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Abstrato: Neste trabalho, tentamos caracterizar a polissemia da palavra yoga e enquadrar as
práticas modernas numa perspetiva histórica, especialmente em Portugal. Por outro lado,
propomo-nos efetuar comparação com a evolução histórica em outros países, onde as aulas
de yoga se tornaram um produto valioso das modernas sociedades ocidentais secularizadas.
Com a mudança ocorrida no paradigma – o surgimento do moderno yoga postural –
emergente após a década de 1920 e no nosso país apenas no final da década de 1960,
diversos tipos de práticas e de escolas oferecem os seus serviços ao publico em geral.
Palavras Chave: Yoga, história, yoga moderno
Abstract: In this work, we try to characterize the polysemy of the word yoga to fit modern practices
in an historical perspective, especially in Portugal. On the other hand, we propose to make a
comparison with historical evolution in other countries where practice has become an
appealing product available in modern secularized western societies. With the paradigm shift
- the emergence of modern postural yoga - emerging in the late 1920s in India, in the United
States, and in some European countries, but in our country only in the late 1960s, various
types of practices and schools offer their services to the general public. Key words: Portuguese yoga, history, modern yoga
2
Práticas de yoga estão disponíveis em diversas cidades do nosso país. Embora
nascido na Índia, o yoga é hoje um fenómeno popular transnacional. Mas nem sempre foi
assim. Especialmente no último século, as práticas viajaram desde a Índia até à Europa e
América. O objetivo deste trabalho é explorar factos históricos associados às origens do yoga
no nosso país. Veremos também a tipologia estrutural das práticas do moderno yoga postural
e como o yoga foi redescoberto pelo ocidente. À revelia do acordo ortográfico, neste texto, optamos por utilizar a palavra yoga, como
na origem, não ioga. Incluímos também os sinais diacríticos de acordo com as normas de
transliteração do sânscrito, previstas no IAST1. Por outro lado, somos de opinião que a
dicotomia praticante – académico, se encontra, nos dias de hoje, ultrapassada. Os nomes da
maioria dos investigadores referidos nas ultimas páginas deste trabalho, são praticantes de
yoga. Teoria e prática são inseparáveis. Filosofia e Religião na Índia
Enquanto que no Ocidente existiu um momento temporal de separação inequívoca
entre religião e filosofia, na Índia os filósofos sempre pretenderam que o amor à sabedoria
desaguasse no reencontro com a essência de todas as coisas, o absoluto ou deus.
Embora não exista no sânscrito, a língua utilizada nos textos clássicos e antigos da
Índia, uma palavra que designe religião2, as visões filosóficas da realidade – cosmovisões –
estão vertidas na palavra ‘darśana’ 3. Nesse sentido, “religion includes a philosophical theory
of reality and also a plan to guide man´s life towards such a realization” (Raju, 2009, p.26).
Na Índia existem seis darśana ou sistemas filosóficos e religiosos ortodoxos. Esta
sistematização é de certa forma um constructo ocidental pois os próprios Indianos, na
antiguidade, não utilizaram essa classificação. De qualquer forma, são seis as escolas
ortodoxas da filosofia Indiana, chamadas de ‘āstika’. Além destas, existem também
cosmovisões heterodoxas, ou nāstika, tais como o Jainismo e o Budismo, que recusam os
Vedas como fontes de autoridade. Vejamos então, muito resumidamente, cada uma das seis
escolas de pensamento.
O Nyāya foi fundado por Akśapāda Gautama (cerca de 500 a.C.), que compilou os
famosos Nyāya sūtras. A Vaiśeṣika começou com Kaṇāda, que escreveu os Vaiśeṣika sūtras,
1 International Alphabet of Sanskrit Transliteration. 2 Sanātana Dharma é frequentemente usado na Índia e, entre diversos significados, pode referir-se a deveres ou leis universais. Vide https://www.britannica.com/topic/sanatana-dharma 3 Ver; visão; ponto de vista.
