaldo Cabral de Mello, na obra O

Carapuceiro, o seguinte trecho:

Que custa, por exemplo, rezar em umas contas? Muitas mulheres trazem-nas cosidas consigo, de forma que despachando contas saem a fazer visitas; despachando padre-nossos e ave-marias, dão à tramela horas esquecidas com as amigas e camaradas, despachando contas murmuram do próximo, desenterram mortos, sepultam vivos; despachando contas descompõem bem descomposta uma vizinha [...].16

Entretanto, o que haveriam de fazer ou de falar essas enfadonhas mulheres, quando

em contato com outras, que não fosse de casa, dos filhos, dos maridos e da vida alheia?

Qual era a distração ou os reais afazeres dessas senhoras e senhoritas, em especial as

aristocráticas?

O sistema patriarcal e a Igreja foram os principais responsáveis pela superficialidade

da mulher, fazendo-a um sujeito mórbido, obsoleto, em meio ao seu protetor, o sexo forte, a

voz da razão e da dominação social patriarcal.

A ocidentalização da moça de sobrado: um novo estereótipo feminino

Com a urbanização do país e as novas tendências absorvidas, importaram-se,

também do ocidente, códigos de etiquetas e de boas maneiras do mundo civilizado. As

moças de sobrado adquirem novos estilos, tendo um maior apego aos prazeres da vida, ao

materialismo – em especial o que fosse importado da Inglaterra e da França –,

15 FREYRE, Gilberto. Sobrados e Mucambos: decadência do patriarcado e desenvolvimento do urbano. 16. ed. São Paulo: Global, 2006a. p. 208. 16 GAMA, Lopes; MELLO, Evaldo Cabral de (Org.). O carapuceiro: crônicas e costumes. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. p. 32.

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desenvolvendo nessa época atividades antes desconhecidas das práticas cotidianas, como

o francês, a música, a dança etc.

Os romances foram as leituras mais assíduas entre as jovens burguesas, o que aos

olhos da Igreja, dos pais e da sociedade mais conservadora era percebido como um perigo

para as cabecinhas das inocentes mulheres. Nesse período surgiram escritores como José

de Alencar, autor que não era visto com bons olhos, e tinha suas obras conceituadas como

“más leituras”17 para as jovens.

[...] nos princípios do século XIX, estivesse sendo substituída nos sobrados e até em algumas casas-grandes de engenho, por um tipo de mulher menos servil e mais mundano; acordando tarde por ter ido ao teatro ou algum baile; lendo romance; [...] outras tantas horas no piano, estudando a lição de música; e ainda outras, na lição de francês ou na de dança. Muito menos devoção religiosa do que antigamente. Menos confessionário. Menos conversa com as mucamas. Menos história da carochinha contada pela negra velha. E mais romance. O médico de família mais poderoso que o confessor. O teatro seduzindo a mulher elegante mais que a Igreja. O próprio “baile mascarado” atraindo senhoras de sobrado.18

Nesse cenário surge um perfil de mulher mais esclarecida, com aulas de música,

com leituras, em especial os romances, aprendendo a tocar algum instrumento como o

piano, tendo aulas de canto e de idioma francês, ocorrendo dessa forma a aristocratização e

ocidentalização da vida da elite brasileira.

Então, iniciam-se as modas dos vestidos armados, dos cabelos ornamentados com

pentes exuberantes, dos cabelos longos19, das teteias e joias exageradamente distribuídas

nos dedos, orelhas, pescoço e braços, das ancas largas e das cinturas finas. Modas aos

padrões de Paris, panos, tecidos, roupas pesadas, cartolas, sobrecasacas, tudo de mais

pesado e quente, caracterizavam um estilo inverso a um país tropical.

Mais do que o homem, as influências das novas modas atingiram as nossas

mulheres e as delicadas moças de sobrado. Elas foram as maiores vítimas: modas aos

moldes das mulheres europeias – mulheres enxutas e angulosas – e as condições

climáticas diferentes do clima dos trópicos.

Prova disso é a deformação que se fez no corpo da mulher brasileira, como nos pés,

pela ideia de que estes deveriam ser formosos e pequenos, utilizando-se para isso sapatos

17 O termo “más leituras” foi utilizado por Freyre quando ele exemplifica as novas influências literárias dando o exemplo do autor José de Alencar, que em suas obras situa a mulher como personagem capaz de se tornar insinuante e esperta, o que poderia fazer com que as moças, por meio dessas leituras, tomassem para si esses comportamentos, com a intenção de imitá-las. 18 FREYRE, Gilberto. Sobrados e Mucambos: decadência do patriarcado e desenvolvimento do urbano. 16. ed. São Paulo: Global, 2006a. p. 226. 19 Quanto aos cabelos longos, deve-se lembrar que nesse período muitas mulheres tinham piolhos, inclusive as mulheres de elite. No entanto, ao contrário das mulatas e negras que cortavam o cabelo devido aos piolhos, as mulheres da classe alta, mesmo tomadas de coceira, não deixavam de manter as madeixas tão compridas quanto lhes fosse possível, como forma de distinção social.

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menores que o seu tamanho, e nas cinturas, que deveriam ser bem definidas e marcadas,

sendo o espartilho o acessório principal para que muitas jovens sofressem de doenças

respiratórias, devido à pressão que exercia sobre o debilitado corpo das frágeis moças.

Foram cobranças introduzidas pelo sistema que exigiam mulheres de pés pequenos

e de cintura fina, bem como mocinhas magrelas e sensíveis, não apenas para serem o

oposto do homem, mas também das negras e das mulatas brasileiras, distinguindo-se ao

máximo a superioridade da mulher branca sobre a mulher de cor.

A mulher, anteriormente trancafiada em casa, dependendo das visitas dos mascates

para fazerem a festa com “os baús de flandres cor-de-rosa e as caixas de papelão”20, ou das

lojas para enviarem aos sobrados vestidos prontos, tecidos, acessórios, perfumes, para que

elas pudessem escolher dentro de casa, longe da rua, se faz nesse período, com a

urbanização, um pouco mais social, tendo contato com a rua, ainda que pouco e sob

ressalva do pai ou do marido ciumento.

No entanto, o Mestre dos Apipucos adverte:

[...] a maior europeização de trajo nem sempre significou, entre nós, a libertação da mulher do excessivo domínio do homem. Nem a libertação do próprio homem, dos preconceitos e tradições que criara, para ele, uma segregação intelectual profunda da Europa burguesa industrial, nórdica. O hábito nem sempre faz o monge.21

Nessa perspectiva, moldavam-se novas representações da mulher brasileira

iniciando uma nova fase do gênero na sociedade, com a desconstrução de um determinado

estereótipo do sexo feminino, como mulheres sempre trancafiadas em casa, escondidas de

estranhos e da rua, alheias à sociedade e ao mundo além-muros dos sobrados.

