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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
HISTÓRIA DA MATEMÁTICA NA EDUCAÇÃO MATEMÁTICA:
ESPELHO OU PINTURA?
CRISTINA DALVA VAN BERGHEM MOTTA
SÃO PAULO – SP
2006
ii
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
HISTÓRIA DA MATEMÁTICA NA EDUCAÇÃO MATEMÁTICA:
ESPELHO OU PINTURA?
CRISTINA DALVA VAN BERGHEM MOTTA
Dissertação apresentada à Faculdade de
Educação da USP, como parte das exigências
para obtenção do título de Mestre em Educação
Linha de Pesquisa: Ensino de Ciências e Matemática
Orientador: Prof. Dr. Antonio Carlos Brolezzi
SÃO PAULO – SP
2006
iii
RESUMO
Esta pesquisa exploratória, de revisão bibliográfica, busca apresentar fundamentações teóricas para
diversas abordagens com as quais se têm integrado a História da Matemática no ensino da
Matemática. Para isso, consultamos os estudos críticos que investigam a filiação teórica de algumas
perspectivas de participação da História da Matemática em Educação Matemática, entre os quais
destacamos a referência Miguel & Miorim (2004). Com base nas referências teóricas de Comte,
Piaget & Garcia, Bachelard e Vigotsky, procuramos as concepções de aprendizagem que as
diferentes abordagens englobam, as justificativas que usam para o recurso à História, a presença
(ou não) do caráter internalista, determinista e indutivista da História da Matemática, a
consideração (ou não) das relações de poder envolvidas na construção do conhecimento
matemático e a defesa (ou não) de um paralelismo entre a construção histórica e a construção
pessoal dos conhecimentos matemáticos. Também apresentamos ligações entre a Etnomatemática e
abordagens históricas da Matemática no ensino. A seguir, procuramos mostrar a importância da
visão epistemológica do professor sobre a Matemática, a História da Matemática e a educação para
um trabalho que integre a História na Educação Matemática. Feito isso, terminaremos por expor
nossas considerações a respeito da pertinência de optarmos por abordagens não lineares da História
da Matemática no ensino básico. Nosso estudo mostrou-nos um amplo campo para pesquisas na
História na Educação Matemática em relação aos conhecimentos históricos na formação inicial e
continuada de professores, à produção de material de apoio, ao intercâmbio de experiências e a um
programa de ação pedagógica mais amplo para a integração da História da Matemática em sala de
aula.
Unitermos: história da matemática, educação matemática, formação do professor, ensino da
matemática, história da educação matemática, positivismo.
Linha de Pesquisa: Ensino de Ciências e Matemática
Banca Examinadora: Orientador: Antonio Carlos Brolezzi
Examinadores: Circe Mary Silva da Silva, Vinício de Macedo Santos
iv
Ao bebê em gestação no ventre de Layane
e aos netos e netas que ainda estão por vir.
v
Agradecimentos:
Ao meu amado esposo Robson, companheiro da minha vida, por estar ao meu lado em todos os momentos;
Aos meus filhos Flávio, Daniel e André, razões do meu viver, pela compreensão com minhas ausências, pelo apoio e pelo incentivo, e às minhas noras, por dividirem conosco a nova rotina criada com o mestrado;
Aos meus pais Karel e Cecília, pelo grande amor que sempre me dedicaram. Em especial, agradeço a meu pai, um autodidata, por dar a toda a família um exemplo de amor aos estudos;
Aos meus irmãos Karel, Henrique, Rugero, Eduardo, Jonas, Ana e Paula e também aos meus cunhados e cunhadas, Rubens, Rosely, Simone, Rosana, Ana Paula e Jean, pelo estímulo, pela consideração e pelo carinho;
À minha sogra Beatriz, à tia Nena e ao tio Apolo, por terem me ajudado em todas as situações possíveis;
À minha amiga Vera Lúcia Mota Dias, por ser a amiga da minha vida;
Ao meu orientador Prof. Dr. Antonio Carlos Brolezzi, pela amizade, pela paciência, pela presença sempre calma, confiante e alegre e, principalmente, por ter me permitido partilhar de momentos maravilhosos com sua família: Viviane, minha amiga que está esperando um novo bebê e Alice, uma bonequinha linda e cheia de vida;
Aos meus professores no mestrado: Prof. Dr. Nílson J. Machado, Prof. Dr. Vinício de Macedo Santos e Profa. Dra. Nilce da Silva, pelo acolhimento, pela amizade e por ampliarem nossa compreensão da educação;
Aos professores da banca de qualificação: Profa. Dra. Circe Mary Silva da Silva e Prof. Dr. Vinício de Macedo Santos, pela orientação precisa e atenciosa que deram ao nosso trabalho;
Aos amigos da EMEF “Pref. José Carlos de Figueiredo Ferraz”, que me acolheram com tanto carinho e simpatia. Em especial, agradeço à nossa diretora, Leila, por todo apoio oferecido para que eu pudesse participar das atividades acadêmicas relacionadas ao mestrado;
Aos amigos da EMEF “Pe. Antonio Vieira” que torceram por mim;
E a todos aqueles que, direta ou indiretamente, contribuíram para que esse trabalho fosse concretizado.
vi
SUMÁRIO
Introdução 1
Capítulo 1- A História da Matemática como um espelho 8
1.1 – A presença do positivismo no Brasil 9
1.1.1 – A “lei dos três estados” e a hierarquização das ciências
no positivismo de Comte 13
1.1.2 – A influência do positivismo na educação brasileira 16
1.1.3 – A orientação positivista para a adoção da História da Matemática como
recurso pedagógico 20
1.1.4 – As idéias de Félix Klein para o ensino de Matemática: reafirmando
o princípio genético 22
1.1.5 – Conseqüências do legado positivista para a educação 27
1.2 – Piaget e a busca de conflitos cognitivos na História da Matemática 32
1.3 – A epistemologia de Bachelard 36
1.3.1 – A adoção da noção de “obstáculo epistemológico” na didática da
Matemática 39
1.3.2 – O caráter polêmico da noção de “obstáculo epistemológico” na
didática da matemática 42
1.4 – Reflexos da imagem especular da História da Matemática
em Educação Matemática 47
vii
Capítulo 2 - A História da Matemática como uma pintura 50
2.1 – A adoção do referencial vigotskyano e o abandono do “princípio genético” 51
2.2 – A perspectiva sociocultural 55
2.3 – A perspectiva dos Jogos de Vozes e Ecos 59
2.4 – A História da Matemática como possibilidade de trabalhar as crenças
no processo de ensino e aprendizagem de matemática 61
2.5 – A abordagem sociocultural da História da Matemática pela etnomatemática 67
Capítulo 3 – Os múltiplos olhares na integração da História na
Educação Matemática 75
3.1 – O papel do professor na integração da História da Matemática em
Educação Matemática 75
3.2 – As possibilidades de atribuição de significado ao texto matemático pela
História da Matemática 78
3.3 – As relações entre a escola e o conhecimento matemático 82
3.4 - A História da Matemática na formação de professores no Brasil 90
3.5 – O uso de fontes originais na sala de aula de matemática 92
3.6 – Estratégias didáticas para a integração de fontes originais 98
3.7 – Um trabalho de etnomatemática com fontes primárias 101
3.8 – As abordagens direta e indireta da História da Matemática no ensino 104
3.9 – A “História Pedagogicamente Vetorizada” 105
Conclusões 109
Referências Bibliográficas 114
1
Introdução
As últimas três décadas têm assistido a um amplo debate sobre diferentes análises da
História da Matemática como fonte para auxiliar os processos de construção do conhecimento
matemático pelos alunos. A criação do International Study Group on the relations between
the History and Pedagogy of Mathematics (HPM)1, em 1983, filiado ao International
Commission on Mathematical Instruction (ICMI)2, ampliou as condições para discussões
internacionais a respeito da História na Educação Matemática, campo de investigação que
pesquisa o valor da História da Matemática para educadores matemáticos, professores e
alunos e que gerou um grande número de estudos sobre como a História da Matemática pode
ser usada como um recurso pedagógico, sobre sua efetividade nos currículos e sobre os
benefícios que pode trazer para a instrução matemática em geral.
Os pontos de vista e as experiências sobre o trabalho em sala de aula que integre a
História da Matemática em Educação Matemática são muito variados e dependem da escolha
epistemológica feita pelo professor. A seleção, a apresentação e a interpretação dos dados
históricos decorrem da visão que cada sujeito tem da História, dos valores que estão presentes
em sua análise da cultura e da sociedade e de suas concepções a respeito de como o indivíduo
elabora seu conhecimento da Matemática.
No Brasil, encontramos no trabalho de Miguel & Miorim (2004) um estudo
aprofundado sobre História na Educação Matemática, ao qual creditamos grande parte de
nossas premissas para esta pesquisa. Estes autores investigam as ligações que as diferentes
perspectivas de abordagem da História da Matemática em sala de aula têm com o “princípio
genético”, uma adaptação à pedagogia da lei biogenética que afirma que “a ontogênese
recapitula a filogênese”. O “princípio genético” enxerga uma identidade nos processos
históricos e individuais de desenvolvimento de um conceito e e está associado a uma visão
especular da História da Matemática..
1 Grupo Internacional de Estudo sobre as relações entre História e Pedagogia da Matemática
2 Comissão Internacional de Instrução Matemática
2
Miguel & Miorim (2004) categorizam as diferentes perspectivas teóricas no campo de
investigação História na Educação Matemática em: perspectiva evolucionista linear,
perspectiva estrutural-construtivista operatória, perspectiva evolutiva descontínua, perspectiva
sociocultural e perspectiva dos jogos de vozes e ecos. A perspectiva evolucionista linear
defende o recapitulacionismo de cunho biológico, que vê no desenvolvimento psíquico da
criança, ou seja, na ontogênese, uma repetição abreviada da evolução filogenética e recorre à
História para identificar a ordem cronológica em que os tópicos matemáticos surgiram e que
deverão ser recapitulados no ensino. Foi um princípio norteador para o ensino da matemática
amplamente adotado e serviu como justificativa para o “uso” da História da Matemática em
Educação Matemática pelos positivistas e por Félix Klein, entre outros.
A perspectiva estrutural-construtivista operatória é caracterizada a partir dos estudos
de Piaget & Garcia (1987) e defende uma forma invariante de atuação dos mecanismos
cognitivos, operatórios e gerais de passagem tanto na filogênese quanto na ontogênese. Para
Miguel & Miorim (2004), apesar de Piaget e Garcia negarem seguir o “princípio genético”,
tal similaridade de construção do pensamento matemático em termos pessoais e históricos
seria uma defesa do argumento recapitulacionista. Com esta concepção, esta perspectiva
recorre à História da Matemática como fonte para a busca de conflitos cognitivos que
permitam a passagem de uma etapa da construção do pensamento matemático para outra.
Do mesmo modo, para Miguel & Miorim (2004), a perspectiva evolutiva descontínua,
baseada na noção de obstáculo epistemológico de Bachelard que foi importada para a
Educação Matemática por Brousseau (1983), também defende o argumento
recapitulacionista. Ao buscar na História da Matemática obstáculos epistemológicos que se
manifestem tanto na filogênese quanto na psicogênese, de certa forma esta perspectiva
também se apóia no “princípio genético” para montar as situações-problema que permitiriam
aos alunos superar as dificuldades da construção de um conceito. Assim, a História permitiria
identificar os obstáculos epistemológicos constitutivos de um conhecimento matemático e
construir situações-problema para superá-los. Estas três perspectivas representariam em nosso
trabalho a imagem da História da Matemática como um espelho.
As outras perspectivas descritas por Miguel & Miorim (2004) abordam a História da
Matemática de uma forma mais contextualizada, procurando identificar os elementos externos
3
que interferem na construção dos conhecimentos matemáticos. Baseada nas idéias de
Vigotski, a perspectiva sociocultural enxerga o conhecimento matemático como resultante da
negociação social de significados e a História da Matemática como uma fonte de experiências
humanas que podem ser trabalhadas nas atividades didáticas em matemática, através de um
diálogo com as práticas atuais e o contexto da época da produção do conceito. Também
usando o referencial teórico vigotskiano, a perspectiva dos jogos de vozes e ecos usa os
construtos teóricos do discurso de Bakthtin e Wittgenstein para buscar na História da
Matemática contradições entre as vozes históricas produzidas na sistematização do discurso
teórico da matemática e as vozes dos estudantes, para propiciar que as características do
conhecimento científico normalmente não trabalhadas na escola, como intuição, concepções
que ferem o senso comum, diferentes formas de organização do discurso matemático, etc.,
sejam discutidas e apropriadas pelos estudantes. Em oposição ao defendido pelo “princípio
genético”, estas abordagens da História da Matemática em sala de aula têm buscado retratar
as feições próprias do conhecimento matemático, dependentes dos matizes sócio-culturais que
influenciaram os diferentes períodos históricos. Além disto, também questionam o papel das
interações entre um aluno e os outros e entre aluno e professor, desconsideradas nas
abordagens anteriores, que encaram o acesso ao conhecimento como uma tarefa individual.
Desse modo, tais perspectivas desenham um novo quadro da História da Matemática,
procuram novos olhares para retratá-la com as características próprias dos diferentes
contextos culturais em que se achava inserida e montam um quadro que acentua os diferentes
aspectos a serem contemplados. Neste sentido, procuraremos apontar algumas aproximações
entre o programa da etnomatemática e as abordagens em sala de aula de uma visão sócio-
cultural da História da Matemática. Assim, incluindo também o enfoque histórico da
etnomatemática, em nosso trabalho encaramos estas perspectivas como “pinturas”.
Desse modo, agruparemos as diferentes perspectivas que analisam a História da
Matemática em dois grupos: as que adotam um ponto de vista internalista e indutivista e que
apresentam a Matemática como uma ciência pronta e acabada e aquelas que adotam uma
visão externalista e sócio-cultural e buscam compreender o conhecimento matemático como
uma manifestação significativa das diversas culturas.
Em nosso trabalho, assumiremos as visões internalistas e externalistas da Matemática
de acordo com Zúñiga (1990, p. 424). O internalismo enfatiza os elementos teóricos da
ciência: a racionalidade e a lógica e assume também que a gênese e a validação dos
4
conhecimentos não estão influenciadas por fatores externos, sendo que seu estudo é de
competência da história e da filosofia das idéias. Desse modo, a sociologia e a psicologia
passam a ter muito pouco a ver com o desenvolvimento da ciência. O externalismo assume a
posição oposta: seu interesse se dirige à estrutura ou organização da ciência, enfatizando os
fatores psico-sociais, políticos, orgânico-administrativos, etc., geralmente em detrimento de
elementos lógico-dedutivos da ciência. Entre as temáticas típicas destas linhas estão ciência e
tecnologia, responsabilidade social da ciência, política científica, governo e ciência etc.
Gostaríamos de salientar que outros estudos sobre diferentes abordagens da História
da Matemática em sala de aula têm categorizações diferentes da nossa. Waldegg (1997, 44-
45), por exemplo, sugere que a ligação entre a História da Matemática e a Psicologia da
Matemática seja assegurada pela epistemologia. Para ela, as questões que podem ser postas à
História da Matemática são essencialmente epistemológicas, porque são provenientes de
situações de apreensão de conceitos e de construção de saberes. Assim, como a história revela
o desenvolvimento dos conceitos matemáticos contidos nos programas acadêmicos, o
problema metodológico que se apresenta ao professor é: qual gênero de história se irá
trabalhar? A história enquanto anedota, que apresenta os aspectos humanos da construção dos
conceitos e busca, principalmente, motivar os alunos? Ou a história que nos permite
interrogar a propósito das condições da construção de um saber, da transformação das noções
e da evolução os objetos matemáticos? Waldegg apresenta, então, quatro diferentes
perspectivas para a abordagem da História da Matemática em sala de aula que mostram o
papel da epistemologia no projeto didático: a dos obstáculos epistemológicos, a dos
mecanismos de passagem, a da transposição didática e a do estatuto dos objetos matemáticos.
Algumas das hipóteses dessas abordagens se assemelham àquelas que trataremos em
nosso trabalho. Com relação aos obstáculos epistemológicos, elas se referem à identificação
na História dos mesmos obstáculos encontrados pelos estudantes de hoje na construção de um
conceito. A abordagem dos mecanismos de passagem vê na história e no desenvolvimento
individual uma analogia de etapas a serem percorridas para a construção de um conceito. A
abordagem pela transposição didática busca na história das ligações entre os conhecimentos
formais e escolares novas maneiras de compreender as diferenças entre as concepções do
ensino e a prática da matemática. Por último, Waldegg apresenta a existência de pesquisas
que tentam ligar a construção de certas categorias teóricas ao curso da história e dentro da
evolução do pensamento científico dos alunos e que questionam o hábito dos professores de
5
introduzir os aspectos estruturais dos conceitos matemáticos antes dos aspectos operacionais,
seguindo uma marcha contrária à da História.
Furinghetti (2005), por sua vez, distingue dois temas básicos: a história para refletir
sobre a natureza da matemática como um processo sócio-cultural e a história para construir
objetos matemáticos. A escolha de um destes quadros teóricos determinaria o tipo de trabalho
feito em sala de aula: o primeiro se refere à idéia de “humanizar a matemática” no trabalho
em sala de aula e o segundo aos problemas relacionados com o ensino/aprendizagem da
Matemática. Furinghetti (2005) explica que a expressão “humanizar a Matemática” não tem
um sentido muito claro, apesar de ser normalmente citada como um dos motivos para o uso
da história no ensino de Matemática. A autora atribui essa dificuldade ao fato dessa expressão
envolver questões matemáticas e filosóficas. O ponto crucial da discussão filosófica é a
existência ou não dos objetos matemáticos. Para os que pensam ser a matemática pura
independente das atividades humanas, a resposta é problemática, enquanto para os que vêem
a Matemática como parte da atividade humana, a história exerce um papel afirmativo.
Entretanto, a autora verificou em suas pesquisas com professores e estudantes de matemática
que “humanizar a Matemática” é muitas vezes associado com a utilização de anedotas,
estórias e vinhetas, relacionadas a fatores afetivos que intervêm nos processos de ensino e
aprendizagem e justificadas com base nos sentimentos pessoais de satisfação dos professores
com os resultados obtidos.
Para Miguel & Miorim (2004), o campo de pesquisa de História na Educação
Matemática inclui todos os estudos sobre a presença da História da Matemática na formação
inicial e continuada de professores; na formação matemática de estudantes de todos os níveis,
nos livros de Matemática em geral; nos programas e propostas curriculares oficiais de ensino
da Matemática e na investigação em Educação Matemática. Neste sentido, a preocupação
principal dos autores gira em torno de uma melhora qualitativa nas práticas escolares que
envolvem a Matemática, por meio de “abordagens históricas significativas, orgânicas e
esclarecedoras da cultura matemática”. (p.12).
No presente trabalho discutiremos algumas perspectivas de abordagem da História da
Matemática e apresentaremos nosso direcionamento para a importância da consideração dos
aspectos sociais e culturais na produção, aceitação e difusão dos conceitos matemáticos. No
capítulo 1, iremos tratar da influência positivista para a adoção do recurso pedagógico da
História da Matemática, principalmente em relação a sua antecipação em relação ao
6
“princípio genético”, com o estabelecimento da “lei dos três estados” de Comte. A seguir,
faremos uma breve discussão sobre a abordagem da História da Ciência por Piaget e Garcia e
sobre a importância da noção de obstáculo epistemológico criada por Bachelard e ampliada
por Brousseau como justificativa para a integração da História da Matemática em sala de
aula. Também procuraremos apresentar algumas das críticas feitas a estas abordagens,
principalmente pelo seu caráter internalista e indutivista. No Capítulo 2 apresentaremos
algumas abordagens sócio-culturais e buscaremos as aproximações entre a etnomatemática e
um trabalho em sala de aula que contemple a diversidade cultural e os conhecimentos prévios
dos alunos. Nesses dois primeiros capítulos, separados de acordo com a visão internalista, em
que a História da Matemática é tratada como uma imagem especular e a visão externalista, em
que a História da Matemática é tratada como uma pintura, delineada pelos contextos sociais e
culturais da época, construiremos as bases para nossa apresentação, no capítulo 3, dos
múltiplos olhares que podemos ter para buscar a integração da História da Matemática em
Educação Matemática: o papel do professor, a História da Matemática na formação de
professores, as possibilidades de atribuição de significado ao texto matemático pela História
da Matemática, a constituição de histórias problematizadoras sobre a gênese dos conceitos na
formação de professores e no ensino, as estratégias didáticas para integração de fontes
originais na sala de aula de matemática e as relações entre a escola e o conhecimento
matemático. Na conclusão, reiteraremos nossas considerações a respeito da importância de se
considerar os fatores externos da produção, aceitação e transmissão dos conhecimentos
matemáticos na integração da História da Matemática em Educação Matemática.
Retrato
Cecília Meireles
Eu não tinha este rosto de hoje,
Assim tão calmo, assim triste, assim magro,
7
Nem estes olhos tão vazios,
Nem o lábio amargo.
Eu não tinha estas mãos sem força,
Tão paradas e firas e mortas;
Eu não tinha este coração
Que nem se mostra.
Eu não dei por esta mudança,
Tão simples, tão certa, tão fácil:
- Em que espelho ficou perdida
A minha face?
Capítulo 1
A História da Matemática como um Espelho
Neste capítulo, trabalharemos as diversas abordagens teóricas da História da
Matemática em sala de aula que traduzem uma imagem especular do desenvolvimento de um
conceito nos planos históricos e individuais. Inicialmente apresentaremos a orientação
positivista para a abordagem histórica da Matemática como forma de manter uma visão
conjunta do progresso desta ciência e de apresentar os conceitos em um grau crescente de
8
complexidade, conforme foram se desenvolvendo na evolução da humanidade. Essa
orientação exerceu grande influência no ensino da Matemática, principalmente por colaborar
na concepção da Matemática como um corpo cumulativo de conhecimentos seqüenciais e
ordenados hierarquicamente, que se reflete até hoje na elaboração dos programas de ensino.
O pressuposto fundamental do positivismo é o de que a sociedade humana é regulada
por leis naturais, invariáveis, independentes da vontade e da ação humanas. Em decorrência
disto aplica-se a mesma metodologia para o estudo das ciências naturais e das ciências
sociais. Essas características da filosofia positivista que Comte apresentava em seus cursos na
França do século XIX agradaram a nova burguesia do período do Império em nosso país, por
possibilitarem a conciliação entre ordem e progresso. Entre os engenheiros e os docentes de
Matemática das instituições militares brasileiras encontravam-se ex-alunos de Comte, que ao
retornarem ao Brasil se tornaram os primeiros divulgadores do positivismo e adotaram o
modelo de racionalidade técnica por ele defendido (Silva, 199, p. 216).
Comte afirma em sua “lei dos três estados” que o estado positivo é alcançado quando
o homem renuncia conhecer as causas e a natureza íntima das coisas e explica as relações
entre as coisas e os acontecimentos pela formulação de leis. Também com a “lei dos três
estados”, Comte reconhece uma similaridade de etapas na evolução de um conceito no plano
individual e no plano da história da ciência. Cria, assim, uma visão internalista e indutivista
da história da ciência e estabelece uma subordinação determinista do presente em relação ao
passado: a História seria um espelho do que se passou, factual e ligada ao acontecimento em
si.
Também podemos perceber a influência dessa visão especular da História da
Matemática nas concepções de Piaget & Garcia – na obra “Psicogênese e História das
Ciências” - e na ampliação feita por Brousseau da noção de “obstáculo epistemológico” de
Bachelard. Para Piaget & Garcia, a analogia entre a filogênese e a ontogênese estaria na
identidade dos modos de produção de conhecimento matemático: a reconstrução pessoal de
um conhecimento recapitularia as mesmas etapas percorridas na construção histórica. A noção
de “obstáculo epistemológico”, criada por Bachelard e importada por Brousseau para a
didática da Matemática, propiciou uma nova abordagem da História da Matemática, por meio
da busca de situações problema que permitissem o aparecimento dos mesmos obstáculos
encontrados pelos matemáticos na História, a serem superados pelos alunos de hoje da mesma
forma que o foram no passado. Entretanto, apesar de apontar para a ruptura e a
9
descontinuidade e negar a evolução linear da ciência pregada pelo positivismo, a noção de
“obstáculo epistemológico” continuou de certa forma servindo para se fazer o paralelismo
entre a ontogênese e a filogênese, ao apresentar o pressuposto de que os mesmos obstáculos
epistemológicos apresentados na produção histórica de um conceito seriam encontrados na
prática educacional. Além disto, também não apresenta a influência do meio sócio-cultural na
produção, aceitação e difusão das idéias matemáticas, ou seja, apresenta um caráter
internalista da História da Matemática. Dessa forma, apesar desses teóricos negarem defender
o argumento recapitulacionista, essas perspectivas mostram um paralelismo do caráter
evolutivo das idéias matemáticas que nos leva a afirmar que, embora defendam a
descontinuidade e rupturas no processo de construção do conhecimento, de certa forma ainda
seguem o “princípio genético”.
1.1 - A presença do positivismo no Brasil
Segundo Silva (1999), podemos diferenciar duas fases no desenvolvimento da história
do positivismo: o pré-positivismo, ou positivismo do século XVIII, e o positivismo de Comte,
no início do século XIX, que se refletem de maneiras diferentes no ensino de Matemática no
Brasil.
O pré-positivismo, ou positivismo do século XVIII, originou-se na França e na
Inglaterra. Era caracterizado pela aversão à religião e à metafísica, pelo empirismo e pela
busca de simplicidade, clareza, representações exatas e precisas e uniformidade na
metodologia de estudo de todas as ciências.
Para Silva (1999), durante o período colonial e no início do Império a influência
marcante no Brasil é a do pré-positivismo propagado em Portugal por um pedagogo, Luís
Antonio Verney (1713-1792) e por um político, o Marquês de Pombal (1699-1782). A
reforma educacional que eles orientaram nesse país foi ampla e atingiu principalmente a
Universidade de Coimbra, com a criação de uma Faculdade de Matemática e da profissão de
matemático em 1772. Na França as escolas especializadas seriam criadas após 1793 e na
Alemanha em 1863, o que mostra a importância da reforma pombalina. A Matemática tornou-
se disciplina obrigatória em todos os cursos da Universidade de Coimbra, orientada para uma
10
aquisição de conhecimentos que favorecesse o fortalecimento da sociedade mercantilista da
época.
Com a mesma concepção, funda-se a Academia Militar do Rio de Janeiro, em 1810,
de caráter utilitarista e cientificista, tendo a Matemática como disciplina principal e voltada
para as ciências experimentais, que se tornaria mais tarde uma fonte de difusão do positivismo
de Comte no Brasil.
Auguste Comte (1798-1857) foi um filósofo francês de formação politécnica, escritor
e professor de Matemática, que havia sido secretário de Henri de Saint-Simon (1760-1825),
um autor que, além de positivista, foi um dos fundadores do socialismo. Uma das principais
obras de Comte é o “Curso de Filosofia Positiva”, em seis volumes, publicados entre 1830 e
1842. Em sua Filosofia Positiva, Comte aplica às ciências sociais os métodos racionais
utilizados na Matemática para extrair as leis que regem o desenvolvimento da sociedade,
atribuindo um papel social à ciência. Assim, o positivismo busca classificar todos os
fenômenos por meio de um reduzido número de leis naturais e invariáveis, sendo que o estudo
dos fenômenos deve começar dos mais gerais ou mais simples e a partir deles conseguir a
ordenação nas ciências, até alcançar os mais complicados ou particulares.
Para Triviños (1987, p. 38-39), a filosofia positiva é uma reflexão sobre as ciências,
uma história da explicação racional da natureza que começa pela matemática e evolui até a
sociologia, a ciência criada por Comte para investigar com objetividade as leis do
desenvolvimento da sociedade e que apresenta como finalidade da inteligência humana a
descoberta das leis naturais invariáveis de todos os fenômenos. O positivismo somente aceita
como realidade fatos que possam ser observados, transformados em leis que forneçam o
conhecimento objetivo dos dados e que permitam a previsão de novos fatos, criando a
dimensão da neutralidade da ciência: o sábio investiga desinteressado das conseqüências
práticas, tendo como propósito somente exprimir a realidade. Também afirma que há uma
unidade metodológica de investigação, tanto para os fenômenos da natureza como para os
fenômenos sociais, o que provoca uma distinção muito clara entre valores, que por não serem
quantificáveis não podem se constituir em um conhecimento científico e fatos, que são o
objeto da ciência.
A Matemática, na ordenação das ciências criada por Comte, é o ponto de partida da
educação científica, a primeira ciência a atingir o estado positivo por possuir leis com
11
aplicação universal e ser a mais simples e geral de todas as ciências. Ao mesmo tempo, o
método experimental-matemático é o único aceito pela pesquisa positivista, pela expectativa
de garantir a neutralidade e a objetividade do conhecimento, o rigor do conhecimento e a
racionalidade técnica. O positivismo de Comte prega uma educação científica que seja a base
para o desenvolvimento das ciências especializadas, com a finalidade de se garantir a
previsão das necessidades humanas e a equivalência entre ciência e progresso, tendo como
único valor o conhecimento objetivo.
Como conseqüência, a ciência é vista como uma atividade governada por regras
metodológicas que possibilitam a previsão dos fatos pela lógica indutiva e a conseqüente
capacidade de superar os períodos de instabilidade no desenvolvimento da ciência, ou seja, o
positivismo constitui-se através da racionalidade técnica.
As principais características da filosofia positivista são:
“1. O estudo da ciência positiva fornece-nos o único meio racional de pôr em
evidência as leis lógicas do espírito;
2. a filosofia positiva deve conduzir a uma transformação do nosso sistema de
educação;
3. o ensino científico pode ser considerado como a base da educação geral,
verdadeiramente racional;
4. a filosofia positiva pode ser considerada como a única base sólida da
reorganização da sociedade” (Silva, 1999, p.39).
