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1
UNIVERSIDADE DE SO PAULO ESCOLA DE COMUNICAES E ARTES
DEPARTAMENTO DE MSICA
HORCIO DE OLIVEIRA CALDAS GOUVEIA
Os Jogos (Jtkok) de Gyrgy Kurtg para piano: corpo e gesto numa perspectiva ldica
So Paulo 2010
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HORCIO DE OLIVEIRA CALDAS GOUVEIA
Os Jogos (Jtkok) de Gyrgy Kurtg para piano: corpo e gesto numa perspectiva ldica
Tese apresentada ao Departamento de Msica (Escola de Comunicaes e Artes) da Universidade de So Paulo para a obteno do ttulo de Doutor em Msica rea de Concentrao: Musicologia Orientador: Prof. Dr. Fernando Henrique de Oliveira Iazzetta
So Paulo
2010
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Autorizo a reproduo e divulgao total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio convencional ou eletrnico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.
Catalogao da Publicao
Gouveia, Horcio de Oliveira Caldas.
Os Jogos (Jtkok) de Gyrgy Kurtg para piano: corpo e gesto numa perspectiva ldica / Horcio de Oliveira Caldas Gouveia ; orientador Fernando Henrique de Oliveira Iazzetta. - So Paulo, 2010. 198 p. : il.
Tese (Doutorado)- Universidade de So Paulo, 2010.
1. Kurtg. 2. Jtkok. 3. Piano. 4. Interpretao. 5. Anlise. 6. Jogo. 7. Corpo. 8. Gesto. I. Iazzetta, Fernando Henrique de Oliveira II. Ttulo.
CDD 780.15
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Nome: GOUVEIA, Horcio de Oliveira Caldas Ttulo: Os Jogos (Jtkok) de Gyrgy Kurtg para piano: corpo e gesto numa perspectiva ldica
Tese apresentada ao Departamento de Msica (Escola de Comunicaes e Artes) da Universidade de So Paulo para a obteno do ttulo de Doutor em Msica
Aprovado em:
Banca Examinadora
Prof. Dr. _________________________ Instituio______________________ Julgamento: ______________________ Assinatura: _____________________
Prof. Dr. _________________________ Instituio______________________ Julgamento: ______________________ Assinatura: _____________________
Prof. Dr. _________________________ Instituio______________________ Julgamento: ______________________ Assinatura: _____________________
Prof. Dr. _________________________ Instituio______________________ Julgamento: ______________________ Assinatura: _____________________
Prof. Dr. _________________________ Instituio______________________ Julgamento: ______________________ Assinatura: _____________________
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AGRADECIMENTOS
Aos amados Malu e Babu, minha famlia escolhida, pelo amor e companheirismo de sempre. Aos meus pais e irm, pela presena amorosa e apoio, mesmo distncia. minha querida av Zuleide, falecida durante a realizao desta pesquisa: minha homenagem e gratido por seu carinho, fora e incentivo em minha carreira na msica. Ao meu orientador Fernando Iazzetta, pelos ensinamentos, incentivo e apoio constante. querida Beatriz Balzi, cujo exemplo e inspirao orientam minha caminhada, sempre. pianista Martine Joste, por sua inestimvel colaborao e pelo oferecimento de vrios materiais de trabalho. Aos amigos Lcia, Adriana, Michelle, Pedro, Cssia, Albino e Ruben, pela amizade, apoio e incentivo. Mrcia Rivas, por seu valiosssimo trabalho, sem o qual o percurso representado por esta pesquisa no teria sido possvel. Patrcia De Carli, por sua enorme colaborao e ajuda com os exemplos musicais. Aos senhores Betty Stegmann, Eva Tircska Piller e Pedro Haasz, por sua generosa ajuda com as tradues do hngaro. !
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LUDISMO Quebrar o brinquedo mais divertido. As peas so outros jogos: construiremos outro segredo. Os cacos so outros reais antes ocultos pela forma e o jogo estraalhado se multiplica ao infinito e mais real que a integridade: mais lcido. Mundos frgeis adquiridos no despedaamento de um s. E o saber do real mltiplo e o sabor dos reais possveis e o livro jogo institudo contra a limitao das coisas contra a forma anterior do espelho. E a vertigem das novas formas multiplicando a conscincia e a conscincia que se cria em jogos mltiplos e lcidos at gerar-se totalmente: no exerccio do jogo esgotando os nveis do ser. Quebrar o brinquedo ainda mais brincar. ORIDES FONTELA (Poesia Reunida)
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RESUMO
A tese enfoca os trs primeiros volumes da coleo Jogos (Jtkok) do compositor
hngaro Gyrgy Kurtg, numa abordagem que articula os campos analtico e performtico, a
fim de ressaltar a importncia do corpo e do gesto dentro da proposta ldica representada pela
coleo. Esta nasceu com objetivos didticos: oferecer uma abordagem contempornea para
iniciantes nos estudos piansticos, mas logo ultrapassou tais limites, representando na verdade
uma das facetas mais importantes da linguagem artstica de Kurtg, sendo referncia no s
entre as demais obras do compositor, mas tambm na literatura para piano da segunda metade
do sculo XX.
Os Jogos representam um material inovador, tanto pela incluso primordial do
elemento da ludicidade, como pelo engajamento do corpo dos intrpretes numa perspectiva
globalizante e, portanto, alternativa s perspectivas pedaggicas tradicionais do piano, que em
geral, se preocupam desde o incio do estudo com o desenvolvimento de determinadas
habilidades digitais especficas. Na premissa de Kurtg, encontramos a primazia da
construo de um espao multimodal, hptico, ao tocar, bem como o estmulo fundamental ao
desenvolvimento das capacidades perceptivas (em amplo sentido) dos intrpretes.
Aps a elaborao de um histrico da criao dos Jogos, tratando de sua concepo,
proposta e dos objetivos da obra, bem como da organizao dos volumes e de caractersticas
gerais das peas, o trabalho enfoca os conceitos que se revelaram fundamentais para a
concepo e interpretao dos Jogos, a saber, os de jogo, corpo e gesto, os quais so
examinados como subsdio para uma maior compreenso das intenes composicionais e das
escolhas performticas.
A ltima parte da pesquisa consiste numa reflexo analtica a partir de nossas escolhas
interpretativas e dos referenciais conceituais tratados anteriormente, destacando sobretudo as
peas nas quais se encontram propostas especiais quanto ao trabalho pianstico, sobretudo
pelos tipos de explorao gestual e corporal ao piano.
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ABSTRACT
The thesis approaches the three first volumes from the collection Games (Jtkok) by
the Hungarian composer Gyrgy Kurtg, in an articulated view of the analytical and
interpretation fields, to highlight the body and gestural importance within a playful proposal
represented by the collection. The collection started with an educational aim: it provides a
contemporary approach for beginners in pianistic studies, but soon surpassed such limits,
actually representing one of Kurtgs most important artistic language facets, a landmark not
just among the composers works, but also in the second half of 20th centurys piano
literature.
Games represent an innovative material, both through the inclusion of the fundamental
recreational element, and the interpreters body involvement in a global perspective and, thus,
an alternative to the piano traditional pedagogic perspectives, which are generally concerned,
right from the beginning, with the development of specific fingering skills. In Kurtgs
premise, we found the construction primacy of a multimodal space, haptic, at playing, as well
as the fundamental encouragement to the development of the interpreters perceptive skills (in
a broader sense).
After the development of a history of the Games creation, consisting of the works
conception, proposal and aim, as well as the volumes organization and the general
characteristics of the pieces, the research focuses on the concepts which have turned out to be
fundamental for the conception and interpretation of the Games, that is, those of play, body an
gesture, which are looked into as a subsidy for a better understanding of the compositional
intentions and performance choices.
The last part of the research consists of an analytical consideration from our
interpretative choices and the conceptual references previously discussed, emphasizing, above
all, the pieces which contain especial proposals concerning the pianistic work, especially
through the types of gestural and body exploration on the piano.
