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Homem-massa - A filosofia de Ortega y Gasset e sua crítica ... · – onde defendi a tese La Ilustración Vital: el Raciovitalismo de Ortega y Gasset como vía para el desarrollo

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Homem-massaA filosofia de Ortega y Gasset e

sua crítica à cultura massificada

Jéferson Assumção

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2012 by Jéferson Assumção

Esta obra foi licenciada com uma Licença Creative Commons

Editora Bestiário / Fundación Ortega-Marañón

Editora Bestiário

www.bestiario.com.br

Rua Marques do Pombal, 788/204

90540-000 - Porto Alegre, RS. Brasil

Telefone: (51) 3343.5784 | 9325.1366 | 9491.3223

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www.ortegaygasset.edu

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Teléfono y Fax

Tel. (34) 91 700 4149 / 42 / 00

Fax. (34) 91 700 3530

Capa: Cecília Sá sobre desenho de Egon Schiele (1890 — 1918)

Editoração eletrônica: e-design

A851h

Assumção, Jéferson

Homem-massa - A filosofia de Ortega y Gasset e

sua crítica à cultura massificada / Jéferson Assumção - Porto

Alegre, RS. - Editora Bestiário, 2012

192 p.

ISBN 859880231-x

1. Filosofia, Ciências sociais. I Título

CDD-190

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AgradecimentosÀ minha orientadora para o Diploma de EstudosAvançados (DEA) e Doutorado na Universidade de León,Maria Isabel Lafuente Guantes, por tanto que fez nessesanos de estudo. Ao diretor do Centro de EstudosOrteguianos, de Madri, Javier Zamora Bonilla, pelasmuitas conversas estimulantes e as correções necessáriasao entendimento de minúcias orteguianas. A Luiz Anto-nio de Assis Brasil.

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Para Cecília,Guilherme e Tarsila.

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PRÓLOGO

O grande interesse na filosofia de José Ortega yGasset no Brasil é um assunto digno de meditação daEuropa porque o Brasil é hoje um dos países maisadmirados e admiráveis do mundo. Um país que estáfazendo o seu futuro pela combinação maravilhosa queocorreu ao longo de décadas de uma sociedade ativa,engenhosa e trabalhadora com políticos que souberamresponder às necessidades e incitações desta mesmasociedade.

Por que o Brasil se interessa por Ortega y Gasset?Não tenho nenhuma resposta clara. Eu sei muito poucosobre a sociedade brasileira para ousar responder. Otrabalho de tradução e estudo da obra de Ortega y Gassetque fazem diferentes pesquisadores em diferentesuniversidades deve ser elogiado pela sua tenacidade eseus altos padrões. Jéferson Assumção, um magníficorepresentante desses pesquisadores, aponta nas páginasdeste livro, como hipótese, que o pensamento de Ortegay Gasset pode dar respostas a problemas que a sociedadebrasileira enfrenta no início do século XXI, da mesmamaneira como tentou responder aos que a Espanha tinhano início do século XX.

Existem diferenças óbvias de um país para outroe de uma situação histórica para outra, mas o autor, comuma perspicácia notável, sabe apreciar os paralelos emsua leitura atualizada - “na altura dos tempos”,poderíamos dizer com expressão orteguiana – de LaRebelión de las Masas, a obra do filósofo espanhol maistraduzida e que causou mais impacto em todo o mundodesde sua publicação.

O triunfante homem-massa, que Ortega y Gassetviu nascer no momento em que começava a sociedade

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de massa, hoje vive “alterado” nos ritmos da civilizaçãocontemporânea, rodeado pelas inúmeras possibilidadesoferecidas pela mesma, mas sem estar ciente de que émilenar herdeiro de um processo histórico que lhepermite desfrutar de bem-estar material jamaisconhecido até a data. Esta “alteração” e o desconhe-cimento e a indiferença para com a herança pode levar àbarbárie, porque não se pode esperar que o progressotécnico traga necessariamente progresso moral. JéfersonAssumção, que como um bom intelectual “pensa contra”as crenças de seu tempo orteguianamente vê anecessidade de “lutar” com este homem-massa com uma“pedagogia social” nova que levaria a uma “Ilustração vi-tal” (tema de sua tese, desenvolvido posteriormente emA Ilustração Vital: o Raciovitalismo deOrtega y Gassetcomo via para o Desenvolvimento de uma SociedadeLeitora, inédito).

Para Ortega y Gasset, a cultura é a resposta àsnecessidades vitais do nosso tempo e não é algo rígido esimples ornamento para ser adicionado à educaçãoprofissional. A filosofia da razão vital e histórica que ofilósofo desenvolveu durante a primeira metade doséculo XX colocou o homem, a pessoa real que somoscada um de nós, no centro de meditação filosófica,considerando a vida humana de cada um como arealidade fundamental. O nosso mundo, e dentro dela anossa cultura, é o espaço em que cada um é seu próprioeu e constrói a sua vida. A ilustração vital que o autorpropõe permitirá ao homem exercer melhor sualiberdade na construção da realidade fundamental. Masesse homem concreto nunca está sozinho, já que sua vidaé sempre vida com os outros que formam parte de nossomundo. A esses, portanto, se deve sempre ter em contacomo realidades radicais que também são.

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Para compreender esta realidade difícil que é ohomem, a pessoa real que somos cada um, a filosofia temde usar todos os instrumentos que a natureza e a históriacolocaram ao seu alcance, portanto, sem sacrificar arazão científica, também é preciso saber olhar para ohomem desde a razão vital e histórica, o que por vezesenvolve observá-lo literariamente, liricamente, como umgrande romancista de si mesmo que ele é. A metáforatorna-se assim uma forma de expressão da filosofia.

Jéferson Assumção não só aprendeu em Ortega yGasset muita filosofia e o exercício de intelectualcomprometido com a sua circunstancia, como tambémse impregnou de seu maravilhoso estilo literário.Venham e vejam.

Javier Zamora BonillaDiretor do Centro de Estudos Orteguianos da Fundação

Ortega y Gasset - Gregorio Marañón; Professor do Departamentode História do Pensamento e Movimentos; Sociais e Políticas daUniversidade Complutense de Madrid.

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“Mais do que um homem, é apenas uma carcaça de homemconstituído por meros idola fori; carece de um ‘dentro’, de umaintimidade sua, inexorável e inalienável, de um eu que não sepossa revogar. Daí estar sempre em disponibilidade para fingirser qualquer coisa. Tem só apetites, crê que só tem direitos e nãocrê que tem obrigações: é o homem sem nobreza (...) snob.”

(José Ortega y Gasset, A Rebelião das Massas)

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INTRODUÇÃO

Cultura: o supérfluo necessário

Apenas duas vezes, indo de trensurb de PortoAlegre para Canoas, eu perdi a estação do centro dacidade e tive que descer na seguinte (Mathias Velho) parapegar o trem de volta. Nas duas, eu estava lendo O que éFilosofia?, de José Ortega y Gasset (1883-1955). Eu tinha 17anos e, daquele texto do filósofo madrilenho, vinha-meuma forma que me parecia tão nova de me fazer pensarque desde então nunca mais parei de estudar sua obra.Anos mais tarde, enquanto cursava Filosofia, muitosprofessores tentaram convencer-me de que até o finalda graduação eu o trocaria por um filósofo mais influentenos dias de hoje. No entanto, a cada novo grandepensador conhecido eu sentia maior a evidência de quemeu caminho era mesmo o Raciovitalismo, a aventureirafilosofia da razão vital de Ortega y Gasset.

Assim, logo depois da conclusão da Licenciaturaentrei em contato com universidades na Espanha, como objetivo de estudar, no país de origem, a obraorteguiana. Fui, por sorte, parar na Universidade deLeón, no norte da Espanha. Sorte pela acolhida, pelosmuitos amigos que fiz lá, pela atenção de minhaorientadora Maria Isabel Lafuente Guantes, mas tambémporque ali em León o autor de uma enorme biografiafilosófica de Ortega, Javier Zamora Bonilla, tinha feitoseu doutorado. Maria Isabel apresentou-me a Javier, quejá atuava na Fundación Ortega y Gasset, em Madri,compondo a equipe da monumental edição das novasObras Completas de Ortega y Gasset, cujo trabalho tiveoportunidade de acompanhar. Em seguida, este profes-sor da Complutense de Madrid se tornaria o diretor do

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Centro de Estudos Orteguianos, da FOG, cargo que ocupaaté hoje. Em diversas oportunidades de conversas nacélebre calle Fortuny, onde fica a sede da fundação,corrigiu falhas de minhas abordagens. Anos depois, tivea honra de contar com Javier na banca do meu doutorado– onde defendi a tese La Ilustración Vital: el Raciovitalismode Ortega y Gasset como vía para el desarrollo de una sociedadlectora. Um dos temas de que mais tratamos sempre foi aatualidade, na sociedade de massas, do pensamento deOrtega em relação a possibilidade de fundamentação depolíticas de cultura, especialmente as de livro e leitura. Achave para tal abordagem: seu conceito de homem-massa.

Não que eu tenha uma adesão completa ao queescrevera o filósofo espanhol – até porque sempre mesenti discordante de seu pensamento político - mas suaideia de vida humana como realidade radical, sua pro-funda visão de cultura e sua exigência de res-ponsabilidade ética e estética foram e são um motor queme impelem para a ação no campo da cultura - e napolítica cultural - como nenhum outro. Ortega, nomínimo, provoca-nos a sair da placidez e da passividadepara a ação. “Desde que comecei a ler Dom Ortega, passei,inclusive, a tourear melhor”, disse dele no início do séculoXX o toureiro espanhol Domingo Ortega. Em Ortega, nãosó como conteúdo mas também na forma de exposição,a razão, junto a um certo pragmatismo latino“antiqueixoso”, solar, vibrante, aparece viva. Some-se aisso uma mistura de filosofia com sociologia, literaturae jornalismo, com textos corpóreos, sólidos, límpidos: “Aclareza é a cortesia do filósofo”, ele definia, para explicaro gosto pelo uso de metáforas precisas para a exposiçãodesta razão que vem da vida.

Com seu raciovitalismo, a razão enche-se de uma

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perspectiva aventureira, num quixotismo positivo noqual pensar não se aparta nunca de sentir e de ser1. Seuprimeiro livro, as Meditações do Quixote, já estátransbordante desta perspectiva voluptuosa, lúdica (elefoi amigo e admirador do grande biógrafo de Erasmo deRotterdan4, Johan Uizinga, autor do belíssimo HomoLudens, e com quem partilhava o amor pelo caráterdesportivo da moral e da razão). É um pensamentoelegante, muscular, em que o ético (a ética da gratuidadeque deveria ser professada por todo aquele a quem a vidafoi dada mesmo que por fazer) não se aparta do estético,com sua exigência de elegância técnica, criatividade decada um e expressão próprias. Mesmo dentro decircunstâncias sociais, vitais e econômicas desfavoráveis,a responsabilidade individual e a perspectiva própria sãoponto de resistência que deve ser ativado para atransformação do entorno, o que ganhou contornosnítidos na famosa frase “eu sou eu e minha circunstância.E se não salvo a ela não salvo a mim”. Não se trata dedesresponsabilizar o social e jogar toda a carga noindivíduo, mas também de não desresponsabilizar oindivíduo pelas suas escolhas2. Um meio-termo justoaristotélico iria melhor, uma coimplicação eu-circunstância.

Ou seja: mesmo uma Espanha ou América Latinadeprimidas econômica e socialmente, o que eu possofazer para ajudar a salvar a circunstância, não apenas osmeus interesses pessoais, mas do meu povo, estado, país,geração, como indivíduo eu-circunstância, um eu-com-os-outros que sou também imediatamente ligado ao tododa sociedade, do planeta e do que desconhecemos? ParaOrtega (tido como ateu pelo franquismo), a explicaçãomaterialista não aberta também não consegue ir alémdo dogmatismo, um dogmatismo de mapas metafísicos

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heterônomos (vindos de fora, impostos aos indivíduos,seja pela Igreja, pelo Estado, pelo mercado e seus meiosde comunicação ou por agremiações que façam as vezesde pastores de homens-massa). Para Ortega, da mesmaforma que o religioso, o materialista adere aos dogmaspor abstenção da aventura de pensar.

Sociologia filosófica

Ortega foi mais um dos alunos de Georg Simmel,impactados por Nietzsche. Com ele, também soa o tim-bre do pensamento de Jean-Marie Guyau (A Arte do Pontode Vista Sociológico, por exemplo). Eles atuam em umafaixa entre a filosofia e a sociologia, o que Simmelchamava de “microsociologia” ou “sociologia filosófica”.Seus textos são plásticos, bonitos, claros, masprincipalmente estimulantes3. Todos eles, Ortega,Simmel, Guyau, são um tipo de pensadores naintersecção da sociologia, da filosofia, da pedagogia e daestética. Soma-se a comunicação e a política.

Para eles, assim como para Simmel, “entendidoem seu sentido mais amplo, o conceito de sociedadesignifica interação psíquica entre os indivíduos”. Nãonegam a sociedade, mas não desmoralizam seusintegrantes. São fluxos incessantes de influênciasmútuas de pensamentos. São embelezamentos de unspara os outros (roupas, textos, quadros, músicas,esportes), aventuras vividas individualmente, mas comum sentido social, de grandes ou minúsculas realizações.Tudo passa por uma ideia de ser humano integral, emque o estético e o ético se articulam num todo em que,por exemplo, sem a visão aguda da arte, pontual e focadaem pequenos traços, não é possível enxergar o todo. O

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que por eles não é aceitável é uma explicação ao contrário,ou seja, o indivíduo determinado totalmente peloentorno, pela circunstância, pelo social. Eu não sou acircunstância e eu, mas o contrário, porque a vidahumana individual é a realidade radical, que vive um eu-com os outros.

Para Ortega, a cultura é um esforço natatório quenos possibilita flutuar num mar de absurdo. Esforçocoletivo e individual para tentar dar conta de um mundo(uma vida) que nos foi dado mas não foi dado pronto.Aliás, a vida só está pronta para os dogmáticos, a quembastariam mapas metafísicos heterônomos, usos sociais,crenças e leis de fora com a força de instrumentosortopédicos, segundo o madrilenho. A cultura é esforço,se não atual, historicamente realizado, na invenção daescrita, no desenvolvimento da música, da literatura, dasartes, nas invenções técnicas e modos de ser e agir. E jáque nos é dada faltando algo (ou quase tudo), uma dascoisas a que somos desafiados é compreender o que a vidaé (filosofar não como profissão acadêmica, mas comoexigência de interpretação do mundo à nossa volta, comou sem os instrumentos conceituais). Outra, inescapável,é inventá-la criativamente, artisticamente. Assim, fazera si mesmo, da maneira mais nobre e ética possível, é, doponto de vista individual, cultura - resultado do esforçode ampliação de nossos próprios repertórios parainterpretação do mundo, parte incontornável de nossoeu-circunstância. O mesmo em se tratando da vida so-cial, coletiva: do ponto de vista mais geral, a cultura é oresultado do pesado esforço de muitos indivíduos e suasinterações.

Este esforço desprendido para fazer a vida éresultado de uma razão que está para além de suasuperfície físico-matemática ou instrumental, porque é

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ela a interessada em revelar aquilo que a razão mais su-perficial só quer como produto passivo. Para a tarefa defazer a cultura (que também não é dada pronta), estarazão tem que vir da vida, com tudo o que isso representade dificultoso, quando não de contraditório. A vida secontradiz todo o tempo. E o pensamento radical sobreela - a filosofia - só pode resultar em um paradoxo, pois,ao que vem de suas linhas tortas (vitais), passa ao ladotanto da opinião comum quanto dos produtos daaplicação da reta razão mais estrita e calculadora. Esteparadoxo aparece, segundo Ortega y Gasset, porque avida não é apenas o biológico (zoé), mas a biografia juntoà circunstância corpo (biós). Para este ser paradoxal, in-clusive, o supérfluo (e nele se incluem a arte e a cultura)é o necessário.

É impossível dar conta destas paradoxaiscaracterísticas do ser humano, este ser que vive o“supérfluo” como necessidade, munidos apenas docálculo racional. Ele pode revelar uma parte, mas não otodo. Para se compreender o contraditório, a camadaparadoxal dele, precisamos contar uma história,precisamos de uma “razão narrativa”. Isso por quê? ParaOrtega, a história é um enorme agregado de narrativas,e a vida pessoal não menos. Elas articulam-se numconjunto de narrativas feitas de fora (heterônomas), decrenças, de usos sociais, de produtos da comunicação demassa, para entretenimento, e de narrativas feitas pordentro (ideias, autônomas e vitais). O homem-massa e oautêntico diferenciam-se em sua relação com aautonomia e a heteronomia com que levam o “que-fazer”de si mesmo adiante.

Ocorre que, nos dias de hoje (iniciando nos anos30 do século XX), esta narrativa tem vindo cada vez maisde fora, pela mercantilização e a homogeneização da

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cultura de massa, pela superficialidade do entre-tenimento, pela invertebração das sociedades, peladesmoralização da educação, pela substituição do valorpelo preço, pela deslegitimação do passado, pelodesrespeito ao que veio antes, pela relação extrativistaem relação aos produtos da cultura (o homem-massa éum bárbaro que subiu pelo alçapão da história e que vivena cultura como em estado de natureza).

O bárbaro especialista

A técnica do século XIX mudou o mundo por forae o homem por dentro. Não que ela seja má em si mesma.O que é mau é o culto que o século XX fez do bárbaroespecialista - aquele que sabe tudo sobre algo e balbuciasobre o resto. Ao mesmo tempo em que dominatotalmente um procedimento cirúrgico, o bárbaroespecialista ignora infantilmente o mais básico de comose estrutura a sociedade. Mais do que isso, este bárbaroproduto da técnica, com a força desta mesma técnicaagora intervém em tudo. E intervém sempre vio-lentamente, pois junta-se num mesmo homem-massa aignorância do bárbaro e a soberba do especialista. E senão como especialista, como usuário do produto técnicodo especialismo.

A Europa, observava Ortega em 1929, começava asofrer do mal da homogeneização da cultura deste novobárbaro, deste homem-massa. E o grande perigo de suasações era gerar uma dissolução da “heterogeneidadeEuropa”. Ortega via dois grandes centros de propagaçãodo pensamento de massa: Nova York e Moscou. Ummassificado pela mercantilização, outro massificado peloEstado ortopédico.

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Em seu tempo, Ortega pensava que o combate àcultura do homem-massa deveria ser feito apartir de umapedagocia social, por “minorias seletas” que ajudassem,como pedagogos, a massa a sair da caverna. Era trabalhode intelectuais, artistas, acadêmicos e políticos que nãoapartassem a razão da vida. Ele não tinha a menor ideiade que a técnica sobre a qual ele meditava nos anos 30 doséculo XX, industrial e de produção em série, alcançariao nível de fragmentação atual, e que esses personagenspassassem a ser tão questionados como hoje são. Diantedesses problemas de legitimidade, é preciso perguntar:haverá saída para tal quadro? Uma resposta possíveltalvez tenha a ver com uma nova “meditação sobre atécnica” (nome de um famoso texto de Ortega sobre oassunto, em seu tempo).

O presente livro, originalmente um trabalho deSuficiência Investigadora para o Diploma de EstudosAvançados em Filosofia, pela Universidade de León(Espanha), limita-se a expor o conceito de homem-massa,mas pode ajudar a perceber as entranhas de um problemaque precisa de solução. Ortega sempre afirmou que nãoescrevia para tudo e todos (como é próprio de filosofiasmais totalizadoras) e sim para os espanhóis daqueleperíodo. Cabia às gerações futuras descobrirem qual erao seu ou os temas de seu tempo. Vale lembrar operspectivismo orteguiano. O rico perspectivismo quenão sucumbia ao relativismo estéril. Para Ortega, seuponto de vista não esgotava o todo, mas compunha umaperspectiva própria. A comunhão dos que olham para arealidade é capaz de mostrar mais. A soma de todos osolhares é a realidade.

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1. O “ZARATUSTRA MADRILENHO”E SUAS CIRCUNSTÂNCIAS

1.1. Vida e filosofia de Ortega y GassetJosé Ortega y Gasset nasceu em Madrid

(Espanha), no dia 9 de maio de 1883. A família de sua mãe,Dolores Gasset, era proprietária do jornal “El Imparcial”.Seu pai, José Ortega Munilla, era jornalista e diretor dessejornal (um dos familiares do filósofo fundou o conhecidodiário El País). Quando criança, Ortega estudou emMadrid, mas foi enviado logo cedo, pela família, paracursar o bacharelado em um colégio jesuíta de Málaga,fato ao qual o filósofo atribui uma forte reação sua a essetipo de educação e o projeto pessoal de reforma dafilosofia (tal qual um outro conhecido estudante decolégio jesuíta, René Descartes, no século XVII). Obteveseu doutorado em Filosofia em 1904, na Universidade deMadrid e, logo depois, em busca de uma formaçãointelectual mais sólida, seguiu para Marburgo, naAlemanha, onde estudou em um ambiente neokantiano5.

Em 1910, Ortega iniciou-se na docência univer-sitária, mas com a eclosão da Guerra Civil Espanhola, em1936, decidiu sair da Espanha. Viajou pela França,Holanda, Argentina, Portugal, onde proferiu diversasconferências – daí, segundo alguns comentadores, ocompromisso duplo de Ortega: com a Espanha - suacircunstância - e com o universalismo da culturaeuropéia. Esses compromissos o levaram, inclusive, aoengajamento político concreto, como em 1914, na Liga deEducación Política de España, ou como deputado, eleitopela província de León, em 1931, após a queda do ditadorMiguel Primo de Rivera.

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Ortega fundou várias revistas e jornais. Comoexemplos, pode-se citar o jornal Faro (1908), a revistaEspaña (1915-23) e a Revista de Occidente (1923-36), quesegue sendo publicada. Decorre deste ambiente ilustradoe universalista não apenas o tom de sua filosofia, masseu estilo de escrita6, em estreita relação com a literaturae o jornalismo e bastante distante da maneira de muitosoutros filósofos se expressarem. O filósofo costumavadizer que, na Espanha de seu tempo, nenhum filósofopoderia se dar ao luxo de ser apenas filósofo, assim comonenhum jornalista teria como ser só jornalista. Elesempre fez as duas coisas ao mesmo tempo, além detemperar tudo com literatura.

Durante seu exílio voluntário de 1936 a 1945, emplena Guerra Civil, Ortega viveu, num longo e famososilêncio com relação aos conturbados tempos políticosde seu país, sobre o qual muitos acharam motivos paraculpá-lo. No entanto, pelo menos para o sociólogobrasileiro Hélio Jaguaribe – um dos mais conhecidoscomentadores do autor no Brasil – no prefácio à obraHistória como Sistema, de Ortega, a maioria do tempo ofilósofo espanhol foi uma espécie de educador do seupovo, a partir de uma profunda convicção de que o queimporta, antes de tudo, é a lucidez e a compreensão domundo para operar nele. Essa alternância entre oengajamento e o distanciamento crítico configurará asprincipais fases da existência de Ortega7.

Jaguaribe destaca que o filósofo foi um dialogadorcom sua circunstância, que não deixou-se extraviar “peloabstrato formal ou pela ociosidade intemporal.”8

Decorreria desse fato que sua obra, mesmo os trabalhosmais sistemáticos, tivesse sempre o caráter de umareflexão urgente, na qual o autor revela algo como sefossem anotações para um futuro desenvolvimento de

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suas “grandes intuições e sua visão de mundo”9. Comopolítico, Ortega chegou a ser deputado. Porém, aradicalização da vida espanhola levou o filósofo às pioresapreensões. Diz Jaguaribe:

“Homem do logos, para quem a vida éliberdade e entendimento, consideraque, a partir de certo grau deintolerância, o silêncio é a única res-posta intelectual.” 10

Ortega voltou à Espanha, ainda no regime doditador Franco, em 1945, e morreu em Madrid no dia 18de outubro de 1955. Muitos anos antes, já haviaconsolidado sua reputação como o mais importantefilósofo espanhol, desde Suarez (1548-1617). Publicou,entre outros, Meditaciones del Quijote (1914), El espectador(oito volumes, 1916), España invertebrada (1921), El tema denuestro tiempo (1923), La deshumanización del arte (1925),¿Qué es filosofía? (1929), La rebelión de las masas (1930), Goethedesde dentro (1932), En torno a Galileo (1934), Historia comosistema (1936), Ideas y creencias (1940), Sobre la razón histórica(1940), Papeles sobre Velázquez y Goya (1943), Meditación deEuropa (1949) e El hombre y la gente (1949-1950). Suas obrascompletas perfazem 10 volumes de cerca de 1000 páginascada.

Ainda segundo Jaguaribe, há uma certa falta deentendimento da obra orteguiana, que levou algunscríticos a subestimar a importância de sua contribuição,sem atentar para o fato de que, “ademais de haver criadouma escola de pensamento, em que se situam osmelhores filósofos espanhóis contemporâneos, deixouOrtega uma influência perduradora, e de sentidouniversal, que se faz sentir em múltiplos ramos dasdisciplinas humanísticas.” 11 Jaguaribe também explica o

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desconhecimento da obra desse autor, da seguinte forma:“o impacto intelectual das idéias é condicionado pelostatus cultural de que gozam as pessoas e os meios de ondeemergem tais idéias.” 12 Ortega não se transferiu paraqualquer centro da cultura européia daquela época:

“O desprestígio da Espanha, nas áreasda filosofia e da ciência, repercutiunegativamente sobre a imagem deOrtega. Com ele, se passa o contrário doque ocorre com pensadores de paísesdotados de boa imagem cultural comoa França, Inglaterra ou Alemanha, emque o crédito das respectivas culturasnacionais lhes aumenta a aceitação e arespeitabilidade. Ortega, ao revés, ele éque teve de tomar a seu cargo osoerguimento da imagem cultural deseu país. Pensador mais importante, ameu ver, que um Paul Ricoeur, umGabriel Marcel ou um J. P. Sartre, paracitar figuras de naipe e estaturapróximas.” 13

Outro comentador brasileiro, Pedro Calmón,salienta, no prefácio da edição brasileira de A Rebelião dasMassas, publicada em 1962, que Ortega foi um herdeiroda angústia interpretativa de Miguel de Unamuno (1864-1931), impregnado da essência metafísica do pensamentonovo da Espanha e, por isso mesmo, “erigiu-se em porta-voz de uma inteligência quixotescamente armada paraestudar o universo, senão, como no mito grego, paradecifrá-lo, enfrentando o seu enigma com uma intre-pidez desdenhosa – de cavaleiro andante da dignidadehumanista”.14 Calmon também considerava este filósofoum “professor de inconformidade”, “escritor de umaescola da insubmissão”, “dos poucos que mergulharam

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tão fundamente no segredo e na psicologia dassociedades”, e, por tais características, um filósofosolitário e angustiado.

“Ortega y Gasset sobe ao monte de suasolidão filosófica, e forrado desuperioridade contemplativa (digamosnietzschiana, hispânico Zaratustra,limpo de ironia ou cinismo, masvibrante de profecia) dardeja em tornoo olhar assombrado.” 15

Esse mesmo “olhar assombrado” Ortega apontoupara uma infinidade de temas. No artigo “Sentido yFunción de la Distincion entre minoria y masa en lafilosofia social de Ortega y Gasset” (1976), IgnacioSánchez Cámara traça, em poucas linhas, o essencial daproposta orteguiana. Em primeiro lugar, diz Cámara, ésabido que, para Ortega, o grande problema que afilosofia deve resolver é o da realidade radical. As outrasrealidades, secundárias, são objetos da ciência. Para afilosofia, se trata de, à maneira de Descartes, buscar umarealidade evidente e imediata, na qual as demais (asrealidades secundárias) se apóiem e tenham como raiz.No entanto, em Ortega, essa realidade primeira, arealidade radical, não é o cogito, mas a vida humana,individual (como abordaremos mais adiante).

Se pretende-se radical, o que a filosofia necessitafazer, primeiramente, é analisar esse dado, o pontoarquimédico em que poderá se apoiar para dar conta dasdemais realidades. O que Ortega encontra como cate-goria fundamental dessa vida individual é a liberdade.Em primeiro lugar, a vida é liberdade, ou melhor:condenação à liberdade. O homem é forçado a ser livre,a escolher a cada instante o que vai ser, de onde se segue

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uma concepção de um homem que não é, mas “vai-sendo”.

“A vida não nos vem dada feita, senãoque temos que fazê-la; é drama,acontecer, que-fazer. Isto, sim, éliberdade na necessidade. Consiste emter que escolher necessariamente e emuma circunstância forçosa, inexorável.E este atributo vital da liberdade é aorigem da dimensão moral da vidahumana. O homem é, e nisso consistesua mesma peculiaridade, um cons-tante afã de aperfeiçoamento. Por issoé um ser de tal condição que pode viverbem ou mal, pior ou melhor, tratandode realizar um projeto de vida egrégioe não vulgar, autenticamente, rea-lizando sua vocação ou inautenti-camente, traindo seu projeto vital.”16

Conforme o comentador, essa é, ainda, na opiniãode Ortega, a origem da inevitável desigualdade espiritual,intelectual, vital e moral entre os homens e que divide ahumanidade em dois grupos: os de vida nobre (autên-ticos) e os de vida vulgar (massa). O conceito de homem-massa, nesta perspectiva, não pode ser compreendidoplenamente fora da metafísica de Ortega.

1.2 Um sistema abertoPara José Ferrater Mora, a obra de Ortega, devido

à sua variedade e tamanho, causa estranheza a algunsleitores. Eles poderiam chegar à conclusão de que tantose tão variados temas só poderiam ter sido tratados comfrivolidade e superficialidade. A conclusão, na opiniãode Ferrater Mora, é precipitada, pois quanto maior

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atenção prestamos aos fios de que é feita a tapeçariaorteguiana tanto mais fácil fica enxergar a harmonia doquadro desenhado. Por isso, o comentador se refere àfilosofia de Ortega como um “sistema aberto”.

Contra os que argumentam que esta forma deexposição e tratamento dos temas não seja propriamentefilosófica, salienta que não obstante a diversidade dosassuntos tratados, apesar de sua complexidade e dogrande número de alusões, a obra de Ortega é funda-mentalmente de índole filosófica, de modo que todos osseus elementos se acham organizados em torno de umnúcleo de pressupostos legitimamente pertencentes àordem da filosofia. Mas o autor adverte que o termofilosofia é, em nosso tempo, pelo menos tão ambíguoquanto o termo “sistema”.

“Ao descrever a obra de um autor como‘obra filosófica’ temos, pois, quecomeçar com ser cautelosos e esclarecerna medida do possível o significado deum vocábulo tão desesperadamenteambíguo como é o vocábulo ‘filosofia’.A filosofia de Ortega é de classificaçãoespecialmente difícil, porque nossofilósofo foi um dos pouquíssimos ahistória moderna que teve claraconsciência do caráter problemático daatividade filosófica.”17

Por caráter problemático da atividade filosófica,pode-se pensar mais a atitude filosófica da modernidade,sistemática, do que a mais original, menos eleata. Poressas razões, Ferrater Mora afirma que um dos modoscomo a filosofia de Ortega não pode ser apresentada semgraves dificuldades para entendê-la corretamente é a queconsiste em expô-la na “pedante forma acadêmica usual”.

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E vai além, ao afirmar que em se tratando de Orteganenhum dos métodos conhecidos parece ser inteira-mente satisfatório.

“Se, por exemplo, prestamos demasiadaatenção à unidade do pensamento deOrtega, corremos o risco de perder osabor de sua variedade. Se, pelocontrário, insistimos excessivamentena diversidade dos temas prontoperdemos de vista a fonte da qual todoseles emanam.”18

1.3 Homem-massa,um conceito recorrente na obra de OrtegaO homem-massa ocupou lugar central na filosofia

de Ortega, principalmente por tratar-se de uma caracte-rologia que permitiria um conhecimento rigoroso darealidade humana. Por isso, o filósofo, que quase nuncalê a si mesmo, segundo Roberto Eduardo Aras em Ortegalector de Ortega. Compresencia de La Rebelión de las Masas enJosé Ortega y Gasset (2000), volta ao longo de sua obra aotema da articulação entre massa e minoria. A primeiravez que o tema aparece é em um prospecto da Liga deEducación Política Española, de 1914. O parágrafo citadodiz que é necessário introduzir a atuação política noshábitos das massas espanholas, o que só seria possívelcom a existência de uma “minoria entusiasta” que fizesseessa educação das masas.

Em 1928 (dois antes da publicação de A Rebeliãodas Massas) o tema já estava sendo debatido na SociedadeAmigos del Arte, na Universidade de Buenos Aires,Argentina. Em 1930, é publicado o famoso livro e, em 1933,as primeiras repercussões desse texto aparecem escritaspor comentadores sul-americanos. Mais precisamente,

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conforme Aras, três artigos chilenos e um argentino, deFrancisco Romero que publica, na revista Sur (de VictoriaOcampo, amiga de Jorge Luis Borges), Al Margen de LaRebelión de las Masas, o que Romero considerou como umdiagnóstico da vida européia daquele tempo. A primeirareferência de Ortega à Rebelião das Massas surge em 1930,no texto Misión de la Universidad - um esboço de umprojeto de transformação da universidade para devolveruma cultura integral ao europeu unidimensional, queacabara se tornando um especialista, o que significa “aversão massificada do cientista.”19 No texto, Ortegadenuncia que a falta de um plano vital para dar sentido àvida de cada um desses homens é a enfermidade centralda rebelião das massas, que subordina cultura à técnica,em todos os níveis, do mais massificado dos homens aoespecialista.

“Agora, bem, esta interna constituiçãodo europeu médio, incapaz decontribuir de maneira criativa com oprogresso da civilização, e apenas hábilpara ser um usuário de seus benefícios,provoca uma conseqüência de maiorenvergadura: se confunde cultura coma técnica e se julga aquela por esta. Daítambém que a Europa comece a ver-sea si mesma como inferior à América doNorte. Esta sensação de regresso e deausência de um mando históricoefetivo difunde a idéia de ‘decadência’da Europa.”20

Essa desorientação é imposta ao mundo, pelo“fato das aglomerações”, descrito em A Rebelião dasMassas - que abordaremos mais adiante - pondo o edifícioda civilização ocidental em perigo.21 Com a intenção de

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mostrar o homem-massa delimitado, por um lado, pelafilosofia social e, por outro, por sua metafísica (muitasvezes, este conceito é apresentado apenas dentro dafilosofia social sem levar em conta os aspectos mais geraisda filosofia de Ortega), veremos, nos capítulos seguintes,alguns dos principais pontos do pensamento orteguiano,assim como o que o filósofo pensa desta atividadeintelectual que se destaca do quadro das opiniões aceitase se volta contra a doxa, condição a partir da qual ohomem passa a pensar de maneira mais autônoma eautêntica. O tipo de relação com essa atividade intelectuale vital define o homem-autêntico e o homem-massa.

O que Ortega pensa por metafísica, está expressoem Unas Leciones de Metafísica e outros textos sobre o temaem que o autor apresenta a idéia de que todo o homem(e não apenas os filósofos) faz metafísica (filosofia), deforma autônoma (homem-autêntico) ou heterônoma(homem-massa). A segunda parte deste trabalho traz aperspectiva sociológica do homem-massa e sua rebelião.Os conceitos de massa e minoria estão bastante clarosem O Homem e a Gente e A Rebelião das Massas, assim comoos de uso e vigência, fundamentais na filosofia socialorteguiana. O homem-massa, paciente e agente da suacondição de massa, é uma espécie de traidor metafísico,de acordo com a perspectiva de Ortega de uma metafísicacomo a tentativa de compreensão do que se é. A rebeliãodas massas é a dimensão social dessa “traição” daautenticidade do ser humano. No capítulo seguinte,apresentamos a origem da filosofia como insulto edisfarce e no próximo o que são filosofia e metafísica,para Ortega. O objetivo é entrar nos conceitos maispropriamente sociológicos só depois da necessáriacontextutalização no âmbito da filosofia do pensadorespanhol.