As mulheres, bem como a moça de sobrado, passam a participar da sociedade, de

alguns bailes, do teatro e dos carnavais de salão. O que um século antes poderia parecer

uma afronta aos valores das famílias patriarcais, passa a ser um protocolo de elite, com a

aparição das mulheres sempre bem trajadas com as últimas tendências europeias, fazendo

as cortes nos ambientes da casa e em eventos públicos.

Também correspondiam as novas modas ocidentais que chegaram ao Brasil no começo do século XIX a outro gênero de vida de mulher: o de mulheres que andavam a pé nas ruas, que iam às lojas e aos armazéns fazer compras, que acompanhavam os maridos ao teatro, aos concertos, aos jantares, às corridas de cavalo, aos jogos da bola. Que andavam de cavalo quase à maneira dos homens.22

20 FREYRE, Gilberto. Sobrados e Mucambos: decadência do patriarcado e desenvolvimento do urbano. 16. ed. São Paulo: Global, 2006a. p. 140. 21 FREYRE, Gilberto. Sobrados e Mucambos: decadência do patriarcado e desenvolvimento do urbano. 16. ed. São Paulo: Global, 2006a. p. 454. 22 FREYRE, Gilberto. Sobrados e Mucambos: decadência do patriarcado e desenvolvimento do urbano. 16. ed. São Paulo: Global, 2006a. p. 600.

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Porém o processo de modernização e inserção de novas modas não substituiu por

completo os costumes e hábitos existentes no país, uma vez que “o estrangeirismo era

sempre visto em nossa sociedade colonial, e mesmo durante longo período do império,

como um possível Don Juan”, mas na medida em que foi se intensificando a

ocidentalização, modificou consideravelmente as mentalidades do povo, desenvolvendo e

atribuindo aos seres humanos novos interesses, costumes e influências. Le Goff23 afirma

que “a tomada de consciência da modernidade exprime-se, muitas vezes, pela afirmação da

razão – ou da racionalidade – contra a autoridade ou a tradição”, exprimindo a ideia de que

para que ocorra a aceitação de novas modas é natural e/ou necessário que ocorra a

negação de alguns costumes, que em decorrência da modernidade são conceituados como

retrógrados.

Nesse sentido a europeização, ou, como Freyre cita em algumas passagens do seu

livro, a “reeuropeização”, devido à influência portuguesa no Brasil, ocorreu de maneira

revolucionária, alterando um país ainda de face colonial, pacata e enfadada para uma

extensão de Paris com todas as suas modas, arquiteturas diferenciadas e etiquetas

europeias.

O país insere-se em um novo contexto, deixando alguns aspectos fraternais e de

origem luso, africana ou moura, que na maioria das vezes se encaixaram positivamente no

país, por uma cultura mais artificial, que por meio das modas deixou-se moldar

superficialmente por diversos comportamentos, etiquetas, doutrinas, vestimentas,

artificializando a sociedade e, em contrapartida, iniciando uma nova fase do Brasil: a da

urbanização e do desenvolvimento.

Considerações finais

Buscou-se com esse artigo tecer um breve panorama das mudanças que ocorreram

no Brasil no final do século XVIII e início do século XIX, a partir da leitura da obra Sobrados

e Mucambos, analisando como o gênero feminino, oprimido pelo sistema patriarcal e

religioso, processa novos hábitos, modas e gostos ocidentais no cotidiano da elite brasileira.

Desenvolveu-se nesse período de urbanização outro perfil de mulher – diferente do

perfil do Brasil rural e escravocrático –, sobre forte influência europeia, fazendo com que aos

poucos fossem esquecidos alguns costumes lusos e mouros, que inicialmente interferiram e

contribuíram para a formação do habitus dos brasileiros.

23 LE GOFF, Jacques. História e Memória. São Paulo: Unicamp, 203. p. 202.

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Por meio dessa análise teórica pôde-se perceber a importância e a atenção que

Gilberto Freyre teve em descrever a mulher brasileira, abordando as novas modas

ocidentais aderidas pela aristocracia que criaram um novo estereótipo de mulher, mais

instruída e liberta da ditadura do pai, do marido e da Igreja.

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O FAUSTO DOS NEGROS:

A procissão de São Benedito no Sergipe Oitocentista

Magno Francisco de Jesus Santos1

Resumo: Na sociedade brasileira oitocentista as festas representavam um dos principais momentos de congregação social. Em Lagarto, vila sergipana que se destacava pela produção agrícola, não acontecia diferente. Os festejos em torno de santos padroeiros movimentavam a pacata localidade. Neste estudo, temos o propósito de apresentar e compreender os espaços de territorialidades presentes na festa, a partir da análise de registros que enfocam o evento, como a obra memorialista de Mello Morais Filho e o livro de contas e receitas da Irmandade Nossa Senhora do Rosário. O território era demarcado com o mastro na praça do Rosário, representando a posse simbólica da territorialidade lagartense pelos membros da irmandade do Rosário. Era a face alegre dos escravos, que rompiam com o silêncio do cativeiro. Palavras-chave: Festa. Memória. Sociabilidade. Abstract: In nineteenth-century Brazilian society parties represented one of the key moments of social congregation. In Lagarto, Sergipe village that stood out by agricultural production, there was no different. The festivities around patron saints moved to the sleepy town. In this study we intend to present and understand the spaces of territoriality at the party, from the analysis of records that focus on the event, as the work of Mello Moraes Filho memoirist and book of accounts and receipts of the Brotherhood of Our Lady of the Rosary. The territory was demarcated with the mast in the square of the Rosary, representing the symbolic possession of territoriality lagartense by members of the Rosary. It was the happy face of slaves, who broke the silence of captivity. Keywords: Party. Memory. Sociability.

O tempo da festa

Ano bom. Era o raiar de mais um ano, um novo reinício com festas, missas e

procissões. O mundo católico do Império do Brasil seguia os pressupostos da religião do

Calvário, com pinceladas africanas e ameríndias. O ritual católico estava mesclado de

superstições. As normativas do Concílio do Vaticano I se mesclavam ao universo religioso

barroco. Leituras diferenciadas. Olhares envoltos por interpretações díspares. Era a

religiosidade do Brasil na segunda metade da centúria dos oitocentos.

O Brasil possuía uma experiência religiosa própria, pois o século XIX “recebeu de

herança o que ficou conhecido por religiosidade colonial ou catolicismo barroco”2. Tratava-se

1 Licenciado, bacharel, especialista em Ciências da Religião e mestre em Educação em História pela Universidade Federal de Sergipe. Doutorando em História Social pela Universidade Federal Fluminense. Professor do curso de História da Faculdade José Augusto Vieira e nas redes municipais de ensino de Laranjeiras e Itaporanga d’Ajuda. 2 ABREU, Martha. O Império do Divino: festas religiosas e cultura popular no Rio de Janeiro, 1830-1900. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,1999. p. 33.