3
entre 600 a 500 a.C. O Pūrva-Mīmāṁsā foi um sistema fundado pelo sábio Jaiminī, que
compôs o Mīmāṁsāsūtra, por volta de 300 a 200 a.C. O Vedānta ou Uttara-Mīmāṃsā, fundado
por Bādarāyaṇa, é o culminar da sabedoria da filosofia indiana baseada nos ensinamentos
dos Āranyakas e especialmente dos Upaniṣads, disponíveis na última parte de cada Veda. O Sāṁkhya, fundado por Kapila, procede à enumeração e descrição das categorias da
existência da realidade. Recorre à terminologia ‘Prakṛti’ e ‘Puruṣa’, consideradas, grosso
modo ou num sentido mais comum, o espírito e a matéria. Por último, o yoga, que de forma
genérica se refere especificamente à escola de Patañjali, também chamada por alguma
doutrina de rājayoga, aṣṭāṅga yoga ou yoga clássico. Todas estas cosmovisões Indianas
partilham os mesmos conceitos de morte e reencarnação, ‘karma’ como ação e reação e a lei
universal ou ‘dharma’. O pensamento soteriológico Indiano defende que a vida em si mesma
encerra sofrimento que só a morte pode dissolver. A vida no corpo é um incidente temporal
de aprendizagem e evolução, mas o patamar final das consciências é supra corpóreo.
O Yoga
Existem diferentes tipos de yoga e a palavra é polissémica: há quase uma centena
de significados4. A palavra ‘yoga’ é utilizada com vários sentidos. Pode significar a união
espiritual entre a alma e o absoluto, por exemplo, a concentração da mente, ou mesmo a
completa supressão das flutuações mentais. No Ṛgveda, a palavra surge com vários
significados, como união, o agarrar de algo ou o alcançar de uma conexão. Mais tarde,
começou a ser utilizada como significando ‘união dos sentidos’. Com o crescimento das
religiões e das ideias filosóficas presentes no Ṛgveda, as austeridades religiosas, como o
ascetismo e o autocontrolo, tornaram-se cada vez mais proeminentes entre os pensadores, o
que explica que a expressão ‘yoga’, que era utilizada originalmente para designar o controlo
de cavalos selvagens, passou a significar ‘controlo dos sentidos’.
Para Pāṇini, ‘yoga’ pode significar ‘concentração’, se a sua raiz for yuj, ou ‘união’ ou
‘conexão’, se a sua raiz for yujir (Pāṇinī Sūtra,7.1.71). Já o Bhagavad-Gītā define ‘yoga’ como
sendo o estado mais alto da consciência em que nem dor nem miséria conseguem abalar o
praticante (Bhagavad-Gītā, II.48). A mesma obra diz que ‘yoga’ é a uniformidade da mente
(Bhagavad-Gītā, II.50) e é também a separação entre a mente e a tristeza, sendo, portanto, o
cessar do sofrimento (Bhagavad-Gītā, VI.23).
4 Vide o dicionário online de sânscrito: http://www.sanskrit-lexicon.uni-koeln.de/monier/
4
Uma excelente compilação dos significados da palavra yoga está disponível na obra
Roots of Yoga5. O sistema filosófico do yoga surgiu por volta da mesma altura que o Sāṁkhya.
É geralmente compreendido como sendo um conjunto de práticas físicas e de concentração,
mas o yoga é muito mais do que isso. Na verdade, é um sistema composto por duas partes:
uma parte teórica composta por diversos princípios e ensinamentos que são suportados por
argumentos lógicos, como qualquer outra filosofia; e uma parte prática através da qual as
suas doutrinas podem ser verificadas.
Segundo a definição do yogasūtra de Patañjali, o principal texto de referência para
muitas escolas, o yoga consiste na cessação das flutuações da consciência (yogasūtra 1.2,
abaixo). São necessários mais estudos que esclareçam se a palavra ‘citta’, no contexto do
aforismo, se traduz por mente ou por consciência.
yogash-chitta-vritti-nirodhah ||2||
योगि%च'व*ृ'+नरोधः
Apesar de não se saber precisamente a antiguidade das práticas de yoga, algumas
imagens de posturas em selos, pedras e estátuas, indicam que este sistema já existiria na
Índia antes da chegada dos arianos, cerca de 1500 a.C. O selo de Śiva, abaixo, encontrado
na cidade de Mohenjodharo, com três a quatro mil anos, mostra um indivíduo numa postura
de yoga.