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LISTA DE EXEMPLOS
Exemplo 1 - Gyrgy Kurtg Passeando (I, 5A) ______________________________________________ 27 Exemplo 2 Gyrgy Kurtg Briga [19 A(1)] ________________________________________________ 30 Exemplo 3 - Gyrgy Kurtg Pantomima [Briga (2)] [19A(2)] __________________________________ 30 Exemplo 4 Gyrgy Kurtg Golpes (I, 20B) ________________________________________________ 31 Exemplo 5 - Gyrgy Ligeti - Outono em Varsvia (c. 45 - 55) ______________________________________ 55 Exemplo 6 - Gyrgy Ligeti - Camadas Polimtricas - Camada com talea de 5 semicolcheias______________ 56 Exemplo 7 - Gyrgy Ligeti - Camadas Polimtricas - Camada com talea de 3 semicolcheias _____________ 56 Exemplo 8 - Gyrgy Ligeti - Camadas Polimtricas - Camada com talea de 7 semicolcheias______________ 57 Exemplo 9 - Gyrgy Ligeti - Camadas Polimtricas - Camada cambiante _____________________________ 57 Exemplo 10 - Conjunto de sinais grficos rtmicos que representam a gradao de duraes _____________ 83 Exemplo 11 - Fermatas ____________________________________________________________________ 85 Exemplo 12 - Notas individuais ______________________________________________________________ 85 Exemplo 13 - Clusters sem alturas definidas ____________________________________________________ 87 Exemplo 14 - Clusters com altura definida _____________________________________________________ 87 Exemplo 15 - Glissandi ____________________________________________________________________ 88 Exemplo 16 - Smbolos referentes aggica, dinmica, fraseado e pedalizao ________________________ 89 Exemplo 17 - Ligadura de fraseado com mos alternadas _________________________________________ 90 Exemplo 18 - Sinais de utilizao do pedal _____________________________________________________ 91 Exemplo 19 - Tabela_______________________________________________________________________ 92 Exemplo 20 - II Gyrgy Kurtg Exerccios II 1 - a), b) e c) __________________________________ 93 Exemplo 21 - Gyrgy Kurtg Exerccios - II - d) e e) ____________________________________________ 94 Exemplo 22 - Gyrgy Kurtg III - 4a) - Exerccios - extremos grave e agudo_________________________ 94 Exemplo 23 - Gyrgy Kurtg V - A - 11 a) a j) _________________________________________________ 95 Exemplo 24 - Gyrgy Kurtg (V, 12B) _______________________________________________________ 96 Exemplo 25 - Gyrgy Kurtg Introduo do toque maneira de uma baqueta (VI B - 14a))___________ 96 Exemplo 26 - Gyrgy Kurtg Punho (VII A) ________________________________________________ 97 Exemplo 27 Gyrgy Kurtg Punho (2) (VII A) _____________________________________________ 97 Exemplo 28 Gyrgy Kurtg Palmas em rotao (VIII A) _____________________________________ 98 Exemplo 29 - Gyrgy Kurtg Tocando com harmnicos (IX 17 a))_____________________________ 98 Exemplo 30 Gyrgy Kurtg Golpe de Palma (1) [I, 2A(1)] ___________________________________ 99 Exemplo 31 Gyrgy Kurtg Permitido esbarrar em outras notas (1) [I,2B(1)] ___________________ 100 Exemplo 32 - Gyrgy Kurtg Golpe de Palma (2) [I,2A(2)]___________________________________ 100 Exemplo 33 Gyrgy Kurtg Permitido esbarrar em outras notas (2) [I,2B(2)] __________________ 101 Exemplo 34 Gyrgy Kurtg Momentos agradveis do jovem boxeador [I, 11A] __________________ 102 Exemplo 35 Gyrgy Kurtg Sonolento [I, 11A] ___________________________________________ 102 Exemplo 36 - Gyrgy Kurtg Retrato - a) [11B(1)] _________________________________________ 103 Exemplo 37 - Gyrgy Kurtg Retrato - b) [I,11B(1)]________________________________________ 103 Exemplo 38 Gyrgy Kurtg Retrato - c) [I, 11B(1)] ________________________________________ 103 Exemplo 39 Gyrgy Kurtg Briga (1) [I,19A(1)] __________________________________________ 104 Exemplo 40 Gyrgy Kurtg Pantomima Briga (2) [I, 19A(2)] ________________________________ 104 Exemplo 41 Gyrgy Kurtg Micro-rond (I,19B) __________________________________________ 105 Exemplo 42 - Gyrgy Kurtg (I, 12A) Manuscrito____________________________________________ 107 Exemplo 43 - Gyorgy Kurtg Perpetuum mobile objet trouv (I, 1A) _________________________ 112 Exemplo 44 - Gyrgy Kurtg Hommage Tchaikovsky [I, 21 (p. 1)]___________________________ 115 Exemplo 45 - Gyrgy Kurtg Hommage Tchaikovsky [I, 21 (p. 2)]___________________________ 116 Exemplo 46 - Tchaikovsky Concerto para piano n1 (1 mov. - c. 7-8) _____________________________ 117 Exemplo 47 - Tchaikovsky Concerto para piano n1 (1 mov. - c. 41 42) __________________________ 118 Exemplo 48 - Giuseppe Verdi - Rigoletto (primeiros 8 compassos da linha da soprano)_________________ 121 Exemplo 49 - Giuseppe Verdi - Rigoletto (primeiros 8 compassos das linhas das flautas) _______________ 121 Exemplo 50 - Gyrgy Kurtg Primo e Secondo (I, 4B) _______________________________________ 122 Exemplo 51 - Notas usadas por Kurtg, abstraindo-se as diferenas de registros (oitavas) ______________ 123 Exemplo 52 - Alturas usadas na parte do Secondo, abstraindo-se as diferenas de oitava _______________ 123 Exemplo 53 - Gyrgy Kurtg "O Homem uma Flor... (1a)" (I,3A)______________________________ 125 Exemplo 54 - Bla Bartk - Mikrokosmos VI Segunda Dana Blgara (c. 1-3) ____________________ 126 Exemplo 55 - Gyrgy Kurtg Hommage Bartk (I,7B) ______________________________________ 127 Exemplo 56 - Gyrgy Kurtg Hommage Ligeti (I, 20A) _____________________________________ 128 Exemplo 57 - Gyrgy Kurtg Hommage Domenico Scarlatti (III, 40) __________________________ 130 Exemplo 58 Domenico Scarlatti Sonata 39 [c. 54 (3 tempo) 63 (at a colcheia do 3 tempo)] _______ 131
10
Exemplo 59 - Anton Webern - Variaes op. 27 p. 9-10 (c. 34 - 44) _________________________________ 132 Exemplo 60 - Bornemisza - "Confisso": o salto do Diabo ________________________________________ 133 Exemplo 61 - Gyrgy Kurtg O Salto do Diabo (II, 29) (c. 1 - 5) _______________________________ 134 Exemplo 62 - Gyorgy Kurtg Hommage Scarlatti - sequncias escalares estruturais ______________ 134 Exemplo 63 Domenico Scarlatti Sonata em Sol Maior (K. 235, L. 154) (c. 89 93) ________________ 135 Exemplo 64 - Gyrgy Kurtg Hommage Zenon (III, 20)_____________________________________ 137 Exemplo 65 - Gyorgy Kurtg Primeiro Microldio (II, 39) ____________________________________ 137 Exemplo 66 - Liszt - Sonata em Si menor (7 ltimos compassos) ___________________________________ 138 Exemplo 67 Franz Schubert Der Tod und das Mdchen (Lied)__________________________________ 141 Exemplo 68 Franz Schubert Der Tod und das Mdchen (2 movimento do 14 Quarteto de Cordas c. 1 8)______________________________________________________________________________________ 142
Exemplo 69 Gyrgy Kurtg Hommage Schubert [III 26 (a)] ______________________________ 143 Exemplo 70 Gyrgy Kurtg Hommage Schubert [III 26 (b)] ______________________________ 143 Exemplo 71 - Gyrgy Kurtg 7o Micrldio (Volume II, p. 41) ____________________________________ 144 Exemplo 72 - Bla Bartk - Mikrokosmos III - Hommage J.S. Bach (c. 1 - 3) ________________________ 145 Exemplo 73 - Gyrgy Kurtg Hommage J.S.B. (III 62), n 11 ________________________________ 145 Exemplo 74 - J.S. Bach - Partita n 5: Praeambulum (c. 69 - 72) ___________________________________ 146 Exemplo 75 - Explorao de figuraes com rotaes laterais das mos na Partita n 5 de Bach (Praeambulum - c. 90 - 92) ______________________________________________________________________________ 146 Exemplo 76 - J. S. Bach - Praembulum - Partita n 5 (c. 53 - 56) ___________________________________ 147 Exemplo 77 - Gyrgy Kurtg Hommage Stockhausen (III, 63)________________________________ 149 Exemplo 78 Karlheinz Stockhausen Klavierstck IX (p. 6 6 ltimos compassos do ltimo sistema) ____ 150 Exemplo 79 - Karlheinz Stockhausen - Klavierstck IX (p. 1 - c. 3) _________________________________ 150 Exemplo 80 - Gyorgy Kurtg Hommage Endre Blint - Manuscrito ___________________________ 151 Exemplo 81 - Escala das melodias Colinda ____________________________________________________ 154 Exemplo 82 - Gyrgy Kurtg Hommage Farkas Ferenc (2) III - p. 28 - 29_____________________ 158 Exemplo 83 - Gyrgy Kurtg Preldio e Valsa em D (I, 1B) __________________________________ 160 Exemplo 84 - Gyrgy Kurtg Valsa (2) (II, 32) _____________________________________________ 164 Exemplo 85 - Gyrgy Kurtg - Valsa (2) (VII, 30)_______________________________________________ 165 Exemplo 86 - Gyrgy Kurtg - Pequeno Coral (1) (I, 5B)_________________________________________ 167 Exemplo 87 - Robert Schumann - lbum para a juventude, op. 68 - Coral____________________________ 167 Exemplo 88 - Gyrgy Kurtg - Passeando (I, 5A) _______________________________________________ 172 Exemplo 89 - Gyrgy Kurtg - Entediado (I, 7A) _______________________________________________ 175 Exemplo 90 - Gyrgy Kurtg - Pantomima (Briga 2) (I, 19A) _____________________________________ 178 Exemplo 91 - Gyrgy Kurtg - Os Sermes de Pter Bornemisza, Op. 7 - III. Morte (ltimos 5 compassos) _ 180 Exemplo 92 - Gyrgy Kurtg - Homem uma Flor, Vol. VIII - Manuscrito ___________________________ 181 Exemplo 93 - Gyrgy Kurtg "O Homem uma Flor... (1a)" (I,3A)______________________________ 182 Exemplo 94 - Gyrgy Kurtg "O Homem uma Flor... (1a)" (I,3B)______________________________ 182
11
SUMRIO
INTRODUO 12
CAPTULO 1 OS JOGOS DE KURTG: HISTRICO, CARACTERSTICAS E CONCEITOS FUNDAMENTAIS 14 !
CAPTULO 2 - O JOGO, O CORPO E O GESTO 33 2.1. PREMBULO 33 2.2. O JOGO 34 2.3. O CORPO 39 2.4. O GESTO 47 !
CAPTULO 3 - CONSIDERAES ANALTICAS 61 3.1. FERRAMENTAS METODOLGICAS 61 3.2. ORGANIZAES DAS ANLISES 69 3.3. O PREFCIO 79 3.4. TABELA, ELEMENTOS BSICOS E EXERCCIOS PREPARATRIOS (PGINAS I A IX DO PRIMEIRO VOLUME) 91 3.5. PGINAS A E PGINAS B DO PRIMEIRO VOLUME 98 3.6. EXPLORAO DE GESTOS COMPOSICIONAIS 108 3.6.1. Os Hommages 108 3.6.2. Evocao de um gnero ou estilo musical 158 3.7. EXPLORAES PEDAGGICAS MENOS USUAIS 168 !
CONSIDERAES FINAIS 187 !
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS 6...... 190 ANEXO 1 - TRADUES ALEM E INGLESA DO PREFCIO AOS JOGOS ESCRITO POR GYRGY KURTG 197
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12
INTRODUO
Este trabalho nasceu como um irresistvel impulso em direo a uma msica que
pessoalmente nos comoveu por sua simplicidade. Aps termos nos dedicado durante um certo
perodo, tanto como intrpretes quanto como pesquisadores, a repertrios hiper-complexos em
termos estruturais, tcnico-instrumentais e perceptivos, as peas dos Jogos nos conquistaram
pela imediata captura de nossa sensibilidade. As poticas imagens infantis, que consistem na
matria prima original desse projeto, pareciam-nos certezas de uma aventura ldica e
promissora, assim como consistente e profunda, tanto no que se refere ao trabalho musical,
como mais especificamente ao pianstico. Alm disso, interessou-nos a concepo libertria e
criativa do trabalho pedaggico ao piano, especialmente pelo enfoque corporal e gestual
priorizado pelo compositor na coleo.
O objetivo da pesquisa investigar os trs primeiros volumes dos Jogos, do
compositor hngaro Gyrgy Kurtg, numa abordagem que articula os campos analtico e
performtico, a fim de ressaltar a importncia do corpo e do gesto dentro da proposta ldica
representada pela coleo. As diferentes acepes gestuais presentes nessas composies
objetivam trabalhar desde muito cedo com os alunos de piano uma multiplicidade de
referncias sonoras, estilsticas e performticas, essenciais atividade do pianista.
O primeiro captulo corresponde a um histrico da criao dos Jogos, tratando de sua
concepo, proposta e dos objetivos da obra, bem como da organizao dos volumes e
caractersticas gerais das peas. Atravs da discusso dessas questes, mostramos porque os
Jogos so considerados referncia no s entre as demais obras de Kurtg, mas tambm na
literatura para piano da segunda metade do sculo XX. A coleo tambm se destaca por sua
originalidade em comparao abordagem de outros compositores contemporneos que
compuseram msica para crianas, embora os Jogos logo tenham ultrapassado essa destinao
original. A coleo privilegia os aspectos gestuais e fsicos da performance, mas no o tipo de
explorao mais comumente associada tcnica tradicional de piano. A histria pessoal de
Kurtg o ponto de partida essencial para a compreenso do desenvolvimento do trabalho de
composio dessas peas. Nesse primeiro captulo, parte-se das questes biogrficas que
contriburam diretamente para a concepo do projeto.