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de um país em que o campo religioso encontrava-se multifacetado, maculado pelo domínio

das inúmeras irmandades espalhadas nos templos. Os leigos estavam no poder e possuíam

o controle das ações dentro das práticas religiosas3. Pode-se dizer que existia na ex-colônia

lusitana das Américas um catolicismo tingido pelas cores dos sujeitos envoltos na trama. A

teatralidade barroca da Europa se alinhava ao panteão de divindades africanas e indígenas,

criando uma religião híbrida.

O que pode ser dito a respeito da menor província do Império na segunda metade do

século XIX? A realidade certamente não era muito distante do que ocorria na corte e nas

principais províncias, como Minas Gerais, Pernambuco e Bahia. A experiência religiosa

provincial se aproximava do que ocorria no restante do país, se enquadrando “nos moldes

do chamado catolicismo tradicional e popular”4. Prevaleciam as imagens das procissões,

missas solenes e cantadas, práticas penitenciais, deslocamento de romeiros. Em suma, era

uma religiosidade transubstanciada na festividade, nos espetáculos de rua.

Na perspectiva de Pierre Verger, o Brasil do século XIX não era somente formado

por grandes construções com influência europeia, mas, sim, por uma sociedade visceral,

que suspirava os dramas cotidianos por meio do espetáculo, ou seja, era essencialmente

“um barroco de rua”5. Nada de insosso. A sociedade brasileira oitocentista era colorida,

plural, exímia na diversidade, inclusive social.

As celebrações se espalhavam pela província de Sergipe. Em cada época do ano o

calendário se tornava uma ocasião para reviver os dramas cotidianos e, concomitantemente,

o tempo sagrado. A festa, em si, “corta a sequência. Ela quebra o encadeamento dos

acontecimentos que a ideologia histórica européia nos apresenta como lógico e

insuperável”6. Na cosmovisão do homem religioso, o tempo não se apresenta de modo

unívoco, contínuo; ele é percebido pela sociedade com rupturas, quebras, enlaces que

despertam aceleração, ou seja, “tal como o espaço, o tempo também não é, para o homem

religioso, nem homogêneo, nem contínuo”7. Cada grupo social realiza uma apropriação do

tempo. A festa é uma dessas protrusões temporais.

3 BOSCHI, Caio César. Os Leigos e o Poder: irmandades leigas e política colonizadora em Minas Gerais. São Paulo: Ática, 1986. 4 OLIVEIRA, Vanessa dos Santos; SOGBOSSI, Hippolity Brice. Devoção com diversão: a festa de Nossa senhora do Rosário na cidade de São Cristóvão-SE (1860-1880). Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe, Aracaju. n. 37, 2008, p. 52. 5 VERGER, Pierre. Procissões e Carnaval no Brasil. Ensaios/Pesquisas – Centro de Estudos Afro-orientais, Salvador, n. 5, 1984, p. 1. 6 DUVIGNAUD, Jean. Festas e Civilizações. Trad. Raposo Fontenelle. Fortaleza: UFC; Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983. p. 24. 7 ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano: a essência das Religiões. Lisboa: LBL Enciclopédia, 2001. p. 63.

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O mesmo ocorria na vila de Lagarto8, no agreste da província de Sergipe. Fim de ano

era sinônimo de festa. O ano bom era celebrado com pompa e atraía a população dos

povoados e vilas próximas. O leque devocional do Império entrava em cena com as

celebrações em torno dos Santos Reis, São Benedito e Nossa Senhora do Rosário. Por

alguns dias as ruas da pequena vila se encontravam repletas de membros da elite local,

compartilhando o mesmo espaço com anônimos, pobres camponeses e escravos que se

deslocavam para celebrar seus patronos.

As festividades eram organizadas pela irmandade Nossa Senhora do Rosário. Nos

primeiros dias do ano, o controle dos bens simbólicos estava sob a tutela de uma pequena

elite também simbólica que compunha a corporação religiosa constituída por leigos.

Segundo o compromisso aprovado pela Assembleia Provincial por meio da Resolução 963

no dia 31 de março de 1874, a irmandade não fazia distinção alguma de cor:

E’ criada nesta villa de N. S. da Piedade do Lagarto uma Irmandade com a invocação de N. S. do Rozario, a qual se comporá de todas as pessoas de ambos os sexos, casados, viuvos, e solteiros até a idade 7 annos sem distincção de cor e condicção. Não há numero limitado. Art. 2º. Haverá nesta Irmandade um thesoureiro, dous procuradores, um escrivão, tres juizes, e doze mordomos.9

Como se pode perceber, a Irmandade Nossa Senhora do Rosário da Freguesia

Nossa Senhora da Piedade da vila do Lagarto não realizava distinções de cor. Ao contrário

de outras congêneres de Sergipe e do Império, nas quais a devoção do Rosário era

destinada à população escrava, a irmandade lagartense não designou um mecanismo legal

visando segregar segmentos sociais. Pelo contrário, instituiu um código que abria o campo,

criava oportunidade de congregar diferentes esferas da sociedade local, o que certamente

acarretaria o aumento das arrecadações.

A não predisposição da exclusividade étnica no compromisso da Irmandade Nossa

Senhora do Rosário de Lagarto não significa dizer que havia em seu interior uma

miscelânea de camadas sociais. Os memorialistas das festas do ciclo natalino de Lagarto

oitocentista demonstram que havia o predomínio da população negra, especialmente

escravos. Ao que tudo indica, em Lagarto não ocorreu o processo de elitização da

Irmandade do Rosário como aconteceu em Estância10. Em Lagarto a posse da irmandade

8 Referência à vila de Nossa Senhora da Piedade do Lagarto, que foi criada no final do século XVII, onde já havia a freguesia. Apesar de ser uma das mais antigas povoações de Sergipe, a vila só foi elevada à condição de cidade no final do século XIX. 9 FRANCO, Candido Augusto Pereira. Compilação da Leis Provinciais de Sergipe. Aracaju: Typographia de F. das Chagas Lima, 1879, v. 1. p. 146. 10 Em Estância, principal núcleo urbano do sul da província de Sergipe no século XIX, processou-se uma elitização da Irmandade Nossa Senhora do Rosário, que possuía igreja própria. A elite local, que se encontrava

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estava sob a autoridade da população escrava. Eram eles os donos das festas colossais

que ocorriam com pompa nos primeiros dias do ano; eram eles que desfilavam com seus

santos patronos, acompanhados por uma multidão desmedida de devotos. As normas

estabelecidas pelos irmãos do Rosário e aprovadas na Assembleia Provincial eram apenas

um aparato legal que nem sempre estava próximo do que ocorria nas práticas cotidianas.

