Histórico do Movimento Negro no Brasil

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Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas Programa de Ps-Graduao em Histria

O GRUPO PALMARES (1971-1978): UM MOVIMENTO NEGRO DE SUBVERSO E RESISTNCIA PELA CONSTRUO DE UM NOVO ESPAO SOCIAL E SIMBLICO

Deivison Moacir Cezar de Campos

Dissertao apresentada como requisito para obteno do grau de Mestre, pelo Programa de Ps-Graduao em Histria da Pontifcia

Universidade Catlica do Rio Grande do Sul.

Orientador: Dr. Charles Monteiro

Porto Alegre, agosto de 2006.

Deivison Moacir Cezar de Campos

O GRUPO PALMARES (1971-1978): UM MOVIMENTO NEGRO DE SUBVERSO E RESISTNCIA PELA CONSTRUO DE UM NOVO ESPAO SOCIAL E SIMBLICO

Dissertao apresentada como requisito parcial para obteno do grau de Mestre, pelo Programa de Ps-Graduao em Histria da Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul.

Orientador: Dr. Charles Monteiro

Aprovada em _______ de _____________de ___________.

BANCA EXAMINADORA

____________________________________ Dr. Charles Monteiro (Orientador)

____________________________________ Dr. Helder Gordim da Silveira (PPGH PUCRS)

____________________________________ Dr. Paulo Roberto Staudt Moreira (UNISINOS)

Dedico essa dissertao minha filha Renata, esposa Cludia, me Ivone e a todos familiares. Aos ancestrais que j partiram, sem me deixar.

AGRADECIMENTOS

Agradeo a minha me Ivone Cezar que, por seus atos e exemplos, me ensinou a amar. Cludia Renata, minha esposa, que me fez descobrir o amor e Renata, minha filha, que me faz lembrar todos os dias como bom amar. Tambm a ela por me mostrar o caminho esquecido ao jardim do ldico, onde, com certeza, para ser, basta acreditar. Acreditar o motivo que me leva a agradecer meu orientador professor doutor Charles Monteiro. Aceitou o desafio de orientar minha pesquisa , sabendo que muitos dos referenciais viriam do mundo negro, que ainda encontra algumas restries no mundo acadmico. Aos meus familiares, ex-vizinhos e amigos de infncia que me mostraram o que viver num territrio negro, apesar de muitos deles serem brancos. Memrias guardadas do que havia sobrado da Bacia do MontSerrat. Agradeo especialmente aos eternos integrantes do Palmares, cujos exemplos de vida, revelados em suas entrevistas, emocionam e reforam o desejo de Ser Negro. Por terem me recebido de braos abertos e disponibilizado tempo, memrias e documentos para minha pesquisa. A Capes que me possibilitou, pela primeira vez, estudar sem ter que fazer sacrifcio para pagar. Aos milhes de negros que morreram na resistncia escravido e aos que vivem oprimidos por um sistema mundial injusto em benefcio de poucos.

RESUMO

A pesquisa analisa a reorganizao do movimento negro brasileiro aps o golpe de 64, a partir de um estudo sobre Grupo Palmares de Porto Alegre, entre 1971 e 1978. O grupo foi responsvel pela proposio do dia 20 de novembro, como alternativa as comemoraes do 13 de maio. Palmares tambm foi um dos precursores do chamado movimento negro moderno, que se caracterizou pela construo de uma nova identidade negra, referenciada em aspectos locais e globais. Ao afirmar-se e organizar-se como grupo tnico, adotam uma postura e um discurso subversivo que coloca em cheque conceitos estruturantes da sociedade brasileira como democracia racial, identidade e cultura nacional. Alm disso, questionaram o status quo, em funo do lugar social relegado ao negro, e enfrentaram a ditadura ao organizarem-se como movimento contestador por melhores condies sociais e econmicas, e por mais espao poltico.

PALAVRAS CHAVE: movimento negro, identidade, reafricanizao, resistncia, ditadura.

Abstract

The research analyzes the reorganization of the Brazilian blackman movement after the coup of 64, from a study about Porto Alegre's Grupo Palmares, between 1971 and 1978. The group was responsible for the November 20th proposal that would symbolize the black resistance as an alternative for the May 13th celebrations, which contained the idea of granted freedom. Palmares was also one of the precursors of the modern black movement, characterized by the construction of a new black identity, with local and global aspects. When affirming and organizing themselves as an ethnic group, they adopt a position and a subversive speech for placing in check structural concepts of the Brazilian society as racial democracy, identity and national culture. Moreover, they had questioned the status quo because of the social place relegated to the blackman and had faced the dictatorship when organizing itself as movement that contests for better social and economic conditions, and for more political space.

Key words: blackman movement, identity, reafricanization, resistance, dictatorship

SUMRIOINTRODUO.........................................................................................................................8

1

DA PERIFERIA A PALMARES ...................................................................................26

1.1 URBANIZAO E TERRITORIALIDADE NEGRA .......................................................27 1.2 MUNDO NO CENTRO OU O CENTRO DO MUNDO.....................................................43 1.3 GRUPO PALMARES ..........................................................................................................54

2

SUBVERSO SOCIAL: RESISTNCIA E AFIRMAO .......................................66

2.1 RECONHECIMENTO DA DIFERENA ..........................................................................67 2.2 OS LIMITES SOCIAIS DA DEMOCRACIA BRASILEIRA..........................................81

3

SUBVERSO SIMBLICA: A REAFRICANIZAO DO BRASIL ....................98

3.1 IMPRENSA COMO INSTNCIA DE LEGITIMAO ...................................................99 3.2 RESSIGNIFICAO DE PALMARES .......................................................................... 109 3.2.1 Construo de um novo discurso .................................................................... 116 3.2.2 Por uma nova identidade tnica...................................................................... 128 3.3 TRADIO REINVENTADA ......................................................................................... 134

CONSIDERAES FINAIS ................................................................................................ 151

BIBLIOGRAFIA.................................................................................................................... 159 ANEXO I MAPAS .............................................................................................................. 168

ANEXO II- DOCUMENTOS................................................................................................ 177

ANEXO III MANIFESTOS NA IMPRENSA .................................................................. 182

ANEXO IV MINI-HISTRIA DO NEGRO BRASILEIRO .......................................... 190

8

INTRODUO

A presena do negro na sociedade brasileira tem sido estudada principalmente por pesquisadores da questo nacional (SCHWARCZ, 1998, p.178) que buscam compreender a construo da cultura e da identidade do Brasil e, num segundo momento, dentro dos estudos sobre a constituio do povo brasileiro. As pesquisas, desta maneira, privilegiam temas relativos ao perodo escravista e a contribuio negra nacionalidade brasileira. Temticas contemporneas, como as organizaes do movimento social negro e suas propostas, tm sido deixadas em segundo plano, pelo fato dos grupos defenderem modificaes importantes na organizao da sociedade brasileira, principalmente as relaes raciais. Por outro lado, o aumento de estudos realizados a partir desse enfoque seria o reconhecimento da existncia de uma discriminao estrutural no pas, contrariando o senso comum de vivermos numa democracia racial. A presente pesquisa busca romper com as leituras hegemnicas, analisando a reorganizao do chamado movimento negro moderno na dcada de 70, que se caracteriza pela afirmao de uma identidade negra como forma de negociar a integrao na sociedade brasileira. Com isso, os negros buscam romper com sua condio de historicamente marginalizados, tendo passado da condio de escravos para a de excludos. A adjetivao de moderno se deve ao fato de buscar negociar seu espao a partir de outra perspectiva que no pelo branqueamento social, dominante em movimentos anteriores, como a Frente Negra e a Unio dos Homens de Cor, que seguiam uma ideologia nacionalista de integrao e assimilao, [deixando] de fora

9 desta mobilizao a defesa das formas culturais africanas (GUIMARES, 1999). Nesta perspectiva, a ruptura proposta pelo Grupo Palmares se d em relao aos movimentos polticos do passado no que tange a valorizao da cultura negra. Processo, esse, iniciado ainda na dcada de 40 por grupos como o Teatro Experimental do Negro. A importncia deste estudo se deve ao fato de que a compreenso desse momento fundamental para o entendimento da afirmao identitria e das aes e polticas estabelecidas pelo movimento negro nas ltimas dcadas do sculo XX e no projeto para o sculo XXI. Alm de existirem poucas pesquisas sobre o movimento negro no perodo, o estudo se prope inovador ao analisar o movimento como de resistncia s estruturas impostas e no somente como contrrio conjuntura ditatorial. Essa caracterstica o diferencia dos outros movimentos sociais que buscavam o fim da ditadura e mais espao de representao. Outra diferena sua ligao intrnseca com as culturas negras do resto do mundo, atravs da traduo de discursos e prticas, flexibilizando a idia de nacional. Busca-se inovar tambm ao utilizar, como tema central, o carter subversivo da organizao, prticas e principalmente o discurso construdo pelos negros organizados, contrapondo-os ao projeto das elites econmicas e polticas do perodo. A anlise tem como referncia o Grupo Palmares, de Porto Alegre. Organizado por quatro jovens negros universitrios em 1971, o grupo surge com a proposta de uma reviso da histria do Brasil para desvelar a tradio de resistncia, a fim de recuperar a auto-estima tnica e, com isso, tirar a maioria dos negros do imobilismo poltico e da acomodao social aos espaos concedidos por uma sociedade, segundo o grupo, desigual. Tambm busca compreender o surgimento deste grupo e do movimento como um todo em suas condies e influncias locais e globais.

10 As aes do Palmares estruturaram-se a partir da proposta de substituir o 13 de maio pelo 20 de novembro como o principal dia de comemorao para os negros brasileiros. Simbolicamente, propunham romper com a idia de liberdade concedida por uma concepo de liberdade conquistada, tendo em Palmares e em Zumbi seu referente. A proposta do grupo constitui-se como subversiva por colocar em cheque o status quo, ao questionar o lugar social relegado ao negro, e a ditadura, por ser um movimento social poltico e questionar os projetos militares de integrao e consolidao da Cultura e a identidade nacional. Os marcos temporais, estabelecidos, de 1971 a 1978, cobrem o perodo de construo, proposio e consolidao do 20 de novembro, como Dia do Negro, at a sua nacionalizao, rebatizado como Dia da Conscincia Negra, com a criao do Movimento Negro Unificado Contra Discriminao Racial, depois simplificado para Movimento Negro Unificado (MNU). Tambm esse o perodo de existncia do Grupo Palmares, criado em 05 de julho de 1971 e desarticulado oficialmente no dia 08 de agosto de 1978, quando os integrantes passam a militar nas fileiras do MNU, recm surgido. Alguns conceitos foram norteadores desta pesquisa, a fim de dar sustentao terica a pesquisa emprica. O conceito de espao social buscado na obra de em Milton Santos (1996). Para o gegrafo, o espao social constri-se pelas relaes sociais num determinado espao geogrfico. Relao com o espao social tambm tem o conceito de etnicidade que, segundo Poutugnat e Streiff-Fenart (1998, p.83), constituise na crena de um determinado grupo numa origem comum, orientada por uma memria coletiva e no pela cincia histrica. O conceito de identidade referenciado, nesta pesquisa, nos estudos de Stuart Hall (2003a), para quem um processo em permanente construo, estruturada