Com tais características, o positivismo francês de Comte começa a exercer sua
influência no Brasil logo após o início do Império e encontra uma grande adesão entre os
docentes de Matemática e engenheiros da Academia Militar do Rio de Janeiro, se espalhando
então para o restante do país:
“Muitos historiadores consideram a influência do positivismo no Brasil como
um fenômeno único e afirmam inclusive que a Matemática desempenhou um papel
essencial na introdução e divulgação do positivismo no país. O motivo disso é que
houve no Brasil uma instituição que desempenhou um papel decisivo para isso – a
12
Escola Militar do Rio de Janeiro. Lá, a ideologia positivista encontrou uma forte
sustentação e pôde, então, atingir a vida social, política, pedagógica e ideológica
brasileira. Os docentes de Matemática desempenharam um papel muito importante
na propagação das idéias positivistas. Nessa escola, a Matemática era, inclusive, a
disciplina principal. Durante um período de mais de cem anos (1810-1920), a
Academia Militar do Rio de Janeiro (e todas as suas ramificações: Escola Central,
Escola Militar, Escola Politécnica, Escolas preparatórias) foi praticamente a única
instituição onde os brasileiros poderiam adquirir conhecimentos matemáticos
sistemáticos de nível superior e obter um diploma de bacharel e doutorado em
ciências físicas e Matemáticas.” (Silva, 1999, p. 13).
Segundo Silva (1999), uma das prováveis razões para o grande sucesso dessa filosofia
entre os meios acadêmicos militares é que não havia no país uma tradição em pesquisa
científica e o modelo da ciência construída como uma prática técnica estava de acordo com as
aspirações dos alunos e docentes. Além disso, o positivismo encontrou em nosso país
condições propícias à sua difusão, em um momento político de afirmação de uma nova
burguesia formada por intelectuais, médicos, engenheiros e militares que lutava contra a
monarquia, a influência do clero e o caráter feudal dos latifúndios e que via no positivismo
fundamentado na ciência a base de uma política racional que reconciliasse a ordem e o
progresso.
Em Pires (1998, p. 121) encontramos a observação de que a discussão do positivismo
foi aglutinada em torno do campo de atuação das diversas Escolas: em São Paulo a
predominância das discussões se deu em torno das questões do Direito; na Bahia, das ciências
médicas e em diversos estados do nordeste da literatura. Essa autora também observa (p. 131-
132) que a difusão dos ideais positivistas no Brasil ocorreu não pela sua adoção pela maioria
da população brasileira ou pela maioria da intelectualidade, mas sim pelo fato de que figuras
proeminentes como Benjamin Constant Botelho de Magalhães, no exército e Júlio de
Castilhos, na política, serem positivistas. Assim, indivíduos isolados que atuaram nos diversos
setores da vida brasileira, principalmente no início do período republicano, foram os
responsáveis pela difusão das idéias de Comte. Especificamente na passagem Império-
República, verifica-se a decisiva influência do positivismo nas mudanças políticas e sociais
que buscavam a construção de uma nova ordem, como as campanhas a favor da abolição da
escravatura e pró-republicanas. Através da atuação de Benjamin Constant no Governo
13
Provisório, os positivistas participaram ativamente da organização do novo regime,
contribuindo na introdução do estudo das ciências e na revisão filosófica que procurava
romper com a tradição das humanidades clássicas na educação.
As reformas educacionais com orientação positivista desta época buscaram contemplar
os currículos com a organização dos conhecimentos preconizada por Comte em sua
hierarquização das ciências.
1.1.1 - A “Lei dos Três Estados” e a hierarquização das ciências no positivismo de
Comte
Para Comte, o progresso do conhecimento humano se realizaria por meio de três
estados: o estado teológico, no qual o homem explica as coisas e os acontecimentos através de
seres ou forças sobrenaturais; o estado metafísico, quando há o recurso a entidades abstratas e
idéias que expliquem os fatos; e o estado positivo, quando o homem explica as relações entre
as coisas e os acontecimentos pela formulação de leis, renunciando conhecer as causas e a
natureza íntima das coisas. A sucessão dos três estados se daria em termos individuais, em
que o homem seria teólogo na infância, metafísico na juventude e físico na virilidade, e em
termos da História das Ciências, sendo que a Matemática teria sido a primeira ciência a se
libertar do pensamento teológico e metafísico para se tornar positiva.
A lei dos três estados é o fundamento da filosofia positiva: ao mesmo tempo em que é
uma teoria do conhecimento é também uma filosofia da história (Marías, 1970, p. 340,341).
O espírito positivo comtiano é relativo: nossas idéias dependem da situação histórica em que
vivemos, então o estudo dos fenômenos nunca será absoluto, e sim relativo às condições de
nossa existência em termos individuais e sociais. A ordem da sociedade é permanente, por
seguir a invariável ordem natural, enquanto que o indivíduo encontra-se submetido à
consciência coletiva, ou seja, o sujeito das ciências humanas torna-se um objeto semelhante
ao das ciências da natureza, o indivíduo tem pouca possibilidade de intervenção nos fatos
sociais. O fim máximo do saber seria alcançar a previsão racional de nossas necessidades e
criar a continuidade histórica e o equilíbrio social necessários para o lema político de Comte
de “ordem e progresso”. Ao aplicar a lei dos três estados na interpretação da realidade
14
histórica, o filósofo associa o estado positivo à época industrial e fundamenta a ordem social
no poder mental e social da Humanidade, que seria a principal protagonista da História.
Comte organizou os conhecimentos de modo sistemático e hierárquico, sem se
preocupar com a explicação e interpretação dos fenômenos, tidas como contrárias ao espírito
positivo, por serem metafísicas ou teológicas. O pensamento de Comte parte do objetivo para
o subjetivo, tentando a conciliação destes diferentes métodos. O estudo da filosofia positivista
deveria ser feito de acordo com a seguinte ordenação: Matemática, Astronomia, Física,
Química, Fisiologia e Física Social. Desse modo, a Matemática seria o ponto de partida da
educação científica, pois os conhecimentos matemáticos traduzem o universo dentro de suas
relações inteligíveis que podem ser verificadas em termos humanos e sociais, subordinando a
matemática ao humano (Pires, 1998, p.16).
Comte considerava a Matemática e a Sociologia as ciências mais importantes: a
Matemática pelo caráter universal de aplicação das leis geométricas e mecânicas e a
Sociologia por tratar das indagações que conduzem à evolução histórica da humanidade
(Silva, 1999, p.56).
Além disso, Comte atribuía um duplo caráter à Matemática: poderia ser vista como
uma ciência natural, como uma física, ou como uma lógica, um método, servindo como base
para a Filosofia Positiva, a partir do que ele a subdivide em Matemática abstrata e Matemática
concreta (Silva, 1999, p.43).
A hierarquia das ciências tem para Comte um sentido histórico e dogmático, científico
e lógico: obedece à ordem em que as ciências foram aparecendo e, principalmente, à ordem
em que foram atingindo o estado positivo. Além disso, as ciências estavam ordenadas em
complexidade crescente e segundo sua independência, cada uma necessitando das anteriores e
sendo necessária às seguintes. Também foram agrupadas de acordo com suas afinidades:
Matemática e Astronomia, Física e Química e, finalmente, as ciências da vida: Biologia e
Sociologia, as últimas a sair do estado teológico-metafísico (Marías, 1970, p.342).
A filosofia positiva seria um modo para se pensar a sociedade como um todo e a
hierarquia das ciências uma forma de determinar a educação científica:
“A propriedade mais interessante dessa lei enciclopédica, segundo Comte,
reside no fato de que é ela que determina o verdadeiro plano de uma educação
15
científica, inteiramente racional. É somente através da observância dessa ordem
hierárquica que se consegue atingir uma verdadeira educação integral. Embora o
método seja essencialmente o mesmo em toda a ciência, cada ciência desenvolve
processos característicos, de tal maneira que só se adquire o verdadeiro método
positivo quando se estuda cada uma das ciências fundamentais segundo a ordem
enciclopédica” (Silva, 1999, p. 44).
A preocupação de Comte de apresentar os conhecimentos de forma enciclopédica está
ligada à preocupação com uma educação geral, opondo-se à especialização causada pela
divisão social do trabalho. O principal papel da ciência seria o de assegurar a consolidação da
ordem para garantir o progresso da sociedade industrial. Assim, a ciência adquire a forma de
um saber acabado e o estado positivo considerado como última fase da evolução do
conhecimento.
1.1.2 - A influência do positivismo na educação brasileira
Como vimos, a filosofia positiva tem um caráter pedagógico muito grande, pois além
de procurar reorganizar a sociedade através do estudo da ciência positiva também busca no
ensino científico o suporte para que as ciências especializadas se desenvolvam. Deste modo, a
área da educação foi, sem dúvida, a que mais recebeu a influência do positivismo. Seus
seguidores pregavam a liberdade de ensino, provavelmente como uma forma de reação ao tipo
de educação jesuítica predominante na época. Com isso, ao mesmo tempo em que as escolas
particulares confessionais exerciam uma ação contrária ao positivismo, conseguiram graças à
atuação positivista a abertura do mercado brasileiro. São as escolas livres, como as de Direito
e a Politécnica e as escolas e academias militares que se destacam pela formação de grande
número de positivistas brasileiros. Deste modo, a criação de escolas técnicas esteve associada
a uma orientação positivista, que via no ensino científico a base de uma educação racional,
enquanto as instituições religiosas dedicaram-se a uma educação humanística (Tambara,
2005, p. 170).
Ainda segundo Tambara (2005, p.173), além da ação pessoal de alguns positivistas
nos diversos estabelecimentos de ensino, com destaque para a Escola Politécnica, Colégio
16
Pedro II, Escola Militar do Rio de Janeiro, Colégio Militar, Escola Naval do Rio de Janeiro,
Escola de Medicina, Escola Livre de Direito do Rio de Janeiro e Instituto Lafayete,
encontramos a influência do positivismo também nas reformas de ensino elaboradas por
Benjamin Constant, em 1890, e pelo Ministro Rivadávia Correia, em 1911.
A Reforma Benjamin Constant rompeu com a tradição humanista clássica e a substitui
pela científica, de acordo com a ordenação positivista de Comte (Matemática, Astronomia,
Física, Química, Biologia, Sociologia e Moral). Entretanto, não foram eliminadas as
disciplinas tradicionais, Latim e Grego, apenas se acrescentou ao currículo anterior o estudo
das disciplinas científicas, tornando o ensino secundário ainda mais enciclopédico. Os
princípios orientadores da Reforma foram a liberdade e a laicidade do ensino e a gratuidade
da escola primária. Além disso, pretendia tornar o ensino secundário formador e não apenas
destinado à preparação ao ensino superior (Miorim, 1998, p. 88).
Nesta reforma, Benjamin Constant atinge todos os níveis de ensino, com especial
destaque na estruturação do ensino secundário de acordo com a hierarquia das ciências
preconizada por Comte, o que alterou significativamente o currículo do Colégio Pedro II e da
Escola Normal (Silva, 1999, p. 251,252).
Paralelamente, ocorre o alastramento do positivismo nos livros-textos de Matemática:
“Onde se percebe mais intensamente a força das idéias positivistas no ensino
da Matemática é sem dúvida nos livros-textos, que se multiplicaram, principalmente
depois da difusão realizada por Benjamin Constant.
As concepções matemáticas de Benjamin Constant, Oliveira e Bittencourt e
Roberto Trompowsky de Almeida refletem exemplarmente a influência de Comte sobre
o ensino da Matemática no Brasil. Benjamin Constant tornou o livro de Geometria
Analítica de Comte conhecido dentro das escolas militares, introduzindo-o em
substituição ao livro-texto de Lacroix, até então um dos autores franceses preferidos
pelos docentes brasileiros. Alguns estudantes da Escola Politécnica do Rio de Janeiro
traduziram parte do livro de Geometria Analítica de Comte para a língua portuguesa,
o que mostra o quanto esse livro era usado na escola” (Silva, 1999, p. 253).
Assim, podemos perceber a presença das idéias de Comte nos livros de Raimundo
Teixeira Mendes, que, entre outros livros, em 1877 já recomendava em seu livro Elementos de
17
Geometria Synthetica uma reforma no ensino secundário que abrangesse as seis ciências
positivas; Roberto Trompowsky Leitão de Almeida, com várias obras positivistas escritas
para o ensino; Samuel de Oliveira e Liberato Bittencourt, que foram alunos de Trompowsky e
usaram suas aulas e as idéias de Comte para publicar um livro-texto de Geometria Analítica
em 1892; Licínio Athanasio Cardoso, que foi um fervoroso defensor da idéias positivistas e
escreveu várias obras, usadas também para servir de guia aos seus alunos da Escola
Politécnica, entre outros autores positivistas dos séculos XIX e XX. Além disso, também
encontramos a defesa das idéias positivistas no ensino da matemática em artigos de vários
periódicos, como na Revista da Escola Politécnica (1897-1901); na Revista Polytechnica,
fundada pelo grêmio de alunos da Escola Politécnica de São Paulo em 1904; na Revista
Brasileira de Matemática, que surgiu em 1929; na Revista Mensal, periódico da Sociedade
Científica e Literária Culto às Letras, fundada por alunos da Escola Militar de Porto Alegre
em 1880; entre outros (Silva, 1999, p. 253-275).
No Rio Grande do Sul, com a liderança ideológica de Júlio de Castilhos e de Assis
Brasil, gaúchos oriundos das Escolas Militares e de Engenharia do Rio de Janeiro e da
Faculdade de Direito de São Paulo difundiram as idéias positivistas, o que possibilitou a
organização da Escola de Engenharia, em 1896. Como autores de livros didáticos com
orientação positivista deste estado, temos Luiz Celestino de Castro, coronel-engenheiro, que
escreveu Lições de Arithmetica, em 1883, como livro texto para suas aulas na Escola Militar e
Demétrio Nunes Ribeiro, engenheiro que se formou na Escola Politécnica do Rio de Janeiro e
que trabalhou como professor e diretor da Escola Normal de Porto Alegre, tendo publicado
dois livros didáticos Curso Elementar de Arithmética, a primeira parte em 1881 e a segunda
em 1882 e deixado dois outros livros manuscritos (Silva, 1999, p. 278-298).
Entretanto, encontramos em Valente (1999, p.164), a afirmação de que a inclusão de
elementos comteanos nos livros de matemática foi pouco significativa para a matemática
escolar:
“Nem programas de ensino, nem pontos para exames preparatórios da época
se importaram com as discussões de âmbito filosófico sobre as matemáticas. Os
pontos e conteúdos a ensinar já estavam dados desde Ottoni. Não se estabeleceram
uma reestruturação e reorganização das matemáticas a ponto de ter existido uma
‘matemática escolar positivista’. Ou, o que seria mais preciso dizer, uma matemática
elementar nos moldes preconizados por Comte.”
18
De acordo com Silva, (1999, p. 302-308), a adesão ao positivismo nunca foi
generalizada. Na Escola Politécnica do Rio de Janeiro, por exemplo, em 1882, o então diretor,
Inácio da Cunha Galvão, negou a Miguel Lemos a autorização para que este ministrasse um
curso sobre Filosofia Positiva. Na câmara dos deputados, foram várias as manifestações
contra a propaganda positivista, principalmente com relação à defesa da religião católica,
adotada oficialmente no país naquela época. Ao mesmo tempo, Comte escreveu sua obra
Filosofia Positiva em 1830 e a Matemática a que ele se referia era a do século XVIII e início
do século XIX. Assim, quando Otto de Alencar Silva (1874-1912) inicia a publicação de seus
trabalhos de pesquisa Matemática no Brasil, no final do século XIX, os novos conceitos e
teorias da Matemática passam a ser divulgados e uma nova geração de matemáticos passa a
refutar as idéias de Comte, procurando expulsá-las do ensino. Apesar deste enfraquecimento
do positivismo, vários docentes de Matemática ainda continuaram a citar Comte em seus
livros-textos publicados para o ensino.
O declínio da influência positivista no ensino brasileiro de matemática se daria a partir
da Reforma Francisco Campos (1931), que aceitou integralmente a proposta de reformulação
do currículo de matemática apresentada pela Congregação do Colégio Pedro II, em 1928. A
Reforma Francisco Campos estabelece a união das disciplinas matemáticas englobadas sob o
título de Matemática e busca compatibilizar a modernização dos conteúdos e métodos do
ensino secundário com todos os pontos da proposta de Euclides Roxo, adotando como idéia
central do ensino a noção de função, que deveria fazer a conexão entre os tratamentos
algébricos, aritméticos e geométricos dos conceitos. Na elaboração desta proposta, baseada no
Movimento Internacional para a Modernização do Ensino de Matemática, destaca-se a figura
de Euclides Roxo, diretor do Colégio Pedro II e seguidor das idéias que Félix Klein defendia
através da Comissão Internacional de Ensino de Matemática (Miorim, 1998, p. 91,92).
Entretanto, o ideário positivista ainda se manteve presente nas medidas
governamentais no início da República e na década de 1970, quando houve a tentativa de
implantação da escola tecnicista (Aranha, 1996, p. 140). Por exprimir a confiança do homem
no conhecimento científico, o positivismo conduz a uma visão de mundo coerente com a
visão tecnicista de planejar, organizar, dirigir e controlar que foi introduzida no Brasil
durante a ditadura militar e que prejudicou, sobretudo, as escolas públicas, por submeter o
plano pedagógico ao administrativo e “transformar o professor em mero executor de tarefas
organizadas pelo setor de planejamento” (Aranha, 1996, p. 184).
19
Outro aspecto da influência do positivismo que ainda pode ser notado em Educação
Matemática é o que se refere à adoção do recurso pedagógico da História da Matemática
dentro de um enfoque recapitulacionista da evolução dos conceitos, conforme mostraremos a
seguir.
1.1.3 - A orientação positivista para a adoção da História da Matemática como recurso
pedagógico
O recurso à História aparece nos livros didáticos brasileiros de Matemática do final do
século XIX e começo do XX. Era manifestado pela apresentação de métodos produzidos
historicamente ou de observações sobre temas e personagens da história da matemática e
sofreu forte influência positivista, ao mesmo tempo em que utilizavam uma versão do
“princípio genético” para o ensino da Matemática:
“A influência do positivismo no Brasil, particularmente entre finais do século
XIX e começos do XX, seria uma fator decisivo e reforçador de várias formas de
participação da história em livros didáticos e propostas oficiais brasileiras.” (Miguel
& Miorim, 2004, p.38).
Como uma extensão da lei dos três estados, Comte postula uma similaridade entre o
modo de investigar e explicar os fenômenos naturais e sociais pelo indivíduo em sua história
pessoal e o modo como a humanidade o faz na História, de maneira semelhante ao que seria
defendido mais tarde pelos defensores do “princípio genético” (Miguel & Miorim, 2004, p.
73-74).
O “princípio recapitulacionista” tem origem em uma lei biogenética defendida por
Ernst Haeckel (1834-1919), que faz a seguinte afirmação: “a ontogenia recapitula a
filogenia”, ou seja, o desenvolvimento do embrião humano retraça os estágios pelos quais
seus ancestrais adultos haviam passado. Em pedagogia, tal princípio é identificado como
“princípio genético” e é ligado à idéia de que o aluno percorre em seu aprendizado as mesmas
etapas historicamente percorridas para a construção de um conceito, tendo servido de
justificativa para aplicações didáticas da História da Matemática, dentro de um enfoque
20
recapitulacionista da evolução dos conceitos, que estabelece uma subordinação determinista
do presente em relação ao passado (Miguel & Miorim, 2004, p. 73 e p. 75).
Para Comte, ao expor a ciência pelo caminho histórico teríamos condições de refazer a
ciência por meio do estudo sucessivo e em ordem cronológica da constituição dos diversos
sistemas de idéias, sem a exigência de conhecimentos prévios e mantendo uma visão conjunta
do progresso da ciência. Tal orientação foi seguida de diferentes maneiras pelos autores
positivistas, com a inserção de textos históricos nas notas de rodapé (como no Curso
Elementar de Matemática: Álgebra, de 1902, de Aarão Reis) e a tradução, em 1892, da
geometria de Clairaut, livro recomendado por Comte em sua Biblioteca Positivista (Miguel &
Miorim, 2004, p. 38-39).
Ainda de acordo com Miguel & Miorim (2004, 33), a obra Elements de géométrie, de
Aléxis Claude Clairaut, de 1741, foi adotada por Comte, que considerava a geometria uma
ciência natural baseada na observação, pela sua apresentação de métodos produzidos
historicamente. Segundo Miorim (1998, p.46-48), a geometria de Clairaut contraria as
preocupações com o rigor e o formalismo características dos estudos geométricos através dos
Elementos, de Euclides, e procura facilitar o aprendizado da geometria com a introdução de
aplicações práticas, por meio do fio condutor da história, através do tema das medidas de
terras. O livro escrito por Clairaut segue um encadeamento lógico das proposições,
manifestando pela primeira vez uma preocupação com a “eficiência psicológica” das
demonstrações e tornando-se uma referência para uma pedagogia psicológica da Matemática.
Para muitos autores, Clairaut foi o primeiro autor a considerar o “princípio genético” em
Matemática (Miguel e Miorim, 2004, p.40).
Como conseqüência da concepção de produção do conhecimento no plano
psicogenético, a Matemática passa a ser vista como um corpo cumulativo de conhecimentos
seqüenciais e ordenados hierarquicamente, e a adoção do recurso à história baseada na ordem
cronológica da constituição dos conteúdos a serem ensinados (Miguel & Miorim, 2004, p.
81).
Além das repercussões na perspectiva de adoção da História da Matemática, a visão
evolucionista da construção do conhecimento matemático exerceu uma grande influência na
elaboração de programas de ensino de Matemática, através da estruturação de uma seqüência
pedagógica que deveria acompanhar as etapas cronológicas que a Matemática teria passado na
21
história. Como exemplo, encontramos a citação de Miguel & Miorim (2004, p.84) do capítulo
introdutório do livro A Matemática: seu conteúdo, métodos e significados, escrita pelos
matemáticos russos Aleksandrov, Kolmogorov, Laurentiev e outros, que afirmavam ser objeto
de ensino da escola primária os resultados básicos da aritmética e da geometria; da escola
secundária a matemática elementar; do ensino superior que não se dedique exclusivamente às
Humanidades, os fundamentos da análise, a teoria das equações diferenciais e a álgebra
superior e, finalmente, a atribuição do estudo das idéias e resultados da matemática atual aos
departamentos universitários de Matemática e Física.
Vários matemáticos se apresentaram partidários do uso do princípio genético, como
Henri Poincaré (1854-1912) e Félix Klein (1849-1925) e concebiam a Matemática como uma
acumulação linear e hierárquica de conhecimentos que deveriam ser recapitulados na escola
nos processos de ensino-aprendizagem. Klein, ao defender que o ensino da Matemática
deveria ser feito do mesmo modo que a humanidade desenvolveu o conhecimento
matemático, do mais simples ao mais abstrato e elevado. Poincaré ao atribuir à história a
função de levar os estudantes a percorrerem os caminhos da construção do rigor matemático
(Miguel & Miorim, 2004, p. 82).
1.1.4 - As idéias de Félix Klein para o ensino de Matemática: reafirmando o “princípio
genético”
Com a expansão da indústria, o crescimento da agricultura e a ampliação dos centros
urbanos ocorridos no início do século XX, a educação ganha maior importância e novas
universidades são criadas. Em 1908, na realização do Quarto Congresso Internacional de
Matemática, em Roma, é aprovada a proposta de criação de uma Comissão Internacional de
Ensino de Matemática, que, a partir de 1954 passou a ser conhecida como ICMI –
International Comission on Mathematical Instruction, a ser presidida por Félix Klein (Miorim,
1998, p. 72). Os trabalhos desenvolvidos pela Comissão avolumam-se rapidamente,
desencadeando uma enorme quantidade de publicações e de discussões sobre Educação
Matemática.
22
Félix Klein (1849-1925), além de ter sido um dos mais importantes matemáticos de
sua época, ensinou durante meio século, escreveu um livro sobre História da Matemática do
Século XIX 1 e preocupava-se com o ensino da Matemática:
“Desde Monge não existira professor tão influente, pois além de dar aulas
entusiasmantes, Klein se preocupava com o ensino da matemática em muitos níveis e
exerceu forte influência em círculos pedagógicos. Em 1886 ele se tornou professor de
matemática em Göttingen, e sob sua liderança a universidade tornou-se a Meca a que
estudantes de muitos países acorriam” (Boyer, 1994, p. 401-402).
Preocupado com a formação de professores, ele critica as universidades pelo
excessivo cientificismo e propõe uma unificação da Matemática, que era dividida em álgebra,
geometria, trigonometria e aritmética através do conceito de função (Ferreira, 2003, p. 9). Em
seu livro “Matemática elementar a partir de um ponto de vista superior”, dividido em dois
volumes, Klein apresenta logo na introdução suas preocupações com a descontinuidade entre
o ensino superior e a escola primária e secundária e a necessidade de se realçar o “enlace
mútuo dos problemas e questões das diferentes disciplinas” e “suas relações com os
problemas do ensino de matemática elementar”, afirmando:
“Com isto, confio facilitar muito a vocês a obtenção do que propriamente
constitui o objetivo de seus estudos matemáticos acadêmicos, que eu enunciaria
assim: que das grandes questões científicas que serão oferecidas a nossa
consideração, possam obter estímulos e orientações abundantes para o exercício da
própria atividade docente” (Klein, s/d, p. 2, tradução nossa).
1 Vorlesungen über die Entwicklung der Mathematik im 19. Jahrhundert (1926-1927). (Boyer,
1974, p. 401).
Para Klein, a apresentação da Matemática na escola deveria ser psicológica e não
sistemática. Assim, o professor precisaria conhecer o grau de compreensão de seus alunos e
ligar a Matemática ao que a eles interessa e que tenha uso prático. Ao mesmo tempo, Klein
propõe que o conceito de função seja colocado no centro do ensino, por ter este conceito um
papel fundamental em todos os campos que se utilizam da Matemática e por permitir a
familiarização do aluno com o emprego dos métodos gráficos.
23
Durante toda a apresentação do livro, Klein menciona o desenvolvimento histórico dos
conceitos abordados e o papel destes conceitos no ensino. Após o Capítulo IV do volume I,
ele apresenta um estudo sobre o desenvolvimento moderno e a construção da Matemática,
identificando dois processos diferentes:
“ ... no processo A a base é uma concepção particularista da ciência, que
trata de decompor todo o campo da mesma em uma série de regiões bem delimitadas,
em cada uma das quais se opera evitando todo o possível acessar recursos que se
possam obter das regiões próximas, seu ideal é o de uma bela e lógica cristalização de
cada uma destas regiões em um corpo de doutrina isolado.
Contrariamente a isto, atribui o partidário do processo B importância capital
a uma ligação orgânica das diferentes regiões da ciência e aos numerosos recursos
que mutuamente se prestam umas e outras, e prefere, segundo isso, os métodos que
lhe permitem abarcar, a partir de um ponto de vista único, a compreensão simultânea
de várias regiões. Seu ideal é a concepção de toda a ciência matemática como um
todo” (Klein, s/d, p. 114, v. 1, tradução nossa, grifos do autor).
Ao lado e dentro dessas duas concepções, Klein coloca o processo formal de cálculo –
o algoritmo, como o processo C, reafirmando a “força impulsiva interna das fórmulas” no
desenvolvimento da Matemática. Para ele, no começo do cálculo infinitesimal o algoritmo
originou novos conceitos e operações. Desprezar o método algorítmico como simples
desenvolvimento formal seria ignorar as lições da história.
Ao fazer um estudo do desenvolvimento histórico da Matemática, Klein afirma que a
atuação alternativa e muitas vezes simultânea destes dois processos fez surgir nos dois últimos
séculos os maiores progressos registrados pela matemática. Entretanto, Klein critica o ensino
secundário de sua época, que a seu ver privilegia o processo A e propõe que se amplie o
processo B nas reformas de ensino:
“No ensino secundário, infelizmente, tem predominado há muito tempo a
direção A. Todo movimento de reforma que se possa considerar saudável deve dar
uma abertura mais ampla ao sistema B. Com isso quero expressar a conveniência de
que o espírito que encarna o processo genético vá se incorporando ao ensino, de que
se acentue com mais relevância a intuição espacial como tal e, especialmente, que
24
surja antecipadamente o conceito de função com a fusão dos conceitos espaço e
número” (Klein, s/, p. 123, v. 2, tradução nossa, grifos do autor).
A seguir, Klein apresenta a Álgebra, com o objetivo declarado de aplicar os métodos
geométricos intuitivos à resolução de equações e a Análise, com o desenvolvimento histórico
das teorias e o trabalho com as funções:
“Antes de entrar plenamente no assunto, devemos advertir que não se pode
pretender dentro do quadro dessas lições apresentar uma exposição sistemática da
Álgebra; antes, pelo contrário, nosso propósito é tratar somente de uma parte
especial da mesma, a nosso entender pouco apreciada, mas que é de fundamental
importância pela relação íntima que mantém com o ensino da matemática na escola.
Todas as minhas explicações girarão em torno deste ponto, a saber: a aplicação dos
métodos gráficos e em geral dos métodos geometricamente intuitivos à resolução das
equações” (Klein, s/d, p.124-125, tradução nossa, grifos do autor).
Na terceira parte do volume I, Klein apresenta a Análise, de maneira semelhante ao
modo como tratou a Aritmética e a Álgebra, considerando como mais importante no conteúdo
a ser estudado as funções transcendentes elementares: a exponencial, a logarítmica e as
trigonométricas. Ao mesmo tempo, o autor faz considerações históricas e pedagógicas sobre
os assuntos estudados. Ao encerrar a apresentação do primeiro volume, Klein afirma que os
aspirantes ao magistério secundário precisam conhecer o desenvolvimento histórico, os
conceitos intuitivos da Matemática e as relações entre os diversos ramos da Matemática entre
eles mesmos e com as demais ciências para serem capazes de entender seus alunos na prática
do ensino (Klein, s/d, p. 352, v.1).
No volume II, Klein apresenta a Geometria e continua insistindo nas questões
referentes ao ensino e à intuição espacial. Ao final desse volume, acrescenta um apêndice
intitulado “Sobre o Ensino da Geometria”, com um marcante caráter histórico, tanto no que se
refere ao desenvolvimento da própria Geometria, quanto à história do ensino de Geometria.
