Husserl Edmund Crise Da Humanidade Europeia

  • Upload
    li-ly

  • View
    217

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

  • 8/9/2019 Husserl Edmund Crise Da Humanidade Europeia

    1/53

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    www.lusosofia.net

    A CRISE DAHUMANIDADE EUROPEIA

    E A FILOSOFIA

    Edmund Husserl

    Traduo e Introduo:Pedro M. S. Alves

  • 8/9/2019 Husserl Edmund Crise Da Humanidade Europeia

    2/53

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    Texto publicado in

    Edmund Husserl, EUROPA: CRISE E RENOVAO.A Crise da Humanidade Europeia e a Filosofia,f Centro de Filosofia / Universitas Olisiponensis,

    Phainomenon / Clssicos de Fenomenologia,Lisboa, 2006, pp. 119-152,

    e aqui publicado pela LUS OSOFIA.NE Tcom a benvola autorizao

    do Tradutor e Director da Coleco,Pedro M. S. Alves, que tambm fez a Introduo

    Edio portuguesa (De acordo com os textos deHusserliana VI e XXVII, Editados por Walter Biemel

    e Thomas Nenon / Hans Rainer Sepp; traduoaprovada pelos ArquivosHusserl de Lovaina)

  • 8/9/2019 Husserl Edmund Crise Da Humanidade Europeia

    3/53

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    Covilh, 2008

    FICHA TCNICA

    Ttulo: A Crise da Humanidade Europeia e a FilosofiaAutor: Edmund HusserlTradutor: Pedro M. S. Alves

    Coleco: Textos Clssicos de FilosofiaDireco da Coleco: Jos M. S. Rosa & Artur MoroDesign da Capa: Antnio Rodrigues TomComposio & Paginao: Jos M. S. RosaUniversidade da Beira InteriorCovilh, 2008

  • 8/9/2019 Husserl Edmund Crise Da Humanidade Europeia

    4/53

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    i

  • 8/9/2019 Husserl Edmund Crise Da Humanidade Europeia

    5/53

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    INTRODUONA TRADUO PORTUGUESA

    Se bem que relativamente tardia, complexa e matizada a refle-xo husserliana sobre a Cultura e, em particular, o significado doOcidente. Ela desenvolveu-se sobretudo nas dcadas de vinte e de

    trinta do sculo XX. Teve, porm, o seu incio por ocasio das vi-cissitudes da Primeira Grande Guerra catastrficas para a Europano seu todo e, para Husserl, tambm dramticas no plano pessoal,com as mortes de seu filho Wolfgang, em 1916, no campo de ba-talha de Verdun, e de Adolf Reinach, seu discpulo, em 1917 ,nas clebres lies sobre Fichte, proferidas em Friburgo, no ano de1917, e repetidas por duas vezes em 1918. Os dois opsculos aquireunidos os artigos para a revista japonesa Kaizo, de 1923-24, ea conferncia de Viena, de 1935 , apesar da distncia temporal demais de uma dcada, so peas essenciais de uma mesma reflexo

    e apresentam uma unidade e complementaridade assinalveis.Neles, duas ideias funcionam como motivos permanentes de re-flexo. Elas contm, mais que um diagnstico acabado, uma iden-tificao dos sintomas a partir dos quais ser possvel compreendero destino da cultura europeia e agir tempestivamente sobre a suasituao presente. So elas as ideias de crise e de renovao. AEuropa est em crise, Algo novo deve suceder tais so as duasafirmaes terminantes que Husserl faz, em unssono com mui-tos outros pensadores contemporneos, no incio da conferncia deViena, de 1935, e no primeiro dos artigos para a revista japonesaKaizo, de 1923.

    Elas so o centro de gravidade de todo o pensamento de Hus-serl nestes dois opsculos. Estas ideias de crise e de renovaoesto, porm, ligadas de uma maneira diametralmente oposta tantoao modo costumeiro de as relacionar como maior parte dos diag-nsticos hodiernos da cultura europeia, muitos deles clebres.