Selo de Śiva – o senhor dos animais (Srinivasan, 2013, p.48)
5 Mallinson & Singleton, 2017, capítulo 1.
5
Diferentes tipos de yoga
Optamos por delimitar as referências ao yoga, nos parágrafos seguintes, ao âmbito do
hinduísmo e da própria Índia. Seria mais do que extensa, a possível consideração das
tradições yoguicas em outros países do sudeste asiático, nomeadamente Tibete, China e
Japão. Não pretendemos, por outro lado, neste curto documento, tecer quaisquer
considerações sobre práticas ou cosmovisões relacionadas com o yoga no budismo, o yoga
no jainismo ou em quaisquer outras tradições espirituais, que não seja o yoga védico. Se bem
que, como é sabido, as modernas práticas posturais terão sido impulsionadas pelo tantra
hindu, seguido por Matsyendranātha e Gorakhnāth, fundadores da tradição haṭhayoga.
os Upaniṣads referem, pela primeira vez, que o yoga é composto por um imenso
conjunto de práticas que claramente tinham sido organizadas a pensar no tema da
transcendência da condição humana. A tradição do yoga foi sendo transmitida oralmente de mestre para discípulo.
Paramparā, que significa literalmente ‘sucessão’, representa o ensinamento desses
conhecimentos. As diferentes tradições evoluíram sem qualquer registo escrito. Se por um
lado, o clima húmido da Índia não é propício para a conservação de documentos escritos –
como aconteceu no Egipto-, a verdade é que a oralidade Indiana conseguiu conservar na
memória do povo as mitologias e tradições, de forma a que não sofressem a erosão do tempo.
Para o Indiano comum, através das histórias familiares, é perfeitamente normal saber da sua
genealogia relativa a séculos passados.
As disciplinas do yoga clássico
As oito técnicas do rāja6 ou aṣṭāṅga yoga, são:
yama (cinco abstenções ou restrições),
niyama (cinco observâncias éticas),
āsana (posturas psicofísicas),
prāṇāyāma (gestão da energia vital através de exercícios de respiração),
pratyāhāra (abstração dos sentidos),
dhāraṇā (concentração),
6 Real; de realeza. Não que o praticante se torne rei, mas sim porque adquire o domínio completo das suas faculdades internas.
6
dhyāna (meditação) e
samādhi (hiperconsciência ou en stasis7).
Yama pode ser visto como uma série de regras sociais que devemos respeitar. Existem
cinco. A primeira é ahiṃsa, a não violência. Depois está satya, a observância da verdade, não
mentir. Brahmacharya é a sublimação da energia sexual ou castidade. No Yogasūtra, Patañjali
afirma que o yogui que pratique o celibato adquire grande vigor (Yogasūtra, 2.38). Em quarto
lugar está asteya, ou não roubar. Por fim, aparigraha, significa não aceitar subornos.
A segunda disciplina, niyama consiste na observância pessoal de cinco regras. Śauca
é a pureza interna e externa (mental e física) que o praticante deve cultivar através de atitudes
positivas. O corpo deve ser mantido puro, não só através da higiene pessoal e das ações de
purificação, mas também através da alimentação, já que esta afeta tanto o corpo como a
mente. A segunda regra de conduta é o contentamento, ou santoṣa. O indivíduo deve
contentar-se alegremente com aquilo que tem em vez de ocupar a sua mente com desejos
daquilo que não tem e de como gostaria de alcançar ou obter essas coisas. Tais desejos e
apegos distraem a mente e impedem-na de se concentrar. Tapas é a austeridade e a
autodisciplina. Na Índia, a palavra ‘tapas’ foi o termo mais antigo utilizado para designar as
práticas do yoga. Significa literalmente ‘calor’ ou ‘abrasador’. No Ṛgveda, a palavra é usada
para descrever o sol e o fogo, um calor que chega a ser doloroso na sua intensidade, mas
essencial à vida. Foi o uso metafórico de tapas que começou a ser utilizado no sentido de
fervor ou zelo. Assim, a palavra tapas passou a designar o esforço religioso ou espiritual, a
disciplina que o homem impõe a si mesmo sob a forma de prática ascéticas. (Feuerstein,
2016; pp.106-110). O Ṛgvidhāna, de Śaunaka, recomenda que o adepto pratique tapas,
estude os vedas e cultive compaixão por todos os seres. Tapas é sempre associado à
aquisição de poderes psíquicos, mas o yoga espiritualizou esta tradição, dando mais
importância à auto transcendência que advém dela do que aos poderes paranormais em si.
O quarto niyama é svādhyāya, o estudo constante de si próprio, do mundo e da realidade
através da leitura dos textos e da busca do conhecimento espiritual. Īśvarapraṇidhāna é a
entrega de si mesmo a Deus, o Īśvara ou Brahman.