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2. O INSULTO E O DISFARCENA ORIGEM DA FILOSOFIA

2.1. Todo o filosofar tem um subsolo,um solo e um adversárioEm Origem e Epílogo da Filosofia (1963), Ortega

afirma que o pensamento de um filósofo constitui-se detrês elementos fundamentais: um “subsolo”, um “solo” eum “adversário”22. Por subsolo, entendia as camadasprofundas originadas no pensamento que existe antesdo pensador - num antigo e profundo pensar coletivodentro do qual brota o que está produzindo intelec-tualmente - o subsolso costuma ser ignorado por aqueleque pensa. O solo é um pouco mais recente e se constituidas admissões fundamentais sobre as quais o pensadorse dá conta, mas que encontrou estabelecidas em umtempo mais próximo. É no solo que o pensador se instalae ali crescerão suas idéias. Por último, o pensamento seconstitui na oposição a um adversário, afinal, “todo opensar é um pensar contra, manifeste-se ou não nodizer”23. Ortega explica esta importante posição daseguinte maneira:

“Sempre nosso pensar criador seplasma em oposição a outro pensar quehá à vista e que nos parece errôneo,indevido, que reclama ser superado. Éisto o que chamo de adversário,acantilado hostil que vemos elevar-seatualmente sobre nosso solo, que,portanto, surge também deste e emcontraste com o qual descobrimos afigura de nossa doutrina.”24

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Ortega analisa a atitude de Parmênides, Herá-clito, Protágoras e Anaximandro, filósofos primordiaisque, para ele, encarnam o embate com o solo, o subsolo eo adversário da filosofia nascente. O pensador espanholconsidera importante atentar para o solo em que seencontravam os pais da filosofia, quais eram astendências intelectuais de seu tempo e o modo geral defuncionamento do mundo ao redor deles, porque essesirão refletir em toda a filosofia, ou pelo menos no queOrtega compreende pela aventura de filosofar.

E como eram este subsolo, solo e adversário?Tratava-se de um mundo mergulhado nos mitos e naexplicação cosmológica, na tradição e na opinião comum;de um mundo de segurança, sólido, real, poucoproblematizado. É o mundo que os filósofos começarãopor desconstruir, com seus “paradoxos”, suas opiniõescontrárias às opiniões (doxa) correntes.

Chama a atenção de Ortega o fato de que, na obrade Parmênides, não aparece o nome de nenhum filósofoanterior a ele. E se esses amigos ou inimigos não sãocitados, isso, conforme o pensador espanhol, não ocorrepor acaso. Parmênides fala de maneira diferente de todoseles, pois funda um modo de transmitir o que pensa – nocaso ele próprio sendo um receptor da verdade, da bocada própria Deusa da Verdade, como expressa em seupoema, cujos fragmentos chegaram até os dias de hoje.O estilo de Parmênides é um derramamento de idéiasna forma desse poema solene, o gênero literário maiscaracterístico da época. Trata-se de um poema teológico-cosmogônico, gênero que, além de místico, impõe, comoobserva Ortega, um dizer distante e mítico.

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2.2. O Caminho da Verdadee o Caminho das OpiniõesEm seu “Dicionário de Filosofia”, José Ferrater

Mora defende que Parmênides representa um ponto departida para uma nova maneira de pensar, que, emmuitos aspectos poderia ser chamado de “exemplar”,representando “uma das poucas posições metafísicasradicais que houve na história do pensamento filosóficodo Ocidente”25. Ao referir-se às três partes do poema doautor grego, Mora demonstra concordar com a idéia deque Parmênides escreve contra um adversário (oumuitos, mesmo ocultos). A primeira parte do poema tratada viagem do filósofo até chegar à presença da Deusa daVerdade. A segunda, do momento em que a Deusa lhemostra o Caminho da Verdade; e a terceira, na qualdescreve o Caminho das Opiniões ou das Aparências.

O Caminho da Verdade é aquele seguido pelosimortais (além dos filósofos, que recebem a revelaçãodireto dos imortais, como Parmênides). O Caminho dasOpiniões ou da Aparência é seguido pelos simplesmortais, que vivem no mundo da ilusão. Como o mundodas ilusões e das aparências é o mesmo dos fenômenosda natureza, é normal, então, que nele também seencontrem as explicações religiosas de sua época. Porisso, ressalta Mora, essas explicações são apresentadaspor Parmênides não como expressão da verdade, mascomo resultado da opinião dos homens, da qual elespróprios devem desprender-se, afastar-se se queremchegar à verdade.

Filosofia sempre foi, desde seu começo, esforçopara fugir do caminho da mentira para o da verdade,pressupondo que um grupo de seres humanos (o vulgo,a massa) segue o caminho da mentira e contenta-se comas aparências, acredita nelas, aceita-as sem proble-

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matizá-las, vivendo em segurança. Outro grupo (o dosfilósofos) problematiza profundamente o mundo sólido,agindo de maneira a combater a opinião cegamenteseguida pela massa e instaurando o homem numa“inconveniente” insegurança.

Mas é importante, conforme Ortega, observartambém como o poema traz uma tenuidade eespectralidade da cenografia de maneira “anormal”, secomparado a como se escrevia em sua época. O filósofoespanhol diz que Parmênides adota, oblíqua, fria ereflexivamente um gênero arcaizante para sepronunciar, mas de maneira um tanto irônica. Trata-sede um fingimento, afinal, conforme Ortega, Parmênidesusa o poema mitológico-místico (a Deusa da Verdadedizendo-lhe a verdade) não como os escritores em geralfaziam, mas sem acreditar já nele, como mero ins-trumento de expressão, cheio de imagens e mitos. Ouseja, filosofia nascente que, por força da circunstância,se expressa de uma forma disfarçada:

“Tudo isto é apresto solene queParmênides extrai das velhas arcas e lheserve de disfarce, precisamente porqueé, para ele, disfarce. E a única coisa queestamos obrigados é a explicar-nos porque, para dizer o seu, este homemnecessita de um disfarce, isto é,acredita oportuno fingir um dizerreligioso, mitológico e fazer que suasidéias nos cheguem retumbando comotrovões do alto.”26

Não é por acaso, pensa Ortega, que Parmênides(e também Heráclito, como veremos mais adiante)tenham escrito dessa maneira. Foi - mais do que qualqueroutro motivo - uma necessidade estilística de um tipo de

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pensamento. Parmênides, por exemplo, bastanteseriamente, não quer falar em prosa didática, evita dizersimplesmente de si mesmo, como era costumeiro em suaépoca, e transpõe o que quer falar a personagens e figurasreligiosas, extraindo, assim, de “disfarces de velhasarcas”, o que enuncia. Ortega afirma que esse estilodenuncia uma origem especial da filosofia: a do disfarcee do insulto. Basicamente, o que fazem Parmênides eHeráclito, frente à opinião comum, é encontrar meiosde afastar-se do mundo, de refletir solitariamente sobreele e dizer o que pensam, mas não de uma formacorriqueira, costumeira, prosaica. A poesia foi umanecessidade expressiva de quem precisava falar o quecontrariava a opinião corrente.

2.3 A metáfora como forma de exposiçãoda filosofia nascenteA metáfora, segundo Ortega, está, pois, ligada às

formas de exposição da filosofia nascente. O que afirmaé que a filosofia de Parmênides e Heráclito (e tambémde outros dos chamados filósofos físicos) é expressa comeste disfarce em que o autor faz, escondido, com que suasidéias cheguem aos seus leitores dentro de umfingimento - disfarce que, como veremos, dá, inclusivenome à filosofia. No caso de Parmênides, essa filosofiavem retumbando como trovões do alto, dita por outrapessoa (nada menos que a própria Deusa da Verdade),emitida pateticamente, em tom de revelação. Oimportante, para Ortega, é compreender que este estilonão é puro capricho, mas tem o motivo especial referidoanteriormente, que faz com que ele deforme a linguagempara expressar um insulto ao adversário. O adversário éo próprio povo em seu Caminho da Opinião e dasAparências:

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“Estilo é a deformação da línguacomum por motivos especiais que temo que fala. E o motivo mais freqüentede estilização é a emoção. Estamanipula a língua tíbia e insípidahabitual até obter que se esquente eafile e reverbere e estremeça.” 27

Além do disfarce, para Ortega, a filosofia tambémtem origem no impropério, no insulto. Um impropérioque, no caso de Parmênides, está menos expresso, porémlonge de estar ausente, em sua divisão entre os caminhosda verdade e da mentira. É um outro filósofo, Heráclito,que mais claramente se retira da praça pública ao solitáriotemplo de Artemis, numa arrogância indefensável, paracultivar a solidão contemplativa. Uma solidão que tem quever com o estilo do conhecido texto desse obscuro escritor,radicalmente hostil à religião, aos mistérios e aos cultos.Heráclito desfere diretamente ataques à massa e aos seuscultos aos deuses e às estátuas, num estilo(aprofundamento em si) feroz, segundo Ortega:

“Heráclito não pode escrever um livrode texto contínuo. Emitirá seupensamento em forma de faíscas, emsentenças breves que, por isso mesmo,obrigadas a dizer tudo junto cada vez,são ‘comprimidos’ de elocução e umaespécie de dinamite doutrinal.O estilo de Heráclito consiste, pois, emfalar a partir de sua individualíssimapessoa em forma de sentençasfulminantes como podem surgir emqualquer conversação pontiaguda,faiscante e elétrica.”28

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2. 4. Heráclito, o solitário inimigo da multidãoHeráclito de Éfeso é apresentado por alguns

autores como um contraponto a Parmênides. De fato, eleé visto como o filósofo da mudança; enquantoParmênides, o da imobilidade. Tendo em vista aafirmação orteguiana de que todo o pensamento tem umadversário como um de seus elementos, é interessanteque a filosofia nasça também neste jogo duplo. Um delesé o jogado entre os dois filósofos, de um mesmo lado,contra a opinião comum (essa posição se expressa emParmênides na dualidade do Caminho da Verdade e noCaminho da Mentira e em Heráclito, na opção de fazeruma filosofia obscura, para poucos, voltada para oentendimento, mais do que para qualquer sabedoria,acessível por muitos); o outro é o fato de seremadversários também entre si - em suas posições comrelação à mobilidade e à imobilidade do Ser. Oposiçãoque, se não foi real (expressa textualmente por nenhumdos dois nos fragmentos que se conservaram), seguiu,pelo menos, norteando disputas através da História,entre partidários da idéia de que o Ser é uma esferaimóvel - e de que não há espaço para o não-ser - e aposição de que o diverso, o fluido e o jogo dos opostosintegram uma harmonia do antagônico a que Heráclitochamou de Logos.

Sobre o Logos, Heráclito se referiu assim nofragmento número 10: “As coisas em conjunto são umtodo e não o são: são algo junto e separado; são o queestá no tom e fora do tom; de todas as coisas emerge umaunidade, e da unidade todas as coisas.”29 Também comose pode verificar nesses fragmentos, o estilo heraclitanoé de uma exposição contraditória, confusa, o que lherendeu o apelido de “o obscuro”. Essa obscuridade é

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reflexo de um estilo de pensar que se fazia o de umoráculo, distante da fala comum, como afirma Mora:

“Amigo da solidão e inimigo da mul-tidão – do ‘rebanho’ dos cidadãos queexpulsaram Hermodoro, ‘o melhor detodos”, - Heráclito pareceu quererexpressar seu pensamento somente pa-ra poucos.” 30

Esses poucos são os que estavam mais interes-sados no entendimento, do que em saber muito. São osprimeiros aqueles que “conhecem com verdadeiro juízode que modo as coisas se encaminham através de tudo”(fragmento 41)31. No mesmo sentido, afirma, nofragmento 126: “Os olhos e ouvidos são más testemunhaspara os homens quando não têm almas para entendersua linguagem”.32 Segundo Ortega, não só Heráclito eParmênides, mas em geral os primeiros pensadores têmessa característica especial e fundante da filosofia decontrapor-se à solidez da opinião estabelecida, trazendopara o palco do mundo a dúvida, essa “flutuação do juízo”,o que o filósofo espanhol chama de o bracejardesesperado entre ondas, um estado de espírito confusoa que os demais não querem se afogar, já que vivem nasolidez de seus ídolos.

Protágoras, de Abdera (500 – 428 a.C), é um dessesque vão se colocar frontalmente contra a opinião damassa, no caso, sobre a existência de deuses. E é namesma via que Anaximandro, de Mileto (610 a.C – 545a.C), vai desde logo ser considerado ateu, ao postular nãoum deus ou deuses aceitos mas apenas aquele queaparece no extremo de um raciocínio, como um princípioteorético. Tudo isso dá à filosofia nascente seu peculiarar de combate, principalmente contra a opinião

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tradicional (da massa), que esses primeiros pensadorestentarão desqualificar. A filosofia nasce contra e,conforme Ortega, “parece, pois, essencial à verdade,destacar-se sobre um fundo de erros reconhecidos comotais.”33

A maneira como ocorre este destaque do fundode erros não se diferencia do insulto, fato que distingüeradicalmente os amáveis sábios antigos dos soturnosfilósofos nascentes, conforme Ortega. Antes dospensadores das colônias gregas, o pensamento pouco sevoltou contra a massa, como passou a ocorrer com osprimeiros filósofos da Grécia antiga:

“Importa notar a diferença funda-mental de estilo entre os fisiólogosjônicos e os pensadores que fundarama filosofia – Heráclito, Parmênides,Xenófanes. Aqueles expõem tran-qüilamente suas opiniões, ao passo queestes se voltam iracundos contra ovulgo e enchem de insultos nominativaou genericamente seus precedentes.”34

2.5 O insulto como tonalidade própria da filosofiaPor que a filosofia começa insultando? A pergunta

é de Ortega, que, em seguida responde: ela não tem outroremédio e, inclusive, se forma, se diferencia, na oposiçãoem relação às opiniões dominantes. Durante o século Va. C., forma-se um tipo de homem, o “pensador”, numavaga denominação, então não conhecida de todo, e compoucos indivíduos sem muita expressão social - sãomínimos os homens que não pensam como os outros,principalmente no que se refere aos cultos religiosos e àtradição. É essa figura (o pensador solitário) que ageração de Heráclito e Parmênides vai encontrar e dar

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continuidade. Homens taciturnos, ocupados com ateoria, sem ter muito com quem trocar suas idéias, vivemnum momento especial em que muito lentamente seinicia uma “mudança de estilo” de pensamento, con-forme Ortega.

Heráclito, apesar de sua “hipertrófica” indivi-dualidade, fala como magistrado do pensamento e, assimcomo Parmênides, investe contra alguns minoritáriosgrupos de comentadores de Homero (séc. VIII a.C) eHesíodo (séc. VIII a.C), de teologia órfica, presos àsopiniões tradicionais. Para Heráclito e Parmênides, essesgrupos são o vulgo e, “contra eles, disparam uma boaparte de seus impropérios.”35

“De certo modo, o insulto ao vulgo é atonalidade própria do ‘pensador’ pois amissão deste, seu destino profissional,é a de possuir idéias ‘próprias’ opostasà doxa ou opinião pública. Paracoincidir com esta não era mister estanova magistratura. Daí a consciênciaclaríssima que Heráclito e Parmênidestinham de que ao pensar diante econtra a doxa, sua opinião eraconstitutivamente paradoxa.” 36

Ainda no início da filosofia, das colônias, paraAtenas, começava a chegar um sem-número deparadoxos, novos produtos da mente. A nova ciênciajônica, pitagórica e eleática dá espetáculos que explicameclipses, Heródoto (nasc. 480 a. C) descreve outras terrase outros povos em que acontecem coisas surpreendentese, numa grande blasfêmia, diz-se que os astros não sãodeuses, mas bolas de metal. Esse cultivo do paradoxonunca foi bem aceito pelo povo, desde o início até os dias

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de hoje. Como lembra Ortega, não é por acaso que, logoque o primeiro filósofo jônico (Anaxágoras – 500 - 428 a.C) chega a Atenas o povo ateniense começa a reagir commal-estar. A tal ponto que os gregos encontram umapalavra (um insulto) para qualificar seu comportamento:era o peritós.

“Aristóteles nos refere expressamenteque o vulgo censurava homens comoAnaxágoras e Tales, porque seocupavam de peritá. O vocábulo não éfácil de traduzir em nossas línguaspelos muitos reflexos semânticos deque é portador. Por um lado significaação ou obra extraordinária e tem umvalor laudatório, mas por outrosignifica um comportamento exces-sivo, desmedido, indevido e especial-mente em sentido religioso, portantosacrílego (...) A irritação do demos nãopodia tardar. E, com efeito, no últimoterço do século IV, os três filósofos queapareceram destacados em Atenas –Anaxágoras, Protágoras e Sócrates – ouforam expulsos ou, como este último,‘liquidados’.” 37

2.6 O nascimento da palavra “filosofia”como disfarce para um pensamento paradoxalA posição do pensador diante da opinião pública

sempre foi “perigosa”, conforme Platão (427 – 347 a.C),também citado por Ortega. Mas a tal ponto ela éimportante que desta situação difícil teria surgido,inclusive, o nome da filosofia. Segundo Ortega, nunca,em toda essa primeira etapa do pensamento, se chamoude sófoi a esses pensadores, embora a palavra fosse umtanto antiga, querendo dizer “o entendido”, prin-

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cipalmente em sabores. Esta palavra era mais ligada aossete sábios da Antigüidade. A palavra que surgiu eramenos prestigiosa, a modesta sofistés (que designa nãoaquele que tem o saber, mas que o denomina através desua ocupação em poesia, música ou arte). Ortega afirmaque, por essa época, os pensadores começam a se habituarcom a hostilidade do povo e “já não atuam mais com aconfiada despreocupação que havia caracterizado seuspredecessores durante o século VI e a primeira metadedo século V.” 38

“O estilo do pensamento começa entãoa velar-se, a perder espontaneidade,cobrindo-se mais ou menos de cautelapara não irritar a fé religiosa damultidão. Esta havia reagido comagastamento diante dos pensadores,não só porque eram ateus, mas porqueno modo de manifestar-se lhe pareciampetulantes e insolentes.” 39

É então que a palavra “filosofar”, já utilizada hápelo menos um século, mas sem o mesmo sentido, chegaa Atenas. Ainda no início do século V, segundo Ortega, apalavra aparece empregada por Tucídides (460-395 a. C),mas indicando um modo informal de se ocupar com asartes, a poesia e as idéias. Seria em 440 a. C. que a palavra“filosofia” teria aparecido mais publicamente entre osamigos cultos de Péricles (495-429 a. C).

Para Ortega, o esforço de dar à palavra filosofiaum sentido rigoroso é de Platão. E a razão é bastanteprática, além de irônica: trata-se de um disfarce, de um“nome suave, de perfil difuso, sem nada cortante e queproclama o desejo de não parecer petulante”40. Diante dossaberes pomposamente ostentados pelos sábios e, depois,

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pelos pensadores, Sócrates (470-399 a.C), segundo Platão,vai buscar uma forma sutil de insultar tanto os sofósquanto os sofistas, mas principalmente, no sentido deesconder o saber em uma máscara, em um fingimentoparadoxal, a docta ignorantia, o “sei que nada sei”, irônico,dúbio e metafórico.

“Este desenvolvimento nos faz entrevercom bastante probabilidade que onome da ilustre disciplina lhe foi dadoprincipalmente por razões defensivas ecom uma precaução que o pensadornecessitava tomar diante da irrita-bilidade de seus concidadãos presosainda à atitude religiosa.”41

Neste texto de Ortega está bastante presente apreocupação com a tensão entre o filósofo e a opiniãocorrente, disjunção fundamental entre o pensador e amassa que atravessará os séculos, desde Heráclito atéOrtega, encorpando a histórica distinção entre doxa eepisteme, e, no caso de Ortega, a tensão entre massa eminorias (considerando-se minorias no sentido dessapequeníssima parte da sociedade, aristocrática, em seueterno impropério dardejado contra a massa). É essaidéia de filosofia e do papel do pensador que deve se terem mente para compreender o que o filósofo espanholchamava de “homem-massa”, um homem horizontal,grupal, coletivo, prosaico, vulgar, sem estilo, semaprofundamento, sem ensimesmamento, sem esforço,seguidor da opinião pública, o que não quer dizer “massa”no sentido sociológico.

Segundo Ortega, esse caráter paradoxal dafilosofia, de tensão com a doxa, perdurou ao longo de todaa evolução filosófica. A discussão, o debate, o insulto, o

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impropério contra idéias estabelecidas, a luta contra ovulgo seriam a ocupação primeira do pensador, da qualOrtega é certamente um continuador, com suasdepreciações, escritas para o vulgo (o homem-massa), pormeio dos jornais de maior circulação da Espanha de seutempo. No entanto, essas depreciações perderam lugarem uma boa parte da filosofia do século XX, maisintegrada que apocalíptica, mais condescendente quecrítica com os novos tempos. Daí que esses insultos (tantodos pensadores originais quanto os orteguianos) aindahoje pareçam se mostrar necessários para se pensar asociedade de massas.

Seguindo esse nascimento da filosofia, Ortega vaifazer, contra a opinião corrente, um típico discursofilosófico no seu sentido original: através da metáfora,do disfarce e do tratamento até poético da linguagem,do insulto crítico, radical e do paradoxo, da filosofia querevira a opinião e escreve sempre contra algo. É nestesentido que o filósofo lembra em seu livro a frase de Amós(750 a.C), primeiro pensador hebreu, contemporâneo deTales. Conforme Ortega, ao Amós ser constituído de Deusem sua profissão, este lhe impôs: “profetiza contra o meupovo.” 42

“Todo profeta é profeta contra, e omesmo todo ‘pensador’. Na passagemde suas obras, onde Platão fala maisconcretamente daqueles primeiros‘pensadores’, sublinha da maneira maisexpressa a forma paradoxal e, por isso,abstrusa de seu pensamento quandodiz que ‘passando-nos por alto, nosdesdenham demasiado aos homensvulgares e sem preocupar-se de sepodemos seguir-lhes ou não, cada umdeles conclui sem mais seu dizer.” 43

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É fácil perceber como Ortega continuou essatradição, a do “bom snobismo de todo bom aristocrata”44,da qual pertenceram, conforme ele, praticamente todosos pensadores iniciais. É nessa história da filosofia quesurge como insulto e como máscara que Ortega irá seinscrever não só como um de seus fecundos cronistas,mas como investigador das bases de uma “filosofiaradical”. Marcada pelo insulto e pela metáfora, tal comoesses filósofos dos primórdios, essa filosofia vai manter-se fiel à concepção de um pensamento frontalmenteoposto à opinião comum, à doxa, sendo, também ela,paradoxal. O conceito de “homem-massa” é umsignificativo exemplo dessa posição filosófica.

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3. O TEMA DA RAZÃO VITAL

3.1. O que é a filosofia?O que é a metafísica?No capítulo anterior, mostramos como, para

Ortega, o insulto e o disfarce estão na origem da filosofiae que esta resulta em uma ofensa àqueles que nãofilosofam. É um duro embate entre dois marcadosadversários: a massa, mergulhada na doxa, e a minoriade pensadores, que se afastam da opinião comum parafilosofar. A própria palavra “filosofia” teria sido umdisfarce a possibilitar que Platão e companhia seguissempensando com o mínimo de atrito com relação àquelesque mataram Sócrates.

Neste capítulo, abordaremos o que é filosofar paraOrtega, partindo de O que é Filosofia?, livro que nasceu deum curso realizado em Madri, em 1929, mostrando,assim, como surgem as diferenças entre o que Ortegapensa por esta atividade, em relação aos seus doisadversários: o idealismo e o realismo. Ortega se propõea ultrapassar esses dois paradigmas e, para tal, começaráuma revisão radical dos principais conceitos da Filosofia.Da revisão dos conceitos de ser, razão e sujeito, surgirãoos principais conceitos da filosofia raciovitalistaorteguiana.

O que é Filosofia? retrata um curso curioso, que oautor ministrou abertamente a um público formado porintelectuais e pessoas de todas as atividades,constituindo-se, segundo o comentador brasileiro LuizWashington Vita, o acontecimento de incorporação defi-nitiva da Espanha na cultura contemporânea. O públicoheterogêneo não se limitou aos ouvintes do curso, mas

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incluiu o imenso público leitor do jornal que resenhouas 11 lições e que se esgotavam no dia seguinte. Diz Vita:

“Ortega insere a filosofia espanhola nocontexto da filosofia Ocidental. Destavez, porém, não a reboque, mas comonave capitânia ao verificar, antes dosurto existencialista e no mesmo anoque Heidegger publicava seu famoso Oser e o tempo, que ‘viver é encontrar-seno mundo’ e que ‘viver é cons-tantemente decidir o que seremos’. Àpergunta que é filosofia? Ortegaresponde, com diáfana clareza,apresentando ao mesmo tempo novasidéias e novos princípios que signi-ficavam a superação do subjetivismo,idealismo e racionalismo em que estavasubmersa a filosofia, sem saída aomundo e à vida que é preciso, antes detudo, superar a perpétua e – como entãoparecia – insolúvel antítese entrerealismo – e toda suas formas,materialismo, positivismo, pragma-tismo – e idealismo. Com isso, reabilitaa filosofia que estava como queesmagada pelo ‘imperialismo da físicae apavorada pelo terrorismo intelectualdos laboratórios.’” 45

O que é Filosofia? fala sobre filosofia filosofando, oque, para Ortega, obrigatoriamente significa umaaventura prazerosa: a sensação de estar prestes a chegara um lugar onde ainda ninguém aportou. Era esta aintenção, bem pouco modesta, do autor com aquelasconferências – não fazer uma introdução ao tema, masresponder, em 11 lições, à gigantesca pergunta. Aospoucos, numa linguagem que em nada lembra os

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filósofos mais tradicionais, e dando voltas em torno, omadrilenho vai se aproximando de seu tema primordial,em círculos concêntricos cujos raios vão se fechando,deslizando da exterioridade para a concretude do que eleconsidera o principal problema da filosofia. Não o quesão todas as coisas, não o que é Deus ou o ser, mas o queé a minha vida. Do externo e aparentemente longínquo,as lições de O que é filosofia? vão montando, em pedaços,cada vez mais claros, a resposta à questão. O método:problematizar, desde a primeira linha, o própriofilosofar, tomando a atividade filosófica e submetendo-a a uma análise profunda.

Na primeira Lição, afirma que os temasfundamentais da história não são produto do coletivo,mas de indivíduos. E indivíduos de exceção. Assim,surgiram e surgem entre os seres humanos, cientistas,artistas e filósofos, homens que se esforçam e, tornando-se altamente capacitados, trazem a tona invenções epontos de vista ainda não experimentados pelacoletividade.

O segundo tema que aparece nessa lição dizrespeito à própria idéia de Humanidade. Para Ortega,homem é tanto Kant quanto qualquer europeu e ohabitante da Nova Guiné, o australiano ou o brasileiro eque conservam um ingrediente mínimo de comunidadeentre esses pontos extremos da variação humana. Aípodemos falar entre todos e coloca-se o pressupostomínimo de que o sujeito que fala possa ser entendido. Senão em tudo, pelo menos em alguma parte hácomunicação entre uma cultura e outra: a história. “Opressuposto profundo da história é, pois, precisamenteo contrário de um fundamental relativismo”46, afirma,contrastando essa posição à de um período pouco

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favorável à filosofia - de 1840 a 1900 - em que asdescobertas científicas e a idéia de progresso, movidaspela técnica, se assentaram, firmando-se junto um olharcientífico que relativizou o mundo, que desconectoupartes que, vistas por fora, pareciam, de fato,desconjuntadas, mas de dentro mantinham liames queera preciso descobrir.

O relativismo, ou seja, a idéia de que diversosolhares estão certos, se opõe ao perspectivismoorteguiano, ou a um certo relativismo que diz que todosos olhares são falhos. Só o conjunto é a verdade, afirmaem O que é Filosofia?. O desafio do filósofo é ultrapassaras aparências e as perspectivas da ciência, não negando-se a estabelecer uma hipótese de conjunto, por mais caraque essa hipótese saia. Esse esforço é filosofar. O todo dahumanidade é a verdade sobre a humanidade e não suasvariedades. Isso que permanece como um mínimo deidentidade entre todos os aspectos humanos é ahumanidade, o lastro a partir do qual se pode pensar emum sistema de valores objetivos, para além dasdiferenças.

Mas o século XIX marcou também o imperialismoda física e trouxe o domínio do utilitário sobre o inútil eo supérfluo. A filosofia decaía, então, por não ser tão útil,aparentemente, quanto a técnica e seus concretosbenefícios. Desde o século XVI, havia começado umadisciplina intelectual, a nuova scienza, de Galileu, que, porum lado, tem o vigor dedutivo da matemática e, poroutro, fala de objetos reais. Era um conhecimento quepassava a nos ajudar a produzir coisas reais com maisprecisão, instrumentos que faziam ver longe, trazer paraperto, ajudar a vencer distâncias etc. Com todo esteconforto, o homem passou a voltar as costas à inútil

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filosofia, fato que teve seu auge no século XIX. Junto comesse progresso da técnica, surge um tipo de homem,voltado para o conforto e envolto em conforto, muitomais que todos os seus antepassados: o burguês, e seuolhar não mais voltado para o todo, mas para as úteispartes.

A filosofia vai se confinando numa mera teoriado conhecimento e muito disso por culpa de um filósofode espírito bastante burguês, na opinião de Ortega:Immanuel Kant (1724-1804). Kant desiste de se aventurare arrasta consigo, para o chão, o espírito da filosofia.

“Na Grécia, esta fertilidade utilitárianão teria atingido influência decisivasobre os ânimos, mas na Europacoincidiu com o predomínio de um tipode homem – o chamado burguês – quenão sentia vocação contemplativateórica, mas prática. O burguês queralojar-se comodamente no mundo epara isso intervir nele modificando-o aseu prazer. Por isso a burguesia seorgulha, antes de tudo, pelo triunfo doindustrialismo e, em geral, das técnicasúteis à vida, como são a medicina, aeconomia, a administração. A físicaadquiriu um prestígio porque delaemanava a máquina e o remédio. Asmassas médias se interessavam nelanão por curiosidade intelectual, maspor interesse material.” 47

Mas o curioso é que, pouco depois, quando afilosofia positivista passa a exagerar seu culto à física, aprópria física concluía dela própria que era umconhecimento simbólico, tal como em Henri Poincaré(1854-1912) e Albert Einstein (1879-1955), entre outros,

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menos seguro do que se acreditava. “Este passo seguro,tranqüilo e burguês jamais terá a filosofia, que é puroheroísmo teorético”,48 define Ortega, defendendo, comisso, a atividade filosófica de maneira distinta dapraticada por boa parte dos grandes filósofos damodernidade - também neste sentido, Ortega é colocado,muitas vezes, como um precursor da pós-modernidade,ou pelo menos como um não-moderno – um pouco porseu conhecido artigo “Nada moderno y mui siglo XX”(OC,II,p.22).

Para Ortega, a ciência (segurança burguesa) trazsegurança ao espírito não-filosófico, mas é de frágilconstrução. Depende do experimento, o que significa quedepende da manipulação, e esta é feita por humanos. Nãoé natureza, simplesmente e de acordo com ela, masapenas sua reação diante de determinada intervençãohumana. Assim, o que chamamos realidade física passaa ser algo distinto do que em geral se pensa: ela dependede nossas ações. Pois essa se trata do contrário do quepretendeu a filosofia: buscar “como realidade o que éindependente de nossas ações, o que não depende delas;ou melhor, estas dependem daquela realidade plenária”49.Foi por abstenção que passamos a não olhar mais paraesse incômodo mundo que independe de nós. Viramos,com Kant, as costas em busca de um conhecimentoseguro, bem ao modo burguês. E a busca por este novotipo de conhecimento útil vai desumanizando,desmoralizando, desanimando o mundo.

Filosofia, para Ortega, é exatamente o contráriodessa posição segura. É afã de descobrir, é impulso àinsegurança, ao desconhecido, um aventureiro em buscade razões. Mas não é apenas um Quixote, aquele quefilosofa. Afinal, com elementos que a própria história da

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física mostra, o espírito crítico pode superar a idolatriado experimento e reincluir o conhecimento físico emuma órbita mais modesta. Assim, a mente ficanovamente livre para fazer filosofia. Mas para que isso?Por que filosofar ao invés da cômoda vida sem perguntasmais gerais? Porque, para Ortega, ao homem acontece,em absoluto, fazer filosofia e, diferente de qualquercientista (esta redução do homem ao espírito físico-matemático), o filósofo é o que não se contenta com aparte, o fragmento, mas o que se atira ao desconhecido.Detalhe: tampouco é um profissional da filosofia, masaquele que se aventura em conhecer com o afã, com afome do todo. Muitas vezes o filósofo profissional (oespecialista) tem, para Ortega, uma atitude muito menosfilosófica, no sentido plenário, que um homem“mundano” voltando sua atenção para o que não conhece.

“O mais ou menos conhecido épartícula, porção, lasca do universo. Ofilósofo se situa diante de seu objeto demaneira diversa de qualquer outroconhecedor; o filósofo ignora qual é seuobjeto e dele sabe apenas: primeiro, quenão é nenhum dos demais objetos;segundo, que é um objeto integral, queé um autêntico todo, o que não deixanada fora e, por isso, o único que sebasta. Mas precisamente, nenhum dosobjetos conhecidos ou suspeitadospossui esta condição. Por isso, o uni-verso é o que fundamentalmente nãosabemos, o que absolutamente ignora-mos em seu conteúdo positivo.” 50

Por causa de seu problema, o universo, o homemenquanto filósofo se obriga a tomar posição teoréticapara defrontar-se com ele. A olhar não como se olham os

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outros objetos. Essa é a diferença entre a filosofia e asciências (ou mesmo entre a filosofia e a filosofiacontemporânea): “quando estas encontram um problemapara elas insolúvel simplesmente deixam de tratá-lo”51,reclama. A isso Ortega chama de renúncia, atitudedescortês que não combina com um filósofo, com umhomem nobre ocupado em saber o que é. Filosofar, paraOrtega, é não fechar os ouvidos às últimas, às maisdramáticas perguntas: de onde vem o mundo, para ondevai? Qual é o sentido essencial da vida? Que é a potênciado cosmos? Podemos, no entanto, voltar as costas a elas,no que Ortega retruca: “a quem jamais lhe separou dafome saber que não poderá comer?”52. O filósofo tem,necessariamente, fome e se difere dos demais espíritospor esta fome.

“Filosofia é conhecimento do universoou de tudo quanto há, mas ao partir nãosabemos que é o que há, nem se o quehá forma Universo ou Multiverso, nemse Universo ou Multiverso serácognoscível. A empresa, pois, parecelouca. Por que tentá-la? Não seria maisprudente excusá-la – dedicar-se tãoapenas a viver e prescindir de filosofar?Para o velho herói romano, pelocontrário, era necessário navegar e nãoera necessário viver. Sempre sedividirão os homens nestas duasespécies, das quais formam a melhoraqueles para os quais, precisamente, osupérfluo é o necessário.” 53

Mas podemos não nos preocupar e nos contentarcom o necessário, deixando-nos flutuar à deriva comouma “bóia sem amarras, que vai e vem empurrada pelascorrentes sociais” - viver simplesmente:

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“É isto o que faz o homem e a mulhermedíocre, isto é, a imensa maioria dascriaturas humanas. Para eles, viver éentregar-se ao unânime, deixar que oscostumes, os preconceitos, os usos, ostópicos se instalem em seu interior, osfaçam viver a eles e tomem sobre si atarefa de fazê-los viver. São ânimosfracos que ao sentir o peso, ao mesmotempo doloroso e deleitoso, de suaprópria vida, se sentem surpreendidos,e então se preocupam, precisamente,para tirar de seus ombros o própriopeso que eles são e atirá-lo sobre acoletividade; isto é, preocupam-se dedespreocupar-se. Sob a aparenteindiferença da despreocupação latejasempre um secreto pavor de ter queresolver por si mesmo, origi-nariamente, os atos, as ações, asemoções – um humilde afã de ser comoos outros, de renunciar à respon-sabilidade diante do próprio destino,dissolvendo-o entre a multidão; é oideal do eterno fraco”: fazer o que faztoda a gente é sua preocupação.E se queremos buscar uma imagemparente daquela do olho de Horuslembremos o rito das sepulturasegípcias, daquele povo que acreditavaque no além a pessoa era submetida aum tribunal. Nesse tribunal se julgavasua vida e o primeiro e supremo ato dejuízo consistia na pesagem de seucoração. Para evitar esta pesagem, paraenganar a esses poderes de vida e deultravida, o egípcio fazia que oscoveiros substituíssem seu coração decarne por um escaravelho de bronze oupor um coração de pedra negra:

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queriam substituir sua vida. Issoprecisamente é o que procura fazer odespreocupado: substituir-se a simesmo. Disto se preocupa.” 54

O homem-massa é como o antigo egípcio aoenganar a si próprio para flutuar livremente, à deriva.Vive sem ocupar-se ou se preocupa em não se ocupar comas coisas mais pesadas. Para se descolar deste peso, viveuma razão descolada da vida, abstrata, que o livra deperguntas fundamentais, vitais, perguntas que, noentanto, continuarão existindo. Essa razão físico-matemática serve para fazer coisas, descobrir outras, maspara o autêntico filosofar, é necessário uma razão quenasça da vida: uma razão vital.