Para ele, um bom livro texto de geometria deve obedecer às seguintes exigências: fazer uma
abordagem do ponto de vista psicológico; selecionar as matérias mais importantes; colaborar
com os fins da cultura humana; apresentar um panorama geral da Geometria, para que o
próprio professor selecione as matérias que irá trabalhar; apresentar ligações entre a
25
Geometria e a Aritmética e apresentar a fusão da Planimetria e da Estereometria. Em especial,
destacamos a defesa do ponto de vista psicológico para o ensino:
“O ensino não pode depender somente da matéria objeto do ensino, mas
sobretudo do sujeito a quem se ensina. Uma mesma coisa deve ser apresentada de
modo distinto a um garoto de seis anos e a um de dez e a este que a um homem
maduro. No que se refere especialmente à Geometria, esta deve reduzir-se no ensino
secundário à intuição concreta, e passar depois pouco a pouco aos elementos lógicos:
de uma maneira geral pode dizer-se que o método genético é o único apropriado,
porque permite ao aluno ir penetrando nas coisas sem esforço” (Klein, s/d, v. 2, p
282, tradução nossa, grifos do autor).
A tais características do livro texto, seria preciso agregar a prática docente do
professor que, para Klein, deveria dar importância didática à fusão dos diferentes ramos da
matemática e à adequada seleção dos conteúdos a serem estudados. Assim, concordamos com
Miguel& Miorim (2004, p. 82):
“.....Klein não consegue escapar à avassaladora influência positivista de finais
do século XIX, recorrendo explícita e convictamente ao princípio recapitulacionista
para ‘fundamentar’ seu ponto de vista.”
Vemos então que, também para Klein, aprender matemática seria recapitular os
tópicos matemáticos de acordo com o seu surgimento, reiterando o “princípio genético”.
1.1.5 – Conseqüências do legado positivista para a educação
No pensamento positivo, a ciência torna-se a base da filosofia racional, envolvida no
entendimento e controle da sociedade em direção à ordem e ao progresso: a razão substitui a
religião como instrumento de leitura do mundo, da construção do conhecimento e da
definição do destino humano. O positivismo, ao tentar reduzir tudo ao racional, cria um
cientificismo que explica o progresso como resultado da evolução linear da humanidade em
26
direção ao desenvolvimento das ciências. Dessa maneira, justifica todas as ações humanas
pelo ideal do progresso e pelo poder da técnica, que garante a previsão e a ação. Por sua vez, a
técnica é garantida pela presença de um especialista, que passa a comandar a prática dos
homens. O ensino, em decorrência dessa visão racionalista, estrutura-se com a preocupação de
manter a reprodução da sociedade e concebe o aluno como quem recebe, processa e devolve
informações.
Para Gómez-Granell (2002, p.16), a epistemologia positivista criou uma concepção
coerente com a racionalidade da filosofia e da ciência moderna ao considerar o pensamento e
a lógica formal como padrões ideais e o conhecimento cotidiano como deficitário, intuitivo,
particularista e concreto. Assim, o pensamento abstrato e científico, marcado pelas leis
impessoais e naturais da ciência, é considerado o nível mais evoluído de conhecimento,
resultado do progresso individual e coletivo, e seu desenvolvimento, tanto no plano
ontogenético quanto no plano filogenético, implicaria o desaparecimento do conhecimento
cotidiano. Desse modo, a visão de racionalidade positivista traz como conseqüência uma
delimitação do raciocínio humano, que aplica o pensamento científico e o pensamento
cotidiano em situações específicas e distintas, em diferentes tipos de atividades, sendo que em
um mesmo indivíduo podemos perceber formas de pensamento cotidiano e de pensamento
científico. Ao mesmo tempo, o conhecimento científico envolve uma necessidade de
explicitação e de racionalização que ficou socialmente atribuída à escola, através da
“transposição didática” dos conteúdos. Ocorre que o conhecimento escolar não é o
conhecimento científico, como também não é o conhecimento cotidiano:
“O matemático não comunica seus resultados tal como os obteve, mas os
reorganiza, lhes dá a forma mais geral possível; realiza uma ‘didática prática’ que
consiste em dar ao saber uma forma comunicável, descontextualizada,
despersonalizada, fora de um contexto temporal.
O professor realiza primeiro o trabalho inverso ao do cientista, uma
recontextualização do saber: procura situações que dêem sentido aos conhecimentos
que devem ser ensinados. Porém, se a fase de personalização funcionou bem, quando
o aluno respondeu às situações propostas não sabia que o que ‘produziu’ é um
conhecimento que poderá utilizar em outras ocasiões. Para transformar suas
respostas e seus conhecimentos em saber deverá, com a ajuda do professor, re-
despersonalizar e re-descontextualizar o saber que produziu, para poder reconhecer
27
no que fez algo que tenha caráter universal, um conhecimento cultural reutilizável”
(Brousseau, 2001, 48).
Nesta mesma perspectiva, Gómez-Granell (2002, p. 16) acredita que a apresentação a-
histórica das descobertas científicas seria responsável por eliminar a dialética dos processos
criativos e colaborar para uma falsa imagem da neutralidade do conhecimento científico. O
professor, ao buscar a recontextualização dos conhecimentos a serem apresentados aos alunos,
deveria também procurar a gênese dos problemas que lhes deram origem.
Triadafillidis (1998, p. 22) também destaca o fato de que o círculo vicioso da
“matematização” do mundo e da “matematização” da disciplina de Matemática tem resultado
em uma identidade entre filosofia de vida e filosofia matemática: na filosofia ocidental, desde
os tempos de Platão, mente e teoria são separados dos problemas e da prática. Desta maneira,
a matemática adquire uma “hegemonia” sobre outros assuntos escolares que dificulta sua
ligação com outros campos de conhecimento. Assim, ao se adicionar referências históricas
sobre grandes matemáticos e seus feitos nos finais de capítulos ou em notas de rodapé,
extraídas de seus contextos históricos, cria-se um subordinamento da história às necessidades
do professor, enquanto seu potencial educacional é pouquíssimo explorado.
O positivismo reconhece apenas dois tipos de conhecimentos científicos: o empírico,
encontrado nas ciências naturais, e o lógico, constituído pela lógica e pela matemática. Isto
faz com que as ciências em seu conjunto sejam elaboradas por modelos matemáticos e
estatísticos, dando um caráter fragmentário e disperso ao saber científico. Por outro lado, ao
aceitar como realidade somente os fatos que possam ser estudados, o positivismo também
apóia a tese de que os estados mentais podem ser analisados pela observação de suas
manifestações no comportamento, diminuindo assim a importância dos fatores culturais.
Desse modo, ao adotar o método experimental-matemático como o único que conduz ao
conhecimento verdadeiro, o positivismo adquire um caráter conservador reducionista e
legitimador da ordem estabelecida, por não considerar os valores, ideologias e visões sociais
de mundo.
Além disso, a visão positivista de que o único conhecimento verdadeiro é o produzido
pela ciência com a aplicação do método experimental-matemático obriga o pesquisador a
estudar a realidade através de partes isoladas e fixas. Triviños (1987, p. 36) dá como exemplo
os estudos sobre fracasso escolar que, ao invés de abordarem a dinâmica dos fatos, buscavam
28
relações simples com fatos como anos de magistério dos professores, grau de formação
profissional, nível sócio-econômico etc. Desse modo, a neutralidade do conhecimento
positivo garantida pela objetividade do cientista ignora a influência dos fatores humanos na
pesquisa e o princípio da verificação ao afirmar que só é verdadeiro o que pode ser
empiricamente confirmável, acaba por limitar o conhecimento científico à experiência
sensorial. Com isso, os valores culturais, as condições históricas e as diferentes condutas
humanas são ignorados na unificação metodológica positivista para tratar a ciência natural e a
ciência social.
Para Comte, toda a ciência poderia ser exposta pelo caminho histórico ou pelo
caminho dogmático. Do primeiro modo, a didática se resume em fazer um estudo em ordem
cronológica das obras originais que serviram para o progresso da ciência e do segundo modo,
pela apresentação do sistema de idéias que permitiria ao indivíduo provido de conhecimentos
suficientes refazer a ciência em seu conjunto.
A orientação positivista de se fazer a abordagem histórica das ciências é tão marcante
que é considerada por Pires (1998, p. 269), em sua dissertação de mestrado sobre a geometria
dos positivistas brasileiros, como o primeiro indício para o reconhecimento de uma obra
positivista:
“Há uma dificuldade em se reconhecer uma obra positivista sem que seu autor
assim se professe. Assim, retiradas as adesões confessadas, o calendário positivista
que em algumas obras positivistas são datadas e os entremeios que citam Comte,
como se pode reconhecer uma obra positivista de uma não positivista?
É possível reconhecer. Dir-se-ia também que há um conjunto de indícios que
permite tal reconhecimento. É interessante observar nos livros dos ortodoxos plenos,
como eles são claros.
Um dos indícios é o processo histórico. A obra de Comte e dos positivistas
ortodoxos têm muito da história da geometria.”
A concepção comteana de que a filosofia positiva havia alcançado o estado definitivo
da mente cria uma visão determinista da história, como se a evolução seguisse um único
caminho possível em direção ao futuro. Para Comte, a racionalidade técnica persegue as leis
invariáveis que regem os fenômenos e deste modo a ciência apresenta o modo como as
29
situações devem ocorrer, adquirindo a capacidade de prever a evolução dos fatos. Deste
modo, a abordagem da História apresenta uma hierarquização entre o passado e o presente, ou
seja, defende que a elaboração científica dos conceitos tenha partido dos fenômenos mais
simples e se tornado mais complexa em um processo contínuo de progresso da ciência. Outra
crítica ao modo positivista de se enxergar o recurso à História da Matemática em Educação
Matemática refere-se ao caráter indutivista dado à história dos conceitos científicos. Nessa
concepção, a evolução da ciência seria uma seqüência cumulativa de etapas percorridas para
alcançar o progresso em busca da verdade.
Entretanto, a visão determinista e indutivista da evolução do conhecimento humano
em direção ao progresso social que caracteriza a filosofia positivista traz consigo uma leitura
não-histórica da História da Matemática:
“.....as narrativas são apresentadas com o pressuposto assumido de que os
matemáticos do passado estavam essencialmente tratando com nossos modernos
conceitos, e apenas não tinham nossa notação moderna a sua disposição. Ao ler a
história deste modo, que podemos chamar de modo teleológico, o historiador parece
assumir, com efeito, que havia um curso que os desenvolvimentos históricos teriam
que tomar. Ao assumir isto, uma dimensão normativa é introduzida ao relato, através
da qual o historiador dota outras culturas e matemáticos de outras épocas com
racionalidades e conceitualizações que são completamente estranhas a eles.”
(Radford, 2000, p. 144, tradução nossa).
Tal simplificação da construção histórica dos conceitos se reflete na adoção do
“princípio genético” para justificar o paralelismo entre a ontogênese e a filogênese: não se
considera o contexto sócio-cultural necessário para a produção, aceitação e veiculação dos
conhecimentos e com isto, a História da Matemática é tratada de forma linear e factual,
reforçando a idéia de neutralidade e objetividade da ciência.
A este respeito, Miguel (1997a, p. 150) elabora um discurso central para nossa
discussão:
“Para se resumir em poucas palavras as contribuições dessa literatura
esparsa produzida em nosso século relativas aos modos de se conceber a relação
entre história e pedagogia da matemática, seria suficiente dizer que ela acumulou
30
sobretudo um conjunto diversificado de argumentos reforçadores das potencialidades
pedagógicas da história. Nesse sentido, o que esta literatura nos diz é que a história
pode constituir-se em: fonte de motivação para o ensino-aprendizagem da
matemática; fonte de objetivos e métodos para o ensino-aprendizagem; fonte de
problemas práticos, curiosos e recreativos para serem tratados em sala de aula;
instrumento de desmitificação da matemática; instrumento na formalização de
conceitos; instrumento para a promoção de um pensamento independente e crítico;
instrumento unificador dos vários campos da matemática; instrumento de promoção
de atitudes e valores; instrumento de conscientização epistemológica; instrumento
revelador da natureza da matemática; instrumento de promoção da aprendizagem
significativa e compreensiva; instrumento que possibilita o resgate da identidade
cultural.
Mas ainda que, para os positivistas do passado ou do presente, isso possa
soar estranho ou paradoxal, não apenas faz sentido como também se constitui, no
meu modo de entender, um dever perguntar-nos: que história pode isso tudo?
......Penso que uma mudança de atitude dessa natureza, que viesse a substituir
a persistente crença positivista na possibilidade de se constituir o passado tal como
ele foi de fato, por uma outra que afirmasse a possibilidade de, a cada momento,
constituir o passado como ele poderia ter sido, poderia abrir de fato novas e mais
promissoras perspectivas ao estudo das relações entre história e pedagogia da
matemática.”
Acreditamos que este modo internalista e indutivista de se abordar a História da
Matemática em sala de aula não contribui para que os alunos entendam a Matemática como
uma criação coletiva, que poderia ter seguido caminhos alternativos, ser tratada de diferentes
maneiras em diferentes culturas e épocas. Desse modo, por reforçar a objetividade do
conhecimento e a linearidade da evolução da ciência, a abordagem positivista restringiria uma
investigação mais ampla e crítica dos temas em estudo, como as contradições encontradas no
desenvolvimento da ciência, as crises dos modelos teóricos e as influências econômicas,
sociais, políticas e culturais enfrentadas pelos cientistas.
31
1.2 - Piaget e a busca de conflitos cognitivos na História da Matemática
Jean Piaget (1896-1980), biólogo, psicólogo, pedagogo e filósofo suíço, também
adotou o princípio genético em seus trabalhos e escreveu, juntamente com Rolando Garcia, o
livro Psicogênese e História das Ciências, publicado em 1982, após o falecimento de Piaget.
Nesse livro, os autores se posicionam contra uma recapitulação simplista da filogênese pela
ontogênese e procuram investigar se os mecanismos de passagem de um período histórico da
evolução do pensamento matemático-físico ao seguinte são análogos aos da passagem de um
estado genético aos seus sucessores. Piaget & Garcia defendem a tese de que a construção do
conhecimento se dá da mesma maneira nos planos psicogenéticos e filogenéticos, através de
mecanismos que denominam abstração reflexiva e generalização completiva. Com tais
mecanismos de passagem, o aprendiz adaptaria o saber constituído aos seus conhecimentos
prévios para construir conhecimentos novos, usando os processos de assimilação,
acomodação e equilibração para promover a passagem do nível intra-objetal, isto é, análise
dos objetos, para o inter-objetal, ou seja, análise das relações ou transformações entre os
objetos, e deste para o trans-objetal, semelhante à construção das estruturas.
Assim, para aprender Matemática o sujeito teria que reconstruir as mesmas operações
cognitivas que marcaram a construção histórica dos objetos matemáticos, que abstraídos de
suas situações concretas se tornariam exclusivamente objetos formais. O recurso à História da
Matemática se apresentaria como uma opção para a busca de conflitos cognitivos que
possibilitassem a passagem de uma etapa da construção do conhecimento para outra de nível
superior. Desse modo, tanto na filogênese quanto na psicogênese, a construção do
conhecimento matemático se daria por meio das etapas intra-operacionais, inter-operacionais
e trans-operacionais:
“As etapas intra-operacionais caracterizam-se por ligações intra-operacionais
que se apresentam sob formas isoláveis, comportando certamente, como o seu nome
indica, articulações internas, mas não se compondo entre si e sem transformações de
uma à outra que pressuponham a existências de invariantes.
32
As etapas inter--operacionais são caracterizadas por correspondências e
transformações entre as formas isoláveis da etapa anterior, ao que se acrescentam as
invariantes exigidas por estas transformações.
As etapas trans-operacionais são caracterizadas pela construção de
estruturas, cujas relações internas correspondem às transformações inter-
operacionais
Esta surpreendente analogia das etapas do desenvolvimento (entre a
geometria e a álgebra, por um lado, e entre a história da ciência e a psicogênenese,
por outro) tem um significado profundo. Não se trata de uma simples classificação de
etapas. Com efeito, as três noções (intra, inter e trans) constituem formas diferentes,
mas solidárias de organização dos conhecimentos, e reconhecemos neles o mais
importante e mais construtivo dos mecanismos que tivéssemos podido isolar na busca
dos mecanismos comuns à história e à psicogênese” (Piaget & Garcia, 1987, p. 138).
Neste sentido, ao afirmarem que a construção individual do conhecimento se dá pela
seleção, transformação, adaptação e incorporação de elementos fornecidos pelo meio externo,
Piaget e Garcia rompem com a visão positivista de que o conhecimento é simplesmente
cumulativo. Ao contrário, afirmam que a construção do conhecimento irá ocorrer por uma
sucessão de etapas, sendo que em cada etapa acontece uma reorganização dos conhecimentos
previamente adquiridos. Ao mesmo tempo, defendem que a sociedade pode modificar o modo
como os objetos podem ser concebidos pelo sujeito, mas não os mecanismos para adquirir
conhecimento:
“Ao evoluir dos níveis pré-científicos para os níveis das ações é necessário não
acreditar que seja preciso considerar unicamente o desenvolvimento do sujeito face
aos objetos já ‘dados’, numa total independência do contexto social. Na interação
dialética entre o sujeito e o objeto, este aparece imerso num sistema de relações.
Depois de tudo o que dissemos, pode provocar surpresa encontrar, através de
toda a história da ciência bem como através da psicogênese, a repetição de modelos
semelhantes quando da aquisição do conhecimento a todos os níveis. Se a influência
da sociedade é tão grande, como é possível que em todos os períodos da história da
humanidade e em todas as crianças de qualquer grupo social e de qualquer país
33
encontremos em ação os mesmos processos cognitivos? A resposta não será difícil de
encontrar uma vez que se tenham diferenciado os mecanismos de aquisição do
conhecimento que, por um lado, um sujeito tem à sua disposição e, por outro lado, o
modo como o objeto a assimilar é apresentado a um determinado sujeito. A sociedade
pode modificar este último mas não o primeiro. O verdadeiro sentido atribuído ao
objeto, no contexto das suas relações com outros objetos, pode depender, numa larga
medida, do modo como a sociedade modifica as relações entre o objeto e o sujeito.
Mas o modo como este sentido é adquirido depende dos mecanismos cognitivos e não
daquilo com o que o grupo social pode contribuir” (Piaget & Garcia, 1987, p. 244).
Ao interpretar o trabalho de Piaget & Garcia, Radford (2000, p. 145) aponta para um
paradoxo: por um lado, o indivíduo é visto como quem seleciona, transforma, adapta e
incorpora os elementos do mundo externo às suas próprias estruturas cognitivas; por outro
lado, não há a possibilidade da assimilação dos objetos isolados de seu contexto, uma vez que
os objetos sempre têm um significado social. A questão básica seria: dois contextos sociais
diferentes poderiam originar dois desenvolvimentos psicogenéticos diferentes?
A solução encontrada por Piaget & Garcia foi colocar esse problema em termos de um
“paradigma epistêmico”. Os autores defendem que em cada sociedade e em cada momento
histórico se constitui um quadro epistêmico que atua como uma ideologia condicionante do
desenvolvimento posterior da ciência. Assim, acreditam que exista uma continuidade entre o
pensamento científico e o pré-científico, pois os mecanismos do processo cognitivo são os
mesmos, e uma descontinuidade, tanto na psicogênese quanto na ciência, por uma ruptura
ligada a mudanças do quadro epistêmico. Afirmam, também, que suas interpretações possuem
uma relação direta com a posição de Bachelard, que foi o primeiro a indicar a importância da
“ruptura epistemológica” no desenvolvimento da ciência por meio da noção de “obstáculo
epistemológico”, distinguindo-se no ponto de vista de que para Bachelard existe uma ruptura
total entre as concepções pré-científicas e as científicas, enquanto que para Piaget & Garcia
somente nos momentos de crise e de revoluções científicas haveria uma ruptura e a
constituição de um novo quadro epistêmico (Piaget & Garcia, 1987, p. 234).
Fica claro, então, que para Piaget & Garcia, a cultura não modifica os instrumentos de
aquisição do conhecimento. Para esses autores, esses instrumentos fazem parte da esfera
biológica do indivíduo e não dependem do meio histórico ou cultural (Radford, 2000, p. 146).
34
Em Miguel & Miorim, (2004, p. 94-95), encontramos uma visão geral das críticas
feitas a este tipo de abordagem da História da Matemática: a crença na possibilidade de
explicar a origem e a natureza do conhecimento matemático sem recorrer ao problema da
validação das verdades matemáticas; a reconstrução histórica das ciências feita por Piaget e
Garcia para responder a uma necessidade interna da epistemologia genética defendida por
esses autores que não explica o porquê das descontinuidades no processo de produção e
circulação das idéias e, principalmente: “a crença na existência de um princípio trans-
histórico regulador, legislador, disciplinador e direcionador da marcha supostamente
evolutiva das idéias matemáticas”.
Desse modo, ao identificar as formas histórico-culturais com as etapas de
desenvolvimento histórico dessa idéia, cria-se a mesma visão de evolução, previsibilidade,
hierarquia e totalidade efetivada defendida pelos positivistas. Além disso, apesar de declarar
não defender o argumento recapitulacionista, ao fazer a conexão entre a produção do
conhecimento nos planos filogenéticos e ontogenéticos, Piaget está implicitamente adotando o
“princípio genético” em seus trabalhos.
Sob esta perspectiva teórica, a produção cultural das idéias da Matemática é tratada de
uma forma internalista e estruturada, desligada de qualquer contexto, da mesma forma que se
desconsidera o condicionamento sócio-cultural no desenvolvimento cognitivo do indivíduo.
Esta visão psicologizante também nega a importância das relações entre os sujeitos
envolvidos nas relações de ensino-aprendizagem: o sujeito aluno e o sujeito professor, com
seus papéis em torno de um saber.
1.3 - A epistemologia de Bachelard
A concepção positivista de constatação dos modelos e teorias científicos pelos dados
objetivos e experimentais foi abalada com os novos modelos da micro-física e da teoria da
relatividade do final do século XIX e início do século XX.
Nessa época, Gaston Bachelard (1884-1962) viveu como estudante, cientista, filósofo
e professor. A partir das conclusões retiradas de sua vivência durante esse rico período da
35
história da ciência, apresentou em seu livro A formação do espírito científico, de 1938, uma
periodização da história das ciências que a divide em três estados: o estado concreto, o estado
concreto-abstrato e o estado abstrato. O estado positivo de Comte seria correspondente ao
estado concreto-abstrato de Bachelard, definido por este como o período em que aplicamos
esquemas gerais aos fatos empíricos observados, partindo da experiência para a teoria que a
explica. Para Bachelard, a filosofia positivista está ligada à ciência clássica, estando
ultrapassada em relação às transformações que o saber científico sofreu. O estado abstrato
afasta-se do empírico e busca na polemização da experiência esquemas racionais cada vez
mais abstratos, que expressem o novo espírito científico de inventividade.
Na epistemologia de Bachelard, não basta descrever dados observados. Ao contrário, o
objeto científico passa a ser o resultado de elaborações teóricas e empíricas. A evolução da
ciência deixa de ocorrer pelo progresso contínuo e acumulativo previsto por Comte e passa a
ocorrer através de um processo de ruptura e descontinuidade, em que a razão e seus princípios
são variáveis e a ciência se torna efêmera pela dinâmica dos conhecimentos.
Para o filósofo, o conhecimento científico ocorre por meio da superação dos
obstáculos epistemológicos, ou seja, obstáculos surgidos no ato de conhecer na forma de
conflitos e lentidões que causam a estagnação e até a regressão no progresso da ciência: são
conhecimentos antigos, que resistem às novas concepções para manter a estabilidade
intelectual. Assim, Bachelard coloca em evidência a necessidade das rupturas que ocorrem no
processo de construção da Ciência, sendo que um obstáculo de origem epistemológica é
verdadeiramente constitutivo do conhecimento e pode ser encontrado na história do conceito.
Bachelard, antes de se dedicar à filosofia, havia sido professor de física e de química e
propôs a idéia de “obstáculo epistemológico” também em termos da prática da educação.
Assim, os professores deveriam derrubar os obstáculos já sedimentados pela vida cotidiana,
cultura primeira, antes de fazer uma demonstração ou apresentar uma lição, que representam o
conhecimento científico, cultura elaborada. Da mesma forma, deveriam entender o erro e a
dificuldade de aceitação de um novo conceito como um pré-conhecimento do aluno sobre o
assunto em questão, a ser superado através de uma problematização que intensifique os
conflitos e propicie oportunidades de apreensão do conhecimento científico:
“Assim, toda cultura científica deve começar (...) por uma catarse intelectual
e afetiva. Resta-nos, depois, a tarefa mais difícil: colocar a cultura científica em
36
estado de mobilização permanente, substituir o saber fechado e estático por um
conhecimento aberto e dinâmico, dialetizar todas as variáveis experimentais, dar, por
último, à razão razões para evoluir” (Bachelard, s/d, p. 169).
Outra importante contribuição de Bachelard para a educação é a noção de
racionalismo aplicado, que defende a complementaridade entre a razão e a experiência como
dois pólos participantes do pensamento científico ao afirmar que toda análise teórica deve ser
submetida ao crivo da experimentação e que toda experiência deve ser submetida a um
controle racional. O racionalismo aplicado é uma referência importante para fundamentar a
busca de conciliação entre as dimensões práticas e teóricas da didática (Pais, 2001, p.12).
Ainda de acordo com a noção de racionalismo aplicado, Bachelard apresentou uma
posição ousada em relação à escrita da história das ciências, ao afirmar que ela não deveria ser
factual e preocupada com o registro cronológico dos fatos. Ao contrário, a história das
ciências deve ser crítica e emitir juízos de valor, submetida aos critérios de racionalidade
próprios das teorias que são aceitas no presente. Desse modo, como a ciência é dinâmica e os
valores da racionalidade se modificam, a história das ciências deve ser sempre refeita:
“O ponto de vista moderno determina assim uma perspectiva nova sobre a
história das ciências, perspectiva que coloca o problema da eficácia atual dessa
história das ciências na cultura científica. Trata-se, com efeito, de mostrar a ação de
uma história julgada, uma história que tem obrigação de distinguir o erro e a
verdade, o inerte e o ativo, o prejudicial e o fecundo. De uma maneira geral, não se
poderá afirmar que uma história compreendida já não é história pura? No domínio da
história das ciências, é necessário, além de compreender, saber analisar, saber
julgar.
(....) Por outras palavras, o progresso é a própria dinâmica da cultura
científica, e é essa dinâmica que a história das ciências deve descrever. Deve
descrever julgando-a, valorizando-a, eliminando toda a possibilidade de um regresso
a noções erradas. A história das ciências só pode insistir nos erros do passado a título
de elemento de comparação. Reencontramos, assim, a dialética dos obstáculos
epistemológicos e dos atos epistemológicos” (Bachelard, s/d, p. 205, 206).
37
A dinâmica da reconstrução das novas idéias é por sua vez o verdadeiro sentido do
racionalismo aplicado, que trata a aquisição do conhecimento como um exercício constante de
reflexão e diálogo, em um processo contínuo de retificação das idéias:
“Vê-se, então, a necessidade educativa de formular uma história recorrente,
uma história que se esclarece pela finalidade do presente, uma história que parte das
certezas do presente e descobre, no passado, as formações progressivas da verdade. É
assim que o pensamento científico se fortalece na descrição dos seus progressos”
(Bachelard, s/d, p. 207).
Nesse sentido, Bachelard acredita que quanto mais o historiador das ciências conhecer
a modernidade da ciência mais será capaz de perceber o desenrolar da história, as
possibilidades mais sutis de historicidade iluminadas pelo presente. Especificamente em
relação ao que chama de “desenvolvimento harmonioso da Matemática”, esse autor acredita
que o presente torna mais claras e mais bem coordenadas as verdades adotadas no passado
(Bachelard, s/d, p. 209).
1.3.1 - A adoção do conceito de obstáculo epistemológico na didática da matemática
A noção de obstáculo epistemológico foi ampliada e introduzida na didática da
Matemática por Guy Brousseau com a conferência “Os obstáculos epistemológicos e os
problemas em Matemática”, realizada no XXVIII encontro do CIEAEM em 1976 e publicada
em 1983 no seu artigo de mesmo título. Em tal ampliação, ele caracteriza obstáculo
epistemológico como um conhecimento utilizado pelo aluno para produzir respostas que se
adaptam a certo contexto que o aluno encontra com freqüência, mas que usado fora desse
contexto gera respostas incorretas. Como o aluno resiste às contradições produzidas pelo
obstáculo epistemológico e ao estabelecimento de um conhecimento novo, é preciso
identificar o obstáculo encontrado e incorporar a negação desse conhecimento anterior ao
novo saber, sendo que mesmo depois de ter notado seu erro o aluno ainda pode manifestá-lo
de forma esporádica (Brousseau, 1983, p. 175,176).
38
Para ajudar que os alunos superem tais obstáculos, Brousseau propõe o desenho de
situações didáticas que façam os alunos perceberem a necessidade de mudarem suas
concepções e possibilitem o desenvolvimento das competências e das habilidades associadas à
Matemática. Na sua Teoria das Situações Didáticas são consideradas as relações criadas em
uma situação didática entre o aluno, ou os alunos, o entorno e o professor por um problema
estabelecido para a reconstrução de um conhecimento. Nesse sentido, a aprendizagem por
adaptação ao meio implica rupturas cognitivas, acomodações e mudanças nos sistemas
cognitivos, no uso da linguagem e nas concepções prévias. Apesar de adotar uma perspectiva
piagetiana ao admitir a construção do conhecimento pela interação entre o sujeito e o objeto, a
teoria da situação didática dá importância à gestão do professor da interação entre o
subsistema aluno-saber e a situação-problema apresentada, o que acrescenta uma dimensão
situacional ao processo de ensino-aprendizagem. A História da Matemática, nessa
perspectiva, permitiria identificar os obstáculos epistemológicos superados na construção
histórica de um conceito e os transformar em situações-problemas que permitissem a
reconstrução do conhecimento matemático, ou seja, seria uma fonte de busca de problemas:
“A pesquisa dos indícios históricos correspondentes não é mais nesse caso
aquela das dificuldades ou dos erros semelhantes do nosso ponto de vista de hoje, mas
aquela dos fracassos característicos de um certo saber, em sua imersão dentro dos
conhecimentos atuais, em poder prever o gênero de problemas que vão estar mal
colocados ou mal resolvidos e chegar a busca dentro da história: a epistemologia
tende a tornar-se sistemática e experimental. Os pontos de ruptura não são mais os
das datas de descobertas mas das problemáticas e dos tipos de saber utilizados, que
podem se reencontrar a partir de momentos diferentes dentro de domínios mais ou
menos próximos” (Brousseau, 1983, p. 191, 192).