A prática física pela qual o Yoga é conhecido em todo o mundo é apenas a terceira
disciplina desta tradição: o āsana. As posturas físicas pretendem trabalhar o corpo para que
este possa mais facilmente aguentar longos períodos de meditação e para que o indivíduo
exerça controlo sobre o seu corpo e a sua saúde. Existem vários tipos de posturas. Algumas
7 Palavra criada por M. Elíade para designar o estado alterado de consciência do yogui, em comparação ao ‘ex stasis’ do xamã.
7
podem ser facilmente conseguidas, outras apenas devem ser praticadas sob a supervisão de
um praticante experiente, pois podem causar lesões.
Se o indivíduo não consegue permanecer sentado durante um longo período de tempo
sem sentir dores nos membros e articulações, também não se vai conseguir concentrar com
sucesso. Ele precisa, não só de encontrar a posição correta para o seu corpo, como de a
praticar. Ademais, o praticante dificilmente vai manter a concentração se sofrer de problemas
de saúde. Para ultrapassar essas irregularidades, a prática do āsana é recomendada. No
Yogasūtra, Patañjali apenas dedica três versos ao āsana. O sūtra 2.46 diz que o āsana deve
ser firme e confortável. No sūtra 2.47, Patañjali diz-nos que a prática correta da postura é
alcançada pelo relaxamento das tensões, ou diminuição do esforço, e pela contemplação no
infinito. Finalmente, no sūtra 2.48, Patañjali afirma que a prática do āsana traz imunidade aos
opostos da vida.
Prāṇāyāma, ou técnica de respiração para controlo do prānā, é a quarta camada do
Aṣṭāṅga ou rājayoga. Consiste no controlo da inspiração (pūraka), da retenção (kumbhaka) e
da expiração (recaka). O seu objetivo é controlar a energia vital do corpo (prānā), através de
exercícios respiratórios, e acalmar a mente. Assim que a respiração é estável, a mente
também se torna estável.
O próximo passo do yoga clássico é o recolhimento dos sentidos, pratyāhāra. Este
recolhimento é o movimento da atenção dos objetos externos ao indivíduo para o seu interior,
dirigindo os seus pensamentos para a sua própria mente. Os sentidos físicos estão lá, embora
com atividade reduzida, mas os processos mentais que os acompanham estão dirigidos para
as profundidades da mente.
É aqui que começa a prática interna do yoga, chamada de antaraṅgasādhana. As
primeiras quatro camadas do yoga clássico são práticas externas, ou físicas, chamadas
bahiraṅgasādhana. Dhāraṇa consiste em manter o objeto da concentração como único foco.
É a atenção ininterrupta num só ponto, sem perturbações ou interrupções.
A sétima camada do rājayoga é a meditação, ou dhyāna. Esta é o fluxo contínuo e
espontâneo dos processos de citta8 para objeto de concentração. Para o Yoga e para o
Sāṁkhya, o objeto como o conhecemos é apenas uma modificação de citta e a natureza de
citta é estar em constante fluxo, movendo-se de objeto para objeto. Em dhyāna, este fluxo
8 Substância mental; agregado mental.
8
está fixo num só objeto. Em dhāraṇa, a fixação é conseguida com algum esforço e só quando
esta se torna espontânea, o indivíduo entra em meditação.
Quando a meditação é desenvolvida, o praticante alcança samādhi. A oitava e última
disciplina do yoga é o estado de supraconsciência. Em dhyāna, citta reconhece-se a si própria
além de reconhecer o objeto. Em samādhi, citta não se reconhece, apenas o objeto existe e
citta conhece-o na sua totalidade. Se o praticante meditar no seu próprio eu, constata a sua
verdadeira identidade. Contudo, a meditação na realidade interior é um processo gradual, que
deve começar com objetos exteriores (como uma luz, uma vela, uma imagem, a respiração)
e ir-se dirigindo lentamente para o interior. O yogasūtra distingue dois tipos de samādhi: o
baixo, ou samādhi com semente (sabīja-samādhi) e o alto, ou samādhi sem semente (nirbīja-
samādhi) que correspondem a patamares da consciência na sua viagem interna de
descoberta metafísica e autorrealização.