No segundo captulo se examina um panorama conceitual que se revelou fundamental
na criao e em nossa abordagem interpretativa dos Jogos. Os conceitos de jogo, corpo e
13
gesto so analisados como subsdio para uma maior compreenso das fontes culturais que
condicionaram a viso de mundo e a produo artstica do compositor. Alm disso, a
multiplicidade de acepes dos referidos conceitos faz necessrio esclarecer quais utilizamos,
bem como seu alcance e pertinncia nas reflexes sobre a interpretao da obra de Kurtg.
O terceiro captulo consiste numa reflexo analtica a partir de nossas escolhas
interpretativas. Partimos de um esclarecimento sobre as bases metodolgicas adotadas para as
anlises (ferramentas metodolgicas) e em seguida dividimos os comentrios sobre os
materiais nas seguintes seces:
- o prefcio escrito pelo compositor coleo e as particularidades de notao
empregadas nas peas;
- a questo da diviso do primeiro volume da coleo entre pginas A e pginas B;
- explorao de gestos composicionais: hommages e evocaes de gneros ou
estilos;
- peas com propostas especiais quanto ao trabalho pianstico, sobretudo pelos tipos
de explorao gestual e corporal com o piano.
Kurtg elaborou nos Jogos um material significativamente inovador, tanto pela
incluso primordial do elemento da ludicidade, como pelo engajamento do corpo dos
intrpretes numa perspectiva globalizante e, portanto, alternativa pedagogia tradicional do
piano que, em geral, pensa num corpo fragmentado (sobretudo no espao compreendido entre
ombros e dedos). Aqui, a premissa da construo de um espao multimodal, hptico, ao tocar,
aliada primazia do gesto, promove um desenvolvimento fundamental das capacidades
perceptivas (em amplo sentido) dos intrpretes. Esta tese representa um convite ao universo
ldico, libertador e humano dos Jogos, os quais potencialmente nos conduzem a uma
experincia musical simples e profunda.
14
1. CAPTULO 1 OS JOGOS DE KURTG: HISTRICO,
CARACTERSTICAS E CONCEITOS FUNDAMENTAIS
Gyrgy Kurtg iniciou os trabalhos de composio dos Jtkok, Jogos1, atendendo a
uma encomenda. A professora de piano hngara Marianne Teke pediu-lhe para escrever
msica para crianas, iniciantes nos estudos piansticos. Este era o comeo de uma aventura
ldica para o compositor (e para os intrpretes) dessas obras, que hoje so encaradas como
uma de suas realizaes mais importantes. O pianista francs Claude Helffer2 inclui os Jogos
de Kurtg entre as obras de referncia da literatura pianstica da segunda metade do sculo
XX, ao lado de outras obras do compositor (suas Oito Peas para Piano, op. 3; Szlkk,
Estilhaos, op. 6; e ...quasi una fantasia... para piano solista e grupos de instrumentos, op.
27) 3.
A coleo dos Jogos, iniciada em 1973, j compreende oito volumes, dois quais os
sete primeiros j foram publicados. uma espcie de work in progress. Excertos dos oito
volumes vm sendo executados em concerto e gravados por Kurtg e sua esposa, Mrta,
tambm pianista. Tim R. Johnson4 divide a coleo em duas partes, considerando os primeiros
quatro volumes (com obras compostas entre 1973 e 75 e publicadas no ano de 1979) como o
primeiro bloco, e os trs restantes (publicados a partir de 1986) como o segundo. As
composies do quarto volume so todas destinadas a piano a quatro mos ou a dois pianos.
Do quinto volume em diante, os Jogos so publicados com um subttulo: Anotaes de
dirios, mensagens pessoais. O stimo volume foi publicado apenas em 2003 (o ltimo
publicado at o momento). O primeiro volume compreende 18 exerccios e 75 peas (sendo 3
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
1 Vamos nos referir coleo dos Jtkok, ao longo deste trabalho, simplesmente como os Jogos (em itlico) de Kurtg, traduo do termo para o portugus. 2 Claude Helffer (1922 2004) : pianista francs reconhecido por sua interpretao e divulgao da msica do sculo XX. Estudou com piano com Robert Casadesus e teoria e composio com Ren Leibowitz. Estreou muitas obras novas, sendo o dedicatrio de vrias delas, incluindo: Erikhthon (Xenakis, 1974), Concerto (Boucourechliev,1975), Stances (Betsy Jolas,1978), Concerto n 1 (Luis de Pablo, 1980), Envoi (Gilles Tremblay,1982), and Modifications (Michael Jarrell, 1983). Sua discografia inclui a obra completa para piano de Schoenberg, Debussy e Ravel, as sonatas de Boulez, Berg e Barraqu. Helffer era convidado para dar master classes no mundo inteiro. Tivemos a oportunidade de poder participar como executante (interpretando a obra Rounds de Berio) do master class que Helffer realizou em So Paulo (na Faculdade Santa Marcelina) em 1999. 3 Cf. HELFFER, Claude & MICHAUD-PRADEILLES, Catherine. O Piano. So Leopoldo: Editora Unisinos, 2003, p. 129. 4 Tim Rutherford Johnson, musiclogo autor de dissertao de mestrado sobre Jtekok de Kurtg. Cf. JOHNSON, Tim Rutherford. Playing Games: Reference, reflection and Teaching the Unkonwable in Kurtg's Jtkok. Dissertao de Mestrado apresentada ao Goldsmith College, Londres, 1999, p. 8.
15
peas para piano a quatro mos e 2 peas em verso para piano solo e para piano a quatro
mos). O segundo volume possui 54 peas; o terceiro, 51 peas (sendo uma pea para piano a
quatro mos). Do quarto ao stimo volumes h mais cento e trinta e quatro peas.
Antes de iniciar os trabalhos nos Jogos, Kurtg havia participado de outro projeto
idealizado por Marianne Teke, que resultou na publicao, em 1977, pela Editio Musica
Budapest (mesma editora dos Jogos), de uma coleo de peas curtas para crianas intitulada
Tarka-Barka (que significa multicolorido). Contribuiram com novas obras para o livro
vrios compositores muito conhecidos na Hungria: Lszl Borsody (1944), Attila Bozay
(1939-1999), Lajos Huszr (1948), Mikls Kocsr (1933), Jszef Soproni (1930) e Gyrgy
Kurtg (1926), naturalmente. A contribuio deste ltimo se deu na forma de dezenove peas,
que receberam o ttulo de El!-Jtkok (que significa jogos preliminares, ou fazendo uso da
etimologia, Pr-Ldios). Ao comparar as composies includas em Tarka-Barka, Johnson
avalia que a msica para crianas de Kurtg se diferencia da abordagem de seus
contemporneos (especialmente nesse livro, das de Huszr e Soproni) justamente por
privilegiar os aspectos gestuais e fsicos da performance, antes das questes mais
habitualmente associadas tcnica de piano na acepo tradicional. O piano como
brinquedo, repleto de interesse e possibilidades mgicas o foco do pensamento
composicional de Kurtg aqui5. Logo aps esse trabalho, os Jogos foram iniciados.
A primeira questo para Kurtg com a coleo foi repensar sua prpria histria
pessoal com o piano. Kurtg um competente pianista, tendo se graduado na tradicional
Academia de Budapeste como instrumentista e compositor. Nesta mesma instituio, ele
conquistou renome como professor de msica de cmara, tendo tido alunos destacados no
cenrio musical internacional (como os pianistas Andrs Schiff e Zoltn Kocsis, entre tantos
outros), que costumam apontar a inestimvel contribuio do professor Kurtg para sua
formao.
O compositor comeou a estudar piano aos cinco anos de idade. Segundo sua
declarao, aos sete anos desistiu de estudar o instrumento e perdeu todo o interesse por
msica, porque era muito chato ter de pensar nos dedilhados, nos ritmos e permanecer
sempre no mesmo registro6 do instrumento. Esta experincia o levou a investigar meios de
levar frente sua empreitada pedaggica e composicional.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
5 JOHNSON, Op. Cit., p. 16. 6 Cf. ALBRA, Philippe et al. Gyrgy Kurtg- Entretiens, textes, crits sur son oeuvre. Genve: ditions Contrechamps, 1995, p. 22: (...) parce que ctait trs ennuyeux de devoir penser aux doigts, aux rythmes, et de rester toujours dans le mme registre.
16
Kurtg declarou que os Jogos representaram, em sua caminhada como compositor,
algo como um novo Opus 1, no qual subitamente no houve qualquer preocupao com um
sistema composicional. Ele declarou ter partido de apenas um d no meio do teclado e, logo
em seguida, da reflexo sobre a prtica do canto gregoriano, na qual a recitao levemente
alterada em torno de uma nota gera fenmenos musicais to interessantes7.
Originalmente os Jogos foram pensados como um mtodo progressivo, como o
Mikrokosmos de Bartk. Sobretudo no primeiro volume percebe-se uma evoluo progressiva
do nvel de dificuldade (tanto em termos de exigncias tcnicas como sobretudo musicais).
Nos segundo e terceiro volumes, a progresso muito menos marcada. De todo modo, como
aponta Claus Wischmann8, essa progressividade no sistemtica como em Mikrokosmos, em
que cada pea pensada como preparao subsequente. Claude Helffer tambm comparou
os Jogos ao Mikrokosmos:
O procedimento [nos Jogos de Kurtg] semelhante ao de Bartk: nos seis cadernos do Mikrokosmos (1926-1937), este havia escrito uma srie de peas de dificuldade crescente que eram tanto uma iniciao tcnica pianstica quanto sua prpria linguagem. Os Jtkok (1973-1993) desempenham o mesmo papel para a utilizao atual do piano e para a compreenso de uma linguagem aforstica que nada renega do passado9.
Helffer e Wischmann consideram tambm que a coleo dos Jogos (da mesma forma
que os Mikrokosmos de Bartk) representa um papel interessante, seno ideal, de
aproximao ao estilo do compositor e sua personalidade10. Kurtg, assim como diversos
outros compositores, como Beethoven, Schoenberg e Bartk, explica Helffer, utilizou o piano
de maneira especialmente prxima, experimentando com o instrumento os novos caminhos
que pretendia trilhar posteriormente em sua composio11. A coleo dos Jogos ultrapassa,
dessa maneira, as questes de interesse puramente idiomticas do piano, representando a
prpria essncia do pensamento musical de Kurtg, sendo um verdadeiro dirio, laboratrio
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7 Cf. KURTG apud VARGA, Blint Andrs (ed.). Gyrgy Kurtg: Three interviews and Ligeti homages. Rochester: University of Rochester Press, 2009, p. 58. 8 Claus Wischmann: graduou-se me piano e saxofone na Academia de Msica de Frankfurt. Atua como escritor, diretor de filmes, documentrios, reportagens e gravaes de concertos. Seu artigo sobre os Jogos de Kurtg, publicado na Revista alem Musiktexte, um trabalho de referncia sobre a coleo. Cf. WISCHMANN, Claus. Spa am Experimentieren Kurtgs 'Jtkok' fr Klavier. In: Musiktexte, 72, p. 51. 9 In: HELFFER, Claude & MICHAUD-PRADEILLES, Catherine. Op. Cit., p. 143-144. 10 Cf. WISCHMANN, C., Op. Cit., p. 51. 11 Id., p. 54-55.