    3

  • 8/9/2019 Husserl Edmund Crise Da Humanidade Europeia

    6/53

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    Destes ltimos, mencionemos apenas dois casos, que esto amontante e a jusante destes opsculos husserlianos que ora se pu-blicam. Primeiro, o de Oswald Spengler, em 1918, com a longaobra intitulada A Decadncia do Ocidente. Esboo de uma Morfo-logia da Histria Mundial, onde um biologismo da cultura, total-mente contrrio ao pensamento de Husserl, anuncia a desagregaoe a morte da cultura ocidental. Uma e outra vez, na conferncia deViena e no primeiro artigo para Kaizo, Husserl alude a esta tese e

    torna distncia relativamente a esta concepo global a respeito dodestino do Ocidente. Por razes essenciais, no h nenhuma zo-ologia dos povos, dir num passo significativo da conferncia deViena.

    De seguida, e num contraste ainda mais vivo, instrutivo men-cionar aquele diagnstico que, em 1936, em plena mar nazista efascista, Heidegger havia de fazer em Roma, sob o ttulo A Europae a Filosofia Alem, uma conferncia que faz um dptico a negrocom a de Husserl em Viena, proferida apenas um ano antes, e onde

    se toma patente que Heidegger no apenas o antpoda filosficode Husserl no quadro das discusses de escola sobre Fenomenolo-gia, como este uma vez confessou, mas o seu completo oposto noque diz respeito s questes mais vastas da Cultura, da Poltica e daCivilizao. Heidegger termina sugestivamente a sua confernciacom um clebre fragmento de Heraclito sobre polemos, a guerraou o combate. E bem significativo que polemos, aquele que, naspalavras de Heraclito, expe a uns como douloi, servos, e a outroscomo eleutheroi, livres, seja, nas palavras de Heidegger, aquele queexpe uns homens como escravos (Knechte e outros como Senho-res Herren). Ora, para Senhor, neste sentido preciso do domniosobre outrem, os Gregos usavam a palavra despotes, e a relaode senhorio e servido , na sua origem, uma relao que se desen-volve na esfera domstica do oikos. Que esta no seja a experinciaoriginria da liberdade para os Gregos, o que o atesta o clebreverso de Menandro: Na Casa [oikos], o nico escravo o Senhor

    4

  • 8/9/2019 Husserl Edmund Crise Da Humanidade Europeia

    7/53

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    [despotes]. A experincia grega da liberdade (da eleutheria e doseu contrrio, a servido, , antes, a experincia da insero doindivduo na vida da polis e do seu surgimento como cidado, naigualdade com os demais. S no mtuo reconhecimento da igualliberdade de todos pode cada um ser efectivamente livre. E esteo terreno, poltico por excelncia, da liberdade dos Gregos, queimplicava, na poca clssica, os direitos polticos muito concretosde, por exemplo, falar e votar na Assembleia, ser arconte ou no-

    mear os magistrados, e outros. E por referncia a ele que se devecompreender a privao de liberdade prpria do escravo. A tra-duo de eleutherios por Herr, ou seja, a submerso da liberdadepoltica na esfera das relaes de domnio e servido, no s umaperverso do que significa liberdade para os Gregos, mesmo paraum pr-clssico como Heraclito, como uma flagrante confissodo que ela estava significando para o Heidegger de 1936. Ela era,como a conferncia o diz logo no incio, o destino do povo ale-mo para um projecto de auto-afirmao, conjugando as ideias dedefesa perante o asitico (certamente o nome moderno para os

    barbaroi de outrora, que inclua, na fraseologia politica alem deento, por junto, a Rssia bolchevista e os judeus europeus) e desuperao do desenraizamento e fragmentao da Europa.

