8

Click here to load reader

HISTÓRIA DAS IDEIAS E DESCONSTRUÇÃO - ANPUH-RS · PDF fileda história das ideias políticas a partir da virada linguística. Meu foco será voltado para os historiadores Quentin

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: HISTÓRIA DAS IDEIAS E DESCONSTRUÇÃO - ANPUH-RS · PDF fileda história das ideias políticas a partir da virada linguística. Meu foco será voltado para os historiadores Quentin

132

HISTÓRIA DAS IDEIAS E DESCONSTRUÇÃO

Carlos Henrique armani

(Professor Adjunto do Departamento de História da Universidade Federal de Santa Maria)

E-mail: [email protected]

Resumo

Pretendo apresentar uma proposta de método de investigação da história das ideias a partir do ponto de vista da desconstrução, de modo a dialogar criticamente com a tradição recente da Escola de Cambridge, tomando como núcleo do problema a idéia da intencionalidade autoral e da transparência do sujeito do conhecimento para si mesmo em seu processo de escrita.

Palavras-chave: História das ideias, Escola de Cambridge, Desconstrução.

Abstract

I intend to propose a method of inquire of the history of ideas from the deconstruction standpoint, as a way to dialogue critically with recent tradition of the Cambridge School, taking as core of problem the idea of authorial intentionality and transparency of the subject to himself in his writing process.

Keywords: History of ideas, Cambridge School, Deconstruction.

I

Minha intenção, neste artigo, é apresentar alguns limites teóricos e uma proposta de método de investigação da história das ideias políticas no contexto epistemológico da virada linguística, que balizou decisivamente a historiografia das ideias e dos discursos dos últimos 30 anos. As contribuições provenientes da filosofia da linguagem, mais especificamente de sua vertente analítica e hermenêutica, foram substanciais no trabalho de historiadores das ideias e da cultura. Desde Frege, Wittgenstein, Russel, passando por Quine, Austin e Searle, até a ontologia hermenêutica de Heidegger e de Gadamer e a filosofia da desconstrução de Derrida, a filosofia passou a ser, sobretudo, um trabalho de investigação acerca da natureza, dos limites, do funcionamento e das possibilidades da linguagem, de tal maneira que não seria incorreto afirmar que a filosofia do século XX é, em grau significativo, uma filosofia da linguagem1.

A contribuição da filosofia analítica da linguagem, inspirada em Wittgenstein e Austin, foi providencial nos trabalhos de diversos historiadores, especialmente nas obras dos historiadores

1 Ver, a respeito dessa virada, o trabalho de Cabrera (2003).

Page 2: HISTÓRIA DAS IDEIAS E DESCONSTRUÇÃO - ANPUH-RS · PDF fileda história das ideias políticas a partir da virada linguística. Meu foco será voltado para os historiadores Quentin

132 133

ingleses Quentin Skinner e John Pocock, centrais na redefinição dos fundamentos teóricos e metodológicos da história das ideias. Sua perspectiva de historicidade das ideias (ou dos discursos) a partir dos jogos de linguagem e dos atos de fala proporcionou um avanço efetivo em termos de método de abordagem da história das ideias políticas. Críticos de uma tradição que muitas vezes subordinou exclusivamente a historicidade das ideias a outros níveis de realidades materiais – como certa tradição da sociologia do conhecimento o fez – Skinner e Pocock inovaram na discussão metodológica a partir da relação entre texto e contexto, da dialética entre langue e parole, como também na denúncia das diversas mitologias das ideias que contribuiriam mais para criar enteléquias do que propriamente para compreender as ideias e os ideários políticos em sua historicidade.