17
de ideias, de inveno, de tcnicas e de expresses, numa forma intencionalmente despojada e
elementar12.
O que diferencia marcadamente os Jogos de outros mtodos tradicionais utilizados
pela maioria dos professores de piano justamente seu enfoque pedaggico e musical.
Enquanto a maioria das composies com finalidades piansticas didticas trabalham
sobretudo a tcnica digital desde o incio do estudo da criana, Kurtg pretende
imediatamente encorajar o aluno a usar os pulsos e palmas no teclado, alm de evitar, por
exemplo, que os ritmos sejam medidos. A questo fudamental na obra no ensinar piano,
mas desenvolver ludicamente as possibilidades criativas do intrprete.
A busca pela brincadeira, pelo lado ldico, que to essencial na concepo dos
Jogos, apontou uma possvel sada para as limitaes srias e profundas da faceta mais
tcnica e abstrata que compe o mtier e tambm a prpria personalidade do compositor
Kurtg. Talvez essa seja a viagem autobiogrfica, ou biogrfica de cada um de ns a que ele
se refere13: a peregrinao ao lado infantil que se perdeu e que ao longo de toda nossa vida
devemos tentar recuperar. Alis, no comovente texto em homenagem ao amigo falecido
Ligeti, Kurtg cita que observar as criaes da fantasia de Lukas, filho de seu amigo, gerou
uma srie de ideias que empregou nos Jogos. Talvez influenciado por seu pai Gyrgy, que
quando criana escrevera sobre um mundo imaginrio (que chamou de Kylwyria) -
desenhando os seus mapas e descrevendo seu idioma, gramtica, etc.14 - o menino Lukas
Ligeti tambm produziu a enciclopdia de seu planeta inventado, com exemplos de sua
histria cientfica, literatura, artes e msica15. Os exemplos musicais dessa enciclopdia,
afirma Kurtg, foram um dos pontos de partida para seus Jogos.
A ideia da coleo, que tem nas crianas seu ponto de partida, era proporcionar-lhes
desde o incio peas interessantes e estimulantes (evitando o enfoque sobre a necessidade
inegvel de exaustivo trabalho digital ou a necessidade de leitura de partituras complexas),
privilegiando a concentrao sobre a recriao de emoes (as quais, como aponta Valria
Szervnsky16, as crianas talvez sintam mais intensamente que os adultos) e de atividades
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12 ALBRA, Philippe et al. Op. cit., p. 9: (...) un journal, un laboratoire dides, dinventions, de techniques et dexpressions, dans une forme volontairement dpouille et lmentaire. 13 KURTG apud ALBRA, Philippe et al. Op. cit., p. 21: () voyage autobiographique, ou le voyage biographique de chacun de nous. 14 Cf. TOOP, Op. Cit. p. 12-13. 15 KURTG, apud VARGA, Blint Andrs (ed.). Gyrgy Kurtg: Three interviews and Ligeti homages. Rochester: University of Rochester Press, 2009, p.91: (...) his son Lukas spent years writing the encyclopedia of his invented planet, with examples from its scientific history, literature,fine arts, and music. 16 Valria Szervnsky: estudou na Academia de Msica de Budapeste com Pl Kadosa e Gyrgy Kurtg. Professora da classe de crianas superdotadas mesma instituio. Ensinou tambm na Academia de Msica de
18
cotidianas: sentir sono, ficar de bobeira, sentir-se entediado, etc (esses so alguns temas e
ttulos de peas dos Jogos17).
O prefcio que Kurtg escreveu como apresentao aos Jogos muito importante para
a compreenso dos objetivos dessas composies, alm de ser um dos raros testemunhos do
prprio compositor sobre suas obras. Kurtg deixa claro nesse prefcio (que ser examinado
com maior profundidade no terceiro captulo deste trabalho) seu desejo de instigar e/ou
recuperar o lado ldico do pianista com os Jogos. Para o compositor, que descrito por
muitos que tiveram o privilgio de conviver com ele, como um homem extremamente srio,
inteligente e reservado, o trabalho de composio sempre esteve relacionado a srias crises
que levavam a longos perodos de paralisia criativa. A composio dos Jogos parece,
inclusive, segundo Claus Wischmann18, ter funcionado como o rompimento de um bloqueio
criativo considervel, pois entre 1970 e 73 Kurtg no conseguira completar uma nica
composio. Porm, a partir da encomenda dessas peas, rapidamente estavam reunidas
duzentas peas e um plano para public-las numa obra autnoma e ampla, isto , na forma dos
Jogos, comeou a ser preparado19.
Um desses primeiros perodos de crise mencionados nos relatos biogrficos foi o
perodo em que Kurtg foi estudar em Paris20. Assim como seu clebre compatriota Gyrgy
Ligeti21, Kurtg sentiu a necessidade de alargar seus horizontes musicais, escapando durante
algum tempo do panorama musical, ideologicamente patrulhado e repressor, representado
pela cultura oficial da ditadura comunista vigente na Hungria da poca. Entre 1949 e 1953,
por exemplo, o pas teve banidas a msica de Schoenberg, Stravinsky, e mesmo as obras mais
modernas do hngaro Bartk. A msica que os meios oficiais incentivavam ou desejavam era
de um tipo extravagante, retrico e vazio. Kurtg pretendera anteriormente, na verdade, fugir
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Musashino em Tquio. Muito requisitada para cursos sobre a msica contemporneo por instituies como o Festival Internacional Bartk da Hungria, a British Kodly Academy, o Centre Acanthes de Avignon, o Festival Orlando da Holanda, entre outras. cf. SZERVNSKY, Valria. About the Jtkok Games. In: GRABCZ, Mart & OLIVE, Jean Paul (Ed.). Gestes, fragments, timbres: la musique de Gyrgy Kurtg. Paris: LHarmattan, 2008, p. 180. 17 Ver ttulos das peas dos trs primeiros volumes dos Jogos no terceiro captulo, p. 71 78. 18 WISCHMANN, Claus, Op.cit., p. 51. 19 Ibid: Sehr schnell hatten sich zweihundert Stcke angesammelt und es reifte der Plan, ein umfangreiches, eigenes Werk herauszugeben, eben Jtkok. 20 Sobre seu perodo parisiense, as palavras do compositor so extremamente ilustrativas: Eu vivia ento em Paris e atravessava uma crise que me colocou numa completa incapacidade de compor: 1956 foi para mim verdadeiramente o desmoronamento de todo um mundo. No apenas do mundo exterior, mas tambm do meu universo interior. Numerosos problemas de ordem moral se colocavam em relao ao meu trabalho sob direo de Marianne Stein, toda minha atitude humana se tornava problemtica. Eu cheguei ao fundo, completamente., KURTG apud ALBRA, Philippe et al.Op. cit., p. 14 21 Kurtg compartilhou uma profunda relao de amizade desde que se conheceram durante os exames de ingresso Academia de Budapeste em 1945, at a morte de Ligeti em junho de 2006)
19
da Hungria pela mesma rota que Ligeti utilizara pouco tempo antes, mas por uma questo de
dias isso no foi possvel: essa opo j estava completamente bloqueada22.
Kurtg permaneceu um ano em Paris, tendo frequentado aulas de Olivier Messiaen,
Darius Milhaud e Max Deutsch (ex-aluno de Arnold Schoenberg). No entanto, a experincia
mais importante, de acordo com o prprio compositor, foi seu trabalho com a psicloga
hngara Marianne Stein. Ela o orientou no sentido de encontrar sua verdadeira personalidade
artstica, investigando como atingir seus ideais expressivos atravs de uma depurao de tudo
o que ele considerasse excessivo e superficial em sua composio, manejando a menor
quantidade possvel de materiais musicais a fim de encontrar o mais essencial a ser dito, com
simplicidade e honestidade. Esta caracterstica da simplicidade da escritura e de uma espcie
de inocncia dos materiais permaneceu um dos traos emblemticos do compositor Gyrgy
Kurtg, que declarou:
[...] pessoalmente me reconheci nessa brevidade e comecei a pesquisar como isso se produziu em outros fatores da minha vida: parece-me importante livrar-me de tudo que no essencial. Uma vez, Nono [o compositor italiano Luigi Nono (1924-1990)] me perguntou qual era fundamentalmente meu processo composicional e meus objetivos compondo. Respondi que essencialmente havia dois: alcanar uma espcie de unidade com o mnimo material e conquistar um tipo de composio vocal que se aproximasse o mximo possvel da comunicao verbal. (...) Isto tudo no estava consciente, mas a pergunta de Nono me estimulou a estabelec-lo e investig-lo.23
Essa preferncia pelas formas concisas e aforsticas, tais como as encontradas nos
Jogos, encontra um paralelo em suas predilees literrias. Extremamente culto, poliglota24,
Kurtg tem uma forte ligao com a palavra e com textos de diversos escritores cujas
produes tambm so marcadas pela conciso de sua esttica (Hlderlin, Kafka, Beckett,
entre outros). Essa caracterstica da msica kurtaguiana j foi interpretada como uma reao
ao estilo musical estimulado pelo patrulhamento esttico durante a ditadura sovitica
stalinista sofrida pela Hungria.
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22 Aps a revoluo de 1956 e apenas uma semana aps a fuga de seu amigo Ligeti, a me da esposa do compositor, Vera Ligeti, informou a Kurtg que aquela rota de fuga no era mais vivel. Cf. TOOP, Richard. Gyrgy Ligeti. London: Phaidon, 1999, p. 62. 23 KURTG, apud ALBRA, Philippe et al. Op. cit., p.28: personnellement, je me suis reconnu dans cette brivet, et jai commenc la rechercher, comme cela cest produit pour dautres facteurs de ma vie: il me parat important de me dbarrasser de tout ce qui est peu essentiel. Une fois, Nono ma demand quel tait, fondamentalement, mon processus compositionnel, et quelles taient mes finalits en composant; jai rpondu que, substantiellement, il y en avait deux: arriver un type de composition vocale qui sapproche le plus possible de la communication verbale (). Tout ceci ntait pas conscient chez moi, mais la question de Nono ma stimul pour le fixer et le poursuivre. 24 Kurtg fala fluentemente romeno, hngaro, alemo, ingls e francs, alm de ter aprendido russo e grego clssico para ler os originais de obras literrias de sua predileo.
20
Alm disso, Kurtg tambm declarou ter sofrido a influncia do trabalho que o Novo
Estdio Musical 25 estava desenvolvendo em termos de linguagem musical:
[...] a linguagem do Novo Estdio Musical, que estava em processo de desenvolvimento, representou um papel muito importante na poca em que comecei a trabalhar nos Jogos ousar trabalhar tendo como recursos um nmero ainda mais reduzido de notas.
A viagem a Paris proporcionou a possibilidade de inteirar-se com a msica nova que
vinha sendo produzida no Ocidente. A tardia descoberta da msica de Anton Webern foi
decisiva para seu desenvolvimento como compositor (do mesmo modo como fora para
Ligeti), no ao escutar suas obras, mas ao estud-las, questionando os pequenos detalhes26.
Kurtg chegou a copiar quase metade da obra de Webern, com a finalidade de estudo.
