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Hoje Acordei Gorda - S.F

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A obra de Stella Florence reúne uma série de artigos de sua autoria que, com bom humor, retratam situações de preconceito sofridas pelas mulheres na sociedade em que vivemos.

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Hoje acordei gorda

Stella Florence

HOJE ACORDEI GORDA

Digitalizado por SusanaCap

Revisado por Eve Dallas

www.portaldetonando.com.br/forum/portal.php

Rio de Janeiro - 1999

Copyright 1999 by Stella Florence

Direitos desta edio reservados

EDITORA ROCCO LTDA.

Rua Rodrigo Silva, 26 5 andar

20011-040 - Rio de Janeiro, RJ

Tel.: 507-2000 - Fax: 507-2244

Printed in Brazil / Impresso no Brasil

Preparao de originais RYTA VINAGRE

CIP-Brasil. Catalogao-na-fonte

Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

Florence, Stella

Hoje acordei gorda / Stella Florence. - Rio de Janeiro : Rocco, 1999.

1. Obesidade - crnica. 2. Emagrecimento - Crnica. I. Titulo.

Voc tem fome de qu?

Comida - A. Antunes, M. Fromer e S. Britto

NDICE5Contracapa

5Abas

7Prefcio Mario Prata

10Manequim 40

15Me deixa engordar em paz!

22A sogra e a banana frita

31Bem mais que um corpo perfeito

35Sempre haver a comida ou uma barata...

41 s um piolho

44A confisso de Silvana

48A r boquiaberta

57Joo Carlos, o gordo

61Simplesmente no pensei

76Hoje acordei gorda

78Guardanapos na cabea

84A mscara da convivncia

90Os homens so todos iguais

93O medo do vento

99Uma pessoa analisada

104Caroos so feitos para serem cuspidos

107Era uma vez um Spa

110O dia em que tirei frias de mim

114Sai da minha frente, Anbal!

116Beijar obeso no pecado

121No acredite em nada

127Eva era gorda mesmo

130A vtima

139Pantufas de cachorro

145A fome-por-ela-mesma

Contracapa

Ao contrrio do que se pode imaginar, nem todas as personagens desse livro so gordas: umas no so, mas se sentem; outras no se sentem, mas so; umas emagrecem, outras engordam; umas confundem suas fontes, outras sabem exatamente quais so; umas acusam o marido, outras, o endocrinologista; umas vo luta, outras descambam; umas tomam laxante, outras deitam no div do analista; umas se detestam, outras se adoram.

So todas habilmente delineadas pela mo de uma das poucas e boas escritoras cmicas que tm despontado na literatura nacional. Com humor sutil e apurado, Stella Florence promete conduzir os leitores a um agradvel universo de entretenimento, que nos nossos dias se faz indispensvel freqentar.

Abas

Voc j fez dieta algum dia na sua vida? J suou para vestir uma cala justa? J tentou emagrecer s para impressionar o seu ex? J teve vontade de esganar alguma vendedora de roupas metida a modelo-manequim? J se julgou a ltima das criaturas ao quebrar uma dieta? J se perguntou, mil vezes, por que acaba sempre engordando tudo de novo? J desconfiou que, talvez, sua fome no seja s de comida? Ento, relaxe e aproveite: nestas pginas, seu prazer est absolutamente garantido! Afinal, nunca ningum foi to fundo no universo dos gordinhos e seus meandros cavernosos.

As personagens que desfilam pelas pginas desse livro embora tenham, cada uma, sua prpria histria possuem um ponto em comum: uma relao muito estreita com a comida.

Stella Florence paulistana, nascida em 1967, formada em Letras.

Depois de dez anos como secretria executiva, resolveu abraar a carreira literria e, aps escrever crnicas para vrias revistas e jornais, publicou o livro de contos Por que os homens no cortam as unhas dos ps?, que ser reeditado pela Rocco.

Ilustrao de capa e miolo: MARIANA MASSARANI

PrefcioMINHAS GORDAS PERSONAGENS

MARIO PRATA

Elas no sabem que so minhas personagens. Ainda.

Estou sentado no restaurante do Spa-So Pedro, em Sorocaba. Acabamos de jantar. Elas ficam nas mesas, conversando, trocam receitas, calorias, bodes. Outras vo ver televiso. Umas jogam buraco. Cada uma delas tem um motivo muito especial para estar aqui. E um denominador comum: so gordinhas. So minhas cobaias. So minhas novas personagens.

Com umas vinte estadas aqui no Spa, me sinto todo metido para achar que entendo cada uma delas. At j escrevi um livro: Dirio de um magro. Muitas dessas que esto aqui, agora, na minha frente, quase que se oferecendo para ser personagens desse livro, j leram o outro.

Este livro meu melhor livro que voc tem agora em suas mos deveria se chamar Dirio de uma gorda. Mas achei bvio demais. Resolvi, inclusive, assinar esse livro com um pseudnimo feminino.

Acho que, como mulher, vou convencer mais. Pensei em Esteia, talvez ainda influenciado por 40 dias em Paris no Mridien-Etoile. Depois achei melhor Stella, talvez ainda influenciado pela Stella Barros, que me levou pra l. E j que era Stella, que fosse Florence, para universalizar mais a obesidade.

Fico aqui, da minha mesa, vendo e ouvindo as minhas personagens reais.

A Cludia Vilela, por exemplo, que depois de dezessete anos, trs filhos e onze meses de dieta baseada em setecentas calorias/dia e exerccios fsicos regulares, voltou a ser manequim 40 e planeja uma grande vingana para quem sempre a olhou com olhos gordos. Ela j pode.

A Andra de Lima Barbosa, que j foi gorda, fez tanto regime que est agora com um srio problema de anorexia. Periga sumir.

A ngela Marques da Costa, que tem medo de barata e quase morreu para matar uma. Chegou aqui no Spa toda esfolada, machucada.

A Esteia Shering, que desde os doze anos ouve: "C t gorda." Semana passada foi a vez do marido dizer essa frase pela primeira vez, depois de tantos anos felizes e juntos.

A Silvana Lando, coitada, que tem uma irresistvel fixao em pizza. Isso a leva a verdadeiros delrios de culpa. Catlica, afirma que gorda catlica sofre muito mais.

Do lado da Silvana, est uma gordinha muito bonita e que eu ainda no sei o nome tem cara de Pitucha e que me disse que s vai ficar numa boa quando os pedreiros voltarem a mexer com ela na rua.

O Joo Carlos Bozo, vulgo Midinaite, um bochechudo, desajeitado, tarado, entalado, rejeitado, obeso, alinhado e adorvel gordo.

A Renata Kupidlovski ( esse o nome dela?) chegou cheia de problemas, depois de passar por um tenebroso seqestro. Ficou horas amarrada junto do Raul, corpo a corpo, toda gorda. Foram momentos inesquecveis, segundo ela mesma. Que emenda: "A esperana a ltima que morre, mas morre."

Sabe aquelas calas de lycra? Voc no pode imaginar a ginstica que a Janana Diniz, de catorze anos, faz para colocar uma. Vai esticando, esticando e o que sobra acima do umbigo, s vendo.

Tem tambm a Pichadora. Ningum sabe o nome dela, mas famosa aqui por ser pichadora. Picha os muros das casas dos namorados que a trocam por duas de 50 (quilos).

A Sandrinha Abdalla, que acha que todos os endocrinologistas so completamente ignorantes.

E a mulher do seu Anbal Machado, ento? Um prato cheio, como personagem.

A Lusa Sawaia, que parece viver no passado e que me disse que veio para c porque gosta de beijar gordos. Tem se dado muito bem.

A Walquria Lobo, que foi abandonada h onze meses, vinte e trs dias e quinze horas pelo Maurcio. Mas ela promete vingana. O Maurcio no presta, ela provou pra gente.

Tem a Ana Empanada que no engole gema, tem a bisneta da Leonor e seu boc de mola, tem a Slvia Campolim cheia de dores e doritos, tem a secretria Sueli Florena da Silva eficientssima, tem a Luciana de Francesco louca pra dar, tem aquela uma que sumiu na gaveta, tem a Camila Amado com Sndrome da Mendiga Obesa, e tem aquele que acha que Eva foi a primeira gorda.

E ainda tem aquela outra gordinha, uma elementa que afirma que a fome dela outra: diz que tem fome de amor.

Como todas, alis.

Manequim 40

A constatao

Meu nome Cludia e hoje, s 16h40min, vestindo uma cala de couro da adolescncia, constato que meu manequim, aps dezessete anos, trs filhos e onze meses de dieta baseada em setecentas calorias/dia e exerccios fsicos regulares, voltou a ser 40.

Analiso cientificamente a cala no meu corpo. O cheiro de naftalina incomoda, mas no perturba minha ateno. Viro de costas, de lado, percebo folga de pano nas duas pernas, abro e fecho o zper facilmente. Encaro meus olhos no espelho agora amigo e trao um sorriso sombrio no meu novo rosto sem papada.

A costura

Estou exausta de contentamento. Escancaro meus guarda-roupas e jogo tudo o que no manequim 40 e que eu continuava guardando por hbito sobre a cama. Abro caixas e saquinhos com roupas antigas que convenientemente voltaram absoluta ltima moda e as sacudo com vigor. Espirro. Levo para a sala dois grandes sacos de roupa: um para dar e outro para consertar.

Hoje no tem jantar. Que peam pizza, que esperem o pai, que comam todos os salgadinhos no armrio, se quiserem. Tenho muito o que costurar.

Hoje no tem cafun. Que pegue mais um cobertor, que assista a um filme qualquer na TV, que tome um sonfero, se quiser. Tenho muito o que lavar.

Costuro, obstinadamente, e lavo roupa por toda a madrugada. As mquinas no so desligadas: tenho muito o que recuperar. Hoje no tem vocs, no. Nem amanh. Cada um acorde como puder.

O plano

Eu vou ao shopping comprar uma cala jeans modelo bsico: meu corpo magro pede justia!

Durante anos freqentei casas especializadas em moda para gordinhas, no s por serem lugares em que encontraria meu nmero com mais facilidade, mas, principalmente, por serem os nicos de fato, os nicos onde eu era tratada como uma freguesa comum: com ateno, respeito, lisonja. Desciam todo o estoque do que mais me interessasse, traziam cafezinho, sorrisos a granel, costureiras solcitas de planto, vendedoras sem medo de gordas. Vendedoras que, ao contrrio das de shopping, nunca me olharam de cima a baixo como que dizendo: "Ah, no! Esse barril suburbano tem a iluso de poder entrar em alguma das nossas roupas? Pode at estourar alguma se tentar... e pelo jeito no pode nem pagar por elas. Como que gente assim no se toca?"

s vezes, a custo de certa humilhao, conseguia entrar cabisbaixa no provador das lojas de roupas "normais"; ento eu acelerava o ritmo para experimentar o mais rpido possvel a pea desejada. Gemia baixinho, pulava, suava e quando a roupa estava quase por entrar, a balconista abria a cortina e decretava, segurando a risadinha por ter me visto semidesnuda: "No serve, senhora. Esse o maior nmero que temos. A senhora no quer experimentar um camiso?"

Por que diabos elas sempre abriam as cortinas me fazendo passar por tamanho vexame? Essas meninas devem carregar sensores nos relgios, s pode ser. Exatamente na hora "h", no momento mais indiscreto, quando eu me encontrava na posio mais humilhante do planeta com meio bumbum de fora, bang, elas me pegavam no ato. Isso quando no havia uma criana muito mal-educada que, de cinco em cinco segundos, puxava a cortina para fora e dizia: "Mame, olha a gorda!"

A preparao

Escolho no a loja mais cara do shopping, mas a com maior coeficiente de frescura por centmetro quadrado. Por coincidncia, tambm a mais cara.