3.2. Crítica da razão físico-matemáticaOrtega se propõe a fazer uma revisão radical da

filosofia, criticando-a em suas bases, ou seja, em suanoção de “razão” e de “ser”. Como ponto de partida paraesta reforma, encontra o que considera a maisfundamental unidade a partir da qual fundamentar umafilosofia radical. A vida humana é, para Ortega, arealidade básica. De maneira que todas as demaisrealidades se dão dentro dela - desde o mundo físico,passando pelo psíquico e o mundo dos valores. Ora, setudo o mais só pode existir dentro dessa realidade radical(inclusive Deus que, para existir, necessitaria existirdentro de alguma minha vida, ou seja para alguém), arazão só pode ser, também, algo que nasce dentro dela,nessa mais radical unidade da existência (a vidahumana), a partir da qual Ortega fundamenta suafilosofia, o Raciovitalismo. Invertendo - ao aprofundar -o que pensava René Descartes (1596-1650), afirma que o

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“penso, logo existo”, se levado adiante, com maisradicalidade que o francês, nos deixaria no beco sem-saída de que só pensamos vivendo.

Contra o racionalismo, mas buscando não cair novitalismo puro e simples, Ortega propõe uma razão quenasce da vida (e não uma vida que nasce da razão, talcomo os racionalistas defendiam), afirmando esta comouma realidade mais radical que aquela. Base daracionalidade, a vida pessoal, no sentido concreto (o quesignifica individual), é a razão da própria razão. A razão,então, não é já definida como uma operação intelectual(razão físico-matemática), simplesmente, mas comopossibilidade, como possibilidade do homem ser o queé. O que Ortega diz é que o princípio cartesiano do “pensologo existo” pode ser a premissa de um longo raciocínioque desemboca na conclusão penso porque vivo.

Para Ortega - nas palavras de Ferrater Mora (1958)- a razão vital é o fio condutor no labirinto da nossa buscapelo sistema do ser (nesse sentido, o homem-massa,traidor dessa razão, é, não apenas um produto e umprodutor de uma sociedade massificada, mas um traidormetafísico, que desiste de fazer as perguntasfundamentais sobre si próprio, vivendo sob uma razãoinautêntica, a físico-matemática).

Em um certo sentido, explica o comentador, pode-se dizer que a razão vital é um método empírico, afinal,a razão, nessa perspectiva, deve ser concebida como algoque funciona na existência humana. O pensamento nãoé algo que o homem possui, algo que esteja fora dele, eque, em virtude de tal possessão, o homem coloque emfuncionamento. Não: o pensamento, em Ortega, é algoque o homem faz funcionar com mais ou menosdificuldade porque o necessita, porque lhe é vital.

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O Raciovitalismo é, pois, a proposta de filosofiaorteguiana, uma filosofia que se pretende radical,alternativa a uma filosofia como conjunto mais ou menosarbitrário de pressupostos, fundamentados numa razãoabstrata. Seguindo Wilhelm Dilthey (1833 - 1911), quepretendia fazer uma filosofia da filosofia, Ortega,conforme Ferrater Mora, percebeu muito claramente quea filosofia é algo que devemos justificar, e justificarincessantemente. A razão vital é uma justificativafundamental, embasamento e fundamentação para umafilosofia que é racional mas não abandona o vital, antesos une em uma única doutrina.

Ocorre que, desde a época de Descartes, osfilósofos modernos têm mostrado extrema propensão afiarem-se quase que exclusivamente em verdadesuniversais abstratas. Conforme essa concepção, ohomem seria primeiramente um animal racional, cujamissão consiste em descobrir princípios racionaisindubitáveis sobre os quais viver. Para Ortega, não setrata disso: pensar é uma das coisas que o homem faz; aprimeira é viver. E o próprio filósofo que filosofaabstratamente cai num erro que condena todo seufilosofar a uma abstração.

3.3. O sujeito orteguiano como eu-circunstânciaContra os realistas, Ortega diz que nossa vida é o

ponto de partida inevitável para qualquer filosofia.Contra os idealistas, que tal vida se acha - queira ou não- completamente submersa no mundo. Ferrater Moraenumera uma série de frases de Ortega sobre o tema: “avida é uma emigração perpétua do eu vital até o não-eu”,“viver é dialogar com o contorno”, “viver é tratar com omundo e atuar nele”, viver é sair de si mesmo para haver-se com o ‘outro’ e isso até tal ponto que viver é

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essencialmente conviver”. Por motivos como estes,afirma Ferrater Mora, a vida humana, para Ortega, nãoé um acontecer subjetivo, mas a mais objetiva dasrealidades, ao se basear em seu princípio de um sujeitonão como pura subjetividade, nem como puracircunstancialidade: o sujeito orteguiano é um eu-circunstância.

Nas Meditações do Quijote, de 1914, Ortega, nafamosa frase, “eu sou eu e minha circunstância e se nãosalvo a ela não salvo a mim”, coloca a circunstância comoo constitutivo básico da vida, um conjunto de realidadesnas quais este sujeito circunstancial se situa e quecondicionam suas possibilidades vitais. Circunstância,para Ortega, é o que se acha ao redor do homem,constituindo sua vida. A circunstância é o mundo vitalem que o sujeito se encontra imerso, incluindo o mundofísico e histórico (tal como a sociedade e a cultura). Acircunstância começa pelo próprio corpo e até mesmo opsiquismo já que, para Ortega, esses também são nossosconstitutivos, são circunstâncias.

O eu-circunstância é homogênea mescla,inseparável entre uma instância de liberdade eresponsabilidade, o eu, e o seu entorno. Circunstância jáé sua raça, língua, condição social (e sua história). Trata-se de tudo o que está ao redor do homem (desde a carnee o psiquismo) desde que ele nasceu, desde que ele chegouao mundo e encontrou essa espécie de entorno dado, nãoconstruído por ele, mas que lhe exige ser feito e refeitotodo o dia, através do esforço (quando ele é homemautêntico, porque pode furtar-se a tentar dar este sentido,recebendo o sentido de seu mundo heteronomamente –e ser homem-massa). Esforço porque essa circunstânciaé sustentação e obstáculo ao mesmo tempo e a cultura éação natatória para não nos afogarmos no mar do

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absurdo. Vivemos com a circunstância, dentro dela,somos ela, e ela é essa nossa instância que nos sustenta eoprime, nosso tempo e nosso espaço. É condição erestrição.

Como já apontaram diversos autores, entre elesFerrater Mora (2000), em seu Dicionário de Filosofia, paraOrtega não existe a separação idealista e realista entresujeito e realidade. Nem o mundo, nem nós, somosrealidades independentes. A filosofia de Ortegaultrapassa a tese realista tradicional de que as coisasexistem independentemente do sujeito. Tampouco osujeito e o mundo vivem juntos (o sujeito vive com omundo), mas um terceiro: o sujeito orteguiano é o sujeitoe a circunstância juntos, coimplicados.

Assim, o homem é sua história, o homem ébiografia, e não pode ser explicado apenas por seuaspecto biológico. Ou seja, a razão físico-matemática, quetrata das coisas com propriedade, não pode dar conta domundo da vida. Para Ortega, o mundo não é nem anatureza nem o Cosmos, por si só (realismo), assim comonão é mera projeção da mente (racionalismo). É umacircunstância, ou melhor, um sistema delas, que englobatudo: o corpo, passando pelo psiquismo, ao universo,radicado não no ser, lá longe e abstrato, mas aqui perto,no mais perto de tudo, na realidade maior “minha vida”.Um deles não existindo, o eu-circunstância não existe, avida como realidade radical se vai. Assim, o ser primáriodas coisas é seu ser em relação com a vida, seu “ser vivido”.O erro do pensamento tradicional é fazer uma abstraçãodeste ser primário, considerando que as coisas possamexistir por si próprias; o do racionalismo, que sujeito eobjeto estejam separados.

Espaço e tempos são constituídos por Ortega damesma forma, já que ambos são circunstância. A

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categoria temporal mais importante é a de passado e,mais ainda, a de presente, o agora. Tudo se refere aopresente, o vivido, lugar inescapável e onde decidimosnosso futuro. Daí a responsabilidade com o mundo, oespaço-tempo mediado pelo eu-circunstância, essa via deduas mãos sempre aberta. Mas para fazer o futuro, temosque contar com o passado, com a história coletiva em quevivemos. E esse viver, o que é? De onde vem?, perguntaOrtega, qual sua razão, qual a razão histórica?:

“Como isso chegou a ser? E a resposta éa descoberta da trajetória humana, dasérie dialética de suas experiências,que, repito, pode ser outra mas tem sidoa que foi e que é preciso conhecerporque ela é a realidade transcendente.O homem afastado de si mesmo seencontra consigo mesmo comorealidade, como história. E, por sua vezprimeira, se vê obrigado a ocupar-se deseu passado não por curiosidade nempara encontrar exemplos normativos,mas porque não tem outra coisa. Nãose levam a sério as coisas se não quandode verdade tenham feito falta.”55

O homem precisa contar com o passado em seuagora, mesmo quando fala, quando escreve, quandocome. Ele não tem outra coisa a não ser essa história, deonde brota tudo o que há nele, até mesmo o mapametafísico de que se serve para orientar-se. O sujeitoorteguiano, o eu-circunstância, ou o que ele chama de“minha vida”, é um eu que nasce dentro dascircunstâncias, que é junto às circunstâncias, nãoimplicado nela, mas coimplicado. É razão vital e histórica,que precisa da história para ser quem ele é, aprender aler o que se escreveu antes de ele chegar ao mundo,

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aprender a escrever e a falar numa língua e comcaracteres que ele não inventou, mas que lhe servemvitalmente para inclusive se tornar o que ele é. O homemnão tem natureza, para Ortega: o homem tem história.Ou melhor dizendo: a história é a natureza do homem.

O conceito de “coimplicação” é fundamental paracompreender o sujeito orteguiano - daí o homem-autêntico e o homem-massa. Explicação e implicaçãoreferem-se a uma relação sujeito-objeto em que o sujeitoestá numa relação de interioridade ou exterioridade. ParaOrtega, sujeito e objetos coimplicam-se. Assim, arealidade radical é amálgama sujeito-circunstância naqual tudo o mais se dá, todas as outras realidades lhe sãoinescapavelmente radicadas. Fora dela, tudo sãosuposições e hipóteses. No entanto, Ortega adverte que,por chamar a essa de “realidade radical”, não quer dizerque seja a única, nem a mais elevada, mas a mais radical,no sentido de que toda as outras precisam anunciar-senesta.

“É pois esta realidade radical - a minhavida – tão pouco egoísta, tão nadasolipsista, que é, por essência, a área oucenário oferecido e aberto para quetoda outra realidade nela se manifestee celebre seu Pentecostes. Deus mesmo,para ser Deus diante de nós, tem deachar maneira para nos denunciar a suaexistência e, por isso, fulmina no Sinai,põe-se a arder nas sarças à beira docaminho e açoita os vendilhões no átriodo templo e navega sobre Gólgotas detrês hastes, como as fragatas.Daí, nenhum conhecimento de algo sersuficiente – isto é, suficientementeprofundo, radical, se não começa pordescobrir e precisar o lugar e o modo,

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dentro do orbe que é nossa vida, ondeesse algo faz a sua aparição, assoma,brota e surge, em suma: existe.”56

Tudo o que conhecemos, e tudo o que existe e vive,existe e vive na realidade radical minha vida. No entanto,é necessário atentar para uma diferença. Para Ortega, oque existe está aí e nós não estamos aí, simplesmente.Numa orientação que se distancia radicalmente doExistencialismo, compreende o existir como uma“arbitrariedade terminológica”. O homem não existe, ohomem, coimplicado que é, vive:

“Uma arbitrariedade (...) vem querendodesde alguns anos empregar osvocábulos existir e existência com umsentido abstruso e incontrolável que éprecisamente inverso daquele que, porsi, a palavra milenária leva e diz.Alguns querem hoje designar o modode ser do homem, mas o homem, que ésempre eu, - o eu que é cada um – é oúnico que não existe, mas vive, ou évivendo. São precisamente todas asdemais coisas, que não são o homem –eu – aquelas que existem, porqueaparecem, surgem, saltam, meresistem, se afirmam dentro do âmbitoque é a minha vida.”57

Para Ortega, o homem não existe, porque sua vidanão lhe é dada pronta, como às coisas que existem. Ohomem é surpreendido tendo de ser, de maneira nãopremeditada, mas num agora e numa conjuntura decircunstâncias na qual tem que viver, que lhe dá suportee lhe oferece resistências às quais necessita vencer: “avida nos é disparada à queima-roupa”58. E essa vida, quenos é dada, não nos é dada pronta, de maneira que cada

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um de nós temos de fazê-la para nós mesmos. Como avida nos é dada vazia, o homem precisa enchê-la e essa ésua principal ocupação, o que não acontece com asplantas e os animais, que simplesmente existem, que têmtudo cheio.

3.4. O mundo das idéias e das crençasDesde que nasce, o homem, como eu-

circunstância, está mergulhado em um conjunto decrenças. A estrutura de sua vida circunstante é umrepertório imenso delas. Para sobreviver, ele dependedelas, pois vive nelas, conta com elas. Nessas crenças ohomem está, enquanto que as idéias, ele as tem. Ortegachama de “repertório de crenças” à pluraridade decrenças em que um homem, um povo ou uma época vive.A principal tarefa do historiador, segundo Ortega, édescobrir que repertório de crenças havia emdeterminado momento da história humana. Esta dará avitalidade do mundo em que se vivia e de onde se podecompreender a razão histórica. O filósofo julgou ser ahistória uma circunstância vital da humanidade, fontede saber sobre nosso presente e futuro. Descobrir orepertório de crenças, o universo de suposições do iníciodo século XX, é fundamental para compreender como éo homem que vive neste tempo. O que pensa? O queespera? No que acredita o homem-massa?

As crenças constituem a substância de nossasvidas e estamos nelas enquanto seres viventes – mesmoo mais sábio dos homens vive em crenças das quaisjamais poderá escapar totalmente. Crenças não sãoidéias que sustentamos, mas que somos, por estaremprofundamente em nós. As idéias aparecem sempreacima de algumas crenças, que, na verdade, são quasetoda a realidade. Por isso, diz Ortega, podemos morrer

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por nossas idéias, porém é impossível fazer com elas oque fazemos com as crenças: viver delas. Essas crençasaparecem com sua estrutura, com uma ordem que nospossibilita descobrir como viver, como vivem os que noscircundam e como viveram outros de nós em temposremotos.

“O fato de que, pelo contrário,apareçam em estrutura e comhierarquia permite descobrir suaordem secreta e, portanto, entender avida própria e a alheia, a de hoje e a deoutro tempo. Assim podemos dizeragora: o diagnóstico de uma existênciahumana – de um homem, de um povo,de uma época – tem que começar filiadodo sistema de suas convicções, e paraisso, antes que nada, salientando suacrença fundamental, a decisiva, a queporta e vivifica todas as demais. Agorabem: para ter o estado das crenças emum certo momento, não existe outrométodo que comparar este com outroou outros. Quanto maior for o númerode termos de comparação – maispreciso será o resultado.”59

Além das crenças, numa época estão também asidéias. No século XVI, Descartes assegurava que nouniverso não existiam segredos que não pudessem serdesvendados pelos homens. Bastaria um método paracompreender toda a verdade. O homem possuiria umpoder mágico de colocar tudo em claro. Isso porque, nofundo, o mundo da realidade e do pensamento são omesmo. Essa idéia, aos poucos vai se assentando, e ohomem passa a viver a crença de que é possível

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compreender tudo ao seu redor, bastando-lhe, para tal,apenas um caminho.

O mundo daquela época tem uma estruturaracional, a realidade tem uma estrutura racional quecoincide com a mais pura forma do intelecto humano, arazão físico-matemática. Ortega pergunta ao leitor o queseria da Europa se, àquela altura da história, os europeusnão tivessem conquistado essa crença, uma crença quese assemelha à distinção dos teólogos medievais entre féviva e fé morta. Em meados do século XV, conformeOrtega, a fé em um Deus começa a se tornar cada vezmais cansada, e o homem precisa de uma nova crença: équando surge a razão.

O homem, que vivia aturdido, naquele momento,por um desfalecimento de seu sistema de crençasantigos, vai entrando nesta nova e clarividente fé. Ortegadefine esse período como a inquietude parturiente deuma nova confiança fundada na razão físico-matemática, nova mediadora entre o homem e o mundo,idéia que virará crença. Em História como Sistema, Ortegaanalisa as bases das crenças vividas desde a Idade Média,passando pelo momento de crise na fé em Deus queantecede o parto da racionalidade moderna. No entanto,a antiga fé segue, embora não tão viva quanto a anterior,por baixo do sistema de idéias que irá nascer, numamescla entre idéias e crenças da época.

A visão orteguiana da história só é possível comum método novo para perscrutar o passado, um métodoque busque a razão vital do tempo vivido, por exemplo,no Renascimento, com o resto de crenças que aindavinham da Idade Média e que só iriam desaparecer, talveznem de todo, muito séculos mais tarde. Não se pode falardaquele período apenas em termos de suas idéias:estaríamos deixando de lado o grosso do mundo que se

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vivia, seu imenso repertório de crenças. Um pouco maisde seu método está expresso na seguinte passagem:

“As crenças constituem o estrato básico,o mais profundo da arquitetura denossa vida. Vivemos delas e, por issomesmo, não costumamos pensar nelas.Pensamos só no que colocamos mais,ou menos, em questão. Por issodizemos que temos estas ou outrasidéias; mais as crenças, mas que astermos, as somos.”60

Assim como a vigência de uma lei, umadeterminada crença coletiva não necessita que umindivíduo determinado acredite nela. O dogma social éuma crença que tem vigência. E as massas impõem sua fésocial ao indivíduo, quer ele queira ou não, cristalizando-se na forma de lei vigente. O indivíduo vive, quer queira,quer não, um sistema de crenças vigentes. Acima delas,tem idéias.

Uma das conclusões a que chega Ortega, a partirde sua análise histórica baseada na distinção entre idéiase crenças, é de que a ciência (ou o espírito científico)também se encontra em perigo. Isso porque, segundo ofilósofo, naquela primeira metade do século XX –momento em que ele observa a “rebelião das massas” - acoletividade em geral havia perdido sua fé nessa mesmarazão em que havia vivido desde Descartes. O fato é quea fé na razão e na força da ciência transformou-se, noséculo XX, em uma fé morta, tal como aconteceu com acrença em Deus no final da Idade Média. Com isso, oséculo XX vive uma razão morta, como sua fé, sementusiasmo, sem ânimo, gerando invertebração emassificação.

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Essa razão criou tecnologias e conforto, noentanto a fé que havia nela foi morrendo por causa dafalta de respostas a problemas que estão fora do âmbitofísico-matemático. As perguntas realmente importantescontinuaram e ela virou uma fé inerte, afinal, “resultaque sobre as grandes transformações humanas, a ciênciapropriamente como tal não tem nada preciso paradizer.”61 Para Ortega, é urgente que o homem passe a vivernão mais essa razão morta, mas uma razão vital. Osistema de idéias e crenças de nossa época está em criseprecisamente porque necessita de uma nova revelação:a revelação da razão vital, faceta individual da razãohistórica coletiva. Conhecer o sistema de crenças atual éabsolutamente fundamental para compreender quem éo homem-massa que vive e é essas crenças. Uma dessascrenças é a da vigência da razão físico-matemática.

3.5. Uma razão que vem da históriaAlém do mais, a razão tradicional não é capaz de

contar, com substância, a tão necessária e vital históriado homem (vital, porque essa história é nosso ambiente,nossa circunstância), porque estanca a fluidezheraclitana do mundo na imobilidade de Parmênides eZenón. O eleatismo, segundo Ortega, sempre imperounas cabeças helênicas e tudo o que não era eleatismo foisó tentativa de oposição, destino grego que seguegravitando sobre nós, aprisionando-nos no círculomágico da ontologia eleata.

Para o pensador madrilenho: “Em Hegel, omovimento do espírito é pura ficção, porque é ummovimento interno ao espírito cuja consistência é em suaverdade fixa, estática e preestabelecida.”62 A razão físico-matemática se mostra insuficiente, em suas duas formas- naturalismo e espiritualismo - para afrontar os radicais

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problemas humanos (apenas pode responder a perguntasparciais, como aquelas feitas pela ciência), problemasque, para Ortega, têm muito de suas soluções ou esboçosque precisam ser lidos na História.

O homem é um constitutivo eu-circunstância eante ele estão diversas possibilidades de ser. Porém essaspossibilidades dependem muito de um passado quenecessita ser compreendido, deglutido quando se quercompreender o presente e andar pelo futuro. A históriacomo sistema é o sistema de crenças e idéias existentedesde sempre, detentora de uma racionalidade, nãoabstrata, mas vital, vinda do passado humano e que nosaponta o que podemos ser no futuro. A humanidadeprogride (ou supera contradições) quando olha para ofuturo tendo às costas o que foi, afinal o que fomos atuasobre o que somos. O passado, para Ortega, faz parte denosso presente, do que somos na forma de ter sido. Nadahá que não esteja no presente. Nem mesmo o passado, jáque a vida como realidade é absoluta presença, voltadapara o futuro – o homem não é, o homem é um ir-sendo.

“Se falamos de ser no sentido tra-dicional, como ser já o que é, como serfixo, estático, invariável e dado,teremos que dizer que a única coisa queo homem possui de ser, de ‘natureza’,é o que ele foi. Mas, por isso mesmo, seo homem não tem mais ser eleático queaquele que ele foi, quer dizer que seuautêntico ser, o que, em efeito é – e nãoapenas o ‘foi’ -, é distinto do passado,consiste formalmente em ‘ser o que nãofoi’, em um ser não eleático.”63

Por essas razões convém libertar o homem dotradicional conceito de ser. Como o homem não é, mas

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“vai sendo”, para Ortega não é possível compreender ohomem com o conceito de ser tradicional, mas com o de“viver”. O ser é; o homem vive. Seria necessária, inclusive,uma espécie de “razão narrativa” para tratar desse sermovente. O homem vai sendo e des-sendo coisas que jáfoi no passado, tanto individualmente comocoletivamente. Por isso, a importância de olhar para oque passou e entender o que nos passa e antecipar o quepode acontecer se agirmos de um modo ou de outro. Noentanto, nunca de maneira rígida, estática, eleata - ohomem é puro inventar constante a si próprio e écaminhada interminável: o homem é o “peregrino doser”.

Ortega problematiza a visão tradicional dahistória, objetivista e otimista em relação àspossibilidades da razão tradicional de dizer o querealmente aconteceu e como aconteceu, remontando, apartir dos documentos históricos, as peças do quebra-cabeças revirado. De uma certa forma, o historiadormoderno era como uma espécie de especialista emdriblar a circunstância, de escavar um túnel, ou entrarem uma máquina do tempo conceitual para dizer o querealmente aconteceu no passado, ou dando as razõesdesse passado, arbitrariamente, como Hegel.

As aportações de Ortega para a história vêm nomesmo sentido, mas ele quer ver, antes, a razão dahistória, ao invés de colocar razão nela. Porém não maisa partir da racionalidade moderna, mas de sua idéia derazão vital. É possível descobrir os véus do passado, mascom uma razão que não é mais veículo objetivo perfeitopara este trabalho, asséptico e neutro como a ciência. Arazão que temos é sempre circunstancial, sempre vital.E é com a razão vital, histórica, que podemos com-preender o homem-massa e o tempo dos homens-massa.

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A filosofia de Ortega prima pela urgência deobrigações realmente vitais para o homem. Daí toda suaaversão ao que é vitalmente supérfluo. O homem olha parao passado porque lhe é vital, por isso é preciso reclamar anecessidade de se utilizar sua nova noção raciovitalistade razão para olhar para a história e acusar Hegel de umexcesso de formalismo em seu olhar. Ortega pensavahaver chegado, em sua época, o tempo de uma nova razãohistórica, que ultrapassaria a dicotomia razão-história,termos contrapostos desde a Grécia antiga. Até agora,diz, ninguém se ocupou de buscar a razão na história. Sóo que ocorreu foi o contrário, como Hegel, que quis levarà história uma razão forasteira.

“(Hegel) injeta na história o formalismode sua lógica, ou Buckle, a razãofisiológica e física. Meu propósito éestritamente inverso. Trata-se deencontrar na história mesma suaoriginal e autóctona razão. Por isso épreciso entender-se em todo o rigor aexpressão razão histórica. Não umarazão extra-histórica, que parececumprir-se na história, mas lite-ralmente, o que ao homem lhe passou,constituindo a substantiva razão, arevelação de uma realidade trans-cendente às teorias do homem e que éele mesmo por baixo de suas teorias. Atéagora, o que havia de razão não erahistórico, o que havia de histórico nãoera racional.”64

A razão histórica que propõe é rigoroso conceito,ratio, logos e, ao opô-la à razão físico-matemática, nãoestá, de maneira alguma, dando qualquer permissãoteórica de irracionalismo. A diferença é que a razão físico-

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matemática serve para tratar de coisas. E o homem nãoé uma coisa. Ao contrário do que possa parecer, a razãohistórica é ainda mais racional que a física, mais rigorosa,mais exigente que esta.65 O motivo é que a física renunciaa entender aquilo de que fala, fazendo de uma assépticarenúncia seu próprio método.

A redução que a física faz dos fatos complexos aossimples os torna inteligíveis, mas não reais. A razãohistórica não aceita nada como mero fato, mas fluidifica-o, quer ver como se faz o fato. Essa fluidificação é omovimento contrário do que a racionalidade físico-matemática pode fazer.

Por isso, não crê que seja possível esclarecer osfenômenos humanos, reduzindo-os a fatos brutos, comoo faz a ciência. A causa principal de não se poder ver anatureza do homem é que o homem não tem natureza e,conseqüentemente, é preciso pensar no homem comcategorias completamente distintas das da ciência –categorias vitais. A razão histórica quer mostrar comoos fatos vieram a ser fatos (como o homem-massa veio aser homem-massa?).

Em sua época, a razão físico-matemática foi umaverdadeira revelação, já que a astronomia, antes deKepler e Galileu, era apenas uma brincadeira com idéias,cujo máximo que conseguia era salvar as aparências. Ahumanidade necessita, agora, de uma nova revelação,para superar o fracasso da razão físico-matemática e nospermitir entender o homem mais plenamente. Isso épossível através da compreensão das crenças e esquemasde cada geração e cultura, o que cada um desseselementos utilizou a seu tempo e a seu modo, paraenfrentar a realidade radical de sua vida.

O homem-massa não pode ser compreendidopela razão físico-matemática e pelas relações abarcáveispor esta razão. Para compreendê-lo é preciso de razão

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vital, de razão histórica. O motivo: o homem não é só umacoisa, não é um sujeito separado das coisas nem é umacoisa separada do sujeito. A razão físico-matemática,afinal como toda a história da filosofia, é parte de umaconcepção substancialista da realidade, de um realestático. Para Ortega, a vida é exatamente o contrário:trata-se de drama, de movimento, é ir-sendo. É urgência,é pressa, e necessita saber a cada momento a que se ater.Por isso, “é preciso fazer desta urgência o método daverdade.” 66

“Esta consistência fixa e dada de umavez para sempre é o que costumamosentender quando falamos do ser deuma coisa. Outro nome para expressaro mesmo é a palavra natureza. E otrabalho da ciência natural consiste emdescobrir sob as nebulosas aparênciasessa natureza ou textura permanente.Quando a razão naturalista se ocupa dohomem, busca, conseqüente consigomesma, pôr a descoberto sua natureza.Repara ela que o homem tem corpo –que é uma coisa – e se apressa a estendera ele a física, e, como esse corpo é, alémdo mais, um organismo, o entrega àbiologia. Nota assim mesmo que nohomem, como no animal, funcionacerto mecanismo incorporal ouconfusamente adscrito ao corpo, omecanismo psíquico, que é tambémuma coisa, e encarrega de seu estudo apsicologia, que é uma ciência natural.Mas (...) o humano escapa à razão físico-matemática como a água por uma cestade palha. E aqui vocês têm o motivo peloqual a fé na razão entrou em deploráveldecadência. O homem não pode esperarmais.”67

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Por causa de sua natureza movediça, fluídica,para falar do homem (tanto do homem-autêntico quantodo homem-massa) temos que respeitar inclusive a formanarrativa como a vida se dá. Quando vamos falar sobrecoisas humanas, diz Ortega, tudo o que podemos fazer ésempre contar uma história.

3.6 A linguagem como filosofia do senso comumComo o pensamento não existe sem a palavra, o

conjunto das palavras carrega também um pensamento.Daí que, para Ortega, a linguagem seja uma filosofia ouciência que se encontra já feita no entorno social. Estalinguagem é saber elemental que recebe-se dacomunidade e, desde sempre, é uma interpretação. Aspalavras são interpretações e a linguagem, um repertóriode opiniões. Por isso, próximo ao que pensavaWittgenstein, para Ortega “a linguagem é, porexcelência, o lugar comum, o saber pedestre em queinexoravelmente tem que alojar-se todo meupensamento próprio, original e autêntico”68. Pensar épensar contra esse repertório comum. Contra ele, Ortegachega a sugerir um olhar indireto, tal como Ítalo Calvinoexpressas décadas mais tarde em “Seis propostas para oPróximo Milênio”.

A questão é que a linguagem é uma filosofiaprosaica que oferece segurança. O mundo das opiniões,mundo das crenças, é seguro, mas o homem não é seguro(sua vida é constitutivamente insegurança). Daí quecomeça a ver falhas nos sistemas de segurançapropiciados pela linguagem e começa a se perguntar, adispor de outras palavras. A terra, segura, começa, então,a tremer e o homem se encontra em plena experiêncianegativa, experiência de ter que contar consigo próprioe não mais com o mundo das opiniões, que lhe falhou.

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No momento em que falha, nos perguntamos o que é ela,assim como quando ocorre um terremoto nosperguntamos sobre o que é a Terra. Essa experiêncianegativa é fundamental para o filosofar. Sem ela, vivemoso mundo seguro, porém precário, das opiniões,simplesmente aceitando-as sem nunca mergulhar noproblema de fazer nós próprios o sentido do mundo.

3.7 Limites da linguagem e radical solidãoOrtega conta com um estilo bastante próprio. Não

só com o conceito, mas utilizando-se também dametáfora, o filósofo pretende chegar a searas talvezdifíceis de serem alcançadas pela dureza da linguagemsistemática69. A ágil figura de linguagem, quandoacertadamente utilizada, daria, como acreditava, umpoder de iluminação de temas, nem semprenecessariamente filosóficos. Essa peculiar fé na metáforae ao mesmo tempo a desconfiança em se falar para opúblico leitor de filosofia, estritamente, é assunto sobreo qual discorre no Prólogo para Franceses de A Rebeliãodas Massas:

“Este livro – supondo que seja um livro– data... Começou a ser publicado numjornal madrilenho em 1926, e o assuntode que trata é demasiado humano paraque pudesse escapar à ação do tempo.Há sobretudo épocas em que arealidade humana, sempre instável, seprecipita em velocidade vertiginosa.Nossa época é dessa classe porque é dedescidas e quedas. Daí que os fatosultrapassaram o livro. Muito do quenele se enuncia foi logo um presente ejá é um passado.(...) Conste, pois, quese trata simplesmente de uma série de

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artigos publicados num jornalmadrilenho de grande circulação.Como quase tudo que escrevi, estasforam páginas escritas para unsquantos espanhóis que o destinocolocou à minha frente. Não ésobremodo improvável que minhaspalavras, mudando agora dedestinatário, consigam dizer aosfranceses o que elas pretendemexprimir.”70

Expondo, como acima, uma concepção dinâmicade linguagem, afirma também que não pode esperarmelhor sorte de seu texto, quando está convencido de quefalar é uma operação muito mais ilusória do que se supõe.A linguagem é o meio de que nos servimos neces-sariamente para manifestar nossos pensamentos,porém, para além dessa crença na comunicação, podemhaver funestos resultados. Há ainda outro aspecto: certootimismo de que a comunicação seja plenamentepossível, otimismo que se espalha pelo público em geral.Afinal, como lembra o autor, ela mesma não nos asseguraque mediante a linguagem possamos manifestar, comsuficiente justeza, todos os nossos pensamentos.

“Não se arrisca a tanto, mas tampouconos faz ver francamente a verdadeestrita: que sendo ao homemimpossível entender-se com seussemelhantes, estando condenado àradical solidão, esgota-se em esforçospara chegar ao próximo. Dessesesforços é a linguagem que consegue àsvezes declarar com maior aproximaçãoalgumas das coisas que acontecemdentro de nós. Apenas. Mas, habi-

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tualmente, não usamos estas reservas.Ao contrário, quando o homem se põea falar, isto faz porque crê que vai poderdizer tudo que pensa. Pois bem, isso éo ilusório. A linguagem não dá paratanto. Diz, mais ou menos, uma partedo que pensamos e põe uma barreirainfranqueável à transfusão do resto.Serve bastantemente para enunciadose provas matemáticas; já ao falar defísica começa a ser equívoco einsuficiente. Porém quanto mais aconversação se ocupa de temas maisimportantes que esses, mais humanos,mais “reais”, tanto mais aumenta suaimprecisão, sua inépcia e seu confu-sionismo. Dóceis ao prejuízo inve-terado de que falando nos entendemos,dizemos e ouvimos com tão boa fé queacabamos muitas vezes por não nosentendermos, muito mais do que se,mudos, procurássemos adivinhar-nos.”71

Ortega aposta, ainda, em que todo autêntico dizernão só diz algo, como diz alguém a alguém. O primeiroseria simplesmente comunicação, enquanto que osegundo supõe já um ato comunicativo. Daí a maneirade expor sua filosofia, supondo de antemão não oreceptor universal, tal como já abordamos acima, masque a linguagem é por essência diálogo, e não o monólogoque a filosofia fez durante sua história. Decorre dessaidéia, conforme se pode perceber em seus textos, umadupla posição. A primeira refere-se ao filosofar originalcomo disfarce, como língua especial que se destaca da“linguagem” vista como uma filosofia do senso comum.A segunda, de que esta linguagem metafórica, poética,da filosofia original, se transforma, com a sistematização

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da filosofia, em eleatismo, em uma linguagem dura,talvez até mais distante da razão histórica do que alinguagem comum.