Outro impacto profundo foi proporcionado pela rpida passagem pela cidade de
Colnia (Kln), em visita exigida pelo amigo Gyrgy Ligeti, que l se fixara. Colnia era
ento a Meca da msica de vanguarda da poca, devido aos trabalhos de msica eletrnica
desenvolvidos no Estdio da Rdio Estatal (WDR). Graas a Herbert Eimert27, que ento no
conhecia absolutamente nada da produo composicional do Ligeti, este conseguira
inicialmente uma pequena renda mensal (bolsa de estudos) e mais tarde um posto de trabalho
no estdio, que entretanto no lhe rendia muito dinheiro28. Novamente no texto de
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25 O Novo Estdio Musical (j zenei Stdi) foi o primeiro grupo de msica experimental a ser fundado na Hungria. Seu nome completo Novo Estdio do Conjunto Central dos Artistas da Liga Jovem Comunista (KISZ Kzponti Mvszegyttes j Zenei Stdiia). O fato de ser fundado um grupo desse tipo apenas em 1970 na Hungria, seria uma conseqncia das polticas repressivas stalinistas dos anos 50. Aps a assimilao rpida pelos compositores hngaros das influncias da msica da Segunda Escola de Viena e da msica de Boulez (que eram vetadas pelo patrulhamento comunista oficial), os jovens compositores hngaros procuraram novos meios de expresso. Foi nesse contexto que surgiu o grupo, cujo pontap inicial para os trabalhos foi dado por trs compositoresL Lszl Sry (1940), Zoltn Jeney (1943) e Lszl Vidovszky (1944). Mais tarde integraram o grupo o musiclogo Andrs Wilheim (o portavoz do grupo), e os compositores Barnabs Dukay, Gyula Csap, Zsolt Serei e Gyrgy Kurtg Jr., alm da participao eventual de Zoltn Kocsis e Pter Etvs. Todos os membros do grupo tambm atuavam como intrpretes. Uma das premissas de trabalho do grupo era a inseparabilidade entre composio e execuo musical, partindo do pressuposto que novas possibilidades se abrem ao compositor se ele capaz de participar da realizao das obras. Compositores americanos (como Cage, Reich e Riley) desconhecidos anteriormente no meio musical da Hungria exerceram grande influncia sobre o Estdio. O grupo no publicou manifestos escritos e mesmo notas de programs so raras nos concertos (costume hngaro, especialmente no meio da msica nova). Um dos principais objetivos do grupo educacional, promovendo, alm da fuso de composio e prtica musical, um treinamento de instrumentistas em msica experimental, tanto da Hungria como de repertrio vanguardista do exterior (cf. McLAY, Margaret. Experimental Music in Jungary: The New Music Studio. In: VARGA, Blint Andrs (ed.). Contemporary Hungarian Music in the international Press. Budapest: Editio Musica Budapest, 1982. 26 Id., p. 13: non pas en entendant ses oeuvres, mais en les tudiant, en interrogeant ls petits dtails. 27 Herbert Eimert (1897-1972): compositor e professor alemo. Trabalhou durante a 2 Guerra como crtico musical e foi fundador do Estdio de Msica Eletrnica da Rdio Estatal de Colnia (Westdeutscher Rundfunk). Com Stockhausen foi editor do peridico Die Reihe. Um dos primeiros a produzir peas com som totalmente eletrnico. 28 Cf. TOOP, Richard. Op. cit., p. 51-52.
21
homenagem escrito por ocasio do falecimento do amigo Ligeti, Kurtg lembra detalhes desse
dia no incio de julho de 1958, em que Ligeti o esperava na estao de trem de Colnia.
Kurtg enfatiza como esses dois dias [que passou na companhia de Ligeti em Colnia] foram
musicalmente muito mais ricos e significativos [] que o ano inteiro em Paris. Kurtg
tambm lamenta no texto no ter conseguido perceber na poca o grande sacrifcio que seu
amigo Ligeti fizera para pagar por seu quarto e estadia, uma vez que a situao financeira
deste no perodo era muito difcil, pois Ligeti no ganhava praticamente nada durante
anos29. De todo modo, o que foi extraordinrio para o jovem Kurtg, nessa ocasio, foi ter
sido apresentado por seu amigo a gravaes de obras que marcaram profundamente sua
trajetria artstica, a saber: Gruppen para trs orquestras de Karlheinz Stockhausen e
Artikulation de Ligeti (a nica pea eletrnica finalizada por ele). Segundo o testemunho de
Kurtg, a partir desse momento, seu ideal e sua aspirao se voltaram para a investigao, em
sua prpria linguagem, de como atingir algo semelhante ao que experienciou com
Artikulation, em Colnia30. Depois de tantos choques culturais e pessoais, somente aps um
ano inteiro conseguiu completar uma nova obra, significativamente seu Opus 1: um quarteto
de cordas, que dedicou a Marianne Stein.
O incio da composio dos Jogos foi tambm precedido de uma grande paralisia
criativa. Kurtg conta que, apesar de nunca ter sido especialmente dotado para o desenho,
havendo at mesmo fracassado nos exames dessa matria na escola, durante esse perodo de
crise passou meses inteiros apenas desenhando, ou, como ele prefere colocar, deixando sinais
no papel. Havia pouca diferena de um sinal para o outro, mas tenho a impresso de que algo
disso passou para os Jogos31. interessante observar que na poca parisiense ele tambm
sentira a necessidade de representar suas angstias atravs de outros meios no-musicais:
pequenas esculturas feitas com palitos de fsforos, poeira e tocos de cigarros, que refletiam
sua situao depressiva32. A crise criativa que antecedeu imediatamente a composio dos
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29 VARGA, Blint Andrs (ed.). Gyrgy Kurtg: Three interviews and Ligeti homages. Rochester: University of Rochester Press, 2009, p. 93: (...) in fact, these two days were musically far richer and more meaningful for me than the entire year in Paris. What I failed to see was that although he earned practically nothing for years, he underwent great sacrifices to pay for my room and board. 30 Ibid. 31 KURTG, apud VARGA, Blint Andrs. In: ALBRA, Philippe et al. Op. Cit., p. 16: Il y avait peu de diffrence dun signe lautre, mais jai limpression que quelque chose en est nanmoins pass dans Jeux. 32 Id., p. 14 15: Este ano passado em Paris e o trabalho com Marianne Stein praticamente dividiram minha vida em dois. Perdi ento 20 quilos comia praticamente s arroz. (...) E depois comecei a fazer ginstica. (...) Meus movimentos eram terrivelmente angulosos, era quase uma pantomima. Tentei ento modificar minha escrita e de faz-la mais angulosa, mais crispada. A etapa seguinte foi a construo de formas, igualmente angulosas, com fsforos. Criei para mim todo um universo de smbolos. Sentia-me num estado comparvel ao de um verme, com as caractersticas humanas reduzidas sua expresso mais simples. As formas construdas
22
Jogos foi dissipada, segundo o compositor, devido possibilidade de realizar duas viagens
(graas ao recebimento do dinheiro do Prmio Kossuth, o mais importante concedido pelo
governo hngaro por excelncia artstica) uma Itlia e outra regio da Transilvnia o
que lhe proporcionou estmulo e liberao emocional33.
Willson34 considera que nos Jogos, pela primeira vez sentida a influncia de
Milhaud na obra de Kurtg, no que diz respeito aceitao de todas ideias como possveis
futuros materiais, por mais banais que possam parecer primeira vista. Como tambm aponta
Wilheim35, a coleo, que vem crescendo ininterruptamente desde 1973, compreendendo j
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com fsforos, carneiros de poeira (eu no fazia faxina todos os dias) e com tocos de cigarros enegrecidos (pois ainda por cima, eu fumava) me representavam.- (Cette anne passe Paris et le travail auprs de Marianne Stein ont pratiquement coup ma vie en deux. Je perdis alors vingt kilos. () je me nourris presque exclusivement de riz (). Et puis je commenai faire de la gymnastique. () Mes mouvements taient terriblement anguleux, ctait presque une pantomime. Jessayai alors de modifier aussi mon criture et de la rendre plus anguleuse, plus crispe. Ltappe suivante fut la construction de formes, galement anguleuses, avec des allumettes. Je me crait tout un univers de symboles. Je me sentais moi-mme dans un tat comparable celui dun ver de terre, avec des caractrisques humaines rduites leur plus simple expression. Les formes construites avec des allumettes, des moutons de poussire (je ne faisais pas le mnage tous les jours) et de mgots noircis (car en plus, je fumais) me reprsentaient.) 33 KURTG, apud VARGA, Blint Andrs (ed.). Gyrgy Kurtg: Three interviews and Ligeti homages. Rochester: University of Rochester Press, 2009, p. 43: (...) o ano de 1973 foi importante na minha vida. Recebi um telegrama com a notcia de que havia recebido o Prmio Kossuth. Ele chegou num perodo em que havia estado por anos nos espasmos de uma paralisia criativa. Estava num estado de total angstia. Quando meu filho sugeriu que eu devia levar minha esposa Mrta para a Itlia com o dinheiro do prmio, no tinha a menor inclinao de faz-lo: minha alma estava manchada com a inatividade que se havia imposto sobre mim. Eu no merecia visitar a Itlia. Mas minha famlia me convenceu e eu recebi impulsos que se mostraram profundamente significativos para minhas obras posteriores. Florena e Assis me impressionaram particularmente. E em Bolonha Zoltn Pesk e eu tomamos um caf que me deixou acordado pelo ano e meio subsequente. A visita Itlia foi seguida de uma viagem Transilvnia. O impacto dessas experincias devem ter tido um papel decisivo na liberao da minha aflitiva paralisia criativa: comecei a escrever os Jogos.- (the year 1973 was an important one in my life. I received a telegram with the news that the Kossuth Prize had been conferred on me. It came at a time when I had for years been in the throes of creative paralysis, I was in a state of utter distress. When my son suggested that I should take my wife Mrta to Italy from the prize money, I did not have the slightest inclination to do so: with my soul dirty from the iddleness imposed on me, I did not deserve a visit to Italy. But my family persuaded me- and I received impulses that were to prove of utmost significance for my later work. Florence and Assisi in particular impressed me no end. And, in Bologna, Zoltn Pesk and I drank a cup of coffee that was to wake me up for a year and a half. The visit to Italy was followed by the one to Transiylvania. The impact of those experiences must have played a decisive role in the liberation from my trormenting creative paralysis: I began to write Jtkok). 34 Rachel Beckles Willson: musicloga e professora. Desde 2003 integra o departamento de msica em Royal Holloway (Londres), aps haver lecionado na Universidade de Bristol. Seus interesses de pesquisa concentram-se principalmente nas influncias polticas sobre a msica durante a Guerra Fria, na historiografia musical do sculo XX e na antropologia da msica (sobretudo aspectos de colonizao). Seus dois primeiros livros enfocavam a msica da Hungria, pas onde Willson estudou por 3 anos, como parte de seu trabalho de doutorado (pelo King's College de Londres). O primeiro livro um estudo analtico e contextual do op. 7 de Gyrgy Kurtg (Bornemisza Pter Modsai, concerto para soprano e piano), enquanto o segundo trata de questes mais amplas sobre exlio e identidade em Ligeti, Kurtg e na msica hngara durante a Guerra Fria. Cf. WILLSON, Rachel Beckles. The Mind is a Free Creature The music of Gyrgy Kurtg. In: Central Europe Review, Vol.2, N 12 (27 de Maro de 2000). http://www.ce-review.org//00/12/willson12.html (21/07/2005) 35Andrs Wilheim: nascido em 1949 na Hungria. Graduou-se em musicologia na Academia Franz Liszt de Budapeste em 1974, com trabalho sobre Varse. Desde 1981 ensina no departamento de musicologia e composio da Academia de Budapeste. Desde 1984 diretor de gravaes dos selos Quinta, Hungaroton, BMC. Desde 1998 se apresenta tambm como regente orquestral. Desde 1996 editor das publicaes de msica
23
centenas de peas, caracteriza-se tambm, alm da mencionada aceitao de todos materiais
musicais, pela utilizao de diversos estilos e solues tcnicas de composio. So uma obra
aberta: as peas no esto submetidas a uma lgica de encadeamento cclico. O compositor
declarou que acredita que no se deve executar a coleo de forma integral. Alis, em
entrevista a Blint Andrs Varga, Kurtg comentou como ficou terrivelmente perturbado com
a empreitada do pianista hngaro Gbor Csalog, que gravou sete volumes dos Jogos pelo selo
hngaro BMC, justamente por t-lo feito confrontar-se de uma maneira nova com a forma
como manejou a reiterao e o reaproveitamento dos materiais musicais na coleo36.