    Coisa completamente diversa tinha Husserl para dizer acercada Filosofia e da supranacionalidade europeia, em 1935. A culturafilosfica a cultura da Razo. Nesse sentido, a Filosofia no eu-ropeia. Pelo contrrio, a Europa que filosfica. E a grandeza daEuropa filosfica, o seu estatuto de arconte da Humanidade, nose confunde com qualquer projecto de domnio protagonizado porum povo, mas com o modo como ela, na finitude das suas formas decultura, o fenmeno da ideia infinita de uma cultura racional quepode, sem limites, tornar-se a cultura de uma Humanidade univer-sal. A supranacionalidade europeia no ser, por isso, um projectode dominao para uso dos europeus, mas a ideia de uma huma-nidade autntica, congregada nas tarefas infinitas de realizao da

    5

  • 8/9/2019 Husserl Edmund Crise Da Humanidade Europeia

    8/53

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    Razo, que jamais podero alcanar uma forma final e definitiva,apta para uma repetio regular ou para uma imitao sem critrio.E justamente neste contexto que a ideia de strenge Wissenschaft,Cincia Estrita, relevada por Husserl como o lugar de realizaode uma cultura autntica, articulada nos planos da vida cognitiva,tica e social.

    Neste contexto, no tem qualquer sentido a acusao, muito

    disseminada, de um eurocentrismo de Husserl. Antes de o afir-mar, seria, de facto, importante esclarecer o que a Europa verdadei-ramente , para Husserl, e de que ela a fenomenalizao. Nestaperspectiva, compreende-se que o modo como, nestes opsculos,as ideias de crise e de renovao aparecem conjugadas choquetambm, como dissemos, com forma costumeira de as pensar.No se trata, para Husserl, da verificao, no plano factual, de umaqualquer crise da Europa que impusesse uma inovao na sua cul-tura ou, mais fundo ainda, um novo comeo diante da suposta fa-lncia do caminho at ento percorrido. No se trata, pois, com

    o tema da crise, da verificao de um fracasso da cultura da Ra-zo. Pelo contrrio, trata-se de renovao, no de inovao. E arenovao no resposta falncia de um projecto. Ela consiste,antes, no regresso ao sentido original da cultura europeia e no cum-primento da exigncia de constante renovao que lhe nsita, ouseja, de constante reactualizao do seu ideal de vida. Em suma,a crise detectada no culminao de uma trajectria da culturaeuropeia que se revelaria, por fim, invivel, mas um abandono derumo; e a renovao exigida no , por isso, reinveno, mas re-gresso e repristinao. Husserl aponta com clareza o ponto em quea crise se originou: trata-se de um transvio da racionalidade, deuma sua interpretao demasiado estreita, sob o padro das cin-cias matemticas da Natureza, com as inevitveis consequnciasdo naturalismo e do objectivismo na compreenso da essncia dasubjectividade. Esta limitao da forma de uma cultura racionalest apelando, do ponto de vista de Husserl, no para um abandono

    6

  • 8/9/2019 Husserl Edmund Crise Da Humanidade Europeia

    9/53

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    da matriz racional de uma cultura autntica, mas para um super-racionalismo e para um herosmo da Razo, que possa resta-belecer as conexes perdidas entre racionalidade e vida e vencer,assim, essa situao crtica actual de desespero perante o silncioda Razo no que respeita aos problemas mais fundos da subjecti-vidade e da vida humana. Dar a forma de uma cultura racional vida tica individual e comunitria, surpreender a renovao comoexigncia basilar da humanidade autntica, que a pe na rota de

    uma progresso ilimitada em direco a um plo que reside noinfinito, fazer tambm para o eidos Homem o que as cincias ma-temticas fizeram j para a Natureza, segundo a forma peculiar daracionalidade prtica, imperativa e no apenas assertiva eis o quese impe para a ultrapassagem da crise das cincias, crise queno resulta de um falhano da racionalidade cientfica, mas do seuestreitamento e de uma sua compreenso unilateral, metodologica-mente moldada sobre o eidos Natureza.

    A srie de cinco artigos sobre renovao foi motivada por umconvite da revista japonesa Kaizo, feito atravs do seu represen-tante T. Akita, em 8 de Agosto de 1922. O convite endereadoHusserl seguiu-se aos convites feitos a Bertrand Russell e Hein-rich Rickert, e foi certamente motivado pelo facto de o pensamentode Husserl conhecer, na altura, grande divulgao entre os crcu-los filosficos japoneses, suscitando mesmo a visita frequente deestudantes e docentes a Friburgo, onde assistiam s suas lies eseminrios.