Ortega é, na verdade, um inconformado com afala da filosofia sistemática, urbi et orbi, isto é, a todos e aninguém. Por isso, a forma com que expõe o homem-massa e seus demais temas não será a de um conceitoentre outros, dito ao universo, mas algo falado a umhomem concreto, real no espaço e no tempo. É preciso,portanto, ter claro que este homem não somos nós,leitores brasileiros do século XXI, mas o espanhol quelia El Sol, nas primeiras décadas do século XX. Um livrosó é bom, para Ortega, quando nos traz um diálogolatente em que sentimos que o autor sabe imaginarconcretamente seu leitor e este percebe “como se dentreas linhas saísse u’a mão ectoplástica que tateia sua pessoa,que quer acariciá-la – ou bem, mui cortesmente, dar-lheum murro.”72

Além do mais, o escritor em Ortega é o própriosedutor, ao levar para a frente do leitor do texto defilosofia essa preocupação estética. Não falar para tudoe para todos, ter o leitor em sua frente, o homem de carnee osso com quem deseja falar, com urgência73. Trata-setambém de fazer arte com temas mais profundos do queaqueles nos quais muitos escritores se embrenham parafazer mexer com precisão seus personagens sem dizer,muitas vezes, nada tão importante. Ortega quer dizer ascoisas mostrando-as se mover na frente do leitor e essa éuma ilusão a que diversos escritores pretendem chegar emuitas vezes não conseguem. Em Espíritu de la Letra,Senabre escreve um prólogo chamado El Escritor JoséOrtega y Gasset, no qual adverte:

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“Está claro que o deleite metafóricopode oferecer o risco de que o autor,arrastado pela sugestão verbal, concedaprimazia ao mero jogo de engenho etrivialidade. Ainda que não ocorra comfreqüência, ocorre às vezes a Ortega.”74

O escritor, certamente, empresta a Ortega aaproximação em círculos, narrativa, que seleciona osfatos para contá-los a seu tempo, respeitando as regrasde adequação, da tensão, próprias da arte. Mas maisimportante que isso é que o próprio caminho é um dosfrutos desse filosofar. Ao contrário de muitos filósofosque mantêm com seu método uma relação pragmática eutilitária, Ortega eleva seu caminho, seu método, aostatus de próprio fim, exatamente como o escritor faz: otexto é o caminho, o texto é a lente, a teia, o método é achegada e não um meio para se chegar a um objeto ouobjetivo parado lá na frente. Nada está parado, emOrtega. Para tanto movimento, é preciso um transporte,exatamente o que significa a palavra “metáfora”.Metáfora que, em certa medida, constitui o próprio corpodo idioma como o autor chama atenção em Unas Lecionesde Metafisica:

“(...) as metáforas elementares (...) sãotão verdadeiras como as leis de Newton.Nessas metáforas veneráveis que foramse convertendo já em palavras doidioma, sobre as quais caminhamos atoda hora, como sobre una ilha formadapelo que foi um coral, nessas metáforas– digo – vão guardadas intuiçõesperfeitas dos fenômenos maisfundamentais. Assim falamos comfreqüência de que sofremos de umpeso, de que nos achamos em uma

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situação grave. Peso, gravidade sãometaforicamente transpostas do pesofísico, do ponderar um corpo sobre onosso e pesar-nos, até a ordem maisíntima. E é que, na verdade, a vida pesasempre, porque consiste em um levar-se e suportar-se e conduzir-se a simesma.”75

Para o mal, a literatura talvez leve para opensamento de Ortega muito do que nele há deassistemático76 e de, muitas vezes, pouco explicitado.Quando esta explicitação é cobrada, o filósofo chega aocúmulo de, contra toda a tradição da filosofia, pedir aoleitor um “voto de fé”, como diz em História como Sistema(1982), solicitando que se acredite nas razões para talconclusão e sobre as quais não quer perder tempo. Tantofoco na narrativa, cobra seu preço. E a carência daexposição sistemática das suas fundamentações talvezseja o mais caro deles.

Para o pensamento de Ortega, como um todo,também a filosofia parece boa e má ao mesmo tempo,agregando o peso, a substância, a carne à sua “literatura”.Em seu pensamento, essa filosofia que parece literaturae que Ortega faz surgir de dentro do quadro geral dafilosofia, mesclando elementos de uns com outros eenfornando-os em seu próprio “sistema” (no sentidomais aberto do termo) não é arte. É outra forma deaproximação à realidade. Filosofia, quer Ortega queiraou não, é fabricação de conceito e, por isso, talvezintraduzível em metáforas, trancafiando-o, enfim, tantodo lado dos que estão mergulhados na relação utilitáriacom a linguagem, quanto daqueles que não têm como selevantar dela e se ver livres de seu peso, como os artistas,que Ortega não foi - no sentido de fazer pura ficção. O

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pensador encontra-se, então, nessa encruzilhada entreo senso comum (jornalismo), o conceito (filosofia) e ametáfora (arte).

3.8 A exigência de criaçãoOrtega pede que a vida seja feita não só como o

filósofo, mas como o artista faz sua obra: criativa,produzida a partir de decisões autônomas,“ensimesmadas” e não “alteradas”, um ensimesmamentoque, além de solidão, parece ter muito de silêncio, pelomenos em um sentido horizontal e ligeiro. Por tudo isso,se pode dizer que, no fundo, o que o pensador exige dohomem-massa não são mais que atributos de um criador(de sentido), de um artista (que faz da sua vida uma obrade arte), de um narrador, à medida que considera a vidacomo “drama”77.

Compreender o homem-massa e o homem-autêntico passa, certamente, por compreender essaexigência básica de estilo que Ortega tem para com oshomens, fabricantes de seu próprio futuro, projetos,flechas já lançadas condenadas a fazer seu própriotrajeto, com esforço e inteligência, a cada dia (homemautêntico, nobre, autônomo) ou, ao contrário, como o queamarga a vida vulgar do homem-massa (heterônomo,preguiçoso, envilecido, satisfeito), no calor dacoletividade.

A vida autêntica, para Ortega, é uma questãomoral, (aliás, a moral é uma questão vital, decomprometimento, de solidão, de estilo, vertical). Ainautêntica (da massa) é voltada para a opinião coletiva,de fora, horizontal. Essa delimitação de estilo serve tãobem para falar da obra de Ortega - de sua escrita - comoda própria filosofia do espanhol: uma filosofia com estilo,

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que cobrava um homem com estilo: solitário (mas nãosolipsista), nobre, ensimesmado, desportista, criativo. Ocontrário do homem-massa.

Roland Barthes (1915-1980), ao escrever sobre oestilo, em O Grau Zero da Escrita (2000), faz uma distinçãoentre este e a fala corriqueira, que se poderia aplicar ànoção de estilo em Ortega. Afirma que a fala tem umaestrutura horizontal, onde tudo é oferecido, “destinadoà usura imediata”, o contrário do estilo:

“O estilo (...) só tem uma dimensãovertical; mergulha na lembrançaenclausurada da pessoa, compõe a suaopacidade a partir de certa experiência damatéria... o estilo é sempre um segredo;mas a vertente silenciosa de suareferência não se liga à natureza móvel econtinuamente suspensiva da lingua-gem; seu segredo é uma lembrança encer-rada no corpo do escritor; a virtudealusiva do estilo não é um fenômeno develocidade, como na fala, onde o que nãoé dito fica assim mesmo como umsubstituto da linguagem, mas umfenômeno de densidade, pois o que semantém ereto e profundo no estilo,reunido dura ou suavemente em suasfiguras, são os fragmentos de umarealidade absolutamente estranha àlinguagem. O milagre dessa transmu-tação faz do estilo uma espécie deoperação supraliterária, que carrega ohomem até o limite do poder e damagia.”78

Ortega chegou a dizer que a realidade só pode serdita de maneira narrativa (entre outras coisas, afirmava,com isso, que a filosofia, por seu caráter conceitual, não

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tem como falar da realidade, movente e mutável). E, paranarrar, usou o ensaio, a alusão, olhou indiretamente,como o artista de Italo Calvino (1923 – 1985), em SeisPropostas para o Próximo Milênio (1997). Por razões comoessas, o leitor de Ortega pode sair do bosque em queentrou sem saber exatamente do que o madrilenho estáa falar. Muitos comentadores já alertaram para o fato deque é tão belo quanto, no fundo, intrincado o fruto deseu modo de exposição, assistemático, limítrofe àliteratura, apesar de extremamente claro. Daí resultarque, se Ortega de um lado ilumina o leitor com metáforas,essa mesma qualidade ajuda a tornar ainda mais difícilo trabalho de montar um conceito filosófico entre tantaliteratura.

Mas talvez tenha se tratado de um afastamentoaté certo ponto. De um afastamento de meio caminho,com muitas portas abertas para o mundo (demais, talvez,para o gosto dos artistas), portas por onde entrarammuitas outras luzes e vozes e que, se por um ladoauxiliaram o filósofo, por outro, cobraramexageradamente espaço em sua escrita, transformando-o em uma indefinição que a literatura, o jornalismo e afilosofia abominariam se usassem seus critérios internos.

Sobre o que pensava por escrever filosofia, numalinguagem menos hermética, em que as metáforasaparecem mais para esclarecer do que para obscurecer,recorrendo também ao fundo metafórico da próprialinguagem, diz, em O que é Filosofia?:

“Sempre acreditei que a clareza é acortesia do filósofo e, ainda, esta nossadisciplina coloca sua honra, hoje maisdo que nunca, em estar aberta e porosaa todas as mentes, diferentemente dasciências particulares, que cada dia com

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maior rigor interpõem entre o tesourode suas descobertas e a curiosidade dosprofanos o dragão tremebundo de suaterminologia hermética. Penso que ofilósofo tem que extremar para simesmo o rigor metódico quandoinvestiga e persegue suas verdades, masque ao emiti-las e enunciá-las deve fugirdo cínico uso com que alguns homensde ciência se comprazem, comohércules de feira, em ostentar ante opúblico os bíceps de seu tecnicismo.”79

Certamente que sua produção filosófica tantoganha quanto perde com a retórica. É freqüenteencontrar em Ortega tanto parágrafos e até mesmofrases em que se concentram idéias que diversos filósofosdespenderiam um grande número de páginas, quanto,também, o contrário. Temas que poderiam serexplicitados de maneira mais seca, concreta, se alargama páginas e páginas até que o escritor que habita o filósofose sinta suficientemente atendido em suas exigências deestilo.

Aqui parece estar uma questão particularmenteimportante ao se abordar um tema orteguiano. Ortega éum sedutor, um liberal, um filósofo com estilo, o quesignifica um pensador com seu próprio jeito de dizer,com seu próprio olhar, iluminando o mundo de maneiramuito mais elegante do que aquela possível pela via dafilosofia conceitual tradicional, o que ele aponta, aohomem-massa. Estilo que significa, exatamente, aquiloque Ortega representou pensando: aprofundamento,mesmo, no próprio autor, ensimesmamento, solidão,afastamento do mundo, tal como explica Barthes:

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“...o estilo (...) é como uma dimensãovertical e solitária do pensamento. (...)ele é a ‘coisa’ do escritor, seu esplendore sua prisão, é a sua solidão.”80

Solidão! O próprio fundo insubornável do serhumano, conforme Ortega. Neste sentido, o que ofilósofo espanhol vai ter com o homem-massa é, além domais, uma exigência estética. Ortega quer que o homembovino (Nietzsche, em Assim Falou Zaratustra), o homemmedíocre (José Ingenieros, em O Homem Medíocre), tenhaestilo, tenha aprofundamento em si próprio.

Em O Homem e a Gente, revela em um parágrafouma posição sobre a metáfora (e a poesia) que o colocaradicalmente de fora do núcleo duro da tradição filosóficacultivada na Idade Média e que se desenvolveu na IdadeModerna (mas que, sem dúvida, o deixa em companhiados filósofos mais antigos).

“Há muito tempo sustento nos meusescritos que a poesia é um modo deconhecimento ou, por outras palavras,que o dito pela poesia é a verdade. Adiferença entre a verdade poética e acientífica tem origem em caracteressecundários; secundários em com-paração com o fato de que tanto umacomo outra dizem coisas que sãoverdade, isto é, coisas que efetivamenteexistem no mundo de que falam.”81

Trata-se, com certeza, de uma posição maisfacilmente encontrável entre os escritores – ou um tipode escritores – como o poeta francês Saint-John Perse(1887-1975), prêmio Nobel de Literatura em 1960. Em seufamoso discurso no banquete Nobel, Perse afirma uma

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posição idêntica tanto à que Ortega pensa de Filosofiacomo à que o filósofo espanhol considerava a filosofia ea vida.

“Pelo pensamento analógico esimbólico, pela iluminação remota daimagem mediadora e pelo jogo de suascorrespondências, sobre mil cadeias dereações e de associações estranhas,enfim pela graça de uma linguagem emque se transmite o movimento mesmodo Ser, o poeta investe-se de uma super-realidade que não pode ser a da ciência.(...) Porém, mais do que modo deconhecimento, a poesia é primei-ramente modo de vida – e de vidaintegral (...) Fiel ao seu ofício, queconsiste no aprofundamento mesmodo mistério do homem, a poesiamoderna arrosta uma empresa cujoprosseguimento interessa à plenaintegração do homem. (...) Não criapérolas cultivadas, nem traficasimulacros ou emblemas, e não poderiase contentar com nenhuma festamusical (...) A obscuridade que lhereprocham não se prende à suanatureza própria, que é esclarecer, esim, à própria noite que ela explora, eque a ela cabe explorar: a da própriaalma e do mistério em que o serhumano imerge. A sua expressãosempre vedou a si mesma o obscuro, eessa expressão não é menos exigenteque a da ciência.”82

Por essa passagem se pode perceber que a formade Ortega filosofar circula mais proximamente daexposição analógica e simbólica própria dos filósofos pré-

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socráticos (ou pensadores originários) e de escritorescomo Perse, do que exatamente da exposição sistemáticafeita pelos filósofos mais conceituais. Muito embora nãose possa confundir Ortega com um poeta. Ele é muitomais coloquial, prosador límpido e parcimonioso comsuas metáforas do que seria o caso de uma intençãoestética estrita. Ortega, por essas razões (e outras) seencontra, já de partida, em uma nebulosa região dopensamento, a de um pensamento exposto de maneiracoloquial e artística, que se orienta para a perscrutação,herdeira mais legítima que o geral do pensamento doséculo XX83, da filosofia original, feita por umParmênides e um Heráclito, filosofias que, além deinsultarem, são, como é o caso de toda a filosofia original,feitas com disfarce e poesia. No caso, o disfarce refere-senão à linguagem comum, mas, numa inversão, àlinguagem da própria filosofia reinante. Como afirma oautor:

“Se disse antes que, há muitos anos,sustento que a poesia é uma forma doconhecimento, acrescento agora que,desde aqueles mesmos anos, procurofazer com que os demais percebam quea física é uma forma de poesia, isto é,de fantasia, e até, é preciso acrescentar,de uma fantasia mudadiça que hojeimagina um mundo físico diferente dode ontem e amanhã imaginará outrodiferente do de hoje. Onde efetivamen-te vive cada um de nós é esse mundopragmático, imenso organismo decampos de assuntos, de regiões e delados e, no essencial, invariável desde ohomem primigênio.”84

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Ortega trata a própria metáfora como “instru-mento mental imprescindível”85, como “uma forma depensamento científico”. Para ele, a metáfora é umprocedimento intelectual por cujo meio conseguimosapreender o que está além da nossa potência conceitual.A metáfora é um suplemento a nosso braço intelectivo,como uma vara de pescar ou um fuzil. Esse distintotratamento é o que vai fazer com que Ortega pense ametáfora como esse “suplemento intelectual” que oconceito necessita para abarcar melhor a realidade.

Neste sentido, Senabre chama atenção que, paraOrtega, escrever bem consistia em fazer continuamentepequenas erosões na gramática, ao estabelecido, à normavigente da língua. O que se chamaria um bom escritor,um escritor com estilo, seria aquele que saberia causaressas freqüentes erosões. Mas, salienta o comentador:

“O certo é que na língua orteguiana nãoexistem tais erosões se há de seentendê-las como infrações da norma;o que existe, ao contrário, é umaproveitamento fecundo das riquís-simas possibilidades combinatórias doidioma, que produz com freqüênciacriações insólitas por sua audácia e pelacapacidade inventiva que acusam, masque não constituem transgressões dosistema.”86

O comentador lembra, ainda, que na vastidão dasmetáforas orteguianas (metáforas da selva, metáforaseróticas, metáforas marítimas, imagens taurinas,imagens bélicas, entre outras), se destacam as que elededica ao lutador ou ao náufrago. O homem e sua vida, arealidade radical, segundo Senabre, “acabam por ser osreferenciais da complexa rede metafórica orteguiana”87.

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É com toda essa preocupação com a expressão que sepode colocar Ortega na tradição dos grandes retóricosna filosofia, mais do que entre os sistemáticos. Umatradição na qual se encontram Erasmo de Rotterdam,Michel de Montaigne (1533-1592) e um sem-número defilósofos renascentistas, como o italiano NicolauMaquiavel (1469 – 1527) e que mereceriam de Descartes,e outros, o insulto e o desprezo. Para o racionalistafrancês, a retórica é a corrupção da lógica; a falta demétodo, a perda do caminho das idéias claras e distintas,o que, para Ortega, nunca pareceu tão claro nem tãodistinto, mas um filosofar hermético e, no mínimo,descortês.

Junta-se, ainda, a dois outros grandes retóricos,aplicados, como ele a, muitas vezes, defender oindefensável. Luciano (125-192), na antigüidade latina deforma satírica, defende as moscas em seu O Elogio daMosca; Erasmo, a loucura em O Elogio da Loucura (1999).De uma certa forma, Ortega pode ser colocado nessemesmo grupo ao usar as regras do jogo retórico, literário,para defender idéias a princípio difíceis de se defenderpelas vias mais normais, um tipo de filosofia que secomunica, que, paradoxalmente, também se abre para odebate com o senso comum, e freqüentemente banidado reino da filosofia por essa ousadia.

No caso específico, Ortega fará, como umNietzsche (1844-1900), ou um Zaratustra, o discursocontra uma longa tradição coletivista - quase toda ahistória do pensamento ocidental – da mesma maneiraque Erasmo, Luciano, Maquiavel e Nietzsche, os quase-hereges, ousados defensores, via quase-literatura, viametáfora, via retórica, o que eticamente parecia inviável,mas que esteticamente não cometia nenhum pecado.

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3.9. A filosofia como gênero literárioMas que relações há entre a filosofia e a literatura,

a ponto de alguns filósofos, como Ortega, utilizarem umalinguagem da arte para sua expressão? Será a filosofiaum tipo de literatura? Como diz o historiador ChristianDelacampagne, em História da Filosofia no Século XX (1997),se levarmos a sério certa leitura feita, principalmente,por Richard Rorty (1931 - ), ela não passa de uma formade “conversação”, sem nenhum acesso privilegiado aoverdadeiro e, por isso, mesmo, “livre para ir aondequiser”88. Para este autor, se a filosofia sobrevive, “só podeser como gênero literário, permitindo a quem se dedicaa ela expressar a sua personalidade, e ao seu leitorexperimentar um prazer estético”89.

Não que esta seja a intenção de Ortega, mas, comcerteza, este é também um dos efeitos da leitura de suasobras, o que dá ao autor um ar muito contemporâneo.Senabre, em Espíritu de la Letra, afirma que Ortega fazliteratura enquanto filosofa, que utiliza metáforas,monta cenários, obras de um escritor. Ortega, assim,poderia servir de exemplo de um filósofo-escritor e, nestesentido, representaria uma boa parte dessa filosofia querecorre a outros caminhos que não o dos conceitos, parase expressar, muitas vezes reconhecida em FriedrichNietzsche, Michel Foucault (1926-1984), Paul Ricoeur(1913-2005), Gilles Deleuze (1925-1995), Martin Heidegger(1889-1976), Jean-Paul Sartre (1905-1980) e outroscontemporâneos, todos eles também uma mescla defilósofos, historiadores, ensaístas, sociólogos, escritores,em maior ou menor grau, recorrendo a uma forma deconversação sobre temas como a razão, a existência, aloucura, a linguagem etc, já não mais puramenteconceitual, sistemática, mas, como Ortega, antes demuitos deles (e certamente com muita influência

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nietzscheana, como os próprios), recorrendo a um estilo,a uma literatura.

Assim como ocorre em muitos textos dessesautores citados acima, o filosofar de Ortega certamentese poderia identificar como uma conversação livre sobreos mais variados assuntos, mesmo que ele tenhaestendido, devido à sua própria concepção de filosofia -frontalmente avessa à “barbárie do especialismo” - atemas não propriamente filosóficos. Isso porque, paraOrtega, não há tema filosófico, estritamente. A filosofiaé que é um olhar privilegiado que pode e deve serapontado às coisas. Por essas razões, escreveu tanto sobreVelázquez, Goya e a literatura de Pío Baroja, quanto sobremolduras de quadros ou uma cadeia de montanhas nointerior espanhol.

O que importa, no fundo, não são os temas, maso que chamava de “salvar as circunstâncias”, montandouma filosofia de encantamento não apenas pelo poderde convencimento, mas auxiliado pelo arrasto feito pormetáforas que abrem os olhos do leitor para receber umaespécie de visão, como afirma Senabre:

“...O traço mais característico do estiloliterário de Ortega (é sua) extra-ordinária riqueza metafórica, compará-vel apenas, na prosa contemporânea, àde Ramón Gómez de la Serna.Constitui, na verdade, a metáfora apotência mais fértil, contínua ebrilhante do escritor, e resulta difícilnos deparar com uma página sua quenão contenha várias mostras.”90

No entanto, em seu afã de seduzir o leitor, omesmo “Lector!”, com que, em tom sangüíneo, abre seu

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Meditaciones del Quijote (1914), Ortega acaba seduzido, asi próprio, pelo poder de dizer o que quer. Dessa maneira,muitas vezes compromete o entendimento, quando nãomuda de opinião para não perder a boa frase. Razõescomo esta fazem com que, muitas vezes, o autor seja vistomais como um brilhante divulgador de filosofia do quepropriamente por um dedicado filósofo tradicional, aocorte dos filósofos clássicos, puros fabricantes deconceitos.

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4. A TRAIÇÃO METAFÍSICADO HOMEM-MASSA

4.1. A busca pela orientação radicalEm Unas Leciones de Metafísica, Ortega afirma que

todos os seres humanos estão imersos em algum sistemametafísico, seja ele autônomo ou heterônomo, herdadoda tradição ou pensado por conta própria. Metafísica é,assim, algo que o homem faz quando busca umaorientação radical. E por que faz? Porque o homem édesorientação, ao chegar ao mundo sem saber como nempor que, está radicalmente desorientado sobre tudo aoredor, inclusive quanto ao que ele próprio é. Nessasituação de precariedade fundamental, ele precisa de algoque o oriente e recebe essas orientações, de formaheterônoma, na religião e na tradição. Esse algo com oque pode se orientar lhe dá uma espécie de segurançacom a qual pode seguir a viver. Metafísica consiste, pois,em o homem buscar uma “orientação radical” devido aofato de que sua vida é radical desorientação, e isso nãoporque ao homem aconteça desorientar-se, ou perder-se na vida, mas porque sua situação é constitutivamentea de estar perdido.

“A metafísica é algo que o homem faz eeste fazer metafísico consiste em que ohomem busca uma orientação radicalpara sua situação. Isso parece indicarque a situação do homem é uma radicaldesorientação, ou o que é o mesmo, queà essência do homem, ao seu verdadeiroser não pertence como um dosatributos constitutivos o estarorientado, se não que, pelo contrário, épróprio da essência humana estar ohomem radicalmente desorientado.” 91

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E se está desorientado, precisa de um mapa, comotodos os desorientados. Este mapa, que se chamaMetafísica, pode já estar pronto, feito pela tradição, o qualele assume de maneira mediada, heterônoma, dado pelagente... Ou pode feito de maneira autônoma, refletida,pensada radicalmente. Quando o mapa é construído apartir da reflexão se chama Filosofia. Metafísica efilosofia se confundem em Ortega, já que, para opensador espanhol, “substituindo saber por orientação,teríamos que Metafísica seria o saber radical.”92

Todos os seres humanos têm um mapa do Ser nacabeça. Autônoma ou heteronomamente, ele estáfazendo metafísica, orientando-se para se livrar da puradesorientação em que consiste. E esse desenhar o mapaque o orienta traz uma idéia ainda mais funda e primeiraque a idéia de saber, de conhecer, como em geral a temos.Por isso, a filosofia não avança na mesma direção daciência, mas ao contrário dela, para trás, para o fundo,para baixo, na medida em que consiste substancialmenteem pôr em questão o que até ainda não havia sido postoem questão. Por isso, para Ortega, o avanço da filosofiaconsiste no contrário da ciência: em fazer questão do queaté então não havia sido questionado.

O homem, que consiste substancialmente emsentir-se perdido, tenta construir alguma orientação esegurança ao seu redor e cabe à filosofia, sempre eparadoxalmente, repor a desorientação radical contra aorientação artificial e heterônoma construída pelosmapas metafísicos heterônomos, usos, os costumes, astradições. É a idéia orteguiana de filosofia comoparadoxo, de opinião contrária à opinião que dá essa falsasegurança à humanidade, numa falsificação daverdadeira condição humana de desorientação, de estarperdido. As ilusórias convicções vindas de fora, do

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entorno social, das circunstâncias, fazem com que oshomens fujam de seu autêntico ser (desorientação),substituindo-o por uma personalidade convencional93

(falsamente orientada). A função da filosofia e sua tarefana relação com o homem-massa é repor a insegurança,recolocá-lo na água para que, com as próprias forçasretome ou inicie o movimento natatório de manter-seflutuando por conta própria.

Quando olhada mais atentamente, nossa vida nosrevela que somos aquilo que fazemos de nós mesmos. Ese a vida é isso o que fazemos, é necessário perguntar-nos por que fazemos uma coisa e não outra. É precisocuidar de nossa vida e descobrir constantemente o quefazemos de nós próprios, o que nos faz autênticos(autônomos), ao invés de massa (heterônomos). Oalienado, diz Ortega, é como um homem vazio, semautêntica vida, envergando uma máscara feita não apartir de suas próprias perguntas e buscas de orientaçõesradicais; e sim do que a coletividade prega em seu rostoe que é assumido por ele.

Este homem, com máscara heterônoma ou não,vive em um mundo que o constitui, já que todo homem éum binômio eu-circunstância. A vida é uma margem depossibilidade dentro do mundo, no qual escolhemos ou,melhor dizendo, somos forçados a escolher, dentro delimites que são os próprios limites impostos pelascircunstâncias, como veremos adiante. Viver, portanto,segundo Ortega, não é entrar, porque se quer, em umlugar previamente escolhido. Viver é este estar náufragono mundo:

“Em suas linhas radicais, a vida ésempre imprevista. Não nos anun-ciaram antes de entrar nela – em seupalco, que é sempre um concreto edeterminado -, não nos prepararam.” 94

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Como a vida nos é dada como problema, ela é algoque temos que resolver nós mesmos. Quando deixamosque os outros resolvam nossa vida, estamos agindo comohomens-massa, heterônomos, inautênticos. É preciso,então, descer ao fundo do que somos nós, sem recorreràs leis das superfícies, à lei da “gente” para dar contaradical de nós mesmos. Nesta profundidade em quechegamos é que aparece o viver como forçados a decidirpor nós o que vamos ser. Então, de um lado (heterônomo,mundo da alteração), há ocupações que nos vêmmecânica e automaticamente impostas, por outro(autônomo, ensimesmado) a decisão feita por nósmesmos sobre nossa vida, sobre o que somos e,principalmente, sobre o que vamos ser.

O ser humano, para Ortega, consiste, mais do queno que ele é, no que vai ser, no que ainda não é. “Pois esteessencial abissal paradoxo é nossa vida.”95 A vida, dizOrtega, é uma atividade que fazemos para a frente,projetada, como projétil já lançado. Agora, é importanteque este fazer a si mesmo ocorra com atenção, sob penade ser feito de maneira heterônoma. É preciso estaratento, a todo instante, a esse fazer, é preciso saber a quese ater. Ter consciência clara de nós mesmos exige quedirijamos a atenção a nós mesmos. Essa atenção é aprópria consciência e uma capacidade que nos diferenciados demais seres existentes (lembramos que Ortegaconsidera haver a diferença radical entre as coisas, quesimplesmente existem, e os seres humanos, que vão-sendo à medida que interam-se de si próprios, que fazem-se). Muito embora faça a si mesmo, esse homem que faz-se não está separado das coisas ao redor. Pelo contrário,toda a vida é circunstancial e viver é estar entregue a umacircunstância que é suporte e resistência, com o qual setem que contar em qualquer decisão.

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“Mas como, além disso, é circuns-tancial, é estar o homem, queira ou não,entregue a um contorno determinado,teremos que a vida é dar-me conta,inteirar-me de que estou submerso,náufrago em um elemento estranho amim, de onde não tenho mais remédiodo que fazer sempre algo parasustentar-me nele, para manter-meflutuando. Eu não me dei a vida, mas,ao contrário, me encontro nela semquerê-lo, sem que se me tenhamconsultado previamente nem se metenham pedido licença. Mas isso que,sem contar comigo, me é dado – a saber,minha vida –, não me é dada feita. O queme é dado ao me ser dada a vida é ainexorável necessidade de ter que fazeralgo, sob pena de deixar de viver. Masnem sequer isso: porque deixar de viveré também um fazer – é matar-me –, nãoimporta com que arma, a Browing ou ainanição. Vida é, pois, um ter sempre,queira ou não, que fazer algo. A vida queme foi dada, resulta que tenho que fazê-la eu. Me é dada, mas não me é dadafeita, como ao astro ou à pedra lhe édada sua existência já fixada e semproblemas. O que me é dado, pois, coma vida é que-fazer. A vida dá muito quefazer. E o fundamental dos que-fazeresé decidir em cada instante o que vamosfazer no próximo. Por isso, digo que avida é decisiva, é decisão. Temos, pois,estes três caracteres: 1. a vida se interade si mesma; 2. a vida se faz a si mesma;3. a vida se decide a si mesma.” 96

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Ortega adiciona um quarto elemento a esta lista:a vida é constante e essencial “perplexidade”. Essaperplexidade deve-se em boa parte ao fato de que ohomem não se encontra em si e por si, aparte e sozinho,mas que se encontra sempre em outra coisa, dentro dealgo, rodeado do que não é ele, em um contorno, em uma“circun-stancia”. O filósofo lembra que costumamoschamar a esse contorno vital de “mundo”, ou seja, todoaquilo que está ao redor, o que envolve por todos os lados:“isto quer dizer que ao encontrar-me me encontroprisioneiro”97. Essa prisão, no entanto, pode até mesmotirar-me de mim, assim como aos outros animais, quevivem a pura exterioridade. Essa atenção total àcircunstância é mais “natural” que o contrário. É preciso,então, voltar-se para esse “eu” que faz parte dacircunstância, sem se perder, nem em uma, nem emoutra ponta do binômio de que se constitui o sujeitoorteguiano.

“(...) estou atento à circunstância, epara encontrar-me tenho quesuspender essa normal atenção aocontorno e buscar-me nele, pescar-meentre as coisas desatendendo estas ereparando em mim. É muito impor-tante esta advertência de que aconsciência de mim mesmo é, essen-cialmente e não acidentalmente,posterior à minha consciência domundo, ou que é igual, que apenasreparo em mim quando me desatendodo mundo”. 98

É dentro do mundo, deslocado da atenção normalà circunstância, que o homem vê que a vida deixa umamargem de possibilidades, o que dá a ela um traço de

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dramaticidade, afinal, viver não é estar por gosto nesteou naquele lugar, mas nossa vida começa por ser aperpétua surpresa de existirmos náufragos em umespaço e um tempo que não escolhemos e dentro do qualexercemos, no entanto, nossa paradoxal liberdade.

4.2 O homem como paradoxoO homem, como paradoxo que é, vive

paradoxalmente sua liberdade e paradoxalmente ascondicionantes das circunstâncias ao redor. Nem umacoisa, simplesmente, nem outra, mas um binômio, umaduplicidade. Metafísica autêntica é a vida voltada àcompreensão desse paradoxo e o não-contentamentocom o dado. Homem autêntico é esse ser mergulhado acompreender esse paradoxal ser que ele próprio é.Homem-massa, o que aceita placidamente a explicaçãoexterna, que adere aos sistemas metafísicos construídosao seu redor, simplesmente aceito, mas não vivido comoperplexidade, como desestruturação, como naufrágio,como peregrinação. O homem é o peregrino do ser, dizOrtega, o que está andando, perplexo, por dentro do ser,pura metafísica e heterogeneidade, mesmo dentro docorpo no qual se move. Entre todas as coisas existenteshá perfeita homogeneidade, diz Ortega, mas não entre ohomem e as coisas ao redor. O homem não é uma coisa.

“(...) eu não sou meu corpo ou, pelomenos, não sou só meu corpo. ¡Quediabo, eu, o eu de que costumo falar emminha vida, o eu que vive em minhavida, é algo único, inconfundível eheterogêneo a tudo! Eu não sou umpedaço de matéria, mas não porque emvirtude de estas ou outras divagaçõesopine que estou constituído por algoimaterial, chame-se alma, espírito ou

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como se queira. Não é por isso. Talvezopine que vocês estejam tambémconstituídos por algo imaterial, quetêm também alma, espírito, e, noentanto, eu sou inconfundível comvocês e radicalmente heterogêneo devocês. ¡Qué diabo, eu não sou mais queeu, eu sou único, não existe outro queseja eu, nem mesmo outro eu!” 99

O homem, como heterogeneidade, não é, noentanto, “espírito”. Homogêneo, lembra o filósofo,significa, do “mesmo gênero” e o homem não é, paraOrtega, do mesmo gênero das coisas ao redor, da matéria,por exemplo, o que não significa que seja espírito, o queo faria como outra homogeneidade, como igual a outrogênero. Para Ortega, o homem é heterogeneidade nosentido de que é único, de que não é mais que ele próprioe consciência dele próprio. Pode-se, no entanto, viveralienado (fora de si próprio, de seu próprio gênero) paraviver igual ao gênero que lhe rodeia, de maneirainautêntica, em vez do que autenticamente se é. Comoser único, a essência de mim mesmo é minha e feita pormim à medida que faço a mim mesmo, de formaheterogênea, única, autêntica. No entanto, adverteOrtega:

“Eu não sou mais que um ingredientede minha vida: o outro é a circunstânciaou mundo. Minha vida, pois, contémambos dentro de si, mas ela é umarealidade distinta de [ambos]. Eu vivo,e ao viver estou na circunstância, a qualnão sou eu. A realidade de meu eu é,pois, secundária à realidade integralque é minha vida; encontro aquela – ade meu eu – nesta, na realidade vital. Eu

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e a circunstância formamos parte deminha vida. Agora sim que podemossem erro assegurar que eu formo partede algo, a saber, de minha vida. Acircunstância – no caso presente epreciso: este quarto –, é a outra partede minha vida. Era um erro dizer queeu – parte de minha vida – formo parteda outra parte de minha vida que é oquarto.100

Agora, em que sentido o homem faz metafísica,enquanto vive, mesmo dentro de uma casa, de um quarto,de uma sala? No sentido de que ele próprio assume apreocupação com o fazer-se a si próprio, com o futuro,na medida em que está voltado para o futuro, como flechajá lançada que tem que fazer seu caminho, vive nummundo incerto, um mundo em que não se sabe nada,nunca, do que virá a ser. E esse vir a ser (ou o vir a nãoser) é a própria preocupação do homem já que ele viveem um mundo que não é apenas necessidade. O homemnão sabe o que é e o que são as coisas, pois um mundoem que o ser é sabido se compõe apenas de necessidades.O mundo da filosofia racionalista é um deles.

