Holocausto - Memórias Judáicas No Cone Sul - Edna Aizenberg

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  • 71Remate de Males 26(1) jan./jun. 2006

    Holocausto, memria judaica e memoriais

    do terror no cone sul *

    Edna Aizenberg

    Em 18 de julho de 1994, s 9h53 da manh, um poderoso explosivo despedaouminha amiga Susy Kreiman. Susy, cujo sorriso de sol radiante ainda est gravado em minhamemria, dirigia a Bolsa de Trabalho da AMIA (Associao Mutual Israelita Argentina),mas sua vida foi cerceada quando um grupo de terroristas em misso suicida decidiu quej no era seu direito humano viver. Ela e outras 84 almas.

    Como recordar a dor que no cessa? Estas so as palavras dilaceradoras do cartaz colo-cado no lugar da AMIA. (fig. 1) Como representar a dor que no cessa? A pergunta nos renehoje, aqui, em Buenos Aires, a pequena distncia da AMIA, e tambm da Embaixada deIsrael, que foi pelos ares em 1992, da ESMA, a escola militar convertida em campo deconcentrao, nas duas bandas do rio da Prata, com seus torturados e desaparecidos, comseus corpos flutuantes lanados nas guas no to bentas.

    A partir desse lugar de dor, memria e ao com suas quatro letras quase cabalsticas,AMIA, gostaria de dialogar com os senhores sobre as intersees da experincia judaica,de lo hebreo, como o chamara Borges, e o novo espao pblico memorialstico latino-ame-ricano. Gostaria de meditar sobre uma nova presena judaica, dialgica e aberta, na paisa-gem urbana ferida de Buenos Aires e de Montevidu, e tambm meditar sobre a contribui-o do hebreu, filtrado pela experincia limite da Shoah, para a criao de uma nova lingua-gem simblico-iconogrfica nestas latitudes. Uma linguagem mais adequada s necessida-des memorialsticas de nossos tempos que a das imponentes Alturas de Macchu Picchupoetizadas por Pablo Neruda, ou das colossais pirmides de Teotihuacn versificadas porOctavio Paz. Uma linguagem mais adequada que a dos homens eqestres de bronze emrmore cavalgando triunfalmente pelas praas da nao e ironizados por Cristina PeriRossi em seu maravilhoso conto El prcer.

    Quero esclarecer a princpio que de forma alguma pretendo reduzir o dialgico eaberto a um s prisma o hebreu; em um contexto to sulcado por complexidades comoo platino, h muitas intersees, h muitos veios que se entrecruzam. Mas me parece queo hebreu fundamental nos processos que estou descrevendo, e no tempo que tenho gosta-ria de concentrar-me neste fundamento.

    Como venho da literatura, que j citei, a escritura ser minha entrada no tema. E,de fato, a palavra, o livro, lugar de resistncia e recordao. Um dos primeiros memoriaiss vtimas da AMIA foi um lbum feito pelo poeta Eliahu Toker, em suas palavras, umaespcie de monumento de papel e tinta.1 O lbum contm uma pgina dedicada a cada um doscados, composta de entrevistas, depoimentos, fotos e poemas, e uma pgina especial paraa vtima nmero 86, o prprio edifcio da AMIA, arrasado a poucos meses de seu 50 aniver-srio. Aqui o latino-americano j se aparenta com o hebraico, porque os yizkor-bijer, livrosda memria em idiche, constituem uma parte essencial do repertrio mnemnico judai-co depois do Holocausto. Para os assassinados sem sepultura, escreve James Young em

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    seu penetrante e influente estudo sobre os memoriais Shoah, at sem corpos para enter-rar, estes livros recordatrios servem como lpides simblicas.2 Agora conhecemos estefenmeno de assassinados sem sepultura muito de perto em Nova York, onde muitoscorpos das Torres Gmeas tambm no sero recuperados.

    Os comentrios de Young e Toker, a idia de um monumento de papel e tinta oude uma lpide simblica evocam uma noo espacial da escritura nascida do desastre.(Penso aqui em Blanchot, penso aqui no fascinante livro crire lespace, de Marie-ClaireRopars-Wuilleumier.3) Pressionada pelo terror, a palavra escrita busca gravar sobre a pgi-na o que ainda no se pode gravar no espao. Busca sugerir modos para comear a narrar acatstrofe a partir das cinzas do que foi.