A nova historiografia brasileira sobre festas tem evidenciado que as celebrações

eram ocasiões de congregação, mas que nem sempre as chagas sociais eram esquecidas

ou apagadas. Provavelmente ocorria uma camuflagem. Diante da pompa da solenidade, as

diferenças entre pobres, ricos e marginalizados pouco apareciam. Contudo, podemos

afirmar que elas certamente existiam e se faziam presentes nas celebrações11.

Neste texto não temos o intuito de discutir essa relação dicotômica entre poder e

classe. O propósito é compreender a construção simbólica do poder inerente aos festejos

dos santos patronos dos negros na vila de Lagarto, utilizando como fonte a descrição

realizada por Mello Morais Filho, o compromisso e o livro de prestação de contas da

irmandade Nossa Senhora do Rosário da vila do Lagarto. Nos dias de festa, a pequena vila

do agreste sergipano se metamorfoseava com uma aparente inversão social. Nos primeiros

dias do ano, os negros com seus patronos assumiam respectivamente os papéis de

mordomos e patronos da vila. Isso transparece nas diferentes tipologias documentais. Trata-

se de registros que evidenciam o cotidiano das populações afro-brasileiras sob a ótica do

visitante e dos próprios segmentos populares que constituíam o enredo social, como atesta

Russel-Wood:

É inevitável que as irmandades de negros e mulatos cujos arquivos foram preservados até hoje e sobre as quais estamos mais bem informados sejam as que gozaram de elevado grau de importância e estabilidade durante a época colonial. Seus registros e livros-caixa não têm paralelo na história da América portuguesa como documentos elaborados por negros e mulatos especificamente para si mesmos12.

No caso da irmandade da vila de Lagarto trata-se da confluência de dois olhares, de

pontos diferentes. O olhar dos bastidores, constituído no intuito de evidenciar e comprovar

os gastos inerentes aos festejos, ou seja, um documento produzido pelos membros da

dividida nas irmandades do Santíssimo Sacramento e Bom Jesus dos Passos, passou a ter o controle da irmandade que antes estava sob a tutela dos negros. Sobre esse tema pode ser consultado o conjunto de artigos publicados por Francisco José Alves dos Santos (1984, 1985, 1988 e 1992) e a monografia de graduação de Péricles Morais de Andrade Júnior (1998). 11 DEL PRIORE, Mary. Festas e Utopias no Brasil Colonial. São Paulo: Brasiliense, 1994. 12 RUSSELL-WOOD, A. J. R. Escravos e libertos no Brasil colonial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. p. 199.

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irmandade com o intuito de legitimar os gastos e receitas da irmandade diante do Estado e a

narrativa de um viajante, a ótica de um intelectual que vislumbrou a celebração como

resquício de um tempo que acreditava já ter findado, de um passado remoto. Permeando

essas duas perspectivas, emerge também o compromisso da irmandade, com as

normatizações que refletem as exigências da sociedade oitocentista, nem sempre

cumpridas com rigor pelos irmãos.

A partir desses três ângulos distintos se torna possível tecer a reconstituição da

territorialidade construída por conta da realização das festas. O espaço urbano era

redefinido, com uma redistribuição de significados e do poderio. As ruas e praças eram

tomadas pelos irmãos do Rosário e suas expressões culturais, que ora arrecadavam

esmolas para os festejos, ora desfilavam em louvor aos patronos. Os elementos simbólicos

da festa eram expostos, demarcando territórios, criando expectativas e fortalecendo laços

identitários.

Os irmãos do Rosário preparavam tudo. A festa estava prestes a começar. As ruas

estavam abarrotadas de bandeirolas. O desmesurado mastro abanava no alto a bandeira do

padroeiro. O padre e a música já estavam contratados. Taieiras e congadas saíam pelas

ruas arrecadando as esmolas. Os sinos da matriz anunciavam a procissão, convidando os

devotos para o mais importante espetáculo de fé da vila.

Naqueles dias até parecia emergir uma face alegre da escravidão. Os senhores de

engenho liberavam os seus cativos para a devida participação nos festejos mais animados

da cidade13. A igreja do Rosário se tornava o foco central dos olhares curiosos da população

local e o percurso entre as igrejas passava por ressignificações.

A festa dos santos padroeiros dos escravos, São Benedito e Nossa Senhora do

Rosário, na vila do Lagarto no século XIX, apresentava uma estética barroca, que despertou

o interesse de alguns intelectuais. Viajantes, como Mello Morais Filho14, registraram a

magnitude com que a população local realizava os festejos dos seus oragos, pontuando

aspectos religiosos e profanos, como danças folclóricas.

Segundo o intelectual brasileiro, a procissão de São Benedito poderia ser vista como

um pedaço do passado que sobreviveu às barreiras do tempo e adentrou o século XX. Era

um fragmento do multifacetado cenário cultural brasileiro do período colonial que

permanecia vivo em algumas plagas do norte. Nessa perspectiva, a referida festa era 13 MORAIS FILHO, Mello. A procissão de São Benedito em Lagarto. In: ______. Festas e tradições populares no Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, 1999. p. 70. 14 As informações sobre a festa de São Benedito na vila de Lagarto que constam na obra de Mello Morais Filho foram passadas por Sílvio Romero. Ao final do texto, Mello Morais Filho afirma que “disso-nos Sílvio Romero, o escritor que com tanto zelo cultiva esses assuntos, e cujo nome resplende solitário no ápice da pirâmide de nossa literatura contemporânea”. MORAIS FILHO, Mello. A procissão de São Benedito em Lagarto. In: ______. Festas e tradições populares no Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, 1999. p. 75.

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relevante por exibir, em cores, aspectos culturais e religiosos que já haviam desaparecido

no sul do Brasil. Observe o registro de Morais Filho.

A procissão de S. Benedito, que se fazia anualmente no Lagarto, em Sergipe, descortinava uma nesga de tela moldurada à antiga, a restauração de uma dessas cenas em que se confundiam classes e castas, constituindo um todo harmônico, estranho e significativo15.

Como se pode perceber, o autor identifica a procissão como um momento raro na

sociedade brasileira do século XIX, em que as marcantes e acentuadas diferenças sociais

se mascaravam. Por alguns instantes a harmonia social era camuflada nas ruas da vila de

Lagarto. Na visão do autor, ao longo dos cortejos sacros as diferenças entre as classes

eram momentaneamente apagadas.

A procissão de 6 de janeiro era grandiosa. Segundo o relato de Mello Morais Filho, a

procissão de São Benedito impressionava pela magnitude. Era tão grandiosa que chegava a

ofuscar os demais eventos e celebrações que ocorriam na localidade no mesmo período,

como atesta Morais Filho:

Verdade era que um ou outro rancho de pastores, um ou outro termo da burrinha, do bumba meu boi, da caiporinha, dos marujos, etc., percorria as ruas, dançando nas casas, representando a tradição do Natal; porém não era menos evidenciado que o entusiasmo geral preferia a devoção de S. Benedito para tocar ao seu apogeu, ficando, por conseguinte prejudicado o regozijo dos natais e das lapinhas.16

O autor destaca a imponência da celebração de São Benedito diante das demais

manifestações culturais do ciclo natalino de Lagarto. Os preparativos da festa ocorriam ao

longo dos seis primeiros dias do ano. Desde o dia primeiro já havia indícios relativos à

preocupação em constituir um território do sagrado, em demarcar o espaço das festividades,

com a retirada do mastro. O mastro representava um elemento simbólico de poder,

reafirmava a identidade dos festeiros e evidenciava que, naqueles dias, o destaque da vila

do Lagarto era a irmandade do Rosário.

