HOLSTON. Cidadania Insurgente_PARTE3

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Extratos parte 3 _ Insurgências

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  • PARTE TRS _ Insurgncias

    6. Legalizando o ilegal

    A lei costuma produzir complexidades processuais e substantivas insolveis; essa irresoluo

    jurdico-burocrtica sempre d incio a solues extrajudiciais; e essas imposies polticas

    inevitavelmente legalizam usurpaes de um tipo ou de outro. Dessa forma, a legislao

    fundiria promove conflitos, no resolues, porque estabelece os termos pelos quais as

    transgresses sero seguramente legalizadas. Por isso um instrumento de desordem

    calculada por meio da qual prticas ilegais produzem as leis e solues extralegais so

    introduzidas clandestinamente no processo judicial. Nessa situao paradoxal, a prpria lei

    uma forma de manipulao, complicao, artifcios e violncia pela qual todas as partes

    pblicas e privadas, dominantes e dominadas buscam seus interesses. Das muitas

    consequncias desse mau governo da lei, existe uma que representa mais que uma perverso

    oportunista: para o subalterno nas periferias, legalizar o ilegal a forma pela qual eles se

    tornam cidados urbanos por meio da apropriao do solo mesmo da cidade. P.266

    Por um lado, embora a lei cotidiana permanea uma carga a ser enfrentada, os pobres

    urbanos aprenderam, sobretudo atravs de lutas pela propriedade de suas casas, como usar

    suas complicaes para obter vantagens legais e extralegais. Nesse sentido, eles perpetuam o

    mau governo da lei, mas em benefcio prprio. [...] Por outro lado, essas mobilizaes polticas

    e legais ajudaram a gerar uma nova Constituio e medidas relacionadas que se aplicam

    diretamente s suas experincias residenciais nas periferias. Essas inovaes geram novas

    oportunidades para distribuir recursos de forma mais igualitria e fomentar o exerccio da

    cidadania democrtica. P.267

    As periferias urbanas de So Paulo e de outras cidades brasileiras normalmente se

    desenvolvem por meio de dois processos no que se refere lei: um de ocupao ilegal, que as

    abre aos assentamentos, e outro, concomitante, de legalizao do ilegal. [...] essa relao

    instvel, porm produtiva entre o ilegal e o legal se cristalizou primeiro no comeo da

    colonizao como uma estratgia das elites agricultoras, que aperfeioaram como forma de

    surrupiar patrimnio real e que resultou em grandes ganhos. Mas depois de quatro sculos de

    uso, e em especial nas dcadas recentes, essa estratgia se tornou onipresente. Assim, tanto

    nas famlias brasileiras mais ricas quanto nas mais pobres, encontramos posses legais de terras

    que so na origem usurpaes legalizadas. P.270

    Novas legislaes criam novas camadas de ilegalidade. Todas elas exigem favores executivos

    (isto , polticos), para criar excees, tratamento especial e anistias. P.272

    o estudo da histria tem mostrado que a usurpao um dos principais impulsos da

    ocupao territorial brasileira e que a prpria legislao fundiria se desenvolveu em grande

    medida da estratgia de legalizar usurpaes por meio de manobras extrajudiciais. P.296

    a ocupao ilegal se tornou uma forma bsica de aquisio, e a ilegalidade, uma condio

    comum de organizao social em todos os nveis da sociedade brasileira. A partir disso, a

    necessidade universal de transformar posses ilegais e usufruturias em propriedades

    imobilirias desenvolveu a grande arte da complicao legal.

  • Durante sculos, portanto, as irresolues orquestradas pela prpria lei incentivaram as

    posses, j que tambm criaram a confiana em sua legalizao. Nesse processo sacramentado

    pelo tempo, prticas ilegais produzem leis, solues extralegais so incorporadas ao processo

    judicial e a lei confirmada como canal estratgico de desordem. P.297

    A propriedade residencial disciplinou as classes trabalhadoras, como supunham os idelogos

    da industrializao, mas, em vez de produzir os trabalhadores dceis e higinicos que

    imaginaram, a propriedade residencial os politizou: as mesmas condies precrias, legais e

    materiais, que tornaram possveis as periferias autoconstrudas, estimularam seus

    construtores a organizar associaes de bairro como forma de superar essas desvantagens p.