    Como medir um terremoto que destruiu todos os instrumentos de medir? per-gunta Lyotard after Auschwitz. E eis aqui a pergunta. Mas muito antes de Lyotard e outrospensadores, muito antes que existisse a categoria literatura do Holocausto, que se publi-cassem antologias como Probing the Limits of Representation: Nazism and the Final Solution, deSaul Friendlander, muito antes, aqui mesmo em Buenos Aires, houve uma inquisio mui-to profunda sobre os limites da representao e os modos de narrar o desastre.4 Nas fic-es que Borges escreveu durante os anos 1930 e 1940, enquanto o mundo se transforma-va no horrvel planeta de Tln, cuja topografia no to fantstica estava marcada portorres de sangue, o ento desconhecido autor iniciou um discurso inovador assinaladopelo hebreu e pela Shoah, e, correlativamente, pelo que o gegrafo humanista Yi-Fu Tuanchama landscapes of fear, paisagens de terror.5 (Tln, Uqbar, Orbir Tertius foi publicadona revista Sur, em maio de 1940.)

    O discurso narrativo de Borges emerge das runas de universos em ruptura runascirculares, jardins como armadilhas, labirintos sem sada, campos de concentrao emDeutsches Rquiem, cidades sitiadas pelos nazistas em O milagre secreto (ver as an-lises de Aizenberg).6 O constante vaivm que encontramos em suas fices entre histria,geografia e representao fraturada, entre articular a realidade e esquiv-la, produto da-quela trgica poca, vista com uma lucidez antecipatria a partir de sua posio lateral nospores e escombros em que se esconde o Aleph, e uma revelao degradada, ameaadapela destruio. Perfeita metfora para os tempos de lobo que corriam e a condio dopovo do Aleph. (fig. 2)

    Detenhamo-nos mais alguns instantes nesse Aleph como forma de passar das pai-sagens de terror escritas para as arquitetnicas. Para Borges, o hebreu, a herana do Aleph,insinua uma maneira alternativa de pensar e representar centrada no fragmento, tradicional-mente o fragmento sagrado, como instrumento de infinita potencialidade. O judasmo, bem sabia Borges,em geral evitava a grande construo macia e unvoca para concentrar-se, sobretudodepois da destruio do Templo de Jerusalm (fato central ao qual voltarei), na constanteexpanso interpretativa, ou midrash, de uma letra, um versculo, uma pedra, um muro. Essatendncia vem dos prprios alvoreceres do judasmo quando Moiss quebrou em pedaci-nhos as primeiras tbuas de pedra da lei; os fragmentos, shivre lujot em hebraico, no foramdescartados; mantiveram seu halo divino e sua polivalncia durante sculos, smbolos daruptura em busca de reparao.

    Tbuas quebradas, paredes derrubadas, mais tarde lpides arrancadas e pedrinhasdeixadas sobre tmulos para recordar os que faltam, todas elas portadoras de memria e

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    investidas com infinita potencialidade. Os trs mil anos de opresso e pogroms, como osdenominou Borges em A morte e a bssola, um de seus contos mais portenhamentegeogrficos, violentos e judaicos, somente assentaram essa linguagem, que a Shoah assen-tou ainda mais.

    Presciente e precursor, Borges pensou a escritura, o espao e a memria no nosesqueamos que o conto O Aleph parte da rememorao de um ente querido a partirdos pedacinhos de uma herana com halos divinos, investida pela mais cruel bestialidade.Meio sculo depois, seu dizer e no dizer em fragmentos de ilimitado significado passoupara o espao pblico. O Aleph borgiano materializou-se, por assim dizer, no A frag-mentado de granito preto da fachada do edifcio da AMIA que foi pelos ares, lanadocomo recheio sem valor na ribeira do rio da Prata, junto com outros restos, e resgatadopelo fotgrafo e ativista pelos direitos humanos Marcelo Brodsky para ser reciclado (nomelhor sentido da palavra) como vrios collages de estrelas de Davi explodidas, feitas depedrinhas quebradas, mas tambm reconstrudas e iluminadas. Brodsky exps sua memoryart os collages, o A grantico, outros pedaos destrudos nos espaos pblicos doCentro Cultural Recoleta, na Praa Houssay em frente ao Hospital das Clnicas, para ondeforam levadas muitas das vtimas da AMIA, e na sinagoga marroquina da calle Piedras, umadas primeiras construdas no pas.7 (fig. 3)