Em que pese a inovação proporcionada por esses autores, convém evocar a contribuição de tendências filosóficas não vinculadas à tradição analítica, que também poderiam ser arroladas como possibilidades de método de investigação da historicidade das ideias e, particularmente, das ideias políticas. É o caso, em meu entendimento, da obra filosófica de Jacques Derrida, que ficou mais conhecida como desconstrução. Meu objetivo, ao longo desse artigo, é apresentar uma possibilidade metodológica de historicização das ideias a partir das coordenadas básicas que caracterizam a desconstrução: a rasura, a iteração, o suplemento, a indecidibilidade, a différance, os quais convergem na crítica, inspirada em Heidegger, à metafísica da presença. Essas perspectivas (ou possibilidades conceituais) convergem em um ponto fundamental para a historicidade das ideias, ao colocarem sob forte crítica os conceitos como presença plena, intencionalidade, pureza de significado, entre outros tão caros à tradição da filosofia da subjetividade, nas quais, poderíamos afirmar, Skinner e Pocock parcialmente se inserem. Isso quer dizer que o artigo apresenta um teor crítico às ideias centrais de Skinner e Pocock sem, contudo, abandoná-las. Ainda que possivelmente filósofos inspirados em Derrida pudessem afirmar que sua obra desdiz completamente as perspectivas wittgensteinianas e austinianas acerca da linguagem, entendo que, para o historiador das ideias, tais perspectivas podem, em certas circunstâncias, dialogar.

O artigo foi dividido em duas partes: na primeira, apresento o contexto de discussão da história das ideias políticas a partir da virada linguística. Meu foco será voltado para os historiadores Quentin Skinner e John Pocock. Apresentarei alguns fundamentos preconizados pelos autores para recuperar a historicidade do pensamento, o que os diferenciam de certa tradição de história do pensamento político, em especial daquela proveniente da ciência e da filosofia políticas; na segunda parte, apresentarei alguns limites teóricos da proposta de Skinner e de Pocock, bem como apresentarei alguns tópicos da filosofia da desconstrução de Jacques Derrida que podem servir de base para interpretar as ideias políticas num determinado contexto e repensar a tradição da filosofia da subjetividade que ancora a história dos discursos de Skinner e Pocock.

II

A virada linguística foi uma das marcas do pensamento filosófico do século XX. Seu impacto não poderia ser indiferente aos historiadores, que perceberam o quanto seu objeto depende de uma mediação que, em última análise, é linguagem2. Aforismos e afirmações como

2 Quero deixar claro que não estou negando o princípio de realidade. Há uma diferença substancial entre princípio de realidade e história como sucessão de acontecimentos e processo dos homens no tempo. A história somente existe como disciplina, como historiografia. Seu objeto – o passado das sociedades – somente tem o nome de “história” por um acidente conceitual. O princípio de realidade que constitui o objeto do historiador é o passado múltiplo das sociedades, não “A História”. Além disso, sua presença somente se dá ao historiador mediante o estabelecimento de um corpus documental que é rastro de algo radicalmente ausente. A respeito do princípio de realidade, ver: (WHITE, 1994; ROUSSO, 1996).

Page 3: HISTÓRIA DAS IDEIAS E DESCONSTRUÇÃO - ANPUH-RS · PDF fileda história das ideias políticas a partir da virada linguística. Meu foco será voltado para os historiadores Quentin

134

“Os limites da minha linguagem significam os limites do meu mundo” ou “A linguagem é a morada do ser”3, repercutiram de modo contundente no mundo acadêmico da filosofia e das humanidades. Desde a mais dura ortodoxia materialista que negava qualquer realidade fora dos fatos, dos processos e das estruturas de uma materialidade pré-existente à linguagem, até aqueles que afirmaram não ser o mundo senão linguagem (ao menos, o mundo do sentido), a virada linguística marcou seu terreno no âmbito das discussões acerca de como podemos ter acesso à realidade.