    298-299

    nos ltimos 30 anos, essas lutas produziram um grande aumento, entre os pobres urbanos,

    da expectativa de que, como cidados, eles no s tm direitos legais como seus problemas

    podem ser equacionados em termos dos direitos e da dignidade da cidadania democrtica

    mais que por outros meios, como o patronato, o favor ou a revoluo. P.299

    7. Cidados Urbanos

    Suas lutas para legitimar suas residncias prprias, seus lares construdos e seus bairros, para

    refutar acusaes de invaso e para validar sua posio de construtores da cidade produziram

    um envolvimento sem precedentes com a lei que tornou seus lderes confiantes o suficiente

    para enfrentar oficiais de justia com argumentos legais. Essa experincia tambm geou uma

    nova cidadania urbana entre os moradores, baseada em trs processos centrais. O primeiro

    criou uma nova esfera pblica alternativa de participao, atravs da qual eles exigiram suas

    necessidades em termos de direitos direitos de cidados que contemplavam suas prticas

    urbanas e constituam uma agenda de cidadania; o segundo forneceu uma nova compreenso

    da fundamentao desses direitos e de sua dignidade como portadores de direitos; e o

    terceiro transformou a relao entre o Estado e o cidado, gerando novos arcabouos legais,

    instituies participativas e prticas de tomada de deciso. P.304

    [como se deu o surgimento de uma forma de cidadania insurgente]

    O efeito da represso do Estado nos aspectos poltico, civil e social da cidadania era assim o

    de drenar o interesse popular da esfera pblica militarizada, fraturar organizaes civis,

    obstruir a centralizao de conflitos e mobilizaes e contaminar as relaes pblicas com o

    medo e a desconfiana. Como consequncia, tendia a isolar as pessoas em suas casas, famlias

    e bairros, confinando-as aos vnculos locais. A eviscerao dos domnios pblicos estabelecidos

    de cidadania criou, contudo, uma possibilidade paradoxal, a do desenvolvimento de uma

    esfera de independncia exatamente nesses espaos interiores e, do ponto de vista da

    autoridade central, remotos. De fato, a nica instituio interessada nessa possibilidade era a

    Igrja Catlica, que renovou sua misso evanglica dirigindo-se ao pblico desses espaos. Foi,

    portanto, em contraste com a alienao da urna de votao, da SAB clientelista, das sedes dos

    sindicatos e das fbricas que a vida domstica nos bairros que brotavam nas periferias

  • distantes se tornou o foco do compromisso da classe trabalhadora. Foi l, organizados ao redor

    da vida social da casa, para alm do Estado imediato, dos partidos e das sanes de

    empregadores, que surgiram os novos espaos de participao cvica e avaliao coletiva.

    P.308

    Os argumentos envolvendo o direito cidade dos movimentos sociais urbanos

    corportificaram as lutas dos moradores por esse reconhecimento de serem cidados

    portadores do direito a direitos. Essa mudana na subjetividade do cidado no foi nem linear

    nem isenta de contradies. Continua emaranhada com as justificativas de necessidade, das

    relaes clientelistas e da racionalidade do tratamento especial. Mas as mobilizaes das

    periferias articularam, em vrias modalidades, uma cidadania participativa fundamentada no

    direito a direitos. P.312

    [Reiventando a esfera pblica]

    Essa esfera pblica de participao nova e insurgente por diversas razes. Desenvolveu-e

    em grande medida fora dos domnios estabelecidos da cidadania disponveis s classes

    trabalhadoras, em contraste com o universo restrito da cidadania social getulista e com a

    repressiva esfera pblica da ditadura militar. Com efeito, as prprias condies urbanas de

    segregao e desigualdade nas periferias tornaram possvel esse processo: a localizao

    remota permitiu certa liberdade, que ficava fora do ambiente de trabalho e fora das vistas,

    para inventar novos modos de associao, ao mesmo tempo que a ilegalidade motivou os

    moradores a exigir incluso com base na propriedade, na infraestrutura e nos servios da

    cidade legal. [...] as classes trabalhadoras das periferias investiram em formas novas e

    reinventadas de organizao [...] nas quais o critrio de incorporao a residncia, e a

    agenda essencial a articulao de reinvindicaes por recursos. P.320

    Na formulao insurgente, os moradores das periferias imaginam que seus interesses

    derivam de sua prpria experincia, no dos planos do Estado, que so bem informados e

    competentes para tomar decises a respeito desses interesses e que suas prprias

    organizaes podem articul-las. Consideram essa experincia organizada a base de um

    exerccio de cidadania por meio do qual podem participar e ser responsveis por instituies

    da sociedade, do governo e da lei que produzem as condies da vida urbana. P.322

    Tal demanda por direitos iguais no apenas embasa reivindicaes especficas de acesso a

    recursos e instituies em favor dos seus membros, mas tambm tem como objetivo a

    produo de acesso, igualdade e dignidade universais. Dessa forma, a esfera pblica da

    cidadania insurgente implica um projeto particular de justia social e fomenta uma imaginao

    democrtica especfica, centrada na equiparao, e no na diferenciao. Ressalto que essa

    nova cidadania participativa no substitui a antiga formulao, em que a cidadania um meio

    para distribuir desigualdades e diferenas. Ao contrrio, as duas coexistem e se enfrentam no

    mesmo espao social da cidade.