11 internamente a uma representao. Ligado a este conceito est o de dupla conscincia. Seguindo Du Bois (GILROY, 2001, p.234;248), que propunha a existncia de uma dualidade entre as influncias do colonizador e as negras, Hall (1996, p.68) aponta as categorias de ser uno e ser devir, que estruturam as definies identitrias do negro fora da frica, na dispora. Esse ltimo conceito, buscado em Paul Gilroy (2001, p.359), foi apropriado do uso judaico e refere-se aos negros fora do continente africano. Nesta pesquisa, ressignificao foi pensada a partir do termo significado, usado na semitica, como o que o signo representa. Resignificar, portanto, constitui-se numa nova representao. Resistncia utilizada como oposio a um determinado obstculo real ou simblico. Por ltimo, subverso entendida como enfrentamento no sentido de modificar uma situao pr-existente. Os estudos sobre o negro so marcados inicialmente, no Brasil, pelas teorias evolucionistas1. Destaca-se neste perodo os estudos de pesquisadores ligados ao Instituo Histrico e Geogrfico do Brasil, principalmente Nina Rodrigues (1861-1903), mas tambm autores como Slvio Romero (1851-1914), Oliveira Viana (1883-1951), entre outros. A perspectiva persiste praticamente at a dcada de 40. Conforme Ianni:

Os intelectuais brasileiros, desde o final do sculo XIX at a Segunda Guerra Mundial, pensaram os problemas raciais brasileiros na perspectiva de um darwinismo social e quase sempre, portanto, ressaltaram o trauma da escravido, sendo esse contexto cientfico e ideolgico no qual se produziu a interpretao de carter sui generis da escravatura e das relaes entre negros e brancos no Brasil. (1988)

A temtica estabeleceu-se como objeto de preocupao dos cientistas e do prprio Estado desde antes da abolio. Nas palavras de Slvio Romero, no prefcio do

Modelos deterministas (superioridade da raa ariana) e evolutivos (Darwinismo Social) de anlise imperavam entre os pesquisadores brasileiros no fim do sculo XIX. Ver ABREU, 1999. O livro apresenta um excelente estudo sobre as teorias racistas europias e sua influncia nos pensadores brasileiros.

1

12 livro Africanos no Brasil (1982), de Nina Rodrigues, ... o negro no s uma mquina econmica; antes de tudo, e malgrado a sua ignorncia, um objeto de sciencia. Os estudos foram realizados a partir de duas perspectivas principais: reconhecer o carter singular da miscigenao do povo brasileiro e buscar alternativas de futuro frente s concluses pessimistas para um pas miscigenado. A justificativa cientfica da superioridade branca sobre as outras raas teve como representantes principais o ingls Robert Knox (Races of Men, 1850) e o francs Arthur de Gobineau (Essai sur linegalit ds Races humaines, 1855). O primeiro criou o mito racial saxo e o segundo, o mito ariano. Defendiam que as raas ocupavam posies diferentes dentro da natureza humana. Segundo Martiniano Silva,

Ambos os mitos tinham uma finalidade ideolgica. Knox defendendo a expanso do imperialismo procurava provar que o homem saxo era democrata por natureza e, por isso, o futuro dominador da terra. Gobineau, por outro lado, no gostava da democracia e procurou provar que o seu surgimento e, conseqentemente, o do imperialismo, era um sinal da morte iminente da civilizao. (1987, p.29)

A preocupao surgiu, segundo Barracloug (1976), nas colnias das potncias imperialistas. Enquanto a populao branca da Europa mantinha ndices decrescentes de natalidade, a populao no branca no mundo apresentava altos ndices de crescimento. Tal cenrio se reproduzia no Brasil. Para Renato Ortiz,

Torna-se necessrio, por isso, explicar o atraso brasileiro e apontar para um futuro prximo ou remoto, a possibilidade de o Brasil se constituir enquanto povo, isto como nao. O dilema dos intelectuais desta poca compreender a defasagem entre a teoria e a realidade, o que se consubstancia na construo de uma identidade nacional. (1994, p.15)

13 O mdico Nina Rodrigues considerado um dos principais interlocutores das teorias evolucionistas entre os intelectuais brasileiros do incio do sculo passado. Preocupado com a higiene social, partia da convico da existncia de um critrio cientfico da inferioridade da raa negra, uma inferioridade que nada mais seria do que um fenmeno de ordem perfeitamente natural, produto da marcha desigual do desenvolvimento filogentico da humanidade (1982, p.05). O autor vai alm para afirmar que:

A raa negra no Brasil, por maiores que tenham sido os seus incontestveis servios nossa civilizao [...] h de constituir sempre um dos fatores da nossa inferioridade como povo. [...] entregando o pas aos mestios, acabaro privando-o, por longo prazo pelo menos, da direo suprema da raa branca. (1982, p.07)

Alm disso, o Darwinismo Social, tendo Spencer como inspirador das polticas da Repblica Velha, via a questo da raa como primordial para o desenvolvimento. O Brasil estaria fadado ao sub-desenvolvimento, a menos que pudesse purificar-se em termos tnicos. Surge da o conceito de retorno raa branca [teoria do branqueamento], a ser atingido atravs da seleo natural o vis darwinista, pelas polticas de imigrao e a, conseqente, miscigenao. (AZEVEDO, 1987) Nas primeiras dcadas deste sculo, o branqueamento tornou-se proposta hegemnica para a soluo do chamado problema racial brasileiro. A teoria brasileira, no entanto, no articulava a degenerescncia da raa miscigenao, ou seja, os miscigenados ganhavam status de branco, desde que aparentassem o fentipo. (Idem) Para muitos intelectuais, a aceitao do mestio no processo de branqueamento auxiliaria na integrao nacional, impedindo problemas de dio racial como nos EUA. Para Afrnio Peixoto, Em trezentos anos mais, seremos todos brancos: no sei que

14 ser dos Estados Unidos com sua rgida separao de cores, se a intolerncia saxnia deixar crescer, isolado, o ncleo compacto de seus 12 milhes de negros (1962, p.209). A mesma linha adota Slvio Romero quando afirma que

A minha tese, pois, que a vitria na luta pela vida, entre ns, pertencer, no porvir ao branco; mas que este, para essa mesma vitria, atentas as agruras do clima, tem necessidade de aproveitar-se do que til as duas outras raas lhe podem fornecer, mxime a preta, com que tem cruzado. Pela seleo natural, todavia, depois de prestado o auxlio de que necessita, o tipo branco ir tomando a preponderncia at mostrar-se puro e belo como no velho mundo. (Apud AZEVEDO, 1987, p.71)

O paradoxo existente entre o projeto de branqueamento da populao e a sua viabilidade de aplicao o grande dinamizador da busca para novas respostas sobre identidade nacional e sobre a presena do negro neste cenrio, deslocando o eixo de anlise da questo racial. A partir da dcada de 20, principalmente, vrios estudos apontam para outros determinantes para nossa situao econmica. Como diz ngela Gomes,

Nos anos 20, inclusive, tornara-se razoavelmente corrente a negao do fator tnico como causa dos problemas nacionais, mas, ainda que se reconhecesse nosso mal na falta de sade e de educao do pas, o horizonte do branqueamento no fora inteiramente perdido. (1996, p.193)

Ainda na dcada de 20, Oliveira Viana elaborou uma anlise da sociedade brasileira centrada no patriarcalismo e na questo racial, avaliando a quantidade de pessoas que ascenderam s classes dominantes em cada um dos grupos raciais que formam o Brasil. Concluiu ser o nmero de brancos a maioria absoluta na classe dominante da sociedade, ficando assim demonstrada sua superioridade. As outras raas

15 apenas teriam oportunidade de ascenso social atravs da miscigenao com o branco. (VIANA, 1956) Essa anlise manteve o branqueamento como alternativa de civilizao para o Brasil. Segundo Vianna,

Essas duas raas inferiores s se fazem agente de civilizao, isto , somente concorrem com elementos eugnicos para a formao das classes superiores, quando perdem a sua pureza e se cruzam com o branco: [...] Da plebe mestia, em toda a nossa histria, ao norte e ao sul, tem sado, com efeito, poderosas individualidades, de capacidade ascensional incoercvel, com uma ao decisiva no nosso movimento civilizador. (1956, p.35)

Oliveira Viana assimila a viso negativa do mestio, admitindo, no entanto, a distino entre o mestio com predominncia ariana, passvel de integrar-se elite civilizadora, e o mestio com caracteres de cor. Embora admita que na miscigenao esteja a gnese e a formao da prpria nacionalidade, identifica-o com as camadas mais baixas da populao, por operar uma desorganizao sensvel da moralidade de seus elementos componentes. (1965, p.130) O projeto implementado no Estado Novo, que tem em Oliveira Viana um dos seus principais idelogos, no inventa algo novo. Apenas acelera um processo que j estava em curso de identificar a mestiagem com a idia de democracia racial. A proposta constitui-se numa resposta acabada ao problema da sntese da nacionalidade. Para ngela Gomes (1996, p.194), Estava, assim, na histria do Brasil a chave para compreender a dinmica de tal processo, que explicava nossa prpria identidade nacional e desafiava as teorias fantasiosas das raas puras, dos climas frios e dos conflitos de classe. A categoria de mestio j era discutida pelos autores com vis racial em busca da identidade nacional. Os romnticos, do incio do sculo XIX, buscavam a

16 identidade brasileira na relao entre brancos e ndios. A nova situao histrica, provocada pelas modificaes econmicas [escravismo para capitalismo] e polticas [monarquia para repblica], possibilitaram a consolidao do mito das trs raas. Segundo Ortiz (1994, p.38), Como nas sociedades primitivas, ele um mito cosmolgico, e conta a origem do moderno Estado brasileiro, ponto de partida de toda uma cosmogonia que antecede a prpria realidade. As obras de Gilberto Freire, Casa Grande e Senzala (2001) e Sobrados e Mocambos (2000), so representativas deste novo momento dos estudos sobre o negro na sociedade brasileira. Para Veloso e Madeira (1999), a produo de Freyre deve ser compreendida dentro do movimento modernista, da ruptura provocada pela revoluo de 30 e da influncia do Culturalismo, do antroplogo Franz Boas, de quem Freyre foi orientando. O modernismo brasileiro pregava, entre outras coisas, segundo as autoras, que seria necessrio buscar no passado cultural a construo de um projeto de cultura novo. Tal premissa foi reforada pela Revoluo de 30, a partir da qual tornou-se idia central a necessidade de se construir a nao, fragmentada at ento pela poltica regionalista. Os estudos de Freyre, Srgio Buarque de Holanda e Caio Prado Jr. enquadram-se na proposta de analisar o passado colonial para elaborar um novo projeto de nao para o futuro. Cada autor parte de uma diferente perspectiva. Segundo Freyre, como se tudo dependesse de mim e dos da minha gerao, na nossa maneira de resolver questes seculares. E dos problemas brasileiros, nenhum que me inquietasse tanto, como o da miscigenao. (apud VELOSO; MADEIRA,1999, p.158) No prefcio da terceira edio de Casa Grande e Senzala, de 1938, Freyre afirma que seu livro se prope a ser de reconstituio e de interpretao de aspectos mais ntimos do passado nacional e ao mesmo tempo de sondagem de antecedentes de raa e