    Na sinagoga, a exposio se chamou Pedras sobre Pedras; na praa, Pedras pela Justia;no Centro Cultural, Nexo. Nomes polivalentes para pedras polivalentes, que formam ne-xos entre o argentino e o hebreu, o contemporneo e o antigo, a violncia ditatorial e aviolncia anti-semita, o apelo por um fim para a impunidade e o grito tzedek, tzedek tirdof, obblico justia, justia perseguirs, tambm levado ao espao pblico pelo grupo MemoriaActiva durante suas passeatas semanais de protesto contra o atentado irresolvido ao edif-cio da AMIA. E os nexos no terminam a.

    Pode ser coincidncia, pode ser mistrio divino, mas o A grantico da AMIAderrubada, os ps-modernos shivre lujot lanam-se como qualquer resto para serem esque-cidos, mas como seus venerveis antecessores recusam o gesto de obliterao. O lugarescolhido para sua eliminao precisamente onde se ergue um Parque da Memria, e apedra abandonada far parte de um Monumento s Vtimas do Atentado Sede da AMIA,um dos trs projetados para o parque, junto com o Monumento s Vtimas do Terrorismode Estado e o Monumento aos Justos das Naes.8

    Estrelas de Davi explodidas, Monumento aos Justos das Naes: o espectro daShoah espreita tudo o que eu disse at agora. A aproximao da representao e dasformas mudou depois do Holocausto, comenta James Young. A prpria arquitetura foialterada.9 E Andreas Huyssen, em Present Pasts: Urban Palimpsests and the Politics of Memory,destaca o mesmo com relao Argentina: o discurso do Holocausto modula os discursose modos de representao em Buenos Aires.10

    Os Justos das Naes traduz o hebraico Jasidei Umot Ha-olam, ttulo outorgadoaos que salvaram vtimas judaicas durante a hecatombe. Em Yad Vashem, a grande cons-truo memorial ao Holocausto nas colinas de Jerusalm, existe uma Avenida dos Justos,composta por rvores, uma rvore para cada justo, expresso de uma milenar tradiojudaica de plantar para recordar e vivificar. (As rvores recordatrias da calle Pasteur alu-dem a essa tradio e a Yad Vashem.) H um claro dilogo de espaos entre Buenos Aires

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    e Jerusalm, marcado tambm pela orientao do Monumento aos Justos para a CidadeSanta, e pela semelhana entre suas partes, como o Caminho dos Justos e a semi-enterradaCapela dos Justos.

    Mas, para alm de um dilogo geral, o que quero destacar atravs do prisma daShoah a idia que venho desenvolvendo da representao fragmentada, da pedra quebra-da mas poderosa. Os trs memoriais projetados so atravessados por buracos: o buraco doHolocausto, do atentado, do terror de Estado; o A que foi pelos ares, a fratura da abbadade tijolo do Monumento aos Justos e, para voltar imagem da estrela de Davi explodida, acicatriz em forma de ziguezague cortada por uma linha reta do Monumento s Vtimas doTerrorismo de Estado. Este ltimo em particular se aproxima de um dos lieux de mmoire Shoah mais potentes dos ltimos anos, o Museu Judaico de Berlim, de Daniel Libeskind.Em sua emocionante meditao autobiogrfica, Breaking Ground, Libeskind, nascido emLodz, Polnia, filho de sobreviventes do Holocausto, refugiado, imigrante, fala de suaesttica ps-Holocausto, marcada pelo trauma e pela memria.11

    Como possvel seguir representando uma realidade antissptica, completa, de-pois das devastaes polticas, culturais e espirituais do sculo XX? escreve Libeskind.No devemos afrontar nossas realidades complexas e desordenadas (messy), e criar umaarquitetura para este sculo XXI?12 Pergunta-chave que ecoa em Berlim, Buenos Aires,Madri, Londres, Jerusalm e Nova York, onde Libeskind, como se sabe, ganhou o concur-so para a reconstruo, a difcil reconstruo, do Ground Zero.