Vocs a, vendedoras que sempre me olharam de esguelha e, me dando as costas, diziam, sem esboar um sorriso sequer, "no temos o seu nmero"; vendedoras com asco de gordas e como essas cretininhas so numerosas!; vendedoras esqulidas em seus modelitos Barbie: hoje eu visto 40 e vocs no vo fugir de mim!

Chego ao salo de cabeleireiros na esquina da minha rua. Fao mo, p, sobrancelha e depilao. Para os cabelos, peo um corte ousado, Henna avermelhada e uma escova. Em casa, visto minhas melhores roupas antigas, que hoje custariam uma fortuna. Depois da costura, lavagem e sol pela manh, elas esto absolutamente impecveis. Resgato umas poucas, porm belssimas, jias de famlia. A maquiagem copio da modelo na capa da revista de moda.

Trs horas da tarde. Estou no shopping e, sem dvida, pareo uma socialite. Posso passar por qualquer colunvel e foi to fcil! Porm, ainda falta alguma coisa... Eu sou magra, agora. Posso comprar uma cala 40. Posso, inclusive, comprar uma cala 40 comendo um chocolate. Perdi todos os quilos que queria. Consegui. Cheguei. Eu posso.

Compro uma barra grossa de chocolate importado recheado com amndoas. Faz tempo. Mas eu posso. Fao parte do mundo fashion, no sou minoria. Posso. Abro o tablete e comeo a com-lo devagarinho, em pblico.

No mundo das megeras magrelas, ou seja, o nosso, gordo comer em pblico um sacrilgio. Se a gordinha enche o prato de salada num restaurante self-service, os outros olham penalizados e pensam: "Este balo fazendo dieta, pra qu? Imagina se uma salada vai dar jeito nesse paquiderme. Ai, ai, coitada." Contudo, se a gordinha atreve-se a comer doces andando, por exemplo, pelos corredores de um shopping center, ento o olhar de pena vem acompanhado de um desprezo j ligeiramente raivoso como se estivesse, a pobre, usando drogas injetveis na frente de crianas. Quem passa, olha e pensa: "Que absurdo, como que um troo desses tem coragem de continuar comendo? Por isso est desse tamanho! No tem vergonha na cara mesmo!" Era um transtorno. Mas eu sou magra agora e posso.

A desforra

Levanto o queixo, encolho a barriga, estufo o peito e entro na loja. Imediatamente uma balconista se aproxima de mim, sorrindo com a boca, processando dados com os olhos. O Exterminador do Futuro no faria anlises to rpidas. Bip. Rica. Bip. Magra. Bip. Consumidora de moda atual. Bip. Comisso. A moa loira, olhos verdes, aproximadamente 1m70cm, veste uma minissaia jeans de cintura baixa que deixa sua barriga inexistente mostra e uma blusa curta, do mesmo tom, colada aos seios perfeitos, porm de material no identificado. Tem as mos e os ps feitos. As outras balconistas , so balconistas, balconistas, balconistas! trajam, as duas, vestidos pretos colantes. Sou a nica freguesa da loja e a gerente, caixa, dona, ou sei l o qu, me olha sorridente do seu nicho. Apesar de no v-la por inteiro, tem os cabelos tratados, est bem maquiada e veste uma blusa de seda estampada belssima.

O ar-condicionado no permite que ningum transpire, ou seja, que ningum transparea qualquer resqucio de normalidade. Bases no escorrem: socorrem. Batons no melam: retocam. Lpis no borram: torneiam.

A decorao lembra uma galeria de arte, ou pelo menos, a nica que conheci. Clean: muito vidro e espao, um toque dourado aqui e ali, mezanino, cheiro de rico no ar. Exatamente o que procurava.

Foram exatos oitenta e seis minutos de puro prazer. Experimentei tudo, infernizei todas elas e no comprei nada!

O perigo

Saio da loja com a alma absolutamente lavada. "Vocs nunca foram melhores do que eu para me tratar daquele jeito e hoje provei isso, suas balconistazinhas de quinta categoria metidas a modelo-manequim!"

Fiz tantos sacrifcios...passei Natal, Ano-Novo, aniversrios, casamentos, festinhas, completamente a seco, s pensando no dia em que chegaria ao manequim 40 e poderia abraar o mundo. Esse dia hoje.

Compro mais uma barra de chocolate recheada com amndoas. Estava to boa a primeira... E alm do mais, agora que sou magra, eu posso.

Me deixa engordar em paz!

I

Que foi? Ai...

Fala, que foi? Ai...

Fala logo, que que aconteceu? Ai...

, mas que nervoso, que que ? Ai...

Ai o qu? Ai...

Comeu demais? Ai...

Tambm, parece um saco sem fundo. Quem manda: agora fica a gemendo. Eu bem que te disse! Comer toda aquela feijoada, que alis no estava muito boa, depois misturar com torta de limo, no h estmago que agente. No sei como voc consegue misturar doce com salgado desse jeito, credo. Quer um ch?

Ai...

Sou sempre eu quem paga o pato quando voc faz essas mexidas. A tua sorte que voc tem um estmago de avestruz, se no ia ser isso toda a noite, do jeito que voc come! Vai vomitar?

Ai...

Vai ou no vai? Ai...

Vai l pro banheiro, vai. Eu levo o ch l, pelo menos se voc vomitar no faz sujeira. V se no deita no cho gelado! A passa o enjo e vem a sinusite.

Ai...

II

Toma aqui. T quentinho, toma logo. Melhor queimar a lngua do que ficar a morrendo, anda.

Ai...

Por que voc come tanto assim, minha filha? S porque aquele becio do Jos Eduardo te deu o fora? Vai adiantar voc ficar comendo feito uma louca? Por acaso isso vai trazer ele de volta? No vai. Pelo contrrio: isso s vai fazer voc ficar enorme de gorda e a nenhum rapaz vai te olhar, muito menos ele. Assim voc fica feliz, n? Bem feia, bem horrorosa, com todas as suas amigas-da-ona muito felizes por voc estar fora do preo. Voc precisa dar a volta por cima, ficar bonita, deixar todos os garotos babando. E depois, virando uma elefanta, todos vo ver o quanto voc fraca, o quanto voc no superou o fora que esse besta te deu. Ficar um boi como pendurar uma placa no pescoo dizendo: "Eu Estou Sofrendo." Olha s sua tia Maura, voc quer ficar igual a ela? Ela j foi bonita, acredita? Demais de linda, deixava a gente no chinelo. Mas um dia o namorado dela veio com uma conversinha de que era melhor eles terminarem porque ele no esquecia a ex-noiva e por a vai. Adivinha o que aconteceu? Sua tia Maura, sua tia fraca feito um elefante, em vez de arranjar um partido daqueles arrasa-quarteiro-de-inveja, no: engordou, virou essa pipa que est a, e tudo pra qu? Pra que os outros tivessem pena dela? Nenhum homem merece esse sacrifcio, Andra! Sua tia nunca mais teve coragem de arranjar outro namorado, porque se tivesse, emagrecia, a sem-vergonha. E olha a voc, com medo de se machucar, no , benzinho? Voc est com medo de arrumar um outro namorado e ele fazer a mesma coisa que o Jos Eduardo fez, tenho certeza. Mas eu no vou deixar voc nessa depresso, no mesmo. Voc vai aproveitar as frias e ir para um Spa!

Ai...

E isso a, sem choro nem vela: para o seu prprio bem. Aposto que voc est pensando "me, me deixa engordar em paz!", no ? Pois pode tirar seu cavalinho da chuva: no vou deixar voc se enterrar na gordura para curtir essa dor de cotovelo besta. Voc vai ficar o vero todo num Spa, nem adianta pedir pra esperar o Natal, t decidido! E ai de voc se no me voltar magrinha, superelegante, de dar inveja a todas as garotas e deixar os rapazes babando.

Ai...

Quando voc voltar, vai ter um novo guarda-roupa te esperando. Isso no te anima, no? Deixa com a mame: vou comprar as roupas da ltima, voc vai voltar pras aulas translumbrante! Voc ainda vai me agradecer de joelhos, filhinha. Escuta o que eu t te dizendo.

Ai...

III

Dois meses e meio depois.

Andra volta do Spa magrinha, superelegante, de dar inveja a todas as garotas e deixar os rapazes babando.

Acabrunhada, triste, insegura, porm magrinha, superelegante, de dar inveja...

Seu guarda-roupa novo era um tanto desconfortvel, tudo muito justo e curto, no entanto, como a me havia sumido com os moletons folgados e as calas jeans larguinhas, aquilo era tudo o que ela podia usar, ao menos nos primeiros dias de aula.

No colgio, no s Jos Eduardo notou a ofuscante diferena exterior. Vrios outros garotos se interessaram prontamente pela casca esguia da nova Andra e em menos de uma semana ela j estava namorando o atleta da turma.

Doze dias depois, havia sido trocada pela levantadora de vlei da sua classe e passou a sair, em seguida, com o baterista da banda de trash local; depois, com o mauricinho cleptomanaco, com o guitarrista da banda de trash local, com o jogador compulsivo de RPG, com o baixista da banda de trash local, com o CDF do 3o A, com o vocalista da banda de trash local, com o fisioculturista do 2o B...

Primeiro a bulimia. Os garotos gostavam de se exibir com ela: uma cpia exata das mais esbeltas manequins, longos cabelos vermelhos, finssimas sobrancelhas. Por quantas mos passasse nunca era vista como vulgar, j que a aparncia difana lhe conferia certo glamour de passarela.

IV

Tudo uma questo de atividade. Veja a minha Andra: come superbem e olha que a empregada me disse outro dia: "Essa menina anda assaltando a geladeira noite." Ela superelegante, mas tambm no pra, n! Tem sempre programas, ginstica... ah, preenche a vida. No fica sentada numa cadeira, se entupindo de bombom, esperando a vida passar. Se eu no tivesse batido o p pra enfiar ela naquele Spa... j pensou?

V

Andra. Desmaios freqentes. Quando sozinha, sentindo o desfalecimento chegar, corria ao banheiro mais prximo e, s vezes, permanecia inconsciente por tempo indeterminado.

Contudo, no costumava sair s e todos sabiam do frasquinho com amonaco na sua bolsa. Acordar Andra era normal, "regime apertado", dizia ela, "tenho de manter a forma".

VI

Andra, vem jantar!

Jantei na casa da Beth.

Andra, vem almoar!

Acabei de comer um sanduche.

Andra, voc no tomou caf!

Eu tomo na escola.

Andra, voc nem tocou na comida!

Eu comi um chocolate no quarto.

VII

A anorexia tornou-se visvel. Correu pela escola o boato de que ela estaria com AIDS e uma histeria masculina tomou o lugar dos egos inchados.

VIII

Andra, filhinha, come um pouco. No.

Querida, voc est s pele e osso. Olha no espelho com a mame: v como est magrinha? Magra demais, meu bem?

No.

Mas est! Olha pra mame perto de voc: eu sempre fui magra. Voc dizia que queria ter me puxado, lembra? Ento, olha como agora voc est diferente da mame, v que est magra demais?

No.

Olha o meu brao do lado do seu, filha. Vamos medir? Voc quer medir? Vamos medir. Veja s. Vinte e seis centmetros o meu e eu sou magra, sempre fui magra, certo? Voc queria ser igual a mame, lembra? Olha o seu. Dezoito centmetros: quase a metade do brao da mame. Voc precisa comer, querida, s um pouco, o suficiente para ficar bonita de novo, t bom?

No.

Meu bem, voc est doente, precisa comer, s esse bocado, um de cada vez, vamos, s um pouquinho, pela mame.

No.

No faz isso, Andra... Quero te levar pra casa, voc quer sair do hospital, no quer? Mas pra isso voc tem que se alimentar, filha, s um pouco.

No.

IX

Soro. Muito soro. Litros, baldes, gales de soro. E Andra no quer comer, recusa-se terminantemente a se alimentar por via oral.