Simone Hohmaier37, em um trabalho de pesquisa sobre os manuscritos, esboos ou
rascunhos de composies de Kurtg depositados na Fundao Paul Sacher (Basilia,
Sua)38, aponta uma srie de relaes de derivao entre materiais musicais originais que o
compositor utilizou em diferentes obras e perodos. A autora sugere conexes entre alguns
desses manuscritos que representam anlises musicais (sobretudo de peas de Bartk) e as
solues que utilizou em suas composies e o que aqui mais nos interessa: o carter de
jogo, brincadeira, por trs desses esboos. Hohmaier destaca que tal carter ldico notvel
nos rascunhos, que o revelam no desenvolvimento das ideias fundamentais da composio,
quando a explorao sistemtica do material d lugar a uma msica gestual e expressiva39.
Desse modo, prossegue Hohmaier, faz-se complicada a distino entre jogos e
composies, assim como entre estudos analticos e exerccios.
Em muitos esboos o jogo tem a funo de uma pausa no processo de anlise e estudo sistemticos. Aps conduzir a pesquisa do material bsico numa fundamentao analtica ou experimental sistemtica, o potencial musical do material em questo testado em jogos: a qualidade do som e do silncio. Desse modo, os jogos tm uma funo importante no processo criativo do compositor como espao criativo livre. Seu carter de jogo no revelado pelo que Adorno denominou pejorativamente de formas regressivas de jogos, baseadas na repetio
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contempornea da Editio Musica Budapest, e colaborador da edio integral das obras de Bartk. Seus principais artigos tratam de Bartk, Cage, Satie, Ligeti, Kurtg e Messiaen.Cf. WILHEIM, Andrs. Jtkok- Transcriptions. Disponvel em: . Acesso em 05 jul. 2006. 36 Cf. KURTG, apud VARGA, Blint Andrs (ed.). Gyrgy Kurtg: Three interviews and Ligeti homages. Rochester: University of Rochester Press, 2009, p. 58. 37 Simone Hohmaier: graduou-se em musicologia, sociologia e cincias polticas em Heidelberg em 1992. Obteve mestrado com dissertao sobre o Quartetto per archi op. 1 de Gyrgy Kurtg, publicada pela editora Pfau (Alemanha). Professora de musicologia da Humboldt Universitt em Berlim (de 2003-2006) e desde 2007 da Hochschule fr Musik Hanns Eisler. Editora do anurio do Staatlichen Institut fr Musikforschung. 38 HOHMAIER, Simone. Analysis-Play-Composition: Remarks on the Creative Process of Gyrgy Ligeti. In: WILLSON, Rachel Beckles & WILLIAMS, Alan E (eds.). Perspectives on Kurtg. In: Contemporary Music Review. [s.l.]: Harwood Academic Pulishers, 2001, Volume 20, Partes 2+3. 39 Id., p. 42: The systematic exploration of material steps back in favour of a gestural, expressive music.
24
e conformao a regras. Seu carter muito mais prximo da criana brincando espontaneamente.40
Diante do exposto, tangenciamos um ponto muito comentado pelos analistas da
coleo dos Jogos para piano de Kurtg: eles no representam apenas uma srie didtica de
peas para crianas. Alis, devemos ter em mente que, na Hungria, compor msica com
finalidades didticas no uma atividade menor. Essa tradio hngara remonta dcada
de 1930 ou mesmo antes41, com os trabalhos de Bartk, Kodly, Dohnnyi e Weiner42. Nessa
poca buscava-se, com as pesquisas etnomusiclogicas, descobrir as verdadeiras razes
folclricas nacionais. A msica assumiu um papel fundamental no processo educacional do
pas, tendo inclusive o objetivo de servir como fonte de identificao com a essncia cultural
de um povo que se via isolado, de certa maneira, por seu idioma43. O centro da educao
musical hngara o sistema de Kodly, estabelecido quando a educao musical passou a
receber financiamento do Estado em 1906. Alm das peas didticas de Kodly (Bicinia
Hungarica, de 1937) e de Bartk (entre as quais obviamente Mikrokosmos), havia um
estmulo para que compositores reconhecidos por sua excelncia artstica compusessem para
crianas, o que permanece vlido ainda no contexto contemporneo. Os professores hngaros
de msica atribuem enorme importncia ao ensino das obras nacionais, to cedo quanto
possvel no processo pedaggico musical. Segundo Johnson, os compositores na Hungria
sempre estiveram contentes em aceitar encomendas de msica para crianas44.
O prprio Kurtg advertiu contra uma interpretao redutora dos Jogos como msica
simplesmente didtica, numa entrevista a Balint Vargas45. Segundo o compositor, esta uma
coleo pseudopedaggica. Kurtg considera que a mesma pea pode ser utilizada por
iniciantes ou como pea de concerto, o que se percebe na interpretao e incluso de vrias
dessas peas nos repertrios de famosos pianistas atuais (como o francs Pierre-Laurent
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40 Id. p. 49: In many sketches play has the function of a pause in the process of systematic analysis and study. After conducting the search for basic material on an analytical or systematically experimental basis, the musical potential of the material in question is tested in the games: the quality of sound and silence. Thus the games have an important role in Kurtgs creative process as productive free space. Their character as play is not revealed in what Adorno pejorative terms regressive forms of play, based on repetition and adherence to rules, their formation is much closer to the child playing spontaneously. 41 C. Wischmann lembra tambm as composies para piano com fins pedaggicos de Liszt. Cf. WISCHMANN, Op.cit., p. 51. 42 Leo Weiner (1885-1960): compositor e um dos principais educadores musicais da primeira metade do sculo XX. Foi professor de msica de cmara de Gyrgy Kurtg, na Academia de Budapeste. 43 O hngaro s aparentado ao finlands e ao estoniano, e hoje apenas longinquamente, sendo reconhecida como a mais difcil lngua no asitica do mundo 44 JOHNSON, Op. Cit. p. 15: (...) composers in Hungary have long been happy to accept requests for music for children. 45 ALBRA, Philippe et al. Op. cit., p. 30.
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Aimard e o noruegus Leif-Ove Andsnes46, que conduzem bem sucedidas carreiras
internacionais).
A proposta criadora e libertria imanente nos Jogos tambm um estmulo
improvisao (uma das peas do primeiro volume foi composta por uma aluna de Kurtg, de
seis anos de idade47) e uma maneira de abordar qualquer msica, inclusive a literatura
tradicional. Determinados procedimentos instrumentais e musicais sugeridos nos Jogos, que
sero tratados posteriormente, podem ser aplicados s obras tradicionais do repertrio
pianstico, inclusive como modelo de leitura e anlise.
H outra importante mudana de paradigma nos princpios que fundamentam os Jogos
no que se refere relao entre o corpo e o instrumento. L. Pestalozza, num debate sobre a
coleo dos Jogos com a presena do compositor48 apontou brilhantemente a tradicional
separao entre a autoridade da Msica (com m maisculo) e o executante temeroso,
submisso, que deve necessariamente sujeitar-se (inclusive fisicamente) a ela. No h
possibilidade de apropriao do fenmeno musical por parte do aluno, mas antes uma relao
de controle, qual este vai se habituando. Kurtg prope uma abordagem mais fsica da
msica, dizendo ser preciso reinventar de alguma maneira o modo como fazemos a
msica49.
Para implementar essas ideias a respeito de um nova relao corporal com o piano,
Kurtg tinha algumas premissas bsicas, quanto realizao instrumental. Numa palestra de
1994, que tinha por tema as composies dos Jogos, Kurtg fez a seguinte declarao sobre o
momento do incio do trabalho nessa obra:
[...] comecei a precisar repensar toda a minha vida. Comecei a estudar piano com cinco anos e com sete anos eu parei. Porque era muito chato ter de pensar nos dedilhados, nos ritmos, e de permanecer sempre no mesmo registro. Assim, para comear, minha idia foi inicialmente encontrar para a criana a possibilidade de movimentos rpidos e desenvolver o conceito da tomada de posse de todo o teclado; de ter a possibilidade de algo que fosse um 'ritmo orgnico' (o que no uma definio, mas para mim, importante); de ter muito silncio, ou seja, de aes acstico-orgnicas que estimulem respostas, conseqncias: algo, em suma, de muito primitivo50.
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46 Citamos esses dois pianistas, pois Kurtg e sua esposa Mrta os consideram verdadeiros defensores de sua msica, lutando artisticamente de maneira ideal por ela. Cf. VARGA, Blint Andrs (ed.). Gyrgy Kurtg: Three interviews and Ligeti homages. Rochester: University of Rochester Press, 2009, p. 51. 47 A pea 9A do primeiro volume: O coelhinho e a raposa (composta por Krisztina Takcs, de 6 anos). 48 ALBRA, Philippe et al. Op. cit., p. 29. 49 Ibid: Il faut rinventer en quelquer sorte la faon de faire de la musique (...). 50 KURTG, In: ALBRA, Philippe et al. Op. Cit., p. 21-22: () je me suis trouv devoir repenser toute ma vie. Jai commenc tudier le piano cinq ans, et sept ans, jai arrt: parce que ctait trs ennuyeux de devoir penser aux doigts, aus rythmes, et de rester toujours dans le mme registre. Ainsi, pour commencer, mon ide fut dabord de trouver, pour lenfant, la possibilit de mouvements rapides, et de developer le concept de
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Aps uma srie de experincias com alunos de piano muito jovens, o compositor
constatou que parte dessa ideia (a da tomada de posse de todo o teclado pela criana) s vezes
no era realizvel enquanto a criana fosse demasiado pequena e a abertura dos braos
insuficiente. Contudo, no desistiu da proposta: simplesmente a transformou. Props ento
que a criana passeasse ao redor do piano, tocando todas as regies do teclado. As distncias
percorridas se transformavam assim numa nova experincia fsica, que podia ser desse modo
associada aos eventos musicais (transportar distncia determinados eventos musicais, por
exemplo). Esta explorao aparece, por exemplo, na pea Passeando na pgina 5A do
primeiro volume: o aluno deve caminhar ao longo de todo o teclado e, de p mesmo, executar
as exigncias da partitura, encenando a situao de um passeio pelo instrumento.