A magna festa tinha por prólogo, no dia 1º de janeiro, a retirada do mastro consagrado ao Santo e que se achava fincado no Largo do Rosário, em frente à igreja. Esse mastro, que ficara do ano antecedente, deixava flutuar no topo uma bandeira branca com a estampa de S. Benedito, e logo abaixo

15 MORAIS FILHO, Mello. A procissão de São Benedito em Lagarto. In: ______. Festas e tradições populares no Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, 1999, p. 69 16 MORAIS FILHO, Mello. A procissão de São Benedito em Lagarto. In: ______. Festas e tradições populares no Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, 1999, p. 69.

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meadas de cordéis, que recordavam os deliciosos ananases e estimados frutos, ali suspensos outrora como embelezamento e para prêmios17

Além dos preparativos com o mastro, havia também rebuliços na irmandade, com as

eleições da nova diretoria e com os gastos com a festa. Eram muitas coisas a se fazer.

Segundo consta no livro de receitas e despesas da irmandade Nossa Senhora do Rosário,

os gastos com a limpeza da igreja e dos seus arredores eram consideráveis.

QUADRO I

Gastos com limpeza da igreja do Rosário para a festa de 1871 Serviço Valor

Limpeza da frente da igreja Nossa Senhora do Rosário 1#920 reis

Caiação da igreja Nossa Senhora do Rosário 1#800 reis

Ciscar a frente da igreja 640 reis

Rossar os Mattos da frente e arrancar os topos 1#980 reis

Telhas para retelhar a igreja 1#900 reis

Cal 1#800 reis

Lavagem de capas, alvas, roquetes e toalhas 1#880 reis

Gomma 1#680 reis

Carpina para retelhar 1#280 reis

Cervente 1#280 reis

Fonte: LAG/C. 2º. Of. Livro de contas e recebimentos da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário. Série Diversificada. Cx. 1-1289. Doc. 1 (1856-1877).

Como se pode perceber, os preparativos da festa envolviam diferentes trabalhadores

da vila no intuito de melhorar as condições da igreja para receber os devotos. Os

trabalhadores envolvidos nos serviços de reparo e manutenção da igreja Nossa Senhora do

Rosário eram apenas um dos gastos da irmandade. Hóstias, missas, ceras, beijuim e vinhos

eram mais alguns dos gastos dos irmãos com a principal solenidade religiosa da localidade.

No dia da grande festa a população colocava cadeiras nas ruas próximas à matriz

para assistir a saída da procissão. O sineiro do alto da torre comandava o ritmo da festa.

Saíam o estandarte, os andores e a numerosa massa de devotos, com roupas simples e

coloridas.

17 MORAIS FILHO, Mello. A procissão de São Benedito em Lagarto. In: ______. Festas e tradições populares no Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, 1999, p. 69.

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E ao som da música, à toada popular de conhecidas trovas, destacava-se em aparatoso andor a imagem de Santo Antônio, de tamanho natural, que recolhia cultos e louvores. A irmandade seguia com seus anjinhos de asas de seda e escomilha, de saiotes e corpinhos com lantejoulas, refletindo-lhe na pedraria dos diademas as luzes das tochas, avermelhadas e baças. E as vozes soavam mais fortes, ao choque surdo de pancadas sem eco, à queda de passos que batiam no chão.18

O território flexível estava mais uma vez demarcado. Com o incenso as ruas eram

demarcadas pelo sagrado, mas também pelo eco dos cantos africanos das congadas e

taieiras. As vozes silenciadas ao longo do ano finalmente poderiam sussurrar suas

tradições. A corte africana desfilava imponente pelas ruas de Lagarto, mostrando-se para

uma plateia que lotava as calçadas do centro. O espetáculo barroco se apresentava. Os

laços identitários se afirmavam. A memória social era reconstruída. O poder da população

negra se afirmava na festa de seu orago.

18 MORAIS FILHO, Mello. A procissão de São Benedito em Lagarto. In: ______. Festas e tradições populares no Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, 1999, p. 71.

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A CONSAGRAÇÃO DOS SÍMBOLOS SAGRADOS NAS FESTAS

DO DIVINO ESPÍRITO SANTO:

Dicotomia entre o Sagrado e o Profano

Elis Regina Barbosa Angelo1

Resumo: Nesta proposta pretende-se analisar as representações do poder da religião enquanto região de fronteira entre sagrado e profano a partir das questões que se referem ao poder “divino” nos sentidos e significados de todo ritual da festa do Divino Espírito Santo, entre eles as insígnias, instrumentos e símbolos. Apesar de a Igreja não comandar a festa profana, que ao mesmo tempo é sagrada, pois ocorre em parte dentro da Igreja, pode-se dizer que são os rituais que sacralizam os símbolos e ao mesmo tempo contribuem para torná-los sagrados. Como exemplos dessa transformação estão os símbolos do Divino que, separadamente são: uma coroa, um ceptro e uma bandeira. Palavras-chave: Religião. Sagrado. Profano.

Abstract: This proposal seeks to analyze the representations of the religion power as the border between the sacred and profane from issues that related to the "divine" power in senses and meanings of every ritual of the Holy Ghost Celebration, including the insignia, tools and symbols. Although the Church does not command the religious Celebration which is, at the same time, sacred because it happens within the Church, partly it can be said the rituals sacralize. The symbols and at the same time they contribute to make them sacred. As examples of this transformation are Divine symbols that separately are: a crown, a scepter and a flag. Keywords: Religion. Holy. Profane.

“O poder simbólico é um poder de consagração ou de revelação, um poder de consagrar ou de revelar coisas que já existem.”

Pierre Bourdieu2

A festa do Divino Espírito Santo é uma das manifestações culturais e religiosas mais

relevantes da comunidade açoriana e de seus descendentes, tanto nos Açores quanto em

outras localidades para onde emigraram. No que se refere ao poder do sagrado na fé

religiosa, parece trazer em sua gênese uma série de tempos e momentos rituais nos quais

as representações do que se configura enquanto sagrado e enquanto profano estão em

constante conflito, mas acabam por se complementarem na subjetividade das mais variadas

intenções coletivas. 1 Doutora em História pela PUC-SP. Graduada em Turismo pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (1997), mestre em Turismo Ambiental e Cultural: Planejamento e Gestão pelo Centro Universitário Ibero Americano (2003), mestre em História pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2005). Experiência na área de Turismo, com ênfase em Patrimônio e História, atuando principalmente nos seguintes temas: formação superior, coordenação e direção; pesquisa e extensão nas áreas de Turismo, Eventos, Hotelaria, História Social, Gênero e Patrimônio Cultural. Desenvolvimento e Coordenação de cursos de Graduação, Graduação Tecnológica e Pós-Graduação. Pesquisadora das áreas de História e Turismo. Atualmente leciona como professora no curso de Turismo Presencial e EaD na UFRRJ (Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro). Contato: [email protected]. 2 BOURDIEU, Pierre. Coisas ditas. São Paulo: Brasiliense, 1990. p.167.