Numa manh especialmente ensolarada, ela move a cabea dbil para a esquerda na cama do hospital e percebe, com o canto de um dos olhos, a me recm-adormecida. Retira, ento, um a um, todos os pequenos tubos presos sua mo, os quais fluam incessantes quotas de alimento em direo s veias.

No preldio do ltimo desfalecimento, Andra sente uma felicidade intensa tomar conta de seu corpo esqulido, felicidade que desde a internao no mais experimentara: a certeza de estar, naqueles instantes derradeiros, um tantinho mais magra.

A sogra e a banana fritaO fim dessa histria turbulenta cujo novelo nem comecei a desenrolar que depois (e por causa) de um almoo com a futura sogra imediatamente aps, diga-se de passagem Ana rompeu seu relacionamento j bastante duradouro e feliz com Artur.

Mas voltemos alguns dias no tempo para conhecer o incio e o meio da histria de Ana.

Tudo o que Ana queria era travar um satisfatrio primeiro contato com a futura sogra. Adiou o quanto pde tal encontro; afinal, essa histria de que quem casa com algum, casa com toda a famlia, apavorante. O fardo poderia ser pesado demais e Ana queria mesmo era manter distncia dentro das possibilidades de convivncia social obrigatria. No entanto, namorando Artur h um ano e meio, era impossvel retardar mais tal embate. Ele havia sugerido o almoo na casa da me mais de uma vez; depois de sugerir, sem efeito, pediu por algum tempo e agora j no pedia: insistia mesmo.

Me italiana, almoo no domingo, nico filho homem, Deus protegesse Ana.

Todos os seus temores em relao ao encontro com a me de seu namorado no tomaram corpo de fato naquele domingo: foi justamente o que ela no esperava que fez com que preferisse ficar sem Artur a ter aquela mulher como sogra.

No domingo programado, Artur acordou Ana com suaves beijos no rosto para lhe mostrar o radioso cu azul que h muito no se via na cidade: bom sinal.

Chegando vila em que os pais de Artur moravam, Ana encontrou a rua interditada por crianas remelentas que jogavam, todas, um futebol descompassado. Ela tocou a campainha da casa, cuja porta estava aberta, e parou na entrada enquanto Artur, que nunca dera as mos para ela ao caminhar, foi sumindo sua frente numa cortina de fumaa provocada por quilos de macarro cozido. L de dentro, veio um grito:

Mas quem tocou a campainha? T aberta a porta, entra, caramba!

Artur voltou-se, deu dois passos para trs e fez um sinal chamando Ana que, s depois disso, se aventurou a entrar na casinha fumegante.

Ana esperava por um suave bate-papo no sof antes do almoo e, para criar boa impresso, trouxe um vaso de crisntemos bem cuidados de presente para a futura sogra.

Antes da fumaa desanuviar, Ana sentiu-se pressionada por duas garras poderosas que quase quebraram sua clavcula e imediatamente a empurraram direto para a mesa.

Querida, como voc linda! At que enfim! J tinha falado pro Arturzinho umas mil vezes: "Quando que voc traz sua noiva aqui pra comer com a gente?" Senta, lindinha, senta aqui que eu j estou trazendo a macarronada! Deixa eu te pr um guardanapo que com a minha comida todo mundo baba! Nossa, que linda que voc , no Paolo?

Ana nem soube o que havia acontecido ao vaso de crisntemos e sua bolsa: quando deu por si j estava instalada na mesa com um guardanapo de pano enfiado na gola do seu vestido de crepe de seda. S ento com medo de levantar-se da cadeira e trombar com alguma travessa de molho ambulante ela olhou para a frente e cumprimentou, dali mesmo, apenas com um aceno, seu Paolo, o futuro sogro.

Ana estranhou o fato de a mesa estar praticamente servida, o que significava que ela no era a atrao principal daquele domingo: o almoo que era e se ela chegasse meia hora mais tarde comeria tudo frio e ainda levaria a culpa; afinal, o to significativo almoo de domingo de uma famlia italiana no pode esperar, provavelmente, nem pelo papa.

E l veio a enorme travessa de macarronada: mais inalao involuntria.

Tentando se sentir vontade, Ana ameaou fazer o prprio prato, no que a sogra, imediatamente, a interrompeu:

lindinha, voc acha que a famlia do Artur mal-educada? Imagina s! Deixa que eu fao seu prato, meu bem, nem precisa se levantar. Voc gosta de bastante molho?

Na verdade, eu estou de dieta...

Ah, mas na minha casa ningum faz dieta, ainda mais de domingo, no Paolo? Deixa eu caprichar no seu prato que voc est muito magrinha, isso sim!

No precisa se incomodar, dona Gema.

Como no preciso me incomodar? A futura me dos meus netos vem pela primeira vez na minha casa depois de quase dois anos namorando meu filhinho e eu no vou trat-la direito? Nem morta! Vai uns pasteizinhos, meu bem? Vai sim.

No precisa, obrigada.

Precisa, sim, querida, voc muito magrinha!

Eu tenho uma tendncia enorme para engordar, dona Gema. Fazendo dieta que eu fico assim ma...

Dieta coisa nenhuma! Dieta coisa de doente! Tem de aumentar essas ancas para ter filhos fortes, lindinha. Olha que eu sei o que isso! Queria que voc conhecesse a Rafaela, minha caula, que pena que ela est no estrangeiro. O Artur quando nasceu parecia um tourinho, nem cara de joelho ele tinha, acredita?

Ah.

Voc gosta de banana frita na comida?

Banana no me faz muito bem, quando eu era crian...

A minha banana frita no faz mal para ningum e no tem quem no goste dela, querida.

Eu tenho alergia, dona Gema.

A minha banana frita no d alergia em ningum! Puxa, minha filha, parece at que voc est fazendo pouco de mim no querendo comer minha comida!

No nada disso, s que realmen...

Ela est fazendo pouco de mim, Arturzinho?

No, mame. alergia mesmo, a Aninha no agenta bana...

Isso l jeito de chamar sua noiva, Arturzinho? Ana Carolina um nome to bonito! Ana Carolina, meu bem, voc pode ter a alergia que for de banana: a minha banana frita vai cair feito uma luva nesse seu estmago de passarinho, pode ficar sossegada, lindinha!

Eu, eu... tomei muito caf da manh. Mais tarde eu como a sua banana frita.

Quem no tem bom apetite, no serve para parir filhos.

Mame teve cinco filhos, dona Gema. E nunca foi de comer muito.

Cinco magrinhos assim como voc?

Eu nunca fui magrinha! E todos ns somos bem saudveis.

Saudvel com alergia a banana? Sei, sei. Toma aqui seu prato, meu bem. Quero ver ele limpinho, hein?

Ana lanou um olhar de puro azedume para Artur, que limitou-se a levantar os ombros e as sobrancelhas em sinal de impotncia.

A coisa estava preta: antipatia imediata. Se pudesse, Ana sairia correndo daquela casa, mas se conteve: talvez, se ela limpasse o prato, a velha desse sossego. E afinal ela poderia agentar algumas brotoejas uma vez na vida, outra na morte. Ana engoliu a banana frita, para l de gordurosa, com a maior dificuldade, por pura educao.

A sogra no parava de falar com a boca cheia sobre as estripulias sem graa de Arturzinho quando criana. Mas Ana se consolava: no h mal que nunca se acabe. Uma hora iria anoitecer e ela teria de ir embora. E depois disso, s veria a velha no dia do casamento, prometeu a si mesma.

L pelas tantas a sogra olhou para o prato quase vazio de Ana e perguntou, aparentemente mais malevel.

E ento, gostou da minha banana frita?

Gostei sim.

Eu no disse? Pura frescura essa histria de alergia. Voc quer mais, lindinha?

Estou satisfeitssima, dona Gema, eu juro!

S mais uma... toma.

Ana respirou profundamente ao dar com mais uma imensa banana nanica frita em seu prato. Teria de passar trs dias a lquido s para se desintoxicar das frituras da velha, alm de horas e horas na malhao para que aquelas calorias evaporassem junto com as lembranas desagradveis do almoo de domingo com a sogra. E Artur... Nunca pensou que Artur fosse to submisso me, um pateta. Entendia perfeitamente o silncio de seu Paolo: ela era o boi de piranha da vez e ele iria passar um domingo sossegado sua custa.

Adivinha o que tem de sobremesa? O pav especial que o Arturzinho adora! E o maior pedao vai ser o seu, lindinha!

Dona Gema, eu estou realmente satisfeita.

Querida, pergunte pro Arturzinho, quando ele sair do mictrio, se o meu pav ou no irresistvel. Acredita em mim: no d para ficar sem provar pelo menos um pouquinho. Voc experimenta?

Um pouquinho eu aceito.

At que enfim, a velha recuava em alguma coisa. Ao sair do banheiro, Artur deu um pulo de alegria.

Me, que delcia! Estou morrendo de saudade do seu pav!

Tambm, depois que comeou a namorar no vem mais almoar com a gente... Nem domingo ele vem mais, Ana Carolina: no uma vergonha? Eu s peo duas horinhas por semana de dedicao famlia e ele aparece? De vez em quando, quase nunca! Custa vir almoar com a gente? Me diz, minha filha, custa?

No, dona Gema. Claro que no.

Ento domingo que vem espero vocs, t bom?

Ana tremeu dos ps cabea. Aquela era a hora de Artur mostrar se era um homem de verdade ou um rato costurado barra da saia da mame.

Se a Aninha tambm quiser...

Ana Carolina, Arturzinho: fala o nome inteiro da sua noiva! E por que ela no ia querer? Responde, Ana Carolina: voc v algum problema em vir almoar com a gente todo domingo?

... bem... depende do domingo.

Como depende? Ningum faz nada no domingo, minha filha! J sei! s a gente ficar velho que ningum mais quer dar ateno pra gente, ai como triste. Quando vocs ficarem velhos, se Deus permitir, claro, a vocs vo ver o quanto di ser esquecido feito um trapo velho, n Paolo?

Tambm no assim, me!

Como que no assim, meu filho? A Ana Carolina no quer fazer esse agrado nos seus velhos aqui...

No isso, dona Gema. que no so todos os domingos que eu posso...

Ai, Arturzinho, traz minhas plulas para hipertenso, rpido! No estou me sentindo nada bem. Isso, so essas mesmas, as vermelhas. Ai que dor no peito, Jesus! Ana Carolina, minha filha, vem dar um pouco de alegria a um corao cansado de me, s no domingo! Voc no negaria esse agrado a uma pobre coitada, negava, lindinha?

Ana respirou fundo e respondeu com voz desanimada diante da chantagem da velha.

Claro que no, dona Gema.

Est vendo, Arturzinho? E voc no vinha porque dizia que sua noiva no gostava dessas coisas de almoo de domingo: imagina s noiva no gostar do que o noivo gosta!

Ns no estamos noivos.

Como no esto noivos? O Arturzinho dorme na sua casa, que ele me contou! Como que seus pais deixam ele dormir no quarto de hspedes, se vocs no esto noivos?

Ana gelou: ela morava sozinha e provavelmente Artur havia inventado aquela histria toda para amansar a dspota matriarca.

No estamos com aliana, ainda. isso que eu quis dizer, dona Gema.

Ah, bom! Eu sei que a situao est difcil para vocs, jovens, mas no precisa ficar vermelha de vergonha desse jeito, lindinha. Qualquer coisa vocs vm morar aqui com a gente. Depois que a Rafaela foi pro estrangeiro essa casa ficou to vazia... No uma idia maravilhosa? Eu posso cuidar das crianas enquanto vocs trabalham! Ah, eu quero acompanhar a educao dos meus netos de pertinho: esse bando de maconheiros e bichas por a no tiveram famlia, isso sim! No uma tima idia, Ana Carolina?