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prise de possession de tout le clavier; davoir la possibilit de quelque chose qui soit un rythme organique (ce nest pas une definition mais pour moi, cest important); davoir beaucoup de silence, cest--dire des actions acoustico-organiques qui stimulent des rponses, des consquences: quelque chose, en somme, de trs primitif.
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Exemplo 1 - Gyrgy Kurtg Passeando (I, 5A)
Uma das principais intenes nos Jogos era no restringir as consideraes corporais
regio compreendida entre ombros e dedos, que em geral tomada e ensinada isoladamente
em relao ao resto do corpo. Kurtg prope que todo o corpo seja ativado e includo no
processo de tocar piano, o que atingido devido a uma profunda correlao que liga a
gestualidade de execuo e a atitude postural de todo o corpo s caractersticas do percurso
musical51 das peas da coleo. Nas palavras de Wischmann, pensar na totalidade do corpo
ao tocar era
[...] um estmulo importante, especialmente para alunos muito jovens com grande necessidade de movimento e de ludicidade, para os quais sentar-se no banco do
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51 MELIS, Stefano. Processus compositionnels et comprhnsion musicale enfantine dans Jtkok. In: GRABCZ, Mrta & OLIVE, Jean Paul (ed.). Gestes, fragments, timbres: la musique de Gyrgy Kurtg. Paris: L'Harmattan, 2008, p. 149: (...) lanalyse ne saurait ignorer le rapport de profonde corrlation qui lie la gestualit excutive et lattitude posturale de tout le corps aux caractristiques du parcours musical.
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piano durante perodos longos equivale a um esforo obrigatrio. Diante disso, Kurtg prope uma mudana do pensamento sobre tocar piano e mesmo sobre o fazer msica, em geral. Para ele [Kurtg], a movimentao deve ser globalizante, quando se trata da conduo a uma expresso musical natural, a qual compreende todo o corpo e no pode se restringir ao brao ou mo52.
Para notar a msica dos Jogos Kurtg utilizou um sistema grfico que representa toda
a extenso do teclado, a fim de alargar a sua representao, que na notao tradicional se
mostra deficiente nos extremos grave e agudo. Wischmann cita um trabalho de Klaus
Runze que descreve o sistema de de Kurtg como um acrscimo otimizado da notao
tradicional, o qual 'representa os eventos musicais num mbito de sete oitavas () de maneira
semelhante a uma partitura orquestral', acrescentando que outra virtude desse sistema
notacional exatamente o fato de que as regies extremas sofrem assim uma revalorizao
visual, pois no so mais notadas abstratamente, por meio de oitavaes, sendo por isso
especialmente interessante para composies que incluem toda a extenso do teclado53.
Outra questo fundamental na obra de Kurtg, em especial nos Jogos, a do gesto.
Fernado Iazzetta54 explica que o gesto musical pode ser entendido como um fenmeno
expressivo que se atualiza na forma de movimento, representando papel fundamental como
gerador de significados. Observa-se a distino entre os gestos fsicos (que se referem
relao causal entre ao gestual e seus resultados sonoros), os corporais (que no produzem,
mas acompanham o som) e os mentais (que fazem referncia aos gestos fsicos, mas podendo
apontar para estruturas sonoras particulares). As interaes com os instrumentos musicais
mais sofisticados ou desenvolvidos conduzem a uma extensa gama de movimentos micro-
gestuais do corpo do intrprete, possibilitando um amplo espectro de qualidades afetivas do
som musical.55
Alm disso, outro ponto a destacar nessas peas a relao entre a expresso e a
escuta, evidenciada sobretudo pelo papel do gesto nas mesmas. Enfoca-se aqui o
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52 WISCHMANN, C. Op. Cit., p. 53: Eine Anregung, die gerade bei sehr jungen Schlern mit groen Bewegungs- und Spieldrang, fr die das andauernde Sitzen auf dem Klavierhocker einer Zwangsmanahme gleichkommt, wichtig ist. Darber hinaus versucht Kurtg aber eine grundstzliche Vorstellung vom Klavierspiel, vom Musizieren allgemein, umzusetzen. Es geht ihm um eine ganzheitliche, den gesamten Krper betreffende Bewegung, die nicht auf den Arm oder die Hand beschrnkt sein kann, wenn sie zu einem natrlichen Ausdruck der Musik fhren soll. 53 RUNZE apud WISCHMANN, C. Op. Cit., p. 52: Klaus Runze beschreibt dies (...) als eine im Ansatz optimale Notationsform, die im Umfang von sieben Oktaven in einem partitur-hnlichen Doppel- oder Mehrfach-Notensystem sich darstellt. (...) Gerade die Extremlagen des Klaviers erfahren damit eine optische Aufwertung, da sie nicht abstrakt, mittels Oktavierung, notiert werden mssen. 54 IAZZETTA, Fernando. A msica, o corpo e as mquinas. In: Opus- Revista da Associao Nacional de Pesquisa e Ps-Graduao em Msica. Rio de Janeiro: ANPPOM, 1997. 55 MOORE apud IAZZETTA, Op. Cit. p. 35.
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desenvolvimento da percepo da importncia da escuta do som: sua durao, as conexes e
concatenaes entre sons e entre sons e silncios, as diversas qualidades de ambos, a relao
entre eles e sua produo mecnica, que envolve o corpo inteiro. Como aluna de Kurtg,
Szervnsky cita uma das frases que mais ouvia nas aulas do compositor: o maior pecado
quando nossas mos tocam sequncias de notas apenas porque assim que esto grafadas na
partitura! [] No prossiga antes de ouvir e preparar com seu ouvido interno o que voc deve
tocar de fato56.
Nas descries feitas por Kurtg de suas intenes ao compor determinadas peas dos
Jogos, as razes e a importncia dos gestos ficam extremamente evidentes. Nas duas primeiras
peas intituladas Briga57, o autor declara que ambas tratam da mesma ideia. Mas na segunda,
trata-se de uma pantomima58: no h som, o trabalho totalmente gestual. Devem ser
trabalhados os gestos para o crescendo, para o accelerando, e para a expresso de disputa e
querela contida no ttulo hngaro. Na pea Golpes59, Kurtg explica que a disposio do
material musical tambm muito simples e banal. Temos aqui pausas arbitrariamente
dispostas, e notas cuja ordem de aparecimento variada no decorrer da pea. No entanto, o
objetivo musical relacionar tais eventos com a sensao de ser golpeado, outra aluso a um
gesto sensorial e emocional.
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56 KURTG apud SZERVNSKY, Op.cit., p. 178: It is the greatest sin if our hands play the notes one after the other only because this is thow it is written down in the score! (...) Stop, dont continue until you have heard and prepared in your inner ear what you are going to play before you actually play it. 57 Peas 19A (1) e 19A (2) do primeiro volume dos Jogos. 58 Definio de pantomina: S.f. 1. Arte ou ato de expresso por meio de gestos; mmica. 2. Teat. Pea de qualquer gnero, em que o(s) ator(es) se manifesta(m) simplesmente por gestos, expresses corporais ou fisionmicas, prescindindo da palavra e da msica, que pode ser, tambm, sugerida por meio de movimentos; mmica. (...).In: FERREIRA, Aurlio Buarque de Holanda (ed.) Novo Dicionrio da Lngua Portuguesa. Rio: Nova fronteira, (n.d.), p. 1035. 59 Pea 20B do primeiro volume dos Jogos.
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Exemplo 2 Gyrgy Kurtg Briga [19 A(1)]
Exemplo 3 - Gyrgy Kurtg Pantomima [Briga (2)] [19A(2)]
!
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!
Exemplo 4 Gyrgy Kurtg Golpes (I, 20B)
32
Neste captulo enfocamos como ocorreu o nascimento do projeto de composio da
coleo dos Jogos e sua estreita relao com questes biogrficas do compositor, tanto em
termos prticos (como, por exemplo, o fato da encomenda das peas por parte de Tekes),
como tambm em termos mais estticos ou conceituais (como surgiram algumas das
principais ideias que o compositor desenvolveu na coleo). Alm disso, tratamos dos
objetivos e da organizao dos volumes, bem como das principais caractersticas gerais das
peas.
A partir da sistematizao dessas informaes sobre a obra, sintetizamos a seguir as
principais questes que queremos enfocar em nossa so pesquisa, a saber:
a) a proposta fundamental da ludicidade da relao com o instrumento;
b) a valorizao e a primazia do corpo para a interpretao;
c) o estmulo para a criao co-criadora (atravs da notao no determinada e de
vrias outras sugestes de execuo e experimentao);
d) a importncia do gesto e a variedade de ideias musicais e materiais trabalhados, os
quais esto permanentemente se relacionando jocosamente com nossos hbitos
de escuta tradicionais, os quais por sua vez so redimensionados atravs da recusa
dos tratamentos estereotipados dos mtodos tradicionais de piano60;
e) a vinculao entre o enfoque do trabalho gestual com a escuta61 por meio da
articulao da percepo e compreenso mental com os meios fsicos de
reproduo sonora dessas peas, contextualizada na prtica ldica, ou, em outras
palavras, como as associaes entre as estruturas sonoras e os gestos que as
produzem se processam nas peas dos Jogos.
No prximo captulo examinaremos mais detalhadamente os conceitos de corpo e
gesto e sua importncia para nossa proposta interpretativa dos Jogos de Kurtg.
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60 Cf. WISCHMANN, C., Op. Cit., p. 60. 61 Cf. SZERVNSKY, Valria. Op. Cit.
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2. CAPTULO 2 - O JOGO, O CORPO E O GESTO
2.1. PREMBULO
Neste captulo pretendemos discutir conceitos que se mostraram fundamentais em
nossa perspectiva interpretativa dos Jogos de Kurtg. So eles: os conceitos de jogo, corpo e
gesto. No pretendemos aqui realizar um exaustivo e completo exame dos significados que
esses termos assumiram diacronicamente, nem apenas contrapor ou defender sistemas
filosficos.
A partir de nossa experincia como intrprete dos Jogos de Kurtg e do trabalho de
reviso de literatura sobre este compositor para esta pesquisa, revelou-se essencial buscar uma
fundamentao conceitual sobre os temas citados acima, que nos permitisse uma maior
compreenso das razes culturais que condicionam sua viso de mundo e, consequentemente,
tambm sua produo artstica. Alm da considervel recorrncia desses temas nos estudos
sobre a sua obra, a constatao da pluralidade de acepes no emprego dos mesmos nos
parece justificar a necessidade deste captulo.
Na literatura sobre Kurtg no h declaraes expressas do compositor a respeito de
suas possveis inclinaes ou preferncias filosficas. Curiosamente encontramos uma
modesta declarao sua, na qual ele afirma no ter o hbito de pensar, exceto quando ensina
ou quando consegue fazer fluir um trabalho de composio62. No entanto, so frequentes os
testemunhos a respeito de sua erudio (cf. nota de rodap n 24) e sabemos tambm como
suas predilees literrias ficcionais (Hlderlin, Kafka, Beckett, Dostoievsky, por exemplo)
so utilizadas como fontes de inspirao ou mesmo material concreto para sua composio.