    No Outono e Inverno de 1922/23, Husserl entregou-se pre-parao da sua contribuio. O nome da revista, Kaizo, que sig-nifica precisamente renovao, deu-lhe oportunidade de recuperar,de uma forma sistemtica uma multiplicidade de reflexes sobre atica e a teoria da cultura que haviam sido despoletadas pelos acon-tecimentos traumticos da Primeira Grande Guerra, colocando, no-meadamente, a problemtica tica sobre um novo enfoque relati-vamente s lies de tica de 1908/10. O projecto desde cedo se

    7

  • 8/9/2019 Husserl Edmund Crise Da Humanidade Europeia

    10/53

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    desdobrou numa srie de artigos. A 14 de Dezembro de 1922, Hus-serl comunica a Roman Ingarden que escreve nesse momento qua-tro artigos sobre problemas tico-sociais (renovao) para uma re-vista japonesa. Os trs primeiros ficaram concludos em Janeirode 1923, cm verso dactilografada. E nessa data que Husserl osenvia para o editor. O primeiro aparecer no mesmo ano em ediobilingue. Os segundo e terceiro artigos surgiro em 1924, apenasna traduo japonesa. Para todos eles, desconhece-se a identidade

    do tradutor.Por fora de discordncias entretanto surgidas entre Husserl e o

    editor, os dois artigos remanescentes da srie prevista por Husserlnunca chegaro a aparecer. Deles, existe apenas a verso manus-crita, sem clara indicao da ordem por que deveriam ser publica-dos, e o artigo que, na presente edio, surge em ltimo lugar noest sequer terminado.

    A conferncia de Viena sobre A Crise da Humanidade Euro-peia e a Filosofia tem tambm uma gnese ocasional, apesar da

    extraordinria eficcia que o tema da crise das cincias ter na der-radeira fase da actividade de Husserl. Em Maro de 1935, o Kultur-bund vienense convida Husserl para proferir uma conferncia. Oconvite aceite, em pleno trabalho de preparao da contribuiopara o Congresso de Praga, promovido pelo Cercle Philosophiquede Prague pour les Recherches sur 1Entendement Humain. A 5de Maio, Husserl desloca-se a Viena, passando por Munique. Nodia 7, pelas 20 horas, a conferncia dada na sala de confernciasdo sterreichisches Museum. Mais uma vez a Roman Ingarden,Husserl dir que venceu a fadiga e que falou com um sucessoinesperado. Por fora dessa recepo, a conferncia ser repetida

    a 10 de Maio.A 19 de Junho, Husserl confidencia a Dorion Caims que tra-

    balha na conferncia dada em Viena, melhorando-a do ponto devista literrio, aprofundando-a e fundamentando-a para leitoresalemes. O resultado dessa reelaborao permaneceu, porm, in-

    8

  • 8/9/2019 Husserl Edmund Crise Da Humanidade Europeia

    11/53

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    dito. Desse cadinho havia de sair o que seria a derradeira, e paramuitos decisiva, obra de Husserl, o seu verdadeiro testamento filo-sfico A Crise das Cincias Europeias e a Fenomenologia Trans-cendental, aparecida em 1936.

    ***

    A presente edio segue o texto publicado na coleco Husser-liana. Assim, para os cinco artigos sobre Renovao, a traduotem por base o volume XXVII, intitulado Aufttze und Vortrge(1922-1937), editado por Thomas Nennon e Hans Rainer Sepp,e publicado em Dordrecht pela Kluwer Academic Publishers, em1989. Os artigos traduzidos ocupam, nessa edio, as pginas 3a 94, sob o ttulo geral Fnf Aufstze ber Erneuerung. A tradu-o da Conferncia de Viena baseia-se no volume VI de Husser-liana, intitulado Die Krisis der europischen Wissenschaften unddie transzendentale Phnomenologie, editado por Walter Biemel epublicado em Haia por Martinus Nijhoff, em 1962. A confernciafigura, nessa edio, como um texto complementar, sob o ttulo DieKrisis des europischen Menschentums und die Philosophie, entreas pginas 314 e 348.