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Seguindo as ideias de que o grupo religioso opera, molda e mantém a memória de

seus membros, também “estabelece tradições normativas que consagram eventos, espaços,

doutrinas, estilos litúrgicos, gerando tais elementos fortes sentimentos de estabilidade e

continuidade”3.

A religiosidade dos açorianos4 é evidenciada em seu comportamento cotidiano,

fazendo-se presente, por exemplo, na forma de organizar os padrões da família, a casa e a

educação, num emaranhado de condicionamentos sociais e culturais. Assim, parte-se da

ideia de que a religião participa de tudo o que é social, sendo um produto humano feito pelo

homem sobre ele mesmo5, fazendo parte de seus hábitos, costumes e de suas tradições6.

Ao destacar essa concepção de religiosidade dos açorianos, o presente estudo parte

do pressuposto de que os princípios por eles vividos devem ser entendidos tanto como uma

compreensão de mundo que envolve todas as práticas sociais, individuais e coletivas sob a

forma de normas de conduta, comportamentos e divisões do cotidiano, ou ainda como

apreensões transmitidas entre as gerações que permanceram temporalmente. Ao relevar

essa conotação, percebe-se que as representações de como se organizam as esferas da

religião também partem de tênues regiões de fronteira entre o que é sagrado e o que é

profano na vida cotidiana dos indivíduos que delas participam.

Os pressupostos advindos da forma como a Igreja exerce influência nos sentidos e

significados dos rituais religiosos, especialmente das festas do Espírito Santo, representam,

de certa forma, uma construção mental. “O culto do Divino Espírito Santo constitui

porventura a maior manifestação da religiosidade popular açoriana.”7 Essa formação dos

conceitos e seguimentos de fé parece estar intrinsecamente ligada à questão do que é ser

3 HALBWACHS, M. A Memória Coletiva. São Paulo, Vértice, 1990. p.156-159. 4 “[...] os açorianos são profundamente crentes e manifestam a sua devoção e fé de uma forma veemente. Os santos a que os fiéis apelam, os ritos praticados e as crenças formuladas são católicos. A população vive a religião cerimonial esperançosa de salvar a alma do Inferno e, por isso, cumpre os sacramentos do Baptismo, da Confirmação, da Confissão, da Eucaristia e da Extrema-Unção, festeja o Natal e a Páscoa, enterra-se nas Igrejas e exercita a caridade e a solidariedade através das Confrarias e Misericórdias.” COSTA, Susana Goulart. Açores: Nove Ilhas, Uma História. Traduzido por Rosa Neves Simas. Berkeley, Califórnia: Institute of Governmental Studies Press; University of California, 2008. p.144. 5 Este estudo menciona a questão da religiosidade dos portugueses em relação à religiosidade nos demais países da Europa, fazendo uma análise do comportamento e da crença do país, ponderando as gerações e a dinâmica cultural. “Os rasgos que caracterizam o catolicismo português são uma elevadíssima confiança na instituição eclesial, uma identidade católica alta, uma prática religiosa não tão alta como a sua identidade (embora superior à média do conjunto dos países comparados) e um alto nível de crença em Deus.” MENÉNDEZ, Millán Arroyo. Religiosidade e Valores em Portugal: Comparação com a Europa e a Espanha Católica. Análise Social. v. XLII (184). Revista do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, 2007. p.779. 6 A tradição pode ter como acepção o “conjunto de práticas, normalmente reguladas por regras tácita ou abertamente aceitas [...], de natureza ritual ou simbólica, [que] visam inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica, automaticamente, uma continuidade em relação ao passado”. HOBSBAWM, Eric J.; RANGER, Terence. A Invenção das Tradições. São Paulo: Paz e Terra, 1997. p. 09. 7 MELLO, José de Almeida. Grandes Festas do Espírito Santo de Ponta Delgada. Ponta Delgada: Publiçor, 2009. p.11.

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religioso, que também é uma forma de construção social, advinda da própria formação da

história do catolicismo em Portugal.

Dessa forma, ao estudar a festa que ocorre na comunidade açoriana da Vila Carrão

em São Paulo, percebe-se que a (re)invenção dos rituais e tempos sagrados partiu dos

próprios açorianos que queriam manter as tradições a fim de consagrar como espaço

sagrado a Casa dos Açores, enquanto local de identificação, estabilidade e continuidade do

passado.

Conforme o tempo da festa, houve uma série de mudanças e incorporações que

dinamizaram o que atualmente se vê na ritualização.

A festa profana constava comumente dos clássicos leilões de prendas, levantamento do indefectível “pau de sebo” e do “mastro”, do Divino com as tradicionais salvas de “roqueira”, queima de rojões e “fogueiras” que a sinonímia indígena converteu em “caiera” finalizando com o insubstituível “cateretê” entre a caipirada, e baile à européia para os convidados mais grados do festeio, terminando tudo em, opípara ceia para todos, na “casa do império”, e fasta distribuição de gêneros alimentícios aos pobres.8

Ao pensar nesta festa como uma representação cultural dos açorianos, surge uma

questão dialógica do que é sagrado e do que é profano e, especialmente, qual fronteira os

separa.

Pensar no ritual da festa a partir dos sentidos e significados do que é sagrado é partir

dos elementos tirados de lugares comuns cujos “espaços” podem ser entendidos por meio

do que é o mito, e este entendido como “um discurso relativo ao lugar/não lugar (ou origem)

da existência concreta, um relato bricolado com elementos tirados de lugares comuns, uma

história alusiva e fragmentária cujos buracos se encaixam nas práticas sociais que

simboliza”9.

A fronteira que separa o sagrado do profano pode ser entendida como um conjunto

de componentes da religião católica que se encontram no interior da Igreja e sua função

social e os componentes articulados a esses que se encontram fora do espaço sagrado,

mas que, como signos, vivem sob constante campo de forças capazes de causar explosões;

e a partir daí mudar completamente seus significados e sentidos10.