Ana, apavorada, no teve outra sada a no ser desviar o assunto perguntando pela sobremesa.

Depois de servido o pav, Ana comeou a sentir o enjo chegando. A sogra falava das ancas largas das boas genitoras, Artur da comida da me e seu Paolo mais parecia um manequim de loja: duro e calado.

E a sala foi revirando, revirando, at que Ana, meio zonza, se levantou perguntando pelo banheiro. A sogra ps-se sua frente e segurou-a pelos dois braos.

Voc est passando bem, lindinha? Est to plida, branca feito cera. E essa dieta a que voc faz. No te disse que voc precisa parar com isso para ficar forte? Quer uma gemada com bastante acar pra reanimar, lindinha?

Ana lutava em vo para se desvencilhar da quase ex-futura-sogra e correr ao banheiro, mas como no conseguia, gritou, ultrapassando o limite de sua pacincia:

Me larga, me deixa!

E sem dar tempo a qualquer resposta, Ana aliviou seu maltratado estmago ali mesmo: vomitou macarronada, molho, banana frita e pav bem na cara da velha.

Foi um sururu! Ana se limpou de qualquer jeito no prprio vestido, catou sua bolsa e correu para fora, em direo ao carro. Artur, sem saber se ia atrs da namorada ou acudia a me, ficou parado no meio da sala feito um paspalho. Foi seu Paolo quem puxou o brao do filho: "Vai atrs dela, burro!"

Ana estava dando a partida no carro quando notou, pelo espelho retrovisor, Artur vindo ao seu encontro. Ela saiu do carro, abriu os braos e lhe deu uma bolsada na cara que deve estar doendo at hoje.

Dona Gema, pelo que se sabe, nunca mais comeu banana frita.

Bem mais que um corpo perfeitoOs meus braos esto moles. Puxei a gola do pijama para procurar uma pulga e vi uma espcie de varal de pele: meus ossos, minhas peles. Ricardo est na Veja, numa propaganda de culos, lindo. No tem nada a ver com a pelanca do brao, isso.

Ontem ainda ele esteve aqui em casa e eu comprei a revista para ver o anncio em que ele apareceria, segundo suas prprias palavras, "deslumbrante". Ele jogou charme sua nica arma de trabalho e sobrevivncia , porm, morrendo de medo de que eu o atacasse, se retraiu feito lesma quando meus dedos de sal subiram das mos para o seu rosto: lugar mais ntimo. Provocar, ele provoca; pagar para ver, no paga. Modelos no devem se deixar tocar por dedos de sal: pode ser muito perigoso.

Eu no queria estar admitindo isso porque no sei o que pr no lugar, no entanto a verdade da qual no posso mais fugir que ele um boc. Um boc de mola, como diria minha bisav Leonor. O que voc faz quando no d mais para negar que o cara por quem voc est apaixonada desde a adolescncia uma anta com todos os acessrios? Enquanto havia a mais remota possibilidade de engano, eu continuei, firme, mas agora...

Amar um boc por muito tempo um trabalho para os muito imbecis e muito criativos. O problema esse: o estgio da imbecilidade acabou h uns trs anos; a criatividade ficou sozinha com tamanho encargo e, desde ento, trabalhando por duas, no agentou o tranco e acabou por definhar sem que eu percebesse.

E agora ele est num anncio de armao de culos na Veja, lindo, verdade. Mas sabe aquela beleza morta de songamonga? Eu o observo maquiado, colorido, estampado na revista e no consigo pensar em outra coisa que no seja essa disposio simtrica de traos em seu rosto substituindo qualquer outro aspecto que pudesse compor uma personalidade interessante.

Percebi, h algum tempo, o que realmente fez com que eu permanecesse alheia dura realidade dele ser um becio absoluto: a minha prpria aparncia. Era importante para mim ento uma adolescente gordota e desajeitada que um rapaz to bonito e cobiado como ele, vira e mexe estivesse comigo, mos dadas, carinhos no rosto, mesmo que como "apenas bons amigos".

Ficamos juntos uma vez, h uns quatro anos. Se foi bom? Isso pergunta que se faa? Sei l, acho que foi para ele; eu no consegui pensar em muita coisa alm de: "E no que isto est acontecendo mesmo?"

Nem poderia ser diferente: quando a gente espera muito tempo para ficar com algum, parece que o desejo choca como um ovo esquecido na geladeira e, apesar de alm da casca oca no haver mais nada suculento e substancioso a saborear, a gente ainda aceita o tal ovo podre, s para no dar o brao a torcer. E mais: ainda finge que est bom. Pareceria ridculo esperar tanto por alguma coisa que no valesse mais do que um ovo passado, mas isso o que ele , admito: um ovo choco, um boc de mola.

Lembro-me, naquela noite, dele se levantando e desfilando para mim, o que no era verdade: Ricardo desfilava para e por ele. Parecia dizer em seu andar empertigado: "Olha que coisa mais linda, mais cheia de graa, que est aqui, na sua frente, te dando a honra de compartilhar o mesmo ar." Mensagem subliminar: "Preciso que voc diga, Thas, com total entrega, que eu sou o mximo, porque se voc no disser posso me desestruturar e pular no rio Tiet." E eu disse todo aquele script romntico centenas de milhares de vezes, at outro dia. Hoje estou exausta. Oito anos! Oito primaveras, veres, outonos e invernos e esse cara no decide o que vai fazer comigo! Largar no larga, mas pegar tambm no pega e assim ficamos nesse limo chamado "um pouco alm de amizade mas no exatamente namorados".

Se ele j disse que gostava de mim com todas as letras? Claro! Incontveis vezes nesses anos todos. Eu no mantive essa chama acesa sem nenhum incentivo o que, sei bem, comum por a.

E afinal, se ele realmente fosse uma pessoa esperta, inteligente, sensvel, por que nunca quis ficar comigo, ou melhor, tentar ficar, que o que todo mundo normal faz quando gosta de algum? Te digo: porque ele um boc de mola. Porque incapaz de permanecer especial depois de ter convivido comigo; porque Ricardo precisa e sempre precisou que eu, exatamente eu, que nem sou bonita como as Barbies com quem ele costuma badalar caa de algum colunista social, que muito menos tenho um corpo compatvel ao de suas coleguinhas, afirme que ele tem sempre um lugar para voltar, uma mulher que o quer, um porto seguro, e ele no conquistaria isso sem a ajuda da minha larga imaginao e baixa auto-estima gordurosa.

No que Ricardo me despreze. J que minha criatividade em justificar seu pouco encanto acabou, para que dar uma de vtima? Ele no me despreza: ele me subestima, me julga pelas minhas aparncias flcidas e eu o superestimei, o julguei pelos seus rijos msculos.

Queria saber o que eu estou fazendo aqui ainda olhando para esse anncio de armao de culos. Eu nem uso culos! No preciso disso para parecer inteligente. Nem preciso emagrecer, enrijecer a musculatura, fazer limpeza de pele toda semana, injeo de botulismo, fios de ouro, lipoaspirao, sculpter, forno de bier, massagem, para que as pessoas gostem de mim.

, tenho um varal de pele em cada brao, tenho celulites e no so poucas , tenho estrias e a parte interna das minhas coxas to mole quanto um colcho d'gua com pouca gua. E da?

Eu valho bem mais do que uma silhueta perfeita: tenho o que falar e sou um timo papo; aprendi a usar meu corpo como ele com graciosidade; meus olhos muito verdes sorriem o tempo todo; minha voz rouca e ligeiramente grave, o que confere um grande charme a ela; minhas mos so expressivas e meus dedos longos, delicado leque oriental; meu cabelo farto, cacheado e bem cuidado. Uso bem tudo o que tenho e isso vale muito mais do que um corpo perfeito, te garanto.

Ricardo... ele e sua esttica irretocvel no merecem mais admirao do que o pedao de rabanete murcho que caiu ontem da minha gaveta de legumes.

Por que demorei tanto para perceber isso?

Sempre haver a comida ou uma barata...

Imagine uma pessoa que tem medo de baratas. Medo, no: pavor, ojeriza, averso completa. Uma pessoa cuja simples verificao da existncia de seis pernas speras de barata cascuda rastejando a dois metros de distncia, pelo asfalto, j causa arrepios n'alma e um pulo desarticulado. Imaginou? OK. Assim ser mais fcil compreender ngela.

Um metro e sessenta e sete centmetros, cabelo encaracolado, nem comprido, nem curto, pele morena. E no mais falemos: ela se ofenderia. Voc se ofenderia se lesse um episdio pessoal, verdico e ntimo como ver aqui debulhado ao pblico com todos os detalhes, no? Preservemos ngela. Paremos por aqui a descrio de seus dotes fsicos, a no ser por mais um detalhe. No por maldade, ora, conheo ngela h muito tempo e no a magoaria por nada, mas acontece que este "detalhe" da sua anatomia essencial para a nossa narrao: oitenta e trs quilos e subindo.

No ignorem o "subindo", por favor, ele parte integrante do peso de ngela. Se eu dissesse que ela pesa oitenta e trs quilos e "descendo", a histria seria radicalmente outra. Esse peso em escala descendente, ou seja, quando se est emagrecendo, refrescante ponto a menos na balana, leveza, alegria, poder. J oitenta e trs quilos a mesma quantidade de carne, osso e banha quando se est atolado at o pescoo compulso desvairada pela comida, deprimente furo a mais no cinto. Nesse estado no costume freqentar a balana, ao contrrio: a engenhoca demonaca brutalmente empurrada com o p para debaixo do armrio, o mais fundo e longe possvel das vistas.

ngela estava subindo: afogando na comida suas mgoas, ansiedades, ausncias... Naquela noite o marido viajava a negcios: viajando, sempre estava; a negcios, ela no saberia dizer, nem queria. O caula, saindo da adolescncia, no parava em casa: morava mais no apartamento da namorada do que no prprio lar, alm da faculdade e do estgio tomarem seu tempo restante. O mais velho, h dois anos cursando a universidade de oceanografia na Capital, ligava de vez em quando para se dizer vivo e, com as contas normais atrasadas por causa da compra de algum equipamento novo, pedir dinheiro extra. O quanto ngela, na fase das interminveis lies de casa, desejou que eles j estivessem "criados" e agora... No importa. H a comida e o trabalho. Certo, a firma a estava pressionando para se aposentar no tempo devido, no entanto, mesmo depois disso, ainda haveria a comida. Ao menos, a comida haveria sempre.

ngela alcanara, no momento indiscreto que pretendo narrar aqui, o pico da dependncia: aquele ponto em que se algum chefe, me, filho, marido, ou av se colocasse entre ela e um fil parmegiana, por exemplo, um brao torcido ou uma perna quebrada seria inevitvel.

Tudo o que eu poderia fazer para poupar ngela foi feito e mais no diria sem afetar sobremaneira sua intimidade. Voltemos noite de ontem, quando tudo aconteceu.

ngela chegou do trabalho carregando um saquinho de pes de queijo de cujo contedo viera se empanturrando no nibus. Com a boca cheia do penltimo petit four, abriu a porta da varanda para ventilar o ambiente, tirou as roupas incmodas, jogou-as de lado e foi direto ao chuveiro preparar-se para degustar, limpa e relaxada, o meio bolo de frutas cristalizadas e as latas de batatas Pringles sabor caipira que estavam na cozinha.

E foi nisso o que pensou nos oito minutos em que durou o banho. Mais tempo para qu, se o corpo j estava limpo? Se depilar para qu, se o marido que achava antiesttico plos livres estava viajando, mais uma vez, a negcios? Lavar a cabea para qu, se quanto mais sujo o cabelo menos precisava pente-lo? Passar gel perfumado para qu, se ningum iria cheir-la? E mesmo se fosse, seria o marido; ento, para qu? Uma rpida sova de sabonete ordinrio estava bom demais.