17 principalmente de cultura da sociedade brasileira de formao mais profundamente agrria-patriarcal. (apud MOTA, 1980, p58) A idia de mestiagem positiva e de que esta teria transformado o Brasil numa democracia racial estruturam a obra. A proposta cumpriu o papel de inserir teoricamente o negro e o mestio na interpretao da formao histrica da sociedade brasileira, mas estruturou a concepo de nao sem preconceitos raciais. Renato Ortiz (1994, p.41) avalia que A ideologia da mestiagem, que estava aprisionada nas ambigidades das teorias racistas, ao ser reelaborada pode difundir-se socialmente e tornar-se senso comum, (...). O que era mestio torna-se nacional. Ao mesmo tempo em que se apresenta revolucionrio quanto ao mtodo e o enfoque das pesquisas, destacando a importncia da influncia negra na cultura brasileira, o trabalho de Freyre constri a imagem da escravido suave e do bom senhor, o que, segundo Queiroz (1998, p.104/105), revela ter sido influenciado pelo pensamento conservador do sculo XIX, cuja substncia seria a apologia do passado e a conseqente defesa do status quo. Por outro lado, os conceitos elaborados pelo autor serviram ao interesse do estado de construir uma identidade nacional e de afirmar a democracia do Estado Novo. Segundo Gomes,

o que se procurava fixar era um dos traos caractersticos de nossa cultura tropical, da alma do nosso povo. Ele recebia, entre outros, o nome de sentimento de igualdade das raas, exprimindo-se [...] nas trocas sexuais e sociais presentes em sculos de nossa histria. (1996, p.190)

Os estudos desenvolvidos pelo folclorista e historiador dison Carneiro (1966 e 1981) vo de encontro proposta de Freyre, produzindo um novo paradigma nos estudos sobre a cultura negra. Carneiro introduz o conceito de pureza africana,

18 concluindo que as manifestaes negras so formas de preservao da identidade opostas s aproximaes e a assimilao pela cultura europia. Mesmo recebendo oposio intelectual, as idias de Freyre se

institucionalizaram e foram assimiladas pelo senso comum. A divulgao das idias no exterior, principalmente a de democracia racial, por intelectuais brasileiros, como Artur Ramos, e estrangeiros, como Frank Tannembaun, Stanley Elkins e principalmente Donaldo Pierson, construiu a imagem do Brasil como um paraso das raas. (SCHWARCZ, 1998, p.201) O trmino da Segunda Guerra Mundial representou o fim do projeto arianista, intensificando as lutas pela descolonizao da frica e, ao mesmo tempo, pelos direitos civis dos negros nos Estados Unidos. Seguindo proposta de Artur Ramos, representante brasileiro na ONU neste perodo, defendida por Luiz Aguiar Costa Pinto, aps a morte de Ramos, a entidade iniciou estudos para identificar o modelo de integrao no violenta do negro implementada no pas2. Segundo Schwarcz, o modelo poderia servir de inspirao para outras naes, cujas relaes eram menos democrticas (Idem). O fim do Estado Novo, a onda desenvolvimentista e o perodo reformista acabaram por radicalizar as posies tambm dos intelectuais. Veloso e Madeira (1999, p.183) apontam que o livro Formao do Brasil Contemporneo, de Caio Prado Jr. inaugura um novo momento de interpretao do pas, utilizando-se do mtodo dialtico na perspectiva materialista desenvolvida por Karl Marx, utilizando, de forma no dogmtica, os conceitos marxistas (Idem) Seguindo a trilha iniciada por Caio Prado, desenvolvem-se os estudos encomendados pela ONU na dcada de 50. Se os estudos culturalistas de dison Carneiro contrariam a validade das afirmaes de mestiagem positiva e pacfica, desta2 Ver MAIO, 1997.

19 vez o questionamento recair sobre a idia de democracia racial. Os estudos sobre raa, coordenados por Florestan Fernandes e Roger Bastide, criam um novo panorama nos estudos sobre o negro (1955). Ao contrrio da proposta de encontrar o modelo de integrao pacfica, identificaram a marginalizao do negro na sociedade brasileira aps a abolio. Conforme Florestan Fernandes, a idia de que o padro brasileiro de relaes entre negros e brancos se adequaria aos fundamentos tico-jurdicos do regime republicano engendrou um dos grandes mitos do nosso tempo, o da democracia racial brasileira. (1995.p.23) Diz tambm que tal formulao foi germinada por muito tempo, atravs das teses da escravido suave e crist. Para Fernandes, tal formulao atenderia a dois interesses:

isentar as elites [...] de culpas objetivas pelo desfecho melanclico dos processos abolicionistas e republicano [e, por outro lado,] ...a orientao alternativa [...] de organizar e fomentar o caminho de integrao racial democrtica, colida com os objetivos diretos e conscientes da poltica de expanso econmica ... (1995.p.26)

Estruturados a partir do conceito de luta de classe e outras categorias marxistas, os estudos foram contextualizados nas pesquisas sobre a periferizao do pas frente ao sistema mundial, que se reconfigurava aps o trmino do conflito mundial. A questo da desigualdade central nos estudos realizados pela chamada Escola Paulista. Nela, a escravido passa a ser vista como pedra basilar no processo de acumulao do capital, instituda para sustentar dois grandes cones do capitalismo comercial: mercado e lucro (SCHWARCZ, 1998.p.106). A violncia apontada como estruturadora das relaes escravistas.

20 Os estudos concluem que no Brasil quanto mais o indivduo se aproxima da cor branca, mais oportunidade ter socialmente; uma noo de preconceito de marca (fentipo) diferenciado do preconceito de origem (gentipo). Conforme Llian Schwarcz, em vez de democracia, surgiram indcios de discriminao; em lugar de harmonia, o preconceito (1998, p.202). A autora identificou uma forma particular de racismo na qual se continua discriminando apesar de considerar a atitude ultrajante. Ainda na dcada de 50, surgem pesquisas que reconhecem os avanos conquistados pelos estudos patrocinados pela ONU, mas contrapem em alguns pontos a viso e metodologia aplicada. Clvis Moura (1983) critica, principalmente, o abandono pelos intelectuais em torno de Florestan da noo de cultura, privilegiando a noo de classes.

No podemos ver com isso, como certos marxistas de ctedra, o problema do negro brasileiro como simples problema de classe, embora esteja embutido nele e dele faa parte integral. simplificar dentro de categorias muito gerais um problema bastante mais complexo. Partindo esses cientistas sociais da idia de um proletariado abstrato, de acordo com o existente na Europa Ocidental no meio do sculo XIX, so incapazes de um mnimo de imaginao sociolgica ao tratarem do problema do negro. (1983.p.29)

Llian Schwarcz tambm avalia que, nos estudos da Escola Paulista, o tema racial foi circunscrito a uma questo de classe. Segundo a autora, abandonando a cultura o tema racial parecia subsumida a uma questo maior, ou seja, a luta entre classes sociais (1998, p.209). Por este vis, seria por meio da modernizao e democratizao do estado que a questo racial, entre outras, seria solucionada e no por meio do enfrentamento de suas especificidades. A linha de pensamento adota por Clvis Moura relaciona-se diretamente com a influncia terica de Franz Fanon, depois de seu envolvimento com os movimentos

21 nacionalistas africanos, e com intelectuais ligados ao Instituto Superior de Estudos Brasileiros3 . As idias do ISEB esto no centro da criao do Movimento de Cultura Popular no Recife, o CPC da Une, o Teatro de Arena e o Opinio, o cinema Novo entre outros manifestos, que seriam exemplos de cultura desalienada. Trabalhavam a questo cultural com vis mais sociolgico, privilegiando conceitos como transplantao cultural, cultura alienada e defendendo que cultura significa um vir a ser. (ORTIZ, 1994, p.45). Os estudos do ISEB foram realizados dentro do processo de abertura, com o final do Estado Novo, e em meio aos projetos desenvolvimentistas do governo JK, apesar de no ter ligao orgnica com seu governo. Segundo Renato Ortiz, enquanto defendiam um iderio nacionalista, o governo se caracteriza por uma

internacionalizao da economia brasileira (1994, p.47). A radicalizao acontece, principalmente, a partir do governo Jango e as propostas de reformas de base, desembocando num perodo de represso poltica e ideolgica, inaugurado pelo golpe de 64. Nas Cincias Sociais, no entanto, os estudos da Escola Paulista conquistam a hegemonia, pela continuidade dos trabalhos mesmo aps o final de repasse de recursos pela ONU. Do perodo , tambm o importante estudo A integrao do negro na sociedade de classes, de Florestan Fernandes (1978). O pesquisador avana, segundo Mota (1980, p.183), em suas pesquisar de fundo marxistas, dialogando com autores no marxistas como Weber e Manhein com os quais teria elaborado os conceitos fundamentais desta obra, aproximando-se desta maneira das propostas dos intelectuais do ISEB,.

3 Ver o exerccio de aproximao das abordagens de Fanon, quanto problemtica racial, e dos intelectuais do ISEB, quanto questo nacional, em ORTIZ, 1994, p.50. O autor cita como referencia terica dos pensadores os estudos de Hegel, o jovem Marx, Sartre e Balandier.

22 Aps o golpe militar, conforme Veloso e Madeira (1999.p.185), a introduo de uma poltica de ps-graduao, precedida pelo afastamento e aposentadoria de inmeros pesquisadores, provoca uma pulverizao das pesquisas. Os anos 70 ainda so marcados por estudos no qual a noo de luta de classe predomina. Por outro lado, os governos militares propem o desenvolvimento de um projeto cultural brasileiro, cercando-se dos intelectuais disponveis. Segundo Ortiz (1994, p.91), recrutados junto aos Institutos Histricos e Geogrficos e Academias de Letras, esses intelectuais conservadores e representantes de uma ordem passada iro se ocupar da tarefa de traar as diretrizes de um plano cultural para o pas. A conseqncia uma modificao no panorama a partir da dcada de 80, quando acontece o que Suely Queiros (1998, p.108), citando Gorender, denomina de neopatriarcalismo, na qual os autores repensam o conceito de violncia do sistema, admitindo a existncia de espao para o escravo negociar um cotidiano mais brando. So citados estudos de Ktia Mattoso, Slvia Lara entre outros. O livro Ser escravo no Brasil, de Mattoso, seria o referencial para as obras surgidas com esse carter. Para Gorender,

cabe saber se a escravido benemerente, paternal, legalista, com negociaes pacficas, acordo sistmico e paz social entre classes antagnicas no uma ideologia reacionria travestida de historiografia mordenssima do ponto de vista metodolgico. (1990, p.43).