    Desse pano de fundo vem o interesse de Libeskind pela representao esvaziada,costurada, no ziguezague atravessado por uma linha reta. No Museu Judaico de Berlim,falando a partir das pedras, escrevendo os nomes dos mortos entre as linhas, como em ummidrash, Libeskind desenha uma estrela de Davi distorcida sobre a geografia de Berlim,estrela inscrita na prpria forma do edifcio, os pedacinhos espalhados por toda a estrutu-ra, que no entanto deixa lugar a tnues aberturas de luz.13

    O Monumento s Vtimas do Terrorismo de Estado, bem disse Huyssen, participadesse universo arquitetnico ps-Holocausto de fissuras e de nomes, tambm um univer-so ps-Vietn, com ressonncias do controverso memorial de Maya Lin. No se trata deimitao, destaca Huyssen, mas sim do reconhecimento do modo como discursos cultu-rais locais... se entrecruzam com condies globais. Apropriam-se do global criativamen-te para produzir novas formas de localidade com uma viso de um futuro diferente, mai-or.14 Essas idias, claro, so extremamente relevantes em Buenos Aires, onde conviverotrs memoriais a tragdias globais e locais, em um esforo, segundo as palavras da Comis-so pr-Monumento, por fazer memria para construir uma sociedade do porvir a partirda irreparvel fratura que a atravessa.15 (fig. 4)

    A irreparvel fratura que a atravessa: para a tradio judaica, a irreparvel fratura,o fragmento de todos os fragmentos, o Muro das Lamentaes; em hebraico, o MuroOcidental, Hakotel Hamaarvi ou simplesmente Hakotel, o Kotel, o Muro. O Muro, lugarmximo do judasmo, a marca que evoca o Segundo Templo, a sagrada runa que alude destruio, e com suas pedras de infinita potencialidade, regenerao do povo judeu.Deixamos nossos bilhetes, nossos pedidos nas gretas do Muro, convocando foras semliteralizar, j que o edifcio, a substncia plena, h sculos que j no est.

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    Por seu grande poder espiritual e iconogrfico, o Kotel foi re-edificado em diver-sos lugares do mundo, seu poder re-semantizado atravs da Shoah: um dos primeirosgrandes monumentos ao Holocausto, o Memorial ao Ghetto de Varsvia, de NatnRapoport, construdo na capital polonesa em 1948, imita os blocos do muro segregadordo ghetto e as pedras do sagrado Kotel. Em uma espcie de re-edificao em segundo grau,o muro de Rapoport se eleva tambm na mesma cidade onde se encontra o verdadeiroKotel: diante dessa reproduo, situada em Yad Vashem, o Estado de Israel d incio aoDia dos Mrtires e Heris do Holocausto, Yom HaShoah. (fig. 5)

    A reproduo ou inspirao do Kotel pode tomar outras formas, claro; um muroexistente (ou acidental) pode ser relido como um Muro das Lamentaes, como ocorre emNova York com o slurry wall, a parede sustentadora que restou das Torres Gmeas, e tam-bm ocorre em Buenos Aires.

    Mas a reproduo, recorda-nos Walter Benjamin, vtima ele mesmo da Shoah, nos reativa o original: incute-lhe (e transgride) outros sentidos.16 Cada repetio lhe incor-pora seus prprios contedos; na calle Pasteur, a tragdia e a irresolvida reconstruo daAMIA.

    Pouco depois do atentado, as runas do edifcio foram rodeadas por uma cerca demadeira do tipo que se utiliza comumente nas obras em construo (ou demolio). Maseste cercado banal, que mal escondia os escombros que se elevavam precariamente atrsdele, este found memorial logo se converteu em um lugar com halos do sagrado. Pintado depreto, com os nomes das vtimas e as palavras justia e memria desenhadas com spraybranco a superfcie ultrapassada pela grafia da memria , o humilde cercado converteu-se logo em O Cercado. Roga-se respeitar este lugar, declaravam os cartazes colados naparte superior, e tambm Recordar a dor que no cessa. E a associao com o Kotel notardou a vir: o cercado e os escombros so como o Muro das Lamentaes, disseram, oque restou depois da destruio do Templo de Jerusalm.17