Enxugou-se ligeira, meteu-se numa camisola velha, calou um roto par de chinelos de pano, jogou a manta de l sempre tivera ps gelados sobre o sof, ligou a TV bem alto, e correu cozinha para pegar seus desejados petiscos.

Abriu a porta. Ativou o interruptor. Foi em direo geladeira. Assim que as luzes brancas sempre meio retardadas se acenderam, meio passo dentro da cozinha, ngela viu. Enxergou.

No cho, estrategicamente posicionada entre a geladeira e o armrio, uma barata olhava para ngela, balanando as finas e longas antenas.

ngela bateu a porta da cozinha aos berros e recuou trinta passos, quase despencando nove andares pela varanda da sala. Seus olhos se fixaram no corredor para que no fosse surpreendida por aquele ser repugnante em plena sala de visitas. Agachou, com o pescoo em riste, a fim de alcanar o jornal de domingo; enrolou um bocado e deu um passo a frente.

Uma barata. Uma nojenta, asquerosa, repulsiva e horrenda barata marrom. Lembrou-se do inseticida no alto do armrio do banheiro. Se corresse at l, pegasse o spray e voltasse imediatamente ao mesmo ponto, poderia flagrar a maldita em plena marcha caso ela estivesse vindo para sala, pois seu corredor era longo, quase cinco metros.

Num p, ngela estava no banheiro apanhando o veneno, no outro, retornara entrada da varanda: um olhar perscrutador, passagem livre. Respirou fundo, gotculas de suor tomavam

corpo em sua fronte. Com o jornal numa mo e o spray na outra, ngela entrou no corredor cuja luz estava bem acesa.

Eis que, de repente, no mais que de repente (expresso que, apesar de ter criado fama nos versos de Vincius, foi originalmente dita por uma empregada do poetinha que, ao lhe preparar o usque das seis, foi surpreendida por uma barata dentro do porta-gelo), a inimiga d as caras, ou melhor, as antenas.

A danada passou pelo vo da porta da cozinha e parou. Encarava ngela desafiadora, bulindo uma na outra as patas dianteiras e saracoteando as ignbeis antenas. Depois de trs segundos estanque, a barata avanou em direo a ngela que, sem conseguir controlar os nervos, comeou a gritar desbragadamente. Ento, o pior tomou forma.

A barata parou um instante e agitou as asas peonhentas. Agitou novamente, sempre encarando ngela que, pregada de pnico no soalho do corredor, gritava a plenos pulmes. A barata ameaou voar e cumpriu a promessa: levantou-se do cho, indo diretamente para o rosto de ngela e, to sbito quanto o movimento dessas malditas criaturas que nunca deveriam ter recebido asas da Providncia, ngela pensou no seu bolo de frutas cristalizadas, nas suas latas de batata frita, no ltimo po de queijo e, principalmente, no quanto precisava deles todos.

Empunhou o spray qual espada e disparou o jato para frente enquanto berrava que de berrar, pelo menos, ningum a podia impedir. A barata tonteou e recuou o vo. No cho, ps-se a caminhar para a direita, e ngela, sem tirar o dedo do spray, gritando e pulando como se pisasse em brasa, mirava o veneno com instvel determinao.

A voz, de tanta gritaria, comeou a falhar enquanto a barata rodava de um lado a outro do corredor, mais lenta, nem por isso menos viva. ngela mal respirava, seu estoque de oxignio se transformava em berros, seu corpo todo balanava num chilique convulso, s o brao direito permanecia teso empunhando o escudo gasoso.

Tomada de intensa coragem pela necessidade que a dependncia da comida lhe infundia, ngela deu um passo frente, o dedo molhado com o lquido venenoso que jorrava sem parar, enquanto a barata, s a dar voltas, sacudiu novamente as asas. Foi o mximo: ngela no pde mais.

Lgrimas gordas jorraram imediatas e ngela, enquanto chorava, rasgava a garganta em uivos enlouquecidos, agitando-se como doida. O apartamento j estava inundado com o cheiro do spray que prometia matar insetos de qualquer espcie numa tacada s e, em meio a seu desespero, ela pedia aos cus que o demnio morresse. Entretanto, a barata balanava ainda as antenas e, apesar de rastejar com certa lentido, era impossvel para ngela se aproximar com segurana daquele verme resistente.

Tamanha histeria fez saltar uma veia diagonal em sua testa e ngela, de olhos, rosto e garganta inchados, se aproximou da barata (mantendo sempre distncia razovel) em pulos curtos, sem largar um instante o boto do spray.

Enquanto pulava no mesmo lugar, ngela tropeou nos prprios ps e desabou ao cho, dando de cara com o bicho meio tonto. Reunindo um ltimo fiapo de foras, ngela cravou o jornal enrolado em cima da barata. Sem coragem de levantar o rolo, ela tascou a lata de veneno uma, duas, trs, dez, vinte, cinqenta vezes sobre o peridico at que nem um mamute pudesse permanecer vivo por baixo do que havia sido um dia o suplemento feminino.

Exausta, sentou-se ali mesmo. Enxugou o abundante suor do rosto que ameaava pingar pelas prprias sobrancelhas. Verificou o estrago no p: tornozelo inchado como um po. Pensou ento que precisaria da bolsa de gelo, de gelo tambm, claro, do livro do seguro-sade, de uma caneta, do telefone e da agenda com o nmero do radiotxi.

At agora, quase onze e meia da manh de um sbado morno, ngela, com o p devidamente engessado, nem pensou em comida. Ao menos as baratas servem para alguma coisa.

s um piolhoHoje meu marido me chamou de gorda. Sem muita preparao, foi a seco mesmo. Enquanto lia o jornal de domingo e esfregava os calcanhares sobre o pufe da sala, abaixou ligeiramente o peridico e observou peremptrio:

C t gorda.

Talvez o fato de a aliana ter criado um vinco mido no meu dedo, das assinaturas estarem l no livro tal, pgina tal, do cartrio em que nos casamos ou da poeira ter se acumulado sobre meus planos enquanto lavava, passava, cozinhava, arrumava a casa, o tenha feito me cadastrar "gorda"; o tenha feito decretar que eu deveria fazer regime como se meu corpo fosse apenas o ptio em que seus desejos fsicos encontravam certa saciedade; o tenha feito analisar minha silhueta como quem examina os cabelos, descobre um piolho, e diz: "Jogue fora isso a, pressione a unha sobre ele, vamos; mas que demora, mulher, s um piolho!"

Ouvi essa frase, pela primeira vez, em casa, aos doze anos. Minha irm, de passagem pelo quarto, enquanto eu me arrumava defronte ao espelho com fresca vaidade adolescente, parou um segundinho e replicou certeira:

C t gorda.

No tive dvida: me atraquei a ela, rolamos pelo cho e, depois de vrios fios de cabelo espicaados, ela no mais se atreveu a tecer tal comentrio, ao menos na minha frente.

No ginsio, mais precisamente enquanto cursava a oitava srie, um menino bonitinho chamado Paulo por quem eu guardava certo interesse romntico , sentado em sua carteira, ao lado da minha, soltou muito naturalmente:

C t gorda.

Horror dos horrores: eu acabara de ouvir a opinio legtima de um membro do sexo oposto e ela no era nem um pouco galanteadora. Meus olhos no despregaram dos dele por longos segundos enquanto para dentro do meu mar, antes tropical, inmeros blocos de gelo foram despencando, sem cerimnias.

Gordos so como bexigas de aniversrio: vo se inchando de desprezo, se enchendo de comentrios desagradveis, se inflando de olhares debochados, sem rudo, sem estardalhao, at que um dia ou estouram ou murcham. Se murcham, podero inflar de novo, obrigatoriamente inflar mais do que antes para servir festa e esconder a flacidez de bexiga velha. Se estouram so mal-educados, histricos, mal-amados.

Enfim, ao longo da minha vida-bexiga, ouvi vrias vezes essa frase, mas nunca a ouvira do meu prprio marido.

Eu ainda estava parada sua frente, a xcara de caf na mo direita, o biscoito de polvilho na esquerda: ele havia voltado ao jornal.

Continuei na mesma posio, apenas pensando. Simples, no ? To simples olhar para o outro e dizer "c t gordo", "c t velho", "no enche o saco", "vai tomar banho", "v se me esquece", "t por aqui de voc, ". To fcil. A xcara. To fcil. O polvilho. To fcil.

Me levantei sem dizer palavra, fui at a feira do bairro vizinho abastecer a despensa, passei tambm pela padaria e, durante todo o domingo, fartei meu marido com delcias fresquinhas, do almoo ao lanchinho noturno: maionese com uvas-passas, lasanha quatro queijos, bolo de chocolate recheado com doce de leite, pipoca amanteigada para microondas, po feito em casa, pat de creme de leite e cebola, lingia com toucinho, batata frita, sucrilhos com aveia, arroz-doce e muita, muita cerveja.

A madrugada entra e eu estico os msculos cansados na cama sem, contudo, conseguir dormir. Uma angstia me oprime o peito, uma tenso vinca minha testa, no posso relaxar. Ento me lembro, ah, me lembro do prato favorito dele: j sei o que fazer para o almoo amanh! A tenso se desmancha e o sono chega. Estou quase longe agora, mas a angstia, no sei por qu, a angstia ainda est aqui.

A confisso de SilvanaA pantalona marrom, cujas barras tremulavam frenticas, formava desenhos estranhos no corredor da nave central. Quem, de dentro da igreja de Santo Onofre, olhasse para trs diria ter visto uma apario curiosa, inflando e desinflando pernas desproporcionais.

De fato, se os poucos fiis que rezavam baixinho nos bancos largos de madeira tivessem se voltado para a porta no momento em que Silvana parara ali, indecisa, teriam decifrado a verdade em seu corao: imperfeita, imponderada, imprudente, inamvel, inaplicada, incompetente, impura, insacivel.

Silvana abaixou a cabea, dobrou os joelhos no limite de suas possibilidades que no eram muitas e cortejou o corpo de Cristo com o sinal-da-cruz; o Messias ali sofrendo por ns, suportando, inclusive, o peso das maiores tentaes em nome da humanidade e ela, ela... precisava se confessar.

Silvana no era catlica apostlica romana realmente praticante, mas necessitava, com uma ardncia de queimadura fresca, buscar consolo para sua conscincia. Sim, agora era tarde, e o mal j estava feito, mas quem sabe o arrependimento e a bno de um padre aliviariam sua alma desgraadamente pecadora?

Fosse qual fosse a penitncia e decerto ela seria grande , estava disposta a pagar: ajoelhar sobre gros de milho uma centena de noites rezando o tero, aoitar as prprias costas por nove anos com chicote de metal, cantar em louvor a Deus at desfalecer exangue, arrastar-se de joelhos pela maior escadaria de pedra do mundo, pelo resto da vida, nos aniversrios do seu delito...

As solas dos sapatos de um homem estavam mostra no confessionrio. Silvana esperou.

Um murmrio desviou seu olhar para o vitral em que a imagem de Nossa Senhora subia aos cus. Uma rstia de sol, atravs de uma parte vermelha do vitral, repousou em suas mos. A luz lhe fez voltar mente o horror da noite passada: o lquido rubro escorrendo pelos dedos, impregnando as unhas, deixando rastros indelveis nas cutculas.

Baixou a cabea, fechou os olhos e tentou rezar, todavia no se sentia capaz, no sem antes pedir perdo. Ao tentar levantar a cabea, trombava com a mesma luz vermelha que se liquefazia diante de seus olhos e migrava tonta em direo aos ps, exatamente ali, onde uma gota mais espessa pingara no tapete creme.

O dono dos sapatos se levantou: o confessionrio estava livre. Silvana, zonza, ajoelhou-se de supeto.

Padre, perdoa-me, porque pequei. Perdoa-me, padre, por favor!