    Finalmente, alm de desbravar novas relaes verticais entre o Estado e o cidado, as

    associaes de bairro criaram novos tipos de confederaes horizontais de cidados por toda a

  • cidade e mais alm. Essas organizaes translocais fortaleceram de maneira considervel o

    desenvolvimento de uma esfera cvica autnoma de cidadania. P.322

    [Direitos como privilgio direitos de contribuidor direitos por escrito]

    O conceito de direitos das partes interessadas ou de contribuidor propaga de forma ambgua

    os dois sistemas de cidadania, porque, embora abrangente, exclui alguns moradores. Mas,

    como enfatiza a autodeterminao e as realizaes dos cidados-contribuidores, tanto

    individual como coletivamente, tende a promover uma cidadania de autoconstruo

    universal, e portanto, tem um tipo de agncia igualitria ausente do paradigma diferenciado.

    Nas periferias contemporneas, essas trs conceituaes de direitos permanecem vitais e

    misturadas no desenvolvimento da cidadania.

    [Direitos como privilgio]

    Na teoria, os direitos legais podem estar disponveis a todos os trabalhadores (como props o

    populismo de Vargas), mas s podem ser adquiridos e realizados pelos que os merecem em

    termos de atributos pessoais especficos (ou seja, se tiverem sido alfabetizados ou registrados

    numa profisso). Para a maioria da classe trabalhadora, portanto, as excluses de cidadania

    diferenciada em geral parecem resultar menos de causas polticas e jurdicas que de fracassos

    pessoais. Essa despolitizao perpetua a legitimidade de direitos de cidadania excludentes ao

    culpar o excludo por no t-los. P.331

    A personalizao dos direitos significa que seu exerccio depende do arbtrio, no do dever,

    de algum em posio de poder para reconhecer o mrito pessoal do requerente e garantir

    seu acesso ao direito. Esse poder de arbitragem converte direitos em privilgios, no sentido de

    que se torna um privilgio obter o que por lei um direito. [...] Dessa forma, uma cidadania de

    tratamento especial cria relaes de imunidade e vulnerabilidade que envolvem privilgios e

    falta de poder na mediao dos direitos. P.333

    Esses pioneiros de uma cidadania urbana insurgente e participativa continuam assim a

    perpetuar elementos-chave do regime de cidadania diferenciada que os discrimina e ao qual

    se opem de vrias formas. Em geral eles aceitam o princpio de que as desigualdades sociais

    existentes justificam mais tratamento desigual como forma de compensao. Ao fazer isso,

    tambm legitimam a reproduo de mais desigualdades e privilgios por todo o sistema

    social. P.336

    [Direitos de contribuidor]

    Eu os chamo de direitos de contirbuidor porque os moradores os apresentam como

    reivindicaes legtimas com base em suas contribuies prpria cidade sua construo

    atravs das casas e dos bairros que ergueram, administrao da cidade via pagamento de

    impostos e economia da cidade atravs do consumo. So direitos de partes interessadas

  • porque os moradores fundamentam sua legitimidade na apropriao da cidade atravs desses

    meios. P.336

    A agncia da cidadania urbana autoconstruda. Essa autoconstruo da moradia, de si

    mesmo e do cidado nas periferias ao mesmo tempo individual e coletiva. Sua agncia

    individual porque se refere a realizaes individuais. Mas estas ltimas se tornam inteligveis e

    poderosas em seus significado sobretudo como expresses da grande narrativa social dos

    assentamentos nas periferias, cada um reiterando uma parcela de um drama coletivo se

    segregao e insurgncia. P.340

    [Direitos por escrito]

    O desenvolvimento da cidadania nas periferias permanece contraditrio: os moradores

    apoiam a igualdade annima dos cidados, mas ao mesmo tempo defendem que vrios tipos

    de desigualdade social justificam a legalizao de tratamentos desiguais. Ainda assim,

    combinados nova participao cvica, esses novos entendimentos dos direitos sustentam o

    crescimento de medidas significativas de cidadania igualitria. A igualdade da incluso que

    esse crescimento exige insurgente, mesmo que tenha de abrir a cotoveladas o seu caminho

    no sistema inexistente. insurgente porque a reivindicao ao direito aos direitos de cidado

    no pequena; ela j pressupe a totalidade dos direitos possveis. Da o reconhecimento

    desses cidados como partcipe dos direitos aos direitos criar uma oportunidade radical para

    refazer a cidadania brasileira na direo de uma sociedade democrtica. P.345