Brousseau também descreveu as regras e as condições para o funcionamento escolar
em sua concepção de contrato didático. Ao especificar formas de relacionamento específicas
do contexto escolar, tal concepção reforça o distanciamento entre o mundo científico e o
ensino formal, favorecendo a criação de atividades desvinculadas do cotidiano:
“Nas áreas das ciências naturais e da matemática, tal contrato sempre
privilegiou as atividades mecânicas de resolução de exercícios padrões e
memorização de conceitos e definições (...). Desvinculada do mundo cotidiano e por
conseqüência também de qualquer realidade possível, o ensino científico foi aos
39
poucos perdendo sua vitalidade até se transformar numa atividade essencialmente
restrita à sala de aula e aos livros texto.” (Pietrocola, 2005).
As transformações necessárias para adaptar o saber científico ao saber a ser ensinado
foram analisadas por Yves Chevallard em seu livro La Transposition Didactique – Du Savoir
Savant au Savoir Enseigné1, de 1991.
De acordo com ele, cientistas, professores, especialistas, políticos, autores de livros e
outros agentes interferem no processo educativo ao influenciarem na escolha dos conteúdos
curriculares e uma das fontes de seleção do saber escolar é a própria história das ciências.
Nessa concepção, o saber científico é a única forma de saber novo e transita para outras
esferas, como para o saber escolar, quando então ocorre a transposição didática. Com o passar
do tempo, o saber escolar aproxima-se do saber banalizado pela sociedade e o sistema de
ensino precisa ser alterado para re-compatibilizar o saber a ser ensinado com os saberes
científicos.
Outro didata francês influente na Educação Matemática é Gerard Vergnaud, que em
1996 busca resolver o problema do significado do saber escolar com a teoria dos campos
conceituais. Vergnaud
“propõe, entre outras questões fundamentais, a necessidade de distinguir entre
dificuldades conceituais, erros didáticos e verdadeiros obstáculos epistemológicos.
(...). Para ele, há um verdadeiro obstáculo, quando as novas concepções a formar
contradizem as concepções e as competências bem assentadas do educando e,(....)
para superá-lo é necessário fazer uma análise, já que há uma contradição entre as
concepções anteriores a serem rejeitadas e as novas concepções a serem assimiladas.
É, portanto, uma pequena revolução intelectual que devem operar os educandos”
(Trindade, 1996, p.78).
1 A Transposição Didática – Do Saber Sábio ao Saber Ensinado
Dessa forma, a questão pedagógica da compreensão e da formação de conceitos
matemáticos pelo aluno é o ponto de partida para a teoria de Vergnaud, na qual o estudo dos
obstáculos epistemológicos e didáticos fornece possibilidades de se respeitar os passos de
elaboração de um conceito na educação escolar, que não são concebidos como o
conhecimento formal da Matemática. A teoria dos campos conceituais busca a construção de
40
um saber escolar que extrapole a dimensão empírica do cotidiano e ao mesmo tempo alcance
níveis satisfatórios de generalidade e abstração. A tarefa didática de partir do conhecimento
do aluno e formar novos conceitos em Matemática proposta por Vergnaud amplia a proposta
de Piaget por estudar cada classe de situações e propor a existência de espaços de situações
problema que forneçam condições para uma aprendizagem significativa (Pais, 2001, p.52).
A engenharia didática foi apresentada por Artigue, em 1996. Compreende a
construção de uma seqüência de aulas por um professor para realizar um projeto de
aprendizagem com seus alunos, desde a concepção, a realização, a observação e a análise de
seqüências de ensino. Contempla tanto a dimensão teórica quanto a dimensão prática da
pesquisa em didática da matemática, articulando assim pesquisa e ação pedagógica. Assim, o
processo experimental da engenharia didática é formado pelas análises preliminares, pela
concepção e análise a priori das situações didáticas, pela experimentação e pela análise a
posteriori e validação. A noção de “obstáculo epistemológico” é importante para as análises
preliminares das dificuldades dos alunos, que irão embasar toda a concepção do projeto de
ensino (Brousseau, 1990, p. 263-265).
1.3.2 - O caráter polêmico da noção de obstáculo epistemológico na didática da
Matemática
Apesar de ter sido inicialmente desenvolvida para o exame da história da ciência, a
noção de obstáculo epistemológico foi adotada pela didática da Matemática, criando uma
polêmica ainda não conclusiva a respeito da validade de se aplicar para a Matemática, que
apresenta uma certa regularidade em sua evolução histórica, as idéias de ruptura e
descontinuidade apontadas por Bachelard (Pais, 2001, p. 12). Por outro lado, alguns
pesquisadores em Educação Matemática relacionam os obstáculos epistemológicos ao
contexto cultural de desenvolvimento e não os enxergam como verdadeiramente constitutivos
do conhecimento, conforme a idéia de Bachelard (Igliori, 1999, p. 109).
Diversos trabalhos (Miguel& Miorim, 2004; Igliori, 1999; Radford, 1997; Trindade,
1996) apontam que essa controvertida questão teve origem com a ampliação das idéias de
Bachelard feita por Brousseau. Brousseau fez uma distinção entre as origens para os
41
obstáculos encontrados na Matemática: os de origem ontogenética, que se manifestariam em
decorrência do desenvolvimento cognitivo do aluno; os de origem didática, decorrentes do
modo de organização e transmissão do saber no âmbito da escola e os de origem
propriamente epistemológica, que desempenharam um papel constitutivo na história do
conhecimento visado (Brousseau, 1983, p. 177, 178).
Com base nesses pressupostos, faz um estudo epistemológico sobre números
decimais. Na mesma época, Georges Glaeser, professor da Universidade Louis Pasteur em
Estrasburgo, realizou uma epistemologia dos números relativos na qual lista as dificuldades
de se trabalhar com números negativos enfrentadas por matemáticos clássicos (Diophante,
Stevin, Descartes, Mclaurin, Euler, D’Alembert, Carnot, Laplace, Cauchy e Hankel) no
decorrer da História. São elas: a inaptidão de manipular quantidades negativas isoladas; a
dificuldade de atribuição de sentido às quantidades negativas isoladas; a dificuldade de
unificar a reta numérica (relacionada às diferenças qualitativas entre os números negativos e
os números positivos; à descrição da reta como uma justaposição de suas semi-retas opostas
com símbolos heterogêneos e à consideração simultânea dos caracteres dinâmicos e estáticos
dos números), à ambigüidade dos dois zeros (as concepções do zero-absoluto, que perdurou
por séculos, e do zero-origem, que seria um marco arbitrário sobre um eixo orientado), à
estagnação ao estado das operações concretas (dificuldades de se atribuir um senso ‘concreto’
aos números negativos) e ao desejo de um modelo unificante (anseio de encontrar um modelo
aditivo que fosse também válido para o domínio multiplicativo). Glaeser conclui com seus
estudos que as hesitações de matemáticos com relação ao uso dos números negativos eram
devidas à incapacidade de compreender e de resolver certos problemas e não à produção de
erros induzidos por conhecimentos anteriores (Glaeser, 1981, pp 303-346).
Novos questionamentos foram lançados em relação à noção de obstáculo
epistemológico, aumentando cada vez mais os desentendimentos em relação a esse assunto.
Anna Sierpinska, do Departamento de Matemática e Estatística da Universidade de
Concórdia em Montreal, Canadá, realiza em 1985 um estudo sobre os obstáculos
epistemológicos relativos à noção de limite e agrupa os entraves a esta construção da seguinte
maneira: os advindos do horror ao infinito; os ligados à noção de função; os obstáculos
‘geométricos’; os obstáculos ‘lógicos’; e ainda o obstáculo do símbolo.
Entretanto, de acordo com Miguel & Miorim (2004, p. 114):
42
“ela não parece conceber os obstáculos como conhecimentos propriamente
ditos, como o faz Brousseau, e sim como ‘causas de lentidões e perturbações’ na
aquisição de determinado conhecimento.”
Além disso, esses autores caracterizam alguns dos entraves que ela cita como uma
ausência de percepção do modo de funcionamento dos conceitos matemáticos, ou seja, uma
ausência de conhecimento, o que se choca com a concepção bachelardiana de obstáculo
epistemológico. De qualquer forma, Sierpinska (1985, p. 58) reafirma o papel da História da
Matemática como fonte de situações problema para a superação das dificuldades encontradas
pelos alunos:
“A manifestação conjunta de numerosos obstáculos epistemológicos
reencontrados na história e nos alunos nos parece conduzir a colocar em evidência o
curso de história do desenvolvimento das noções matemáticas para a formação dos
docentes (tradução nossa).”
Michéle Artigue, questiona, em 1990, a necessidade de se fornecer ao obstáculo
epistemológico o atestado histórico das dificuldades análogas e defende a tese de que os
processos ou mecanismos mentais produtores de conhecimentos-obstáculos tais como a
generalização abusiva, a fixação sobre uma contextualização ou uma modelização familiares
e o amálgama de noções sobre um suporte dado é que deveriam ser identificados tanto na
história quanto no processo de ensino-aprendizagem (Miguel & Miorim, 2004, p. 113).
Sierpinska, em 1994, publica o livro Understanding in Mathematics,1 no qual
explicita suas novas teorias, apresentadas no Colóquio Internacional de Montreal, em 1988,
na comunicação intitulada Sur un programme de recherche lié à notion de obstacle
épistémologique2. Nesse livro, ela defende que na cultura matemática podemos distinguir três
níveis de conhecimento diferentes: (1) um nível técnico, isto é, o nível do conhecimento
racionalmente justificado, portanto aceito pela comunidade dos matemáticos; (2) um nível
formal, isto é, o nível ao qual pertencem as crenças, as convicções e atitudes hegemônicas em
relação à matemática as quais, por ser hegemônicas, são tidas como óbvias; (3) um nível
informal, isto é, o nível do conhecimento tácito, dos cânones de rigor e convenções
implícitas.
43
Para Miguel & Miorim (2004) além de voltar a conceber os obstáculos como
conhecimentos, ao caracterizar o nível informal como aquele em que os elementos são em
geral inconscientes, os conhecimentos tácitos, e os do nível formal como os
conhecimentos ditos óbvios e conscientes, que são atitudes, crenças e convicções, Sierpinska
criou uma diferenciação questionável: os processos mentais, normas e critérios institucionais,
caracterizados como informais e inconscientes não podem também ser considerados óbvios e
conscientes? Da mesma forma, os conhecimentos técnicos não são também óbvios e
conscientes? Além disso, a autora afirma que apenas nos níveis formal e informal ocorre a
manifestação dos obstáculos epistemológicos, contrariando as idéias de Brousseau, que via
nos conhecimentos técnicos a fonte natural de obstáculos epistemológicos.
Com base nas teorias de Vigotsky e de E. T. Hall, Sierpinska procura as relações
entre as raízes psicogenéticas e as raízes culturais do obstáculo epistemológico:
“Os obstáculos crescem no solo do pensamento complexo infantil – eles
possuem raízes genéticas. Mas os fertilizantes (os desafios que os fazem crescer) vêm
da cultura que os envolve, dos modos implícitos e explícitos nos quais a criança é
socializada e educada em casa, na sociedade e na instituição escolar” (Sierpinska,
1994, p. 159).
1 Compreensão em Matemática
2 Sobre um programa de pesquisa ligado à noção de obstáculo epistemológico
Entretanto, para Radford (1997) essa autora não aponta nenhum papel significativo
das estruturas sociais na idéia de obstáculo epistemológico e não faz uma análise dos “fatores
culturais” que acompanham o desenvolvimento dos conceitos científicos, o que o leva a
afirmar que a teoria cultural de Sierpinska apresenta um cunho social-behaviorista.
Para Radford (1997, p. 30) muitas das dificuldades apresentadas na aprendizagem
seriam mais um problema cultural do que propriamente devidos ao próprio conhecimento.
Como exemplo, Radford explica que se compararmos as dificuldades dos alunos de hoje para
trabalhar com números negativos com as dificuldades dos matemáticos ocidentais medievais,
podemos pensar que os números positivos são realmente um obstáculo epistemológico para a
emergência dos números negativos. Entretanto, se observarmos como a técnica dos
matemáticos chineses de trabalhar a representação dos números negativos com bastões
44
coloridos ajudou-os a superarem essas dificuldades, poderemos perceber que a dificuldade
posta pelos números negativos não é intrínseca ao próprio conhecimento. Ao contrário,
depende das idéias culturais e locais sobre os objetos e métodos da ciência e da matemática.
Ao defender a tese da diversidade de origens para os obstáculos epistemológicos,
Brousseau ampliou a concepção subjetivista de Bachelard da atribuição dos erros no processo
de construção do conhecimento exclusivamente aos sujeitos que o constroem e amenizou o
pressuposto da existência do paralelismo ontofilogenético. Entretanto, ao preservar a tese do
obstáculo epistemológico como algo que se manifesta tanto no processo de construção do
conhecimento como no processo de ensino-aprendizagem, não chega a negar completamente
o argumento recapitulacionista presente no “princípio genético”(Miguel & Miorim, 2004, p.
102).
Para Miguel & Miorim (2004, p. 123), muito embora não possamos negar algumas
semelhanças entre as dificuldades e obstáculos encontrados pelos alunos em seus processos
de aprendizagem e aqueles enfrentados na construção histórica da Matemática atual, é
necessário analisarmos sob diferentes óticas tais dificuldades e obstáculos: os estudantes de
hoje se deparam com um saber já elaborado, enquanto nossos antepassados não possuíam um
sistema de referências para julgar as soluções por eles encontradas. Assim, para os
matemáticos de antigamente, os obstáculos encontrados pelos nossos alunos eram
inexistentes, pois:
“apenas quando saídas e propostas de soluções ‘adequadas’, isto é, aceitas como
adequadas por uma comunidade científica, são alcançadas é que se pode rever as
propostas antecedentes e ‘enxergar’ nelas desvios e mal-entendidos em relação à
solução adequada negociada e ‘obstáculos’ que seus proponentes não teriam sabido
superar adequadamente.”
Com base em tal raciocínio, as dificuldades encontradas pelos estudantes da
atualidade são muitas vezes condicionadas pela maneira com a qual o professor conduz o
processo de ensino-aprendizagem e não implicam um direcionamento dos processos
pedagógicos no sentido de superar as dificuldades encontradas pelos matemáticos do passado,
ainda que os erros e fracassos apresentados sejam os mesmos.
45
Além disso, a concepção bachelardiana de obstáculo epistemológico é contestada com
base na visão indutivista de História que ela representa. Tal concepção apresenta uma
avaliação e um julgamento da História da Ciência com base no que ela se tornou hoje, como
se não houvesse a possibilidade de que ela pudesse ter outro desenvolvimento. Nessa
perspectiva, a noção de “obstáculo” na Educação Matemática passa a dizer respeito a tudo
aquilo que impedisse a Matemática de ser como ela é hoje. A principal crítica que se faz à
essa visão indutivista regressiva da História da Matemática é o fato de que ela produz uma
história internalista e descontextualizada dos conceitos e idéias, ao desconsiderar os fatores
sócio-culturais externos à sua produção (Miguel & Miorim, 2004, p. 125).
1.3.3 - Reflexos da imagem especular da História da Matemática na Educação
Matemática
Nesse capítulo, procuramos associar as abordagens internalistas da História da
Matemática à imagem especular desta História e buscamos os reflexos dessa imagem na
Educação Matemática. Assim, apresentamos o ideário positivista para a apresentação da
ciência pelo método histórico como forma de reconstruir os conceitos de forma paralela à
ordem cronológica de seus surgimentos, com sua clara defesa do “princípio genético”: a
História da Matemática seria um espelho perfeito para a ordenação seqüencial e cumulativa
dos conhecimentos a serem apresentados no ensino, visto como um processo de transmissão
de conhecimentos ao aluno, que simplesmente acumularia os conteúdos em ordem crescente
de complexidade.
A abordagem de Piaget & Garcia da psicogênese das ciências altera essa visão
cumulativa e passiva: o aluno seria responsável pela construção dos seus conhecimentos
através dos mecanismos de assimilação e acomodação já descritos, passando pelas etapas
intra-objetal, inter-objetal e trans-objetal, que seriam comuns na ontogênese e na filogênese.
A História da Matemática serviria como fonte de conflitos cognitivos que permitissem a
passagem de um nível de construção do conhecimento para outro superior, por meio da
seleção, transformação, adaptação e incorporação dos elementos do meio externo às
estruturas cognitivas do aluno. A imagem especular da História da Matemática, nesse caso,
46
estaria ligada à concepção defendida por Piaget & Garcia de que as três etapas de construção
do conhecimento são sempre presentes e paralelas nos processos individuais e históricos.
Apesar de não ser tão clara e plenamente reflexiva como a imagem positivista, essa
abordagem também desconsidera as raízes culturais específicas da produção, circulação e
transmissão dos conhecimentos.
Bachelard, teórico da ruptura, apesar de negar o recapitulacionismo em suas obras, de
certa forma também preservou o “princípio genético” para a abordagem da História da
Ciência: ao defender que os obstáculos epistemológicos são intrínsecos ao conhecimento e se
repetem tanto na ontogênese quanto na filogênese, reafirma uma imagem especular da
história: o passado se reflete no presente e o presente torna-se um reflexo do passado.
Ao se desconsiderar o conjunto cultural em que os matemáticos desenvolveram suas
teorias, com suas crenças, concepções e hipóteses vinculadas ao momento político, filosófico
e social de seus tempos e não discutir as problemáticas alternativas nas próprias comunidades
de matemáticos da mesma época, a História da Matemática trabalhada por essas abordagens,
a positivista, a de Piaget & Garcia e a de Bachelard, adquire um caráter internalista. Assim,
reitera-se a idéia de que a Matemática seja uma ciência neutra, pronta e acabada,
desenvolvida por matemáticos profissionais de acordo com uma evolução contínua em
direção à perfeição e descontextualizada de uma compreensão social e histórica das
negociações que levaram ao seu modelo de elaboração. Até mesmo Bachelard, o teórico da
ruptura epistemológica na evolução dos conceitos, se refere à Matemática como um corpo
harmonioso de conhecimentos. Não se discutem as possibilidades de que outros modos de
desenvolver o corpo teórico da Matemática seriam possíveis e que se isso tivesse acontecido,
hoje teríamos uma Matemática diferente da oficialmente consagrada como ciência universal.
Assim, acreditamos que o recurso à História da Matemática deveria ser baseado em
um diálogo do passado com o presente e interpretado dentro das práticas sociais em que tal
passado se achava envolvido. Desse modo, se deixaria de subordinar o presente ao passado e
ao mesmo tempo de se fazer uma leitura da evolução dos conceitos da maneira que se acredita
que eles tenham acontecido. A História da Matemática seria, então, tratada como um produto
humano: carregada de valores, relativizada em relação aos pressupostos das condições sócio-
culturais de sua produção, aceitação e divulgação. Nesses termos, ao enxergamos a
Matemática como uma produção cultural, tacitamente assumiremos que a História da
Matemática não é um reflexo imediato do que foi a realidade de uma época, a ser “usado” em
47
sala de aula como uma forma de reproduzir a elaboração de um conceito ou de apresentá-lo.
Ao contrário, vemos na História da Matemática a possibilidade de trabalhar a re-criação, ou a
re-descoberta, de um conceito em sala de aula a partir da discussão sobre a objetividade e a
validade universal da Matemática em relação à sua produção histórica social e culturalmente
determinada, às negociações de significados envolvidas nos diversos contextos sociais e às
mudanças conceituais ocorridas no decorrer do tempo.
Capítulo 2
A História da Matemática como uma pintura
“ We will have to keep in mind, of course, that an ancient problem or an ancient
mathematical situation will never again be the same. It seems that Heraclitus was
right when, standing on the river bank and looking at the flow of water, he said that
is not possible to step into the same river twice”1 (Radford, 1997)
Neste capítulo, procuraremos apresentar a influência da estrutura cultural extra-
matemática e das características lingüísticas da matemática nas abordagens da História da
Matemática que configuram uma “pintura” das situações históricas, uma busca de diálogo
com os condicionamentos culturais de cada época. Essas abordagens têm origem comum na
escola de pensamento vigotskyana, conhecida como sociocultural, para a qual o pensar
humano é essencialmente social e dependente de fatores históricos e culturais. Dessa forma,
48
nega-se o recapitulacionismo e percebe-se o aprendizado como a internalização de um
processo interpessoal, que enfatiza o diálogo e as diversas funções da linguagem na instrução
e no desenvolvimento cognitivo mediado. Assim, analogamente ao que fizemos no primeiro
capítulo, no qual procuramos apresentar a filosofia positivista que embasava a visão da
construção individual do conhecimento como um espelho da construção histórica, iniciaremos
este capítulo mostrando como a ênfase dada por Vigotsky para as origens sociais da
linguagem e do pensamento irá influenciar abordagens da História da Matemática que
procuram fazer uma “pintura” dos fatores socioculturais envolvidos na produção, aceitação e
circulação dos conhecimentos matemáticos.
1 “Precisaremos ter em mente, é claro, que um problema antigo ou uma situação matemática antiga
nunca será novamente a mesma. Parece que Heráclito estava certo quando, de pé em um banco de rio e
observando o fluxo da água, disse que não é possível entrar no mesmo rio duas vezes” (Radford, 1997, tradução
nossa).
Seguindo a referência Miguel & Miorim (2004), apresentaremos a perspectiva
sociocultural de Radford e a perspectiva dos Jogos de Vozes e Ecos, que foram recentemente
construídas e que, segundo esses autores, ainda estão em processo de elaboração.
Ainda dentro de uma abordagem histórico-cultural da apropriação do conhecimento,
apresentaremos a influência das crenças na aprendizagem matemática e abordaremos as
questões relativas às preocupações da etnomatemática com o respeito às diversas formas de
geração, organização, apropriação e circulação de idéias matemáticas nas diferentes culturas
em diferentes épocas. Como decorrência da importância de se considerar as diversas práticas
que envolvem o conhecimento matemática, abriremos, na finalização do capítulo, uma
discussão sobre a prática escolar da matemática.
2.1 - A adoção do referencial vigotskyano e o abandono do “princípio genético”
Apresentaremos a seguir duas perspectivas teóricas em construção no campo de
investigação História na Educação Matemática: a perspectiva sociocultural, de autoria de
49
Luis Radford, da Université Laurentienne do Canadá e de Fulvia Furinghetti, professora da
Universidade de Genova, na Itália e a perspectiva dos jogos de vozes e ecos, introduzida pelos
investigadores italianos Paulo Boero, B. Pedemonte, E. Robotti e G. Chiappini. Essas
perspectivas teóricas buscam uma participação da estrutura cultural extra-matemática e das
características lingüísticas, discursiva e dialógica da linguagem matemática para propiciar ao
estudante uma ampliação crítica de seus conhecimentos. Também defendem uma abordagem
sociocultural que considere os significados em seus contextos específicos e rompem com
todos os tipos de concepções construtivistas: tanto as radicais, que vêem o conhecimento
como uma estrutura que vai do concreto ao abstrato, quanto as socioconstrutivistas, que
enxergam os fatores sociais como fatores externos que não se podem evitar. Desse modo,
enxergam a aprendizagem como a capacidade de internalizar as significações sócio-históricas
ou culturais dos objetos matemáticos por meio de atividades pedagógicas adequadas.
Nessas duas perspectivas, os autores adotam o pensamento de Vigotsky de que é na
interação social e por intermédio do uso de signos que se dá o desenvolvimento das funções
psíquicas superiores. A fala adquire importância crucial no desenvolvimento do pensamento e
diálogo torna-se veículo de mediação cultural.
Segundo Vigotsky:
“O momento de maior significado no curso do desenvolvimento intelectual,
que dá origem às formas puramente humanas de inteligência prática e abstrata,
acontece quando a fala e a atividade prática, então duas linhas completamente
independentes de desenvolvimento, convergem” (Vigotski, 2000, p.33).
A formação dos conceitos dependerá do modo de funcionamento psicológico
condicionado pela cultura que envolve o indivíduo. Em Vygostsky (2000) temos uma negação
do “princípio genético”, referente à repetição das seqüências de estágios de desenvolvimento
nos planos filogenéticos e ontogenéticos, que provoca um reducionismo de natureza
sociológica ao identificar a cultura como algo externo, fonte de estímulos para
desenvolvimentos conceituais e a cognição como algo interno, mero reflexo da cultura. No
pósfacio de seu livro “A Formação Social da Mente”, escrito por Vera John-Steiner e Ellen
Souberman, encontramos de maneira clara e sucinta a seguinte afirmação:
50
“Vygotsky explora neste livro as diversas dimensões temporais da vida humana. Ele
jamais identifica o desenvolvimento histórico da humanidade com os estágios do
desenvolvimento individual, uma vez que se opõe à teoria biogenética da recapitulação. Na
verdade, sua preocupação está voltada para as conseqüências da atividade humana na
medida em que esta transforma tanto a natureza como a sociedade. Embora o trabalho dos
homens e das mulheres no sentido de melhorar o seu mundo esteja vinculado às condições
materiais de sua época, é também afetado pela capacidade humana de aprender com o
passado, imaginar e planejar o futuro” (Vigotski, 2000, p. 172).
Para Vigotsky o aprendizado e o desenvolvimento da criança estão inter-relacionados:
o aprendizado provoca processos internos de desenvolvimento que dependem da interação da
criança com seu ambiente e da cooperação social. Desse modo, a atividade simbólica da
linguagem tem função organizadora da atividade prática e produz novas formas de
comportamento, sendo que quanto mais complexa é a ação exigida por uma situação, maior
será a importância da fala. Assim, em relação à perspectiva sociocultural:
“Vê-se, portanto, que para os integrantes da perspectiva sociocultural, que tem
suas raízes no referencial teórico neo-vygotskyano, a aprendizagem matemática é
fundamentalmente vista como a capacidade pessoal de se apropriar, através da
negociação interativa (sobretudo de natureza dialógica) dentro de um determinado
contexto cultural, das significações semióticas sócio-historicamente produzidas aos
objetos matemáticos no interior de uma atividade (atividade matemática no plano
histórico e atividade pedagógica culturalmente contextualizada de apropriação e/ou
produção de significações semióticas no presente)” (Miguel & Miorim, 2004, p.129).
De acordo com Vigotsky, podemos distinguir duas linhas qualitativamente diferentes
dentro do processo de desenvolvimento das funções psicológicas: de um lado os processos
elementares, de origem biológica e de outro lado as funções psicológicas superiores, de
origem sócio-cultural, sendo que a história do comportamento da criança nasce do
entrelaçamento dessas duas linhas. Durante a infância se desenvolveriam o uso de
instrumentos e a fala humana, duas formas fundamentais e culturais de comportamento.
(Vigotsky, 2000, p. 61). Desse modo, em Vigotsky temos a ênfase no aprendizado
socialmente elaborado e específico de cada criança, dependente que é das condições históricas
de cada criança. Os instrumentos e símbolos construídos socialmente é que definiram como
ocorrerá o funcionamento cerebral da criança, ou seja, a relação do homem com os objetos é
51
mediada pelos sistemas simbólicos, que são as representações dos objetos e situações do
mundo real no universo psicológico do indivíduo. Assim, cada cultura fornece ao indivíduo o
seu conjunto de significados, isto é, representações da realidade.
A perspectiva dos Jogos de Vozes e Ecos também segue o referencial teórico de
Vygotsky e procura trabalhar a linguagem como sistema simbólico fundamental na mediação
entre o sujeito e o conhecimento matemático por meio da interação social, com o uso das
vozes e dos ecos por ela produzidos, e do pensamento generalizante, com a abstração das
características do conhecimento e formação de conceitos. Para Vigotsky, os conceitos
adquiridos no decorrer da atividade prática da criança e das interações sociais imediatas são
“conceitos cotidianos” ou “conceitos espontâneos”, enquanto que os conceitos adquiridos por
meio dos processos de instrução escolar são chamados de “conceitos científicos”. Além disso,
é necessário que os conceitos espontâneos tenham alcançado certo nível para que a criança
possa absorver o conhecimento científico correlato. Mais uma vez, podemos verificar a
importância da cultura para o funcionamento psicológico: diferentes grupos culturais
fornecem diferentes instrumentais psicológicos em virtude da especificidade da organização
das atividades práticas de cada grupo, diferentes vozes para a tradução de um significado.
Trabalhar as diferentes vozes possibilitaria discutir as diversas interpretações de um conceito:
“A adequada denominação Jogos de Vozes e Ecos atribuída a essa perspectiva
já ressalta, por si mesma, os dois construtos teóricos básicos sobre os quase ela se
assenta: o construto Vozes, introduzido e desenvolvido por Bakhtin, no interior de sua
teoria do discurso – em sua obra Dostoievski, poética e estilística – e o construto
Jogos de Linguagem, introduzido por Ludwig Wittgenstein em seu O livro Castanho.
Além desses, a perspectiva dos VEG assenta-se ainda, aceitando-o, no ponto de vista
atualmente polêmico de Vygostsky acerca da distinção entre conceitos científicos –
aqueles com que a escola lida – e conceitos práticos – aquele que são utilizados no
cotidiano, aceitando também, por conseqüência, o pressuposto neovygotskyano
igualmente polêmico de que a relação que subsistiria entre a matemática escolar e a
matemática adquirida fora da escola seria da mesma natureza que a que subsistiria
entre conceitos científicos e conceitos práticos” (Miguel & Miorim, 2004, p. 139,
grifos dos autores).
Assim, para as perspectivas em questão, o conhecimento é concebido como uma
prática culturalmente mediada, resultante das atividades nas quais as pessoas se engajam,
52
dentro da racionalidade de cada cultura em consideração. Coerentemente com tal visão, em
nosso trabalho adotaremos a seguinte definição de cultura:
“Consideramos cultura como o conjunto de mitos, valores, normas de comportamento
e estilos de conhecimento compartilhados por indivíduos vivendo num determinado
tempo e espaço” (D’Ambrósio, 2005, p.104).
Desse modo, não podemos mais enxergar o recurso pedagógico à História da
Matemática de uma maneira linear e verticalizada em relação ao tempo. Ao contrário,
passamos a perceber a abordagem da construção de um conceito de forma localizada em um
determinado tempo e espaço, pertencentes a uma determinada cultura que não é uma imagem
primitiva de nossa cultura e sim a realidade histórico-cultural de uma época.