A voz entrecortada por lgrimas abundantes no deixava dvidas ao padre Eusbio: ali se encontrava uma alma em sofrimento pungente.

Minha filha, estou aqui por ti, alivia a alma e conta: em que pecaste?

Silvana chorou por alguns minutos, pacientemente escoltada pela bondade do sacerdote, at que, inspirando um lufada de ar, decidida, iniciou sua confisso.

Padre, cometi o maior dos delitos para com a minha prpria conscincia. Mal consigo me olhar no espelho! Meu sofrimento moral enorme, assim como meu arrependimento. Padre, padre... isso muito delicado, mas eu confio no Senhor, confio no santo ministrio da confisso e que isto ficar apenas entre ns e Deus.

Padre Eusbio empalideceu. Aquela no era, sem dvida, uma confisso convencional. A ovelha desgarrada estremecia, em pranto ininterrupto. A coisa parecia sria e, por isso mesmo, sua curiosidade e seu medo em muito se aguaram.

Calma, filha. O que quer que me confesses, por certo ficar entre ns e Deus: mais ningum. Abre teu corao.

Graas a Deus, estou segura agora, no estou?

Plenamente, filha.

Padre, triste. Minhas mos manchadas, o tapete, meu corpo infectado, no consegui nem tomar banho, humilhante! Padre, por favor, me d o perdo de Deus e dos homens, por favor, eu lhe imploro!

O sacerdote, alm de plido, curioso e amedrontado, foi ficando aterrorizado. A moa parecia querer confessar um crime! Ser? Ele recuou um pouco no confessionrio, buscando distncia segura, e continuou.

Filha, o perdo de Deus ser dado a ti perante a penitncia necessria, afinal, o primeiro passo tu j deste: ests aqui. Arrependida, suplicando sossego tua dor. Mas o perdo dos homens... por esse no posso me responsabilizar. Abre teu corao, filha, no temas, o que fizeste para se apresentar nesse estado de nervos?

Tendo a resposta se sufocado pelo choro convulsivo de Silvana, padre Eusbio fez cinco vezes o sinal-da-cruz enquanto rezava fervorosa Ave-Maria, buscando inspirao para acalmar a pobrezinha.

Filha, lembra-te dos ensinamentos de Jesus. A ovelha mais preciosa ao Reino dos Cus justamente a que se perdeu: s tu, filha, tu! Para tanto, basta que me contes tudo e te prepares para a penitncia com resignao.

Aps assoar o nariz vrias vezes ruidosamente, Silvana confessou.

Padre, eu, eu comi trs pedaos de pizza ontem, cheios de molho e muzzarela. Meu regime, padre, meu regime! Depois de meses em abstinncia, tudo por gua abaixo por causa de uma tentao dos infernos como a pizza! Comi to desesperadamente, to cheia de desejos insalubres, que at me lambuzei de molho de tomate; o tapete, ento, est cheio de manchas. Comi as bordas tambm: as bordas massudas! Tenho certeza de que engordei, no mnimo, uns dois quilos. No consigo nem me olhar no espelho, padre, no posso mais, minha conscincia est me matando! Me ajude!

Padre Eusbio enxugou na batina a fronte banhada em suor gelado, retirou um dos cartezinhos que mantinha no bolso para casos como aquele e o passou, enroladinho, pseudopecadora, pela fresta de madeira do confessionrio.

O que isto, padre? replicou Silvana.

o carto da minha irm, filha, ela psicanalista. V com Freud e que Deus te acompanhe. Amm.

A r boquiabertaNas plancies argentinas encontra-se talvez o mais guloso de todos os canibais. So as rs boquiabertas, um apelido dado a vrias espcies de rs similares nesses plos sazonais. As rs boquiabertas das reas dos charcos so adaptadas para apanhar o que passar. Engolem tanta comida que literalmente rasgam seus estmagos de tanto comer.

Quando uma r boquiaberta abocanha uma r maior do que ela mesmo sendo incapaz de engoli-la , se recusa a soltar o alimento. Assim, ela acaba se sufocando at a morte, tentando devorar um corpo maior do que o seu.

Discovery Channel

82 quilos

Dizem que amanh outro dia. Para mim o mesmo: o dia em que, como todos nos ltimos meses, me preparo para o ataque da r boquiaberta que mora aqui dentro. E assim que me sinto: como se ela morasse em mim; mas no uma do tamanho normal e sim uma r boquiaberta gigante, que acorda e vai dormir junto ao meu corpo. Ela vigia. Todas as manhs eu abro os olhos e penso: "Hoje vou comear uma dieta, simples, s parar de comer tanto." Isso todas as manhs: invariavelmente, todas. Porm, antes do cheiro do caf fresco entrar pelas minhas narinas, j comeo a pensar nas delcias que poderia comer, e que de fato posso, no fosse esse incmodo corpanzil reclamando um alvio. Mesmo antes de me sentar mesa, j desisti de qualquer dieta porque ela a r boquiaberta gigante que mora dentro de mim j deu as ordens e estas incluem muita comida, muito sono e nada de reunies sociais. Bem, hoje a festa de aniversrio do meu sobrinho e eu no posso deixar de ir, caso contrrio minha irm ficar, no mnimo, um semestre sem falar comigo. Tentei inventar uma boa desculpa, entretanto todas elas, at as mais criativas, esto gastas: muito uso. Dizer a ela o verdadeiro motivo do meu desejo de ausentar-me de to ilustre data seria como explicar a eternidade a um beb de trs dias: puro desperdcio. Minha irm magra: em outras palavras, no entende o universo gordo e seus meandros cavernosos. Claro que eu poderia dar uma de ignorante e deixar o seguinte recado na sua secretria eletrnica: Querida Sofia, no vou ao aniversrio do Rogerinho porque teria de me vestir adequadamente e, para tanto, me olhar no espelho. Prestimosa irm, no estou em condies de me colocar em frente a um vidro refletor e constatar o que j venho desconfiando h algum tempo: que o peso que vejo estampado na balana tem ligao direta com o tamanho do meu corpo. Se eu estivesse magra, iria de bom grado e at me jogaria na piscina de bolinhas com as crianas. Porm usando a franqueza que deve permear as relaes ntimas , neste perodo particularmente delicado, voc exigir minha presena nessa festinha em que estaro todos os parentes cravar bem fundo uma faca de churrasco no peito dessa criatura que, apesar de guardar em seu interior um monstro canibal, ainda sangue do seu sangue. Sem chance: vou tentar me cobrir da melhor maneira possvel. Poderia ser pior. O Jlio me ligou ontem, ser que devo registrar isso? Um msero telefonema. Ora, h sete meses samos pela ltima vez e desde ento ele praticamente se evaporou. Esses caras que ligam depois de um tempo como se estivessem estado sempre ali so mesmo uns tremendos caras-de-pau. Eu disse no. Confesso que me neguei a sair com ele no por seu estranho ritmo semestral, mas por estar muito gorda. Poderia ser pior, como disse: Jlio poderia me ver, assim, neste estado. Vamos ser realistas: o homem beija que um absurdo e eu nunca me neguei a sair com ele. Ah, se ele cafajeste, quem no ? O problema a banha mesmo. Meus culotes esto formigando, ser que isso s acontece comigo? A sensao a de que tijolos esto pendurados em vrias partes do meu corpo que, por isso, formigam. Enquanto eu sacio a fome da r (essa fome no s minha, seria biologicamente impossvel), exatamente enquanto mastigo a sensao de formigamento passa e a certeza da existncia do corpo tambm. Enquanto como, eu sou normal. E essa a droga da qual preciso: comida o que me faz descansar de mim.

84 quilos

Hoje fui ao mdico e ele foi to amvel comigo... Disse que, por causa das injees de cortisona que andei tomando para curar minha sinusite aguda, eu fui induzida clinicamente a engordar, e isso me deu um alvio! Ento no sou uma sem-vergonha, como todo mundo diz! E esse monstro a quem dou guarida est mais forte do que nunca servindo-se de um auxlio medicamentoso. Depois de amanh, meus remdios ficam prontos. , sempre achei um absurdo tomar remdio para emagrecer, mas no posso mais, preciso de ajuda, de um porto seguro ou, que seja, de um socorro simblico na forma de cpsulas coloridas. Aquelas baboseiras da TV eu nunca quis comprar, mas o Dr. Nelson me atendeu, conversou longamente comigo, me examinou com ateno e esses remdios so especficos para o meu caso: estou confiante. Iniciar regime srio d sempre uma certa euforia, como se o mundo criasse, de repente, cores vibrantes.

79 quilos

Hoje um pedreiro mexeu comigo na rua. Foi a glria!!!

77 quilos

Ah, tem coisa melhor do que fazer dieta? Me sinto to forte, to potente, posso vencer qualquer dificuldade ou contratempo. Tenho saboreado o prazer de jejuar em festas: os outros ficam olhando para mim como se eu possusse algum dom especial e cochicham entre si "nossa, que fora de vontade". Agora, no tenho medo de nada, nem de ningum! como se uma carga violenta de adrenalina tivesse entrado na minha circulao! Estou com disposio para tudo: faxinas, caminhadas, compras, festas, paqueras: o mundo era to bom assim e ningum me avisou?

74 quilos

Nossa, estourei o carto de crdito s em roupas! Isso o que chamo de desvantagem vantajosa da dieta!

72 quilos

Estacionei. Duas semanas inteiras se passaram: continuo rigorosamente dentro do regime e o ponteiro da balana nem se mexe! Liguei para o mdico, que disse para eu no me preocupar pois comum o corpo, depois de um bom emagrecimento, estacionar um pouco para que o metabolismo se ajuste ao novo peso. T certo...

Hei! Espera um pouco! No quero que meu corpo se acomode neste peso!!! S h uma sada... pensei que nunca

chegaria a este ponto, que tristeza: vou ter de fazer eca! ginstica mil vezes eca!!!

71 quilos

Ufa! Que alvio!

67 quilos

O Dr. Nelson me disse que na prxima consulta j terei, provavelmente, chegado minha meta de peso e poderei entrar em manuteno. A dose do remdio est cada vez mais fraca, mas eu me sinto bem. Sei que estou amparada, porm s a idia de entrar em manuteno mina minha confiana. Como vou agir sem um controle rgido, sem um sonfero para esse monstro que apenas espera que eu durma para me fazer sonhar com pratos abarrotados de macarronada, picanha, chocolates?... Tantas vezes emagreci e no soube sustentar o emagrecimento... ser que dessa vez vai ser diferente? Ser que se, ao menos, eu pensar sobre o assunto isso no vai acontecer de novo?

60 quilos

Acabou. Entrei em manuteno. Posso comer 1.750 calorias dirias... no sei o que, nem como fazer. Ainda tomo remdio, mas to fraquinho... e o pior: j comecei a ter aquela vontade de comer doce, doce, doce. Se eu mantiver o peso nesse inverno, disse o Dr. Nelson, tudo ficar mais fcil. Tenho medo. Quando estou fazendo dieta parece que nunca mais a gordura vai me alcanar, como se estivesse correndo a quilmetros de distncia dela. Contudo, relaxando a disciplina, diminuindo os remdios, sinto essa distncia se reduzir perigosamente. No sei me portar numa liberdade parcial como esta! Sempre estive em dois extremos: ou comendo de tudo e muito ou fazendo dieta de forma rigorosa. E agora?

58 quilos

incrvel eu ainda estar emagrecendo na manuteno...

59 quilos

Variaes so normais, Dr. Nelson disse: "At trs quilos uma variao normal." Variaes normais, muito normais, normalssimas, normalzimas, uma simples variao aprovada pela medicina moderna, um mero quilinho de variao, normal, comum, usual, natural, variaozinha tranqila. Eu no estou em perodo menstrual, mas posso estar ovulando... Ovulao tambm aumenta o peso?