    A traduo que ora se apresenta resultou da colaborao entrePedro M. S. Alves e Carlos Aurlio Morujo. Da responsabilidadede Pedro M. S. Alves a traduo dos quatro primeiros artigossobre Renovao e da Conferncia de Viena. Carlos A. Morujotraduziu o quinto artigo sobre Renovao.

    Nesta edio portuguesa, mantm-se entre < > e a negrito aspginas da edio da Husserliana. As palavras que aparecem en-tre < > simples, sem negrito, so inseres dos editores da Husser-liana, motivadas por faltas de partculas de ligao (principalmenteconjunes) ou por ausncia de ttulos em algumas subdivises do

    9

  • 8/9/2019 Husserl Edmund Crise Da Humanidade Europeia

    12/53

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    texto, lacunas que foi necessrio colmatar. As notas dos tradutoresesto assinaladas pela sigla [Nota do Tradutor]. As anotaes doseditores daHusser1iana esto assinaladas pela sigla [Nota da Hua].As notas assinaladas por um asterisco, *, so do prprio Husserl.Completa esta edio portuguesa um Glossrio Alemo-Portugus,onde as principais opes terminolgicas so expressamente indi-cadas.

    Por fim, seja dito que o ttulo deste volume, Europa: Crise eRenovao, da responsabilidade do director desta coleco deObras de Edmund Husserl.

    Pedro M S. Alves

    10

  • 8/9/2019 Husserl Edmund Crise Da Humanidade Europeia

    13/53

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    A Crise da Humanidade Europeiae a Filosofia

    Edmund Husserl

    I

    Quero arriscar, nesta conferncia, a tentativa de suscitar um novointeresse pelo tema, tantas vezes tratado, da crise europeia, desen-volvendo a ideia histrico-filosfica (ou o sentido teleolgico) dahumanidade europeia. Ao mostrar a funo essencial que tm aexercer, neste sentido, a Filosofia e suas ramificaes, ou seja, asnossas cincias, a crise europeia receber tambm uma nova luz.

    Comecemos com o que mais bem conhecido, com a dife-rena entre a Medicina cientfico-natural e a chamada medicinanaturalista. Enquanto esta ltima surge, na vida comum do povo,a partir da empina e da tradio ingnuas, a Medicina cientfico-

    natural surge do aproveitamento de inteleces das cincias pura-mente tericas, das cincias da corporalidade humana, desde logoa Anatomia e a Fisiologia. Todavia, estas repousam de novo, elasprprias, nas cincias fundamentais que explicam em geral a natu-reza, a Fsica e a Qumica.

    11

  • 8/9/2019 Husserl Edmund Crise Da Humanidade Europeia

    14/53

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    12 Edmund Husserl

    Voltemos agora os nossos olhos da corporalidade para a espi-ritualidade humana, para o tema das chamadas Cincias do Esp-rito. Nelas, o interesse terico vai exclusivamente para os homensenquanto pessoas e para a sua vida e realizaes pessoais, bemcomo, correlativamente, para as figuras dessas realizaes. Vidapessoal significa viver num horizonte comunitrio, enquanto eu ens comunalizados. Certamente em comunidades de formas di-versas, simples ou estratificadas, tais como a comunidade

    familiar, nacional ou supranacional. A palavra vida no tem aquium sentido fisiolgico, ela significa vida activa em vista de fins, re-alizadora de formaes espirituais no sentido mais lato, vida cri-adora de cultura na unidade de uma historicidade. Tudo isto temadas diversas cincias do esprito. Manifestamente, h tambm paraas comunidades, para os povos e para os estados, uma diferena en-tre florescimento vigoroso e definhamento, por conseguinte, umadiferena entre sade e doena, como tambm poderamos dizer.Assim, no estamos longe da pergunta: como se explica que, aeste respeito, no se tenha chegado nunca Medicina cientfica, a

    uma medicina das naes e das comunidades supranacionais? Asnaes europeias esto doentes, a prpria Europa, diz-se, est emcrise. No falta aqui, de todo, qualquer coisa como mezinhas na-turais. Estamos a ficar, decididamente, submergidos por uma marde propostas de reforma ingnuas e exaltadas. Mas por que razoas Cincias do Esprito, to ricamente desenvolvidas, no prestamaqui o servio que as Cincias da Natureza cumprem na sua esferade um modo excelente?