As perspectivas sócio-cultural e a do jogos de vozes e ecos buscam, de maneiras
diferentes, o diálogo necessário entre o passado e o presente sem que se subordine de maneira
determinista o primeiro ao último. Nessas perspectivas, a natureza discursiva própria do
conhecimento matemático e suas diversas representações semióticas são consideradas em
seus contextos históricos e sociais, com seus significados próprios.
2.2 - A Perspectiva sócio-cultural
Para Radford (1997) o conhecimento não está restrito ao caráter técnico que assume
quando é relacionado somente à resolução de problemas. Ao contrário, o conhecimento é
concebido na perspectiva de Vigostsky, para quem a aprendizagem dos conceitos deveria ter
origem na negociação de significados que resulta da atividade social do indivíduo e que é
ligada ao seu meio cultural. O construtivismo piagetiano é abandonado e o conhecimento é
entendido como parte da racionalidade da cultura em consideração, relacionado diretamente
às características sociais, históricas, materiais e simbólicas que marcam as atividades dos
indivíduos. O problema nunca é um objeto por si próprio, mas sim resolvido e validado
dentro da racionalidade e das crenças da cultura ao qual se liga.
53
Como exemplo, Radford (1997, 30) cita a emergência da matemática dedutiva dos
gregos, que é frequentemente relacionada à organização política das cidades-estado gregas,
baseadas na lei, que encorajavam os cidadãos a argumentar e debater. Ele critica esta leitura
causal, mecanicista e behaviorista da matemática grega, afirmando que o estilo grego de
debater e argumentar não é o determinante para suas concepções matemáticas e sim
manifestação de toda uma cultura, desenvolvida pelo compartilhamento de significados de
todas as atividades vividas por uma sociedade e que se manifestam na matemática, na arte e
em outras manifestações semióticas. Assim, para se estudar o conhecimento matemático
precisamos levar em conta a estrutura cultural extra-matemática na qual ele se acha imerso,
fazer uma análise histórico-epistemológica do conhecimento.
Na visão de Miguel & Miorim (2004) o uso por Radford da expressão híbrida análise
histórico-epistemológica sugere que ele não distingue a análise histórica da análise
epistemológica. Ao contrário, os autores acreditam que para Radford, o que caracterizaria
uma história epistemológica:
“seria a defesa de um projeto de constituição histórica das idéias matemáticas
com base em uma concepção sócio-cultural de cunho semiótico e, mais
particularmente, de cunho linguístico-semântico do conhecimento matemático”
(Miguel & Miorim, 2004, p. 126-127).
Com isso, a análise histórico-epistemológica possibilitaria entender o papel das
diferentes culturas que influenciaram no desenvolvimento dos conhecimentos, as
transformações intracultural e intercultural dos significados produzidos com esse
conhecimento e as negociações e confrontações entre diversos programas de pesquisa nos
vários estágios de desenvolvimento dos conceitos matemáticos. Assim, Radford e seu grupo
assumem como pressupostos epistemológicos que o conhecimento é ligado a ações
necessárias para resolver problemas e que os problemas são resolvidos dentro do contexto
sócio-cultural do período considerado. Além disso, o conhecimento é socialmente construído
e as instituições culturais e crenças de suas próprias culturas influenciam os alunos.
Nessa perspectiva, Radford e seu grupo criticam todos os tipos de argumentos que
seguem o paralelismo ontofilogenético e rompem com as diferentes abordagens
construtivistas da aprendizagem matemática, que separam a esfera do conhecimento das
54
esferas culturais e educacionais. Também criticam o recapitulacionismo presente na noção de
obstáculo epistemológico:
“Nenhum obstáculo epistemológico pode ‘resistir’ ao efeito da cultura pois, se
nós estamos corretos, a cultura não é um inconveniente para o conhecimento e o
conhecimento também não ‘voa’ sobre culturas: (...) o conhecimento é uma produção
cultural indissoluvelmente submetida ao seu meio” (Radford, 1997, 30, tradução
nossa).
Para Radford, o significado real de um conceito do passado é inatingível, ele sempre
será “filtrado” por nosso padrão de comportamento e por nossas modernas concepções sócio-
culturais da história. Além disso, dado que qualquer investigação histórica coloca em contato
dois horizontes diferentes e que o horizonte presente está sempre em movimento, a história
de qualquer conceito ou de qualquer teoria matemática deverá sempre ser reescrita (Radford,
1997, 27). Assim, o conhecimento matemático é re-criado e co-criado pelo aluno através do
uso de signos e do discurso, ou seja, o conhecimento matemático resulta da negociação social
dos signos, é um processo lingüístico-semântico. A linguagem deixa de ser vista somente
como modo de expressão do indivíduo sobre seu meio e passa a ser encarada como uma
interação de duplo sentido, ao permitir que o indivíduo elabore suas próprias concepções de
representação do mundo, sendo que na Matemática, em especial, a linguagem abrange tipos
de representações semióticas, associada a diferentes níveis de abstração.
A História da Matemática torna-se inspiradora de seqüências didáticas para o ensino-
aprendizagem ao possibilitar a constituição dos contextos e circunstâncias de produção dos
conceitos, das significações produzidas e negociadas na produção, circulação, recepção e
transformação desse conhecimento. Nessa abordagem sociocultural, a investigação dos textos
matemáticos de outras culturas busca examinar as práticas culturais nas quais eles estavam
envolvidos e, através do contraste com as notações e conceitos que são ensinados hoje,
perceber os tipos de exigência intelectual exigidas dos estudantes. As categorias semióticas
encontradas nos diversos momentos da constituição de um conceito são trabalhadas na
reinvenção de fórmulas, aumentando os níveis de generalização requeridos no enfrentamento
dos problemas apresentados nas seqüências de ensino (Radford, Boero & Vasco, 2000, p.
164).
55
O projeto de Radford não pode ser interpretado como recapitulacionista, pois não há
nenhuma pressuposição de subordinação do presente ao passado. Ele investiga o papel da
cultura na internalização do conhecimento escolar no presente e busca na história do
desenvolvimento epistemológico de um conceito os condicionamentos culturais que lhe
deram significação e permitiram sua produção e aceitação:
“....nós dissemos que a história da matemática pode nos dar uma nova
perspectiva para ensinar. É claro, nós não estamos dizendo que nossos estudantes
devem seguir os mesmos caminhos que os dos matemáticos antigos. Indo além, esta é
uma questão de melhor entender a natureza do conhecimento matemático e
encontrar, em sua estrutura histórica, novas possibilidades de ensinar. Um dos
pontos concernem ao currículo, que pode ser incrementado com ligações entre
álgebra e números negativos. Em meu conhecimento, esses dois assuntos são
usualmente ensinados de forma independente. A História pode sugerir algumas novas
ligações (por exemplo, integrar o conceito de números negativos em uma seqüência
de ensino algébrico)” (Radford, 1995, p.35, tradução nossa).
A História da Matemática serviria como um ponto de partida para o desenho de novas
atividades para que os estudantes, de forma ativa, recriassem significados e conceitos e co-
criassem outros novo, agindo e pensando por meio do arsenal de conceitos, significados e
ferramentas de sua cultura. Na perspectiva sócio-cultural, a classe é considerada um micro-
espaço dentro do espaço geral da cultura e desde que as transformações semióticas são
contextualmente situadas e culturalmente sustentadas, não há como fazer uma releitura da
História da Matemática com lentes recapitulacionistas. A compreensão que o estudante
adquire não é meramente o resultado de um estágio unidirecional da tomada de consciência
dos significados e sim o resultado do diálogo, da apropriação de conceitos e significados por
meio das atividades desenvolvidas pelos alunos e pelo professor. Assim, as fontes de
conhecimento de uma cultura, suas atividades e ferramentas, por serem histórica e pan-
culturamente construídas, podem servir como um base para o entendimento de que a maior
parte dos nossos conceitos correntes são mutações, adaptações ou transformações dos
conceitos elaborados por matemáticos do passado em seus contextos específicos (Radford,
Boero & Vasco, 2000, p. 165).
Radford (1997, p. 32) afirma que uma investigação histórico-epistemológica cultural
também precisa demonstrar os modos de confrontação dos diferentes programas de pesquisa
56
em certos momentos do desenvolvimento da matemática, não somente em relação aos
aspectos cognitivos do programa vitorioso, mas também em relação aos valores e
compromissos do contexto sociocultural desta confrontação.
2.3 - A Perspectiva dos Jogos de Vozes e Ecos:
Para Boero e seu grupo, idealizadores da perspectiva dos Jogos de Vozes e Ecos, a
dificuldade de transmissão do conhecimento matemático na escola giraria em torno de
problemas de ordem lingüística, discursiva e dialógica. Assim, os objetos da Matemática são
também considerados objetos lingüísticos, em suas dimensões sintática, semântica,
pragmática, discursiva, dialógica, etc. e como conseqüência, em seu aprendizado a linguagem
desempenha papel central.
A perspectiva dos Jogos de Vozes e Ecos trabalhada adota o construto teórico de
Jogos de Linguagem de Wittgenstein e o construto teórico Vozes de Bakhtin, que assumirão
na perspectiva de Boero a significação de um ambiente dialógico de aprendizagem. Também
aceitam a distinção de Vygotsky entre os conhecimentos científicos, trabalhados pela escola e
os conceitos espontâneos, utilizados no cotidiano (Boero, Pedemonte, Robotti, p. 6, 1997).
Para Boero e seu grupo, a escola seria responsável pela transmissão das características
próprias do conhecimento matemático que não são encontradas no cotidiano: a natureza
teórica e sistemática; sua coerência interna; a natureza dos processos de validação desse
conhecimento e a natureza específica da dimensão discursiva da linguagem matemática. A
transmissão do conhecimento matemático se daria através de condições que permitissem aos
estudantes a apropriação das características de natureza lingüística do conhecimento teórico
matemático. Os Jogos de Vozes e Ecos seriam atividades mediadoras que permitiriam essa
apropriação, por criarem um ambiente dialógico de aprendizagem.
A hipótese principal do grupo de Boero é a de que os Jogos de Vozes e Ecos podem
permitir ao estudante alcançar um horizonte cultural difícil de construir na abordagem
construtivista ao conhecimento teórico e também difícil de ser mediado através de
abordagens tradicionais: concepções intuitivas, métodos experimentais distantes do horizonte
57
cultural dos alunos e tipos de organização do discurso científico que não são partes naturais
do discurso do estudante. Assim:
“Seu ponto de partida é o fato de que algumas expressões verbais e não-
verbais (especialmente aquelas produzidas por cientistas do passado) representam de
um denso modo importantes saltos na evolução da matemática e da ciência. Cada
uma dessas expressões exprimem um conteúdo, uma organização de discurso e o
horizonte cultural do salto histórico” (Radford & Boero & Vasco, 2000, p. 165,
tradução nossa).
Boero e seus colaboradores têm investigado a História na Educação Matemática para
explicitar as características de um conteúdo matemático teórico e as condições histórico-
culturais de sua emergência na busca de vozes, ou seja, dessas expressões verbais ou não que
representam importantes saltos históricos na evolução da ciência e da Matemática. Essas
vozes, se apropriadas e ressignificadas por outras pessoas, por meio de questões específicas
como:
“’Como X interpretou o fato que Y?;’ ou ‘Através de quais experiências pode
Z manter esta hipótese?’; ou ‘ Quais analogias e diferenças você pode encontrar
entre o que seu colega de classe diz e o que você lê a respeito de W?’” (Radford,
Boero & Vasco, 2000, p. 165, tradução nossa).
produzem ecos, isto é, conexões estabelecidas entre diferentes vivências de pessoas de
diferentes épocas e de diferentes culturas. Ao professor caberia mediar essas vozes históricas
que permitiriam ao aluno internalizar, através do diálogo, as características do conhecimento
teórico e científico e suas condições histórico-culturais de emergência.
De acordo com as tarefas e as reações dos alunos, os estudantes produzem “ecos” de
diferentes tipos às diferentes vozes apresentadas: as vozes históricas e a voz mediadora do
professor. Boero e seu grupo classificam estes ecos como superficiais, ou seja, que não
demonstram o entendimento da voz; mecânicos, que somente reproduzem a voz e não
ampliam seus efeitos para situações diferentes; de assimilação, quando os estudantes são
capazes de transferir o conteúdo ou o método apresentado pela voz para outras situações-
problema parcialmente semelhantes; ressonantes, que representam a situação mais
interessante de todas e ocorrem quando o estudante ressignifica a voz com base em suas
58
experiências pessoais e encontra exemplos e situações que atualizam e multiplicam a voz
apropriadamente; e dissonantes, que representam conclusões contrárias ao esperado. Os ecos
são multiplicados e aprofundados pela exploração em classe das vozes originais e dos ecos
produzidos pelos alunos. Estes ecos renovam as vozes originais em termos de expressões e
referências culturais, permitindo um debate científico durante a experiência de ensinar
(Boero, Pedemonte, Robotti, p. 6, 1997).
Nessa perspectiva também se procura discutir as crenças e atitudes a respeito da
natureza da matemática e de como ela é aprendida. Seus autores acreditam que quando elas
são explicitadas ocorre uma ampliação de horizontes que favorece o desenvolvimento de
habilidades metacognitivas (Radford, Boero & Vasco, 2000, p.290).
Do mesmo modo, acreditamos que entender a importância das crenças no processo de
ensino e aprendizagem de matemática pode ser um dos caminhos para a integração da
História da Matemática em Educação Matemática, como forma de ajudar a promover uma
interlocução entre as diferentes culturas em diferentes épocas.
2.4 - A História da Matemática como possibilidade de trabalhar as crenças no processo
de ensino e aprendizagem de Matemática
Para estudarmos como as pessoas aprendem, é necessário que percebamos a ligação
entre cognição e afeto: as crenças, atitudes e emoções influenciam a maneira como as pessoas
trabalham vários processos cognitivos e metacognitivos. Por exemplo, nos processos
metacognitivos, as interferências emocionais podem indicar novas estratégias de resolução ou
simplesmente causar a desistência em buscar soluções. Nos processos de armazenagem e de
recuperação de informações é reconhecido o fato de que quando uma emoção é fortemente
negativa, a pessoa entra em pânico e sua capacidade de processamento fica ligada somente na
avaliação de seu estado emocional, bloqueando qualquer outro processo (Chacón, 2003).
Para pesquisar o afeto em Educação Matemática, Chacón (2003) definiu “domínio
afetivo” a partir de três descritores: crenças, atitudes e emoções. Dentre eles, as emoções
ganham maior relevo quando analisamos o fato de que são nas respostas emocionais às
59
resoluções de problemas matemáticos que surgem a maioria dos fatores afetivos e de que o
estado emocional possui várias dimensões que influenciam na aprendizagem: a extensão e a
direção da emoção, a duração e o nível de consciência e controle do aluno sobre ela.
Chacón (2003) destaca que as pesquisas sobre a influência das crenças têm ocupado
um papel de destaque nos estudos sobre aprendizagem matemática. Segundo ela, existe uma
dificuldade de se estabelecer uma diferenciação entre crença, afeto e conhecimento,
principalmente em relação ao de se situar as crenças no domínio cognitivo ou no domínio
metacognitivo. Ao nosso ver, o modelo mais apropriado seria o modelo proposto por Chacón
(2003, p. 62): os afetos e os conhecimentos seriam conjuntos disjuntos e as crenças um
conjunto com interseções nos conjuntos de afetos e conhecimentos. Assim, quanto mais
impregnado de afeto algo estiver, mais próximo estará de uma crença e, ao contrário, quanto
menos afeto possuir, mais se aproximará de um conhecimento. Nesse contexto, é preciso
também se levar em conta que os conhecimentos tácitos, ainda não objetivados, não se tratam
de crenças e pertencem ao conjunto dos conhecimentos.
Para entender a importância da relação estabelecida entre afetos - emoções, atitudes,
crenças – e aprendizagem matemática, basta verificar que:
“Ao aprender matemática, o estudante recebe estímulos contínuos associados
a ela – problemas, atuações do professor, mensagens sociais, etc. – que geram nele
uma certa tensão. Diante desse estímulos reage emocionalmente de forma positiva ou
negativa. Essa reação está condicionada por suas crenças sobre si mesmo e sobre a
matemática. Se o indivíduo depara-se com situações similares repetidamente,
produzindo o mesmo tipo de reações afetivas, então a ativação da reação emocional
(satisfação, frustração, etc.) pode ser automatizada e se “solidificar” em atitudes.
Essas atitudes e emoções influem nas crenças e colaboram para sua formação”
(Chacón, 2003, p.23).
Esse caráter cíclico de ligação entre a aprendizagem e os afetos, ainda de acordo com
Chacón (2003) deve ser entendido em seus vários aspectos, que envolvem tanto o professor
quanto o aluno. A autora afirma que os conhecimentos subjetivos pertencentes às crenças dos
professores se traduzem em sua maneira de ensinar, do mesmo modo que os pertencentes às
crenças dos alunos se traduzem em bloqueios e resistências a alguns tipos de aprendizagem.
Assim, observar as emoções, atitudes e crenças do aluno em relação à Matemática pode
60
oferecer indícios das experiências que teve como estudante, da perspectiva profissional do
professor e da sensibilidade social do contexto em que o ensino se desenvolve. O nível de
consciência das próprias crenças e da influência do contexto social são fatores decisivos nas
práticas de ensino e apontam caminhos para o modo de proceder do professor. Em relação ao
aluno, as crenças sobre a aprendizagem matemática são influenciadas pelo que consideram
como prioridades: dominar procedimentos básicos, memorizar algoritmos, consciência da
utilidade da Matemática, valorização do aprendizado como habilidade para progredir na vida,
obter confiança em si mesmo e reforçar sua imagem em relação ao grupo, etc.
Com isso, tomar consciência da atividade emocional durante a aprendizagem pode
servir com um elemento de auto-regulação para o aprendiz: serve para aumentar a
responsabilidade do aluno no planejamento, no controle da aprendizagem e na avaliação. As
exigências afetivas para a aprendizagem devem ser tão estudadas quanto as exigências
cognitivas, pois a imagem que os alunos e os professores têm da matemática podem servir
como referência para novas estratégias de ensino e como crítica para certos métodos.
É no entrelaçar da cognição e do afeto que pretendemos focar nossa atenção. As
crenças trazidas para o contexto da sala de aula irão interferir na atribuição de significados
para as diferentes tarefas e colaborar ou não para a compreensão das atividades
desenvolvidas. Também podemos verificar que as diferentes fases da resolução de uma tarefa
mostram como a dimensão emocional interage com a cognição: as idas e vindas, as rotas
alternativas de resolução e as alterações de ânimo encontradas nas diversas etapas do trabalho
são alguns exemplos.
Dentro da perspectiva da psicologia cultural, consideramos esclarecedora a
apresentação de Galvão (2003, p. 90):
“Em suma, a posição aqui exposta, acerca do que define um indivíduo como
um ser cultural, é a de que a cultura provê um sistema simbólico para interpretação e
organização da experiência, assim como para conferir significado à vida. O
indivíduo, por ser ativo nessa interpretação e organização de sua experiência, se
diferencia dos demais em vários aspectos de seu funcionamento psíquico, não sendo
assim determinado pela cultura. Esta, por sua vez, como resultado de uma história de
criação coletiva, não se reduz à soma das contribuições individuais.”
61
Com isso, esperamos que fique clara a importância da “construção do contexto” para
facilitar a compreensão dos conceitos em Matemática. Para Chacón (2003, p. 200),
encontramos na sala de aula uma multiplicidade de culturas relacionada ao “mundo invisível
de valores e crenças” do professor e dos alunos que interfere na qualidade da aprendizagem
da matemática. Segundo essa autora, a perspectiva antropológica, ao propor a idéia de cultura
como um conjunto de maneiras de pensar, sentir e agir compartilhadas por um grupo,
possibilitaria uma intervenção no currículo que levasse em conta como a história pessoal e a
história cultural do aluno afetam seu pensamento matemático e sua aprendizagem da
matemática. Para tanto, é necessário que se perceba que a matemática não é um
conhecimento acultural e que as aulas de matemática devem estar abertas para a identidade
cultural do aprendiz:
“Se aceitarmos a matemática como uma ciência que surge da sociedade, e
reconhecermos a parte que está modelada pelas raízes culturais e históricas dessa
sociedade, os significados das idéias matemáticas podem ser ampliados. Este é um
primeiro passo para aproveitar a diversidade cultural dos alunos como fonte de
riqueza para a aprendizagem da matemática escolar” (Chacón, 2003, p. 198).
Desse modo, o conhecimento matemático que o aluno traz de sua vivência torna-se o
ponto de partida para o trabalho em sala de aula e deixa de ser visto como algo a ser
substituído pelo conhecimento escolar. Ao contrário, as formas de conhecer associadas à
prática saber passam a ser consideradas como um complemento do conhecimento matemático
escolar (Chacón, 2003, p. 198).
Nesse mesmo sentido, Paulus Gerdes, um historiador holandês naturalizado
moçambicano, propõe estratégias históricas para estimular a autoconfiança do povo
moçambicano em sua capacidade de produzir Matemática e modificar as crenças inculcadas
pelos colonizadores sobre a incapacidade que esse povo teria para aprender a matemática dos
dominadores.
Para Gerdes, a imagem da Matemática criada e capaz de ser compreendida somente
pelos homens brancos faz parte de uma política de dominação cultural que nega as tradições
dos povos colonizados e reduz a capacidade matemática desses povos a uma memorização
mecânica. Este processo seria causado pelos bloqueios psicológicos e culturais provocados
pelo modelo de educação colonial, que reduziu a cultura local aos hábitos e costumes
62
pitorescos, forçando o povo a se sentir envergonhado de sua cultura e dependente do
estrangeiro. A reversão de tais crenças se daria através de um renascimento cultural:
“Neste renascimento cultural, neste combate ao preconceito racial e colonial,
uma reafirmação-matemático-cultural desempenha um papel: é necessário encorajar
a compreensão de que os povos Africanos foram capazes de desenvolver matemática
no passado, e portanto – reganhando confiança cultural – serão capazes de assimilar
e desenvolver a matemática de que necessitam.” (Gerdes, 1991, 62)
A estratégia cultural teria como objetivos mostrar a capacidade que cada povo tem
de desenvolver matemática e seria desenvolvida através de atividades relacionadas à história
cultural da Matemática de Moçambique, como por exemplo:
“Nas zonas litorais de Moçambique, seca-se o peixe para ser vendido no
interior. Como secar o peixe? Através de sua experiência, os pescadores descobriram
que é necessário colocar todo o peixe à mesma distância do fogo. Eles descobriram
um conceito de circunferência na areia, utilizando uma corda e dois paus. Esse
exemplo mostra, mais uma vez, que conceitos matemáticos importantes refletem
relações importantes no mundo objetivo” (Gerdes, apud Miguel, 2004, p.27).
Como estratégia social, Gerdes sugere que a escola incorpore nos currículos de
matemática a “matemática escondida” nas práticas populares e que os professores se
conscientizem a respeito do valor cultural, educacional e científico da redescoberta e
exploração da matemática escondida (Gerdes, 1991, 63). Dessa forma, as dificuldades com o
aprendizado da matemática surgidas pela “transplantação curricular” das nações dominantes
para o Terceiro Mundo poderiam ser diminuídas pela atribuição de sentido cultural ao que é
estudado na escola. A preocupação central de Gerdes nesse sentido é a de que a matemática
tem servido como uma barreira ao acesso social: as crianças vindas das camadas
socioeconômicas inferiores da população têm aversão à matemática e a educação matemática
é estruturada em função de uma elite social que freqüentará os cursos superiores – o que faz
com que a matemática torne-se um filtro educacional e reforce a estrutura de poder vigente. O
autor acredita que sabendo que seus antepassados eram capazes de desenvolver a sua
matemática, os alunos das classes culturalmente dominadas perceberão a sua própria
capacidade de se apropriarem e de desenvolverem Matemática.
63
Como podemos perceber, todo o questionamento gerado em torno das relações
sociais, históricas e políticas através das estratégias propostas por Gerdes tem como objetivo
a modificação das crenças em relação à aprendizagem matemática, pela valorização dos
conhecimentos matemáticos dos povos dominados culturalmente. Tais evidências levam à
preocupação com a valorização de outras formas do pensar matemático, traduzido na
capacidade dos povos de organizar, classificar, contar, medir e inferir, preocupação essa que,
em sua forma mais ampla, tem suas raízes ligadas ao movimento do multiculturalismo. Nessa
perspectiva, impor a Matemática ocidentalizada a todos os povos do planeta é uma agressão
às culturas próprias da diversidade étnicas e culturais, não justificada quando se avalia como
principal importância da educação a formação de cidadãos e não de matemáticos
profissionais. Ao mesmo tempo, trabalhar as produções multiculturais no currículo exige o
cuidado de não as apresentar como atividades triviais e marginais à abordagem dos
conteúdos, o que reforçaria a imagem de inferioridade de outras sociedades em relação à
cultura eurocêntrica. A educação para uma sociedade multicultural exige o respeito pelos
conhecimentos prévios dos alunos, o uso de imagens e representações adequadas ao seu meio
e a não imposição de modos de pensar e agir estranhos a suas origens, e procura posturas
educacionais que permitam preservar a diversidade e eliminar a desigualdade.
Analisando essa mesma questão, veremos que o respeito às diferentes culturas pode
mostrar como muitas das dificuldades de aprendizagem são devidas às crenças próprias de
um grupo social. Um interessante exemplo é encontrado no estudo do ICMI – 6 sobre
multiculturalismo na História da Matemática:
“Ao introduzirmos variáveis ou equações falamos sobre x como incógnita.
Muitas crenças tradicionais dos nativos das ilhas do Pacífico associam incógnitas
com magia, espíritos do mal e coisas a serem evitadas. Assim, nos estágios iniciais da
álgebra os estudantes dessas ilhas irão achar __ + 3 = 7 com mais facilidade que x +
3 = 7. De modo similar, consideremos esta questão: ‘Se metade de todas as crianças
nascidas são meninos e o sexo da criança é independente de sua data de nascimento,
qual é a probabilidade da quarta criança de uma família ser menino se as três
primeiras são meninas?’ Perguntar isso em alguns grupos culturais pode muito bem
ter como retorno a resposta que a suposição não é válida, pois o sexo da criança
depende de Deus e não do acaso” (Grugnetti & Roger et al, 2000, pg. 49, tradução
nossa).
64
A compreensão da necessidade de se trabalhar as crenças, os conhecimentos prévios e
a diversidade cultural dos alunos é um dos focos da etnomatemática. O trabalho de Gerdes na
África do Sul é uma das abordagens possíveis da etnomatemática.
2.5 - A abordagem sociocultural da História da Matemática pela etnomatemática
No Brasil, Ubiratan D’Ambrósio coordena um programa de pesquisa sobre geração,
organização intelectual e social e difusão de conhecimento interculturais. No
desenvolvimento de sua crítica da imposição da cultura do dominador aos povos indígenas,
afro-americanos, não-europeus, trabalhadores oprimidos e classes marginalizadas, surgiu o
termo etnomatemática:
“... para significar que há várias maneiras, técnicas, habilidades (ticas) de
explicar, de entender, de lidar e de conviver com (matema) distintos contextos
naturais e socioeconômicos da realidade (etnos)” (D’Ambrósio, 2005, p. 114).
Partindo dessa definição, ele diz que a disciplina que denominamos “matemática”
seria na realidade uma etnomatemática, ou seja, a desenvolvida na Europa mediterrânea, com
influências das civilizações indiana e islâmica e que adquiriu sua forma atual e seu caráter de
universalidade a partir dos século XVI e XVII, com o desenvolvimento das ciências e
tecnologias do modernismo. Assim, as características de precisão, rigor e exatidão teriam
origens na Antiguidade grega e nos países centrais da Europa, principalmente Inglaterra,
França, Itália e Alemanha, na Idade Moderna. Desse modo, para esse autor, encontramos a
preocupação com a contextualização da matemática em qualquer programa de educação e a
verificação de que o momento social está na origem do conhecimento:
“Contextualizar a matemática é essencial para todos. Afinal, como deixar de
relacionar os Elementos de Euclides com o panorama cultural da Grécia Antiga? Ou
a aquisição da numeração indo-arábica com o florescimento do mercantilismo
europeu nos séculos XIV e XV? E não se pode entender Newton descontextualizado
(..)” (D’Ambrósio, 2005, p. 115).
65
Contra a imposição da matemática eurocêntrica a alunos com raízes culturais
diferenciadas, D’Ambrósio (2005) cita o ensino do sistema decimal a populações indígenas
que sempre resolveram seus problemas com seus sistemas numéricos específicos. Também
contesta a tentativa de afirmar que a “etnomatemática do branco” é mais eficiente que a
“etnomatemática do índio”, afirmando que, ao removermos as questões do contexto de
atuação de determinada etnomatemática elas se tornam falsas questões. O domínio de duas
etnomatemáticas, conforme a concepção de D’Ambrósio, ofereceria novas possibilidades de
enfrentamento de questões em seus contextos específicos: o índio ao aprender a matemática
do branco poderia negociar em melhores condições, por exemplo. Entretanto, note-se que não
há a adoção da matemática do branco e sim uma nova aprendizagem sobre atuação em novos
contextos, preservando e valorizando a cultura indígena.
Uma importante crítica feita à etnomatemática nesse sentido é a de que não podemos
nos preocupar somente com os conhecimentos próprios de cada cultura e sim em caminhar
em direção ao conhecimento universalmente aceito, que garantirá a inserção social dos
indivíduos. Assim, embora a etnomatemática possa considerar a matemática acadêmica como
“hostil” às características culturais de determinados grupos, tal fato não justifica que a
matemática formal não lhes deva ser apresentada:
“Quando discutimos a performance dos estudantes na escola, nós não
devemos olhar (apenas) para seu passado, mas para seu futuro. O futuro dá razões e
sonhos, ou os destrói. Ações, e seu desenvolvimento epistêmico posterior, são também
orientados pela percepção pessoal atual do futuro. (...) A percepção dos estudantes
sobre um assunto é parcialmente determinada por suas percepções de suas
oportunidades na sociedade. Se os estudantes não vêem nenhuma possibilidade de
carreira possível na qual a competência matemática tenha um papel significante,
então torna-se difícil para os estudantes decidirem entrar nesse assunto. (...) As
oportunidades feitas possíveis na escola/vida são essenciais para o modo como a
criança concebe as situações de aprendizagem” (Vithal & Skovsmose, 1997, p. 146,
tradução nossa).
Assim, a matemática acadêmica não poderia ser ignorada no contexto escolar.