60 quilos

At trs quilos, foi o que o dr. Nelson disse, ento no vou me desesperar. Ih, hormnios! Mulher cheia de hormnios esquisitos que oscilam histricos: para que me preocupar? A r. At ela deve estar cansada de tanto ouvir falar em comida, vai ver ela est se alimentando dos meus pensamentos gordurosos. Deve ser a r ento que no me deixa esquecer, deve ser sua constante voracidade que me faz salivar quando algum passa na rua comendo um pastel. Sua vontade anfbia pede: "Coma mais um pouco, voc j est magra, no precisa mais disso, coma..." e a minha boca saliva... Claro que no sou s eu quem abriga uma r inslita no corpo, mas a minha gigante, como gigante ao cubo deve ter sido a que matou aquela moa que foi pro Spa num carro de bombeiros porque pesava quase quatrocentos quilos... No jornal eles enfatizaram as medidas do seu caixo, lembro bem at hoje. Ser que esse povo no tem um pingo de sensibilidade? Acham que esto livres da incubao de uma r boquiaberta? No esto no!!! Ningum est. De repente, uma doena, uma menopausa, uma gravidez, um problema, uma decepo e voil: o monstro se instala. No entanto, mais fcil pensar que isso problema dos outros e caoar de algum que no o padro. Pois bem. Eu estou padro, quem me olha, v uma pessoa padro. E da?

59 quilos

No disse? Variaes normais. Consegui identificar um ponto positivo em estar gorda: a gente fica livre daqueles caras que dizem coisas imundas quando a gente passa na rua. Se sasse com tudo de fora, daria at para entender, mas eu s uso cala jeans e camiseta, nada especial, e ouo aquelas coisas nojentas. s vezes, queria ser meio Thelma e Louise e dar uma lio nesses caras. Quando estava gorda, passava por esses mesmos homens inclume; a j um ponto positivo para eles, que no caoam como os adolescentes fazem. Os teens so muito impiedosos: eles debocham de qualquer ser vivo, morto ou agonizante que no seja exatamente como eles. No sou nenhuma velha, mas essa gerao que est a me d medo. Em resumo: se estou magra, escuto obscenidades dos homens; se estou gorda, chacotas dos adolescentes. E se desenvolvo uma sndrome do pnico, eu que sou a doida.

63 quilos

Cinco quilos acima do ponto mnimo que atingi na balana: isso no variao! Valha-me, So Pedro! O que que eu fao? O que que eu fao? Laxante, claro!

64 quilos

Ai que tremenda clica! Mas que idia de jegue foi essa de tomar laxante: tudo o que consegui foi uma barriga super-inchada. Hum, ser que eu tomei pouco?

65 quilos

Calma. Ainda d para voltar atrs sem muito prejuzo. s no perder o controle. Vou agora mesmo ao supermercado comprar ingredientes para um sopo de legumes e passar a semana a lquido.

64 quilos e 900 gramas

Se eu tomar mais uma colher dessa geleca, juro que vou ao pronto socorro mais prximo fazer uma lavagem estomacal!

68 quilos

Estou me sentindo grvida dos dois litros de sorvete de chocolate que acabei de entornar... O que ser que vai nascer? Um sundae?

69 quilos

Eu deveria era voltar ao Dr. Nelson, isso sim. Mas com que cara? Que vergonha! E alm do mais, ainda no chegou a poca do retorno. Melhor mesmo tentar emagrecer e s depois voltar nele. isso a, amanh eu comeo!

73 quilos

Tudo bem, vamos ser racionais. Comi demais, engordei: natural. Para reverter a situao, dieta: natural. Desespero s prejudica, para que vou me afobar? Ficar pensando no passado e olhando as fotos de quando estava magra no ajuda. O mal est feito, ento bola para frente. Vou comprar aquelas refeies diet congeladas e resolvo essa parada em dez dias.

76 quilos

Ah, me deixa, me larga, eu quero comer.

80 quilos

Que depresso... Preciso fazer alguma coisa, preciso...

82 quilos

No quero ficar assim: chega! No d mais! Vou levantar dessa tumba gorda em que me enterrei e tomar as rdeas da minha vida! Afinal, eu sou uma mulher ou uma r?

83 quilos

Fui, h trs dias, ao Dr. Nelson. Fiquei um pouco envergonhada, confesso, mas no me d cansao ter de comear tudo de novo. O processo de emagrecimento bom demais: estar descendo fcil, reto, "no" e pronto. Sem mltiplos caminhos. Eu adoro esse perodo! como se uma fora extraordinria tomasse conta de mim: uma luz se acende no palco, iluminando a domadora de rs boquiabertas que tambm vive aqui dentro e, de repente, sou mais forte que tudo! Com apenas dois dias de regime, j me sinto uma rainha! Emagrecer to bom... Alegria! Alegria! E como eu poderia usufruir desse prazer se no engordasse tudo de novo?

Joo Carlos, o gordo Gord!

Joo Carlos sempre foi chamado assim.

No pequeno circuito familiar, ainda beb, foi o bochechudo "gordo".

Nas brincadeiras de bola na rua, aos cinco anos, foi o desajeitado "gordo".

No colgio, aos sete, quando levou uma surra daquelas por levantar a saia das meninas no recreio, foi o tarado "gordo".

No parque de diverso, aos oito, j no primeiro brinquedo, foi o entalado "gordo".

Nos jogos de futebol das olimpadas estudantis, aos nove, foi o frangueiro "gordo".

Nos trabalhos escolares em grupo, aos dez, foi o CDF "gordo".

No bailinho, aos onze, foi o rejeitado "gordo".

Na consulta mdica, aos doze, foi o obeso "gordo".

Na repetncia da stima srie, aos treze, foi o incompetente "gordo".

Na mudana de colgio, aos catorze, foi o aluno novo "gordo".

Na primeira namorada, aos quinze, foi o apaixonado "gordo".

No colegial, aos dezesseis, foi o amigo de todas as horas "gordo".

Na primeira noite de amor, aos dezessete, foi o inexperiente "gordo".

No primeiro emprego de auxiliar de tesouraria, aos dezoito, foi o aplicado "gordo".

No vestibular, aos dezenove, foi o ansioso "gordo".

Nas eleies para presidente do diretrio acadmico da faculdade, aos vinte e um, foi o renovador "gordo".

Na formatura em administrao de empresas, aos vinte e quatro, foi o alinhado "gordo".

No noivado com Maria Aparecida, aos vinte e cinco, foi o sortudo "gordo".

Na chefia da seo no trabalho, aos vinte e sete, foi o caxias "gordo".

Na lua-de-mel com Maria Aparecida, aos vinte e oito, foi o adorvel "gordo".

No primeiro filho, aos trinta, foi o paizo "gordo".

No segundo filho, aos trinta e cinco, foi o surpreso pai "gordo".

No terceiro filho, aos trinta e seis, foi o frtil pai "gordo".

No caso com Eullia, aos trinta e sete, foi o amante "gordo".

Nas brigas com Eullia, aos trinta e nove, foi o indeciso "gordo".

Na descoberta do caso extraconjugal, aos quarenta, foi o canalha "gordo".

No rompimento com Eullia, aos quarenta e um, foi o ingrato "gordo".

Nos piores recalques de Maria Aparecida, aos quarenta e trs, foi o bode fedorento "gordo".

Na recesso, aos quarenta e cinco, foi o desempregado "gordo".

Na doena cardaca do caula, aos quarenta e oito, foi o dedicado pai "gordo".

Na homenagem dos colegas e amigos, aos cinqenta, foi o inesquecvel "gordo".

Na aposentadoria, aos cinqenta e cinco, foi o aposentado "gordo".

No primeiro neto, aos cinqenta e seis, foi o bonacho vov "gordo".

No enfarte, aos cinqenta e nove, foi o cansado corao "gordo".

No enterro de Maria Aparecida, aos sessenta e dois, foi o inconsolvel vivo "gordo".

No reencontro com Eullia, aos sessenta e quatro, foi o superado "gordo".

No segundo enfarte, aos sessenta e sete, foi o safenado "gordo".

Na casa do primognito, aos sessenta e oito, foi o inconveniente "gordo".

No apartamento do segundo filho, aos sessenta e nove, foi o indesejvel "gordo".

Na chcara do terceiro filho, aos setenta, foi o imprestvel "gordo".

No asilo, aos setenta e dois, foi o bom companheiro "gordo".

Nos ltimos instantes, aos setenta e cinco, enquanto o padre preparava a extrema-uno, foi um pobre esprito "gordo".

Chegando ao cu, supondo estar sem idade e sem peso, foi recebido por amigos e parentes mortos antes dele, que, num coro emocionado, desabafaram:

Gord, que saudade!!!

Mudou-se ento, de livre e espontnea vontade, para o inferno, onde o prazer de o chamarem simplesmente de "Joo Carlos" foi incomparvel, inenarrvel e indescritvel.

Simplesmente no penseiEssa passagem to estranha, nunca consegui captur-la. Como que daqui a alguns minutos estaremos em outro ano? De acordo com o calendrio, em breve, tudo o que aconteceu comigo e com Raul pertencer a um ano inexistente, ao sculo passado, a um milnio findo, enquanto as conseqncias continuaro brotando: no faz sentido.

O que mais pensar depois desses ltimos dias? Toda aquela tragdia e...

Seu cabelo cheira a ma verde, a barba est por fazer, dois ou trs dias. Trs. No dia em que fomos delegacia, ele fez a barba. Um de seus olhos parece maquiado com lpis vermelho e esfumaado ao redor, e at isso, at esse machucado, lhe confere um charme atroz.

s vezes a gente ama algum por tanto tempo que cansa de desej-lo dentro da prpria vida: se acostuma a amar e s. Dar e s. Estar l e s. O amor que vem de uma s parte, que despejado aos borbotes por uma s bica, migalhas suficientes, canes em mono.

Foi sempre assim com Raul, desde a primeira vez em que o vi, naquela manh quente, segundo dia na faculdade, ele passando pelo corredor e eu mordendo sua isca. Alis, muitas morderam, alm de mim.

No que eu teime em me apaixonar por homens inatingveis: a esmagadora maioria dos homens razoavelmente interessantes que est alm do meu alcance. Em outras palavras: no sou uma garota interessante. Meu rosto at bonito, eu acho, mas no conjunto ele acaba no funcionando bem. O conjunto: esse o entrave. Mais especificamente meu conjunto, composto de montes de quilos mal e mal distribudos. No entanto agora, aqui na praia... no sei.

Usualmente enfurnada num bluso jeans bem comprido que disfarava meu estmago saltado , cruzei os corredores da faculdade por cinco anos, sempre procura de algum resto de casca de po piedosamente deixada por Raul para que eu me alimentasse dele: um olhar descuidado, um cumprimento, um sorriso menos burocrtico...

No decorrer do curso, sem que eu forasse uma situao coisa que nunca me pareceu atraente , ficamos amigos. Com o passar dos anos, muito amigos. E s. O que era de se esperar: eu esperava, pelo menos. Aprendi h muito a desistir da idia do sucesso em minhas intenes romnticas; a esperana a ltima que morre, mas morre. E era mais fcil assim: sem me ver em condies de ter algum, sequer supunha tal possibilidade e era doce no poder sentir mais nada alm de um desusado amor platnico.

Tantos anos atrs isso e h alguns dias, enquanto jantvamos no restaurante japons, pensei (fruto de um estranho surto esperanoso): "Nada vai mudar, continuo aqui, ainda olhando para esses imensos olhos azuis que no me querem, no me sentem, sequer me refletem: continuo."

Entretanto, tudo comeou, sim, a mudar no minuto seguinte, na hora em que aqueles homens encapuzados entraram no restaurante, mandando todo mundo se ajoelhar, abaixar as cabeas e nem pensar em olhar para cima. Eu no olhei para cima, nem mesmo olhei para o Raul. Daquela maneira, s vendo o piso colado ao meu nariz, Raul estava distante de mim como sempre esteve, mas eu, pela primeira vez, estava distante dele como nunca estive.