Os pesquisadores neopatriarcalistas tm trabalhado com aspectos da escravido buscando comprovar a amenidade do sistema (QUEIROS, 1998,p.111). A famlia escrava tem sido um dos aspectos mais pesquisados. Para Queirs (Idem), os estudos

23 sofreriam influncias das obras de Thompson e Genovese, que, para o autor, no teriam aplicabilidade ao cativeiro do Brasil. Paralelamente produo neopartriarcalista, prosseguiram os estudos tendo como ponto de partida a produo da Escola Paulista e do ISEB, mais precisamente a leitura crtica realizada por Clvis Moura, na qual parte-se da viso de resistncia negra ao escravismo violento. Se para a gerao de Fernandes (1978) a desigualdade racial produto do passado escravista e da sociedade de classes, para esses pesquisadores explica-se tambm pela discriminao racial vivida diariamente pelos negros. Ligados a estes estudos esto pesquisadores, como Joel Rufino dos Santos, Sueli Carneiro, Hdio Silva Jr. e Helio Santos, entre outros, ligados aos movimentos negros surgidos depois da dcada de 70. Neste momento, h uma retomada dos estudos de Clvis Moura, principalmente, do livro Rebelies da Senzala, que no havia ganhado projeo quando de seu lanamento em 1959. Tambm conceitos do autor, principalmente o de resistncia, so retomados. A partir da dcada de 90, tambm so identificados estudos sobre a questo da identidade na ps-modernidade. Muitas abordagens sobre a questo do negro deslocamse da viso de construo da idia de nao, considerando que o conceito encontra-se esvaziado nestes mesmos estudos. No diminuem, no entanto, no campo da historiografia, a dicotomia entre os neopatriarcalistas e os revisionistas. A partir dessa reviso bibliogrfica, pode-se definir que o problema central desta pesquisa discutir o papel do Grupo Palmares no processo de reelaborao de uma identidade tnica negra no Brasil nos anos 70, a partir da ressignificao da memria do movimento de Palmares e da traduo de prticas e discursos oriundos da dispora negra.

24 A pesquisa utilizou-se de fontes orais e documentos escritos para sua realizao, sendo que o uso dos depoimentos privilegiado em funo da proximidade temporal e da inexistncia de outros registros histricos. Segundo Ferreira, a histria oral privilegia o estudo das representaes e atribui um papel central s relaes entre memria e histria, buscando realizar uma discusso mais refinada dos usos polticos do passado (Idem). Seguindo a classificao de Jos Carlos Sebe Bom Meihy (1998), os depoimentos foram obtidos atravs da abordagem histria oral de vida e a oral temtica. Foram realizadas entrevistas com trs dos iniciadores do grupo, sendo que o quarto, Vilmar Nunes, no foi localizado apesar de procurado em Porto Alegre, Alvorada e Pelotas, segundo indicaes. Tambm foram ouvidas duas outras integrantes do Grupo Palmares, dando voz perspectiva feminina do grupo. Tambm foram entrevistados outros integrantes do movimento negro, que no participaram do Palmares e o jornalista Alexandre Garcia, que auxiliou, com suas matrias, na nacionalizao das propostas. Os documentos foram trabalhados atravs da anlise de contedo. Optou-se por ler o texto em seu sentido manifesto e latente, a partir do tratamento qualitativo (BARDIN, 1977). Os principais documentos utilizados foram o estatuto do grupo, a licena da Polcia Federal para o primeiro ato evocativo, matrias de jornais, os manifestos do grupo e os dois livretos sobre histria do negro do Brasil, editados pelo Palmares. Os principais documentos trabalhados esto em anexo. Com o resultado do trabalho com as fontes e de pesquisa bibliogrfica sobre o perodo, a pesquisa divide-se em trs captulos: - O primeiro captulo DA PERIFERIA PALMARES centra-se no surgimento e trajetria do grupo, principalmente as aes realizadas para marcar o 20

25 de novembro entre 1971 e 1978. Discute tambm a influncia do processo de urbanizao na convergncia dos negros para o centro de Porto Alegre, onde ocorrem as discusses sobre a situao do negro e a necessidade de ao. - SUBVERSO SOCIAL: RESISTNCIA E AFIRMAO, segundo captulo, busca contextualizar o Grupo Palmares em seu tempo. Aborda as propostas e iniciativas do grupo em sua resistncia ao lugar social estabelecido na estrutura scioeconmica brasileira e ditadura instalada no pas. - O ltimo captulo SUBVERSO SIMBLICA: A REAFRICANIZAO DO BRASIL aborda a elaborao discursiva do grupo, com suas influncias locais e as vindas do exterior, contrapondo-as aos discursos hegemnicos. Tambm se analisa a conseqncia desse discurso nas representaes do chamado mundo negro e na construo de uma identidade tnica. Ainda abordado o papel da imprensa como legitimadora do grupo e de seu discurso.

1 - DA PERIFERIA A PALMARES

A organizao do movimento social negro em Porto Alegre, na dcada de 70, insere-se dentro das condies e caractersticas de organizao social de seu tempo. Ao mesmo tempo, est ligada ao processo de urbanizao na cidade. A compreenso da construo de novos elementos simblicos de negociao espacial pelos negros na capital gacha passa, portanto, pela reflexo sobre a estreita ligao entre os processos geogrficos de territorializao e territorialidade. As polticas de urbanizao, implementadas em Porto Alegre, a partir da dcada de 40, influenciaram diretamente na reorganizao do movimento negro, que havia sido desarticulado com o golpe de 1964. As comunidades acabaram deslocadas para reas ainda mais distantes. Em seu fluxo para o trabalho e lazer, tendo o Centro como referncia do transporte coletivo, os negros acabaram por criar grupos de interao neste espao de convergncia. Ao mesmo tempo em que provocou a pulverizao das antigas comunidades em regies mais perifricas e a desagregao de suas populaes, o processo de urbanizao criou demandas de identificao para os negros, que antes eram atendidas espacialmente. Os referenciais de lugar no mais existiam, restava a referenciao simblica.

27 Na conjuno desses elementos simblicos com a busca por solues as vrias demandas scio-econmicas vivenciadas pela populao negra, um grupo de jovens universitrios organiza o Grupo Palmares. A entidade surge com a proposta de construir um novo caminho para o atendimento dessas necessidades sem, com isso, ter que abrir mo de sua condio tnica. O grupo baseia sua ao na proposta de rever a histria brasileira para, com isso, demonstrar aos negros o passado de resistncia s diferentes realidades opressoras. Na viso do grupo, o contexto de opresso se mantinha intocado. Enquanto isso, a maioria dos negros havia se acomodado marginalizao imposta pela estrutura social. O caminho apresentado pelo grupo para a socializao plena do negro nessa sociedade a retomada de uma tradio de resistncia, simbolizada na histria revista pelo Quilombo dos Palmares. A idia de movimento permeia este captulo,

considerando-se a questo espacial [da periferia ao centro], temporal [atualizao de um passado idealizado] e tambm poltica [da acomodao ao].

1.1 URBANIZAO E TERRITORIALIDADE NEGRA

A partir da dcada de 40, com o incremento das polticas desenvolvimentistas iniciadas nos anos 50 e, posteriormente, as polticas habitacionais do perodo militar, os territrios negros tradicionais4 de Porto alegre, situados nas antigas periferias da cidade, so alvo de interesses imobilirios provocando um processo de desterritorializao4 Denomino territrio negro tradicional as comunidades constitudas no perodo ps-abolio e que construram, em funo da marginalizao social imposta pela sociedade, dinmicas e processos prprios de socializao e de identificao simblica.

28 negra. As comunidades, em sua maioria, so transferidas para reas mais distantes do centro, num processo de reterritorializao, com a perda dos referenciais simblicos e mesmo sociais das antigas comunidades. Ao mesmo tempo acontece a criao de um territrio transicional5 no centro de Porto Alegre, que se torna um ponto de encontro dos negros que agora se deslocam para reas mais perifricas e mesmo cidades prximas a capital e renem-se no trajeto entre o trabalho e a casa. A Geografia tm discutido a questo do espao social h muito tempo, diferenciando-o do espao geogrfico. Segundo Milton Santos (1996, p.50), o espao formado por um conjunto indissocivel, solidrio e tambm contraditrio, de sistemas de objetos e sistemas de aes, no considerados isoladamente, mas como quadro nico no qual a histria se d. A definio de Santos denota a complexidade constituinte do conceito. A interveno das relaes sociais nesse espao geogrfico acaba por construir uma de suas dimenses que o espao social, onde se d, como refere Henri Lefebve (1991, p.102), a materializao da existncia humana. A intencionalidade das relaes sociais provoca a fragmentao do espao social, estabelecendo uma representao e por isso uma relao de poder. Quando ocorre a hegemonia de uma leitura do espao concreto ou imaterial, tem-se o territrio; que corresponde a um espao social ou geogrfico especfico. Em seu livro Por uma geografia do poder, Claude Raffestin (1993, p. 60) define o territrio como espao poltico por excelncia, o campo de ao dos trunfos. Diz ainda que um sistema de aes e objetos, aproximando-se desta maneira de Milton santos. Partindo desta concepo de espao fracionado por uma intencionalidade, Ilka Boaventura Leire (1996) afirma que o territrio negro integra o corpus de5 O territrio transicional constitui-se aqui num espao social de trnsito no qual as pessoas se relacionam de maneira fluda por no constiturem uma comunidade permanente. Vem de algum lugar em direo a outro.

29 representaes partilhadas pelo grupo, geralmente associado a um lugar, a uma experincia. Defende tambm que o territrio constitui-se por uma experincia que constri subjetividade numa trajetria temporal que perfaz a histria do grupo. Os territrios negros tradicionais de Porto Alegre foram constitudos ainda no sculo XIX em regies que correspondiam periferia de Porto Alegre. Segundo Sandra Pesavento (1995, p.84), a territorialidade negra ganha fora com a abolio, formando um cinturo de cor em torno da cidade branca que se aburguesava lentamente. Destaca-se a formao da Colnia Africana, na poro nordeste da cidade, e o Areal da Baronesa, ao sul. Tambm podem ser referenciadas regies como Partenon, Glria e Maria da Conceio, em tempos mais recentes. O Areal da Baronesa foi loteado a partir de 1879, no tendo recebido nenhuma melhoria em termos de infra-estrutura. Com terrenos baixos, a rea sofria com os alagamentos provocados pelo riacho Dilvio. Inicialmente identificado como Arraial da Baronesa, trocou o nome em funo da presena de areia na regio (PESAVENTO, 1999). Junto ao Areal, identifica-se tambm como territrios negros a Ilhota e a regio da rua da Margem, atual Joo Alfredo. Os mapas histricos de Porto Alegre demonstram que o Areal da Baronesa esteve intocado at pelo menos a metade da dcada de 50. No mapa de 19546, a avenida Ipiranga permanece inacabada. Apesar de sua extenso estar projetada, encerra fisicamente na avenida Azenha. A avenida Borges de Medeiros, neste perodo, estendese somente at a Joo Alfredo. O territrio negro do Areal da Baronesa compreendia a regio da rua Baronesa do Gravata at a avenida 13 de Maio [atual Getlio Vargas] e, no sentido norte-sul, da

6 Organizado pela Diretoria de Cadastro e Patrimnio da Prefeitura Municipal. Acervo do Arquivo Histrico de Porto Alegre Moyss Velhinho.

30 rua 28 de Maio [continuao da Ipiranga antes das obras de assoreamento do arroio] at a Jos de Alencar. Nas reas prximas ao Dilvio h grandes reas em branco, sem ruas definidas, constituindo-se num prolongamento do territrio negro. Nesta rea, localizava-se principalmente a Ilhota, que ficava isolada pelo arroio, tendo como nico acesso a Travessa Batista. Segundo Pesavento (1999),

[...] alm de pedao de terra isolado pelas guas, era tambm um espao de isolamento social e excluso. Fotos antigas nos mostram casebres amontoados, sem alinhamento, num labirinto de pequenas ruas e becos, dos quais o mais temido, onde a polcia no se aventurava a entrar, era o Buraco Quente, no corao da Ilhota, cujo nome explicitava a periculosidade do local. A Ilhota era tambm sede e antro de desordens, com botecos, bordis e espeluncas, e tornou-se clebre pelos batuques, palavra sulina para designar os candombls ou candombes dos pretos. Sempre associada com as prticas e sociabilidades religiosas e festivas dos negros que a habitavam, a Ilhota tambm era sede de um animado e popularssimo carnaval.