Apontando a fronteira enquanto algo que divide, separa e ao mesmo tempo

condensa, Iuri Lotman, semiologista russo, considera que:

A fronteira divide todo o espaço do texto em dois subespaços, que não se tornam a dividir mutuamente. A sua propriedade fundamental é a

8 FREITAS, Afonso Antonio de. Tradições e Reminiscências Paulistanas (1868-1930). Belo Horizonte; Itatiaia, SP: EDUSP, 1985. p. 169-70. 9 CERTEAU, Michel de. A Invenção do Cotidiano. Rio de Janeiro: Vozes,1996. p. 182. 10 LOTMAN, Iuri. A estrutura do texto artístico. Lisboa: Estampa, 1978. p. 372.

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impenetrabilidade. O modo como o texto é dividido pela sua fronteira constitui uma das suas características essenciais. Isso pode ser uma divisão em “seus” e alheios, vivos e mortos, pobres e ricos. O importante está noutro aspecto: a fronteira que divide um espaço em duas partes deve ser impenetrável e a estrutura interna de cada subespaço, diferente.11

Lotman recorreu aos conjuntos matemáticos para criar o seu conceito de fronteira, e

acredita que “os mais variados componentes do extra-sistema podem ser trazidos para

dentro do sistema e pelo que se encontra neste interior sem o uso de qualquer tipo de

força”. Acreditando nessa troca entre o interior e exterior, percebe que “a tradução semiótica

não funciona por meio de impacto, mas explosão”12.

A fronteira, segundo Lotman, não deve ser entendida como um muro, que apenas

separa dois espaços específicos, mas todo espaço ao redor destes e como se interligam na

subjetividade. Além do sagrado e do profano nos instrumentos, insígnias e símbolos da

festa, há o que Lotman chama de estrutura interna de cada subespaço. As diferenças

internas dos subespaços podem ser variadas no que concerne à ordem social, psicológica,

ideológica, física, econômica, entre outras.

Assim, na crença há uma série de condicionamentos que transformam em fronteira

os dois subespaços distintos, sagrado e profano, pois possuem em sua estrutura interna

diferentes características.

Para Elíade, é o espaço sagrado que permite ao homem obter um ponto de

referência à sua existência, deixando de ser caótica, enquanto o espaço profano mantém-se

homogêneo e não goza de nenhum plano ontológico por não se constituir como realidade ou

orientação de vida13.

A fronteira funciona como um terceiro lugar, um jogo de interações e de entrevistas,

e ela é como um vácuo, símbolo narrativo de intercâmbios e encontros14. O sagrado e o

profano para “Elíade são modalidades de experiências que nada mais são do que dois

modos de ser no mundo e nessa análise fenomenológica, aponta o tempo sagrado como o

tempo reversível, mítico primordial, aquele original e, portanto, fora a temporalidade e o

tempo profano que é a duração temporal do cotidiano, com começo, meio e fim.”

O sagrado e o profano enquanto manifestações espaciais se encontram em conflito

como regiões de fronteira, pois o que é divino de certa forma se separa do que faz parte do

mundo social, cotidiano e, portanto, profano. O terceiro lugar, ou seja, a fronteira entre o que

é divino e profano pode ser entendida enquanto o espaço da transformação.

11 LOTMAN, Iuri. A estrutura do texto artístico. Lisboa: Estampa, 1978. p. 372. 12 LOTMAN, Jurij M. Cercare la strada. Modelli della cultura. Venezia: Marsilio, 1994. p. 35. 13 ELÍADE, Mircea. O Sagrado e o Profano. A Essência das Religiões. São Paulo, Martins Fontes, 2001. p.63-64. 14 CERTEAU, Michel de. A Invenção do Cotidiano. 1. Artes de Fazer. Rio de Janeiro: Vozes, 2003. p. 214.

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Neste espaço, onde os símbolos tornam-se sagrados, são unidos os dois tempos

que Elíade chama de tempo sagrado e tempo profano, nos quais o ritual de sacralização dos

símbolos traz uma nova ordem de significados.

Participar religiosamente de uma festa implica a saída da duração temporal “ordinária” e a reintegração no Tempo mítico reatualizado pela própria festa. Por conseqüência, o Tempo sagrado é indefinidamente recuperável, indefinidamente repetível.15

Pensar na sacralização dos símbolos do Divino para transformá-los em sagrados

significa que o ritual da coroação é o ato sagrado no espaço sagrado que é a Igreja. Já as

demais práticas profano-religiosas, que formam os outros tempos da festa em fronteiriços do

que é analisado enquanto sagrado e não sagrado, ocorrem em outros territórios, fora do

espaço religioso.

A coroação é o ato que torna os símbolos representações de fé e do sagrado. O

momento ritual é o que separa os símbolos carregados de sentido e significados de fé. A

representação do ato de coroação transforma a coroa, o ceptro e a bandeira em símbolos

sagrados e sacralizados no ritual.

Toda festa é organizada em território próprio, fora do espaço sagrado da religião. Os

atos da festa detêm uma simbologia própria, repleta de sentidos para a comunidade que a

organiza e mantém.

Na Vila Carrão, a festa começa no próprio domingo de Pentecostes quando acaba a

anterior. A escolha dos mordomos que organizarão a próxima festa se dá em público com o

sorteio das “domingas”, que são as sete semanas que antecedem a coroação.

No território da festa, encontram-se a Casa dos Açores, as ruas adjacentes onde a

quermesse acontece durante o sábado anterior ao dia de Pentecostes e no próprio dia santo

e por onde passa a procissão que leva as imagens do Senhor Santo Cristo dos Milagres, a

imagem de Nossa Senhora de Fátima, as Coroas, o Ceptro, as bandeiras do Divino e

demais insígnias da Casa para a Igreja de Santa Marina.

Na Igreja, há a comemoração com a Missa em louvor ao Divino e a Coroação que

concretiza o ato sagrado dentro do espaço, tornando-o sacralizado pelo ato religioso.

Os espaços se confundem entre o sagrado e o profano, pois são minuciosamente

pensados e trabalhados para a festa, enquanto manifestação de fé, devoção e

agradecimento, além de ajuda aos necessitados, uma das intenções maiores dessa festa.

A vivência dos membros da comunidade na festa e as atribuições individuais e

coletivas fazem parte do que Michel de Certeau (1956) chama de relacionamento com os

outros. Assim, diz que “(...) a participação num grupo religioso implica certos deveres e

15 ELÍADE, Mircea. O Sagrado e o Profano. A Essência das Religiões. São Paulo, Martins Fontes, 2001.p.64.

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obrigações. Isso por causa da relação entre o respeito à divindade e o respeito pelas

criaturas que a representam.”16

Entender o porquê dos rituais significa uma compreensão do que o mito faz para que

haja o deslocamento dos espaços, assim:

[...] um mito retira o homem de seu próprio tempo, de seu tempo individual, cronológico, “histórico” – e o projeta, pelo menos simbolicamente, no Grande Tempo, num instante paradoxal que não pode ser medido por não ser constituído por uma duração. O que significa que o mito implica uma ruptura do tempo e do mundo que o cerca; ele realiza uma abertura para o Grande Tempo, para o Tempo Sagrado.17

Assim, quando abordadas questões sobre as fronteiras do sagrado e profano, há que

situar a referência, se é do tempo sagrado, do lugar sagrado, das imagens sagradas, do

mito, como princípios e definições de representação cultural enquanto enfoque para melhor

compreensão e análise.