    Os que esto familiarizados com o esprito das cincias mo-dernas ripostaro de pronto. A grandeza das Cincias da Natureza

    consiste em que elas no se contentam com uma empina intuitiva,porque, para elas, toda a descrio da natureza quer ser apenas umapassagem metdica para a explicao exacta, em ltima instnciafsico-qumica. Eles opinam: cincias simplesmente descritivasamarram-nos s finitudes do mundo circundante terreno. A cin-

    www.lusosofia.net

  • 8/9/2019 Husserl Edmund Crise Da Humanidade Europeia

    15/53

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    A Crise da Humanidade Europeia e a Filosofia 13

    cia matematicamente exacta da natureza, porm, abarca, com o seumtodo, as infinitudes nas suas efectividades e possibilidades reais.Ela compreende o intuitivamente dado como uma simples apariosubjectivamente relativa e ensina a investigar a prpria naturezasupra-subjectiva (a Natureza objectiva) numa aproximao sis-temtica segundo os seus elementos e leis incondicionadamentegerais. Em unidade com isso, ensina ela a explicar todas as concre-es intuitivamente pr-dadas, sejam homens, animais cor-

    pos celestes, a partir daquilo que ultimamente , a saber, a partirdas aparies fcticas de cada vez dadas, ensina a induzir possi-bilidades e probabilidades futuras, que ultrapassam em extensoe preciso toda a empina intuitivamente limitada. O resultado dodesenvolvimento consequente das cincias exactas na Mo-dernidade foi uma verdadeira revoluo no domnio tcnico sobrea natureza.

    Totalmente diferente , infelizmente (no sentido da concepoque j se nos tornou completamente compreensvel), a situao nasCincias do Esprito, e certamente por razes internas. A espiri-

    tualidade humana est, decerto, fundada na physis humana, toda equalquer vida anmica humana individual est fundada na corpo-ralidade e, por conseguinte, tambm toda e qualquer comunidadeest fundada nos corpos dos indivduos humanos que so mem-bros dessa comunidade. Se, portanto, deve ser possvel uma ex-plicao realmente exacta dos fenmenos cientfico-espirituais e,assim, uma prxis cientfica de alcance semelhante ao da esfera danatureza, os investigadores das Cincias do Esprito no devem,ento, considerar o esprito simplesmente enquanto esprito, masretornar base corprea subjacente e conduzir as explicaes por

    intermdio da Fsica e da Qumica exactas. Isto fracassa, porm(e tal no poder mudar no futuro previsvel), perante as complica-es da necessria investigao psicofsica exacta, tanto a respeitodo homem individual como, por maioria de razo, a respeito dasgrandes comunidades histricas. Se o mundo fosse, por assim di-

    www.lusosofia.net

  • 8/9/2019 Husserl Edmund Crise Da Humanidade Europeia

    16/53

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    14 Edmund Husserl

    zer, construdo a partir de duas esferas de realidade com direitosiguais, a Natureza e o Esprito, nenhuma delas privilegiada met-dica ou substantivamente em relao outra, ento a situao seriadiferente. Todavia, apenas a natureza pode ser tratada por si comoum mundo fechado, s a Cincia Natural pode, com uma coernciasem quebras, abstrair de tudo o que espiritual e investigar a natu-reza puramente como natureza. Por outro lado, uma tal abstracoconsequente da natureza por parte do investigador das cincias do