A falta de ocupao regular deve-se aos freqentes alagamentos, em funo do transbordo do Dilvio, que ainda no havia sido totalmente canalizado. Apesar disso, no mapa oficial de 19457 j est colocado o projeto de urbanizao da Ilhota com seu aterramento. Tambm est previsto neste mapa a delimitao definitiva e a pavimentao das ruas do Areal. Constitua-se com estes dois bairros o cinturo pobre e, em sua maioria negra, da regio sul da capital. A Colnia Africana, situada no terceiro distrito, prolongava-se para o norte a partir da estrada do Meio, atual avenida Protsio Alves, e do Campo da Vrzea. A regio ficava nos fundos de propriedades nas quais os ex-escravos buscavam empregos. Neste espao geogrfico, configura-se outro referencial territrio negro da capital gacha. A regio foi reconhecida oficialmente em 1896 como Arrabalde da Colnia

7 Acervo do Arquivo Histrico de Porto Alegre Moyss Velhinho.

31 Africana. Conforme Pesavento (1999), embora a Colnia Africana contasse tambm com becos, casas modestas e fosse uma rea tambm deficiente nos servios urbanos, sua forma de construo tpica era a maloca. Atravs dos mapas8 da dcada de 30 at a de 60, possvel observar que a Colnia Africana estendia-se da regio onde hoje fica o bairro Rio Branco at o Higienpolis. Ao se acompanhar a presena e o desaparecimento da Colnia Africana atravs desses mapas, constata-se que a concentrao principal do territrio negro desloca-se desde a Estrada do Meio, em 1932, at o bairro Higienpolis, 1945, que recebeu este nome em funo do projeto de higienizao da rea. Encerrando seu deslocamento onde hoje se localiza o bairro Trs Figueiras. No mapa de 32, a regio entre a rua Silva Jardim e Pedro Chaves Barcellos, no sentido oeste-leste, e da Pedro Ivo at a Anita Garibaldi, no sentido norte-sul, apesar de as ruas estarem projetadas, no existe concretamente. Na planta de 1945, as ruas j foram abertas, mas ainda no urbanizadas. J a regio das Trs Figueiras permanece toda em projeto. Tal movimento de sul para norte conta um pouco da histria territorial e imobiliria da capital gacha. Demonstra tambm a resistncia do territrio negro em desaparecer. Consideradas regies perigosas, o Areal e a Colnia foram mantidos no isolamento pelo poder pblico durante dcadas. A partir da dcada de 10 do sculo passado, no entanto, foram realizados investimentos governamentais em nome da higienizao pblica. Segundo Eduardo Kersting (1998), por trs desta atitude existiam interesses imobilirios de ocupao dessas reas da cidade para moderniz-las, com o

8

Planta da Cidade de Porto Alegre 1932, 1935, 1945, 1954. Acervo do Arquivo Histrico de Porto Alegre Moyss Velhinho. Ver Anexo I.

32 processo de branqueamento da populao, simultaneamente abertura de ruas e de construes em padres arquitetnicos no populares. O autor refere que parte da Colnia Africana comea a receber iluminao eltrica em 1911, algumas ruas so asfaltadas em 1912 e, neste momento, prev-se tambm a construo de uma rede de esgotos. Ocupada por colonos judeus, parte mais ao sul da Colnia Africana, junto a Estrada do Meio, transforma-se no bairro Rio Branco. J os negros deslocam-se para reas mais perifricas e ainda desabitadas, como o bairro MontSerrat, destino primeiro dos exilados da Colnia Africana. Pelo outro lado da colina, em 1916, construda a igreja Nossa Senhora Auxiliadora, com o objetivo de promover o branqueamento religioso da regio. A presso vinda dos dois lados da colina faz com que o ncleo negro desloque-se na direo norte, como j referido, chegando ao bairro Trs Figueiras. Configurados os territrios negros, torna-se necessrio uma reflexo sobre o conceito de territorialidade, que se constitui num processo geogrfico mantenedor do territrio; sendo os processos geogrficos movimentos provocados pelas relaes sociais no espao. Devemos tambm pensar a afirmao a partir do que diz Ilka Leite (1996) quando refere que o territrio negro integra o corpus de representaes partilhadas pelo grupo, geralmente associado a um lugar, a uma experincia. Os territrios negros originais, do ponto de vista do espao geogrfico, possuem caractersticas similares. As comunidades, isoladas em reas originalmente perifricas e no atendidas pelo poder pblico, criam maneiras especficas de se relacionar com esse espao. As relaes entre as pessoas tambm constroem representaes aceitas pelo coletivo e que acabam tornando-se hegemnicas e criadoras de pertencimento e identidade. Nestas comunidades, constroem-se os chamados sujeitos sociolgicos. Indivduos que se formam, segundo Hall (2003a, p.11), citando a sociologia

33 interacionista, a partir da relao com outras pessoas importantes para ele. A identidade se constri a partir de valores, sentidos e smbolos pertencentes ao mundo que este sujeito habita. Nesta perspectiva, A identidade [...] preenche o espao entre o interior e o exterior entre o mundo pessoal e o pblico. [...] costura o sujeito estrutura. (Ibidem, p.11-12). Os territrios negros tradicionais criaram dinmicas internas prprias, considerando a invisibilidade frente ao poder pblico. Ainda na dcada de 40, foram criados clubes de ajuda mtua, como a Unio dos Homens de Cor, em 1943, e clubes sociais. Pode-se falar sobre o Predileto e o Claro da Lua, no MontSerrat, o Floresta Aurora, Marclio Dias, Ns os Democratas e vrios outros, na regio do Areal da Baronesa. A Unio dos Homens de Cor um exemplo de entidade de ajuda mtua. Fundada em Porto Alegre em 1943, estruturou-se em mais de 10 estados em apenas cinco anos. O grupo organizou-se como movimento negro no processo de redemocratizao na dcada de 40, quando surgem outras entidades como Teatro Experimental do Negro, de Abdias do Nascimento. Lutavam contra a discriminao racial e buscavam formas de ascenso social, atravs da educao e da assistncia social. Em seu estatuto, a Unio dos Homens de cor afirma seguir um sonho. A entidade contra essa injustia social que o sonho dos negros, pardos e brancos da Unio dos Homens de Cr est colocado. No um sonho separatista unitarista, solidarista, cristo social (SILVA, 2003, p.224). Os clubes sociais tambm se configuravam como espaos de resistncia. Os clubes negros mais tradicionais eram o Floresta Aurora (1870), que havia sido criado antes mesmo da abolio, e o Satlite Prontido (1902). Ofereciam atividades sociais e festas para os negros, que eram proibidos de freqentar os clubes ditos tradicionais da

34 cidade. Os clubes estruturaram-se principalmente para e pela realizao de bailes e dos blocos carnavalescos. Nas dcadas de 50 e 60, ocorreram algumas experincias na rea cultural, principalmente em teatro, mas na dcada de 70, aderiram ao movimento soul, realizando os chamados bailes black. Mesmo o Nutico Marclio Dias (1949), que surgiu com pretenses esportivas, a realizou apenas nos primeiros anos de existncia. O clube teve dificuldade em conseguir registro na Federao Aqutica do RS, por ser um clube exclusivamente de negros. Mesmo assim recebeu cinco barcos das outras entidades para iniciar suas atividades. Os barcos eram velhos, mas navegaram at um temporal em 1958, quando foram destrudos. O clube ainda tentou o basquete, que teve relativo sucesso na dcada de 60, mas os principais jogadores acabavam contratados por outras agremiaes. O Marclio dias acabou dedicando-se tambm aos bailes e ao carnaval. (TIO, 1978, p.18) A segregao dos negros em outros clubes fica clara no relato de Ilmo Silva (entrevista em 14/09/2005) sobre um dos muitos carnavais que participou no Marclio, que ficava na avenida Praia de Belas, que ainda era praia do Guaba, na quadra onde hoje se localiza o Hospital Me de Deus. Conta que ficou combinado antecipadamente uma visita do bloco do Marclio ao Clube Nutico Gacho, prximo algumas quadras. Na noite de carnaval, deslocaram seu grupo, tocando, etc, at a frente do Gacho, onde foram recebidos por uma equipe de seguranas. Reproduz o dilogo:

- No pode entrar! - Mas como? Fomos convidados. - No pode entrar porque isso no baile de negro E no deixaram. Eu era meio esquentadinho e queria fazer uma baderna. A o presidente do Marclio, o Luiz acalmou. Foi a segunda vez que fui vtima de racismo. (SILVA, entrevista em14/09/2005)

35 As agremiaes carnavalescas tambm so instncias de integrao coletiva e de construo simblica. Embaixadores do Ritmo, da Colnia, Fidalgos e Aristocratas, no MontSerrat, que se mantm em atividade at hoje. No Areal, as escolas de samba Ideal e Cu Azul e, ainda as tribos carnavalescas Guaianases e Caets, alm de vrios outros blocos. As agremiaes deixaram de existir juntamente com o territrio. Somente a Guaianases permanece em atividade, mas em outro lugar, mostrando a desarticulao desse espao como territrio negro. At a dcada de 30, o carnaval de rua era ligado as camadas mdias e altas da sociedade. O carnaval popular surge nos territrios negros, destacando-se inicialmente o do Areal da Baronesa. A escolha de um Rei Momo negro, Seu Lel, bastante representativo no processo por afirmar uma identidade prpria para o carnaval negro. O Rei Momo foi recebido pelos blocos, no primeiro ano, junto a Ponte de Pedra, vindo de caiaque. Na sua chegada, foram tocados clarins e houve uma queima de fogos. O desfile comeou na Joo Alfredo, indo at a Baro do Gravata. Em seu discurso de abertura, o rei Momo refere que havia vindo da Etipia para abrir os festejos carnavalescos do Areal, um territrio negro da cidade.

Povo, povo do meu reinado, com grande satisfao, no medindo esforo, nem energia para vir l da minha Etipia para abrir o carnaval aqui no Brasil [...]. (PORTO ALEGRE, 1992, p.08)

A escolha de um rei Momo no oficial constituiu-se numa novidade na comunidade negra, assim como a cerimnia e principalmente o discurso do Rei Momo que fazem referncia direta a africanizao da festa e a busca de uma identidade para o carnaval e para a comunidade, em ltima anlise. Tendncia que se mantm at hoje.