    As cerimnias intensamente emocionantes do dia 18 de cada ms diante do cerca-do, o acender de velas, a leitura de nomes e preces, o deixar textos e bilhetes sobre ocercado recordavam o clima ritual diante do Kotel; por sua vez, levar cartazes com osrostos dos mortos relacionava-se a um gesto memorial do passado argentino recente: asfotografias que as Mes da Plaza de Mayo levavam no espao por excelncia do poderargentino para que no se esquecessem seus filhos e netos desaparecidos, para que fos-sem libertados.

    Diante do cercado da AMIA, ento o Terror de Estado dialoga com o Holocausto;o antigo e sagrado Muro das Lamentaes da Cidade Santa, com os tabiques mais efmerosdas obras de construo argentinas; a agitada rua portenha agora composta por rvoresrecordatrias, como a solene avenida de Yad Vashem. Espao e memria judaica e espaoe memria argentina dialogam penosamente, constituindo na morte o que em muitas oca-sies no pde constituir-se na vida: uma inter-relao que no v o contexto judaicocomo alheio, mas sim como partcipe no panorama urbano ferido. ( evidente que issopode ser visto como problemtico: por que na morte e na memria? Por que no na vida?Mas prefiro v-lo como algo para o futuro.) E ento volto aos muros, porque h outrosmuros.

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    O muro de fundo da Praa da Embaixada de Israel, com seus sinais de mutilao, outra testemunha vertical de uma histria cerceada, como o expressou to eloqentemen-te a escritora Tununa Mercado, em uma das assemblias da Memoria Activa. A vasta su-perfcie clama, disse Mercado, em cujo romance En estado de memoria (1990), sobre o exlioe o retorno a Buenos Aires depois da ditadura, se imagina antecipadoramente, incrivel-mente, um muro-testemunha cravado no corao de um quarteiro portenho, um muro,em suas palavras, to vasto como meu corao, e to branco como o muro de pena(Wailing Wall, na traduo do romance para o ingls). Esse muro que ao mesmo tem-po um espao fsico e um espao de escritura em que a escritora deve rasgar incertostextos e subtextos para comear a narrar a catstrofe.18 As pedras e os muros fragmentadosde infinita potencialidade.

    E passo brevemente com minhas pedras para a Banda Oriental, * para terminar. OKotel est poderosamente presente no Memorial ao Holocausto do Povo Judeu construdos margens do Prata, na rambla sul de Montevidu. Em 1980, visitei Jerusalm e o impac-to desse muro ficou em mim para sempre, comentou Fernando Fabiano, chefe da equipede design, cuja viso pulula com mltiplos traumas e geografias.19 (fig. 6) Porque no Uruguaitambm a reproduo do Muro Ocidental no s reativa o original, incute-lhe (e transgri-de) outros sentidos; neste caso, a tragdia da ditadura e os detidos/desaparecidos dos anos1970. O hebreu, a hecatombe e a representao judaica servem como passagem para no-vas formas de localidade com uma viso de um futuro diferente, implantando a idia dememorial em oposio monumentalidade petrificada e triunfalista da ditadura, e aomesmo tempo o uruguaio abre passagem para incluir o hebreu. Em parte graas aberturaque o Memorial ao Holocausto do Povo Judeu propiciou, uma dcada mais tarde se pdeconstruir um memorial diretamente dedicado aos detidos/desaparecidos, dois muros comnomes, e os designers levaram muito em conta seu precursor.

    Apesar das grandes diferenas, em Buenos Aires, um cercado acidental relido comoMuro das Lamentaes, de certo modo a despeito do memorial oficial multicor de YaacovAgam; em Montevidu, um memorial oficial que expressamente reproduz o Kotel, erigidoem nome do Uruguai por iniciativa do Poder Executivo no mesmo ano em que a AMIAfoi pelos ares; apesar dessas importantes diferenas, nas duas bandas, a linguagem daspedras quebradas filtrada pela Shoah serve para abrir um espao de textos e subtextos emque se comea a narrar a catstrofe, as catstrofes, com uma viso de um futuro diferente,melhor.