Essa reflexão, sobre o que se é, é inevitável, é vital.A metafísica (a filosofia) é vital ao homem autêntico eaquele que não filosofa apenas anda irreflexivamente nomundo das circunstâncias. Daí que, em Ortega o insultoao homem-massa, ao homem-inautêntico, tem umsentido pedagógico, inclusive, de mostrar que o humanoestá exatamente nesse fazer-se e nesse não aceitar omundo pronto, circunstância pura, mecânica eheterônoma. O insulto ao homem-massa é a próprialinguagem da filosofia, na medida em que a filosofia é alinguagem de homens mergulhados na tarefa de fazer-

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se de dar sentido a si próprios, ao invés de aceitar aopinião (doxa) alienígena. Há homens voltados aconstruir sentido e outros que apenas querem recebê-los, como se fossem frutos naturais que brotam nomundo, na circunstância ao redor – vivem em estado denatureza, parasitariamente, partilhando a filosofia dalinguagem comum.

Quando a linguagem comum falha, o homemsente necessidade de construir outra, chamada filosofia.Essa é a tradição de dizer as coisas de outra maneira,contra a insuficiente doxa, e o seguro mundo dasopiniões, passando a viver na insegurança dosproblemas. Nesse momento, o homem suspende seutrato meramente corporal com o mundo e passa a ter umtrato intelectual com ele, dimensão da vida a que elechama de “contemplativa”. Mas logo nessa vidacontemplativa, o homem vê que precisa construir, precisafazer, e vê o pensamento transformado em um fazertécnico especial, primeiro coletivo (a história dopensamento), depois solitário (seu próprio pensamento).Ocorre que o caminho de um a outro ponto éextremamente difícil, o que faz com que a maioria secontente com as primeiras respostas ao que nãocompreende.

“Mas temos aqui que, depois defazermos a nós mesmos esta perguntana radical solidão que é a vida efetivade cada qual, a primeira resposta que ohomem busca não a busca em simesmo, não se ocupa em fazê-la ele,senão que tem a tendência a encontrá-la já feita em seu entorno social. Depoisde perguntar-se a si mesmo perguntaaos outros homens, ou seja, pergunta

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desde sua própria memória, onderetém idéias recebidas do contorno quetenham lhe sido insufladas na escola,nas conversas, em leituras. Não busca,pois, averiguar por si primeiro o que éa coisa se não que se contenta primeiroem averiguar o que sobre ela ‘se diz’. Osujeito deste dizer é o que temoschamado ‘a gente’: o contorno social, opersonagem coletivo, semindividualidade, que não é ninguémdeterminado e por isso mesmoirresponsável. Notem a transmutaçãoque isso significa. A angústia e apergunta inicial que é disparada poraquela são exclusivamente minhas:vivo-as e as sou por minha contaprópria, apenas eu comigo; mas agoraadmita em mim como resposta umaidéia que não é minha, que não me fizeu senão que a tomo já feita doambiente. Em suma, que suplanto meueu individual pelo eu social, deixo deviver eu minha vida autêntica e faço queesta se conforme segundo um moldebruto, comum, anônimo. De serindividual passo a ser comunal, praticovital comunismo na ordem dopensamento.”101

Esse ser comunal que responde às inquietaçõesdo indivíduo é inautêntico em relação a ele, pelo fato deque não é ele, mas a “gente”, ninguém concreto ouespecialmente, mas massa. Para o filósofo espanhol, osprincipais elementos desse sair de si próprio ao eu socialsão os apresentados a seguir:

“1º. A desconfiança com relação ao meucontorno social tende a tranqüilizar-seem uma confiança, pelo visto, existente

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dentro de mim, nas ‘pessoas’ (a gente).Desconfio da natureza e confio nasociedade, na humanidade.

2º. Esta confiança implica por minhaparte a crença de que há sempre umrepertório de respostas em meucontorno social; por exemplo, que eunão sei o que é a terra, mas que aspessoas sabem.

3º. Por sua vez, isso significa que ohomem ao viver se dá conta de que estásempre em uma circunstância oumundo não apenas natural, de corposminerais, vegetais, animais, mas queflutua ao mesmo tempo sempre emuma cultura preexistente. Cultura é esterepertório ambiente de respostas àsinquietudes da vida autêntica ouindividual.

4º. Seja pelos motivos que forem, bemou mal fundados, eu tendo a abandonarminha própria vida, tendo a fazer-meirresponsável por ela, a suplantar meueu por um eu comum e inautêntico.

5º. Que esta resposta das pessoas, dovulgo, do comum, que admito, uma dasduas: ou a admito repensando-a inte-gralmente e então propriamente não arecebo senão que a recrio com o meuesforço pessoal fazendo-a renascer deminha própria evidência; ou a admitosem revisá-la, sem pensá-la, portanto,a admito precisamente porque eu não apenso, mas por que as pessoas pensam,porque assim se diz. O fenômeno deabandono no eu social, de não levar-se

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e sustentar-me a mim mesmo, se nãode cair, como em um colchão nacomodidade do ‘se diz’, das pessoas, da‘opinião pública’, da massa, que agoraanalisamos é o que acontece nesteúltimo caso . Mas então, note-se:

6º. Há uma grande incongruência entrea pergunta e a resposta. A pergunta ‘queé a terra?’ a tenho pensado e sentido eucom sua efetiva e intransferívelangústia, mas a resposta: a terra é umastro – ou coisa parecida – não a tenhopensado nem repensado eu se não queme repito com ela o que ‘se diz’, e comeste repetir entro a formar parte das‘pessoas’, as quais são ‘ninguém’. Eu,pois, viro ninguém, que é o que,praticando um calembour* com seunome, fazia Ulisses quando queriaocultar-se ou desaparecer.

7º. Com isso se fecha o círculo desteprocesso primário: me faço a perguntaem vista de que a terra habitual se metransformou em um não ser, me feznada; mas ao recorrer-se ao que sedisse, recorro a ninguém.”102

Para Ortega, em todas as épocas funciona essesistema de ações essenciais constitutivas da vida. Noentanto, em certos períodos há uma preponderância deumas ações sobre outras. Em alguns deles o homem volta-se a si mesmo, enquanto que, em outros, abandona-seao coletivo. Conforme o filósofo, quanto mais voltamosatrás na história humana fica mais fácil perceber, comona vida primitiva, o homem era mais voltado ao social ecoletivo do que ao pensamento próprio, individual,autêntico. Nesses tempos remotos, o que se diz, a opinião

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estabelecida, a tradição, dominam por completo. Então,começa a ocorrer uma mudança radical.

O indivíduo, que submetia sua convicção àtradição, começa a fundar sua verdade a partir de sipróprio, passando do tribunal da tradição para o tribunalda razão. Por isso, Ortega diz que a razão aparece, já nosprimórdios da civilização, como um imperativo a cadaum recorrer a si próprio e não à tradição. A tradição, nestesentido, é, para Ortega, um imperativo de esconder nossaopinião de nós mesmos, dissolvendo-nos no coletivo.Claro que todos nós temos que viver encaixados em ummundo social, coletivo (crenças), mas podemos edevemos ter nossas idéias. O certo, pelo menos comopensa Ortega, é que cada época pende mais para a razãoou a tradição, “entre a vida autêntica dos indivíduos e avida convencional, tradicional, comunista.” 103

Ortega pensa que é impossível ao homem, ao terrazão, viver sem uma interpretação da vida. A cada passoela precisa ser justificada, autêntica ou inau-tenticamente. E como ao homem é impossível viver nessadesorientação radical, que é sua vida, sem procurarorientação, ele buscará um plano, um mapa. Precisa deuma figura ou esquema da coisa que é sua vida. Esseesquema, próprio ou vindo de fora, da tradição, é omundo e a orientação, metafísica, própria ou não(metafísica do homem autêntico e a do homem-massa).

Por isso, a metafísica não é ocupação de filósofos,mas de todos os que vivem. Não se vive sem metafísica.A metafísica é algo que o homem não pode deixar defazer, desde que pensa, e todos os demais fazeresresultam de alguma posição em relação a ela. Metafísica,então, não é uma ciência, mas “construção do mundo”104,algo inevitável ao homem, solitário esforço de orientaçãoante a desorientação radical da vida. Conforme o

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espanhol, vivemos uma época de tempos de homens-massa, de vida inautêntica, vulgar, tempos de umatraição, a traição do caráter de peregrino do ser que écada homem, a traição do projeto humano comovislumbre e possibilidade de autenticamente fazer-se asi próprio dentro de uma circunstância que em suainstância mais ampla é o próprio ser: a traição metafísicado homem-massa.

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5. O INSULTO ORTEGUIANOAO HOMEM-MASSA

5.1 A estrutura do mundoe a filosofia como anábaseAntes de qualquer coisa, o homem é alguém que

está em um corpo, circunstância primeira e irremediávelfato que decide a estrutura concreta do mundo.Irremediável, mesmo, afinal “o homem se acha, para todaa vida, recluso no seu corpo”105 , motivo pelo qual precisalevá-lo em conta em tudo o que faz, vive, pensa etc. Ohomem vive infuso, recluso em seu corpo, o que faz dele,inexoravelmente, um personagem espacial, pondo-o,sempre, em um lugar e excluindo-o dos demais. Ohomem está condenado a estar num “agora” e num“aqui”.

Este fato traz algo absolutamente decisivo para aestrutura do mundo, pois como trata-se de um aqui,também se estrutura de maneira referente, de tal formaque há sempre um lá, junto com o aqui. Assim, o mundonos vem hierarquicamente, em lugares ao lado, abaixoou acima, como por exemplo o “Pai nosso que estás nocéu”, ou o pecador no fundo do Hades, no inferno, oinferior, o lugar mais baixo. O homem vive ine-vitavelmente em um mundo regionalizado em que ele etodas as coisas estão em algum lugar. Para Ortega, osconceitos também são determinados por um conteúdoconcreto, um lugar onde está aquele que está pensando,não determinado pelo lugar em que pensa, mas tendo quecontar com essa circunstância, a favor ou contra, dealgum modo presente, já que todas as coisas consistemem servirem-nos para ou nos impedir. Em sua filosofia

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raciovitalista “todo o conceito é a descrição de uma cenavital”106

As coisas formam, no mundo de Ortega, “campospragmáticos, enquanto serviços positivos ou negativos,numa “arquitetura da serviçalidade”, tais como a guerra,a caça e a festa. O filósofo define assim sua última leiestrutural do mundo: o homem vive em um âmbitoocupado por campos de assunto, tudo o que nos apareceestá em um campo:

“Nosso mundo está organizado emcampos ‘pragmáticos’. Cada coisapertence a algum ou alguns dessescampos, em que articula o seu ser paracom os outros e assim sucessivamente.(...) Nossa relação prática ou prag-mática com as coisas, e destas conosco,mesmo sendo corpórea, ao cabo não ématerial, mas dinâmica. Em nossomundo vital, não há nada material: meucorpo não é uma matéria, nem o são ascoisas que se chocam como ele. Aquelese estas - diríamos para simplificar- sãopuro choque e, portanto, purodinamismo.” 107

O “mundo” é também o lugar onde aparece ooutro, do qual primeiro temos apenas um corpo, nadamais. Mas é um corpo com sua forma peculiar, que semove, que maneja coisas, um corpo do outro que nosenvia sempre os mais variados sinais. Na presença desseoutro, o eu-circunstância que somos tenta sair de suasolidão, conforme Ortega, querendo dar nossa vida ereceber a sua, numa vida interindividual, nós – tu – eu.

Começa que o corpo do outro aparece para mimcomo realidade, porém que no outro corpo habite um

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quase-eu é apenas uma interpretação minha dessa“realidade de segundo grau”. O problema, numasociedade, segundo Ortega, estaria em que normalmentevivemos essas “presunções de realidade”, essas“realidades de segundo grau” que são os outros, como sefossem realidades radicais. Entre eu e os outros existe avivência de interpretações da realidade inventada pelomeu contorno social e o acúmulo da tradição humana,coisas que não são apenas presuntivas como são ilusórias,que ouvimos nomear, definir e justificar pelos outros semque tivéssemos parado em nossa solidão a pensar por nósmesmos essa realidade. Damos por autênticas everdadeiras realidades que não passam pela nossareflexão.

“Na solidão o homem é a sua verdade –na sociedade tende a ser sua meraconvencionalidade ou falsificação. Narealidade autêntica do viver humano,está incluído o dever da freqüenteretirada para o fundo solitário de simesmo. Essa retirada (...) é o que sechama, com um nome amaneirado,ridículo e confusionista, filosofia. Afilosofia é retirada, anábasis, acerto decontas consigo mesmo, na pavorosanudez de si mesmo, diante de simesmo.” 108

Descoberto, desnudar, alétheia, é - como emHeidegger - a verdade em Ortega. Esse descobrir tem aver com a nudez e com a solidão, com odesmascaramento e a retirada das cascas de usos dasociedade sobre o eu-circunstância. Esse indivíduo quese descobre a si mesmo, que se põe a nu é homem-autêntico, aquele que faz a crítica da vida convencional

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e, muito especialmente, a crítica de sua própria vida,levando sua vida ao “tribunal da vida autêntica, da suainexorável solidão.”109 O homem-massa, ao contrário, éincapaz disso, é incapaz de solidão e vive no mundo emcompleta alteração.

De uma certa maneira, o filósofo (lembremos queeste filósofo não é o acadêmico, mas todo aquele quetoma para si a tarefa de pensar sobre o que ele próprio é)usa máscaras que o retiram da praça pública, do palcodo senso comum, para um palco privado onde ele, ao falarsobre si mesmo e sobre s coisas ao redor, desnuda-se,ensimesmado, mais verdadeiro. Assim, Ortega define seuprojeto de concepção de uma Sociologia radical: “estamoscitando diante desse tribunal, que é a realidade daautêntica vida humana, todas as coisas que se costumamchamar sociais.” 110 O homem-massa é uma delas. E estetribunal é a razão vital, histórica.

A “reciprocidade” é o primeiro fato que se podechamar de social, já que não se pode ser recíproco comuma pedra ou um animal. A condição da sociedade é areciprocidade humana, porque o outro é como “eu” emcertos caracteres gerais. Por isso, para Ortega, falar deum homem fora de uma sociedade é impossível, porqueo homem, embora seja solidão, não aparece na solidão: ohomem aparece na sociabilidade com o outro,aparecimento que pode ser autêntico ou inautêntico(minoria ou massa). O nosso viver é na verdade umconviver, um viver com os outros, não numa alteridade(como em Bubber ou Levinas), mas numa nostridade (denós). Decorrem, no entanto, algumas questõesimportantes, desse dado primeiro e que se referem acomo vivemos nossa autenticidade:

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“Como esse mundo humano ocupa oprimeiro termo na perspectiva do meumundo, vejo todo o resto deste, e aminha vida e a mim mesmo, através dosOutros, d’Eles. E como eles, em tornode mim, não cessam de atuarmanipulando as coisas e, sobretudo,falando, isto é, operando sobre elas, euprojeto na realidade radical da minhavida tudo quanto eu os vejo fazerem eos ouço dizerem – com o que aquelaminha realidade radical, tão minha esomente minha, fica coberta, aos meuspróprios olhos, com uma crostaformada pelo recebido dos outroshomens, por suas habilidades e dizeres,e me habituo a viver normalmente deum mundo presuntivo ou verossímil,criado por eles, mundo que costumodar, sem mais nada, por autêntico e queconsidero como a realidade mesma.” 111

Nossa relação social é constitutivamenteperigosa, afinal o tu não pode ser visto apenas de maneirapositiva, mas também negativa, o que ocasiona luta echoque próprios da sociedade. Nessa tensão com osoutros tus, o eu também vai se constituindo, de talmaneira que “o teu talento matemático revela que eu nãoo tenho”112 e vice-versa. É num mundo de tus que se vaimodelando o eu, o que sou e o eu se descobre como umdos tantos tus, embora distinto deles no que sabe fazer,no que possui ou não possui. São caracteres quedesenham o autêntico e concreto perfil de mim mesmo,como um alter tu. Daí Ortega achar necessário “virar doavesso” a idéia de Edmund Husserl de que o tu é um alterego. Para o espanhol, o ego é que nasce de um alter tu,embora “não na vida como realidade radical e radical

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solidão, mas nesse plano de realidade segunda que é aconvivência.” 113

Conforme Ortega, num ou outro grau se vive umadupla vida, cada uma delas com sua ótica e perspectivaspróprias. Observando-se ao redor pode-se perceber, dizo autor, que o mesmo acontece aos outros, mas em cadaum em doses diferentes:

“Há quem não viva quase nada, senão apseudo-vida da convencionalidade, ehá, em compensação, casos extremosem que entrevejo o Outro ener-gicamente fiel a sua autenticidade.Entre ambos os pólos aparecem todasas equações intermédias, pois que setrata de uma equação entre oconvencional e o autêntico que em cadaum de nós tem cifra diferente (...)Conste porém, que até mesmo no casode máxima autenticidade o indivíduohumano vive a maior porção de sua vidano pseudo-viver da convencionalidadecircundante ou social (...) esse mundoque me é humanizado pelos outros nãoé meu autêntico mundo, não tem umarealidade inquestionável; é somentemais ou menos verossímil, ilusório emmuitas de suas partes e me impõe odever, não ético, mas vital, de submetê-lo periodicamente a depurações, a fimde que as suas coisas fiquem postas noseu ponto, cada uma com o coeficientede realidade e de irrealidade que lhecorresponde. Esta técnica de depuraçãoinexorável é a filosofia.” 114

Em sociedade, no conviver com o mundo dosoutros, não vivemos, mas “pseudo-vivemos”. Para o autor,

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a expressão tradicional de que o homem é um animalsocial é um obstáculo para a constituição de uma firmesociologia. No sentido tradicional, entende-se como umanimal social, um animal político. Daí a tendênciaequivocada, segundo Ortega, de se interpretar demaneira otimista as palavras “social” e “sociedade”, emque o tu seja visto, primeiro como realidade secundária,não-radical e, segundo, não como perigo. Para ele, todaa sociedade seria, ao mesmo tempo, “dissociedade”,convivência de amigos, mas também de inimigos, paradizer depois que “como se vê, a sociologia rumo à qualdirigimos nossa proa é muito mais dramática que todasas precedentes.”115 Trata-se de uma sociologia de basesraciovitais, em que os conceitos de mundo e sujeito sãoproduto de um aprofundamento para além do cogitocartesiano, racionalista, até a mais radical das realidades,a individual, a minha vida. Ortega faz sua fun-damentação da sociologia não em torno do objetosociedade, mas do objeto que, segundo ele, em umafilosofia radical tem que ser sempre levado em contaantes dos outros elementos, por ser a realidade primeira,indubitável, a única vital, de onde decorre a relação como mundo circundante e os tus.

Para dar conta do que é a sociedade, é precisopensar o que é o mundo, essa circunstância constitutivadele. Mundo é o emaranhado de assuntos ou importânciasem que o homem está, queira ou não queira, enredado.A vida é a realidade radical e é nela que transcorre omundo, e não o contrário. E o mundo ocorre sempre numsistema de importâncias, assuntos ou prágmatas (nomundo nos encontramos com coisas). As coisas, noentanto, não nos são apresentadas, mas co-apresentadas,nos são copresentes e, a cada uma, ou um punhado delas,de cada vez, mesmo que tenha, por trás, uma série de

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outras coisas que deixamos de focar quando elas noschegam.

“O mundo vital se compõe de umaspoucas coisas no momento presentes ede inumeráveis coisas, no momentolatentes, ocultas, coisas que não estão àvista mas que sabemos ou cremos saber(...) não nos é presente nunca uma coisasozinha, mas, ao contrário: vemossempre uma coisa destacando-se sobreoutras em que não prestamos atenção,e que formam um fundo sobre o qualse destaca o que vemos.” 116

Ortega chama a isso leis estruturais do nossomundo, leis que definem não as coisas do mundo, mascomo ele se estrutura. Há o que nos chega, como objetosque vemos, há um horizonte, um fundo, e um terceiroelemento, o mais além latente. O horizonte é a linha defronteira entre o patente e o latente em nosso mundo.No mundo, além da minha vida como realidade radical,existe o outro. E este outro, a gente, pode agir sobre mimna forma de usos.

5.2 Usos, vigência e normaUsos são ações de um sujeito indeterminado,

impessoal, ao mesmo tempo todos e ninguém, feitas porseres humanos concretos mas irredutíveis à vida humanaindividual, que só as executa. Os usos são formas decomportamento humano que o indivíduo adota porquenecessita, porque, em sociedade, não tem outro remédio.São impostos pelos demais, pela gente. Imposiçõesmecânicas, os usos são ações que executamos em virtudeda “pressão social”. São irracionais, já que seu conteúdonão é autônomo, mas heterônomo. Usos são, ainda,

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impessoais e extra-individuais. Eles têm origem no pré-uso, numa ação individual, feita em determinadomomento da história e seguida exemplarmente pormaiorias dóceis, até se tornarem uso, por meio davigência, perdendo toda e qualquer pessoalidade.Chegam até nós de maneira mecânica.

Ao seguirmos os usos, deslocando-nos do nossoeu-circunstância para a pura circunstância, possuímosum comportamento de autômatos, heterônomos,mandados não por nós, mas pela coletividade ousociedade. O problema está em que a sociedade não é vidahumana, propriamente, individual, vital, primária. Ésecundária. É sobre-humana, intermediária entre anatureza e o homem. É uma quase natureza brutal,mecânica. Como, para Ortega, não há uma alma coletiva- nem mesmo como uma figura de linguagem - asociedade é a “grande desalmada”, onde o indivíduo estáinevitavelmente mergulhado, tendo que contar com elae viver apesar dela.

Mas os usos não são negativos, em si próprios. Sãoinevitáveis. Os usos produzem no indivíduo três tipos deefeito. 1. “São pautas do comportamento que nospermitem prever a conduta dos indivíduos que nãoconhecemos (...) os usos nos permitem a quaseconvivência com o desconhecido, com o estranho”. 2. “Aoimpor, por pressão, um determinado repertório de ações- de idéias, de normas, de técnicas – obrigam o indivíduoa viver à altura dos tempos e injetam nele, queira ou não,a herança acumulada do passado. (...) A sociedadeentesoura o passado”. 3. Ao automatizarem uma boaparte da conduta da pessoa “e dar-lhe resolvido oprograma de quase tudo que tem que fazer, permitemque essa pessoa concentre sua vida individual, criadorae verdadeiramente humana, em certas direções, o que

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de outro modo seria impossível ao indivíduo”117. Isso, emtese, porque acontece que, apesar dessas possibilidades,há um tipo de homem que vive heteronomamente nos edos usos. Esses, os homens-massa, não são herdeiros dopassado acumulado e não aproveitam o acumulado parauma vida criadora e humana; vivem deste passadoinconscientemente, sem o saber. Voltados hete-ronomamente para o social, desumanizam-se:

“O fato social não é um comportamentode nossa vida humana como solidão; aocontrário, aparece enquanto estamosem relação com os outros homens. Nãoé, pois, vida humana no sentido estritoe primário.”118

Muitos desses fatos sociais não têm suas origensem nós. Somos apenas os seus executores. Serianecessário se perguntar sobre quem é o sujeito origináriodo qual provêm essas ações, para saber por que motivodamos a mão em um cumprimento, por que razão vamosao cinema ver determinado filme, quem faz o guardadeter nosso passo. O sujeito que faz tudo isso acontecer -a causa desses fatos - não é o homem, o sujeito, não é oguarda, não é aquele que estende a mão ao amigo, mas, a“gente”, os demais, a coletividade, a sociedade, o que, aomesmo tempo significa “ninguém determinado”.

Em “El círculo humano de lo social. La continui-dad convivencia-sociedad en el pensamiento de Ortega”,Guillermo Suárez Noriega lembra que o próprio dos usossociais não é simplesmente carecer de sentido, mas tê-loperdido. Os usos tinham um sentido, como por exemplo,é o caso dos demorados cumprimentos rituais,mostrando uma disposição de paz por parte deenvolvidos em disputas.

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Os próprios usos, como tudo o mais, afinal,surgiram de uma ação pessoal, antes de passarem a sersociais, por meio da exemplaridade, a relaçãointerindividual em que a pessoa se sente atraída pelaconduta de outra. Por isso, o uso tem, necessariamente,uma origem convencional. O fato que torna possível aconstrução dos usos é a conduta exemplar de um ou unstransmitindo-os a outros “dóceis”. Os passos seguintessão o uso tornar-se “vigência” e, depois, “norma”,momento em que já está completamente automatizadoe desumanizado. O uso nasce de algo prévio chamado“pré-uso”, a ação individual, consciente e cheia desentido, que afeta os demais através da convivência, nummecanismo de “exemplaridade-docilidade”. ParaNoriega, “o aristocratismo orteguiano se converte nachave que permite articular convivência e sociedade”119 econclui que os dados etnológicos forçam a pensar que asociedade nasce da atração que uns indivíduos exercemsobre os outros.

O comentador ainda vê outro aspecto importantenesta dinâmica - o entusiasmo (ou falta dele) comosubstrato psicológico daquele que vive em sociedade. Esteé a manifestação psicológica de um elemento estruturalda pessoa, sua tendência à autoperfeição, chegando auma posição um tanto próxima à vontade de potência,de Nietzsche, porém em um tom que lembra uma certafilosofia pré-socrática: “Em termos mais orteguianos, natendência da vida humana, não à simples sobrevivência,mas a ser mais.”120 No entanto, Noriega acha que, entreos escritos aristocráticos do Ortega dos anos 20 e a teoriados usos, há grandes diferenças. A principal delas é quea teoria dos usos supera “certo psicologismo” do primeiroOrtega 121. Ou seja, nas primeiras décadas de sua filosofia,Ortega dava uma explicação meramente psicológica para

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o homem-massa, passando, com o tempo a escrever sobrecomo se dá o funcionamento da sociedade de suaperspectiva raciovital, como é a estrutura do mundo,como se dão os usos e o funcionamento da exemplaridademinoria-massa.

“Parece que Ortega se dá conta de quenão se pode menosprezar a força darebelião que os anos e os avatares de suavida e seu país – sua circunstância – lhelevam a captar a insuficiência de umavisão excessivamente psicológica dohomem-massa e da interação social emgeral. O poder do ‘bruto social’ frente àvida pessoal estava exigindo umaanálise mais profunda e estrutural quelhe desse consistência.” 122

Não basta a adesão íntima. Para que a exem-plaridade gere sociedade é necessário dar-se o fenômenoda “vigência”. Esta supõe a substituição da imitaçãopessoal por uma adoção de condutas e atitudes im-pessoais. Assim, os usos, conforme comenta Noriega,constituem a cristalização do influxo de alguns homenssobre outros para a realização de valores.

O pré-uso, ou, como alerta Noriega, a “condutaexemplar”, precisa sofrer uma radical transformaçãopara se tornar uso. Essa transformação é a vigência, “queadvém da conduta exemplar quando a ela se adscreve umpoder social que a coletiviza. Desde esse momento suaatuação sobre os outros não responde ao influxo pessoaldo inventor mas que é reprodução de algo tomado jácomo patrimônio comum.”123 Os usos, no entanto, comolembra Noriega, não são o espírito objetivo de Hegel, maspensamento e conduta humanos objetivados que, antes,foram fenômenos ativos de uma vida individual, de tal

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modo que não têm condição substante, com movimentopróprio, mas precisam ser referidas a vidas humanasefetivas, que os criaram.

5.3 Ensimesmamento e alteraçãoEm O Homem e a Gente, obra em que Ortega se

propõe mostrar os fundamentos de sua concepção desociologia, o filósofo se posiciona contrário à “crença” deque a sociedade é somente uma criação de indivíduosque, por causa de uma vontade deliberada, se reúnem emsociedade. “Se a sociedade não é mais do que umaassociação, a sociedade não tem própria e autênticarealidade e não faz falta uma sociologia. Bastará estudaro indivíduo”.124 Este dado é importante, já que por seuacento na importância radical do indivíduo, se poderiapensar que em Ortega não há sociedade, propriamente.Contra essa posição, afirma que o social é um fato da vidahumana, a vida de cada um, individual ou pessoal, econsiste em que o “eu” se encontre tendo que existir emuma circunstância (o mundo), sem nenhuma segurança.Não sabemos se vamos existir no instante seguinte e, porisso, necessitamos estar sempre fazendo algo paraassegurar esta existência, seja de forma material, sejamental. Nossa vida é o conjunto desses afazeres e ações.

Importante é que, na concepção de Ortega, deuma vida autônoma, só “é, pois, humano, no sentidoestrito e primário, o que faço por mim mesmo e em vistade meus próprios fins ou, ou que é a mesma coisa, o fatohumano é um fato sempre pessoal”125. Assim, essa vidahumana que está em contato com outras na circunstância(o mundo) tem ações de um sujeito responsável por ela,um sujeito que faz o que faz para que tenha sentido paraele próprio, o que, por mais que o coloque no mundo, tempor essência a solidão.

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Por viverem numa subnatureza (não em si pró-prios, nem na natureza, mas neste lugar intermediário)os homens-massa não têm uma vida ensimesmada,voltada para o seu repertório pessoal no fundo de suasolidão. Vivem nos usos, quase como os animais. Essesnão regem sua existência, não vivem a partir de sipróprios, mas estão atentos apenas ao que se passa foradeles. Ao invés do olhar ensimesmado, para dentro,solitário, introspectivo, autônomo, está o olhar alterado,para fora, voltado ao comum, ao outro.

A vida do homem-massa é, por isso, uma vidadesalmada. O mundo ao redor dele, pura exterioridade, oabsoluto fora, que não consente nenhum fora para alémdele a não ser a intimidade do homem, o si mesmo,constituído, principalmente por idéias ao invés de usos.Mas o homem-massa, assim como o animal com aatenção totalmente presa pelos objetos se mexendo à suafrente, não pode ensimesmar-se – vive em pura alteração.Ocorre, ainda, que esse ensimesmar-se é facultado aohomem mas não dado como o instinto aos animais: eleprecisa escolher, ele próprio tem que fazer isso para si.

“Por isso, se o homem goza desseprivilégio de liberar-se transi-toriamente das coisas e de poder entrare descansar em si mesmo, é porque,com seu esforço, seu trabalho e suasidéias, conseguiu reoperar sobre ascoisas, transformá-las e criar em seuredor uma margem de segurançasempre limitada, mas sempre ou quasesempre um aumento. Esta criaçãoespecificamente humana é a técnica.Graças a ela, e na medida de seuprogresso, o homem pode ensimesmar-se. Mas também vive-versa, o homem é

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técnico, é capaz de modificar seucontorno no sentido de sua con-veniência, porque aproveitou todoalento que as coisas lhe deixavam paraensimesmar-se, para entrar dentro desi e forjar para si idéias sobre essemundo, sobre essas coisas e sobre suarelação com elas, para forjar um planode ataque às circunstâncias; em suma,para construir-se um mundo interior.Desse mundo interior emerge e volta aode fora. Mas volta na qualidade deprotagonista, volta com um si mesmoque antes não tinha – com seu plano decampanha – não para deixar-se do-minar pelas coisas, mas antes paragoverná-las, para lhes impor suavontade e seu desígnio (...) para mo-delar o planeta segundo as preferênciasde sua intimidade.” 126

Essas possibilidades são aproveitadas de maneiradiferente por distintos tipos de homem. O autêntico écapaz de usar os recursos da técnica para não mais olharsomente para o mundo ao redor, mas para ensimesmar-se, voltar para suas próprias idéias e, munido dessas,voltar-se para o mundo de maneira autônoma. Ohomem-massa, ao contrário, simplesmente nãoconsegue ensimesmar-se. O mundo social e seus usos ochamam demais e ele não tem condições de aproveitar atécnica para livrar-se do pesadume do mundo. Aocontrário, a técnica o leva ainda mais para fora de si,enche o mundo de mais atrativos que o deslocam deentrar em contato com sua solidão radical, constitutivade seu ser como humano. Vive uma vida desalmada oudesanimada.

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Ortega afirma que há três momentos históricosque ciclicamente se repetem: 1. O homem perdido,náufrago (alteração). 2. Com enérgico esforço, o homemse recolhe à sua intimidade para formar idéias sobre ascoisas (ensimesmamento) e 3. O homem torna asubmergir no mundo para atuar nele conforme o quehavia preconcebido (ação, vida ativa, práxis). O destinodo homem (autêntico), conforme Ortega, é ação, masuma ação que passou pelo ensimesmamento e não a puraalteração do homem-massa.

A vida do homem não é apenas pensar, maspensar para agir de forma qualificada. E não se trata deum pensamento descolado da vida. Pelo contrário: nascedela, nasce da necessidade vital de o homem não quererviver náufrago, na alteração, como os animais. Porém,para sair dessa alteração, é necessário esforço, já quenada na vida do homem é dado pronto. No homem, opensamento se vem fazendo, fabricando pouco a poucograças a um cultivo ou cultura, a um esforço de milênios.O homem-massa, preguiçoso existencial do alto dostempos, simplesmente não participa mais desse cultivo.Para tal, necessitaria conseguir ensimesmar-se, sair dopuro uso. E enquanto o tigre não pode destigrar-se, ohomem, sim, pode desumanizar-se: alterar-se, viver deforma desanimada.

“Ao homem, sucede, às vezes, nadamenos que não ser homem. E isto éverdade, não só em abstrato e emgênero, mas é válido referindo-se ànossa individualidade. Cada um estásempre em perigo de não ser elemesmo, único e intransferível que é. Amaior parte atraiçoa continuamenteesse ele-mesmo que está esperandoser.” 127

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Este homem, a quem acontece não ser homem, épura alteração, pura heteronomia, pura exterioridade.Vive os usos da sociedade, vive num sistema de crenças,entre elas algumas que circulam muito, depois dosavanços da técnica: a de que a humanidade, este enteabstrato, progride, e progride necessariamente. Tal idéia,na opinião de Ortega, fez acabar, no europeu e noamericano, com a sensação radical de risco que é asubstância do homem. Se a humanidade progrideinevitavelmente, se não há necessidade alguma deesforço, podemos despreocupar-nos, irresponsabilizar-nos, virar homens-massa. É o que começa a acontecerno início do século XX e de onde provém o fenômenosocial dessa desarticulação que Ortega analisa entrehome-massa e autêntico.

Não há mais drama e a história, assim, não passade “uma tranqüila viagem turística organizada porqualquer agência”128. O mau uso da técnica (o uso alteradoe não ensimesmado) é essa agência de turismo. Oproblema é que a substância do homem segue a mesma,por baixo da técnica: perigo. O homem caminha sempreentre precipícios, só que agora ainda mais sem reflexão,sem ensimesmamento, mas com alteração cada vezmaior, massa que se esparrama, de gente heterônoma,sem autonomia, sem alma:

“Fala-se somente de ação. Os de-magogos (...) fustigam os homens paraque não reflitam, procuram mantê-losenfeixados em multidões para que nãopossam reconstruir a sua pessoa ondeunicamente se reconstrói, que é nasolidão (...) é claro que, como o homemque é o animal que conseguiu meter-sedentro de si, quando o homem se põe

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fora de si é que aspira a descer, e recaina animalidade. Tal é a cena, sempreidêntica, na época em que se diviniza apura ação. O espaço se povoa de crimes.Perde valor, perde preço a vida doshomens e se praticam todas as formasda violência e a espoliação.” 129

É neste sentido que se pode ligar o personagemorteguiano à tradição iluminista, muito embora seuconceito de razão seja totalmente distinto daquele dosracionalistas. Ortega afirma que as épocas de alteração,de ação, de irracionalismos, são épocas de animalidadese obscurantismos. Daí que se preocupe em “O Homem ea Gente” com a questão da decadência do prestígio daverdade. Verdade, ensimesmamento e clareza têmcorrelatos, para Ortega, que acredita no Ocidente comoo ensaio de viver sobre idéias claras, ao invés dos mitos.No entanto, “porque agora faltam idéias claras, o europeuse sente perdido e desmoralizado”130. Perdido edesmoralizado, desanimado, massificado, o homem-massa é esse produto obscuro da técnica.