Os fundamentos de Quentin Skinner e de John Pocock – que tomarei em conjunto – são simples. Para eles, compreender a historicidade do pensamento passa pela recuperação da intencionalidade autoral no ato da escrita de um texto, idéia que segue os pressupostos da filosofia da linguagem ordinária de Austin e de Wittgenstein4. A pergunta fundamental, colocada por Skinner (1996, p. 13) em As fundações do pensamento político moderno, sobre o que os autores dos textos clássicos estavam fazendo quando os escreveram delineia, para o historiador, um conjunto de problemas que servem como guia de investigação, entre os quais a análise dos argumentos que tais autores apresentavam, as questões que formulavam e tentavam responder e, em que medida aceitavam e endossavam, ou contestavam e repeliam, ou às vezes até ignoravam as ideias e convenções predominantes no debate político. Para ele, compreender as questões que um pensador formula e o que faz com os conceitos a seu dispor, equivale a compreender algumas de suas intenções básicas ao escrever, o que implica esclarecer exatamente o que ele pode ter querido significar com o que disse – ou deixou de dizer (Idem). Isso quer dizer que o historiador das ideias deve se direcionar para a interpretação do “como” alguém quis dizer o que se disse e quais relações podem ter se estabelecido entre vários enunciados diferentes ainda dentro do mesmo contexto geral, bem como a apreensão do que tais autores pretendiam significar e como se pretendia que se tomasse esse significado (SKINNER, 1998, p. 63-64). Entender um texto, para o historiador, “deve ser entender tanto a intenção de ser entendido como a de que esta intenção se entenda, que o texto mesmo como ato deliberado de comunicação deve ao menos encarnar” (Idem). Skinner entende que a metodologia apropriada para a história das ideias deve consagrar-se a esboçar toda a gama de comunicações que poderiam ter se efetuado convencionalmente na oportunidade em questão através da enunciação do enunciado dado e logo, a descrever as relações entre este e o contexto linguístico mais amplo como um meio de decodificar a atual intenção do autor (Idem). Ao apresentar o que está disponível para o autor no momento em que escreve, de modo que seu texto faça sentido para ele e para seus interlocutores num determinado contexto, Skinner coloca como fundamento precípuo de investigação a intencionalidade do autor de uma obra e os modos diversos de utilização da linguagem no contexto de sua escrita. A compreensão dos textos pressupõe a apreensão do que um autor pretendia significar e como se pretendia que se tomasse essa significação. Desse modo, entender um texto deve ser entender tanto a intenção de ser entendido como a de que esta

3 Respectivamente de Wittgenstein e de Heidegger.

4 Seria possível mapear brevemente uma divisão interna da filosofia da linguagem entre a filosofia da linguagem ideal e a filosofia da linguagem ordinária (COSTA, 2007, p. 8). No primeiro caso, a preocupação central da investigação é revelar, por trás das sentenças de nossa linguagem natural, sua verdadeira estrutura lógica e, como tal, aquilo que é verdadeiramente pensado (Idem, p. 8). Por outro lado, a filosofia da linguagem ordinária tem como base a linguagem do cotidiano, especialmente seu caráter funcional (Idem, p. 9). Se a linguagem em seu sentido ideal tem uma tendência de negar a historicidade – crítica feita a Frege, por exemplo -, a linguagem em seu sentido cotidiano, como atividade cujo significado se estabelece de acordo com sua utilização, é uma das referências fundamentais dos historiadores que estão no cerne da virada linguística na história das ideias. As duas principais obras filosóficas que serviram de inspiração para Skinner e Pocock foram How to do things with words, de John Austin, e Philosophische Untersuchungen, de Ludwig Wittgenstein. Seria interessante, contudo,

Page 4: HISTÓRIA DAS IDEIAS E DESCONSTRUÇÃO - ANPUH-RS · PDF fileda história das ideias políticas a partir da virada linguística. Meu foco será voltado para os historiadores Quentin

134 135

intenção se faça compreender, que o texto mesmo como ato deliberado de comunicação deve encarnar (SKINNER, 1988, p. 63).