    Notas

    * Este ensaio baseado na comunicao apresentada no encontro internacional El Arte: representacin de lamemoria del terror, realizado em Buenos Aires de 1 a 4 de novembro de 2005. Agradeo o convite dosorganizadores, Irene Jaievsky e Ralph Buchenhorst, e sobretudo coordenadora-geral, Eugenia Bekeris.1 Toker, Eliahu. Sus nombres y sus rostros. Buenos Aires: Editorial Mil, 1995, p. vii.2 Young, James. The Texture of Memory. New Haven: Yale University Press, 1993, p. 7.3 Blanchot, Maurice. The Space of Literature. (trad.: Ann Smock). Lincoln: University of Nebraska Press, 1982.Ropars-Wuilleumier, Marie-Claire. crire lespace. Saint-Denis: PUF, 2002.4 Lyotard, Jean Franois. Le Differnd. Paris: Editions de Minuit, 1983. Friedlander, Saul. Probing the Limits ofRepresentation: Nazism and the Final Solution. Cambridge: Harvard University Press, 1992.

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    5 Borges, Jorge Luis. Obras completas. Buenos Aires: Emec, 1974, p. 435. Tuan, Yi-Fu. Landcapes of Fear. NovaYork: Pantheon, 1979.6 Aizenberg, Edna. Borges, el tejedor del Aleph y otros ensayos. Madri: Iberoamericana, 1997; Idem, DeutschesRequiem 2005, Variaciones Borges, n. 20, 2005, pp. 33-57; Idem, Postmodern or Post-Auschwitz: Borges andthe Limits of Representation, Variaciones Borges, n. 3, 1997, pp. 141-152.7 Brodsky, Marcelo. Nexo. Buenos Aires: Centro Cultural Recoleta, 2001, p. 88.8 Proyecto Parque de la Memoria. Buenos Aires: Comisin Pro Monumento a las Vctimas del Terrorismo deEstado, 2003.9 Apud Popper, Michael. Transforming Tragedies Into Memorable Memorials, Forward, 16 jan. 2004. http://www.forward.com/issues/2004/04.01.16/faces.html (Acesso em 5 jul. 2005).10 Huyssen, Andreas. Present Pasts: Urban Palimpsests and the Politics of Memory. Stanford: Stanford UniversityPress, 2003, p. 98.11 Libeskind, Daniel. Breaking Ground. Londres: John Murray, 2004, p. 12.12 Ibidem, p. 13.13 Ibidem, p. 92.14 Huyssen, Andreas. El Parque de la Memoria: Una glosa desde lejos, Punto de Vista, ano 23, n. 21, BuenosAires, dez. 2000, p. 28.15 Proyecto Parque de la Memoria, op. cit., p. 8.16 Benjamin, Walter. Illuminations (trad.: Harry Zohn). Nova York: Schocken, 1969, p. 221.17 AMIA: 18 de julio y despus (1999-2000). Buenos Aires: KehilaNet. CD-ROM.18 Mercado, Tununa. En estado de memoria. Buenos Aires: A. Korn, 1990, p. 184.* Antiga denominao do Uruguai. (N.T.)

    19 Fabiano, Fernando. E-mail, 20 nov. 2002.

    Bibliografia

    Aizenberg, Edna. Books and Bombs in Buenos Aires: Borges, Gerchunoff and Argentine-Jewish Writing. Hanover:University Press of New England, 2002.

    _______. Borges, el tejedor del Aleph y otros ensayos. Madri: Iberoamericana, 1997._______. Deutsches Requiem 2005. Variaciones Borges, n. 20, 2005, pp. 33-57._______ . Postmodern or Post-Auschwitz: Borges and the Limits of Representation. Variaciones Borges, n.

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    Traduo de Gnese Andrade

    Imagens

    Fig. 1 AMIA destruda aps ataque.

    Fiig. 2 O Aleph de Borges.

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    Fig. 3 A de AMIA, dos escombros do prdio.

    Fig. 4 Memorial, Parque de la Memoria.

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    Fig. 5 O Kotel reproduzido, Memorial Ghetto de Varsvia.

    Fig. 6 Memorial ao Holocausto do Povo Judeu, Montevidu.