“Voltemos - repito - dos mitos às idéiasclaras e distintas, como há três séculosas chamou com solenidadeprogramática a mente mais acertadaque houve no Ocidente: RenatoDescartes (...) Bem sei que Descartes eseu racionalismo são pretérito perfeito,mas o homem não é nada positivo senão é continuidade. Para superar opassado é preciso não perder o contatocom ele; pelo contrário, senti-lo bemsob nossos pés porque subimos nele.Do imenso emaranhado de temas queserá forçoso esclarecer, se se ambicionauma nova aurora, elejo um, que me

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parece urgente: que é o social, que é asociedade? (...) Ele constitui a raizdesses conceitos – estado, nação, lei,liberdade, autoridade, coletividade,justiça etc – que hoje põem os mortaisem frenesi. Sem luz sobre este tema,todas essas palavras representamsomente mitos.” 131

Ortega vê a necessidade de um esforço de não seabandonar a razão ao criticar a sociedade de massas,voltando-se ao Iluminismo (um iluminismo vital, noentanto) como projeto de redenção de uma sociedademergulhada no obscurantismo. E como vai pedir auxíliopara a resolução do problema a Descartes, exatamenteaquele de onde vê nascer a razão físico-matemáticacriadora de um mundo técnico? A inspiração é cartesiana,mas a razão, como já nos referimos, não. A razão dessaespécie de Ilustração Vital132 que o filósofo espanholanuncia como uma nova alvorada, tem um novo conceito:a razão vital. O homem-massa não é massa por não terrazão, mas por não ter razão vital, porque mesmo osplenos de razão físico-matemática (os bárbarosespecialistas) são homens-massa, na opinião de Ortega.Segue curioso este projeto de Ilustração como salvaçãode um mundo alterado, irresponsável, massificado,violento, desumano, inautêntico, massa.

O animal recebe uma espécie de repertório daconduta de sua vida, o homem não. Ocorre que, em nossotempo, essa ocupação do homem é substituída pelatécnica e muitos homens deixam de ser, de fazer a simesmos, para existirem. O sem remédio que é ter quefazer sua vida encontra remédio num simulacro de vidapronta feita pela sociedade ao redor dele que, ao mesmotempo que lhe poupa o esforço de fazer-se a si mesmo e

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troca-lhe a condição de ir-sendo para o de existir, juntocom o restante das coisas, numa desanimação, numacoisificação dessa realidade radical, feita de fora, pelosusos e não pelo esforço pessoal gerador de autonomia.

O que nosso tempo dá ao homem, o mundo dado,o mundo feito, é exatamente o que se tira em termos dehumanidade desse homem, transfornando-o em massae acabando, inclusive com as minorias, quaseinexistentes nas sociedades atuais, sucumbidas peloimpério brutal das massas.

“O mundo massificado impõe uma vidaalterada ao invés de ensimesmada,acabando com a solidão, essencialponto a partir do qual somos o quesomos. Nesse mundo, o pensamentovem de fora do homem e por isso édesumano: ‘Só é humano o meu pensarse penso algo por minha própriaconta.’” 133

Para Ortega, quando a vida nos é dada, não nos édada senão na forma de algo a fazer, mas esse pode serum qualquer fazer, ou um autêntico fazer. De um lado,estão aqueles que fazem por si próprios a sua vida, deoutro, uma grande massa de pessoas que vive os “usos”.

5.4. A massa enquanto inautenticidadeComo já dissemos antes, o homem-massa é um

conceito metafísico e sociológico. Metafísico como aquelehomem heterônomo ao longo da história, e deimportância sociológica atual pelo fato de que, a viradado século XX para o XXI viu acontecer, primeiro naEuropa e Estados Unidos, essa rebelião. Foi quando,possibilitado pela técnica, o homem-massa chegou aopoder e intervém em tudo, dando ares dramáticos ao

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quadro pintado por Ortega (o homem-massa é pacientee agente da sua condição de massa).

Nesta parte do trabalho tratamos de observarcomo, em nosso tempo, conforme Ortega, há umaviolenta supremacia do homem-massa, seus gostos ehábitos, que esfacela a racionalidade vital, que sufoca osensimesmamentos, que institui como regra a puraalteração, que desconecta o homem da razão histórica (ohomem-massa atual perde completamente o vínculoautônomo, perpassado pelo ensimesmamento vital, como passado), enfim, que desanima o mundo, na medidaem que o homem vive desalmado, neste novo mundoproduzido confortavelmente pela técnica, de ondebrotam violências e arbitrariedades típicas de umasociedade sem razão vital, vivendo apenas dos frutos dasrazão físico-matemática - quando muito da razão físico-matemática. Não que o conceito orteguiano de técnicaseja negativo. O homem-massa é que faz um uso negativoda técnica, para desumanizar-se, desanimar-se.

O conceito de “massa” aparece sempre numaspecto negativo nos textos de Ortega, diferentementedo que o conceito significa tradicionalmente tratado pelaciência política e a sociologia - despregado desse seufundo filosófico-antropológico. É o que se pode verificarem diversas obras de ciências políticas em que facilmentese diferenciam as massas das elites. Massa, nesses textos,é conglomerado, em oposição com uma minoriachamada de elite134.

Em Ortega, e em particular em A Rebelião dasMassas, massa é inautenticidade, é indefinição eindiferenciação, uma certa maneira de alienação doindivíduo que se abstém de ser ele mesmo, de ser elite(também no sentido da antropologia filosófica queexpomos nos capítulos anteriores). Mas, o que é a

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“minoria seleta”, de cuja corrupção ou negação advém amassa? Como já vimos, para Ortega, uma vida nobre, éautêntica, centrada em um projeto vital, magnânima,reservada a poucos. A vulgar, inautêntica, infiel à suavocação, é a vida da maioria. Há por parte dos autênticosauto-exigência, busca da perfeição, predomínio docultural sobre o natural, da reflexão sobre aespontaneidade, do ensimesmamento (sem solipsismo)e da vida interior, do esforço criativo e a disciplina. ParaOrtega, massa é um tipo de ser humano e não uma classesocial. De maneira que muitos pobres podem ser homensautônomos e autênticos e muitos ricos podem serheterônomos e massa.

Os homens-massa são apenas os que vivem semesforço, abandonam-se e deixam-se ir, em pura inércia.Falta-lhes reflexão, predominam em seu espírito onatural e o espontâneo, o irracional e uma vitalidadedescendente, recheada de ressentimento – falta-lhes umprojeto vital. Cheios de hermetismo e obliteração -incapacidade de sair de si mesmos – são pródigos emautocomplacência, na coincidência de suas idéias com aopinião pública, e têm a ação direta como procedimentode intervenção social, exigindo direitos sem ocumprimento das obrigações135.

Para María Isabel Ferreiro Lavedán, no artigo Ladocilidad de las masas em la teoría social de Ortega y Gasset(2000), a nobre docilidade do homem, por suanecessidade constitutiva de saber a que se ater, foi algoque se modificou bastante com o início da sociedade demassas. De tal maneira que a rebelião das massas podeser entendida como o fim da docilidade das massas emrelação à opinião das minorias seletas, à sua ética eestética, invertebrando-se, assim, o sistema de valoreshumanos.

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Com o crescimento do nível de vida, possibilitadopelo avanço tecnológico, a Europa passou a viver umaanomalia em relação a seu tradicional funcionamento:as massas deixam de ser dóceis e passam a intervir. Acomentadora salienta que a incomodativa sinceridadeorteguiana faz mostrar que as sociedades sempretiveram uma estrutura aristocrática, à qual ele estaria,em A Rebelião das Massas, simplesmente, constatando,mais do que passando um juízo de valor. Por causa dessaestrutura aristocrática da sociedade, desde sempre unspoucos homens esforçados transcenderam o estabelecidoe conseguiram criar coisas novas, aceitas, depois,docilmente, pelas massas. O instrumento utilizado tantopara criar coisas novas quanto para aceitar essa criaçãosempre foi a razão, uma razão nascida da necessidadede saber a que se ater, de saber valorar, também. Por estemotivo, Ferreiro Lavedán diz que, para Ortega, toda asociedade está constituída de um mecanismo interativoentre minorias e massas.

“Tão necessário é a maioria como amassa, posto que é a minoria que tem omando, isto é, a que por exemplarorienta ou dirige, e é a massa que temo poder de aceitar, ou não, as propostasda minoria, portanto, que é a massa opoder que outorga o mando.”136

A razão que une massa e minoria é vital, nãoproduto da racionalidade, mas da razoabilidade, já que arazão vital não é apenas conhecimento, sem mais, oumera acumulação de dados, mas adequação aoconhecimento. É uma espécie de razão prática,substantiva, que faz a massa aceitar ou não a produçãoda minoria. Tanto para a massa quanto para a minoria,

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desde sempre, de maneira no mínimo polêmica, elaafirma que há a compreensão de que existem aqueles quevêm mais que os demais e que esses demais não podemfazer coisa mais certa que aceitar essa superioridade,quando essa é evidente.

5.5. O papel da exemplaridadena constituição da sociedadeTambém muito difícil de se aceitar é a ideia de

Ortega de que não foi nem a força nem a utilidade quejuntaram os homens em agrupações permanentes, masa exemplaridade, o poder atrativo dos indivíduos maisperfeitos da espécie. Haveria uma propensão quaseirresistível a seguir os melhores e o instinto social - se éque exista um - seria, precisamente, em impulso dedocilidade que alguns homens sentem por outros. A vidasocial se dá pela fé um no outro (sem a qual hádesagregação) e pelo seguimento de um exemplo. Emnota de pé de página no mesmo artigo de FerreiroLavedán, Martius Plattel, autor de “Filosofia Social”,afirma que esse mesmo fundamento do razoável queOrtega encontra no social, Thomas Kuhn vê em relaçãoaos paradigmas científicos. Além da crise de paradigma,haveria uma base, uma espécie de fé numa escolhaespecífica que faz com que uns e outros cientistas sintamque a nova proposta científica vá por um melhor caminhoque o paradigma anterior, o que não quer dizer que oscientistas se movimentem por uma estética mística, maspelo fato de que eles são razoáveis, na mesma medidaem que Ortega considera a docilidade da massa emrelação à minoria.

A própria nobreza, conforme Ortega, estámarcada por um esforço dirigido a serviço de um projeto,em que se dirige uma vida com entusiasmo até um

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objetivo ou outro, mais do que talento ou habilidade.Esses homens formam uma minoria, servindo deexemplo aos demais, numa inaceitável ideia de “saudáveldinâmica social”,137 geradora da comunhão entre seusmembros. Por essas razões, Ortega considera“problemática” a apreciação típica do século XX de quesão injustas as diferenças hierárquicas, quando nenhumasociedade poderia nascer sem ela.

O cristianismo é trazido por Ferreiro Lavedáncomo exemplo de docilidade e exemplaridade, em quetodos os adeptos seguem um exemplo, o de Cristo.Conforme Ferreiro Lavedán, Ortega diz haver razõespara supor que a palavra sociedade tem sua origem emsequor, que significa, seguir. Sócio seria aquele que segue.O participante de uma sociedade já seria, por si, oseguidor de um exemplo. A invertebração social de nossotempo teria sido originada por uma rebelião das massas,por um desmantelamento da dinâmica social entreminoria exemplar e massa dócil. O homem-massa é umindócil, rebelado, mesmo sem saber, contra a hierarquia,um snob, um ex-nobre, já que o nobre é um dócil seguidordo exemplo. O homem-massa é produto e causa dainvertebração da sociedade de massas, que não maisfunciona com sócios (seguidores de exemplos), esses quenão mais participam de um projeto comum, mas que,antes, se atomizaram, se isolaram e esfacelaram avertebração da sociedade, a unidade, minoria-massa dasociedade.

O homem-massa atual é tão massa quanto o desempre, com a diferença de que este, dispondo dos meiostécnicos para tal, quer suplantar os excelentes: é arebelião das massas. Este homem é o resultado de umaestrutura radical da sociedade, e Ortega resume suaorigem da seguinte maneira: o mundo organizado do

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século XIX produziu automaticamente um homem novoe intrometeu nele formidáveis apetites que surgiram dospoderosos meios de satisfazê-los. São meios econômicos,corporais (higiene, saúde média superior à de todos ostempos), civis e técnicos. Depois de haver estabelecidonele todas estas potências, o século XIX o abandonou asi mesmo, e então, seguindo o homem sua índole natural,fechou-se dentro de si (fechamento, não ensi-mesmamento). Assim, encontramo-nos com uma massamais forte que a de nenhuma época, mas mais herméticaem si mesma, incapaz de atender a nada nem a ninguém,acreditando que se basta: indócil.

“Continuando as coisas como até aqui,cada dia se notará mais em toda aEuropa – e por reflexo em todo o mundo– que as massas são incapazes de sedeixar dirigir em nenhuma ordem. Nashoras difíceis que chegam para nossocontinente, é possível que, subitamenteangustiadas, tenham um momento aboa vontade de aceitar, em certasmatérias especialmente angustiosas, adireção de minorias superiores. Masainda essa boa vontade fracassará.Porque a disposição radical de sua almaestá feita de hermetismo e indocilidade,porque lhe falta de nascença a funçãode atender ao que está além dela, sejamfatos, sejam pessoas. Quererãoacompanhar a alguém, e não poderão.Quererão ouvir, e descobrirão que sãosurdas.” 138

Para Ortega, a vida e o mundo se mostraram tãoabertos ao homem que sua alma se fechou a eles. É nessefechamento, nessa ingenuidade das massas, que consiste

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a rebelião das massas, a indocilidade e rebeldia dehomens que não mais querem se submeter a umaestrutura de valores, de um passado que sequerconhecem. Nesse hermetismo intelectual, o homemmédio encontra-se com um repertório de idéias dentrode si, com o qual se contenta e se considera completo,embora ingênuo. Falta-lhes a abertura, a admiração e acuriosidade para querer saber o que existe fora, quebra-se a tensão eu-circunstância.

E por que o homem-massa age assim? Porque sesente perfeito, afinal, o mundo funciona com muito maisfacilidade ao seu redor do que em outras épocas. Essehermetismo o impede de uma atitude intelectual básica:comparar-se com os outros, o que significaria sair umpouco de seus valores pessoais e transladar-se aopróximo. Porém, a alma medíocre é incapaz do “esportesupremo” da transmigração.

Mas o pior de tudo, a grande aberração da rebeliãodas massas, é o fato de o vulgo, que antes sabia que nãotinha idéias sobre as coisas, hoje se sentir - pordesconhecer o passado, a cultura - intimamenteautorizado a ter idéias sobre elas. Ele tinha crenças,tradições, experiências, provérbios, hábitos mentais, masnão se imaginava de posse de opiniões teóricas sobre oque as coisas são ou deveriam ser, por exemplo, comoaponta Ortega, sobre política ou literatura. E essa ação,que pareceria inocente, é a mais prejudicial de todas, poisseu ato de julgar a partir de sua incapacidade geraresultados funestos. E o pior, sendo a maioria, resta àminoria conviver com o que o homem-massa brada emtermos de política e estética. É este o brutal império dasmassas:

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“A mesma coisa em arte e nas demaisordens da vida pública. Uma inataconsciência de sua limitação, de nãoestar qualificado para teorizar, vedava-o completamente. A conseqüênciaautomática disto era que o vulgo nãopensava, nem de longe, decidir emquase nenhuma das atividadespúblicas, que em sua maior parte são deíndole teórica. Hoje, pelo contrário, ohomem médio tem as “idéias” maistaxativas sobre quanto acontece e deveacontecer no universo. Por isso perdeuo uso da audição. Para que ouvir, se játem dentro de si o que necessita? Já nãoé época de ouvir, mas, pelo contrário,de julgar, de sentenciar, de decidir. Nãohá questão de vida pública em que nãointervenha, cego e surdo como é,impondo suas “opiniões.” 139

Cego e surdo, mas não mudo, o homem-massaintervém em tudo... E intervém violentamente. Emborapense que tenha idéias, o que possui é um xeque-mate àverdade, afinal quem queira ter idéias necessita dispor-se, segundo Ortega, a querer a verdade e aceitar as regrasdo jogo. Isso porque, como aponta o filósofo, não hácultura onde não há normas nem princípios de legalidadecivil a que apelar e criticando o liberalismo econômico,diz: “não há cultura quando as relações econômicas nãosão presididas por um regime de tráfico sob o qualpossam amparar-se”, assim como “não há cultura ondeas polêmicas estéticas não reconheçam a necessidade dejustificar a obra de arte”.140 É essa falta de cultura, essabarbárie, que assola a Europa e conseqüentemente omundo de hoje (dos anos 30). Um mundo sem leis.

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“Ter uma idéia é crer que se possuem asrazões dela, e é, portanto, crer que existeuma razão, um orbe de verdadesinteligíveis. Idear, opinar, é uma mesmacoisa como apelar a tal instância,submeter-se a ela, aceitar seu Código esua sentença, crer, portanto, que aforma superior da convivência é odiálogo em que se discutem as razõesde nossas idéias. Mas o homem-massasentir-se-ia perdido se aceitasse adiscussão, e instintivamente repudia aobrigação de acatar essa instânciasuprema que se acha fora dele. Por isso,o ‘novo’ é na Europa ‘acabar com asdiscussões’, e detesta-se toda forma deconvivência que por si mesma impliqueacatamento de normas objetivas, desdea conversação até o Parlamento,passando pela ciência. Isso quer dizerque se renuncia à convivência decultura, que é uma convivência sobnormas, e retrocede-se a umaconvivência bárbara. Suprimem-setodos os trâmites normais e se vaidiretamente à imposição do que sedeseja. O hermetismo da alma, que,como vimos antes, propele a massa paraque intervenha em toda a vida pública,leva-a também, inexoravelmente, a umprocedimento único de intervenção: aação direta.”141

O homem hoje dominante é um primitivo, queemerge em meio do mundo civilizado. O civilizado é omundo, porém, seu habitante não o é: nem sequer vê nelea civilização, mas usa dela como se fosse natureza. Desejao automóvel e goza dele, mas crê que é fruta espontâneade uma árvore do Éden. “No fundo de sua alma

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desconhece o caráter artificial, quase inverossímil, dacivilização, e não estenderá seu entusiasmo pelosaparelhos até os princípios que os tornam possíveis”.142É um homem obtuso que não atende a razões.

“Onde quer que tenha surgido ohomem-massa de que este volumese ocupa, um tipo de homem feitode pressa, montado tão somentenumas quantas e pobres abstraçõese que, por isso mesmo, é idêntico emqualquer parte da Europa. A ele sedeve o triste aspecto de asfixiantemonotonia que vai tomando a vidaem todo o continente.”143

O início do século XX foi um tempo de explosãodemográfica, de cidades repletas de gente, de espetáculoslotados, de multidões nunca vistas antes na Europa e nomundo. Esta multidão passava a intervir. E intervir nosvalores da cultura, impondo, no lugar deles, o sentido dasmassas, a “hiperdemocracia das massas”.

“As massas propuseram a distanciar-sedos assuntos políticos, não discutindoe não participando das atividadespolíticas, o que consolidou liderançasconduzidas pela demagogia e pelaignorância. A lei que ocupa essahiperdemocracia é: ‘Quem não forcomo todo mundo, quem não pensarcomo todo mundo, correrá o risco deser eliminado’.” 144

Perdido no meio da massa, o homem perde suacondição de integrante de uma história, e fica sempassado, sem cultura, o que significa sem sua

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humanidade (sem a vitalidade da história). Para Ortega,é grave a dissociação entre o passado e o presente,acontecimento mais comum da época do homem-massa.O filósofo afirma que os homens atuais de repenteficaram sozinhos sobre a terra e o espírito tradicional seevaporou - ficaram sem razão histórica, sem razão vital.Os modelos, as normas, as linhas de conduta já não nosservem e agora temos que resolver nossos problemas sema colaboração efetiva do passado, em pleno atualismo -sejam eles de arte, de ciência ou de política. A sociedadeindustrial criou uma nova natureza para o homem, atecnologia, que substitui as crenças e os usos por outras.O homem comum, vulgar, acha que o mundo da técnicaé o natural e vive nele de forma inautêntica, fora de si,afundado numa nova natureza.

5.6. A vida sobre cômodos trilhosPara Ortega com a nova técnica, o homem passa

a pensar que viver é não ter limite algum, é abandonar-se tranqüilamente a si mesmo e que não há necessidadede fazer a si próprio. Para o homem massificado do séculoXX, praticamente nada é impossível, nada é perigoso e,o grande problema: em princípio, ninguém é superior aninguém, não há nortes a serem seguidos, nenhumaespinha dorsal que possamos identificar na humanidade.Não há valores. Tudo cai, se horizontaliza, se relativiza.

Uma diferença entre o perspicaz e o tolo, é queeste não desconfia de si, que não indaga sobre si etampouco percebe a vida que está em torno. O perspicazé todo esforço para escapar da tolice; o tolo é inércia equando cresce em número e toma dimensões sociais virasociedade em desânimo, em falta de alma, preguiçosapasmacera. Por não ser um desportista é que o tolo nãosuspeita de si mesmo. Vem daí, segundo Ortega, a

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invejável tranqüilidade com que ele se instala em suaignorância. O tolo jamais sai de sua ingenuidade, évitalício e impermeável, segundo o filósofo, e é por issoque lembra o escritor Anatole France, ao dizer que “onéscio é muito mais funesto que o malvado. Porque omalvado descansa algumas vezes; o néscio, jamais”145.

A inteligência, característica do homem-autêntico, é esforço que gerou a cultura. E o homem-massa, pouco exigente, acaba sendo conduzido porpessoas medíocres e sem grande memória, semconsciência histórica, que se comportam como se opassado tivesse acabado e que tampouco se esforçampara construir a cultura, que é sua natureza. Essasminorias que conduzem são também feitas de homens-massa, desde o professor universitário, passando pelocientista e o especialista, o homem-massa impregnatudo, inclusive a universidade, habitat do intelectualbárbaro, o especialista capaz de falar com toda apropriedade do mundo sobre seu tema, mas que balbuciasobre todo o resto.

A facilidade material do século XX fez com que ohomem médio nunca tivesse tanta facilidade pararesolver problemas como até aqueles anos 30. Pois a vidapara este tipo de homem passou a marchar sobrecômodos carris e pouco passou a haver de violento eperigoso à sua volta. Assim, este homem médio não vêbarreira alguma para seus desejos, anestesiado, não sentemais nada, o que jamais, em toda a história, haviaacontecido.

Pois este é o novo cenário para a existênciahumana, tanto em termos físicos como sociais. Por essasrazões, este novo homem que surge, engendrado pelosganhos técnicos do século XIX, é um homem à parte detodos os anteriores: “Para o ‘vulgo’ de todas as épocas,

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‘vida’ havia significado, antes de tudo, limitação,obrigação, dependência; numa palavra: pressão”146. Maso homem dos anos 30 é o contrário:

“O homem vulgar, ao encontrar-se comeste mundo técnica e socialmente tãoperfeito, crê que o produziu a natureza,e não pensa nunca nos esforços geniaisde indivíduos excelentes que supõe suacriação. Menos ainda admitirá a idéiade que todas estas facilidadescontinuam-se apoiando-se em certasdifíceis virtudes dos homens (...) Istonos leva a apontar no diagramapsicológico do homem-massa atualdois primeiros traços: a livre expansãodos seus desejos vitais, portanto, de suapessoa, e a radical ingratidão a tudoquanto tornou possível a facilidade desua existência. Um e outro traçocompõem a conhecida psicologia dacriança mimada.” 147

5.7. Homem-massa,o mocinho satisfeito pela técnicaO homem-massa atual é o herdeiro de um passado

extenso e genial e que tem sido mimado pelo mundocircundante. Nele não há mais pressão nem choque como mundo e as pessoas ao seu redor. Assim, se acostumoua não contar mais com os demais e, sobretudo, não contarcom ninguém superior a ele. Com o desenvolvimento datécnica (que, como já se disse, em si não é má, mas que,pela natureza torpe do homem-massa, é utilizada apenaspara a diversão, o conforto e a despreocupação, ao invésdo ensimesmamento e da reflexão), não é mais precisohierarquia, nem autoridade e o homem se horizontalizanuma indiferenciação também de critérios, entre eles o

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estético. Se o movimento do homem é da alteração parao ensimesmamento e deste para a ação, a práxis, nohomem-massa ele não sai da alteração pura,esfacelamento inclusive de saber-se no mundo, de saber-se eu-circunstância, de ter que contar com os outros,porém com autonomia, pensando por si próprio.

Ele não tem mais a sensação da superioridadealheia, anestesiado que está pelas conquistas da técnica.Com certos recursos, pode gritar, inclusive, mais alto quealguém que antes se colocava como quem dominadeterminada arte. A hiperdemocracia das massas é o fimda cultura. 148

Até o século XIX, o homem sentia que “aquitermino eu e começa outro que pode mais que eu”. Porém,com todos os instrumentos à mão ninguém pode maisque eu, ou todos podem igualmente. Ao homem médiode outras épocas, diz Ortega, o mundo lhe ensinavacotidianamente esta “elemental sabedoria, porque eraum mundo tão toscamente organizado, que ascatástrofes eram freqüentes e não havia nele nadaseguro, abundante nem estável”149. Mas, com o domínioda técnica, certos barbarismos puderam ser soltos.Contra toda esta insegurança era preciso contar com osoutros. Necessitava-se cultura. Ao contrário, hoje ohomem médio se encontra em uma paisagem cheia depossibilidades, segura, à sua disposição, sem dependerde prévio esforço:

“Estas massas mimadas são su-ficientemente pouco inteligentes paracrer que essa organização material esocial, posta a sua disposição como o ar,é de sua própria origem, já quetampouco falha, ao que parece, e équase tão perfeita como a natural.

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Minha tese é, pois, esta: a própriaperfeição com que o século XIX deuuma organização a certas ordens davida, é origem de que as massasbeneficiárias não a considerem comoorganização, mas como natureza.Assim se explica e define o absurdoestado de ânimo que essas massasrevelam: não lhes preocupa mais queseu bem-estar e ao mesmo tempo sãoinsolidárias das causas desse bem-estar. Como não vêem nas vantagens dacivilização um invento e construçãoprodigiosos, que só com grandesesforços e cautelas se pode sustentar,crêem que seu papel se reduz a exigi-las peremptoriamente, como se fossemdireitos nativos. Nos motins que aescassez provoca soem as massaspopulares buscar pão, e o meio queempregam sói ser destruir as padarias.Isto pode servir como símbolo docomportamento que em mais vastas esutis proporções usam as massas atuaisante a civilização que as nutre.” 150

Assim, a nova voz grita que viver é não encontrarlimitação alguma, mas abandonar-se tranqüilamente asi mesmo (não ensimesmado, saído da alteração), afinalpraticamente nada é impossível e ninguém é superior aninguém. Este homem, segundo Ortega, costuma nãoapelar a nenhuma instância. Satisfeito com o que é, nãotem necessidade de confrontar o que pensa, o que sentee o que gosta com ninguém mais e assim tenderá aconsiderar boas suas opiniões, apetites, preferências ougostos, de maneira solipsista, de um lado, heterônomasde outro.

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Ao contrário desse, diz Ortega, o homem-seletoou excelente está constituído por uma íntimanecessidade de apelar de si mesmo a uma norma alémdele, superior a ele, a cujo serviço livremente se põe(autonomia). Essa seria a diferença principal entre umhomem-massa e seu oposto, o homem-autêntico. Um éo que exige muito de si mesmo, o outro, nada. E Ortegaadverte que contrariamente ao que se costuma acreditar,é o homem de seleção, e não a massa, quem vive emessencial servidão (uma servidão autônoma ao esforçode dar sentido e construir cultura):

“Sua vida não lhe apraz se não a fazconsistir em serviço a algo tran-scendente. Por isso não estima anecessidade de servir como umaopressão. Quando esta, por infe-licidade, lhe falta, sente desas-sossegoe inventa novas normas mais difíceis,mais exigentes, que a oprimam. Isto éa vida como disciplina – a vida nobre –.A nobreza define-se pela exigência,pelas obrigações, não pelos direitos.Noblesse oblige. ‘Viver a gosto é deplebeu: o nobre aspira a ordenação e alei” (Goethe)’.” 151

5.8 O homem-massa e o Estado de massasDo ponto de vista político, a cisão com a história,

com o passado, o esquecimento da cultura são críticasque Ortega faz tanto aos Estados Unidos quanto àRevolução Russa, de 1917. Para o espanhol, socialista emsua juventude, mas não marxista, antes um defensor dochamado liberal-socialismo, conforme Javier ZamoraBonilla, em Ortega y Gasset (2002), é ela o perfeito lugarcomum das revoluções porque o homem-massa não tem

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condições de ser revolucionário. Para tanto, necessitariaengolir todo o passado, degluti-lo, condição sem a qualele volta todo, como aconteceria com a Rússia e que serealizaria, de fato, em 1994.

“A questão não está em ser ou não sercomunista e bolchevista. Não discuto ocredo. O que é inconcebível e ana-crônico é que um comunista de 1917 seatire a fazer uma revolução que é emsua forma idêntica a todas as que houveantes e na qual não se corrigem osmínimos defeitos e erros das antigas.Por isso não é interessante his-toricamente o acontecido na Rússia;por isso é estritamente o contrário deum começo de vida humana. É, pelocontrário, uma monótona repetição darevolução de sempre, é o perfeito lugarcomum das revoluções. Até o ponto deque não há frase feita, das muitas quesobre as revoluções a velha experiênciahumana fez, que não receba deplorávelconfirmação quando se aplica a esta. ‘Arevolução devora seus próprios filhos!’‘A revolução começa por um partidomoderado, a seguir passa aos ex-tremistas e começa mui rapidamente aretroceder para uma restauração’, etc.,etc. A esses tópicos veneráveis podiamajuntar-se algumas outras verdadesmenos notórias, porém não menosprováveis, entre elas esta: uma re-volução não dura mais de quinze anos,período que coincide com a vigência deuma geração.Quem aspire verdadeiramente a criaruma nova realidade social ou política,necessita preocupar-se antes de tudo deque esses humílimos lugares comuns

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da experiência histórica fiqueminvalidados pela situação que elesuscita. De minha parte reservarei aqualificação de genial ao político quemal comece a operar comecem a ficarloucos os professores de História dosInstitutos, em vista de que todas as ‘leis’de sua ciência aparecem caducadas,interrompidas e feitas cisco.Invertendo o signo que afeta o bol-chevismo, poderíamos dizer coisassimilares do fascismo. Nem um nemoutro ensaio estão ‘à altura dos tempos’,não levam dentro de si resumido todoo pretérito, condição irremissível parasuperá-lo. Com o passado não se lutacorpo a corpo. O porvir o vence porqueo devora. Se deixar algo dele fora estáperdido.Um e outro – bolchevismo e fascismo –são duas falsas alvoradas; não trazem amanhã do amanhã, mas a de um arcaicodia, já usado uma ou muitas vezes; sãoprimitivismo. E isto serão todos osmovimentos que recaiam na sim-plicidade de travar uma luta com tal ouqual porção do passado, em vez deproceder a sua digestão.Não há dúvida de que é preciso superaro liberalismo do século XIX. Mas isso éjustamente o que não pode fazer quem,como o fascismo, se declara antiliberal.Por isso – ser antiliberal ou não liberal– é o que fazia o homem anterior aoliberalismo. E como já uma vez estetriunfou daquela, repetirá sua vitóriainumeráveis vezes ou se acabará tudo –liberalismo e antiliberalismo – numadestruição da Europa. Há umacronologia vital inexorável. O

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liberalismo é nela posterior aoantiliberalismo, ou, o que é o mesmo, émais vida que este, como o canhão émais arma que a lança.” 152

A única verdadeira superação do passado é contarcom ele. O liberalismo tinha sua razão e é preciso estaratento a ela. Mas, “não tinha toda a razão, e essa que nãotinha é a que se devia tirar-lhe. A Europa precisaconservar seu essencial liberalismo, condição parasuperá-lo”153. Conclui Ortega: “precisamos da históriaíntegra para ver se conseguimos escapar dela, não recairnela”. Mas, segundo o autor, dificilmente conseguirá esteintento o “garoto mimado da história humana”.

Por outro lado, o homem-massa de 1930 tinhaduas capitais, segundo Ortega: Moscou e Nova York. “OsEstados Unidos são, de certo modo, o paraíso das massas.Nem muito menos se pode estranhar que agora, quandoas massas triunfam, triunfe também a violência e se façadela a única ratio, a única doutrina”154. Disso resulta umtipo de Estado, um estado de massas:

“O Estado só é massa no sentido em quese pode dizer que dois homens sãoidênticos porque nenhum deles sechama João. O Estado Contemporâneoe a massa só se coincidem em seranônimos. Mas acontece que o homem-massa pensa, de fato, que ele é o Estado,e tenderá cada vez mais a fazê-lofuncionar a qualquer pretexto, aesmagar com ele qualquer minoriacriadora que o perturbe - que o perturbeem qualquer campo: na política, nasidéias, na indústria.” 155

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5.9 A ameaça da massificaçãoà heterogeneidade da EuropaUma das principais preocupações do filósofo

espanhol em A Rebelião das Massas é com o fenômeno damassificação, que acabaria com a variedade da Europa,berço da civilização precisamente por causa dessavariedade cultural - a heterogeneidade é um valorimportante para Ortega e que se opõe à homogeneidade,à coletivização, à massificação, à falta de nobreza e deestilo próprio no fazer a sua vida.

Neste sentido, a destruição da heterogeneidadeda Europa, que se inicia com a rebelião das massas, erauma ameaça à civilização que, em breve cairia naindistinção homogênea. A tese de Ortega é de que aEuropa (o Ocidente) é um heterogêneo tesouro dahumanidade, ameaçado pelo homem-massa e suahomogeneidade contra a diversidade. Defendendo oponto de vista de que a Europa é constituída de variedadeao invés de homogeneidade (posição que se diferenciamuito de quem acusa a Europa de ter um modo único epredominante de cultura), para Ortega esse continenteseria, antes, um equilíbrio, uma unidade de diversidades,comparável a um enxame de povos ocidentais que alçouvôo sobre a história desde as ruínas do mundo antigo eque caracterizou-se sempre por uma forma dual de vida,mistura de massa e minoria.

“Pois aconteceu que à medida quecada um ia formando seu gêniopeculiar, entre eles ou sobre eles seia criando um repertório de idéias,maneiras e entusiasmos. Maisainda. Este destino que os fazia, apar, progressivamente homogêneose progressivamente diversos, há de

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entender-se com certo superlativode paradoxo. Porque neles a ho-mogeneidade não foi alheia àdiversidade. Pelo contrário: cadanovo princípio uniforme fertilizavaa diversificação.” 156

Na opinião de Ortega, essas características estãoevidentes quando observamos as guerras européias.Segundo ele, elas mostraram quase sempre um curiosoestilo. Nessas guerras, diz Ortega, evitava-se aaniquilação do inimigo, já que eram verdadeiroscertames. Por essa razão, os povos europeus seriam, hámuito, uma sociedade, uma coletividade, no mesmosentido que têm estas palavras aplicadas a cada uma dasnações que a integram. Europa seria uma sociedade quemanifesta todos os atributos de uma comunidade. Temcostumes próprios, usos, opinião pública, direito, poderpúblico. Mas, segundo o autor, todos esses fenômenossociais se dão na forma adequada ao estado de evoluçãoem que se encontra a sociedade européia, que não é tãoavançado como o de seus membros componentes, asnações.

A unidade da Europa não é uma fantasia, segundoOrtega, mas uma realidade. A fantasia seria a crença deque a França, a Alemanha, a Itália ou a Espanha sãorealidades substantivas e independentes, que nãotenham a ver com a Europa. Porém nem todo o mundopercebe com evidência a realidade da Europa, por umfato que dificultaria essa visão: a Europa não é uma“coisa”, mas um equilíbrio. E esse equilíbrio consisteessencialmente na existência de uma pluralidade. Se essapluralidade se perde, aquela unidade dinâmica sedesvanece.