Ao receber o primeiro chute na barriga, no sei por que, pensei nele: fechei os olhos e pensei que ele estava me vendo sentir dor e isso me provocou um estranho prazer. Era se como me tornasse uma herona, suportando honrosamente, indefesa, os golpes mais duros. O simples fato dele sentir algo por mim, no a pena humilhante mas uma pena aflita, que fosse, me induzia quele prazer. Algum sentimento saa dele em minha direo: no para as garotas das quais o ouvi falar incontveis vezes, nem para os problemas no trabalho, ou para a lembrana do pai morto ano passado. No: naquela hora Raul poderia estar sentindo alguma coisa diretamente por e para mim.

No quarto ou quinto chute, uma botina me acertou a testa e eu apaguei. No entanto, antes de tudo sumir na escurido, rolei para cima e vi Raul: mos na cabea, ajoelhado, olhando para mim, como imaginara, e em seus olhos azuis havia alguma coisa que nunca estivera l antes.

Quando acordei estava, provavelmente, na traseira de algum tipo de furgo. Nunca fui muito interessada em carros, ento no sabia exatamente qual era, entretanto tinha de ser um furgo porque havia vozes demais para um carro qualquer. Senti uma coisa molhada em minha testa que era colhida por um leno, ou fita de pano, que tapava meus olhos. Minhas mos estavam atadas com corda spera e os ps tambm. Demorei at me mexer porque, naquele quadrado perfeito, eu no estava s.

Algum outro corpo, tambm vivo, estava encostado ao meu e eu, com medo, desejei que fosse o do Raul; depois, com mais medo ainda, desejei que no fosse, pois nesse caso ele estaria sentindo meu corpo tambm e isso significava ter a dimenso ttil da minha gordura.

Vergonha: era isso o que sentia quando ouvi Raul dizer meu nome baixinho; baixinho, mas nem um pouco calmo, seu tom continha uma angstia indita e quase nem era mais sua voz. Eu nada respondi, no tive tempo, pois logo em seguida recebi mais pancadas, dessa vez com alguma coisa de ferro e me assustei demais, tanto que resolvi me fingir desmaiada.

Raul se manteve calado e, depois de alguns minutos, com as pontas dos dedos livres procurou minha garganta, agora virada para cima, e verificou se havia pulsao. Havia. Havia bem mais do que pulsao.

Estive desacordada, no sabia o que havia acontecido no restaurante e o porqu de ns estarmos ali, nem sabia se iria morrer no prximo minuto e, se assim fosse, morreria sem dizer a ele que o amava. Os romances baratos cruzaram minha cabea: "Ah, pelo menos morrerei a seu lado." Eu no queria morrer com ele, queria viver com ele!

No entanto, finalmente estvamos s ns dois, compartilhando uma experincia intensa; juntos vivendo algo em que ningum poderia penetrar. Se eu morresse naquela hora, no morreria feliz: no sou doida! Minha vida corria risco, porm o melhor que podia fazer era pensar em alguma coisa boa, qualquer coisa, para deter a claustrofobia. Nunca fui claustrofbica, contudo a prpria situao j era. Estava me dando um tremendo desespero o fato de no conseguir afastar as mos, nem os ps, e no poder esticar o corpo para melhorar minhas propores que deviam estar esparramadas por aquele quadrado, invadindo o corpo de Raul: banha se espalha.

Numa cama fofa, a banha afunda com a gente, disfara-se por entre a compresso da espuma, e o corpo parece at macio de se olhar. Numa superfcie dura como a que estvamos, a banha se espalha mais e pior.

Os caras falavam portugus com um sotaque carioca, como o nosso, bem pronunciado. A diferena que no dava para entender quase nada: era mais um dialeto que um sotaque. Parecia um cdigo, numa velocidade extraordinria. Ser que estvamos sendo seqestrados? Ou seramos apenas refns para fuga? Contudo, eu no ouvia sirene alguma ao nosso redor: nada que no fosse barulho de motor, aquele dialeto estranho e uns roncos mais fortes de vez em quando, provavelmente carros l fora.

De repente, comearam uns solavancos muito fortes, bati a cabea novamente mas no apaguei dessa vez. Melhor para mim: num ritmo daqueles Raul no perceberia que eu era to gorda, talvez nem estivesse se importando com isso.

Claro, estvamos entrando no mato ou numa estrada de terra, indo para um lugar deserto. Desova. Mas para que matar a gente? Eu no vi nada, no sei quem eles so e no sou ningum! No tenho grana, nem pai empresrio, nem famlia mafiosa, nunca me meti com drogas para dizer que vingana! No fazia sentido, porm esses caras vem sentido em alguma coisa? Poderiam ter usado a gente para escapar do restaurante e agora iriam fazer a desova dos corpos: no fundo, no acreditava naquilo. Acho que a intuio, ou outra coisa qualquer, nessas horas fica muito forte porque a gente clama a Deus com toda f que jamais teve, ou melhor, a gente lembra que Deus tem a obrigao de existir porque o instante exige.

Ento aconteceu: numa das vezes em que fomos chocalhados pelos solavancos do veculo, Raul agarrou meu brao. No disse nada, nem ousaramos abrir a boca, no entanto ele o segurou firme com os quatro dedos livres das cordas logo acima. O pavor e a angstia eram terrveis, entretanto, por trs daquilo tudo, senti algo novo quando ele agarrou meu brao. Senti no o seu desespero, mas o desejo mais primitivo e humano de, na dor, querer ficar junto, se perceber junto. Por um acaso (ser mesmo?) no era nenhuma candidata a Pantera-2000 que estava ali, nem um garom annimo, nem o Caz ou o Rodolfo, seus melhores amigos. Era eu. Eu, no mais a garota legal que atendia aos seus telefonemas-dor-de-cotovelo s quatro da manh. Era eu, pela primeira vez, inteira naquele espao. Era a mim que sua mo procurava e no fazia diferena a qualidade do corpo a que ele se agarrava, e esse corpo era, supremo, o meu. Era eu quem estava l: visvel, necessria, desejada.

No pude retribuir, era impossvel orientar os movimentos naquele balano em que estvamos, porm forcei meu brao o quanto pude para que ele notasse: eu tambm me agarrava a ele.

O furgo parou. Eles saram, bateram portas e comeou um falatrio exacerbado l fora. Algum deles poderia ter ficado l para nos vigiar e por cautela eu iria continuar calada, mas Raul me chamou de novo, baixinho e mais tranqilo, ou, ao menos, o mais tranqilo que algum poderia estar numa situao como aquela. Queria saber se eu estava bem e eu, por que estvamos ali. Ele me disse.

Algum gritou do lado de fora do restaurante que havia chamado a polcia e eles fugiram. Parecia que j haviam pego tudo o que queriam e nos levaram como refns no caso de a polcia os perseguir. Ento nos calamos, cada um com suas prprias preocupaes.

No entendi por que me levaram... refm desmaiado d menos trabalho, mas refm gordo desmaiado d mais, ento por que a gente? No tive coragem de perguntar, mesmo porque a resposta correta seria uma outra pergunta: "Por que no a gente?" Foi assim: bateram em mim, desmaiei, supuseram-se, com razo, fortes o suficiente para me carregar, Raul estava comigo, um refm s no faz vero e aqui estamos. Culpa de ningum.

Por todo o tempo, Raul esteve agarrado ao meu brao, mas eu no me mexi em sua direo com medo de o balano no carro atrai-los para dentro. Ouvimos um tiro e o dialeto emudeceu. Um som seco. Naquela hora, no me importei mais com as propores do meu corpo; me virei em direo a Raul e pressionei meu corpo contra o seu enquanto ele ensaiava um movimento que s percebi mais tarde.

Raul tentava colocar os braos em volta de mim! Que se danasse ser queimada viva, estuprada ou ter os miolos estourados: a vida que eu tinha era aquela, a daquele segundo; no a do filme, a da novela, a do livro, a que poderia ser ou deveria ter sido. Era aquela, l, daquele jeito e, por Deus, durasse ela um minuto ou cem anos, eu a viveria!

Seus braos estavam esticados ao redor do meu pescoo, ento virei de bruos, apoiei a testa machucada no carpete mido e levantei o tronco o suficiente para que eles chegassem minha cintura, sem me importar com os pneus ao redor dela. Ao mesmo tempo em que eu tentava virar de lado, ele me puxava mais ainda em sua direo como se no fosse dar tempo para abraar algum, nunca mais. E ele me abraou.

As vozes recomearam irregulares: parecia que eles iam e vinham o tempo todo. Raul me apertou como pde de encontro ao peito e, naquela posio completamente incmoda, diria at mesmo impraticvel em condies normais, me colei ao corpo dele pela primeira vez: o corao, os plos no peito, o pescoo largo, o resto do perfume.

Eles abriram a porta de novo enquanto Raul protegia meu rosto e meus seios de possveis golpes, apertando-os fortemente contra seu corpo. Eles sacudiam o furgo (Raul me dissera que era uma van), parecia que tiravam e punham coisas nele. Alguns barulhos eram secos e abafados, outros estridentes, metal, armas provavelmente. Eles falaram em desova. Ouvi perfeitamente a palavra: desova. Raul tambm ouviu, pois apertou mais ainda meu corpo de encontro ao seu.

No confessarei para ningum o que senti naquele momento, pois essa afirmao seria motivo suficiente para me prenderem numa camisa-de-fora. Mas o que que eu posso fazer? Estava feliz da vida mesmo! Excepcionalmente feliz! Ali, abraada a Raul, comecei a imaginar que, se estivssemos dormindo juntos e fssemos casados e aquele carpete fino fosse uma cama fofa e as cordas que nos atavam no existissem, talvez dormiramos daquele jeito, bem abraados, quentinhos, colados. Eu me moldava a ele com tanta facilidade... e naquele instante intu que seu corpo se aninhava bem melhor ao meu do que ao da Claudia Schiffer, por exemplo. Enquanto eu, macia, acolchoada, envolvente, conferia-lhe calor e conforto em meio a tamanho incmodo, o que lhe daria aquele saco de ossos comprido?

Ento um cara com voz aguda falou de novo a palavra "desova" e saiu dali com os outros. Bateram as portas e suas vozes se afastaram novamente. Eu e Raul no sabamos mais no que pensar: ora as vozes se afastavam e nos agarrvamos possibilidade deles terem ido embora, nos deixando para trs, ora eles voltavam com sua presena ameaadora.

Ficamos esperando por uma nova investida a qualquer momento, mas as vozes foram diminuindo at desaparecerem por completo. Por um longo tempo, nada mais se ouviu a no ser o canto dos pssaros: estava amanhecendo. Raul e eu no havamos desviado um milmetro um do outro e conversvamos baixinho sobre o que eles poderiam estar fazendo, sobre a impossibilidade e o perigo de uma reao nossa, sobre como cortar as cordas, fugir e, enquanto o tempo passava em silncio l fora, fomos conversando cada vez mais sobre ns mesmos, at que ele parou. Eu parei tambm.

Senti seu nariz tocar o meu; sabia que sua boca estava prxima e no pensei duas vezes. Ou melhor: simplesmente no pensei e, por no pensar, no cheguei a me lembrar de que era gorda, de que poderia ser rejeitada, e que nem deveria me arriscar daquela forma, pois a decepo seria inevitvel.

Avancei certeira e, pela pista do seu nariz, alcancei sua boca. Eu no via o seu rosto h horas, mas nas reaes do seu corpo, que sentia em cada mnimo detalhe, nem uma plida sombra de rejeio havia. A maciez da boca de Raul era infinitamente superior a qualquer um dos