No mesmo esteio teórico, John Pocock (2003, p. 27) afirma que o fato da linguagem assumir significados diferentes conforme jogos de linguagem disponíveis para um ou diversos autores em determinado período indica que o autor somente pode ter intenções e objetivos que a linguagem coloca para ele5. Uma vez que um enunciado X foi proferido por algum autor, o historiador deve apreender o que tal autor quis dizer e como disse o que disse, além de quais relações poderiam ter se estabelecido entre vários enunciados diferentes dentro do mesmo contexto geral. Pocock lança mão da análise das elocuções atuantes sobre aqueles que as enunciam e sobre aqueles que as ouvem, o que implica uma “grande variedade de coisas que podiam ser ditas ou reconhecidas como tendo sido ditas e sobre a diversidade de contextos linguísticos que iriam determinar o que poderia ser dito e que, ao mesmo tempo, sofriam a ação daquilo que era dito” (POCOCK, 2003, p. 24). Trata-se, portanto de atos de fala, conceito tomado de empréstimo de John Austin, que se tornam conhecidos e que evocam respostas, com elocuções que são modificadas à medida que se tornam perlocuções, conforme a maneira como os receptores respondam a elas, e com respostas que tomam a forma de novos atos de fala e de textos em resposta. A relação entre a emissão e a recepção de um enunciado configura uma historicidade que passa do autor para o leitor e que conferem identidade de autor ao próprio leitor. Temos, nesse sentido, duas modalidades dialéticas no método proposto por Pocock. A primeira delas refere-se aos contextos primários em que um ato de enunciação é efetuado, oferecido pelo modo de discurso institucionalizado que o torna possível. A linguagem determina o que nela pode ser dito – a langue – mas ela pode ser modificada pelo que nela é dito – o ato performativo como parole. A outra operação dialética se estabelece entre o emissor e o receptor respectivamente como escritor e leitor. Pocock não supõe que a linguagem do momento simplesmente denota, reflete ou é um efeito da experiência desse momento. Mais propriamente, ela interage com a experiência e fornece as categorias, a gramática e a mentalidade por meio das quais a experiência tem de ser reconhecida e articulada (Ibid. p. 56).

Diferentemente das perspectivas teóricas que se orientam para a busca de verdades universais e problemas perenes no passado – especialmente daquelas provenientes da filosofia política e da ciência política –, Skinner (e Pocock) entende que qualquer enunciado é, obrigatoriamente, a encarnação de uma intenção particular, em uma oportunidade particular, dirigida à solução de um problema particular, específico de sua situação de tal modo que seria ingenuidade querer transcendê-la (SKINNER, 1988, p. 65). Somente haveria respostas individuais a perguntas individuais, as quais seriam tão diferentes como quem as fazem (idem).

Poucos historiadores duvidariam da contribuição que Skinner e Pocock apresentaram para a história das ideias. Dificilmente podemos abrir mão da leitura de suas obras se quisermos enveredar nossa investigação, em história, para o campo das ideias. Não obstante, entendo, na esteira da crítica de Jacques Derrida ao logocentrismo, que há, pelo menos, três problemas que as perspectivas teóricas de Skinner e Pocock colocam para o historiador: 1) a crença no primado do sujeito como fundamento do saber ou o pai do discurso; 2) a tradução dos atos de fala, voltados para situações de conversação cotidiana, para o domínio da escrita; 3) o atomismo metodológico que nega qualquer tipo de relação de continuidade

5 Os jogos de linguagem, que Wittgenstein retira das analogias com os lances do jogo de xadrez, são bastante abrangentes e flexíveis. Nas Investigações filosóficas, Wittgenstein (1979, § 23, p. 19) apresenta alguns exemplos de jogos de linguagem, entre eles: comandar e agir segundo comandos; descrever um objeto conforme a aparência ou conforme medidas; produzir um objeto segundo uma descrição; relatar um acontecimento; conjeturar sobre o acontecimento; expor uma hipótese e prová-la; apresentar os resultados de um experimento por meio de tabelas e diagramas; inventar uma história; ler; representar teatro; cantar uma cantiga de roda; resolver enigmas; fazer uma anedota; contar; resolver um exemplo de cálculo aplicado; traduzir de uma língua para outra; pedir, agradecer, maldizer, saudar, orar.