36 A religiosidade africana tambm se destaca nestas regies como fator de integrao e de construo de elementos simblicos comuns. A religio de matriz africana, cultuada no RS, denomina-se Batuque, Nao ou Par. Estrutura-se em naes, referncia direta a territrios africanos. Esta referenciao j de certa maneira construtora de identidade, pois o adepto de um das naes filia-se a um sistema de crenas e rituais especficos. Cada templo, casa de religio, organiza-se de maneira independente, mas num sistema de familiaridade. Constituem-se assim pais e mes-desanto, filhos, irmos, tios, sobrinhos, avs, e assim por diante. So as famlias de santo, que possuem cdigos e smbolos em comum. Num texto de 1944, Nerskovits conta que as casas de culto ficavam na prpria residncia do pai ou me-de-santo, geralmente pequena e caracterstica de bairro operrio. Segundo sua descrio, configuram-se em pequenas construes de madeira, cujas paredes vo at o telhado. Os altares ocupam uma sala pequena e a principal dedicada ao culto. Refere, tambm, a organizao familiar da religio. Alguns desses centros existem h muito tempo e tm tradies de trs ou quatro geraes. Tanto assim que os dirigentes de culto dizem os nomes dos que os precederam e treinaram (CARNEIRO, 1967, p.368). O importante reforar que esta familiaridade no se d por laos de sangue e sim por questes simblicas e, portanto, identitrias. Waldemar de Moura Lima, o Pernambuco, chegou em 1948, ao RS. Ligou-se ao movimento do que denomina Cultura Popular, manifestaes pblicas da comunidade negra, principalmente o carnaval. Transitou por estes espaos negros de Porto Alegre e recorda dos territrios como a rea do pessoal.

37Quando cheguei, em 48, fui morar na Duque [de Caxias]. A fora do tambor me chamava. Moleque fugia de casa e ia para o Areal da baronesa. Fugia e dava um jeito de me envolver. Era o grande espao. Tnhamos a Bacia. L eu jogava futebol com o pessoal do MontSerrat. Tinha outro espao forte, prximo ao pronto Socorro, a Santana. Ali surgiu Bambas, Praiana. Era essa a rea do pessoal. A negrada na poca era alfaiate, trabalhos braais, porteiros, rea de servio em geral. As duas sociedades Floresta e Prontido eram dirigidas pela mesma famlia, dois irmos. Tambm o Marclio. Cada irmo dirigia uma entidade e brigavam. (entrevista ao autor em 21/03/2006).

Portanto, a negociao com a cidade se d de maneira independente em termos de organizao comunitria e simblica. Nestas regies, formou-se uma rede de comrcio e de prestao de servios, realizados pelos prprios moradores, que muitas vezes ofereciam esses mesmos servios para as outras reas da cidade. A etnicidade surge, neste cenrio, como uma identidade construda socialmente dentro desta realidade de compartilhamento simblico e comunitrio. Conforme Poutugnat e Streiff-Fenart (1998, p.5), a identidade tnica diferencia-se de outras identidades coletivas pelo fato de estar orientada para o passado. Este passado, no entanto, no o da cincia histrica; aquele em que se representa a memria coletiva. uma histria mtica, ou pelo menos legendria, na qual determinados soberanos [...] tornam-se smbolos destas significaes imaginrias sociais[...] (Idem). Tais grupos tnicos formam-se e aparecem quando indivduos compartilham um sentimento de pertena comum, uma crena em uma mesma origem e dispe de organizaes unificadoras (Ibidem, p.83), no que se enquadram os territrios tradicionais. Dependente das relaes sociais e de sua intencionalidade, os territrios so construdos e destrudos pelo movimento provocado pelas relaes no espao. A modificao nas relaes entre o poder pblico e os territrios negros acabou por provocar um processo geogrfico de desterritorializao. O processo de urbanizao das

38 ento periferias da capital, onde se localizavam os territrios negros, desencadeado no incio do sculo XX, mas incrementado a partir da dcada de 60, influi diretamente sobre os territrios negros tradicionais. No segundo distrito, o aterramento de parte do Rio Guaba, a construo da primeira Perimetral e a mudana do leito do Dilvio descaracterizou espacialmente o bairro e, ao mesmo tempo, valorizou o espao geogrfico do ponto de vista imobilirio. As obras acabaram com a Ilhota e urbanizaram o Areal. O mesmo ocorre com os moradores da Bacia do MontSerrat e remanescentes da Colnia Africana, que so empurrados para locais mais perifricos pela especulao imobiliria. Nos anos 60 e 70, sob o patrocnio do BNH, construiu-se em larga escala nas periferias urbanas distantes. A estratgia, conforme Douglas Aguiar (2003), teve incio depois do golpe militar de 1964 quando a interveno do Estado na produo do espao urbano assume caractersticas de projeto nacional. Os antigos moradores dos territrios negros so ento desterritorializados e deslocados, em sua grande maioria, para novas regies como a Vila Nova Restinga, no extremo sul de Porto Alegre, e para conjuntos habitacionais construdos na zona norte da capital, alm de cidades prximas como Viamo e Alvorada. No entanto, ao contrrio do que pressupunha a teoria assimilacionista9, as comunidades tradicionais acabaram por desenvolver o que Schneider (apud POUTUGNAT; STREIFF-FENART, 1998, p.70) classificou como dessocializao dos grupos tnicos, que se constitui na transformao desses em grupos culturais

9 A teoria assimilacionista encara a sociedade como um conjunto de grupos em competio pela defesa dos prprios interesses, pelo que as diferenas culturais funcionam como um motor da desestabilizao social. Segundo Barbosa (2002, p.14), a cultura hegemnica passa, pois, da posio de dominante para aquela de ser a nica cultura possvel. Ao se atribuir uma centralidade, ela avana para ler-se como exclusividade, negando finalmente o direito existncia de outras culturas.

39 simblicos, estruturados a partir de marcas de identidade esvaziadas, neste caso, a territorialidade.

precisamente quando as minorias deixam de viver em colnias e se acham diretamente confrontadas com os outros grupos que suas especificidades culturais tornam-se fonte de mobilizao coletiva e que se desenvolve o que Gans denominou de etnicidade simblica. (Ibidem, p.71)

A etnicidade simblica se tornaria referencial para os ativistas do movimento negro na dcada de 70, mesmo que se refiram a territrios diversos. A questo est dentro das caractersticas de seu tempo, pois esse perodo marca a revalorizao das identidades, a partir da concepo de que todos pertencem a uma etnia. Tal proposio corresponde a um poderoso movimento ideolgico que faz da etnicidade uma dimenso essencial e universal da identidade humana (Ibidem, p.75). Com isso, a etnicidade configura-se numa categoria geral das relaes sociais e no mais caracterstica de um grupo minoritrio, definido somente por suas especificidade culturais. Os fundadores e integrantes do Grupo Palmares deixam bem marcada esta referenciao em suas entrevistas. Antonio Carlos Cortes (entrevista em 31/05/2005) afirma que nasceu em 26 de dezembro de 1948 e morava nesta poca na Vila Bom Jesus, que fazia parte da Vila Jardim, modernamente chamada de Bonja. Tambm Oliveira Silveira (entrevista em 23/08/2005.), quando conta que vivia na comunidade da famlia. Era uma comunidade remanescente de quilombo. Desse tipo, n?! Familiar.[...] Ns convivemos com a famlia negra, ali, sempre. [...] Isso a, sem dvida, ficou sendo um substrato. Na poca, no era consciente, mas eu gostava muito do lado negro da famlia. Helena Vitria dos Santos Machado (entrevista em

40 15/09/2005) relembra que com a entrada em colgios pblicos por volta de 1955 e a mudana de casa para uma regio de classe pobre, as relaes comeam a ficar mais complexas, com o preconceito racial aparecendo. O depoimento de Ilmo Silva o mais explcito quanto a essa referncia do territrio enquanto criador de referncias e identidade. Silva conta que sua

[...] conscincia de ser negro comeou quando eu nasci em 1944, mesmo sem eu querer. Nasci num bairro, uma zona, como se chamava antigamente, que era uma zona de negros. [...] Bairro Petrpolis. Ali era uma zona de negros. [...] uma periferia de Porto Alegre. [...] A regio era denominada de Colnia Africana. [...] Os negros no estavam espalhados em Porto Alegre. Estavam concentrados. (SILVA, entrevista em 14/09/2005)

As teorias da etnicidade (POUTUGNAT; STREIFF-FENART, 1998, p.123) afirmam que o Ns constri-se em oposio ao Eles. Esta questo se tornaria central nos movimentos sociais que se estruturam em bases identitrias a partir da dcada de 70 em que a diferena o ponto referencial, seja o movimento negro, o feminista, o sexual, etc. Refora-se aqui a idia de que a etnicidade no se manifesta em condies de isolamento, mas na interao caracterstica da urbanizao. Para Enid Skildkrout,

Logo no a diferena cultural que est na origem da etnicidade, mas a comunicao cultural que permite estabelecer fronteiras entre os grupos por meio de smbolos simultaneamente compreensveis pelos insiders e pelos outsiders. (POUTUGNAT; STREIFF-FENART, 1998, p.124). Em funo da marginalizao dos territrios negros tradicionais, provocada pela falta de polticas do poder pblico e pela estrutura social discriminatria, ficaram amenizados os problemas apontados pelas teorias da etnicidade, que so o de identificao (ns/eles), das fronteiras dessa dicotomia, da fixao dos smbolos identitrios de origem comum e o realce dos traos tnicos na interao social. Ao

41 sarem de seus espaos tradicionais para um dilogo diferenciado com a cidade, as fronteiras so estabelecidas. Transportam para esse novo espao as dinmicas sociais e simblicas dos territrios negros que serviam de referencia para a construo da identidade dos habitantes destes territrios. A construo de entidades voltadas para os negros, como os j referidos clubes de ajuda mtua e sociais, demonstra que a questo ns versus eles est presente na organizao do territrio dos negros que no eram aceitos em sociedades tradicionais, muitas delas voltadas a integrantes de outras etnias, ou mesmo da elite econmica constituda praticamente por brancos. Ao mesmo tempo, essas organizaes, juntamente com os limites territoriais, constroem fronteiras fsicas para a configurao tnica; assim como servem de referenciais de origem. Por outro lado, a questo da etnicidade constitui-se numa resposta ao racismo e excluso social, o que tambm se constitui numa caracterstica dos territrios negros, reforada aps sua desterritorializao, considerando que as comunidades passam a se relacionar de maneira mais direta com a cidade. Sua emergncia e mesmo o desaparecimento estariam, ento, condicionados as polticas sociais de integrao e distribuio de servios para estas comunidades (POUTUGNAT; STREIFF-FENART, 1998, p.138). Apesar da reterritorializao em novos espaos, perdem-se os elementos comunitrios e, ainda, as formas de organizao dos antigos territrios. O constante deslocamento das populaes agora residentes em locais mais distantes do centro da cidade gerou uma demanda por um espao de sociabilidade negra. Tem-se, neste momento, a construo de um territrio negro transicional na rua dos Andradas, onde so preservados elementos simblicos e representativos.