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Em 1931, o jornal La Nación publicou o artigo Los‘nuevos’ Estados Unidos, em que Ortega lembra de suasconferências de 1928 e da rebelião das massas, comolugares em que havia insinuado que, entre as causas dadepreciação vital da Europa (e do mundo, certamente),a mais curiosa seria a falsa idéia que ela deixou os EstadosUnidos colocarem em sua mente, no que se refere àtécnica. Contra essa enfermidade, Ortega só via umremédio: a unificação da Europa, para que voltasse aexercer um efetivo mando mundial.

Neste sentido, como é bastante conhecido, Ortegaadiantou a idéia de formação da União Européia, masimporta se perguntar sobre qual é o papel dessa novasuperpotência no jogo dos poderes mundiais, ou seja, atéque ponto a estética e ética de massas não afetaram,mesmo na Europa, os pilares da cultura ocidental, aponto de não haver mais possibilidade de umcontrapoder baseado em valores “autênticos”. Para ofilósofo espanhol, causava irritação e pena a cegueira demuitos de seus contemporâneos, com o avanço dopoderio norte-americano, até o ponto que Ortegaconsidera urgente o esforço para esclarecer esta “nova”perspectiva. E sugere duas ações: editar livros críticossobre a estrutura íntima da sociedade norte-americanae a publicação, em série, de artigos com idéiasalternativas sobre os EUA.

Estava claro para o filósofo que o remédio contrao mal do domínio intelectual dos Estados Unidos sobrea Europa era uma mistura bem dosada de história efilosofia, como os saberes, as humanidades, quepoderiam devolver aos europeus uma consciência de seutempo “e colocar a técnica dentro do edifício da cultura esubmetida ao seu influxo e direção.”157 O eixo paravertebrar novamente a Europa seria um programa moral,

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uma forma mais avançada de convivência européia. Oque reclama Ortega é a instauração de um novo conjuntode crenças sobre quem deve mandar e de que maneira asinstituições devem responder às demandas da época.158

No fundo, a ameaça das massas é a de fazer desaparecera dinamicidade interior da Europa, ou seja, adinamicidade da cultura, uma forma de homogeneidadeque ameaça consumir completamente o tesouro dacultura ocidental.

Como diz Moro Esteban, no artigo La crisis deldeseo. La Rebelión de las Masas a la luz de Meditación de laTécnica, Ortega vê a imaginação como o órgão da vidahumana. Ela é fundamental porque a vida precisa serconstantemente inventada, não é dada pronta, comoocorre, por exemplo, a uma pedra. É com a imaginaçãoque vamos fazer o programa de nossa vida (e o programado mundo). Ocorre que alguns se esforçam nestaautêntica faina. Outros delegam esse trabalho àcoletividade, à “gente”, o poder de ditar as leis sob as quaisirão viver159. A rebelião das massas impossibilita anecessária faina de dar sentido à nossa vida e à nossacircunstância maior: o mundo.

Moro Esteban lembra que, no mundo humano,coexistem duas fatalidades: a induzida por leis imutáveis,como aquela em que vivem as coisas ao redor do homem,em que não existe desejo. E aquela propriamentehumana: “a obrigação ontológica de aspirar a ser sem quecaiba outra opção”. Daí a noção orteguiana fundamentalde vida como drama, como movimento e vôo para alémde sua circunstância imediata, tão necessárias (hoje emdia cada vez mais) para superar as adversidades de umacircunstância que é suporte mas também restrição.

No entanto, em nenhum outro tempo essa vidaautêntica, dramática, esteve tão ameaçada quanto o

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início do século XX. As novas leis são uma ética e estéticade massas. Mas o principal fenômeno é que a técnica,altamente positiva ao resolver diversos problemas da lutado homem contra suas circunstâncias, liberou umadimensão humana que vivia escondida, sufocada pelorigor das circunstâncias até o século XIX. O homem doséculo XX (ou pelo menos o ocidental do século XX) quecomeça a viver neste mundo dado, feito ao redor, commuito menos dramaticidade, em que tudo funciona) sevê num grande mal-estar: o da crise do desejo, do desejode conhecer, de se aventurar às grandes perguntas, debuscar dar sentido ao próximo passo.

Moro Esteban aponta que, tanto em EspañaInvertebrada quanto nos outros livros já citados, Ortegaapresenta uma Europa (Ocidente) extenuada em suafaculdade de desejar. A acomodação, a ausência deesforço, atrofia e cria este tipo deficiente, deturpado, dehomens: o que não imagina, o que não cria, o que nãodeseja, o que perde o órgão essencial que caracteriza oser humano e o difere dos demais seres: a imaginação. Arebelião das massas é essa crise do desejo, crise daimaginação e do esforço ontológico de dar sentido (umsentido que nunca havia sido dado, mas que o novo-homem começa a viver pela primeira vez. É esse homemque Ortega chama em Meditación de la Tecnica de, “novorico”, o snob, senhorzinho satisfeito, bárbaro queascendeu pelo alçapão da história e vive na cultura comoem estado de natureza. O homem-massa naturalizouaquilo que é produto da técnica).

Por novo rico, entenda-se aquele personagem querecebeu um mundo pronto para seu deleite,tecnicamente resolvido, que ele não construiu e diferentedo vivido por todos os seus antepassados. Este homempoderia aproveitar a boa fortuna para fazer ainda mais

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em prol de sua “maioridade”, continuando o sentido deilustrar-se, de autonomizar-se. Mas o que ele faz éaproveitar os frutos, colhê-los como um selvagemarrancando bagas maduras das árvores e reclamar nãouma dramaticidade da vida, uma aventura da razão, maso contrário: ainda mais conforto, paralisia, atrofia daimaginação.

O século XX (e com certeza o início do XXI) vivesob o brutal império das massas. Esse homem-massa,“menino mimado” de nosso tempo, não reconhece oesforço criador, imagina ter mais direitos que deveres, éum obcecado pelas aparências e um insincero comrelação à sua própria existência. Moro Esteban ressaltaque ele vive uma pseudo-estética, essa deturpação daestética que é a do consumidor passivo que abdica de suamissão principal de inventar o argumento de sua própriavida. Este homem do nosso tempo abstém-se de inventaro argumento e também de buscar conhecer o absurdo emque está mergulhado - abdica de pensar, abdica defilosofar radicalmente (crise da filosofia, em Ortega,Origem e Epílogo da Filosofia), abdica do todo para viverconfortavelmente um mundo artificial, pormenorizado:desinteressa-se pelo todo, e superinteressa-se pela parte,transformando-se no bárbaro especialista que conheceabsolutamente tudo sobre quase nada e nada sobre quasetudo. É assim que ele, motivado pelos êxitos da técnicamoderna, converte a técnica mesma no objetivo últimoda vida. A técnica se transforma em razão vital. 160

Além da deturpação da estética, o homem-massavive uma deturpação da ética e uma deturpação dademocracia, a hiperdemocracia, em que a voz tonitroanteda maioria sufoca a gentileza e a nobreza de espírito dasminorias intelectualmente e espiritualmente culti-

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vadoras do esforço, intelectual, do drama ontológico, daimaginação vital. Diz Moro Esteban:

“Frente à democracia liberal, a hiper-democracia se caracteriza pela conquistado direito à vulgaridade e a atuação àmargem da disciplina que na primeiraprescrevia a lei. Por outro lado, de umaperspectiva ética, a nobreza se assimila àhumanidade frente à prepotêncianascida da nua exigência de direitos e asimultânea isenção de deveres.” 161

Mas que alternativa existiriam para essehomem-massa? Segundo Moro Esteban, Ortega nãoacredita seriamente que seu oposto, o homem autêntico,o gentleman, seja uma alternativa sociológica aos temposde dominação do homem-massa. No entanto, oimportante é que ele representa um ethos, que pode serutilizado como exemplo. O caráter de exemplaridade éfundamental e essa é a função de uma minoria deartistas, filósofos e outros: ajudar a discursar contra ofetichismo técnico, opondo-se ao esvaziamento da vidae da cultura.

Neste sentido, Ortega pode ser visto como um dosautores que no século XX saem em defesa dos valores dacultura, contra o predomínio da civilização técnica. MoroEsteban vê a possibilidade de um “novo humanismo”para preencher os vazios e reimprimir o desejo, atravésdo estabelecimento de uma racionalidade nova, na quala razão carregue um desejo nutrido pela imaginação. Mashá desejos profundos e desejos superficiais e o tecnicismoacabou com aqueles e armou o palco para estes. A técnicalibertou o homem dos vínculos com a cultura e o instalounuma civilização que, desde a perspectiva da sociedade

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industrial, tem se constituído na separação entreexecução e ideação, ponto fundamental da desu-manização no trabalho e da alienação dos homens:

“Temos como resultado um homemdócil às grandes multinacionais,sempre interessadas em servir pro-dutos meramente cosméticos egratificações a la carte.” 162

No entanto, o comentador ainda temesperança numa mudança de quadro e, exatamente pelaspróprias possibilidades da técnica. Novas tecnologiaspossibilitam ao homem atual uma interatividade nuncavivida em nenhuma época. Traz para o debate o conceitode “indivíduo-rede”, que coloca como oposto ao homem-massa, e o de “prossumidor” (conceito de Alvin Toffler),o consumidor-produtor, que recuperariam um discursosobre a independência e a autonomia individual,possibilitando também se “construir a novela de nossavida que imaginara Ortega y Gasset.” 163

Para María Cristina Pascerini, em Reflexiones sobrela Crisis de la Vida Colectiva en la Rebelión de las masas. Unavisión dantesca de la sociedad?, A Rebelião das Massas, talcomo A Divina Comédia (2000), de Dante Alighieri,denuncia a crise na sociedade depois de chegada ao poderuma nova força social. O autor, segundo a comentadora,percebeu uma mudança profunda que se dava nasociedade de sua época e, como Dante, demonstra umapouca estima ao novo grupo social – a massa – quechegava ao poder. No entanto, Ortega é mais otimistaque o poeta italiano e mantém uma esperança no homemde sua época, já que acha perfeitamente possível resgatar

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a sociedade da crise em que está mergulhada por causado império das massas.

Bastaria que minorias empreendessem nelanovos projetos que lhe dessem vitalidade e vertebração.Essa é a esperança de um pedagogo, tal como o Mênomde Sócrates, a lhe perguntar se a virtude pode serensinada. Ortega crê que o papel da minoria é justamentefazer essa pedagogia social, fazendo da massa algoesforçado, posto a superar-se a si mesma. Para isso, anosso ver, seria necessária uma espécie de NovaIlustração, baseada na razão vital, projeto sem o qual ainvertebração e inversão de valores não poderiam serrevertidos.

Além disso, por mais que Ortega insulte asmassas, à maneira de Heráclito, o império das massastem pelo menos uma vertente favorável, pois significauma subida de todo o nível histórico. Seria um momentopara a humanidade dar um passo ainda mais largo emdireção à construção de um mundo mais autêntico, maishumano. Mas, para tal, seria necessária a intervenção deuma minoria, por mais que essa posição causasse mal-estar em alguns de seus ouvintes:

“Por um lado o filósofo faz uma análisesincera da sociedade; sua franquezapode inclusive chegar a nos molestar,em primeiro lugar porque nos obriga ainterrogarmo-nos sobre a nobreza ouvulgaridade da vida que levamos; emsegundo lugar porque não o preocupaa impopularidade de afirmar rotu-ndamente que não considera capaz aogênero de homem que domina hoje, ohomem-massa, de impulsionar vital-mente a civilização”.164

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A mudança, para Ortega, é possível e requeresforço, um esforço a cada dia mais dificultado. O motivoé que as próprias minorias estão mais desqualificadaspara tal pedagogia. A tal ponto que, como comentaPascerini, o norte-americano Chistopher Lash, autor de“La Rebelión de las Élites” afirma que as minorias, naverdade, deserdaram de qualquer função como a queOrtega esperava. Lash afirma que, se para Ortega, odomínio das massas era uma ameaça maior para a ordemsocial e as traições civilizadoras...

“...Em nosso tempo se inverteu asituação, pois o perigo procede agoradas elites, das minorias que já não têmvalores, e ainda lhes preocupa menos oprogresso da civilização. Só o que osinteressa, adverte Lasch, é o bomfuncionamento do mercado, sem sentirnenhuma obrigação intergeracional,nem até o passado nem até o futuro, demodo que hábitos mentais que Ortegaencontrava no homem-massa carac-teriza hoje segundo Lasch as elitesdirigentes e profissionais, as classesdirigentes.”165

De toda a forma, A Rebelião das Massas e opersonagem “homem-massa” seguem orientando parauma leitura fértil da sociedade contemporânea, comodeixa claro Alonso Guillermina Dacal en La rebelión de lasmasas: pronóstico de una realidad desafiante (2000). Segundoela, os grandes avanços do século XX tambémrepresentam grandes retrocessos, principalmente no quese pode ver em relação ao viver dos seres humanos. Nossotempo segue sendo de grande imprevisibilidade, tal comoforam todos os outros tempos anteriores, com a

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diferença de que há uma ilusão de que essaimprevisibilidade já não exista. Nesse novo mundo, asminorias não dão exemplo, perderam sua vida nobre eas massas já não fazem mais (e talvez com razão) cumprirsua função de docilidade para criar novos usos. Aausência dos melhores e a deturpação das elites deixamcada vez menos saída para o problema da invertebraçãoda cultura e para o restabelecimento de valores,conduzindo a sociedade a uma vida menos deturpadorados valores vitais.

“Hoje se busca a eficiência, a utilidadeefetiva e nada mais; o homem não podeser criativo, original, não lhe podeacontecer nada que a sociedade nãotenha previsto, e é que vivemos nummeio massificado, um meio que nãoajuda ao homem manter-se naexistência própria e individual.Portanto tem feito que a existência dosindivíduos seja uma existênciaimpessoal, generalizada, ou seja, umaexistência massificada”166

A rebelião das massas, ainda em pleno vigor, podeser o trânsito para uma nova sociedade, mas tambémpode representar uma catástrofe no destino humano,afirma a comentadora. Isso porque no processo históriconão existe progresso seguro, nem evolução sem aconstante ameaça de retrocesso. “Por isso este adventoda massas, nos está trespassando e deve ser objeto dereflexão para que marchemos com firmeza entre ascausas e as possíveis conseqüências; e assim resgatar,revalorizar o acontecer humano.”167

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6. Conclusão

A filosofia nasce como oposição aos múltiplosdesmandos que se constituem na humanidade, dossacerdotes, de certos tipos de políticos etc. Por isso, paraOrtega, como lembra a coordenadora do curso deFilosofia da Universidade de León, Espanha, Maria IsabelLafuente Guantes, ela é um insulto e o que filosofa éaquele que necessariamente se opõe a algum desmando- no caso de A Rebelião das Massas e, quem sabe, de toda aobra de Ortega, aos desmandos do homem-massa. Afilosofia surge do descontentamento e supõe um ataquecontra um adversário ao qual se manifesta o desprezoque sua ordem teórica e prática merece, servindo-se deimpropérios. Ortega mostra que a filosofia supõe e exigecondições de criação, de invenção, de riqueza, de eleição- portanto, de liberdade - razão pela qual sempre terácomo adversário a insuficiência, entendendo que esta semostra expressamente no homem-masa, no vulgo quese nega a exercer sua constitutiva liberdade. Além disso,para Ortega a filosofia sempre exige uma criação deestilo. Observa que toda crítica ao homem-massa éproveniente destas idéias e, se a crítica é para estehomem um insulto, é porque, “entre outras coisas se negaa pensar”.

Certo é que, se para Ortega, a filosofia é “para-doxa” é porque ele entende a doxa como opinião comum,mais precisamente: “opinião pública”, de forma que afilosofia vai sempre contra a opinião pública, a queassenta como inamovível a ordem tribal com seu chefe eacólitos. A comentadora lembra, também como jádeixamos claro neste livro, que a filosofia, como sustentaOrtega, é metafísica, e a metafísica é o que fazemos todos,

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quando vivemos... De maneira que resulta que não éapenas a filosofia acadêmica um insulto, mas tambémque prioritariamente o que parece um insulto é a buscada razão vital. A diferença – ressalta - entre o homemautêntico e o homem-massa existe porque aquele aceitaa crítica, o insulto, que provém da razão vital, enquantoque o homem-massa, que não aceita esta crítica, atuarácontra sua própria razão vital. Supõe-se daí que se poderesponsabilizá-lo por sua situação. O homem-massa épaciente e agente de sua condição de massa.

Essas são, em linhas gerais, as dimensões do temaque quisemos apontar. Podemos concluir que,delimitado pelos dois flancos da filosofia e da sociologia,percebemos que o homem-massa é um conceito maispróximo da filosofia (ou metafísica) orteguiana e arebelião das massas, um conceito mais sociológico.Homens-massa sempre existiram, desde o início dafilosofia até hoje, porém não as condições materiais(técnica) para que ocorresse a rebelião e ascensão dohomem-massa, ao poder, como no século XX. Podemosdizer, então, que há um homem-massa intemporal (o quedesde sempre vive na opinião, na tradição, nos usos, eque não filosofa) e um homem-massa atual, que irrompeao cenário da humanidade, com a explosão demográficada virada do século XIX para o XX, possibilitada pelosavanços técnicos e pela crise de uma razão semsubstância. Haveria, assim, um homem-massa comotraidor metafísico (ou seja, que não filosofa, que não fazmetafísica, já que metafísica se vive, em Ortega), nosentido em que se trata de um homem que se abstém defazer a si mesmo, com autonomia, de viver adramaticidade de sua vida, de esforçar-se por dar sentidoa si próprio e que, em sua dimensão social faz do mundosua imagem e semelhança.

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O homem-massa sempre existiu e, muitas vezes,foi tratado por impropérios por diversos filósofos, desdeHeráclito e Parmênides. Já no início, esse tipo de pensaravesso ao dogma se manifestou como um insulto àopinião corrente, não tanto como forma, mas mais comoefeito sobre um homem-massa detentor de falsasverdades, cultivador de simulacros e arbitrariedades, quesempre foram exatamente o alvo da atividade filosófica.Pensar é pensar contra. É opor-se e, principalmente,opor-se aos desmandos, ao injustificado, ao arbitrário.Esse o adversário de todo o filósofo.

A filosofia, no sentido orteguiano, é um dardejarcontra o vulgo, à maneira de Heráclito, Parmênides eoutros filósofos da antigüidade. De uma certaperspectiva, essa filosofia nascente deu lugar, com otempo, a um pensamento abstrato, produto da razãofísico-matemática, que foi insuficiente e impotente paradar conta do mundo, tornando-se, ele próprio, umpensamento menos plenário, com menos afã de conhecero todo, tal como faziam os filósofos antigos, mais seguro(e portanto menos vital, já que a vida é insegurança eesforço natatório), até mesmo mais burguês, menosaventureiro.

Essa filosofia pouco norteada pela aventura, queopta por um método seguro, que se pensa mais comociência (restrita, portanto) do que como olharassombrado para um objeto desconhecido (o universo oumultiverso) faz nascer um tipo de pensador também elehomem-massa: o especialista, o bárbaro que, porabstenção, deixa de fazer as perguntas realmentenecessárias (filosofia, metafísica), para viver nasegurança de um objeto menor, que investiga nas horasde seu expediente. Nada mais artificial, nada menos vital,

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nada menos autêntico que este pensamento burguês quetoma conta do mundo atual.

Ortega, portanto, vai identificar o homem-massaaté mesmo neste intelectual da razão físico-matemática,no homem que vive de abster-se, que vive de preocupar-se em desocupar-se (do resto). E também contra ele vailançar impropérios, num insulto que, em últimainstância, tem como objetivo uma revisão da filosofia ede seus principais conceitos, entre eles o de ser, o desujeito e o de razão. O homem-massa vive a razão físico-matemática (instrumental), o homem autêntico vive arazão plenária, a razão vital, fundada na vida e na vidaindividual, não a coletiva, não a grupal, comunal, dosusos. O indivíduo é ponto arquimédico nessaantropologia filosófica, mas não o indivíduo apartado domundo e sim o indivíduo que se sabe no mundo, que secompreende como vivente nas circunstâncias, maisplenário, é um eu-circunstâcia.

É desta perspectiva que mostramos, nestetrabalho, que o homem-massa é um contraponto àantropologia filosófica orteguiana, afinal esta se baseiaem um sujeito eu-circunstância, que vive a plenitude deuma razão que vem da vida, uma razão vital. É um sujeitoque não se abstém de fazer a si próprio, que é autonomia,mas não solipsismo, que não está fechado em si mesmo,mas que é ele e as circunstâncias ao mesmo tempo, comas quais e contra as quais vive, responsavelmente,esforçadamente, desportivamente. Este homemautêntico representa, para Ortega, ainda uma saída paraa sociedade de massas atual, carente de suas qualidades

Um enorme problema, e que exige as qualidadesde verdadeiros pedagogos sociais, é fato de o homem-massa ser em muito maior número do que o autêntico,na sociedade de massas. Mas é preciso, a partir da

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educação, reverter o caráter de massa, de multidão que,por suas dimensões chegam a pôr em risco os valores dahumanidade, pacientemente construídos, segundoOrtega, na docilidade, no seguimento da exemplaridadeque alguns homens exercerem positivamente sobre asmassas. Para que não ponham em risco, é precisoreinvertebrar a sociedade ocidental, diminuindo osefeitos da quebra da tensão massa-minoria, daindocilidade e do não-seguimento do exemplo dasminorias. Mas primeiro é preciso indivíduos educadosna razão vital, plenária, e é neste sentido que a filosofia(metafísica orteguiana) segue útil para se pensar etransformar a sociedade atual.

Se por um lado, a razão é vital ao ser humano,como indivíduo, por outro, é vital à humanidade comoum todo, tomando, nesta dimensão, a forma de razãohistórica, também ela uma compreensão peculiar de umarazão substancial, não redutível à dimensão físico-matemática. E se a sociedade de massas atual carece derazão histórica é porque o homem-massa atual não temrazão vital. Uma reforma da sociedade é possível comuma perspectiva raciovitalista que recoloque uma razãovital a fundamentar o que hoje é fundamentado demaneira utilitária e pragmática pela razão físico-matemática.

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POSFÁCIO

Cultura digital e desmassificaçãoEm 2020, o mundo deverá ter mais de 24 bilhões

de dispositivos conectados em rede, como apontampesquisas da empresa Machina Research (http://www.machinaresearch.com/), especializada no tema.Com isso, haverá uma média de três aparelhosconectados por pessoa, incluindo celulares,eletrodomésticos, tablets e até computadores. Elespoderão ser utilizados heteronomamente. Ou de modoum pouco mais autônomo. Se de maneira heterônoma,continuarão gerando massificação, mesmo que venha aser um tipo customizado de massificação. Se de formamais autônoma, poderemos ver a emergência deindivíduos-redes desmassificados?

Certamente que os atuais avanços da era digitalpodem, se bem aproveitados, gerar um ambiente menosfavorável à homogeneização cultural e à vigência docomportamento do que Ortega chamou de homem-massa - este produto da técnica da era industrial que sedesenvolveu na virada do século XIX para o século XX.Agora, em pleno século XXI, mais uma vez odesenvolvimento técnico vem trazer questõesimportantes para se pensar sobre como o ser humano secomporta em relação à tecnologia que ele mesmodesenvolve.

Diferentemente do homem-massa delineado porOrtega na década de 30 do século XX, os seres humanosatuais, do ponto de vista tecnológico, têm abundantescondições de viver numa multidimensionalidade dacultura. Há mais acesso à diversidade cultural e àscondições de se fazer as recombinações de elementos,processos e visões de mundo, muito mais do que em

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qualquer outro momento da humanidade. Portanto, emse tratando de cultura, essa palavra cujo sentido emmuito tem a ver com modos de fazer, de técnicas einteração de indivíduos entre si e destes com a natureza,uma cultura ligada ao ambiente digital não pode serdesconsiderada numa leitura mais plena de nosso tempo.

A cultura digital e seus rebatimentos estéticos(diversidade cultural e recombinações), éticos (ética docompartilhamento) e políticos (ação cidadã em rede,descentralizada e com menos mediação de estruturasverticais) são, em termos mais amplos, um importantetema de nuestro tiempo. Não se trata mais da perda daaura da arte na época de sua reprodutibilidade técnica -como assinalava Walter Benjamin - mas, devido àdesmaterialização dos suportes ocorrida nas últimasdécadas, trata-se da perda da aura da obra de arte naépoca de sua infinita reprodutibilidade técnica.

Há mais condições de heterogeneidade,diversidade, inter e transculturalidade, portanto maiscondições (e responsabilidades) dos sujeitoscontemporâneos fazerem a si próprios. Foram décadasde unidimensionalidade (O homem unidimensional, deHerbert Marcuse). Nelas, a sociedade industrial impunhaquase que uma única dimensão da vida: umaracionalidade “tecnológica” (físico-matemática, paraOrtega) de mão única. Ela dominava e oprimia por meiode aparatos de controle das consciências humanas, meiosde entretenimento e comunicação de massa quehiperdimensionavam em todos a pulsão de vida (sexo,jogos, entretenimento) e a pulsão de morte (violênciaurbana e sensação de insegurança extrema). O resultadoeram homens e mulheres autômatos, incapazes de seopor ao sistema, pois vivendo a mecânica doconformismo, dentro das benesses do conforto.

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Agora, com as novas condições, não há tambémmais desculpas: o homem-massa, paciente e agente desua condição de massa, invertebrado habitante doambiente técnico-consumista do século XX, dominadopelo mercado, por partidos, sindicatos e estadosortopédicos, de cima para baixo, não tem mais a quemjogar a responsabilidade. Ele pode recuperar suaautenticidade, como em nenhum outro momento daHumanidade. A técnica do século XIX engendrava ohomem-massa, dizia Ortega. A técnica do século XXIpode engendrar o pós-homem-massa.

Se para os frankfurtianos e para a teoria crítica,o comportamento heterônomo era inculcado pelaindústria cultural nas cabeças das pessoas, hoje esteelemento se fragmenta. Desaparecem dia a dia osmediadores e as indústrias de fabricação de suportesmateriais da arte e, de todo lado, movimentos deindivíduos em rede trazem as visões da periferia para ocentro do debate sobre cultura. Com tudo isso, é possíveldizer que estão dadas as condições técnicas para asuperação tanto do homem massificado quanto dohomem atomizado, fechado em si, solipsista, consumistaindividualizado e não participante de sua circunstância?

Em vez de massa, o comumPelo menos há mais condições de surgirem

pessoas conscientes desta circunstância e que seconectam a outros, em rede, para gerar capacidade deinfluir e de produzir narrativas novas, mais autônomasque heterônomas. É também outra ideia de coletivo, nãoa que Ortega criticava, em cujo interior as ideologias dasgrandes narrativas achatavam as consciências. Trata-sede uma ideia de coletivo em que ponto a ponto, pessoa apessoa, os sujeitos que o compõem têm liberdade de ser

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e de pensar por si próprios. Em vez de massa, poderemosfalar em “comum”, em que os indivíduos, com maisliberdade do que antes se reúnem livremente,autonomamente, para colaborar, para trabalhar emconjunto. A massa é passiva, o comum é ativo.

Estão dadas condições para um pós-homem-massa, integrante de uma humanidade-rede, diversa,amalgamada, em que aos traços da homogeneização cul-tural são acrescentados uma heterogeneidade viva deindivíduos em rede, formando coletivos que pensam ocomum a partir da contribuição efetiva, ativa e crítica deseus integrantes. A esses está colocado o problema desaber a que se ater e compreender o “tema de nossotempo”. Também se pode falar na necessidade deconstrução de uma outra ideia de Estado, de partidos eideologias, não ortopédicas (como criticava Ortega), mastambém não ausentes a ponto de permitir o laissez-fairedo século XIX, o liberalismo econômico (que ele tambémcriticava pela substituição que este fazia dos valores, porpreços) tomar conta da cultura.

É tempo de falar sobre as condições depossibilidades da superação da dicotomia massa-minoriaabordada por Ortega pois, como as condições da análisede Ortega mudaram - as circunstâncias técnicas setransformaram - a pedagogia social e o papel dasminorias mudam também. Precisamos de uma síntesenem horizontalista (massa) nem verticalista (minoria),mas uma espécie de diagonal provocadora de sínteses econvergências: é a era do “e”, das conjunções. O desafio ésimilar ao que Ortega colocou-se: o de não ser binário,idealista ou realista, nem racionalista nem vitalista, nemeu nem circunstância, mas amálgama de um e outro.

Dessa maneira, a tensão massa-minoria dassociedades, pela descentralização dos meios de produção

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e reprodução da cultura, traz outro sentido: a pedagogianecessária não é aquela de poucos homens autênticos,nobres, seletos e esnobes do início do século XX, atuandosobre a massa, mas uma vanguarda formada por pessoasconectadas em rede no mundo todo, capazes de liderarprocessos locais e globais de combate àunidimensionalização do mundo, à massificação e àhomogeneização cultural. Autênticos, pode-se dizer, porprofessarem e viverem valores vitais, colaborativos, portrabalharem com uma razão com mais substância que arazão instrumental, físico-matemática. Não sabemos oque Ortega pensaria disso, hoje. Talvez não concordassecom estas conclusões. Mas, como pensar era, para ele,aventura de entusiasmo raciovital, assumimos seuraciovitalismo como ponto de partida para a aventurada razão. Não como ponto de chegada, o que seriatambém um ortopedismo que, seguramente, Ortegadesaprovaria.

Assim, tendo como base o “nem racionalismo,nem vitalismo: raciovitalismo”, de Ortega y Gasset,temos a possibilidade de pensar em um programaraciovitalista para a superação do problema damassificação nos tempos de hoje. Tempos em quevivemos um híbrido de era pré, industrial, e pós-indus-trial, e em que a homogeneização cultural e apadronização de comportamentos começam a sercontestadas em todos os cantos do mundo onde hajaacesso à internet e sua consequente possibilidade de açãoem rede, não do ponto de vista utilitário e consumista,mas cultural: a cultura digital.

Neste sentido, mais que a conexão física,obviamente fundamental, o que importa é a cultura derede, a cultura colaborativa, pós-industrial e pós-massificante que vem sendo construída, pessoa a pessoa,

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nessas conexões. Em nosso entendimento ela, a culturadigital, é condição para revitalizar a própria ideia decultura, pesadamente homogeneizada. Ela é condição depossibilidade de se desmassificar, “destampar” o vital dadiversidade cultural, das culturas populares, do interiordos países (e seu conteúdo extremamente valioso doponto de vista de uma metáfora daquilo que se temdentro, que tem entranha, que tem conteúdo, em vez dosuperficial, ostentatório, distintivo ou apenasmercadológico da cultura de produção fordista paraconsumo de homens-massa).

Há uma razão sendo produzida nas redes, quenão é apenas técnica nem puro vitalismo irracionalista,mas uma razão que vem da vida (de milhões de vidas deindivíduos eu-circunstâncias em rede), com um potencialenorme de trazer novos valores à tona. Se, como disseOrtega y Gasset no início do século XX, o sujeito é umeu-circunstância, devemos considerar a circunstânciaatual de intensa conectividade ponto a ponto. Nessa, nãomais pela pedagogia social de minorias, mas pelaexemplaridade da participação ponto a ponto, o homem-massa da sociedade massificada tem condições de setornar um pós-homem-massa, desde que utilize as no-vas tecnologias para gerar autonomia, em vez de seutilizar dos mesmos para gerar heteronomia,homogeneização e consumo massificado.

O ambiente digital provoca, com suaspossibilidades, o homem a fazer novas narrativas de sipróprio, em termos de valores, propriedades, ideia de sie da sociedade etc. O digital é uma nova circunstância.Se o homem-massa é produto da era industrial que gerouo chamado “fenômeno do pleno”, o consumo em massae a homogeneização da cultura, é preciso pensar se asmudanças tecnológicas do nosso tempo, com a

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emergência da internet e das redes também não dãocondições para uma superação do problema criado pelarelação desresponsabilizada do homem com os produtosda técnica daquela época, bárbaros a colherem seusprodutos, como em estado de natureza. Conseguirão ossujeitos de hoje utilizarem estes ambientes de rede deforma a gerar autonomia e sujeitos-redes, indivíduos-redes, eu-circunstâncias-redes, ou, ao contrário, orearranjo do mercado conseguirá repor o quanto deelemento homogeneizador necessita para a sociedadecontinuar sendo massificada?

Pós-homens-massaAqui e ali já se notam as estratégias das empresas

na internet para gerar comportamentos massivos atravésde ambientes pós-massivos. São espécies de homens-massa customizados, a parecerem indivíduosautônomos, mas no fundo não só seguem comoaprofundam os padrões de consumo da era industrial.Um perigo é que, com as novas tecnologias de produçãopós-industriais, a produção capitalista atual sabe que nãoprecisa mais fazer nada em série, nem seres humanosem série. Hoje, trabalhando com a tática de criar – elesdizem “descobrir” - nichos de mercado, ela amplia seupoder ao fazer homens-massa customizados, comaparência de autônomos.

As roupas e os cabelos parecem diferentes entresi, mas este tipo de homem-massa customizado segue omesmo por dentro: inautêntico e diminuído ao elementofundamental do consumidor, em vez de responsável porfazer sua própria vida. Mesmo no ambiente pós-massivo,este tipo massificado pelo mercado continua massa, poissegue sendo educado pelo mercado e pelos usos dasociedade desvitalizada pelo pragmatismo utilitarista,

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materialista e agora pela internet para se comportarcomo massa, invertebrada e vaga.

Em sentido contrário, nunca se teve tantascondições de se “hackear”, fazer truques, implantes,rachas no sistema. A articulação da cultura colaborativadigital com a economia solidária tem revelado umpotencial gigantesco de revitalização cultural, em todo omundo onde ela se desenvolve. Uma das razões é que elaé capaz de “destampar” culturas populares rurais,urbanas, suburbanas, antes invisibilizadas, por suacapacidade de descentralizar e multidirecionar os fluxosde informação e de recursos, antes unidirecionalmenteativados desde um centro industrial para o consumo demassas. Sua capacidade de transversalidade etransdisciplinariedade permite que se gerem soluções ealternativas, convergências entre futuro e passado, desaberes e fazeres tradicionais com as inovações de ponta,sem no entanto isso significar homogeneização, masmistura, diversidade, amálgama ou síntese.

E como seria este pós-homem-massa? Demaneira dialética, é preciso procurar a virtuosa posiçãode convergência, como Aristóteles ensina com o seucerteiro meio-termo justo. Com as condições atuais, elepode sair do binarismo. Pode não ser nemhorizontalidade nem verticalidade somente. Pode deixarpara trás a infértil ideia de não-sujeito da pós-modernidade, da quase anulação da possibilidade de agiresteticamente, politicamente e eticamente da pós-modernidade, mas não precisa retornar ao indivíduosolipsista cartesiano, cheio de uma moral e de uma razãomortas, como alertava o filósofo espanhol. Nos dias dehoje, começamos a ter a convivência de indivíduossolipsistas, homens-massa, homens-massa custo-mizados e pós-homens-massa.

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Correspondências eletrônicas entre a orientador Maria IsabelLAFUENTE GUANTES, e o autor deste trabalho(jé[email protected])

NOTAS

1 A idéia de para-doxo é fundamental para a compreensão daFilosofia, segundo Ortega y Gasset (1983) e, por conseqüência, paraentender a fundamentação radical da Sociologia que o autor quisfazer.2 No império do homem-massa, Ortega y Gasset nunca seráperdoado por sua franqueza e pelos insultos que fez circular pelosjornais e revistas mais importantes da Espanha e América Latina,no início do século XX, contra o vulgo.3 Este olhar é condição sem a qual não se faz arte, conforme oescritor italiano Ítalo Calvino em Seis propostas para o próximo milênio.Ao abordar o tema da leveza, Calvino lembra que o único herói capazde decepar a cabeça da Medusa é Perseu. Por voar em sandáliasaladas, mas, principalmente porque “não volta jamais o olhar paraa face da Górgona, mas apenas para a imagem que vê refletida emseu escudo de bronze” (Calvino, 1997). Esse “olhar indireto” é o olharpróprio do escritor, ou seja, o que não se deixa petrificar pelarealidade. Ao enfrentá-la de frente o cientista e o filósofo estãocondenados a virar pedra. Ortega y Gasset parece intuir essapetrificação perpetrada pela linguagem puramente conceitual, e aevita.