Page 5: HISTÓRIA DAS IDEIAS E DESCONSTRUÇÃO - ANPUH-RS · PDF fileda história das ideias políticas a partir da virada linguística. Meu foco será voltado para os historiadores Quentin

136

com o passado. A seguir, vou me deter um pouco mais em cada um desses problemas.

III

Comecemos pelo problema do primado do sujeito como fundamento do saber, que está na base não somente da filosofia da linguagem ordinária de Austin, como também em grande parte da tradição filosófica ocidental. Em linhas gerais, a crença no primado do sujeito como fonte do saber (e da verdade) está arraigada naquilo que Martin Heidegger denominou a metafísica da presença, a determinação primordial do sentido do ser como presença (DERRIDA, 2001, p. 13). Trata-se de uma valorização excessiva da origem do discurso, entendida como referência simples, não-desdobrada, a uma presença idêntica a si mesma, a preservação de uma presença original, representada pela “figura ‘paterna’ daquele que enuncia e controla seu próprio discurso, evitando o erro e o logro interpretativos” (NASCIMENTO, 2004, p. 23). Em que medida essa presença pode ser plena no enunciado de um discurso escrito? E como traduzir essa presença consciente da intenção do sujeito falante à totalidade de seu ato locutório no caso dos textos-objetos do historiador das ideias? Preconizar a presença a si mesma de uma intenção que anima determinado enunciado parece indicar o problema da ausência que todo discurso traz e que se torna ainda mais incisivo e sinuoso na escrita. A escrita, de acordo com Derrida (1991, p. 14), continua a produzir efeitos para além da presença do emissor e do destinatário. Nas suas próprias palavras (1991, p. 19): “Toda a escrita deve, para ser o que ela é, poder funcionar na ausência de todo destinatário empiricamente determinado em geral”. “Para que um escrito seja um escrito”, continua Derrida (1991a, p. 19), “é preciso que continue a ‘agir’ e ser legível mesmo que o que se chama de o autor do escrito não responda mais pelo que escreveu”. Nesse caso, o problema que Derrida coloca diz respeito não somente à ausência do “pai” do discurso, mas sobretudo a uma tradução, central em Skinner e Pocock, da teoria dos atos de fala de Austin – construída com exemplos da realidade da linguagem falada, o que na tradição platônica seria a presença viva do logos – para o domínio da escrita. A escrita, neste caso, tem uma realidade diferente no domínio do discurso. Ela demarca o grámmata, o qual seria, desde Platão, uma forma inautêntica de memória, que confiaria aos caracteres exteriores dos homens a sua memória interna (NASCIMENTO, 2004, p. 20), o recurso artificial a uma “rememoração como signo de morte, de algo passado e exterior ao instante presente” (Idem).

Skinner e Pocock pensam sujeito autor e o contexto em termos dialéticos, sem dúvida. Significa dizer que o autor de um texto X pode ter a intenção de escrevê-lo e deixar bem clara quais suas intenções ao escrever tal texto. Mas tudo isso somente pode ser pensado em termos de contexto lingüístico no qual esse autor está inserido. Aparentemente, não há razão em pensarmos que tais historiadores pensam a fonte da verdade do passado apenas a partir do primado do sujeito. A questão é que a fonte da verdade do passado emana não de um feixe infinito de relações de significado que possam se estabelecer, para além de todos os sujeitos envolvidos nos atos discursivos, mas exclusivamente no sujeito e com o sujeito do saber. A língua define os objetivos que um autor pode ter, mas é a busca da pureza da consciência do discurso do autor, mesmo enredado na langue, que define a verdade do passado, o referente mestre de todo o discurso. Neste caso, em que a escrita da história é uma escrita sobre a escrita, o que confere ao discurso do historiador das ideias a dupla inscrição na iteração – repetição e diferença – do que é o seu referente, os historiadores ingleses tentam eludir todo discurso acerca do passado – as mitologias questionadas por Skinner – de um conteúdo metafísico (não baseado na experiência das evidências do historiador). A fonte da verdade do passado está na consciência autoral, ainda que somente o contexto lingüístico possa fornecer