Note-se que o samādhi não é a meta do yoga. O verdadeiro objetivo é a completa
cessação de todas as funções da consciência, a transcendência do ego, que opera a
separação da materialidade finita – o corpo e a mente - e a autoidentificação transcendental
com a eternidade do espírito. No samādhi, o objeto de meditação está presente, assim como
o fluxo constante de citta para com esse objeto, o que significa que a mente não está ainda
parada. Só se pode afirmar que citta está totalmente quieta quando a consciência regressa à
sua origem, ou seja, o puruṣa9 se apercebe da sua verdadeira natureza, separada das ilusões
da prakṛti.
Questão atual e pertinente, a nosso ver, é a de sabermos se as oito disciplinas deverão
ser praticadas na sequência suprarreferida. A este propósito, Patañjali refere que o
prāṇāyāma deve ser efetuado após a permanência da postura (yogasūtra 2.49). De qualquer
forma, com relação ao objetivo das práticas, “The yogāngas not only remove the impurity of
the mind but help it further by removing obstacles in the way of attaining the highest perfection
of discrimative knowledge” (Dasgupta, 2007, p.135).
Īśvarapraṇidhāna, um dos cinco niyama já referidos, é a entrega ou rendição do
adepto, a Īśvara ou Deus. Porém, a técnica da devoção à divindade não ocupa um lugar
central no sistema filosófico Patañjaliano. Deus não é propriamente um criador, nem
sustentador ou destruidor: tem um papel bem mais modesto. Trata-se de uma problemática
pertinente e interessante, porém, não é nosso objetivo neste trabalho justapor o tema.
9 Um dos significados de puruṣa é espirito e prakṛti poderá significar matéria.
9
De salientar que, conforme acima referido, a prática física pela qual o yoga é
mundialmente conhecido parece estar vertida na terceira disciplina do sistema: o āsana. No
yogasūtra, entre 196 aforismos, Patañjali apenas dedica três versos às posturas10.
Poderíamos arguir até que ponto o texto será uma referência, de continuidade e autoridade,
no entender das modernas escolas do yoga postural, uma vez que não existem descrições
anatómicas nem referências às posturas hoje praticadas. No nosso entender, o suporte
literário terá de ser procurado nos textos tardios da tradição do haṭhayoga11.
Tomada de consciência pelo ocidente
Não deixa de ser curiosa a descoberta e entrada do yoga no mundo ocidental. Como
veremos abaixo, é no âmbito do vasto conjunto das filosofias da Índia que o yoga é
inicialmente considerado. Nos finais do século XVIII, os círculos intelectuais europeus não
creditam relevância particular à novidade Indiana. Só um século depois, especialmente com
Vivekananda e a sua participação no parlamento das religiões em Chicago, no ano de 1893,
o yoga emerge do casulo intelectual e desperta a atenção das classes sociais médias, nas
populações da Europa e dos Estados Unidos. Embora Vivekananda tenha representado a
India e o hinduísmo, o seu objetivo inicial nunca foi o de divulgar o yoga.
Com o domínio Britânico da Índia, houve necessidade de compilar e traduzir antigos
textos legais que permitissem posterior codificação e aplicação de um sistema legal comum a
todos os Indianos. Em 1785, numa publicação da sociedade asiática, uma nota de rodapé de
Sir Charles Wilkins refere um trabalho metafísico chamado Patanjal. A partir dos últimos anos
do século XIX, com Friedrich Max Muller12 e os primeiros Indologistas, o yoga é estudado nos
círculos intelectuais e académicos da Europa. Com a disseminação do estudo elaborado pelo
Inglês Colebrook, o romantismo alemão e o próprio Hegel conhecem as filosofias da Índia. O
grande filósofo terá referido a filosofia do yoga, inserida na temática da filosofia oriental, na
universidade de Berlim em 1925-26 (White, 2014,pp.58-82).
10 Yogasūtra de Patañjali 2.46 a 2.48 11 Especialmente os textos śivasaṁhitā, gheraṇḍasaṁhitā e haṭhayōgapradīpikā. 12 Em 1899, é publicado o livro de Max Muller, The Six System of Indian Philosophy. O yoga é referido no capítulo VII.
10
O yoga moderno
A periodização da modernidade no yoga não vai além dos últimos cem anos, com
particular interesse das décadas de 1960 e seguintes, no nosso país. Deixamos em aberto a
relação da secularização13 e possível conexão com a expansão do yoga em Portugal, porque
carece de mais investigação. Não obstante haver maior dispersão e possibilidades de crença,
o facto é que o yoga se torna mais popular depois da viagem dos Beatles à Índia, em fevereiro
de 1968, e a ‘adoção’ do guru Indiano de meditação Maharishi Yogui.