Concordamos com Rosa & Orey (2005, p. 133) quando esses autores afirmam que se a
etnomatemática mantiver um direcionamento somente antropológico e etnográfico, levará
pesquisadores e educadores a associarem-na a uma perspectiva folclorista e “primitivista”.
66
Para esses autores, além de evidenciar o caráter cultural da matemática, a etnomatemática
também deve proporcionar aos alunos uma ação pedagógica que conecte as diferentes
práticas matemáticas com as práticas próprias da matemática acadêmica. A ação pedagógica
da etnomatemática utilizaria a noção de cultura matemática como ferramenta e teria como
objetivo estudar como outras matemáticas influenciaram a construção da matemática
acadêmica, valorizar e conectar a cultura matemática de diferentes grupos à prática
acadêmica da matemática.
D’Ambrósio (2005) propõe que se compatibilize cognição, história e sociologia do
conhecimento com a epistemologia social para se fazer um enfoque multicultural do
conhecimento e garantir relações interculturais democráticas. Assim, para ele as práticas de
poder implícitas na adoção de conteúdos e metodologias teriam que ser flexibilizadas para
garantir as heranças culturais dos diferentes povos e respeitar a diversidade cultural do
planeta:
“A alternativa é reconhecer que o indivíduo é um todo integral e integrado, e
que suas práticas cognitivas e organizativas não são desvinculadas do contexto
histórico no qual o processo se dá, contexto esse em permanente evolução”
(D’Ambrósio, 2005, p. 118).
Nesse sentido, D’Ambrósio (2005, p. 102) afirma que a etnomatemática se apresenta
como um programa que pesquisa a história e a filosofia da matemática, com reflexos na
educação.
Desse modo, como a etnomatemática busca compreender as várias dimensões do
conhecimento matemático, não tem uma caracterização única, uma definição que abarque
todos os seus significados. Nesse sentido, tem havido uma preocupação de buscar os
caminhos possíveis da ação pedagógica da etnomatemática:
“A etnomatemática pode ser interpretada como uma reação ao imperialismo
cultural que é construído na teoria da modernização. A principal preocupação para a
etnomatemática é vir a identificar as competências matemáticas culturalmente
situadas e, ao invés de pensar em um currículo importado, pensar em termos de auto-
desenvolvimento. O currículo deve ser relacionado com as já existentes competências
em matemática. (...) A etnomatemática se refere a um grupo de idéias envolvidas com
67
história da matemática, as raízes culturais da matemática, a matemática implícita nas
atividades diárias e a educação matemática. (...) Entretanto, a etnomatemática não se
refere apenas à perspectiva da educação matemática, mas também à matemática
implícita de um grupo social, como quando falamos da matemática implícita na
carpintaria como etnomatemática dos carpinteiros. Assim, ‘etnomatemática’ pode se
referir a certa prática como também ao estudo dessa prática. No que segue que nós
usamos ‘etnomatemática’ em ambos os sentidos, embora pensemos primariamente em
etnomatemática como incluindo certas idéias educacionais e uma perspectiva de
pesquisa” (Vithal & Skovsmose, 1997, 133, tradução nossa).
Procurando construir uma definição, Barton (2004, p.53) não se refere a prática
educacional alguma e diz que:
“Etnomatemática é um programa de pesquisa do modo como grupos culturais
entendem, articulam e usam os conceitos e práticas que nós descrevemos como
matemáticos, tendo ou não o grupo cultural o conceito de matemática.”
Segundo Barton (2004, p. 59) podemos categorizar os estudos etnomatemáticos em
três dimensões: tempo, cultura e matemática. Classificando a etnomatemática pela categoria
tempo, podemos abordar as concepções de um grupo cultural antigo ou contemporâneo. A
dimensão cultural pode se referir a um grupo étnico específico, por exemplo, um modelo de
tecelagem de uma certa tribo, ou a um grupo social ou vocacional, como a matemática dos
carpinteiros. Finalmente, a dimensão matemática da etnomatemática refere-se ao
relacionamento das idéias matemáticas com a matemática em si. Podemos compreender
melhor esta concepção em Barton (2004, p. 55):
“A etnomatemática não consiste nas idéias matemáticas de outras culturas,
nem é a representação dessas idéias pela matemática. Esses construtos podem ser
parte da etnomatemática, mas não são sua essência. A etnomatemática é uma
tentativa de descrever e entender as formas pelas quais idéias, chamadas pelo
etnomatemáticos de matemáticas, são compreendidas, articuladas e utilizadas por
outras pessoas que não compartilham da mesma concepção de ‘matemática’. Ela
tenta descrever o mundo matemático do etnomatemático na perspectiva do outro.
Assim, como na antropologia, uma das dificuldades da etnomatemática é descrever o
mundo do outro com os seus próprios códigos, linguagem e conceitos.
68
Neste sentido, a etnomatemática está mais para a história da matemática do
que para a matemática. Uma história da matemática deverá conter muita
matemática, mas trata em primeiro lugar da forma como as idéias originaram-se e
desenvolveram-se dentro da matemática, não das idéias matemáticas em si mesmas. A
história da matemática e a etnomatemática se sobrepõem. Contudo, a etnomatemática
tenta desvelar como essas idéias eram percebidas no seu tempo e como as atividades
matemáticas culturais do presente foram derivadas das do passado; a história da
matemática tenta desvelar como essas idéias desenvolveram-se e como evoluíram até
a matemática.”
Para Barton (2004, p. 56) a etnomatemática seria uma tentativa de entender como as
diferentes concepções matemáticas desafiam a natureza universal da matemática: o
etnomatemático usa os conceitos da matemática para interpretar a maneira pela qual outra
cultura reconhece práticas e conceitos particulares, provocando um diálogo entre as idéias de
outra cultura e os conceitos convencionais da matemática capaz de criar uma nova
matemática pela adaptação a novas idéias. Por outro lado, quando o etnomatemático estuda
uma cultura contemporânea pode encontrar pessoas que se interessem pela matemática do
etnomatemático e influenciar na construção social do conhecimento em um nível cultural,
com o reexame de seus conceitos na perspectiva de outra cultura.
Assim, enquanto a matemática evolui internamente, pela construção de uma idéia que
incorpora outras idéias, a etnomatemática evolui com formas novas substituindo formas
velhas, pelo resultado de mudanças sociais: a etnomatemática, em íntima relação com a
sociedade, apresenta um aspecto psico-emocional que a diferencia da matemática: a
etnomatemática é validada pelas visões de mundo do indivíduo e a matemática é racional e
validada por uma hierarquia de autoridade (Barton, 2004, p. 49). Desse modo, podemos dizer
que a etnomatemática apresenta um caráter de relativismo matemático: novas idéias podem
criar concepções matemáticas novas, não subordinadas às já existentes ou alguma nova
generalização mais abrangente. O etnomatemático estará sempre procurando superar as
convenções e os símbolos que os matemáticos usam para expressar os fenômenos
matemáticos e poderá criar ferramentas matemáticas novas durante este processo. Entretanto,
encontramos na etnomatemática também a presença do sentido universal da matemática: o
etnomatemático só identifica os aspectos matemáticos de uma cultura por possuir uma cultura
69
matemática e, ao reconhecer uma categoria matemática, faz referência à categoria
convencional desse conhecimento. Assim:
“Para esclarecer a dicotomia universal/relativo, pode ser útil a distinção
entre relatividade histórica e relatividade contemporânea. Se nós nos perguntarmos
se existem, verdadeiramente, outras matemáticas com poder equivalente ao que
comumente entendemos com matemática, então a resposta é não. Por outro lado, se
nós nos perguntarmos se a matemática poderia ter sido diferente, então a resposta é
sim.
Historicamente, a linha do progresso da matemática poderia ter sido outra.
Não há maneira de sabermos que teoria da matemática nós poderíamos ter agora,
nem se esta teoria hipotética seria mais compreensível, mais sofisticada, mais
aplicável (ou ‘melhor’ de acordo com algum critério de progresso). A evidência de
que a história poderia ter sido diferente é necessariamente circunstancial. Isto requer
um pensamento experimental do tipo ‘e se’, e isto é o porquê de termos a forte ilusão
de que existe uma única matemática. É tarefa da sociologia da matemática identificar
os lugares onde idéias divergentes poderiam ter mudado o curso da história, e
rastrear aqueles caminhos da maior distância possível” (Barton, 2004:59).
Desse modo, a sociologia da matemática também pode participar das
problematizações feitas à História da Matemática: contrapondo-se à ideologia do
individualismo, a sociologia integra os grupos, as diferentes práticas sociais e o conhecimento
com uma abordagem crítica e qualificadora.
As preocupações recentes com a diversidade cultural implicam uma Educação
Matemática que traga à tona os conhecimentos matemáticos fora da matemática escolar e os
saberes matemáticos não formais e que transforme a sala de aula em um espaço para diálogo
entre as diferentes formas de se fazer matemática, para a análise dos discursos da matemática
acadêmica e da matemática escolar.
Nesse sentido, Miguel (2005) defende um programa de pesquisa que investigue o
modo como os campos da história, da filosofia e da sociologia da educação matemática
poderiam fazer parte, de forma crítica e qualificadora, da formação inicial e continuada de
70
professores de matemática. Esses campos de investigação deveriam ter como objeto a
educação matemática escolar:
“Mesmo que falar em educação matemática escolar em vez de matemática
escolar seja uma opção, essa opção não constitui, a nosso ver, uma mera escolha
terminológica sem maiores conseqüências. Ela nos remete, antes de mais nada, ao
controvertido problema de se saber em que medida e de que formas as práticas
sociais de caráter educativo – escolares ou não – participariam, de forma ativa e
criativa, da produção de cultura matemática ou de cultura de um modo geral”
(Miguel, 2005, p. 143).
Além disso, Miguel (2005, p. 144) afirma que embora a prática social da educação
matemática não seja percebida como tão importante quanto a prática social da produção
matemática, a educação matemática é absolutamente necessária para que essa produção se
realize, sobreviva e cumpra os seus propósitos sociais. Continuando, lembra que foi por meio
da atividade de ensinar matemática que a própria atividade matemática se profissionalizou na
Europa, no final do século XIX, criando a identidade profissional do matemático. Ao
percebermos a escola como espaço de produção cultural, estaríamos diante de um problema
simultaneamente histórico, sociológico e filosófico que nos levaria a questionar o fato de se
pensar a educação matemática escolar como “uma mera correia de transmissão acrítica de
uma cultura matemática considerada pura, universal, formal, autônoma, absolutista, não-
controvertida, certa e neutra” (Miguel, 2005, p. 147).
Assim, esse autor defende a realização de esforços para que as fronteiras entre os
campos de investigação da história, da filosofia e da sociologia da educação matemática
escolar se tornem cada vez indistintas, como uma forma de possibilitar a pesquisa sobre como
os diversos fatores interferem na prática social da educação matemática escolar.
Considerando então a importância da atuação do professor para alcançar em sala de
aula um olhar que contemple as multifacetadas visões de uma pintura externalista da História
da Matemática, com sua complexidade discursiva própria e suas amplas possibilidades de
trabalho, apresentaremos no próximo capítulo alguns tópicos relacionados à integração da
História da Matemática na escola.
Capítulo 3
71
Os múltiplos olhares da escola na integração da História na Educação Matemática
Neste capítulo procuraremos fazer uma descentralização de foco que permita enxergar
a integração da História da Matemática em Educação Matemática com múltiplos olhares.
Olhares para a atuação do professor; para as possibilidades de atribuição de significado ao
texto matemático pela História da Matemática; para as relações entre a escola e o
conhecimento matemático; para a formação de professores; para o uso de fontes originais;
para as abordagens direta e indireta da História da Matemática no ensino e para a proposta de
Miguel & Miorim (2004) sobre “histórias pedagogicamente vetorizadas”. Olhares atentos,
curiosos e investigativos, comprometidos com as crenças e convicções dos seres humanos
que são contemplados, mas que também contemplam, que recebem olhares e os retornam.
Olhares que ao focarem a escola a vêem refletida em si mesmos, que ao levarem a visão
constituída da Matemática trazem o fazer da escola como prática social da matemática.
Olhares que ao apresentarem a dialogicidade da investigação matemática embutida no
trabalho com História da Matemática retornam com o crescimento profissional do professor e
o enriquecimento cognitivo, afetivo e emocional do aluno. Olhares que falam e escutam.
3.1 – O papel do professor na integração da História na Educação Matemática
Ao analisar as experiências acumuladas sobre o uso da história na educação
matemática, Furinghetti (1997) apresenta algumas questões básicas: o grande entusiasmo dos
professores envolvidos na integração da História da Matemática à Educação Matemática e
sua confiança na utilização da história; a não homogeneidade da formação e treinamento dos
professores em história da matemática, com conseqüente diferenciação nas fontes de pesquisa
que eles utilizam; as opiniões favoráveis ao uso da história em sala de aula baseadas em
impressões subjetivas e não em estudos sistemáticos e regulares sobre os retornos do curso;
cada experiência é um “micro-mundo”: não existe uma rede organizada de classes e
professores com experimentos análogos, o que torna difícil comparar resultados e estabelecer
72
caminhos para a pesquisa; a necessidade de um maior intercâmbio de informações entre os
pesquisadores de história da matemática e os pesquisadores em educação matemática.
Para Furinghetti (1997) é importante analisarmos o papel do professor no processo de
interação entre a história da matemática e a educação matemática. Segundo ela, por um lado
o professor age como um filtro das sugestões apresentadas pelos que desenvolvem os
currículos e pelos historiadores da matemática; por outro lado, os professores fornecem os
retornos, ‘outputs’, dados pelos alunos que permitem a avaliação das experiências.
Para nós, um dos pontos essenciais para a integração da História da Matemática na
Educação Matemática está centrado no papel do professor: os valores que influenciam na sua
visão da História da Matemática; suas preocupações com os fatores emocionais, sociais e
culturais nos processos de aprendizagem; o grau de conhecimento histórico e matemático que
ele possui; sua formação inicial e continuada e suas possibilidades de acesso à bibliografia
especializada entre outros aspectos.
Após fazer uma pesquisa com professores sobre a relevância da disciplina História da
Matemática na formação de professores, Silva (2001, p. 158) elenca as seguintes funções:
“função diretamente relacionada ao conhecimento da História da
Matemática; função metodológica e epistemológica; função utilitária visando ao uso
da História da Matemática em sala de aula; função diretamente ligada ao
conhecimento da história da Educação Matemática.”
Silva (2001) relaciona as funções da História da Matemática na formação de
professores com as diferentes concepções de matemática. Para aqueles que vêem a
Matemática como uma ciência pronta e acabada e o ensino como uma relação de dominação,
a História da Matemática encontra pouco espaço no processo de ensino-aprendizagem. Em
contrapartida, estudar a História da Matemática como uma das múltiplas manifestações
culturais da humanidade torna o conhecimento matemático significativo e facilita o
entendimento das relações entre este conhecimento e o homem, em um dado contexto
cultural.
Furinghetti (1997) considera que para discutirmos o uso da história da matemática em
educação matemática precisamos notar que existem duas correntes principais de intervenção
da história no ensino de matemática: a primeira objetiva promover a matemática, a outra
73
refletir sobre matemática. Enquanto a primeira corrente está ligada ao aspecto social da
disciplina e a sua imagem, a segunda liga-se aos aspectos interiores à disciplina, como o seu
desenvolvimento e seu entendimento. Para essa autora, as intervenções da história na
educação matemática que buscam refletir sobre a matemática são as mais complexas. Elas
podem se referir a intervenções locais, quando introduzem um conceito e/ou um
procedimento que são específicos de um único caso, ou se reportarem a intervenções globais,
nos casos em que o uso da história abrange um modo próprio de trabalhar com diferentes
tópicos e situações. Deste modo, as abordagens ingênuas que buscam transpor passagens
históricas diretamente para a sala de aula permanecem em um nível superficial e não
alcançam as situações didáticas que são significativas para a aprendizagem. Por esta razão,
muitos autores preferem a expressão “integração da história” ao invés da expressão “uso da
história”. A palavra “integração” pressupõe um uso da história no ensino de matemática que
se desenvolve de acordo com os seguintes passos: escolha dos objetivos no ensino de
matemática e da história da matemática; desenvolvimento destes objetivos, de acordo com as
especificidades dos dois campos envolvidos e análise dos resultados cognitivos obtidos por
pesquisas educacionais e epistemológicas (Furinghetti, 1997, p. 61).
Como a integração da história pressupõe um trabalho com a linguagem específica da
Matemática, consideramos oportuno nesse momento fazermos uma breve apresentação sobre
a constituição dos discursos sintáticos e semânticos da Matemática. Assim, poderemos
perceber como a História da Matemática pode contribuir para que o professor reconheça a
gênese dos textos matemáticos formais, desvinculados dos problemas e intuições que
serviram de base para sua produção e adquira um meta-saber sobre o discurso matemático
que lhe permita avançar em sua prática profissional.
3.2 - As possibilidades de atribuição de significado ao texto matemático pela História
da Matemática
Para construir o raciocínio formal próprio da matemática, a escola precisa colocar os
indivíduos em contato com o discurso e com a linguagem próprios ao desenvolvimento deste
tipo de raciocínio científico.
74
A especificidade do ensino da matemática reside principalmente na necessidade de se
reestruturar significados intuitivos ligados ao cotidiano para a linguagem matemática, que é
regida por regras precisas, pelo simbolismo e pela abstração. A formalização da matemática
garante a criação da própria matemática, pois permite inferências e deduções e o papel do
professor se dá em sentido contrário, ao ter que ajudar o aluno a aplicar o simbolismo
matemático em situações cotidianas, fazendo a relação entre os algoritmos aprendidos na
escola e os conhecimentos matemáticos que o aluno traz de seu contexto social.
Podemos perceber dois aspectos distintos de se tratar a linguagem matemática: o
aspecto semântico, que privilegia a conceituação, e o aspecto sintático, que privilegia a
manipulação de símbolos e fórmulas, sem se deter na significação dos mesmos. Para Gómez-
Granell (2002, p. 29), a explicação mais generalizada para a dificuldade dos alunos em
dominar a linguagem matemática é
“o caráter mais sintático que semântico, mais baseado na aplicação de regras
que na compreensão do significado”
atribuído ao ensino de matemática. Entretanto, para ela, mais do que na falta de compreensão
conceitual, a dificuldade encontra-se na aprendizagem de uma linguagem específica de
características muito diferentes da linguagem comum e no ensino excessivamente formalista,
que causa uma aplicação cega dos procedimentos, sem saber o seu significado.
Nesse sentido,
“por um lado, a linguagem natural desempenha uma função primordial na
criação de novos símbolos matemáticos, garantindo o vínculo com o objeto de
referência e impedindo a perda de significado provocado por todo processo de
abstração; por outro, é essencial para devolver aos símbolos matemáticos um
significado referencial, possibilitando assim uma das funções essenciais da
matemática: penetrar nas ciências do mundo externo – física, química, biologia,
economia, sociologia, psicologia – e na vida cotidiana” (Gómez-Granell, 2002, p.
35).
A aprendizagem significativa da matemática irá depender do uso da linguagem natural
para dar sentido à linguagem simbólica. Ao mesmo tempo, o aluno também deve dominar os
procedimentos formais necessários para fazer as inferências e abstrações próprias do saber
75
matemático, independentes de situações problema. Aprender a linguagem matemática não
pode se tornar a mecanização de uma série de regras e para tanto, o professor precisa ser
criativo para conseguir associar os aspectos sintáticos e semânticos no ensino.
As sugestões de Gómez-Granell (2002) para um ensino que garanta o uso adequado
da linguagem matemática baseiam-se principalmente em um ensino contextualizado dos
conceitos e procedimentos matemáticos, através da resolução de problemas; da aceitação dos
procedimentos próprios, intuitivos ou não formais, tidos como instrumentos para explorar o
significado dos conceitos e procedimentos matemáticos; do uso de modelos concretos que
permitam entender a semântica da operação ou transformação (manipulativos, verbais,
gráficos ou até de caráter simbólico, como os modelos aritméticos para as regras algébricas);
do uso de linguagens diferenciadas (linguagem materna, esquemas, desenhos, símbolos, etc.)
para expressar as transformações matemáticas; de se estimular a abstração progressivamente
e de se trabalhar os mesmos conceitos e procedimentos em diferentes contextos.
Assim, a atuação do professor está constantemente sendo requisitada para fazer as
conexões entre o que se pretende ensinar, os conhecimentos prévios dos alunos, as
ampliações de significação e de sintaxe esperadas, as necessidades de contextualização do
conteúdo, o trabalho com valores e as possibilidades de conseguir que o aluno recrie o
conhecimento matemático a partir da cultura local de sua comunidade em direção à cultura
conceitual e abstrata das disciplinas escolares. Nesse sentido, a História na Educação
Matemática pode proporcionar as condições para o diálogo necessário à uma apropriação
significativa e crítica do conhecimento matemático, por meio de abordagens que considerem
as características discursivas e extra-matemáticas da história das idéias matemáticas.
Desse modo, novas regiões de inquérito se apresentam à constituição de uma História
da Matemática em Educação Matemática que contemple a história de hoje e do que se faz em
sala de aula na constituição dos saberes pedagógicos. Como característica marcante das novas
investigações, temos a constatação da importância de se distinguir a linguagem da
Matemática no contexto científico e no contexto pedagógico.
Em Bicudo & Garnica (2003) temos uma longa discussão sobre os discursos da
Matemática e os textos que lhe são próprios. A manifestação do discurso “científico” da
Matemática é ligada principalmente à pesquisa e ao trabalho dos matemáticos profissionais,
em seus grupos de discussão, aceitação e divulgação por meio de textos especializados que
76
admitem a complementação e a circulação de idéias necessárias à produção continuada e
cumulativa do conhecimento. O texto científico escrito é formal e precisa ser complementado
na apresentação ao grupo de especialistas que o valida com explicações orais sobre sua
gênese, não incluída no texto escrito, por meio do uso da língua materna. Já o discurso
pedagógico é rico em formas de apresentação, nas quais interagem posturas, metodologias,
didáticas, textos escritos e falados para a comunicação do conhecimento já solidificado,
disponível e reproduzido, em um modo quase-formal. Para a compreensão dos discursos
matemáticos precisamos de uma interpretação dos textos que lhe são próprios, que provoque
a meta-compreensão dos conteúdos em seu cenário contextual e suas decorrências. Com isso,
as práticas científicas e pedagógicas da Matemática são significadas social e historicamente
na sala de aula nas interpretações dos discursos trabalhados. Assim,
“O texto matemático tem um estilo que o diferencia de qualquer outro texto.
Construído a partir de uma gramática própria, a Lógica Matemática, e explicitado
com os recursos da linguagem artificial, no sentido de ser constituída por símbolos
que pretensamente dispensam semântica, o texto matemático é apresentacional no
sentido de ocultar os caminhos de elaboração das argumentações nele expostas. Re-
traçar essa trajetória de construções é um dos papéis que alunos e professores têm à
frente” (Bicudo & Garnica, 2003, p. 55).
Na produção de significados dos textos do discurso pedagógico da Matemática ocorre
uma reconstrução de conhecimentos já disponíveis, em ambientes heterogêneos que exigem o
uso de aproximações possíveis entre termos matemáticos e termos da língua materna, o apoio
de metáforas ilícitas que sejam formas de aproximação ao que o texto diz e até o apoio de
erros conceituais. Assim, é por meio do reconhecimento das teias de produção do texto
matemático, dos jogos e negociações que fazem dele o que é, das articulações com sua
gênese extra-textual que o professor pode assumir uma postura crítica frente ao texto
matemático.
Com essa visão filosófica de interpretação do texto matemático em Educação
Matemática, justificamos dois pontos importantes de nossa pesquisa: em primeiro lugar,
buscar abordagens da História da Matemática que dêem o contexto de produção dos
conhecimentos matemáticos que permitam significá-los e em segundo lugar entender a
reprodução do conhecimento matemático na escola como uma instância de produção de
novos significados para os conhecimentos matemáticos. Pelo modelo da tranposição didática
77
de Chevallard, o conhecimento adquirido na escola não é o conhecimento cotidiano e também
não é o conhecimento científico: as adaptações, simplificações e outras transformações que
ocorrem na transmissão do conhecimento científico produziriam um “conhecimento escolar”:
“os conhecimentos são apresentados como algo acabado, despersonalizado,
socialmente neutro, resultado da aplicação de um rigoroso método dedutivo do qual
não participaram a intuição, a dúvida, a controvérsia ou o erro. O conhecimento
científico aparece como um conhecimento definitivo e fundamentado logicamente,
completamente diferente do pensamento cotidiano” (Gómez-Granell, 2002, p. 20).
Em sentido contrário, os historiadores da ciência têm percebido na prática da sala de
aula de matemática uma instância de desenvolvimento de práticas matemáticas ligadas à
circulação de conhecimentos matemáticos que permite, entre outras coisas, que a própria
matemática se renove em relação a outras práticas sociais.
3.3 - As relações entre a escola e o conhecimento matemático
As discussões sobre as relações entre os saberes escolares (os produzidos no interior
da instituição escola) e os saberes científicos (os produzidos pelos cientistas) têm sido
reelaboradas pelos historiadores da ciência que vêem a dinâmica das ciências apoiada na
circulação de objetos e de saber-fazer. Essa visão indica um caminho para se considerar o
saber escolar como uma forma de saber científico, uma vez que o saber escolar é um dos
modos segundo os quais as práticas científicas podem ser expressas e contesta o modelo da
transposição didática de Chevallard (Valente, 2001, p. 212-216).
Em Valente (2001, p. 216) encontramos uma referência ao exemplo dado por Bruno
Belhoste, pesquisador da história dos saberes junto ao INRP – Institute National de
Recherche Pédagogique de Paris em uma conferência apresentada nesse mesmo instituto em
janeiro de 1995: a geometria descritiva seguiu o caminho contrário sugerido pelo modelo que
vê na escola uma instância de transmissão e vulgarização do conhecimento matemático:
criada no século XVIII nas escolas de engenharia da França foi repassada para a comunidade
de matemáticos da época. Assim, não existiria uma esfera autônoma de produção teórica, ao
contrário, as várias atividades intelectuais relacionadas às diferentes práticas que envolvem a
78
matemática em diferentes contextos seriam partes integrantes da produção/invenção do saber
matemático:
“Considerando, então, que a produção científica está sempre envolvida em
contextos específicos, responsáveis por seu desenvolvimento, é parte integrante dessa
produção, a sua reprodução. Assim, o ensino caracteriza-se como uma dessas
modalidades. A análise dessa modalidade de reprodução revela não somente o
caráter importante da transmissão do saber, mas também o papel que o ensino tem,
na própria constituição da Matemática enquanto ciência” (Valente, 2001, p. 217).
Dessa forma, as relações entre os saberes tradicionalmente aceitas, que vêem a
comunicação e a transmissão do conhecimento matemático como atividades secundárias em
relação à sua produção caem por terra: o historiador não teria como separar a produção
matemática de sua reprodução. Ao contrário, focaria seus estudos na circulação dos textos e
das práticas que trabalham o conhecimento matemático:
“A redefinição do entendimento do que são práticas científicas, operada pela
Nova História das Ciências, nos dá a possibilidade de perceber os saberes escolares,
e em particular a Matemática Escolar, como uma das formas de apropriação e
reelaboração da prática matemática. Fica, desse modo, posta em xeque a escrita
tradicional da História da Matemática. Evidencia-se uma Nova História da
Matemática. Uma nova escrita para a história da matemática que rejeita o texto
cronológico, recheada de biografias de matemáticos ilustres e suas histórias
desencarnadas dos contextos históricos e sociais. Inserida no movimento maior de
reescrita da história das práticas científicas, uma nova história para a matemática
busca evidenciar, dentre outras coisas, o significado de prática teórica, qual seja, o
da dimensão de saber-fazer inerente ao trabalho matemático-teórico, que repousa
sobre um conjunto de procedimentos selecionados, que é sempre material e
culturalmente situado (Pestre, 1996, p.29)” (Valente, 2001, p. 216).
Assim, a reescrita da História da Matemática deveria abordar o contexto cultural da
produção e da circulação dos conhecimentos matemáticos, incluindo a Matemática Escolar
como uma das formas de apropriação e reelaboração da prática matemática. Com esses
argumentos, Valente (2001, p. 218) apresenta suas considerações no sentido de se rejeitar, no
âmbito da história cultural da matemática, a separação da escrita da história da matemática e
79
de sua forma escolar. Para este autor, teríamos a possibilidade de entendermos com maior
nitidez as práticas do fazer matemático por meio de um estudo histórico da profissionalização
do meio matemático, da análise da estruturação didática que orienta o campo intelectual da
produção matemática e da contribuição das atividades didático-pedagógicas ao
desenvolvimento das práticas matemáticas.
Miguel (2005, p. 143) também aborda essa temática. Para ele, falar em educação
matemática escolar em vez de matemática escolar nos remete a uma análise da importância
do questionamento sobre as diferentes formas e diferentes medidas em que as práticas sociais
de caráter educativo participaram da produção da cultura matemática ou da cultura de um
modo geral. Assim, a atividade matemática não se manifestaria somente na prática social dos
indivíduos que se propõe a produzir cultura matemática:
“Isto implica que os chamados matemáticos profissionais – pelo fato de serem
também professores, mas não exclusivamente por essa razão – realizam uma
atividade educacional, bem como produzem cultura educacional – ainda que não seja
essa a dimensão intencional, consciente e predominante de sua atividade. Mas
implica que outras comunidades de prática – nela incluída, é claro, a comunidade de
educadores matemáticos – também realizam atividade matemática e também
produzem cultura matemática – ainda que não seja essa a dimensão intencional,
consciente e predominante de sua atividade”.
Miguel (2005, p. 148) acredita que investigações comparativas desenvolvidas nos
campos da história, filosofia e sociologia da educação matemática poderiam revelar o jogo de
relações assimétricas de poder em que a educação matemática escolar se acha envolvida:
“Tais saberes poderiam subsidiar uma avaliação qualitativa mais profunda
daquilo que atualmente ocorre nas salas de aula, tais como: as resistências dos
estudantes ao processo de apropriação da cultura matemática; as dificuldades
apresentadas pelos professores no processo de recepção, ressignificação e
transmissão da cultura matemática; a artificialidade das práticas escolares que
envolvem a matemática; a natureza algorítmica e pouco significativa da educação
matemática escolar, etc.”