Page 6: HISTÓRIA DAS IDEIAS E DESCONSTRUÇÃO - ANPUH-RS · PDF fileda história das ideias políticas a partir da virada linguística. Meu foco será voltado para os historiadores Quentin

136 137

os jogos de linguagem disponíveis para a constituição dessa verdade. Em Skinner e Pocock, a verdade não está nas regras do jogo e nem na infinita possibilidade de jogos de linguagem realizados no ato de escrita, mas na intemporalidade da consciência de um meta-sujeito que regula o conteúdo de verdade do discurso histórico, incluindo nele seu contexto. Desse modo, duplica-se o primado do sujeito como fundamento do saber, a metafísica da presença que se reafirma não somente no objeto (o texto escrito, seu emissor e seus destinatários), como também na operação levada a efeito por aquele que traz para o presente (o historiador), o objeto em sua suposta pureza autoral – ou, por que não dizer, arquivística.

Ainda resta um problema que a obra de Skinner, especialmente, apresenta. A relação de corte radical com o passado, o que denomino aqui de atomismo metodológico. Em seu texto-manifesto Meaning and understanding in the history of ideas, Skinner faz uma defesa contundente da compreensão do passado como uma espécie de alteridade. Nas suas palavras:

O conhecimento da história dessas ideias pode servir para mostrar até que ponto as características de nossos acordos que talvez estejamos dispostos a aceitar como verdades tradicionais e inclusive ‘intemporais’ podem ser em realidade meras contingências de nossa história e estrutura social singulares. Descobrir, graças à história do pensamento que, de fato, não há conceitos intemporais senão unicamente conceitos variados e diferentes que acompanharam sociedades diversas e diferentes é descobrir uma verdade geral que não somente se refere ao passado, senão também a nós mesmos (...) Aprender do passado a distinção entre o que é necessário e o que é mero produto de nossos acordos contingentes é aprender a chave da autoconsciência mesma (SKINNER, 1988, p. 67).

Para o autor, o estudo da história das ideias somente tem uma relação de alteridade com o passado. Levado aos extremos, esse posicionamento impossibilitaria qualquer relação de continuidade e mesmo de comunicação com o pretérito. Ao salvar o historiador das ciladas do anacronismo – relatando todo passado sob o signo do outro – Skinner afirma que o passado somente pode servir para que percebamos o quanto todas as realidades com a qual o historiador lida são constantemente alteradas. Somente há contingências e singularidades, sem repetição na diferença. Em uma linguagem simples, o autor sugere que a única coisa que podemos aprender com o passado é que nada do que ocorre no tempo permanece. Seria uma versão contemporânea do aforismo heraclitiano, no qual se afirma que o homem não pode banhar-se duas vezes no mesmo rio porque na segunda ocasião em que isso ocorresse, nem o homem e nem o rio seriam mais os mesmos. Como bem sabemos, tal devir desemboca em uma cilada, uma vez que para nomear o homem e o rio, temos de recorrer a algo que não muda na mudança. O que não muda na mudança proposta por Skinner? Seria possível afirmar que a mudança que não muda é a própria mudança. A mudança, nesse sentido, seria o fundamento, o motor imóvel da realidade histórica. Se assim o fosse, aquilo que para Skinner é uma das atividades fundamentais do historiador – estabelecer a comunicação com o passado – acaba por se tornar um entrave, uma vez que a própria comunicação seria insustentável diante da alteridade incomunicável do passado na sua absoluta diferença.