42 O movimento de desterritorializao e reterritorizalizao, provocado pela transferncia dos territrios negros tradicionais, retoma o movimento espacial da chegada dos negros nas Amricas e mais especificamente no Rio Grande do Sul, para onde vinham transportados de outros lugares do Brasil. Como uma reproduo em menor escala do processo desencadeado pela escravizao, o negro perde seus referenciais de espao, tendo que adaptar sua rede de significaes e representaes em outro territrio que no o local em que foram construdos. A partir disso, possvel afirmar que o processo de urbanizao de Porto Alegre provocou uma transformao dos territrios negros constitudos de espaciais para simblicos. A transferncia dessas comunidades para locais ainda mais perifricos ocasionou, entre outras coisas, o surgimento de territrios transicionais, sobretudo a rua dos Andradas. Tal processo foi determinante para organizao da comunidade negra, a partir da dcada de 70, e a conseqente construo de novos elementos simblicos de negociao espacial, a partir das representaes elaboradas nos territrios tradicionais. Neste espao, entraram as idias que mobilizavam os negros da dispora. Desencadeadas pelas lutas da descolonizao Africana, ouvia-se sobre a luta pelos direitos civis nos EUA, o eco do movimento afro-franco-caribenho da Negritude e o movimento da Nova Esquerda na Europa. A valorizao dos negros na frica e na dispora estimulou processos culturais de reafricanizao do Brasil de maneira mais sistematizada, considerando que nos antigos territrios negros algumas referncias eram feitas a essa ancestralidade africana diretamente, como no caso da religio, ou indiretamente, atravs de referncias discursivas, como a do Rei Momo negro. Tambm foi neste territrio transicional que surgiu a motivao nacional para a ressignificao da identidade negra, construda a partir de ento: o comunitarismo do quilombo dos

43 Palmares, atravs do 20 de Novembro, substituindo a idia de liberdade concedida, do 13 de Maio.

1.2 MUNDO NO CENTRO OU O CENTRO DO MUNDO

Com a perda dos referenciais territoriais e comunitrios, o centro passa a ser uma alternativa de espao sociabilidade pblica a partir do final da dcada de 60, tornando-se um ponto de convergncia e encontro dos negros oriundos dos mais diversos lugares da cidade. Estrutura-se, dessa maneira, um novo territrio negro de caracterstica transicional. No mais uma comunidade constituda em sua totalidade, mas determinada pelas caractersticas dos diferentes grupos sociais que integram pontos especficos de encontro num raio de 300 metros a partir da esquina da rua dos Andradas com a avenida Borges de Medeiros. Passarela elegante da urbs, desde o sculo XIX, a Rua dos Andradas tornou-se espao referencial dos negros ainda na dcada de 60 com o abandono progressivo da rea pelos segmentos sociais que integravam as classes dominantes e que at ento exerciam hegemonia neste espao. A importncia deste espao para comunidade negra est presente nos depoimentos colhidos junto aos integrantes do Palmares. Ilmo da Silva (entrevista em 14/09/2005) conta que A Andradas eu no perdia. (...) Ali nos encontrvamos todos dias depois das 18h. (...) Era ponto de encontro. Ali na Borges com a Andradas a gente tinha costume de falar: - no vai no escritrio hoje? Ali era nosso escritrio. Tambm referncia na fala de Antnio Carlos Crtes, (entrevista em 31/05/2005) tinha o cinema Vitria, Guarani, Cacique, Continente, Carlos Gomes

44 que eram os cinemas mais no centro. (...) Ento diversos irmos negros iam assistir aos diversos filmes e quando saiam se encontravam todos ali para falar de futebol, de namorada e de negritude que j era forte na poca. Encontramos a Andradas como referncia tambm no depoimento de Oliveira Silveira (entrevista em 04/12/2004) havia muitos pontos na Rua da Praia, onde negros se encontravam, se reuniam. Ento formavam alguns grupinhos para conversas. Waldemar Moura de Lima tambm se lembra do espao constitudo na Andradas a partir da dcada de 60. Refere-se a ele como um ponto de encontro.

O centro era interessante. Tnhamos points. Rua da Praia, onde hoje a esquina Democrtica era o principal. O pessoal saa do trabalho e se encontrava ali. Muitos trabalhavam em bancos, em lojas. Tambm o pessoal das escolas de samba, como ainda hoje acontece. Comeou ali em frente ao Guaspari [rua Sete de Setembro com avenida Borges de Medeiros], onde era a Rdio Gacha. Depois passou para Riachuelo, onde ficava a Casa Touro. Centro... sexta-feira. Durante a semana, ficvamos at 19h, 20h. Foi acabando. proposital. Eles tm medo de que comecemos a nos aglomerar e pensar juntos. Apostam na nossa diviso. Isso histrico. Dividir para manter a hegemonia. (LIMA, entrevista em 21/03/2006)

Entre os grupos que se reuniam no Centro, no final dos anos 60 e incio dos 70, um acabaria contribuindo de maneira decisiva para o surgimento do chamado Movimento Negro Moderno e na construo de uma nova postura identitria. Reunidos em frente loja Masson, jovens negros universitrios conversavam sobre futebol, namoradas e a situao do negro na sociedade porto-alegrense. A questo central de discusso, fomentada por Jorge Antnio dos Santos, o Jorge do Xang, passou a ser a postura frente ao 13 de maio. Ferrenho crtico das comemoraes realizadas neste dia, ele vinha de uma experincia no grupo de teatro da Sociedade Floresta Aurora. Entre outras peas, havia integrado o elenco de uma adaptao de Orfeu da Conceio, apresentada no final da dcada de 60 no teatro So Pedro.

45 A contestao ao 13 de maio acabou sendo adotada por integrantes de um dos grupos de jovens que se reuniam na Andradas e que propuseram buscar uma alternativa para esse dia. Era o ano de 1971. Quatro dos jovens que participavam do grupo da Masson, na Andradas, decidiram sistematizar as discusses. Oliveira Silveira, professor de Letras, Antnio Carlos Cortes, estudante de Direito, Ilmo da Silva, estudante de Economia, e Vilmar Nunes, estudante de Administrao e funcionrio do Ministrio da Agricultura, passaram ento a pesquisar uma alternativa ao 13. Curiosamente, o principal instigador da discusso Antonio do Xang no participou em nenhum momento do grupo. Preferiu manter-se independente em suas crticas e aes. Os relatos de vida dos fundadores do grupo Palmares deixam claro que as motivaes para a tomada de conscincia foram vrias e estavam diretamente ligadas a suas experincias e vivncias. No entanto, suas diferentes realidades os haviam levado a propor uma ao unificada para subverter a ordem naturalizada das relaes raciais na sociedade porto-alegrense que, em menor escala e talvez maior proporo, reproduziam as relaes da sociedade brasileira. Oliveira Silveira chegou em Porto Alegre em 1959. Nasceu em Rosrio do Sul, em 1941, filho de um uruguaio branco e uma negra rosariense. Viveu sua infncia numa comunidade negra familiar, formada nas terras do av materno, ex-capataz de estncia. Conviviam com os hbitos e as msicas e negras. Tem essa influncia como substrato, por na poca no ter ainda conscincia da influncia do ambiente em seu modo de ver o mundo e de por ele ser visto. Apesar de no ter o entendimento poca, recorda que na cidade existia um clube exclusivo para negros, que no podiam freqentar outros locais. Sua famlia no freqentava o clube. Tal recordao, no entanto, demonstra a existncia de separao racial no municpio, discriminao. Tambm se sentia diferenciado em outros

46 ambientes, mas no estava consciente da existncia de racismo, protegido pelo seu ncleo familiar. Ainda na infncia teve os primeiros contatos com poltica. Seu pai era trabalhista, ligado ao antigo PTB. Conta que durante as eleies, percorria o pampa acompanhando candidatos. A poltica estudantil tambm entrou em sua vida ainda em Rosrio, quando participou do grmio estudantil da escola em que concluiu o primrio e cursou o ginsio. Experincia que se repetiu j em Porto Alegre, no Colgio Jlio de Castilhos, onde cursou o Clssico. poca da Legalidade e de intenso engajamento. Tambm da poca do Julinho seu contato com a questo negra. Atravs da professora de Literatura e poetisa Nara de Lemos, teve acesso ao livro Reflexes sobre o Racismo (SARTRE, 1965), de Sartre. A parte relativa causa negra, originalmente era o prefcio a Antologia da nova poesia negra e malgaxe de lngua francesa, de Leophold Senghor, um dos lderes do movimento Negritude10 e depois presidente do Senegal. Alm da impresso deixada pelo texto de Sartre, teve contato com autores negros africanos e da dispora. do mesmo perodo, sua participao na Juventude Catlica. Ali realizou uma apresentao sobre a frica. A pesquisa lhe colocou em contato com as lutas pela independncia e o pan-africanismo. O livro frica, Colonos e Cmplices (PORTELLA, 1961) foi sua grande referncia deste momento. Apesar de estar j algum tempo na capital, no mantinha contato com a comunidade negra. J na Ufrgs prosseguiu envolvido com poltica estudantil, que10 Movimento Negritude iniciou na dcada de 30 na Frana com a fundao da revista LEtudiant Noir, liderada pelo senegals Lopold Sedar Snghor e o franco-caribenho Aime Csaire, juntamente com Damas, Sainville e Mauge. Inicialmente se props como uma revoluo na linguagem e na literatura que permitiria reverter o sentido pejorativo da palavra negro, para dela tirar um sentido positivo. Constituiuse, no entanto, num movimento pan-africanista poltico de afirmao dos valores negros, buscando recuperar a identidade e o orgulho de ser negro, a partir da tomada de conscincia da situao de dominao, espoliao e discriminao vivida pelos negros na frica e na dispora. Ver BERND, 1984 e 1986; MUNANGA, 1988.

47 considera decisiva para seu posicionamento e conscientizao. Continuou lendo autores referenciados na obra de Sartre, muitos em francs. Tambm teve contato com autores negros brasileiros como Solano Trindade, Cruz e Souza. A aproximao das questes do Brasil, trouxe a deciso de procurar a comunidade negra porto-alegrense. Tentou primeiro formar um grupo junto a sede do Floresta Aurora que no passou de duas reunies. Pensava num grupo de estudos universitrios. Nada muito definido, mas com inteno de ter carter cultural, relembra. Depois desta tentativa, continuou realizando contatos e conhecendo outras pessoas. Tal aproximao levou-o ao grupo da Andradas, uma roda de amigos e conversas em frente loja Masson. Antnio Carlos Corte foi quem o apresentou. Lembra que nesse momento, incio da dcada de 70, convivia intensamente com os negros. Outro dos fundadores do Palmares, Antnio Carlos Cortes, conheceu em casa o peso do preconceito racial. Seu pai Egdio Ribeiro Cortes possua instruo, falava ingls e era datilgrafo. Mesmo com a formao, foi mantido como contnuo do Departamento de Loteria do Estado. Vm tambm de seu pai os ensinamentos sobre o orgulho negro e a necessidade de estudar para vencer as barreiras impostas pela sociedade. Alertava-o para as diferenas sociais entre negros e brancos atravs de manchetes de jornais que noticiavam, por exemplo, a priso de trs batedores de carteira, sendo um negro, sem identificar a etnia cor da pele dos outros presos; ou por sua revolta contra msicas populares como Mulata Assanhada, de Ataulfo Alves, cujo refro dizia ... a meu deus que bom seria / se voltasse a escravido / eu comprava essa mulata / e prendia no meu corao. Cortes nasceu em 48, quando sua famlia morava na Vila Bom Jesus. De l, foram morar no Menino Deus, onde seu pai comprou uma casa e depois no Centro, no prdio da Loteria Estadual. Lembra que foi trabalhar muito cedo, aos oito anos de idade,