Entretanto, a mudança de paradigma ocorre entre as décadas de 1920 e 1950. Com
Krishnamacharya, seus discípulos BKS Iyengar e Pattabhi Jois, Kuvalayananda e Yogendra,
entre outros, as práticas de yoga tornam-se eminentemente posturais. Na época de
Vivekananda, e mais acentuado nos anos vindouros, o yoga torna-se medicalizado,
remisturado com a new age e o esoterismo ocidental14, movimentos nacionalistas hindus15, e
exportado para o ocidente como um produto de bem-estar físico, mental e espiritual, de
desenvolvimento pessoal, associado à corrente religiosa Indiana dominante da época – o
advaita vedanta. O caminho histórico e transformativo do yoga moderno está bem
documentado em três livros essenciais: A history of modern yoga, de Elizabeth de Michelis;
The path of modern yoga, de Elliott Goldberg; Yoga body: the origins of modern posture
practice, de Mark Singleton.
Segundo De Michelis, as práticas do moderno yoga postural contêm elementos rituais
de cura de religião secular, apresentam uma estrutura característica. O acesso experiencial
ao sagrado, com o propósito oculto de conectar tradição e modernidade, profano e o sagrado,
é facilitado pela fórmula popular ´do it yourself’. A autora diz-nos:
“The one to one-and-a-half hours of the standard MPY session is usually divided into three parts: (i) introdutory quietening time: arrival and settling in (about ten minutes); (ii) MPY practice proper: instruction in postural and breathing practice given by the instructor throught exemple, correction and explanation: (iii) final relaxation: pupils lye down in śavāsana (‘corpse pose’) for guided relaxation, possibly with elements of visualization or meditation (ten to twenty minutes). This period includes a short ‘coming back’ time at the end of relaxation session.” (De Michelis, 2004, p.251)
13 Para melhor expandir esta opinião vale a pena ler as obras de Charles Taylor, a Era Secular, e Fernando Catroga, Entre Deuses e Césares: Secularização, Laicidade e Religião Civil. 14 Especialmente a Teosofia. Em 3 de Abril de 1905 a Sociedade Teosófica transfere a sua sede para Adyar, Índia. 15 Neo-vedanta, mas em especial a organização Brahmo Samaj.
11
Culturas do yoga nas modernas sociedades ocidentais
Com a formação de uma nova área académica - o yoga moderno -, diversos estudos,
entretanto já publicados, testemunham a dimensão da aculturação ou apropriação do yoga
pelas sociedades ocidentais contemporâneas e seculares. Além das três obras atrás
referidas, sobre aspetos da história do yoga moderno, vale a pena expandir os horizontes,
com especificidades vertidas em outras obras. Suzanne Newcombe16 escreve sobre o
revivalismo do yoga na Índia contemporânea e Joseph Alter17, numa perspetiva antropológica,
sobre o corpo entre a ciência e a filosofia. Ainda Newcombe18, no anexo da sua tese de
doutoramento, elabora uma sinopse de acontecimentos ligados ao yoga e ayurveda em
Inglaterra. Já na Letónia, a receção do yoga, a partir dos finais da década de 1920, é revelada
numa publicação de Solveiga Krumina-Konkova19. Em França e na Alemanha, Silvia
Ceccomori20 e Christian Fuchs21, respetivamente, escrevem sobre a história e culturas do
yoga nos seus países. Sobre os Estados Unidos, pertinente a obra de Elliott Goldberg22,
especialmente o quarto capítulo sobre a emergência do haṭhayoga na América. Não é difícil percebermos, em jeito de síntese comparativa, que a estrutura do yoga
moderno, não só nas sociedades ocidentais, mas também na própria Índia contemporânea, é
a mesma e manifesta inequívoca primazia estético-terapêutica do corpo. As finalidades do
yoga dependem das cosmovisões dos seus adeptos: religiosa ou espiritual, filosófica e ética,
de saúde e bem-estar físico ou mental, enfim, o fitness.
A ‘ressacralização’ do corpo, por via dos rituais da ortopraxia yoguica e simbologia
conexa nos centros e escolas, é essencial para entendermos o yoga contemporâneo. Os
efeitos das práticas, dos ambientes envolventes, e a relação entre o contexto e as técnicas,
permitem o ‘empoderamento’ do praticante (Nevrin, 2008, pp.120-136).