Em um texto mais recente, Skinner reconhece a importância do estudo histórico do pensamento político em termos de continuidade, mas reafirma seu interesse nas descontinuidades, uma vez que seria mais fácil ver o passado como espelho do que como algo carregado de valores e práticas sepultados nas areias do tempo, que deveriam ser escavados e reconsiderados (SKINNER, 1999, p. 90). Para ele, o trabalho do historiador das ideias deve ser como o do arqueólogo:

A sugestão que quero terminar explorando é a de que um dos valores atuais do passado é como um repositório de valores que não mais endossamos, de questões que não mais propomos. Um papel correspondente para o historiador do pensamento é agir como um tipo de arqueólogo, trazendo

Page 7: HISTÓRIA DAS IDEIAS E DESCONSTRUÇÃO - ANPUH-RS · PDF fileda história das ideias políticas a partir da virada linguística. Meu foco será voltado para os historiadores Quentin

138

de volta para a superfície tesouros intelectuais enterrados, limpando sua poeira e possibilitando-nos reconsiderar o que pensamos deles (Idem).

Reduzir o trabalho do historiador a uma arqueologia na qual buscamos relíquias faz do passado, para jogarmos com as terminologias heideggerianas, mero objeto esquecido a ser descoberto no presente, em detrimento do passado como haver-sido cuja possibilidade de repetição permite fazer com que haja, no presente, um passado que não passa.

Ao reconhecer na obra de Jacques Derrida uma alternativa para esses problemas, o que poderíamos arrolar como possibilidades conceituais para pensar a historicidade das ideias? Algumas dessas possibilidades já foram mencionadas acima. Derrida tem um conjunto de termos que servem para definir a desconstrução, a começar pela própria idéia de desconstrução. Derrida sugere que a desconstrução implica pensar a genealogia estrutural de certos conceitos e jogar com suas configurações exteriores e interiores. Qualquer conceito concebido como puro, sob o signo da desconstrução, é marcado por sua différance, pela sua exterioridade constitutiva (DERRIDA, 2001, p. 13). Essa exterioridade constitutiva pode ser um autor ou um conjunto de autores, como também ideias-limites que configuram seus conceitos, cujos significados se situam para além e aquém da suposta essência do conceito. Por exemplo: a idéia de Brasil construída pelos intelectuais brasileiros de fins do século XIX passa não somente pelas intenções que cada um deles têm ao definir o conceito, como também pelos exteriores constitutivos desses conceitos – o que o Brasil não é -, como também autores contemporâneos e anteriores aos autores que escrevem. A escrita, nesse sentido, é sempre um processo de rasura, na qual a inscrição se coloca sobre outra inscrição, sem que se apague completamente aquilo que ficou como o arqui-rastro. Os textos, nesse caso, mais do que remeterem a um ou outro autor, formam uma rede na qual o autor é apenas um dos pontos de conexão de um mundo muito mais complexo. A desconstrução, com todo o seu arcabouço conceitual, possibilita historicizar radicalmente realidades carregadas por oposições binárias sem que tais oposições se esgotem em mônadas fechadas no seu conflito. Democracia versus ditadura, democracia liberal versus democracia socialista, brasileiro versus não-brasileiro, antigo versus moderno, moderno versus pós-moderno, imanente versus transcendente, são algumas oposições em que a operação desconstrutiva não somente contribui para historicizar, como também - o que dá na mesma – desnaturalizar conceitos e colocá-los em posições nas quais os conflitos não se esgotam na dinâmica exclusivamente dialética, mas em uma explosão monádica na qual toda e qualquer mônada é apenas um operador de relação.