48 vendendo frutas e verduras. Outra recordao marcante da infncia a de que ele e seus dois irmos mais novos foram estudar no Colgio Nossa Senhora das Dores. Como os pais s conseguiram duas bolsas, chegavam mais cedo ao colgio para varrerem as salas do primrio. Pagavam com trabalho a terceira matrcula. Fez um supletivo para concluir o antigo 1 grau e poder trabalhar para auxiliar a famlia, indo depois fazer um curso tcnico em Contabilidade, na Escola Tcnica de Comrcio do Sindicato dos Comercirios. Abandonou no terceiro ano depois que teve um desentendimento com um professor, que deixou claro que o rodaria. Completou tambm o 2 grau no supletivo. Depois disso, passou nos vestibulares da Unisinos e da Ufrgs, onde cursou Direito. No incio da dcada de 70, estava ingressando na universidade. Lembra da lio do professor de Direito do Trabalho sobre a lei urea. Composta por apenas dois artigos, abolia a escravido e revogava disposies contrrias, sem justificativas ou medidas a serem adotadas para absoro social da imensa massa escrava. Sua militncia havia iniciado ainda na dcada de 60 atravs do teatro, junto com Jorge do Xang. O grupo de teatro era dirigido por Airton Marques e, na encenao de Orfeu Negro, contava com 32 atores. Para esta pea, foram reunidos artistas amadores ligados ao Floresta Aurora e ao Clube Marclio Dias. Sua chegada na Andradas ocorreu naturalmente. Lembra que os jovens negros se cumprimentavam quando passavam pelas ruas, mesmo que no se conhecessem. Morava na Andradas e freqentava os cinemas da regio. Depois das sesses, ficavam por ali conversando. Recorda de alguns nomes que por ali transitavam, como os jornalistas Roberto Rodrigues e Slvio Almeida, o Luis Paulo Assis dos Santos, inspetor da Caixa Estadual, o Dionei Alves Ribeiro, petroleiro, o Luiz Carlos Barcelos, o Ilmo

49 Silva, da CEEE, o Vilmar Nunes, do Ministrio da Agricultura, o professor Oliveira Silveira e o Jorge do Xang, segundo Cortes, o mais inquieto de todos. Ilmo Silva nasceu, em 1944, na periferia de Porto Alegre. Morava com a famlia no bairro Petrpolis, uma zona de negros. Morava na rua Joo Guimares. Lembra ter convivido com sua av paterna, que havia nascido em 1897 e lhe contava muitas histrias sobre os Campos do Bonfim e a Colnia Africana. Alm dos pais, morava com uma tia-av Cochinha, que havia criado sua me. Conta que nesta poca, os negros no estavam espalhados pela cidade. Concentravam-se naquela regio e na periferia da Cidade Baixa. Dessa poca, recorda tambm que do lado sul do Arroio Dilvio havia uma comunidade de polacos. Nascido num territrio negro, diz ter tido envolvimento com a questo negra desde pequeno, apesar de ter conhecido a discriminao apenas quando adulto. Estudou o primeiro ano em uma escola particular na rua Felipe de Oliveira e depois foi transferido para o Colgio Rio Branco. Sua famlia havia mudado ento pra a rua Jaragu, tambm no Petrpolis, mas prximo ao bairro Rio Branco, a Colnia Africana. Lembra que fazia o trajeto a p. Seus pais conseguiram ento que fosse matriculado no Ginsio Santo Antnio do Partenon, uma escola particular. Nessa escola, cursou o restante do primrio e parte do ginasial. Era o nico estudante negro de toda escola, mas diz nunca ter sofrido nenhum tipo de diferenciao ou discriminao neste ambiente. Tendo mudado para Glria, cursou o ltimo ano do ginasial no Colgio Assuno. Parou de estudar por no saber que existia outro curso a seguir. Para seus pais, quase analfabetos, sua formao estava excelente; para ele, tambm. Foi trabalhar e conheceu um colega formado em Contabilidade. Descobriu que poderia tambm continuar estudando, o que fez. Trabalhava nessa poca na Pepsi.

50 Concludo o curso de contabilidade fez vestibular na Unisinos para Economia. Nesta poca, trabalhava na CEEE e comeou um envolvimento maior com os clubes negros da capital. Primeiro o Floresta Aurora, onde costumava danar e freqentava desde criana com seus pais. Desfilava tambm nos blocos da sociedade, os Cancioneiros do Luar e, depois, os Ferdinandos. Os jovens que freqentavam o clube comearam a discutir a situao da sociedade e a possibilidade de transform-la num grande clube e, paralelamente, questo social dos negros. Foi onde conheceu Cortes. Numa das reunies, sugeriu a fuso do Floresta Aurora com o Satlite Prontido, clubes presididos por dois irmos da famlia Lucena. A idia foi mal recebida e acabou no acolhida. Transferiu-se para o clube Marclio Dias, que ficava na avenida Praia de Belas, no qual integrou a diretoria. Com a sada do Lcio da presidncia, o clube foi sendo abandonado aos poucos e fechou. J nesta poca, era um freqentador habitual da Andradas. Conta que ali era um verdadeiro ponto de encontro depois das 18h e que os jovens negros costumavam marcar encontro no escritrio. A rua era o escritrio. Foi ali, atravs do Cortes e de outros conhecidos dos clubes que chegou ao grupo da Masson, o qual originaria o Grupo Palmares. O caminho de Oliveira Silveira para a tomada de conscincia foi construdo pelos livros e pelo estudo. Ficou emocionado ao pesquisar as guerras de independncia da frica para apresentar ao grupo de jovens que freqentava na igreja. O passo definitivo, no entanto, foi dado atravs do texto de Sartre e dos poetas e escritores africanos de colonizao francesa. O movimento da Negritude de Seghnor e Cesire foi seu trampolim para a ao. Antnio Carlos Cortes demonstra que sua conscincia surgiu de suas experincias pessoais, principalmente no ambiente escolar, e tambm pela influncia de

51 seu pai. Soube desde cedo que teria que se sobressair em suas aes para que pudesse concorrer de maneira igual, numa sociedade que trata o negro como desigual. Sua relao com jovens negros e a experincia no teatro reforam que sua conscincia nasceu atravs de suas relaes pessoais e sociais. A trajetria de Ilmo Silveira possui outra caracterstica. Nascido num dos territrios negros tradicionais, relacionava-se com a cidade e o novo espao, o Centro, a partir de referenciais identitrios criados naqueles territrios que j no mais existiam. Tambm foi atuante nos clubes negros, desde menino. Os clubes como j referido constituam-se em outro territrio de resistncia e de identificao para a comunidade negra. Pode-se afirmar com isso que Ilmo Silva, apesar de universitrio, como os outros componentes, trouxe a fala dos territrios negros tradicionais para o Palmares. Decididos a buscar alternativas ao 13 de maio, Oliveira Silveira, Antnio Carlos Cortes, Ilmo Silva e Vilmar Nunes realizam algumas discusses na Andradas sobre a falta de outros referenciais para o negro na Histria oficial. A partir dessa constatao, decidiram pesquisar datas que pudessem ser representativas para o povo negro. Uma revista da coleo Grandes Personagens da Histria, da Editora Abril, abordando a figura de Zumbi dos Palmares, chamou ateno do grupo. Seria esse um referencial forte por tratar-se de um personagem libertrio e no libertado. Ao mesmo tempo, a histria de resistncia de Palmares era reconhecida, ainda no oficialmente, como um marco da presena negra no Brasil. As pesquisas foram ampliadas atravs dos livros Quilombo dos Palmares (1947), de Edson Carneiro, e Guerra nos Palmares (1938), de Ernesto Ennes. Segundo Oliveira Silveira, por no ter a data de nascimento de Zumbi ou do incio da formao do quilombo dos Palmares e por analogia a construo mtica de Tiradentes a data proposta foi a de morte de Zumbi, registrada em diversos documentos.

52 Com a definio de uma data alternativa, o grupo foi formalizado, como preferem alguns dos fundadores, ou estruturado, como preferem outros, em julho de 1971. O nome do quilombo foi aprovado pelos quatro integrantes. Constitua-se, dessa maneira, o Grupo Palmares, cuja proposta inicial seria rever a histria do Brasil em busca de novos referenciais negros. J na primeira reunio ficou definido um cronograma para o ano. Seriam realizadas homenagens a Luiz Gama11, em 24 de agosto, e para Jos do patrocnio, em 09 de outubro, preparando ao ato evocativo de 20 de novembro, que naquele ano caiu no sbado. A homenagem a Lus Gama gerou adeses ao grupo, que ainda ensaiava seus primeiros passos. A publicao de pequena matria no Jornal da Tarde (21/08/71, s/p.), chamando para o ato levou algumas pessoas a participarem da atividade. Anita Leocdia Prestes Abade e Nara Helena Medeiros Soares integraram-se ao grupo logo depois. Ilmo Silva decidiu sair por no concordar com o que chama de processo de radicalizao de posio de alguns integrantes. Depois da primeira evocao ao 20 de Novembro, realizada no clube Marclio Dias, integra-se ao grupo a estudante de Arquitetura Helena Vitria dos Santos Machado. Depois de Oliveira Silveira, foi quem por mais tempo militou no Palmares. Conta que o ingresso no grupo representou o aflorar de sua conscincia tnica. Lembra que a orientao central era a de discutir a importncia da participao do negro na Histria do Brasil, atravs de encontros culturais, conferncias e exposies. Alm de buscar preencher a falta de informaes da comunidade negra, pretendiam um novo posicionamento tnico frente sociedade, inscrevendo a etnia como integrante da identidade nacional. Acredita por isso, que o cultural atua junto com o poltico.

11 Lus Gonzaga Pinto da Gama (1830-1882) poeta, jornalista e militante do movimento abolicionista.

53 Helena Vitria dos Santos Machado nasceu em 1943, em Porto Alegre, filha de uma professora particular e de um operrio grfico, sindicalista e ligado ao Partido Comunista. Na infncia, as referncias negras eram apenas familiares. Morava num bairro de classe mdia baixa, com amigos e vizinhos muito prximos, o que acredita tla protegido de uma viso mais realista da vida. A mudana para um bairro pobre e a entrada em escolas pblicas, levou-a conhecer os processo de diferenciao social. Acreditava que, atravs da busca das razes do fato e com nfase no senso de justia, fosse capaz de resolver as questes raciais. Processo que era utilizado para solucionar os problemas familiares. Conta que a noo clara de racismo entrou em sua famlia pela histria envolvendo o irmo mais velho. Havia passado na admisso para o curso de Arquitetura da Ufrgs, mas acabou ficando de fora por trs dcimos num exame oral. O professor que comunicou a razo da nota afirmou entre outras coisas que O lugar de vocs no samba e no futebol. Apesar da discriminao, participou da seleo no ano seguinte e foi aprovado. Mesmo bomio e, conseqentemente, de freqncia irregular no curso, foi aprovado com excelncia, o que gerou admirao de alguns e desprezo de outros. Quando de sua escolha, seguiu os passos do irmo e entrou para arquitetura da Ufrgs. Lembra-se dessa poca que seu crculo de colegas restringia-se a um pequeno grupo de estudos, pelo qual realizavam acampamentos e militncia estudantil. Com esses mesmos colegas, montou um escritrio depois da formatura. A chegada ao Palmares se deu atravs de um convite depois de ter participado do primeiro ato, ocorrido em 1971.

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1.3 TRAJETRIA D