O yoga reúne características de religiosidade terapêutica23 ou, melhor dizendo, de
terapia religiosa. Para Fields,
16 Newcombe, Suzanne (2017). The Revival of Yoga in Contemporary India. Oxford: Research Encyclopedia of Religion. 17 Alter, Joseph S. (2004). Yoga in Modern India: The Body between Science and Philosophy, New Jersey: Princeton University Press. 18 Newcombe, S. (2008). A Social History of Yoga and Ayurveda in Britain, 1950-1995 in the Faculty of History, University of Cambridge. 19 Krumina-Konkova, Solveiga, “Learning a Foreign Experience: the Beginning of Yoga Movement in Latvia”, in Religious Experience & Tradition International interdisciplinar scientific conference, 2012, Kaunas. 20 Ceccomori, Silvia (2001). Cent ans de Yoga en France, Paris: Edidit. 21 Fuchs, C. (1990). Yoga in Deutschland. Rezeption. Organisation. Typologie, Broschur: Kohlhammer. 22 Goldberg, Elliott (2016). The Path of Modern Yoga: The History of na Embodied Spiritual Practice. New York: Inner Traditions 23 Para expandir esta opinião, vide a página da associação internacional de yogaterapeutas – www.iayt.org
12
“Yoga upholds a standard of human well being – pshycophysical and spiritual – that greatly expands our view of the body, health and human potential. The wholeness that is holiness, the liberation that is healing in its fundamental meaning, is the goal of yoguic religious therapeutics.” (Fields, 2001, p.94).
Yoga em Portugal
Com relação à narrativa histórica das práticas do yoga no nosso país, de tradição
maioritariamente católica, somos de opinião que a investigação vai apenas na fase da
infância. No entanto, divulgamos desde já os primeiros dados das nossas pesquisas junto das
fontes. Julgamos pertinente distinguir dois momentos: da primeira república até ao Estado
Novo e as décadas seguintes. As práticas são privadas, talvez secretas, durante o Estado
Novo. Sabemos que a Sociedade Teosófica se estabelece em Portugal em 15 de Setembro
de 1921. Fernando Pessoa traduz várias obras editadas pela sociedade. O poeta toma
conhecimento da espiritualidade Indiana, eventualmente por via da teosofia, e em alguns
versos24 refere as palavras ‘yoga’ e ‘meditação’.
Em 1961 a União Indiana reconquista e anexa Goa ao seu território. De seguida, o
regime proíbe a entrada de Indianos em Portugal. Este facto, associado à conjuntura social e
aos movimentos de contracultura da época, leva-nos a problematizar onde terão aprendido
yoga e que formação teriam os primeiros portugueses a ensinar publicamente yoga em
Portugal. Avançamos a hipótese dessa aprendizagem ter sido efetuada com outros
praticantes Europeus, nomeadamente Franceses e Ingleses, que se deslocavam ao nosso
país. As primeiras formações de instrutores de yoga, de forma profissional e estruturada,
surgiram na Índia com Vishnudevananda, no ano de 1969.
Já no declínio do regime fascista Português, surgem, de forma organizada, instituições
que disponibilizam publicamente aulas de moderno yoga postural, lideradas por mulheres,
como o Ginásio Club Português, no ano de 1973. Maria Helena de Freitas Branco consta nos
registos da instituição como a primeira professora de yoga. Seguiu-se Clotilde Ferreira e
outras professoras. Consideramos pertinentes os factos históricos disponíveis e uma possível
narrativa do yoga do género. Sabe-se que as práticas Indianas, desde as origens até ao início
do século XX, foram praticadas quase exclusivamente por homens. A inversão do paradigma
– hoje as aulas de yoga são frequentadas maioritariamente por mulheres – poderá estar
24 Para melhor aprofundar esta ideia, vide Da Mota, P. (2016). A Caminho do Oriente. Oriente e Orientalismo, 230.
13
relacionada com movimentos de emancipação da mulher moderna, a reconquista de direitos
potestativos e as finalidades estético-terapêuticas do moderno yoga postural.
Sob proposta do vice-presidente do Ginásio Club Português, Manuel Rodrigues, o
yoga é proposto e aceite como nova modalidade desportiva, na reunião da direção do ano
1973. Outras modalidades, karaté, musculação, badminton, foram também introduzidas nesse
ano.