Nas festas do Divino há uma combinação de elementos sagrados e profanos que,

quando analisadas as funções e objetivos da criação e continuidade deste tipo de

manifestação, há alguns pontos cruciais para a compreensão do ritual e a pergunta: afinal, o

que significa o Espírito Santo?

[...] O Espírito é o ambiente, a fama, mas também o dom, a inspiração, a sintonia fina, a energia comum, enfim, o seio em que o Pai gera o Filho. Por isso, para conhecer bem a Trindade, é bom não esquecer que: Jesus é o caminho, o Pai e o Espírito são a paisagem. Paisagem sem caminho pode ser bonita, mas não permite andar. Em termos religiosos, isso significa praticar muita religião como rituais, culto, leis e obrigações, mas não seguir um caminho, não ser discípulo de um mestre.18

A crença no Espírito Santo e na Santíssima Trindade se encontra vinculada, não há

separação, mas ao mencionar apenas o Divino, há a menção do momento bíblico da

descida do Espírito na Terra. Esse momento é o Pentecostes e por isso o momento de

celebração da vinda do Paráclito na Terra. As diferenças visualizadas nas mais variadas

16 O texto de Michel de Certeau, publicado em 1956, traz uma discussão sobre intuições fundamentais para o estudo da vivência do que é sagrado. “Premier texte publié dans un bulletin d'étudiants (Lyon, 1956), cet article est repris ici dans une version critique retrouvée dans son " Nachlass ". Elle incorpore des corrections de sa main et une longue autocritique, rédigée six mois après la première parution, où l'on remarquera la prescience du jugement porté sur ses directives de recherche. L'article concerne l'expérience du croyant, en particulier chez les mystiques. Il en souligne l'inscription dans le temps, le déchirement entre un " déjà " et un " pas encore ", la détermination par le langage, enfin la relation à l'Eglise. Il reconnaît dans l'expérience mystique une proclamation de Dieu à son peuple et situe toute expérience spirituelle sous le signe de l'altérité, dans sa dépendance, car pour le chrétien l'autre est le lieu de la rencontre avec Dieu. » CERTEAU, Michel de. L’experience religieuse, “connaissance vecue” dans l’eglise”. Recherches de science religieuse, Paris, v. 76, n. 2, 1988., p. 202. 17 ELÍADE, Mircea. Imagens e Símbolos: Ensaios sobre o simbolismo mágico religioso. São Paulo: Martins Fontes, 1991. p. 53-54. 18 SUSIN, Luiz Carlos. Pai, Filho e Espírito Santo. São Paulo: Edições Paulinas, 2003. p. 14.

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formas da festa em todo Brasil e em Portugal possuem variações de acordo com a cultura e

o modo de vida de cada comunidade.

A festa do Divino Espírito Santo, tanto no Brasil quanto em Portugal, nos Açores,

onde as raízes festivas se encontram, possuem em suas dinâmicas a incorporação de

elementos culturais locais em suas amplas e variadas formas de celebrar o Pentecostes19.

Ainda percebendo essas incorporações, há uma menção que revela traços de

adaptabilidade da própria Igreja Católica em aceitar as diferenças.

[...] em sua variação de formas e alternativas o catolicismo parece ser dentre todas as religiões mais visíveis do Brasil, aquela que combina o maior número de formas diferentes de celebrações, podendo fazê-las, inclusive, sucederem-se umas às outras, do que resulta a própria festa católica. Assim, numa Festa do Divino Espírito Santo, a folia precatória de antes dos festejos, a novena, as procissões, a grande missa do domingo e os folguedos, como os ternos de moçambiques e as cavalhadas. Apesar dos esforços da Igreja para separar uma parte propriamente religiosa das outras folclóricas ou das francamente profanas, para o devoto popular o sentido da festa não é outra coisa senão a sucessão cerimonial de todas estas situações, dentro e fora do âmbito restrito dos ritos da Igreja.20

A fronteira entre o sagrado e o profano para Elíade “é um lugar paradoxal, onde dois

mundos se comunicam e onde se pode efetuar a passagem de um mundo para outro.”21 Da

forma com que a fronteira foi trabalhada, percebe-se que o Sagrado e o Profano ora são

dicotômicos ora se encontram num único significado, por meio de um lugar sagrado e de um

tempo sagrado, capaz de transformar o profano e ao mesmo tempo, dar-lhe uma nova

interpretação.

19 O significado de Pentecostes pode ser entendido a partir do Antigo e do Novo Testamento, Assim: “Pentecostes, do grego, pentekosté, é o qüinquagésimo dia após a Páscoa. Comemora-se o envio do Espírito Santo à Igreja. A partir da Ascensão de Cristo, os discípulos e a comunidade não tinham mais a presença física do Mestre. Em cumprimento à promessa de Jesus, o Espírito foi enviado sobre os apóstolos. Dessa forma, Cristo continua presente na Igreja, que é continuadora da sua missão. A origem do Pentecostes vem do Antigo Testamento, uma celebração da colheita (Êxodo 23, 14), dia de alegria e ação de graças, portanto, uma festa agrária. Nesta, o povo oferecia a Deus os primeiros frutos que a terra tinha produzido. Mais tarde, tornou-se também a festa da renovação da Aliança do Sinai (Êxodo 19, 1-16). No Novo Testamento, o Pentecostes está relatado no livro dos Atos dos Apóstolos 2, 1-13. Como era costume, os discípulos, juntamente com Maria, mãe de Jesus, estavam reunidos para a celebração do Pentecostes judaico. De acordo com o relato, durante a celebração, ouviu-se um ruído, ‘como se soprasse um vento impetuoso’. ‘Línguas de fogo’ pousaram sobre os apóstolos e todos ficaram repletos do Espírito Santo e começaram a falar em diversas línguas. Pentecostes é a coroação da Páscoa de Cristo. Nele, acontece a plenificação da Páscoa, pois a vinda do Espírito sobre os discípulos manifesta a riqueza da vida nova do Ressuscitado no coração, na vida e na missão dos discípulos.” O que é a Festa de Pentecostes? Comunidade Católica Shalom. Liturgia. 21/05/2007. Disponível em: <http://www.comshalom.org/formacao/exibir.php?form_id=1844>. Acesso em: 22 ago. 2009. 20 BRANDÃO, Carlos Rodrigues. A cultura na rua. Campinas, SP: Papirus, 1989. p. 37. 21 ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano: A essência das religiões. São Paulo: Martins Fontes, 1992. p. 28-29.

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Referências Bibliográficas

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