Partindo do pressuposto que os valores do Zeigeist atuam na produo de um autor63,
consideramos relevante, portanto, examinar os temas referidos acima, de modo a esclarecer
seu alcance e pertinncia dentro de nossas reflexes sobre as obras de Kurtg.
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62 KURTG apud VARGA, Blint Andrs (ed.). Gyrgy Kurtg: Three interviews and Ligeti homages. Rochester: University of Rochester Press, 2009, p. 33: No consigo abarcar nada em sua totalidade mesmo que esteja numa estado receptivo. () No tenho o hbito de pensar. () Nunca penso se tenho tempo livre. Vou estudar ou fazer algo, mas no consigo apenas pensar. Mas consigo faz-lo quando ensino ou quando a composio corre realmente bem. 63 Cf. REZENDE, Marisa. Pensando a composio. In: FERRAZ, Slvio. (org.) Notas. Atos. Gestos. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2007.
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2.2. O JOGO
Acreditamos que, com a escolha do ttulo Jogos para sua coleo de peas para piano,
Kurtg confirma e reflete a importncia do elemento da ludicidade na cultura. A seguir,
traaremos um curto panorama diacrnico do conceito de jogo64 .
Uma das mais antigas referncias ao conceito de jogo na filosofia ocidental est em
Aristteles, o qual, segundo Abbagnano65, permaneceu basicamente inalterado at as
reflexes de Kant sobre o tema. Para Aristteles, o jogo se tratava de uma atividade sem
nenhum outro fim alm de si mesma, executada pelo prazer que produz. O jogo era portanto
aproximado da felicidade e da virtude e contraposto ao penoso trabalho, o qual se justificava
apenas pelos resultados ou recompensas que trazia (como a remunerao, por exemplo).
Embora tenha basicamente reproduzido o conceito aristotlico, Kant introduziu
novidades ao relacionar o jogo ao campo esttico e apontar uma funo biolgica do mesmo.
Nesse segundo caso, o jogo teria um papel de preparao, desenvolvimento e conservao das
capacidades vitais, as quais seriam reforadas a partir das energias investidas no processo.
Essas ideias foram muito difundidas no pensamento moderno e formaram as bases da
pedagogia no sculo XIX. Teorias da educao, como a do educador alemo Friedrich
Froebel (1782-1852) fundador dos jardins-de-infncia, destinados a crianas com menos de
8 anos de idade - partiam da ideia da necessidade do ludismo como essncia da pedagogia
infantil. O brincar da criana era comparado ao papel do trabalho para o adulto e tambm
com a funo da criao para Deus. As brincadeiras deveriam, segundo Froebel, ser o
primeiro recurso de aprendizagem, pois correspondiam s primeiras representaes do
mundo.
A concepo aristotlica sofreu revises a partir da constatao de que haveria certa
inadequao na contraposio de jogo e trabalho pois, em condies ideais, o trabalho no
alienado poderia ser entendido como um fim em si mesmo, assumindo parte do carter de
jogo. Disto decorre que, em situaes de trabalho alienado, tpicas das sociedades industriais,
o jogo (num sentido ideal) potencialmente mantm seu carter libertador como atividade
intil e livre, proporcionando uma suspenso da explorao trabalhista. O pensamento
marxista dos anos 197066 refletia tal concepo com seu ideal utpico de uma sociedade
ldica.
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64 Cf. ABBAGNANO, Nicola. Dicionrio de Filosofia. S. Paulo: Martins Fontes, 2007 (5 ed.), p. 677-679. 65 Ibid. 66 Dcada em que Kurtg comps quatro volumes dos Jogos na Hungria, onde tal corrente filosfica era
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Uma caracterstica muito ressaltada que contrasta com o lado espontneo da atividade
ldica a particularidade dos jogos terem restries ou regras que os delimitam. a essa
caracterstica que aludem analogicamente certos filsofos e economistas contemporneos, que
usam o conceito de jogo para discutir processos regidos por regras prprias. Ludwig
Wittgenstein alude a isso quanto trata dos jogos lingusticos e da linguagem matemtica67.
Johan Huizinga (1872-1945) dedicou sua principal obra ao estudo do jogo na cultura:
seu livro Homo Ludens (1938) consiste num profundo exame do papel cultural do jogo.
Segundo o autor, uma das evidncias da tardia utilizao compartilhada de um mesmo
conceito geral de jogo est no fato de no existir um raiz lingustica indo-europeia comum
para o termo, havendo portanto um correlato conceitual dessa dificuldade etimolgica. Cada
idioma encontrou meios para exprimir diferentes acepes de jogo atravs de razes distintas.
No latim, a palavra ludus, derivada de ludere, cobre uma vasta gama de designaes de
funes ldicas. A palavra iluso, por exemplo, tem sua origem etimolgica nessa mesma
raiz: literalmente, colocar em jogo (inlusio, illudere ou inludere). J o sentido de fazer
humor ou piadas, designado em latim por uma palavra diferente: jocus, jocari raiz da
palavra portuguesa jogo.
O ttulo da obra de Huizinga pretende dimensionar a importncia da ludicidade para a
espcie humana. No lugar de homo sapiens (pois no somos to racionais quanto gostaramos)
e de homo faber (pois no temos o privilgio de ser os nicos seres capazes a fabricar coisas),
Huizinga prope o termo homo ludens como o mais apropriado para designar o ser humano
como espcie. Mas apesar disso, o pensador pretendia afastar-se das perspectivas cientficas
da biologia, fisiologia e psicologia - que, por sua vez, como vimos anteriormente, partiram
das ideias kantianas - pois, segundo ele, tais perspectivas representavam uma concepo
redutora do jogo como apenas reflexo de necessidades fsicas ou psicolgicas de extravasar
energias acumuladas, satisfazer instintos imitativos ou preparar para futuras atividades de
etapas mais srias da vida. Outras acepes limitadores, explica Huizinga, reduziam o jogo a
uma mera funo catrtica (como escape para tendncias prejudiciais) ou de preservao de
valores. Em todas essas vises h um elemento comum: todas elas partem do pressuposto de
que o jogo se acha ligado a alguma coisa que no seja o prprio jogo, que nele deve haver
alguma espcie de finalidade biolgica68.
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especialmente relevante. 67 Cf. ABBAGNANO, Op. Cit., p. 679. 68 HUIZINGA, Johan. Homo ludens. S. Paulo: Perspectiva, 2004, 5 ed., p. 4.
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O autor declara que seu principal objetivo era estudar o jogo como fenmeno ou forma
significante na cultura. A sntese das caractersticas formais do jogo, efetuado por Huizinga,
nessa acepo enaltecedora de suas qualidades sgnicas (especialmente como luta por algo ou
representao de algo), mostra-se ainda tributria das concepes aristotlica e kantiana,
enfatizando as propriedades do jogo como atividade livre e sem finalidades materiais,
segundo certas regras e limites espao-temporais. Alm disso, afirma Huizinga, o jogo
capaz de absorver intensamente o jogador e de promover a formao de grupos sociais que se
apartam do resto do mundo por meio dele.
Na abordagem de Huizinga interessa-nos particularmente a ideia da importncia do
jogo no campo esttico69. A relao do jogo com a questo da ordem para Huizinga
tambm o maior ponto de interseco entre o jogo e a esttica, afirmando que exatamente na
tendncia do jogo estruturao ordenada reside seu impulso em direo ao belo. Segundo o
autor, at mesmo as palavras empregadas para designar elementos dos jogos so comuns s
utilizadas nas descries de fenmenos estticos, como por exemplo, tenso, equilbrio,
compensao, contraste, variao, soluo, unio e desunio70.
Huizinga prossegue explicando no haver anttese no jogo entre o esprito ldico
conclamado e a exigncia de seriedade. Para o autor, esta outra caracterstica que aproxima
o jogo das atividades performticas: assim como a criana que joga e brinca com absoluta
seriedade (a qual Huizinga considera sagrada71), mesmo apesar de saber-se em jogo (o
que nos remete questo da iluso in-ludere, que est presente etimologicamente), o mesmo
se verifica na atividade do ator e do instrumentista, por exemplo, que sem perderem
conscincia das naturezas de suas atividades, devem mostrar-se totalmente absorvidos pelo
jogo que elas representam (ao que Huizinga se refere como uma espcie de elevao ou
afastamento do mundo cotidiano)72.
Outro autor que buscamos como referncia para este panorama do jogo na cultura o
filsofo Walter Benjamin (1892-1940), que tratou do jogo, da brincadeira, da infncia e de
questes pedaggicas em diversos textos de sua vasta obra, tais como: Infncia berlinense por
volta de 1900, Brinquedos e jogos, Viso do livro infantil, Princpios verdejantes, entre
outros. !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
69 J apontada anteriormente por Kant, que dividia o jogo em categorias, a saber: J. de azar, que exige um interesse, J. musical, que supe apenas a variao das sensaes, e J. de pensamentos, que o J, propriamente esttico (Crt. do Juzo, 54). Apud ABBAGNANO, Nicola. Dicionrio de Filosofia. S. Paulo: Martins Fontes, 2007 (5 ed.), p. 677. 70 HUIZINGA, Op. Cit., p. 13. 71 Op. Cit., p. 21. 72 Cf. Op. Cit., p. 21-22.
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Ao analisar o jogo, Benjamim enfatiza a noo de que ele jamais pode ser reduzido a
uma atividade circunscrita infncia, sendo antes o produto de todo um ambiente histrico-
cultural mais amplo, aludindo claramente ao seu papel como elemento significante. O
brinquedo e o jogo refletem a sociedade que os cria. A criana no se encontra numa esfera
isolada da sociedade. O jogo testemunha, alis, mais sobre a relao do adulto com a criana
do que o inverso, explica Benjamin, pois o brinquedo (e o jogo, por extenso)
primeiramente imposto criana, a qual em seguida dialeticamente transforma o objeto
segundo suas possibilidades criadoras. O pensador considera que
Meditar com pedantismo sobre a produo de objetos material ilustrado, brinquedos ou livros que devem servir s crianas insensato. Desde o Iluminismo isto uma das mais ranosas especulaes dos pedagogos: (...) que crianas so especialmente inclinadas a buscarem todo local de trabalho onde a atuao sobre as coisas se processa de maneira visvel. (...) Nesses produtos residuais elas reconhecem o rosto que o mundo das coisas volta exatamente para elas, e somente para elas. Neles, esto menos empenhadas em reproduzir as obras dos adultos do que em estabelecer entre os mais diferentes materiais, atravs daquilo que criam em suas brincadeiras, uma relao nova e incoerente, Com isso as crianas formam o seu prprio mundo de coisas, um pequeno mundo inserido no grande. Dever-se-ia ter sempre em vista as normas desse pequeno mundo quando se deseja criar premeditadamente para crianas e no se prefere deixar que a prpria atividade com tudo aquilo que nela requisito e instrumento encontre por si mesma o caminho at elas.73
Benjamin salienta o equvoco c