Ata de 1973, do Ginásio Clube Português, que institui a ‘nova modalidade’ yoga. Foto de Paulo Hayes
Existiam 363 praticantes de yoga, nesta instituição e no ano letivo 1974/75, 375
praticantes no ano seguinte. Trata-se, sem dúvida, de um número elevado de adeptos – em
comparação com os das artes marciais, ballet ou musculação nesse ano -, o que comprova o
sucesso desta nova modalidade nos primeiros anos das atividades.
14
Número de participantes das ‘outras modalidades’ do Ginásio Clube Português. Foto de Paulo Hayes
Em 1974 as despesas com o corpo docente, das aulas de yoga, foram de 36.972 Escudos e a receita total de 73.945 Escudos.
Mapa de despesas e receitas do Ginásio Clube Português. Foto de Paulo Hayes.
15
Na década de 1980, surge em Portugal a escola brasileira ‘DeRose’, com aulas
caracterizadas por estilo coreográfico onde as posturas são executadas de forma sincrónica
com faixas musicais. Jorge Veiga e Castro funda a escola sāṃkhyayoga, um estilo bhakti-
shakti com posturas e mais treze técnicas. Em Janeiro de 1982, é fundada a Comunidade
Hindu de Portugal que, apesar de reunir muitos indianos provenientes de Moçambique, não é
especificamente uma escola de yoga. Nas ultimas décadas surgem a Associação de Yoga
Integral, a Associação Europeia de Terapias Orientais, a Federação Portuguesa de Yoga,
entre muitas outras instituições e indivíduos, de norte a sul do país, que lecionam aulas de
yoga de forma avulsa e facilitam cursos de formação para instrutores.
Vimos que a palavra yoga é polissémica, significa experiências e cosmovisões
diferentes, mediadas em conformidade com o ‘background’ cultural dos praticantes. No nosso
país existem diferentes práticas e estilos de yoga. Referimos algumas escolas, a título de
exemplo, que atualmente ensinam moderno em Portugal, embora com diferentes
terminologias e estruturas organizacionais. Na falta de melhor terminologia, optamos por
utilizar o termo criado pela investigadora De Michelis – ‘modern postural yoga’. Enquanto
julgamos dar os primeiros passos na tentativa de reconstruir a história das culturas do yoga
em terras lusas, certamente com muito por contar, a narrativa histórica do yoga em outros
países da Europa e da América está já bem documentado. Nas modernas sociedades
ocidentais, o yoga tornou-se um produto valioso, popular ou ´mainstream’, disponível como
remédio contra o stress e o frenesim consumista, ou como simples fitness em ginásios,
associações desportivas ou ervanárias.
A oferta e procura de aulas de yoga, em espaços públicos e privados, cursos de
formação e retiros, é cada vez maior. Julgamos necessária uma regulamentação do setor,
que possa unir praticantes e instrutores, uniformizar critérios formativos, criar um código
deontológico, enfim, defender os consumidores perante eventuais reclamações ou
ilegalidades, emergentes das novas relações jurídicas.
Embora inexistam normativos jurídicos setoriais, a nível dos países Europeus, somos
de opinião que teorias e práticas do yoga poderão subsumir-se em três grandes grupos de
atividades, a ser melhor investigado, a saber:
• Exercício físico ou fitness
• Religião e espiritualidade
• Terapia complementar
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Da nossa parte, entrevistamos o ex-secretário do estado do desporto e da juventude,
Professor Doutor Alexandre Miguel Mestre, solicitamos reunião à comissão da liberdade
religiosa e outras instituições. Conforme atrás referido, julgamos que o interesse académico
nas culturas do yoga e da meditação, será cada vez maior no nosso país nos próximos anos.
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Publishers, LTD. De Michelis, E. (2004). A History of Modern Yoga: Patañjali and Western Esotericism.
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Editora Pensamento-Cultriz Lda. Fields, G. P. (2001). Religious Therapeutics: Body and Health in Yoga, Ayurveda, and
Tantra. Albany: State University of New York Press. Mallinson, J., & Singleton, M. (2017). Roots of yoga. London: Penguim Classics. Nevrin, K. (2008). Empowerment and Using the Body in Modern Postural Yoga. In M.
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University Press. Fotografias Ginásio Club Português