O movimento da différance, na medida em que produz os diferentes e os diferencia, é a raiz comum de todas as oposições de conceitos que escandem nossa linguagem (DERRIDA, 2001, p. 14). Na différance, nenhum conceito, palavra ou qualquer enunciado primordial sintetiza ou comanda, a partir da presença autoral que configura o centro, o movimento textual das diferenças. O sentido, algo que o historiador busca compreender ao interpretar um texto é constituído de um tecido de diferenças, uma rede de remessas textuais a outros textos, uma transformação textual na qual cada termo supostamente simples é marcado pelo rastro de um outro, a interioridade presumida do sentido que é sempre centrífugo, uma força direcional que se desloca sempre para fora de si.

Derrida não nega a idéia de uma intencionalidade ou mesmo de um autor. O que o filósofo argelino questiona, acima de tudo, é que tal intencionalidade possa ser encontrada em um texto ou que o texto como “ato de fala”, possa traduzir literalmente a linguagem falada, o pai do discurso vivo que “se dá” nas locuções, ilocuções e perlocuções6.

6 Importante referir, aqui, a obra de Mark Bevir, que sugere um individualismo procedimental no qual a intencionalidade autoral depende de cada autor. A sua proposta relativiza o realismo autoral de Skinner, ao deixar aberto o significado para todo o sujeito que, numa dada circunstância, atribui significado hermenêutico (e não lingüístico ou semântico) a uma realidade qualquer. Ver: (BEVIR, 2011).

Page 8: HISTÓRIA DAS IDEIAS E DESCONSTRUÇÃO - ANPUH-RS · PDF fileda história das ideias políticas a partir da virada linguística. Meu foco será voltado para os historiadores Quentin

138 139

IV

Minha intenção, nesse artigo, não foi outra que a de contribuir para um diálogo entre a história das ideias e a filosofia, por meio de outra vertente que não a filosofia da linguagem ordinária de Austin, Searle e do segundo Wittgenstein. Não posso deixar de reconhecer que minha intenção me antecede, uma vez que não sou o primeiro a colocar esse problema como um problema para o historiador7. Além do mais, não pretendo romper com qualquer tradição ou escrever uma história “pós-moderna” sobre a escrita da história. Mais interessante do que a ultrapassagem ou o decreto da morte seja lá do que for – autor, deus, filosofia, história –, é mais interessante situar-se no limite, pois é o limite e sua demarcação que permitem, para falarmos com Derrida, a transgressão.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

AUSTIN, John. Quando dizer é fazer. Porto Alegre: Artmed, 1989.

BEVIR, Mark. Significado e intenção: uma defesa do individualismo procedimental. In: PAREDES, Marçal de Menezes, ARMANI, Carlos Henrique, AREND, Hugo (orgs.). História das ideias: proposições, debates e perspectivas. Santa Cruz: EDUNISC, 2011.

CABRERA, Júlio. Margens das filosofias da linguagem. Brasília: Ed. da UnB, 2003.

COSTA, Cláudio. Filosofia da linguagem. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.

DERRIDA, Jacques. Posições. Belo Horizonte: Autêntica, 2001.

_________. Limited inc. Campinas: Papirus, 1991a.

_________. Margens da filosofia. Campinas: Papirus, 1991b.

HARLAN, David. Intellectual history and the return of literature. The American Historical Review. V. 94, n.3, p. 581-609, jun. 1989.

POCOCK, John. Linguagens do ideário político. São Paulo: Ed. da USP, 2003.

ROUSSO, Henry. O arquivo ou o indício de uma falta. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, n. 17, p.85-91, 1996.

SKINNER, Quentin. Meaning and understanding in the history of ideas. In: TULLY, James (ed.). Meaning & context: Quentin Skinner and his critics. Princeton: Princeton University Press, 1988.

_________. As fundações do pensamento político moderno. São Paulo: Cia das Letras, 1996.

_________. Liberdade antes do liberalismo. São Paulo: Ed. da UNESP, 1999.

WHITE, Hayden. Teoria literária e escrita da história. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, vol. 7, n. 13, p. 21-48, 1994.

WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas. In: Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1979.

7 Ver, a esse respeito: (HARLAN, 1989).