80
Como exemplo, Miguel (2005, p. 148) mostra que não basta investigar apenas a
natureza das práticas educativas atuais que envolvem a trigonometria: é preciso também
investigar como e porque essas práticas escolares se constituíram e se transformaram e que
influências elas podem ter recebido de outras práticas sociais, como topografia, navegação,
astrologia, astronomia etc.
Para Schubring (1998) um dos grupos sociais que agem como sujeitos de produção e
de transformação do saber matemático é a escola, e a elementarização do conhecimento
matemático na transformação de saber matemático para o saber escolar é ainda um campo
aberto de pesquisa sobre a forma de influência dos grupos sociais na produção e
transformação do saber. Assim, ele contesta a forma unilinear de concepção do trânsito dos
conhecimentos matemáticos, presente na teoria da transposição didática de Chevallard. Ele
cita o exemplo da Prússia do século XIX, época em que os professores de ginásio formaram
um grupo mantenedor de saberes que ao mesmo tempo produziam saberes matemáticos,
reafirmando a função produtiva do ensino para o desenvolvimento da Matemática.
Nesse mesmo sentido, Schubring (1998) faz uma descrição, normalmente não
discutida na História da Matemática, das diferentes formas de aceitação das quantidades
negativas como legítimos conhecimentos matemáticos na França, na Inglaterra e na
Alemanha, os três países com maiores comunidades de matemáticos na segunda metade do
século XVIII. Enquanto na Inglaterra havia uma rejeição quase absoluta dos números
negativos, na França havia um posicionamento ambivalente e na Alemanha ocorria uma clara
aceitação, principalmente em decorrência dos posicionamentos filosóficos diferentes em cada
país.
Como conseqüência, na Inglaterra a subtração só era possível quando o subtraendo
não fosse maior que o minuendo e negava-se que existissem duas raízes quadradas de um
mesmo número e duas raízes para uma equação do segundo grau. Na Alemanha, com a
aceitação da “teoria das grandezas opostas”, que abria a possibilidade das grandezas serem
opostas e anularem-se mutuamente, a subtração era sempre possível e, antes de 1800, já se
chamava a atenção para a diferença entre o sinal da operação e o sinal que precede o número
e entre o conceito de grandeza e o conceito puro de número. Na França, encontramos na
Enciclopédia dois artigos com posições opostas: enquanto o artigo de d’Alembert rejeitava os
números negativos como solução de um problema, um outro artigo admite os números
negativos como equivalentes aos positivos e designados como “menores que nada”. Depois
81
de 1800, com a negação feita por Carnot de que a álgebra tivesse uma função autônoma e a
afirmação de que ela apenas traduzisse conceitos e asserções geométricas, houve um
rompimento com a relativa aceitação dos números negativos. A partir dessa não-aceitação,
houve na França uma separação radical entre álgebra e aritmética: a aritmética ocupava-se
somente dos números positivos e os números negativos foram introduzidos na álgebra
somente a partir da segunda metade do século XIX.
Dessa forma, o ambiente cultural formado por uma comunidade de matemáticos se
apresenta como um sujeito social na História da Matemática que estabelece os significados
dos conceitos e validam a imposição de teorias e epistemologias. Assim, existe
“uma especificidade nacional e cultural do rigor matemático, segundo a qual
asserções e teorias que são reconhecidas como parte do saber matemático no interior
de uma cultura, numa cultura estranha são rejeitadas como não-matemáticas”
(Schubring, 1998, p. 25).
Ao discutirmos o ensino de matemática, não há como deixar de perceber a forma
como a matemática tornou-se o que é devido ao contexto eurocêntrico de sua produção,
aceitação, divulgação e reprodução e de que o modo de escrever a História da Matemática
pode reforçar a imagem da matemática aceita como ciência como única forma “correta” de
matemática existente. Do mesmo modo, ao pensarmos na multiplicidade de abordagens
possíveis na História da Matemática em termos de diferentes culturas, diferentes práticas
sociais e diferentes relações de poder, percebemos que a História da Matemática escrita em
termos de genialidade de alguns matemáticos brilhantes, de nações dominantes política e
economicamente ou de raças específicas se torna mais um instrumento de mitificação da
Matemática. W. S. Anglin, professor do departamento de Matemática e Estatística da
Universidade McGill, em Montreal, no Canadá, é contundente em suas afirmações:
“Não há razão pela qual não se possa escrever uma história da matemática de
um ponto de vista exclusivamente comunitário. Ao invés de selecionar um único
indivíduo para o teorema, o historiador poderia assinalar as capacidades
tecnológicas ou as necessidades sociais que foram responsáveis pelo fato. Ao invés de
glorificar a pessoa de sorte que conseguiu ser a primeira a realizar a descoberta, o
historiador poderia exaltar as idéias éticas da comunidade que a conduziram a
82
educar as pessoas de modo que chegassem, inevitavelmente, a essa descoberta”
(Anglin, 2001, p. 14).
Para Anglin, as conquistas da Matemática transcendem os limites políticos e genéticos
e a pesquisa típica em Matemática é um dos melhores exemplos em termos de cooperação
internacional, sendo que a produção cultural de uma sociedade depende do esforço e da
criatividade de toda população, que constrói os quadros históricos. Do mesmo modo, ele
critica a prática de se contar a História em termos cronológicos, que pode induzir o estudante
a construir uma visão estereotipada das sociedades, como a de que os gregos foram os
primeiros verdadeiros matemáticos, que na Idade Média não houve produção matemática e
que os modernos são simplesmente perfeitos. (Anglin, 2001, p. 17).
Em uma perspectiva semelhante, um interessante trabalho é apresentado em Cury &
Vianna (2001), desenvolvido com alunos de Licenciatura em Matemática. A partir da
comparação entre diferentes definições encontradas nos livros didáticos sobre ângulos, os
autores mostram as conclusões da análise feita pelos alunos sobre as versões apresentadas.
Nessa análise, os futuros professores percebem que a decisão sobre a correção ou não de uma
definição não é simples e objetiva. Ao contrário, envolve a aceitação dos matemáticos,
obediência a critérios aceitos pela comunidade científica e a avaliação do contexto em que a
definição será usada. Em relação ao ensino, os futuros professores chegam à conclusão de
que a clareza e a concisão de uma definição dependerão das características cognitivas dos
alunos e do contexto da disciplina. Os autores citam o exemplo das diferenças de definições
nos livros destinados a cursos de Cálculo Diferencial e Integral para estudantes de
licenciatura e para estudantes do bacharelado. Por fim, os autores concluem que se o
professor tem a crença de que a Matemática pode ser expandida e modificada, sendo uma
ciência falível e corrigível como as outras ciências, ele também terá a possibilidade de
escolher uma definição que melhor se adapte às necessidades de seus alunos. Desse modo, os
autores constroem com seus alunos/futuros professores, num processo de aproximações
sucessivas e sínteses provisórias, uma história de práticas pedagógicas do que está
acontecendo em sala de aula e que possibilita a mudança de crenças no pensar do professor
sobre o rigor matemático, a escrita da Matemática e as maneiras de se abordar os conteúdos
na escola.
Por outro lado, entendemos que ao pretendermos uma outra análise da História da
Matemática, com uma maior visão dos processos de evolução dos conceitos em seus
83
contextos culturais próprios, podemos, mesmo em relação à História da Matemática
tradicional, traduzir as situações de uma forma diferente das normalmente veiculadas nos
livros didáticos, que ilustram os tópicos abordados com biografias de matemáticos ilustres,
exemplos históricos descontextualizados e pouco significantes para o aluno.
Mesmo em relação ao estudo das biografias de grandes matemáticos, acreditamos que
outras leituras podem ser feitas e revelar aspectos unificadores em uma leitura transversal das
diversas histórias de vida. Podemos, por exemplo, discutir a questão da afetividade e da
capacidade do professor de influenciar positivamente o interesse dos seus alunos pela
Matemática, como fizeram Fourier, Monge, Weierstrass, Poincaré e Kronecker, entre outros
tantos matemáticos que tiveram um grande número de matemáticos criativos entre seus
alunos e mantiveram com eles um constante diálogo humano, caloroso e aberto. Tal
discussão abordaria a questão da “dádiva”, da necessária doação pessoal, emocional e afetiva
que acompanha o trabalho do professor: independentemente do caráter profissional dado à
docência, sempre existe o envolvimento pessoal e a influência positiva dos laços sociais é
constatável nas biografias de muitos matemáticos por meio de relatos registrados, do
prosseguimento pelos alunos das pesquisas iniciadas por seus professores etc.
A questão dos registros dos processos de criação em matemática também pode ser
abordada. Gauss, por exemplo, apesar de toda sua força criativa, nunca apreciou lecionar e só
guardou as versões finais e corrigidas de seus trabalhos, impedindo um maior entendimento
de seus processos criativos pelos que analisaram suas obras. Monge e Cauchy, por sua vez,
foram matemáticos-professores que produziram grande quantidade de material didático e
também influenciaram seus alunos nesse sentido.
Outra questão importante a ser trabalhada é a qualidade das criações que alguns
matemáticos, como por exemplo, Galois e Hermite, alcançaram em Matemática avançada,
embora tivessem enfrentado grande dificuldade com a matemática elementar, cheia de regras
a serem memorizadas. Uma biografia com essas características serviria como um exemplo
para que o aluno não enxergasse como uma limitação sua o não entendimento de alguma
parte da Matemática e continuasse investindo esforços para aprender outros conteúdos
matemáticos aos quais se identificasse melhor.
Também podemos apontar a importância da formação filosófica de Euler, Cauchy,
Jacobi, Kummer, Kronecker e Poincaré para suas produções em matemática e em suas
84
pesquisas e publicações científicas. Com essas releituras, o conhecimento desenvolvido pelos
matemáticos criativos adquire uma conotação menos “endeusadora” da convencionalmente
apresentada e pode ser discutido em aspectos mais abrangentes e formadores do que quando é
posto na forma de uma capacidade extraordinária de pessoas geniais.
Assim, acreditamos que um conhecimento mais amplo da História da Matemática,
envolvendo os aspectos sociais, filosóficos e psicológicos da produção, aceitação e
divulgação do conhecimento matemático contribuiria para a construção de narrativas que
dessem novos sentidos para o ensino da Matemática. Nas palavras de Garnica (2005, p.48):
“A Historiografia, no mundo contemporâneo, dilui-se (sem perder sua
identidade como historiografia, segundo alguns) numa série de relatos, narrativas,
cuja análise não está nas mãos de um único agente estavelmente radicado numa ou
noutra região de inquérito. No mundo contemporâneo, numa sociedade facilmente
caracterizada como refém da imagem e do consumo, essa massa de gêneros
historiográficos tem acolhido como analistas sociólogos, antropólogos, artistas e
investigadores culturais das mais diversas procedências num contínuo, necessário e,
segundo avalio, produtivo diálogo. As fronteiras inter-áreas tornam-se fluidas, e já
são mais negociadas e negociáveis as proibições quanto a cruzá-las. E não se poderia
pensar a Historiografia fora desse panorama atual de interlocuções, pois é nesse
presente que surgem as questões do historiador (ou àqueles que têm os historiadores
como interlocutores mais próximos). A História é – e parece não haver mais embate
algum acerca dessas disposições de Marc Bloch – o estudo dos homens no tempo,
vivendo em comunidade. É uma história-problema que elege temas presentes que
podem ser analisados a partir de um olhar retroativo, uma busca ao passado
(próximo, ou remoto). Uma história que também permite ser história do agora. Uma
história que, segundo Souza, nos alerta que o passado comportava inúmeros futuros
além daquele que se processa no presente. Uma história que visa informar o presente
e nos ajuda a compreender (não justificar) nossa própria experiência como seres
sociais.”
Entretanto, para que o professor trabalhe com um ensino voltado para a compreensão
da realidade natural e social de forma a permitir que os conceitos estudados tornem-se
instrumentos para uma análise ativa das situações, acreditamos que a História da Matemática
85
a ser problematizada precisa estar necessariamente ligada à cultura que a produziu e
apresentar as construções humanas ligadas aos seus significados compartilhados.
Mais uma vez percebemos que procurar um diálogo com as formas de produção de
um conceito pode mostrar ao estudante e ao professor que a Matemática, como as demais
ciências, não está definitivamente construída, que teorias aceitas em determinadas épocas
foram superadas, que a produção da Matemática não se assenta em indivíduos superdotados e
distantes do homem comum e que o pensamento científico se modifica nos diversos meios
culturais. Desse modo, a História da Matemática se faz também no tempo presente da escola,
através de uma análise crítica das práticas, dos livros didáticos, da escolha de conteúdos, dos
modos de se trabalhar esses conteúdos, etc., que transformam e reproduzem os
conhecimentos matemáticos, gerando novos conhecimentos:
“Assim, a reprodução, isto é, as operações através das quais o sentido é
localmente produzido, é parte integrante da atividade de produção/invenção do saber
matemático” (Valente, 2001,p. 217).
Desse modo, acreditamos ser de importância fundamental a preparação do professor
para uma compreensão mais profunda de sua própria prática. Nesse sentido, encontramos nos
estudos sobre a presença da História da Matemática na formação de professores a constatação
de que essa disciplina não tem recebido a atenção que julgamos necessária, frente ao que até
agora apresentamos.
3.4- A História da Matemática na formação de professores no Brasil
Apesar da recomendação pelos próprios documentos oficiais de educação em relação
à utilização didática da História da Matemática, nos diversos congressos, encontros e
seminários sobre Educação Matemática, História da Matemática, História na Educação
Matemática e afins, muito se discute sobre as dificuldades da integração da História da
Matemática em Educação Matemática: poucos são os cursos superiores de licenciatura que
trabalham essa disciplina, o material produzido sobre História da Matemática não é suficiente
86
e, além de tudo, falta o reconhecimento da escola como instância produtora de conhecimento
matemático.
Segundo Silva (2001, p. 144), a disciplina de História da Matemática só foi tornada
obrigatória no Instituto de Matemática da USP em 1968, apesar de estar prevista no currículo
desde 1934, data de criação do curso de Matemática. A oferta desta disciplina passou por
sérias dificuldades, como a ausência de bibliografia em língua portuguesa e a falta de
professores preparados para a ministrar. Em 1985, membros da Sociedade Brasileira de
Matemática (SBM) e da Sociedade Brasileira de Matemática Aplicada e Computacional
(SBMAC) prepararam um documento sugerindo um currículo mínimo para a licenciatura em
Matemática que, apesar de não incluir a disciplina de História da Matemática, indicava que
ela fosse oferecida pelas instituições conforme a disponibilidade e o interesse dos professores
capacitados. Para Silva, o prestígio da SBM entre os professores de Matemática serviu para
que várias universidades seguissem esta sugestão e incluíssem a disciplina História da
Matemática em seus currículos, no elenco das obrigatórias ou das opcionais.
Entretanto, ainda de acordo com Silva (2001, p. 147), os cursos que oferecem essa
disciplina diferem significativamente em relação aos conteúdos de suas ementas, à
bibliografia adotada, à carga horária e aos pré-requisitos estabelecidos. Além disso, embora
no Brasil a maior parte das Instituições de Ensino Superior seja privada, a disciplina de
História da Matemática é mais frequentemente oferecida nas universidades públicas e,
mesmo que já exista um número razoável de obras sobre História da Matemática publicadas
em português e espanhol, muitas estão esgotadas e o leitor em geral tem dificuldades de
acesso à bibliografia especializada. Por outro lado, embora temas específicos sobre História
da Matemática estejam incluídos na avaliação nacional dos cursos de graduação do país, o
provão, e existam recomendações nos atuais Parâmetros Curriculares Nacionais do MEC para
que os professores apresentem os conceitos em uma visão histórica, contraditoriamente a
História da Matemática não está incluída nos conteúdos mínimos exigidos pelo MEC para os
currículos de Matemática.
Como sugestões para a formação inicial ou continuada de professores em História da
Matemática, Silva (2001, p. 160) sugere o trabalho cooperativo entre o professor de
Matemática e o de História ou Filosofia para superar as dificuldades metodológicas no
trabalho com fontes primárias, análise de dados, tratamento de informações etc.; a realização
de seminários e pesquisas com fontes primárias; a vivência de atividades aplicáveis na prática
87
de sala de aula; a apresentação de referências bibliográficas para o estudo da História da
Matemática e a discussão sobre estratégias para a utilização de fontes primárias.
Percebemos que o trabalho com fontes originais pode propiciar uma amplo trabalho
com a História da Matemática em sala de aula: a construção de significados, a
contextualização, a interdisciplinaridade, a construção dos conceitos etc. Passaremos então a
um estudo sobre esse tema, esperando contribuir para uma maior visão sobre as
possibilidades desse trabalho em sala.
3.5 - O uso de fontes originais na sala de aula de matemática
Furinghetti (1997) apresenta um estudo de caso com quatro experiências do uso de
fontes originais em sala de aula, que ela classifica de acordo com as diferentes visões que o
professor tem da história da matemática:
A experiência do professor A procurava trabalhar a imagem da matemática construída
pelos alunos: usando textos clássicos da história da matemática e enciclopédias, os alunos
eram apresentados a problemas históricos e epistemológicos da matemática, participavam de
debates guiados pelo professor e engajavam-se em pesquisas pessoais sobre história da
matemática em textos clássicos e enciclopédias. Os alunos eram estudantes de um liceu de
artes que não possuíam uma imagem favorável da matemática. Após as pesquisas, os
estudantes foram convidados a fazer cartazes, pôsteres e desenhos sobre assuntos
relacionados à matemática, que deveriam ser acompanhados de notas explicando suas idéias.
Ao final do projeto, pode-se verificar que a história da matemática foi um bom meio para
trabalhar com as crenças e concepções prévias dos alunos e construir uma imagem positiva da
matemática.
A professora B via a história como uma fonte de problemas e usava textos do século
XVI para extrair problemas aritméticos que permitissem o estudo da passagem da aritmética
para a álgebra. A professora responsável por esta experiência era uma pesquisadora de livros
aritméticos do século XVI e seu profundo conhecimento na área ajudou-a a escolher
problemas adequados ao seu trabalho: os estudantes trabalharam com fotocópias dos originais
88
holandeses e foram encorajados a descobrirem analogias entre os problemas antigos e os
modernos e compararem os velhos métodos de resolução com os seus próprios métodos. Para
a professora B, os problemas históricos dão aos alunos novas visões históricas e novas visões
matemáticas; podem servir como exercícios extras no final do processo de aprendizagem ou
como aplicação de um novo tópico matemático aprendido; ou estimular os estudantes a
desenvolver suas próprias estratégias de resolução no início de um processo de
aprendizagem.
O Professor C trabalhou a história como uma atividade opcional para estudantes
voluntários de um liceu científico italiano. O trabalho que Furinghetti (1997) descreve será
pormenorizado mais adiante, quando apresentarmos o ICMI Study sobre fontes originais.
Trata-se da experiência com fontes originais para o estudo das cônicas. O principal objetivo
declarado pelo professor para o uso da história era treinar os estudantes para pesquisar fontes
históricas, baseado em sua convicção pedagógica de que isto poderia criar um modo de
pensar que aumentasse o entusiasmo pela descoberta e fortalecesse o processo de
compreensão e de discussão das idéias.
A professora D via a história como um método diferente para abordar conceitos. Ela
descreve seu trabalho com estudantes do liceu científico relativo ao cálculo diferencial e
integral e à prova como método de demonstração em Matemática. No cálculo diferencial e
integral, ela reelabora um texto de Isaac Barrow, de 1674, para trabalhar os conceitos de área
e de integral. Sobre demonstrações matemáticas, ela apresenta aos alunos exemplos de provas
realizadas pelo método de análise e síntese, usado no passado para pesquisa e ensino. Ela
considera que os livros atuais apresentam apenas um dos modos e que as provas dos teoremas
estudados em classe foram desenvolvidas pelo duplo método de análise e síntese. Assim, um
dos valores da apresentação histórica seria a capacidade de fazer as regras serem explicitadas,
que normalmente é frustrada no ensino usual. A professora observou que os estudantes
apresentados a este método de prova conseguiram aplicá-lo livre e facilmente a diferentes
situações, mesmo quando não solicitados pelo professor a fazê-lo.
No “New ICMI Study Series” volume seis sobre História na Educação Matemática,
encontramos no capítulo nove os estudos de um grupo de trabalho sobre o uso de fontes
originais como uma das várias possibilidades geradas pela integração da História da
Matemática no ensino da Matemática (Jahnke et al., 2000, p. 291-398). Tanto na formação
de professores quanto na prática em sala de aula, o uso de fontes originais representaria um
89
projeto que, apesar de demorado e trabalhoso, resultaria em um entendimento aprofundado
dos significados matemáticos em questão. A seguir, apresentaremos algumas das idéias
discutidas neste estudo:
Para trabalhar com fontes originais precisamos fazer uma análise do contexto em que
aquelas idéias surgiram e criar um paralelo entre a linguagem matemática atual e a usada na
época. Deste modo, ler as fontes primárias auxilia entender as idéias trazidas pelos materiais
secundários, descobrir novas ligações entre as idéias, discernir os cursos da história de um
tópico, muitas vezes omitido nas fontes secundárias, e colocar em perspectiva algumas
interpretações, julgamentos de valor e até falsas apresentações encontradas na literatura. A
leitura das fontes originais deve levar em consideração que o autor escrevia para o público de
sua época, não podendo ser analisada unicamente do ponto de vista de nosso conhecimento
atual.
Embora a leitura dos textos históricos em classe introduza a História da Matemática
em sala de aula de um modo explícito, ela deve estar sempre integrada ao conteúdo
trabalhado e não ser vista como uma atividade extra. Isto pressupõe que o professor tenha um
conhecimento da história e dos conteúdos matemáticos tratados, o que envolve uma
preparação adequada para o trabalho com fontes originais.
A crença comum de que a matemática tem uma natureza estática, ou seja, de que os
conceitos uma vez definidos não são alterados, pode ser trabalhada pelo entendimento da
evolução das idéias matemáticas. Mesmo os professores e estudantes que não compartilham
esta crença, muitas vezes não tiveram experiências que mostrassem esta evolução e o trabalho
com fontes originais pode oferecer oportunidades para um contato não mediado com o modo
com que as idéias eram definidas em uma determinada época. Além disto, as fontes primárias
apresentam os diferentes sistemas de representação usados no passado e podem contribuir
para que o estudante perceba que nosso sistema corrente de representações é apenas um dos
possíveis para fazer operações, tratar e comunicar conceitos. Pela comparação e contraste
entre nossas representações e aquelas que aparecem nas fontes originais, os estudantes podem
perceber o papel essencial das representações na concepção e evolução das idéias. Como
exemplo, os autores do estudo citam a descrição de uma atividade feita com um extrato do
Papiro de Rhind, de decifrar as operações aritméticas envolvidas com a ajuda de um
‘dicionário’ dado pelo professor, explicar como estas operações funcionam e aplicá-las a
outros exemplos. A partir destas atividades, o professor discute com a classe as vantagens e
90
desvantagens do sistema de numeração egípcio e as compara com o sistema decimal. Os
estudantes encaram a atividade como um grande quebra-cabeça: primeiro por ter que
entender o que o texto diz e depois por ter que atribuir o significado e o modo de operar
próprios ao período estudado. Ao fazer as comparações entre o que eles trabalharam na fonte
original e as representações da escola, os estudantes redescobrem propriedades perdidas no
“automatismo” do ensino.
Além disso, o estudo das fontes originais também possibilita que o estudante perceba
a relatividade da idéia de verdade. O caráter usual de representação da atividade matemática é
a de que ela independe do tempo e do lugar, é uma produção de claras e corretas respostas a
problemas. Uma documentação da atividade matemática genuína mostra os percalços
encontrados pelos matemáticos e dá ao estudante uma visão mais legítima e humana da
evolução das idéias. Como exemplo, os autores do estudo apresentam as dúvidas dos
matemáticos nos séculos XVI e XVII sobre a natureza dos números irracionais e a influência
que a representação com infinitos dígitos de um irracional teve para o seu reconhecimento
como número. A verificação da importância da representação de um conceito para a sua
conceitualização, questionamento e aceitação ou rejeição torna-se mais um motivo para a
reflexão dos alunos. Assim, ler uma fonte pode ser um caminho para se dialogar com as
idéias expressas e relacionar a matemática com o mundo real, com a filosofia prevalecente na
época e com outras áreas do conhecimento.
Outra razão para se usar as fontes primárias seria o estilo didático e claro dado às
primeiras explanações sobre um assunto, antes que ele seja elaborado de forma mais
aprofundada. Durante o século XX, muitos textos adotaram justificações formais para as leis
formais da matemática, o que deixou muitos estudantes alienados. As leis básicas da
matemática expostas nas fontes primárias são mais ligadas à linguagem diária e ao senso
comum, podendo enriquecer o repertório didático dos professores. As fontes primárias
também podem oferecer ao professor uma visão dos tópicos centrais ensinados na escola no
passado e a evolução dos currículos. Como exemplo, podemos verificar que nos livros-texto
antigos de aritmética, a ênfase era dada à exatidão dos cálculos, com sessões inteiras
dedicadas à conferência dos valores obtidos, como ‘a prova dos noves’; enquanto nos livros
de hoje, com a utilização franqueada das calculadoras, a ênfase dada à aritmética se relaciona
às estimativas, às respostas aproximadas e aos signos de literacia matemática.
91
A interpretação das fontes primárias envolve um processo hermenêutico, isto é, de
interpretação entre o significado do texto na visão de quem o escreveu e o significado que ele
adquire para um leitor moderno. Assim, sempre há um caráter hipotético e intuitivo na
interpretação: ela tem um processo circular de formular hipóteses e verificar se estão de
acordo com o texto. Em relação ao texto científico esta circularidade é dupla: em um primeiro
círculo, os sujeitos científicos estavam envolvidos no processo hermenêutico de criar teorias
e checá-las em relação aos fenômenos que eles queriam explicar ou aos objetivos que
queriam alcançar; no segundo círculo o leitor moderno tenta entender o que aconteceu. Deste
modo, temos uma complexa teia de relações entre nossa interpretação de uma teoria ou de um
conceito e a interpretação do autor original, que deve ser entendida pelo professor para
possibilitar aos alunos um clima de geração de hipóteses a respeito de um texto. De fato, o
cerne da filosofia educacional do uso de fontes primárias é o pensar como outras pessoas que
viveram em outros tempos: é colocar-se no círculo primário da produção de um conceito ou
de uma teoria e perguntar-se sobre as suposições teóricas que a pessoa tinha em mente. O
estudante é estimulado a refletir a respeito de seus próprios pontos de vista sobre um
problema subjetivo e esta reflexão se torna objetiva pelo texto que ele está estudando: as
idéias do aluno são pré-requisitos para o processo hermenêutico.
Mesmo quando as fontes originais estão escritas na língua materna, o estudante
precisa de competência lingüística para poder entendê-las. Para a leitura das fontes originais,
temos no mínimo três linguagens diferentes: a linguagem matemática das lições usuais, a
linguagem da fonte original e o modo pessoal do aluno de falar sobre matemática. Assim, a
integração da História da Matemática em sala de aula pelo uso de fontes originais contribui
para o desenvolvimento da habilidade de comunicar e traduzir idéias e fatos em linguagem
matemática. Tal habilidade pode ser desenvolvida pelo professor pedindo aos alunos que
escrevam seus próprios textos e falem sobre matemática.
Os autores do ICMI Study em questão defendem a idéia de que a leitura das fontes
originais deve ser parte obrigatória da educação matemática de professores de todos os níveis,
não só como contribuição para as suas competências matemáticas, mas também como
condição necessária para que eles incluam componentes históricos em suas aulas de
matemática. Apresentam a seguir exemplos de integração de fontes originais na formação
inicial de professores e na sala de aula da escola.
92
Para a formação de professores são apresentadas experiências vivenciadas no
Marrocos, com relação às medidas egípcias de ângulos descritas no Papiro de Rhind e na
Noruega, pelo estudo de fontes originais para compreender os números complexos na
geometria e na álgebra.
O primeiro exemplo de integração das fontes originais na sala de aula descreve uma
experiência na Alemanha e é relativo à história da construção de um túnel na Ilha de Samos,
pelo engenheiro Eupalinos por volta de 530 A.C. A perfuração do túnel foi feita
simultaneamente pelas duas extremidades e as duas partes se encontraram sob a montanha.
Os estudantes discutiram os métodos possíveis para se conseguir determinar a direção correta
para a perfuração e escreveram suas hipóteses em um pequeno ensaio, demonstrando que
mais de dois terços da classe foram capazes de entender o problema e expressá-lo em sua
própria linguagem.
O segundo exemplo vem da Itália, com uma atividade planejada e desenvolvida por
um professor secundário, como uma atividade extra-curricular com alunos voluntários, por
meio do uso de um texto francês antigo que fazia uma revisão didática sobre trabalhos
clássicos de óptica. Os alunos fizeram a tradução do texto com ajuda indireta do professor e
os símbolos do texto original foram mantidos. Na avaliação da experiência os alunos
mostram-se colaborativos e apreciaram positivamente os resultados. Em suas respostas
fizeram afirmações como: foi prazeroso fazer matemática; foi fácil perceber a evolução da
matemática e certificar-se de que existem diferentes pontos de vista para solucionar um
problema; o método de trabalho permitiu que se verificasse como se dá a construção de um
teorema; o estudo de textos originais permite a participação mais ativa no trabalho; foi mais
difícil entender a linguagem do que o espírito do trabalho; trabalhar diretamente com o texto
requer uma reflexão mais cuidadosa sobre os problemas e um melhor entendimento do seu
significado: um aparentemente simples problema revela aspectos inesperados; torna possível
ir além dos teoremas e chegar às raízes da matemática; a experiência mudou a imagem da
matemática escolar; o trabalho permitiu uma evolução passo a passo do modo de pensar e
permitiram um aprendizado pelo próprio esforço etc.
Os autores do ICMI Study, apesar de listarem uma série de aspectos positivos das
experiências descritas, descrevem as razões pelas quais acreditam ser difícil generalizar as
conclusões: trata-se de atividades extra-curriculares, com alunos voluntários; a fonte original
é de um autor desconhecido; lida com uma linguagem não dominada pelos estudantes; o texto
93
foi concebido como um texto didático; os professores envolvidos possuiam uma notável
competência em história da matemática e familiaridade com o uso de fontes originais.