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4 Ou a falta de engajamento que os deixou a ambos em cima domuro, tantas vezes acusados mais pelo que silenciaram do que peloque falaram. Ortega y Gasset, no caso da Guerra Civil Espanhola(1936-1939); Erasmo, na resposta que a Igreja lhe exigia sobre aReforma. Como Erasmo, Ortega y Gasset foi, sem dúvida, umpensador entre dois mundos. No caso do holandês, um homementre a Idade Média e o Renascimento. No caso do espanhol, umpensador entre o mundo moderno e o pós-moderno, entre o racionale o vital, como mostraremos em nossa leitura de “Unas Leciones deMetafísica”. Erasmo não sabia se era o último pensador da IdadeMédia ou o primeiro do espírito renascentista, entre o Catolicismoe o Protestantismo. Ambos tentaram ser comedidos e razoáveis,optando pelo conselho aristotélico do meio-termo justo. Ambostentaram dizer o que queriam por meio de bela e poderosaexpressão, mais que pelo texto direto - e comprometedor. Ambosescreveram contra e insultaram meio-mundo.5 Sobre este período, afirmaria mais tarde, em A Rebelião das Massas:“Durante dez anos vivi no mundo do pensamento kantiano: eu orespirei como a uma atmosfera que foi, ao mesmo tempo, minhacasa e minha prisão (...) Com grande esforço, consegui evadir-meda prisão kantiana e escapei de sua influência atmosférica.” (Ortegay Gasset, 1967)6 Para José Ferrater Mora: Ortega y Gasset não foi somente filósofo.E muitos pensadores quiseram ser somente filósofos. “Su principalpreocupación fue siempre, sin duda, la del pensamiento filosófico.Pero junto a um nuevo estilo de pensar, creó um nuevo estilo deexpresar-se – ambos, por lo demás, íntimamente unidos”. Este estilonão foge inteiramente de certo maneirismo à moda dos escritoresespanhóis. Mas o fundo desta linguagem está sempre impregnadode pensamentos. Inclusive quando a descrição predomina sobre aanálise se vê, na opinião de Mora, o autor desejoso de considerar aprimeira apenas como um ponto de partida para a última. Nãodeveria causar surpresa, então, que Ortega y Gasset chegasse adefender a expressão metafórica como instrumento legítimo deanálise filosófica.7 JAGUARIBE, H., in ORTEGA Y GASSET (1982), História comoSistema, p. 5.8 Ibidem, p.4.9 Ibidem, p. 4.10 Ibidem, p.6.

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11 Ibidem, p.7.12 Ibidem, p.7.13 Ibidem, p.25.14 CALMON, in ORTEGA Y GASSET (1962). A Rebelião das Massas,páginas não-numeradas.15 Ibidem.16 SÁNCHEZ CÁMARA, I. Revista de Filosofia, Vol. 9, 1976, p. 75. “Lavida no nos viene dada hecha sino que tenemos que hacerla; esdrama, acontecer, quehacer. Eso, sí, es libertad en la necesidad.Consiste en tener que elegir necesariamente y en una circunstanciaforzosa, inexorable. Y este atributo vital de la libertad es el origende la dimensión moral de la vida humana. El hombre es, y en elloconsiste su misma peculiaridad, un constante afán deperfeccionamiento. Por ello es un ser de tal condición que puedevivir bien o mal, mejor o peor, tratando de realizar un proyecto devida egregio y no vulgar, auténticamente, realizando su vocación oinauténticamente, traicionando su proyecto vital”, traduzido peloAutor.17 FERRATER MORA, Ortega y Gasset – Etapas de una filosofía, p.15.““Al describir la obra de um autor como ‘obra filosófica’ tenemos,pues, que comenzar com ser cautelosos y aclarar em la medida de loposible el significado de um vocablo tan desesperantementeambiguo como es el vocablo ‘filosofia’. La filosofia de Ortega es declasificación especialmente difícil, porque nuestro filósofo ha sidouno de los poquísimos em la historia moderna que ha tenido claraconciencia del caráter problemático de la actividad filosófica.”18 Ibidem, p.16. “Si, por ejemplo, prestamos demasiada atención ala unidad del pensamiento de Ortega corremos el riesgo de perderel sabor de su variedad. Si, por el contrario, insistimosexcesivamente en la diversidad de los temas pronto perdemos devista la fuente de la cual todos ellos emanan”. O modo de exposiçãodessa filosofia se aclara quando prestamos atenção nas própriaspalavras de Ortega, para quem o melhor método, quem sabe o único,capaz de dizer a realidade humana é o método narrativo, comoabordaremos em um capítulo sobre o tema. Nele, exporemos comoOrtega se opõe à exposição conceitual e reabilita a metáfora comoinstrumento de trabalho da filosofia.19 Ibidem, p. 256. Sobre essa questão, Ortega diz que foi necessárioa humanidade ver surgir o século XX para presenciar o incrívelespetáculo da peculiar brutalidade e agressiva estupidez com que

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se comporta um homem quando sabe muito de uma coisa e ignoraradicalmente todo o resto.20 Ibidem, p. 257. “Ahora bien, esa interna constitución del europeumedio, incapaz de contribuir de manera creativa al progreso de lacivilización y sólo hábil para ser un usuario de sus beneficios,provoca una consecuencia de mayor envergadura: se confundecultura con la técnica y se juzga aquélla por ésta. De ahí tambiénque Europa comience a verse a sí misma como inferior aNorteamerica. Esa sensación de regresión y de ausencia de unmando histórico efectivo difunde la idea de ‘decadencia’ de Europa.”21 Ibidem, p. 257.22 Conforme Lafuente Guantes, em correspondência eletrônica como autor no dia 31 de maio de 2005, “La filosofía no empiezainsultando, empieza imprecando, exigiendo la justificación del otro,y luego lucha, se opone a su adversario y si es necesario le insulta,pero no al revés, primero le insulta, esto no sería filosofía,‘elegancia’,sino chulería. Y, cuando la filosofía insulta es por qué el otro no sabelo que dice, es decir, no piensa”.23 ORTEGA Y GASSET, Origem e Epílogo da Filosofia, p.223.24 Ibidem, p. 225.25 FERRATER MORA, Dicionário de Filosofia, Tomo III, p.2.210.26 Ibidem, 231.27 Ibidem, p.231.28 Ibidem, p.237.29 Ibidem, Tomo II, p.1319. Na tradução de Emmanuel CarneiroLeão, em Os Pensadores Originários: “Conjunções: completo eincompleto (convergente e divergente, concórdia e discórdia, e detodas as coisas, um e de um, todas as coisas)” (p.61).30 Ibidem, p.1318.31 Ibidem, p.1318. Assim traduzido por Carneiro Leão: “Um, o saber:compreender que o pensamento, em qualquer tempo, dirige tudoatravés de tudo” (p. 69).32 Ibidem, p.1318.33 Ibidem, p. 263.34 Ibidem, p. 263.35 Ibidem, 264.36 Ibidem, 264.37 Ibidem, p. 269-270.38 Ibidem, p. 274.39 Ibidem, p. 274.40 Ibidem, p. 278.

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41 Ibidem, p. 280.42 Ibidem, p.265.43 Ibidem, p.265.44 Ibidem, p.267.45 VITA, in ORTEGA Y GASSET, O que é filosofia?, p. 16.46 Ibidem, p.36.47 Ibidem, p. 51.48 Ibidem, p.71.49 Ibidem, p.63.50 Ibidem, p.71.51 Ibidem, p.73.52 Ibidem, p.75.53 Ibidem, p.101.54 Ibidem, p. 264-265.55 ORTEGA Y GASSET, História como Sistema p.49. “Como a llegadoa ser sino esto? Y la respuesta es el descubrimiento de la trayectoriahumana, de la série dialéctica de sus experiencias, que, repito, puedeser otra pero ha sido la que ha sido y que es preciso conocer porqueella es la realidad transcendente. El hombre enajenado de si mismose encuentra consigo mismo como realidad, como historia. Y, porsu vez primera, se ve obligado a ocuparse de su pasado no porcuriosidad ni para encontrar ejemplos normativos, sino porque notiene otra cosa. No se han hecho en serio las cosas sino quando deverdad han hecho falta.”56 ORTEGA Y GASSET, O Homem e a Gente, p.79-80.57 Ibidem, p.79-80.58 bidem, p.81.59 ORTEGA Y GASSET, História como Sistema, p.15. “El hecho de que,por el contrario, aparezcan en estructura y con jerarquía permitedescubrir su orden secreto y, portanto, entender la vida propia y laajena, la de hoy y la de otro tiempo. Así podemos decir ahora: eldiagnóstico de una existencia humana – de un hombre, de unpueblo, de una época – tiene que comenzar filiado del sistema desus convicciones, y para ello, antes que nada, fijando su creenciafundamental, la decisiva, la que porta y vivifica todas las demás.Ahora bien: para fijar el estado de las creencias en un ciertomomento, no hay más método que el comparar este con otro u otros.Cuanto mayor sea el número de los términos de comparación, máspreciso será el resultado”.

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60 Ibidem, p.18. “Las creencias constituyen el estrato basico, el másprofundo de la arquitetura de nuestra vida. Vivimos de ellas y, porlo mismo, no solemos pensar en ellas. Pensamos en lo que nos esmás o menos cuestión. Por eso decimos que tenemos estas o lasotras ideas; pero las creencias más que tenermos, las somos”.61 Ibidem, p.20.62 Ibidem, p.31.63 Ibidem, p.39. “Si hablamos de ser en el sentido tradicional, comoser ya lo que es, como ser fijo, estático, invariable y dado, tendremosque decir que lo único que el hombre tiene de ser, de ‘naturaleza’, eslo que ha sido. Mas, por lo mismo, si el hombre no tiene más sereleático que lo do que ha sido, quiere decir que su auténtico ser, elque, en efecto es – y no solo ‘ha sido’ -, es distinto del pasado, consisteformalmente en ‘ser lo que no ha sido’, en un ser no eleático.”64 Ibidem, p.50. “(Hegel) inyecta en la historia el formalismo de sulógica, o Buckle, la razón fisiológica y física. Mi propósito esestrictamente inverso. Se trata de encontrar en la historia mismasu original y autócna razón. Por eso ha de entenderse en todo surigor la expresión razón histórica. No una razón extra histórica queparece cumplirse en la historia, sino literalmente, lo que al hombrele ha pasado, constituyendo la sustantiva razón, la revelación de unarealidad trascendente a las teorías del hombre y que es él mismopor debajo de sus teorías. Hasta ahora lo que habia de razón no erahistorico, lo que habia de historico no era racional.”65 Ibidem, p.50.66 Ibidem, p.22.67 Ibidem, p.24. “Esta consistencia fija y dada de una vez parasiempre es lo que solemos entender quando hablamos del ser deuna cosa. Otro nombre para expresar lo mismo es la palabranaturaleza. Y la faena de la ciencia natural consiste en descubrirbajo las nubladas apariencias esa naturaleza o textura permanente.Cuando la razón naturalista se ocupa del hombre, busca,conseqüente consigo misma, poner al descubierto su naturaleza.Repara él que el hombre tiene cuerpo – que es una cosa – y seapresura a extender a él la física, y, como ese cuerpo es además unorganismo, lo entrega a la biología. Nota asimismo que en elhombre, como en el animal, funciona cierto mecanismo incorporalo confusamente adscrito al cuerpo, el mecanismo psíquico, que estambién una cosa, y encarga de su estudio a la psicología, que esuna ciencia natural. Pero (...) Lo humano se escapa a la razón físico-

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matemática como el agua por una canastilla. Y aquí tienen ustedesel motivo por lo cual la fe en la razón se ha entrado en deplorabledecadencia. El hombre no puede esperar más.”68 Ibidem, p.47.69 Os conceitos são para Ortega y Gasset, segundo Ferrater Mora,órgãos de percepção no mesmo sentido em que os olhos são órgãosda visão. Porém, se trata da percepção da ordem e conexão dasrealidades, levando-nos da vida espontânea para o nível da vidareflexiva. A diferença é que a vida espontânea não é descartada, jáque, em Ortega y Gasset, ela é que constitui o princípio e o fim detoda a investigação. E não o contrário, como é o costume filosófico.70 ORTEGA Y GASSET, A Rebelião das Massas, p. 18.71 Ibidem, p. 19.72 Ibidem, p. 19.73 Ortega y Gasset tem urgência, porque a realidade é efemeridade.Realidade e vida são radicalmente temporais. E valiosas porquetemporais. Aí radica a mutabilidade, real ante a fixidez, ocomportamento desinteressado e desportivo frente a ação utilitária,a riqueza dos apetites frente a coerção puritana, a aceitação darealidade ante a veneração pela utopia. Os prazeres da vida sãoefêmeros, por isso são autênticos. É preciso colocar, ante asconvenções, a espontaneidade, não se esquecendo que a ciência, aarte e a filosofia puras são produtos do comportamentodesinteressado. Conforme Mora, em Ortega y Gasset – Etapas de umaFilosofía, p. 65 “Por consiguiente, el filósofo debe fomentar todo loque es viviente y real, esto es, todo lo que es auténtico.”74 SENABRE, in ORTEGA Y GASSET. Espíritu de la letra, p.27. -Engenho que o filósofo espanhol José Antônio Marina deplora naarte do século XX, em seu Elogío y refutación del Ingenio (1993) - “Claroestá que el deleite metafórico pude ofrecer el riesgo de que el autor,arrastrado por la sugestión verbal, conceda primacía al mero juegode ingenio e trivialice (...) Aunque no con frecuencia, ocurre a vecesa Ortega”75 ORTEGA Y GASSET, Unas Leciones de Metafísica (http://idd00qaa.eresmas.net/ortega/biblio/, acesso em 5 de agosto de2005). O texto é uma transcrição dos manuscritos preparatórios deum curso de metafísica ditado pelo autor em Madri, em 1932/33.“(...)las metáforas elementales (...) son tan verdaderas como las leyesde Newton. En esas metáforas venerables que se han convertido yaen palabras del idioma, sobre las cuales marchamos a toda hora,

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como sobre una isla formada por lo que fue un coral, en esasmetáforas – digo – van guardadas intuiciones perfectas de losfenómenos más fundamentales. Así hablamos con frecuencia de quesufrimos de una pesadumbre, de que nos hallamos en una situacióngrave. Pesadumbre, gravidad son metafóricamente transpuestas delpeso físico, del ponderar un cuerpo sobre el nuestro y pesarnos, alorden más íntimo. Y es que, en efecto, la vida pesa siempre, porqueconsiste en un llevarse y suportarse y conducirce a sí misma.”76 O aspecto fragmentário da obra orteguiana, segundo HélioJaguaribe, tem mais a ver com a sua forma de apresentação do quepropriamente com o conteúdo. Ortega y Gasset chega a afirmar queo sistema é a honestidade do pensador. Isso porque, afirmaJaguaribe, como Hegel, embora em diferentes termos, Ortega yGasset tinha uma visão globalista da realidade e considerava que sóse pode entender a parte no âmbito do todo.77 O homem é o seu projeto. É aquilo que faz de si mesmo. Sua vidaé um drama. É novelista de si mesmo, original ou plagiário. ParaOrtega y Gasset, o homem não é seu corpo, que é uma coisa, nemsua alma, psiquê, consciência ou espírito, que é também uma coisa.O homem não é coisa nenhuma, senão um drama – sua vida, umpuro e universal acontecimento que acontece em cada qual e queem cada um não é, por sua vez, senão, acontecimento. Serinconcluso é o fundamento da liberdade humana, à qual ele estácondenado.78 BARTHES, R., O Grau Zero da Escrita, p. 11.79 ORTEGA Y GASSET, O que é Filosofia, p. 29-30.80 BARTHES, R. O Grau Zero da Escrita, p. 11.81 ORTEGA Y GASSET, O Homem e a Gente, p.119.82 PERSE, S.J. Anábase, p. 12-15.83 Para Ortega y Gasset, a arte é o caminho para dar conta do todo,ou iludir o homem de que se está vendo o todo. Em Adão no Paraíso,afirma: “A arte percebe a imensidão da tarefa que ela toma para si?Como colocar em evidência a totalidade das relações que constituia vida mais simples, desta árvore, desta pedra, deste homem? Isto éimpossível de um modo real; é precisamente por isso que a arte éantes de qualquer coisa artifício: tem que criar um mundo virtual.A infinidade de relações é inexeqüível; a arte busca e produz umatotalidade fictícia, uma certa infinidade. Isso é o que o leitor temexperimentado cem vezes diante de um ilustre quadro ou umromance clássico”.84 ORTEGA Y GASSET, O Homem e a Gente, p. 120.

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85 SENABRE,in ORTEGA Y GASSET, El Espíritu de la Letra, p. 25.86 Ibidem, p. 21. “Lo cierto és que en la lengua orteguiana no existentales erosiones si hay que entenderlas como infracciones de lanorma; lo que hay, por el contrario, es un aprovechamiento fecundode las riquíssimas posibilidades combinatorias del idioma, queproduce con frecuencia creaciones insólitas por su audácia y por lacapacidad inventiva que acusan, pero que no contituyentransgresiones del sistema.”87 Ibidem, p. 37.88 DELACAMPAGNE, História da Filosofia no Século XX, p. 270.89 Ibidem, p.270.90 SENABRE, in ORTEGA Y GASSET, El espíritu de la letra, p. 25.“Acaso el rasgo más característico del estilo literario de Ortega seasu extraordinaria riqueza metafórica, comparable tan sólo, en laprosa contemporánea, a la de Ramón Gómez de la Serna.Constituye, con efecto, la metáfora la potencia más fértil, continuay brillante del escritor, y resulta difícil tropezar con una página suyaque no contenga varias muestras.”91 ORTEGA Y GASSET, Unas Leciones de Metafísica, p.9. “La metafísicaes algo que el hombre hace y ese hacer metafisico consiste en que elhombre busca una orientación radical en su situación. Esto pareceindicar que la situación del hombre es una radical desorientación,o lo que es lo mismo, que a la esencia del hombre, a su verdadero serno pertenece como uno de los atributos constituyentes el estarorientado, sino que, al revés, es proprio de la esencia humana estarel hombre radicalmente desorientado”.92 Ibidem, p.9.93 Esta é origem mais funda do homem-massa, potencializada pelosavanços técnicos do início do fim do século XIX e início do XX. Ohomem tem a seu dispor máquinas cada vez mais potentes parafabricar ilusórias e heterônomas convicções.94 Ibidem, p.16. “En sus líneas radicales la vida es siempreimprevista. No nos han anunciado antes de entrar en ella – en suescenario, que es siempre uno concreto y determinado -, no nos hanpreparado”.95 Ibidem, p.17.96 Ibidem, p.25. “Pero como además es circunstancial, es estar elhombre, quiera o no, entregado a un contorno determinado,tendremos que la vida es darme cuenta, enterarme de que estoysumergido, náufrago en un elemento extraño a mí, donde no tengo

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más remedio que hacer siempre algo para sostenerme en él, paramantenerme a flote. Yo no me he dado la vida, sino, al revés, meencuentro en ella sin quererlo, sin que se me haya consultadopreviamente ni se me haya pedido la venia. Pero eso que, sin contarconmigo, me es dado – a saber, mi vida –, no me es dada hecha. Loque me es dado al serme dada la vida es la inexorable necesidad detener que hacer algo, so pena de dejar de vivir. Pero ni siquiera esto:porque dejar de vivir es también un hacer – es matarme –, noimporta con qué arma, la Browing o la inanición. Vida es, pues, untener siempre, quiera o no, que hacer algo. La vida que me ha sidodada, resulta que , tengo que hacérmela yo. Me es dada, pero no mees dada hecha, como al astro o a la piedra le es dada su existencia yafijada y sin problemas. Lo que me es dado, pues, con la vida esquehacer. La vida da mucho quehacer. Y el fundamental de losquehaceres es decidir en cada instante lo que vamos a hacer en elpróximo. Por eso digo que la vida es decisiva, es decisión. Tenemos,pues, estos tres caracteres: 1. la vida se entera de si misma; 2. la vidase hace a sí misma; 3. la vida se decide a sí misma.”97 Ibidem, p.26.98 Ibidem, p.27. “(...) estoy atento a la circunstancia, y paraencontrarme tengo que suspender esa normal atención al contornoy buscarme en él, pescarme entre las cosas desatendiendo éstas yreparando en mí. Es muy importante esta advertencia de que laconciencia de mí mismo es, esencialmente y no accidentalmente,posterior a mi conciencia del mundo, o lo que es igual, que sóloreparo en mí cuando me desatiendo del mundo.”99 Ibidem, p.28. “yo no soy mi cuerpo o, por lo menos, no soy sólomi cuerpo. ¡Qué diablo, yo, el yo de que suelo hablar en mi vida, elyo que vive en mi vida, es algo único, inconfundible y heterogéneo atodo! Yo no soy un pedazo de materia, pero no porque en virtud deestas o las otras disquisiciones opine que estoy constituido por algoinmaterial, llámese alma, espíritu o como se quiera. No es por eso.Tal vez opino que ustedes están también constituidos por algoinmaterial, que tienen también alma, espíritu, y, sin embargo, yosoy inconfundible con ustedes y radicalmente heterogéneo deustedes. ¡Qué diablo, yo no soy más que yo, yo soy único, no hayotro que sea yo, ni siquiera otro yo!”100 Ibidem, p.35. “Yo no soy más que un ingrediente de mi vida: elotro es la circunstancia o mundo. Mi vida, pues, contiene ambosdentro de sí, pero ella es una realidad distinta de [ambos]. Yo vivo, y

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al vivir estoy en la circunstancia, la cual no soy yo. La realidad de miyo es, pues, secundaria a la realidad integral que es mi vida;encuentro aquélla – la de mi yo – en ésta, en la realidad vital. Yo y lacircunstancia formamos parte de mi vida. Ahora sí que podemossin error asegurar que yo formo parte de algo, a saber, de mi vida.La circunstancia – en el caso presente y preciso: esta habitación –,es la otra parte de mi vida. Era un error decir que yo – parte de mivida – formo parte de la otra parte de mi vida que es la habitación.”101 Ibidem, p.51. “Pero he aquí que, después de hacernos a nosotrosesa pregunta en la radical soledad que es la vida efectiva de cadacual, la primera respuesta que el hombre busca no la busca en símismo, no se ocupa en hacérsela él sino que tiene la tendencia aencontrarla ya hecha en su entorno social. Después de preguntarsea sí mismo pregunta a los otros hombres, es decir pregunta desdesu propia memoria donde retiene ideas recibidas del contorno quele han sido insufladas en la escuela, en conversaciones, en lecturas.No busca pues, averiguar por si lo que es la cosa sino que primero secontenta con averiguar lo que sobre ella ‘se dice’. El sujeto de estedecir es lo que hemos llamado ‘la gente’: el contorno social, elpersonaje colectivo, sin individualidad, que no es nadiedeterminado y por lo mismo irresponsable. Noten la transmutaciónque esto significa. La angustia y la pregunta inicial que es disparadapor aquella son exclusivamente mías: las vivo y las soy por mi cuenta,solo yo conmigo; pero ahora admita en mí como respuesta una ideaque no es mía, que no me he hecho yo sino que tomo ya hecha delambiente. En suma, que suplanto mi ya individual por el yo social,dejo de vivir yo mi vida auténtica y hago que ésta se conforme segúnun molde mostrenco, común anónimo. De ser individual paso a sercomunal practico vital comunismo en el orden del pensamiento”.102 Ibidem, p.52. ““1º. La desconfianza ante mi contorno socialtiende a tranquilizarse en una confianza, por lo visto, existentedentro de mí, en la ‘gente’. Desconfío de la naturaleza y confío en lasociedad, en la humanidad. 2º. Esta confianza implica por mi partela creencia de que hay siempre un repertorio de respuestas en micontorno social; por ejemplo, que yo no sé lo que es la tierra, peroque la ‘gente’ lo sabe. 3º. Esto, a su vez, significa que el hombre alvivir se da cuenta de que está siempre en una circunstancia o mundono sólo natural, de cuerpos minerales, vegetales, animales, sino queflota al mismo tiempo siempre en una ‘cultura’ preexistente. Culturaes ese repertorio ambiente de respuestas a las inquietudes de la vida

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auténtica o individual. 4º. Que sea por los motivos que sea, bien omal fundados, yo tiendo a abandonar mi propia vida, tiendo ahacerme irresponsable de ella, a suplantar mi yo por un yo común einauténtico. 5º. Que esa respuesta de la gente, del vulgo, del común,que admito, una de dos: o la admito repensándola íntegramente yentonces propiamente no la recibo sino que la recreo con miesfuerzo personal y haciéndola renacer de mi propia evidencia; a laadmito sin revisarla, sin pensarla, por tanto, la admito precisamenteporque yo no la pienso sino porque la piensa la gente, porque sedice. El fenómeno de abandono en el yo social, de no llevarse ysostenerse a si mismo, sino de caer, como en un colchón, en lacomodidad del ‘se dice’, de la ‘gente’, de la ‘opinión pública’, de lamasa, que ahora analizamos es el que acaece en este último caso.Pero entonces nótese: 6º. Hay una gran incongruencia entre lapregunta y la respuesta. La pregunta ¿qué es la tierra? la he pensadoy sentido yo con su efectiva e intransferible angustia, mas larespuesta: la tierra es un astro – u otra pareja – no la he pensado nirepensado yo sino que me repito con ella lo que ‘se dice’, y con esterepetir entro a formar parte de la gente, la cual es nadie. Yo, pues,me vuelvo nadie, que es lo que, practicando un calembour con sunombre, hacía Ulises cuando quería ocultarse o desaparecer. 7º. Conlo cual se cierra el ciclo de este proceso primario: me hago la preguntaen vista de que la tierra habitual se me volvió un no ser, se me hizonada; pero al recurrir a lo que se dice recurro a nadie.” *Calembour -jogo de palavras, trocadilho (francês).103 Ibidem, p.52.104 Ibidem, p.52.105 Ibidem, p.110.106 Ibidem, p.115.107 Ibidem, p. 117.108 Ibidem, p. 135-136.109 Ibidem, p.137.110 Ibidem, p. 137.111 Ibidem, p. 180.112 Ibidem, p. 203.113 Ibidem, p. 203.114 Ibidem, p.181.115 Ibidem, p.186.116 Ibidem, p. 103.117 Ibidem, p. 49.

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118 Ibidem, p.46.119 NORIEGA, in Revista de Estudios Orteguianos (2000), p. 235.120 Ibidem, p. 235.121 José Ferrater Mora identifica três estágios da filosofia de Ortegay Gasset. O primeiro vai de 1902 a 1904 (objetivismo), o segundo vaide 1914 a 1923 (perspectivismo), o terceiro de 1924 até o ano da mortedo autor, em 1955 (raciovitalismo). Abordamos mais detidamenteneste trabalho apenas o terceiro estágio, aquele em que a filosofiaorteguiana está mais madura em relação ao todo de sua obra. Étambém desse período os livros em que Ortega y Gasset trata maisfrontalmente do conceito de homem-massa.Quanto aoperspectivismo, ela é a teoria do ponto de vista, segundo a qual todaa realidade se constitui a partir de uma radicação vital. Fazendoum relativismo ao contrário (da que coloca a verdade no relativo),para o filósofo, toda perspectiva que pretende ser única é semprefalsa, porque cada ponto de vista é só uma parte do todo. A realidadetem infinitas perspectivas, todas verídicas e autênticas. Daí suacondenação à utopia, a verdade não-localizada, vista de nenhumlugar. O utopista é o homem que mais erra, porque deserta o seuponto de vista, em vista de um putro, abstrato. As perspectivas sedividem em várias, às quais o homem pode escolher, de acordo comseus objetivos: científico, estético ou pragmático.122 Ibidem, p. 236. “Parece que Ortega se da cuenta de que no sepuede menospreciar la fuerza de la rebelión y que los años y losavatares de su vida y su país – su circunstancia – le llevan a captar lainsuficiencia de una visión excesivamente psicológica del ‘hombre-masa’ y de la interacción social en general. El poder de lo ‘mostrencosocial’ frente a la vida personal estaba exigiendo un análisis másprofundo y estructural que le diese consistencia”.123 Ibidem, p. 237.124 ORTEGA Y GASSET, O Homem e a Gente, p.44.125 Ibidem, p.45.126 Ibidem, p.59-60.127 Ibidem, p.64.128 Ibidem, p.65-66.129 Ibidem, p.72.130 Ibidem, p.74.131 Ibidem, p.75.132 Afastando-se de qualquer irracionalismo, Ortega y Gasset, quedizia ser a clareza a cortesia do filósofo, afirma que a própria

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existência do pensar filosófico constitui uma prova de um certogosto pela racionalidade que é ao mesmo tempo perpétua busca declaridade. Porém, em Ortega y Gasset, a claridade não é sobrepostaà vida, como se se tratasse de algo externo a ela. Não é tampouco avida mesma, mas a vida plena de significado. Por isso, Ortega yGasset pretende um convênio permanente entre razão e vida e nãoum perpétuo estado de guerra entre ambos.133 Ibidem, p. 97.134 BOBBIO, N. Dicionário de Política, p.135 SÁNCHEZ CÁMARA, I. Revista de Filosofia, Vol. 9, 1976, p. 76.136 FERRERO LAVEDÁN, M.I. Revista de Estudios Orteguianos, (2000),nº 1. p. 224. “Tan necesario es la minoria como la masa, puesto quees la minoria que tiene el mando, esto es, la que por ejemplar orientao dirige, y es la masa que tiene el poder de aceptar, o no, las propuestade la minoría, por tanto, que es la masa el poder que otorga elmando.”137 Ibidem, p. 228.138 Ibidem, p.123-124.139 Ibidem, p.128.140 Ibidem, p.129.141 Ibidem, p.131.142 Ibidem, p.139.143 Ibidem, p.29.144 Ibidem, p.41.145 Ibidem, p. 127.146 Ibidem, p.112.147 Ibidem, p.113-114.148 Por cultura deve-se entender a esfera simbólica, da religião, artee literatura, e não o que significa civilização, ou seja, o mundomaterial, da economia e da técnica, como define Sérgio PauloRouanet (Revista Tempo Brasileiro, 142, O lugar do Livro Hoje, p.69).Conforme Rouanet, Cultura vem de Kultur, em alemão, associadaà autenticidade, ao instinto vital e à tradição, enquanto que aZivilization significa o mundo francês da técnica, que substituía ahistória pela razão e baseava-se em valores materialistas e utilitários,pervertida num refinamento excessivo. Vitoriosa a civilização, acultura amarga o ostracismo. Para Rounet, é esse o sentido da críticacultural de Adorno e Horkheimer, ao combater a pseudocultura daindústria cultural, “porque não têm nenhum dos elementos detranscendência da alta cultura”.

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149 ORTEGA Y GASSET, A Rebelião das Massas, p. 114.150 Ibidem, p.115.151 Ibidem, p. 120.152 Ibidem, p.152-155.153 Ibidem, p. 155.154 Ibidem, p. 128.155 Ibidem, p. 132.156 Ibidem, p.22.157 Ibidem, p. 259.158 Ibidem, p. 262.159 Neste sentido, o homem-massa pode ser visto sob o conceitokantiano de ilustração. Em O que é Ilustração? (in FundamentaçãoMetafísica dos Costumes e outros escritos, 2004), o autor alemão explicaque esta se trata da saída do homem de sua minoridade, da qual elepróprio é o responsável. Autonomia e heteronomia são ainda doisconceitos de Kant expresso em seu texto. Ou seja: trata-seexatamente da fonte das leis vividas pelo homem ilustrado(autônomo) e pelo homem não-ilustrado (heterônomo), que não viveirrefletidamente, ingenuamente, e é regido por aquelas normasditadas pela vida pública. É neste amplo campo de debates entreautonomia e heteronomia que deve ser compreendido opersonagem orteguiano.160 A razão vital é o tema central de Ortega y Gasset. Ela é o logosconcreto, inserido na vida e não reduzido a uma forma abstrata epura, como a razão matemático-física. Segundo Jaguaribe, oraciovitalismo representa um esforço para superar as barreiras doidealismo kantiano sem recair no reealismo ingênuo. Como afirmao comentador, em Ortega y Gasset, “a realidade não é nem o mundonem o eu, mas sim a coexistência do eu e do mundo, o sujeitoafrontando o mundo e o mundo pressionando a sua consciência”.Raciovitalismo é uma abreviação usada por Ortega y Gasset comodesignação de seu sistema e aparece em 1924 quando publica umartigo intitulado “Ni vitalismo ni racionalismo”. Nesta etaparaciovitalista, Ortega y Gasset desenvolve seus temas mais fecundos,como o conceito de razão vital, a doutrina do homem, a doutrinada sociedade, a idéia da filosofia e a idéia de ser.161 MORO ESTEBAN, P.L. Revista de Estudios Orteguianos (2000), nº1, p.220. Frente a la democracia liberal, la iperdemocracia secaracteriza por la conquista del derecho a la vulgaridad y la actuaciónal margen de la disciplina que en la primera prescribía la ley. Por

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otra parte, desde una perspectiva ética, la nobleza se asimila a lahumildad frente a la prepotencia nacida de la desnuda exigencia dederechos y la simultánea exención de deberes.162 Ibidem, 264. “Tenemos como resultado un hombre dócil a lasgrandes multinacionales, siempre interesadas en servir productosmeramente cosméticos y gratificaciones a la carta.”163 Ibidem, p. 222.164 PASCERINI, Mª.C., Revista de Estudios Orteguianos (2000), nº 1,p. 270. “Por un lado, el filósofo hace un análisis sincero de lasociedad; su franqueza puede incluso llegar a molestarnos, enprimer lugar porque nos obliga a interrogarnos sobre la nobleza ovulgaridad de la vida que llevamos; en segundo lugar porque no lepreocupa la impopularidad de afirmar rotundamente que noconsidera capaz al genero de hombre que domina hoy, al hombre-masa, de impulsar vitalmente la civilización.”165 Ibidem, p. 269. “En nuestro tiempo se ha invertido la situación,pues el peligro procede ahora de las élites, de las minorías que ya notienen valores, y aún les preocupa menos el progreso de lacivilización. Lo que únicamente les interesa, advierte Lasch, es elbuen funcionamiento del mercado, sin sentir ninguna obligaciónintergeneracional, ni hacia el pasado ni hacia el futuro, de modoque hábitos mentales que encontraba Ortega en el hombre-masacaracteriza hoy según Lasch a las élites directivas y profesionales, alas clases dirigentes.”166 GUILLERMINA DACAL, A., Revista de Estudios Orteguianos (2000),nº 1, p. 276. “Hoy, se busca la eficiencia, la utilidad, la efectividad ynada más; el hombre no puede ser criativo, original, no le puedeacontecer nada que la sociedad no haya prevenido; y es que vivimosen un medio masificado, un medio que no ayuda al hombremantener na existencia propria e individual. Por lo tanto, ha hechoque la existencia de los individuos sea una existencia impersonal,generalizada, es decir, una existencia masificada.”167 Ibidem, p. 277. “Por ello, este advenimiento de las masas, nosestá traspasando y debe ser objeto de reflexión para marchar confirmeza entre las causas y las posibles consecuencias; y así rescatar,revalorar el acontecer humano”.

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Este livro foi composto em ALEGREYA, fonte livre, SILOpen Font License, Version 1.1. desenhada em 2011, por JuanPablo del Peral e premiada como “Fonts of the Decade” nacompetição ATypI Letter2 em setembro de 2011 e selecionadana 2nd Bienal Iberoamericana de Diseño, em Madrid em 2010. Ostítulos foram compostos em ACME, tipo desenhado pelomesmo autor.

Impresso no inverno de 2012 em papel offwhite PólenBold®, elaborado com fibras de eucalipto replantado.