Acrescentam o fato de que a literatura sobre as experiências com o uso de fontes originais
apresenta trabalhos feitos com alunos de nível universitário ou, em caso de estudantes de
nível médio, em cursos opcionais. Outros exemplos apresentam uma atividade limitada, como
por exemplo, o uso de problemas aritméticos medievais em sala de aula. Além disso, citam o
problema do tempo gasto com tais atividades e enfatizam o papel do professor em uma série
de aspectos: ele precisa realmente acreditar na importância das fontes originais para o ensino,
tem que ter competência para procurar e prover materiais adequados às necessidades da
classe e precisa planejar cuidadosamente sua mediação. Como se trata de atividades a serem
adaptadas à rotina da classe, os autores também citam a dificuldade de se transmitir as boas
experiências com uso de fontes originais de um professor para outro.
3.6 - Estratégias didáticas para a integração de fontes originais:
O ICMI Study aponta a importância da escolha das fontes originais para o trabalho
com a história da matemática: os conteúdos escolhidos devem estar de acordo com os
interesses dos estudantes, serem disponíveis na língua materna ou em outra língua que o
professor ou os alunos dominem e estarem de acordo com os objetivos traçados pelo
professor. Além disto, o professor também precisa se preocupar em levar os estudantes a
conhecerem o contexto em que se deu a produção da fonte original, as características do
autor, por exemplo, se era um teórico ou um prático, sua biografia, etc. Embora não seja
necessário o rigor e o formalismo de um historiador, esta contextualização faz parte da
atividade hermenêutica envolvida na leitura das fontes históricas, que pressupõe a tríade
texto, contexto e leitor.
Embora apresente que não se tem até o momento uma abordagem elaborada e aceita
de modo geral para a leitura de fontes originais em sala de aula, o ICMI Study mostra
algumas estratégias que podem ser apropriadas pelos professores interessados de acordo com
suas necessidades em sala de aula:
94
• introdução de uma fonte: de modo direto, isto é, apresentando o texto sem qualquer
preparação prévia, para provocar questões a serem debatidas, ou indireto,
consultando a fonte após algumas atividades prévias. Como atividades prévias para
introduzir um texto original, o professor pode: apresentar problemas não rotineiros
que exijam um estudo mais aprofundado ou selecionar alguns nomes de matemáticos,
mostrar como eles estavam ligados ao contexto de sua época e, após despertar o
interesse do aluno, apresentar um extrato de fonte original para ser analisado. Outro
ponto de partida pode ser o livro didático: o professor seleciona um tema do livro
texto e apresenta um tratamento diferente para este tema em um texto antigo, para
que os alunos comparem e percebam as diferenças. Para a educação de adultos, os
autores do ICMI Study sugerem a presença de um tutor que facilite a ligação entre
diferentes textos e apresente uma síntese dos assuntos tratados.
• Análise de uma fonte e debates cognitivos: a análise de textos históricos é uma
atividade difícil e poderá ser direcionada por questões feitas pelo professor ou pelos
próprios alunos, conforme o que melhor se adequar à situação. Algumas vezes o
professor precisará adaptar o texto ao contexto do que ele pretende apresentar, mas
deve se manter o mais fiel possível ao pensamento original do autor. Ao mesmo
tempo, deve ter um cuidado especial para selecionar os textos e as controvérsias que
poderão surgir do debate sobre as idéias da fonte e os diferentes pontos de vista por
elas gerados: em algumas situações, o professor pode pedir aos alunos que se
coloquem em grupos a favor ou contra determinada argumentação. Esta atitude pode
favorecer um olhar mais aprofundado sobre razões históricas que à primeira vista
pareciam ingênuas ou errôneas.
• Construção de instrumentos de medidas: a pesquisa histórica pode revelar diferentes
concepções de medidas e as idéias encontradas nos estudos históricos podem servir
de base para a construção de instrumentos de medida e até de engenhos para
desenhos de curvas.
• Verbalização: fazer os alunos verbalizarem o raciocínio original dos matemáticos é
um exercício para que os estudantes aprendam a distinguir entre o que estava no texto
original e o que eles interpretaram do texto em questão. Esta atividade também
colabora para que os estudantes percebam as dificuldades de trabalhar o raciocínio
matemático sem o suporte de um sistema formal.
95
• Tradução: podem-se distinguir no mínimo dois tipos de traduções diferentes em
relação aos textos originais: a tradução para a linguagem matemática moderna e a
tradução de uma língua para outra. A tradução permite que o estudante entre em
contato com o pensamento e a concepção dos matemáticos.
• Validação de raciocínios: ao solicitar que os estudantes façam a validação de um
raciocínio apresentado na fonte original, o professor propicia uma oportunidade para
que eles percebam a fundamentação dos métodos usados na história e mudem suas
concepções a respeito dos métodos usados no presente.
• Comparação: a comparação entre textos de mesma época ou de diferentes épocas
permite aos estudantes perceber a evolução dos símbolos e das notações matemática,
manter o foco no essencial dos escritos matemáticos históricos e, no caso específico
da formação de professores, a comparação dos textos matemáticos também permite
abordar a história do ensino.
• Síntese: as atividades de síntese podem ser apresentadas como trabalho extra-classe,
com o uso das estratégias já mencionadas.
Assim, baseados em relatos de experiências e propostas de trabalhos, os autores do
ICMI Study apresentam uma avaliação, questões de pesquisa e suas preocupações sobre o
uso de fontes originais. Para eles as atividades de trabalho com fontes originais demandam
muito tempo e por esta razão o esforço que elas demandam em educação matemática deve ser
bem avaliado. A leitura de um texto original difere da leitura de um texto normal de
matemática: ela precisa de uma contextualização histórica para que seja feita dentro do
momento intelectual, social e cultural de sua produção. Esta dependência contextual acarreta
a necessidade de se investigar as estratégias de leitura e de interpretação, assim como outras
dificuldades encontradas pelos estudantes com textos originais.
Os processos de compreensão matemática que acontecem com o uso das fontes
originais também precisam ser pesquisados para saber se, além de servir de motivação e
inspiração para pensar de novas maneiras sobre um tópico matemático, tal uso traria novas
formas de entendimento matemático. A idade dos alunos, sob este aspecto, seria um
importante fator para avaliar o grau de desenvolvimento metacognitivo e reflexivo atingido.
Outros problemas de ordem prática que se apresentam são a identificação e edição de
material adequado para o trabalho com fontes originais.
96
Os autores concluem o estudo afirmando que estamos apenas no início de um
processo no qual a história da matemática torne-se parte orgânica do ensino de matemática e
que, para atingir este objetivo, ainda precisamos resolver uma série de problemas.
3.7 - Um trabalho de Etnomatemática com fontes primárias
Um trabalho interessante desenvolvido a partir dos problemas 24 até 34 do Papiro
Matemático de Ahmes, é descrito em: “Construindo pontes entre o passado e o presente:
etnomatemática, o papiro matemático de ahmes e estudantes urbanos.”, de Arthur B. Powell,
que trabalhou com alunos do primeiro ano universitário, e Oshon L. Temple, que trabalhou
com alunos das séries finais do ensino fundamental. Neste artigo, os autores descrevem seus
trabalhos com alunos de duas áreas urbanas dos Estados Unidos que, apesar de serem os
melhores de suas instituições de origem, encontram dificuldades para trabalharem com o
rigor matemático do currículo das escolas que freqüentam atualmente, apresentando baixo
desempenho e baixa autoconfiança em sua capacidade de aprender matemática. A grande
maioria dos alunos é composta por afro-americanos e latinos, originários de famílias de baixa
renda da classe trabalhadora, que duvidam de seu potencial para prosseguir seus estudos em
matemática e em disciplinas correlatas.
De acordo com Powell & Temple (2004), os problemas 24 a 34 do Papiro Matemático
de Ahmes tratam dos métodos de se resolver equações do primeiro grau e ilustram três idéias
matemáticas: o conceito de incógnita ou quantidades variáveis; operações inversas e
problemas do tipo “pense num número”. Ao trabalhar com as operações inversas necessárias
para se chegar ao número imaginado, os alunos fazem representações alternativas para a
resolução das equações pela expressão verbal do problema, pela equação gráfica com círculos
que representam as operações sucessivas indicadas no problema e pela notação simbólica
padrão. Deste modo, percebem as relações necessárias para construir o significado da
resolução de equações mais facilmente do que nas introduções convencionais e compreendem
que as equações mais complexas não são conceitualmente mais difíceis de resolver e sim
mais trabalhosas, necessitando apenas de mais tempo para serem resolvidas. Segundo os
autores, esta conscientização capacita seus alunos a resolverem equações que estudantes de
97
matemática de séries mais adiantadas consideram “desconcertantes”, induzindo-os a uma
nova disposição para buscarem um desempenho matemático “além das meras exigências
institucionais” (Powell & Temple, 2004, p. 274).
Os autores destacam a importância de se apresentar a perspectiva matemática antes da
perspectiva histórica por duas razões básicas: em primeiro lugar como uma forma de
obedecer ao contrato social da escolarização, em que os alunos chegam à aula de matemática
com a expectativa de aprender matemática, e em segundo lugar porque se o curso fosse
iniciado com a perspectiva histórico-matemática os alunos poderiam interpretar esta
introdução como uma forma reafirmar suas incapacidades de aprender matemática. Ao levar
os alunos a valorizarem as realizações matemáticas de seus antecessores, a maioria é afro-
descendente, e as diversas manifestações culturais de idéias matemáticas, os autores buscam
fazer uma ponte entre o passado e o presente para valorizar as diversas contribuições do
antigo Egito à matemática mundial. Argumentam que:
“Essencialmente, longe da trivialização ou folclorização da África ou de suas
contribuições matemáticas, a inclusão de conceitos algébricos africanos ajuda os
estudantes a desenvolver idéias e habilidades matemáticas mais complexas.” (Powell
& Temple, 2004, p. 274).
O Papiro Matemático de Ahmes é mais conhecido como Papiro Matemático Rhind.
Entretanto, os autores, a exemplo de alguns historiadores, preferem atribuir ao documento o
nome de Papiro Matemático de Ahmes (PMA), por razões históricas e políticas. Ahmes foi o
escriba egípcio que redigiu o papiro, por volta de 1650 AC e Rhind o comprador de
antiguidades que adquiriu o papiro, encontrado em 1858 nas ruínas próximas ao templo
mortuário de Ramassés II em Tebas. Após a morte de Rhind, o Museu Britânico comprou o
papiro em 1865, que foi nomeado Papiro Matemático de Rhind.
Assim, procuram discutir com os alunos o preconceito intelectual e cultural presente
em obras de historiadores e matemáticos notáveis, apresentando citações que demonstram um
desconhecimento da cultura egípcia que, por sua vez, impedem uma maior compreensão da
matemática egípcia. Além disto, apresentam o fato de que não se sabe se o PMA era um
trabalho grande ou secundário, um trabalho acadêmico ou um manual para escolares, razão
por si só suficiente para impedir qualquer análise sobre a qualidade e a sofisticação da
matemática egípcia da época com base no PMA. Os autores também questionam a presença
98
de um preconceito racista na historiografia da matemática, que não menciona a negritude dos
egípcios e tem a disposição de glorificar a matemática grega em relação à abstração e à
destreza intelectual. Por fim, apresentam suas esperanças de que a incorporação da
etnomatemática acadêmica nas escolas possa encorajar os estudantes a se aprofundarem na
matemática acadêmica, na discussão da política do conhecimento e na visão do conhecimento
matemático como direito do ser humano.
Consideramos esse trabalho interessante pelas inúmeras temáticas que ele considera a
partir das fontes originais. De certa forma, percebemos que os autores constroem em sua
abordagem de fontes primárias uma situação adequada para os diversos tipos de
conscientização que eles pretendem provocar em seus alunos. Com isso, fazem uma
abordagem direta da História da Matemática em sala de aula.
3.8 - As abordagens direta e indireta da História da Matemática no ensino
Segundo Schubring (1997, p. 157) existem duas formas principais de abordar a
História da Matemática em sala de aula: a abordagem direta e a abordagem indireta.
A abordagem direta ocorre quando introduzimos elementos históricos na sala de aula
por meio dos textos originais ou de biografias de matemáticos ilustres. Nela a descoberta dos
conceitos é apresentada em toda a sua extensão e a legitimação para seu uso é baseada nas
possibilidades de aumentar o interesse dos alunos e motivá-los para o estudo da Matemática.
Schubring (1997, 157) posiciona-se com ceticismo em relação a esse tipo de abordagem:
“Nas culturas das sociedades mais desenvolvidas economicamente parecem
não predominar mais os valores do historicismo e da burguesia como no século XIX e
na primeira metade do século XX. Duvido, por isso, que as questões históricas
ofereçam aos alunos de hoje qualquer referência similar, independentemente do fato
de os professores terem uma formação e atitude histórica.”
Entretanto, Schubring coloca em nota de rodapé da mesma página a seguinte
observação:
99
“Não quero excluir que nas outras culturas e sociedades a história pode ser
introduzida mais diretamente nas salas de aula (ver o exemplo de Moçambique).”
O exemplo de Moçambique a que Schubring se refere é o relativo ao trabalho de
Gerdes com a etnomatemática, do qual já fizemos uma breve apresentação nessa nossa
dissertação. Para Gerdes, retomar a história do povo moçambicano é um ponto fundamental
para garantir a aprendizagem da Matemática e sua abordagem histórica da etnomatemática
usa o método direto.
A abordagem indireta acontece quando, ao invés de se apresentar todas as etapas da
descoberta do conceito, se apresenta uma análise da gênese dos problemas, dos fatos e das
demonstrações envolvidos no momento decisivo dessa gênese. Ainda de acordo com
Schubring (1997, p. 58), a abordagem indireta na formação de professores favorece a
constituição de um meta-saber capaz de contribuir para uma melhor orientação dos processos
pedagógicos. Além disso, pode servir como base para a compreensão do desenvolvimento da
matemática não como uma concepção continuísta e cumulativa, mas com fases alternadas de
continuidade e rupturas. Esse meta-saber também contribui para a visão das diferenças
epistemológicas e conceituais do desenvolvimento da matemática nas diferentes culturas e
sociedades e para se reconsiderar o papel dos erros como reveladores de todos os fatores já
mencionados: a limitação dos valores dominantes em uma comunidade matemática, a
indicação de rupturas, de desenvolvimentos não contínuos e da importância de concepções
epistemológicas.
Acreditamos que esse modo de integrar a História da Matemática em sala de aula se
aproxima da proposta de constituição do meta-saber do professor de Miguel & Miorim
(2004), por meio das “histórias pedagogicamente vetorizadas”.
3.9 – A “História Pedagogicamente Vetorizada”
Encontramos em Miguel & Miorim, 2004, considerações a respeito da constituição de
histórias pedagogicamente vetorizadas:
100
“pensamos ser necessário que histórias da cultura matemática passem, cada
vez mais, a ser escritas sob o ponto de vista do educador matemático ou, em outras
palavras, que histórias pedagogicamente vetorizadas passem a ser, cada vez mais
constituídas.” (Miguel & Miorim, 2004, p. 156, grifo dos autores).
Em seqüência ao raciocínio desenvolvido, os autores afirmam que uma história
pedagogicamente vetorizada não é uma história simplificada, adaptada ou elementarizada da
História da Matemática para uma utilização na escola. Em direção oposta, é uma história que
parte dos problemas da cultura matemática da escola, do modo como as idéias matemáticas se
constituíram e se transformaram no interior das práticas escolares em conexão com as outras
práticas sociais em outros contextos institucionais, contrapondo uma tendência tecnicista e
neutra da abordagem da cultura matemática a uma discussão dos problemas de natureza ética
envolvidos nas diversas práticas sociais da Matemática.
Nessa concepção, as problematizações lançadas na formação dos professores partem
de práticas pedagógicas do presente e são feitas pensando nos estudantes de licenciatura e nos
futuros alunos desses estudantes, não se preocupando em acrescentar à abordagem lógica
uma abordagem histórica de natureza factual. Ao contrário, a historiografia é vista como uma
fonte de diálogo que estabeleça novas relações, respostas múltiplas e possibilidades para as
respostas que procuramos no presente, mostrando as relações de poder nas diversas práticas
sociais envolvidas na constituição, apropriação, ressignificação e transmissão do tema ou
problema em estudo. Os autores justificam a importância de um trabalho com essas
preocupações como uma forma de através do ato educativo, inclusive do futuro professor,
preparar os sujeitos sociais para a inserção na vida social pública como representantes e
atores de diferentes comunidades que participam do processo de constituição da Matemática
e da Educação Matemática. Esse mesmo destaque já era dado por Miguel (1997a, p. 151-152)
por ocasião do II Encontro Luso-Brasileiro de História da Matemática:
“Quando falo em passado, não como ele foi de fato, mas como poderia ter
sido, não estou com isso querendo estimular ou reforçar a proliferação de falsas
histórias, de histórias fictícias, especulativas ou de histórias-anedotário; estou
apenas querendo destacar, por um lado,
- o escasso valor pedagógico de histórias da matemática meramente factuais,
das chamadas histórias-compilação ou histórias-crônica;
101
- o escasso valor pedagógico das chamadas histórias evolutivas das idéias
matemáticas, isto é, de histórias descontextualizadas em que o homem e os problemas
propriamente humanos não se fazem presentes; e, por outro lado, destacar também,
- o imenso valor pedagógico de histórias-problema que valorizem, explorem e
invistam na dimensão inevitavelmente conjectural da ciência histórica;
- o imenso valor pedagógico de histórias que, constituindo-se a partir de
problemas pedagógicos do presente, interroguem ativamente o passado de modo a
buscar nele não somente o que, de certo modo, é apenas o primeiro momento do
trabalho do historiador, isto é, a coleta dos tais fatos documentados, ‘reais’,
‘verdadeiros’, mas buscar também aquilo que é realmente complexo, desafiador e
fascinante, aquilo que significa e dá sentido simultaneamente ao trabalho do
historiador e à ação pedagógica do professor, isto é, a tentativa de interpretação da
intencionalidade humana por trás dos projetos e empreendimentos genuinamente
humanos. Essa é, a meu ver, senão a interseção possível, pelo menos a interseção
desejável entre história e pedagogia.”
Entretanto, todas as discussões sobre se interpretarem os significados e sentidos dos
conceitos em suas interações sociais esbarram na questão de como manter a objetividade
atribuída à matemática dentro do relativismo social. Para Schubring (1998, p. 25 e 26):
“Do contexto das observações históricas apresentadas, surge a tese de que
esta objetividade não existe e que também na matemática, enquanto ciência, os
significados dos conceitos são estabelecidos socialmente e que a imposição de teorias
e epistemologias ocorre, inicialmente, no ordenamento de um contexto cultural. Ou
seja, existe um sujeito social na história da matemática: a comunidade social dos
matemáticos, à qual, por exemplo, é comum uma epistemologia marcada por um
determinado ambiente cultural (até certo ponto).”
Assim, com os mais diversos argumentos e apresentando as mais diversa razões para
justificá-los, estudiosos das relações entre História da Matemática e Educação Matemática
têm defendido problematizações que aproximem a Matemática, a História da Matemática e a
História da Educação Matemática na formação de professores, com influências no ensino-
aprendizagem em todos os níveis. Também podemos perceber a constante presença da atitude
102
dialógica em todas essas problematizações, procurando abarcar todas as possibilidades de
mediação dos sujeitos sociais envolvidos nos diversos processos de produção, aceitação, e
divulgação dos conceitos matemáticos. Com isso, entendemos que não há mais espaço na
escola para uma visão especular da História da Matemática e para abordagens que ignorem os
contextos sócio-culturais que forneceram os problemas e as condições de desenvolvimento da
matemática.
Conclusões
Em nossa dissertação procuramos traçar um breve panorama das discussões que têm
sido concretizadas sobre a integração da História na Educação Matemática. Mais que apontar
um caminho para uma ou outra das diferentes perspectivas estudadas, nossa intenção com
esse trabalho foi apresentar as diversas justificativas e seus referenciais teóricos de apoio para
103
o trabalho com História da Matemática em sala de aula. Ao mesmo tempo, reconhecemos as
dificuldades de se fazer uma abordagem histórica extensiva, cronológica e hierarquizada de
conhecimentos matemáticos no ensino básico. Desse modo, acreditamos que ao
apresentarmos nossa opinião sobre as vantagens de se proceder, no ensino fundamental e
médio, ao estudo da evolução de um conceito específico, com o seu devido recorte histórico
emoldurado pelas suas características sócio-culturais, não estamos desconsiderando as demais
formas de se abordar a História da Matemática em sala de aula. Ao contrário, nos sentimos
expostos a críticas pertinentes sobre a profundidade da compreensão matemática que esse
tipo de escolha pode oferecer, sobre a relativização do conhecimento matemático nela
embutido, pela possível falta de coerência nas idéias abordadas de forma tão particular e
compartimentada, etc.
Em relação à formação de professores, acreditamos ser de fundamental importância
nos cursos de licenciatura que não se apresente aos futuros docentes somente uma história
internalista e descontextualizada da Matemática, mas também os fatores externos de sua
produção, aceitação e transmissão, de maneira crítica e articulada com os conteúdos que esses
professores irão trabalhar em suas salas de aula. Assim, acreditamos que não basta apenas
apresentar o desenvolvimento histórico da Matemática; seria importante também desenvolver
o conteúdo matemático do ensino superior dentro de uma perspectiva histórica, se não em
todas as disciplinas, pelo menos naquelas em que o professor se disponha a servir de
referência para os professores em formação. Entendemos que se o futuro professor tiver em
sua formação um modelo de trabalho com abordagem histórica, poderá, a partir de suas
próprias convicções, refletir sobre essa prática, ajustá-la ao seu estilo característico de
trabalhar e desenvolver mais facilmente seus próprios métodos de integração da História da
Matemática em sala de aula. Do mesmo modo, também acreditamos que o trabalho conjunto
entre a universidade e a escola deva fazer parte da formação de alunos/futuros professores,
por meio da instituição de grupos de estudo que agreguem representantes docentes e
discentes de diferentes instituições de ensino com interesse no desenvolvimento de teorias e
práticas de integração da História na Educação Matemática.
Em nossa concepção, a História apresenta toda a produção cultural da humanidade e,
portanto, da escola. As interfaces entre História, Educação Matemática e História da
Educação são muitas e também devem ser discutidas na formação dos professores. Entender
os diversos movimentos que estiveram envolvidos na elaboração dos currículos, na escolha
dos saberes a serem reproduzidos, na constituição das diversas disciplinas escolares e na
atribuição diferenciada de importância a uma ou outra dessas disciplinas pode ajudar o
104
professor a dar um novo valor às demandas sociais da educação e perceber a característica de
“filtro social” que a Matemática tem. É bastante comum para nós, professores de matemática,
ouvirmos de vários de nossos alunos que eles “não prestam para a Matemática”. Além disso,
também se tornou banal a constatação de que “os alunos não têm os pré-requisitos
necessários” para o desenvolvimento dos trabalhos em sala de aula. Ora, se somos
professores de matemática, imbuídos da “vontade” de ensinar matemática (a despeito de toda
conotação negativa que o verbo ensinar possa conter, ainda assim é o que melhor traduz a
situação que esperamos elucidar) e percebemos a educação como possibilidade de
transformação social, o que implica necessariamente a democratização ao acesso ao saber,
não podemos mais aceitar que tal situação se mantenha. Assim, faz parte de nosso trabalho
como professores não só desenvolver conteúdos específicos aos vários níveis de ensino, mas
também trabalhar as concepções que nossos alunos têm a respeito de si próprios e a respeito
da matemática. Como já apresentamos em nossa dissertação, acreditamos que abordagens
históricas da Matemática possam ajudar a modificar essas crenças: ao recriarem um conceito
matemático por meio de uma abordagem histórica, os alunos poderiam se sentir capazes de
produzirem matemática, de entendê-la, de a ligarem aos problemas originais que lhe davam
significado e consistência. Os professores, por sua vez, ao optarem pela abordagem histórica
da construção de um conceito poderiam em algumas situações prescindir dos pré-requisitos,
iniciando a reconstrução de um conceito de seu nível mais elementar, com uma linguagem
mais próxima daquilo que o aluno é capaz de entender.
Acreditamos que a Matemática revela novos modos de pensar que enriquecem o
intelecto humano. Mais que uma disciplina de estudo, ela é um patrimônio da humanidade, o
resultado do esforço coletivo dos homens e mulheres que de alguma maneira lhe deram
forma, a transmitiram e a enriqueceram. Partilhar esse conhecimento é, além de função da
educação, um dos sentidos da vida em sociedade: é participar da distribuição dos vários tipos
de bens comuns, construídos na busca da sublimação, da evolução, de aperfeiçoamento. Uma
concepção de educação que valorize as dimensões emocionais, psicológicas, cognitivas e
sociais do aluno deve se ligar às possibilidades que a Matemática pode oferecer ao homem de
expandir sua compreensão sobre o mundo que o rodeia, sobre sua capacidade de lidar com os
conhecimentos matemáticos, sobre as conexões da Matemática com as outras ciências e,
principalmente, sobre seu direito de conhecer Matemática independentemente de suas opções
profissionais ou estudantis.
Portanto, mesmo entendendo a capacidade de abstração em Matemática como
essencial para a constituição de novos conhecimentos e de sua relativa independência de
105
contexto para se desenvolver (muitas vezes o desenvolvimento teórico da Matemática ocorre
de forma independente de um problema: a própria abstração matemática produz
conseqüências de suas teorias que se transformam em novas teorias), vemos na História da
Matemática a possibilidade de atribuir significados referenciais aos conhecimentos
matemáticos e dessa forma permitir uma maior compreensão da Matemática.
Nas diversas experiências a que tivemos acesso para a elaboração dessa dissertação
não pudemos perceber uma conclusão sobre as efetivas diferenças verificadas na
aprendizagem quando a História da Matemática foi integrada ao conteúdo trabalhado. Apesar
de não acreditarmos em uma “medição” quantitativa dos resultados obtidos, entendemos que
as avaliações que os alunos e professores fazem das situações experimentadas são
importantes para a tomada de decisões no planejamento de atividades e que podem fornecer
indícios importantes para a prática escolar. Desse modo, defendemos a ampliação dos
espaços de apresentação de atividades desenvolvidas com a História da Matemática em sala
de aula, a troca de experiências, a discussão dos objetivos e das prioridades encontrados nos
desenhos de projetos de ensino de Matemática que integrem a História e a avaliação de
resultados obtidos. Mais do que discutir teorias, julgamos necessário se ampliar a discussão
das práticas, das ações pedagógicas efetivamente constituídas, das possibilidades e dos
resultados obtidos, da reflexão sobre as práticas, sobre a construção dos conhecimentos
pedagógicos na escola, a criatividade do professor, suas expectativas e esperanças.
Do mesmo modo, em relação à ação pedagógica da etnomatemática também
consideramos importante que os trabalhos em sala de aula sejam descritos e discutidos,
especialmente em direção a rebater as críticas sobre a necessária superação da realidade do
aluno em relação aos seus conhecimentos prévios e ao alcance de conhecimentos que lhe
permitam uma melhor inserção na sociedade. De acordo com a valorização que damos à
abordagem sociocultural da etnomatemática, acreditamos que é muito importante procurar
não associar a etnomatemática somente a conhecimentos primitivos, a uma “proto-
matemática” ou a conhecimentos próprios de determinados grupos ou classes sociais e sim ao
tipo de educação intercultural da Matemática que ela defende, ampliando as perspectivas de
trabalho em Educação Matemática.
Por outro lado, tanto a etnomatemática como a História da Matemática são fontes de
problematizações que podem ser trabalhadas de forma interdisciplinar, pelas informações
culturais e sociológicas que abordam. Logo, podem ser ponto de partida para atividades que
mobilizem toda a escola em relação a uma determinada temática e constituírem projetos de
ensino que possibilitem um amplo estudo sobre uma época, uma cultura ou uma determinada
106
sociedade. Dessa forma, a Matemática seria interligada a outras disciplinas escolares,
quebrando o seu isolamento característico.
Desse modo, acreditamos que não cabe mais o estudo de uma história estática, factual.
Ao contrário, em nosso trabalho pudemos concluir pela pertinência de se contextualizar o
conhecimento matemático, de procurar percorrer o eixo de tempo da História de maneiras
diversas das abordagens tradicionais que ligam o passado ao presente de forma determinista,
como se não houvesse outras formas de desenvolvimento possível da Matemática. Por
conseguinte, apresentamos as propostas que contemplam olhares horizontais no eixo tempo e
apresentam o modo como diferentes grupos sociais em uma mesma época trabalham os
conceitos matemáticos de modo diferente, muitas vezes em função da aprovação ou não da
comunidade de matemáticos que se constitui e é aceita nesse período. Podemos também
considerar a possibilidade de um caminho inverso: partir da matemática pronta e acabada de
hoje e buscar em suas origens as intuições, os problemas e os conceitos que se imbricaram
em sua constituição histórica para ampliar a significação dos estudantes e pesquisadores de
matemática. Com isso, “quebramos o espelho”, ou seja, negamos que a abordagem histórica
tenha que ser obrigatoriamente um reflexo do que foi a História da Matemática que a
historiografia positivista nos herdou: seqüencial, linear, determinista e indutivista.
Concluímos nossa apresentação com a reafirmação de nossa constatação de que há um
campo enorme de pesquisas sobre a integração da História na Educação Matemática e de que
esta integração abre inúmeras possibilidades para se dialogar sobre Matemática em sala de
aula, podendo contribuir para uma melhor aprendizagem da Matemática em todos os níveis
de ensino. Como sempre enfatizamos em nosso trabalho a importância da atuação do
professor em sala de aula para um efetivo diálogo entre a Educação Matemática e a História
da Matemática, não poderíamos deixar de oferecer nossa pesquisa aos docentes que se
interessam por esse tema. Esperamos que o panorama geral que buscamos delinear se
configure como um subsídio a mais para a reflexão mais ampla e geral que se faz necessária
em relação à Educação Matemática e, mais especificamente, em relação à presença da
Matemática na formação das pessoas não só como um conhecimento conceitual, mas
principalmente como uma linguagem de interpretação da realidade, de inserção social e de
desenvolvimento de competências. Nesse sentido, caberia a cada professor, diante da
realidade de sua sala de aula e de suas condições de trabalho, elaborar suas próprias
conclusões e construir suas próprias práticas, no que esperamos poder contribuir com nosso
trabalho.
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