    esprito, interessado apenas no puramente espiritual, no conduz,vice-versa, a um mundo em si mesmo fechado, a um mundo deinterconexo puramente espiritual que pudesse ser o tema de umaCincia do Esprito, universal e pura, enquanto paralelo da cinciapura da natureza. Porque a espiritualidade animal, a das almasdos homens e das bestas, a que toda outra espiritualidade reconduz,esta causalmente fundada, de um modo singular, na corporalidade.Assim se compreende que o investigador do esprito, interessadono puramente espiritual enquanto tal, no v alm da descrio,no v alm de uma histria do esprito e permanea, portanto,

    amarrado s finitudes intuitivas. Todo e qualquer exemplo o mos-tra. Um historiador no pode, por exemplo, tratar a histria daAntiguidade Grega sem tomar em linha de conta a geogra-fia fsica da Grcia Antiga, no pode tratar a sua arquitectura semtomar em linha de conta a corporalidade dos edifcios, etc., etc.Isto parece plenamente elucidativo.

    Como ficaramos, porm, se o inteiro modo de pensar que semanifesta nesta exposio repousasse sobre preconceitos funestose se ele prprio fosse, nas suas consequncias, corresponsvel peladoena europeia? De facto, tal a minha convico; e espero tor-

    nar tambm compreensvel que aqui reside, igualmente, uma fonteessencial para o modo bvio como o cientista moderno nem sequerconsidera a possibilidade de fundamentao de uma cincia geraldo esprito, em si mesma fechada, e, por isso mesmo, sem rodeiosa nega.

    www.lusosofia.net

  • 8/9/2019 Husserl Edmund Crise Da Humanidade Europeia

    17/53

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    A Crise da Humanidade Europeia e a Filosofia 15

    E do interesse do nosso problema-Europa ir um pouco maisalm e desarreigar a argumentao acima desenvolvida, primeiravista to esclarecida. O historiador, o investigador do esprito eda cultura de qualquer esfera, tem certamente tambm a naturezafsica constantemente entre os seus fenmenos a natureza da Gr-cia Antiga, no nosso exemplo. Contudo, esta natureza no a na-tureza no sentido das cincias da natureza, mas antes o que paraos Gregos valia como natureza, o que tinham diante dos olhos no

    seu mundo circundante enquanto efectividade natural. Dito de ummodo mais perfeito: o mundo circundante histrico dos Gregosno o mundo objectivo no nosso sentido, mas antes a sua re-presentao do mundo, ou seja, a sua prpria validao subjectivacom todas as efectividades que a valem, incluindo, por exemplo,os deuses, os demnios, etc.

    Mundo circundante um conceito que tem o seu lugar exclu-sivamente na esfera espiritual. Que ns vivamos no nosso mundocircundante respectivo, que vale para todos os nossos cuidados eesforos, tal designa um facto que se passa puramente na esfera

    do esprito. O nosso mundo circundante uma formao espiri-tual em ns e na nossa vida histrica. Para quem toma como seutema o esprito enquanto esprito, no h aqui, por conseguinte,qualquer razo para exigir outra explicao para ele que no sejauma explicao puramente espiritual. E isto vlido em geral: um contra-senso olhar a natureza circum-mundana como em simesma alheia ao esprito e, em consequncia, alicerar as Cinciasdo Esprito nas Cincias da Natureza de modo a, pretensamente,tom-las exactas.

    Manifestamente, foi completamente esquecido que a Cincia

    da Natureza (tal como toda e qualquer cincia em geral) um t-tulo para realizaes espirituais , a saber, as dos cientistasnaturais colaborantes; enquanto tal, elas pertencem, tal como todosos eventos espirituais, ao mbito daquilo que deve ser explicadopelas Cincias do Esprito. No ser, ento, um contra-senso e um

    www.lusosofia.net

  • 8/9/2019 Husserl Edmund Crise Da Humanidade Europeia

    18/53

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    16 Edmund Husserl

    crculo querer explicar o acontecimento histrico Cincia da Na-tureza cientfico-naturalmente, explic-lo por importao para aCincia da Natureza e suas leis naturais, que, enquanto realizaoespiritual, pertencem elas prprias ao problema a resolver?

    Obcecados pelo naturalismo (por mais que o combatam ver-balmente), os cientistas do esprito tm descurado, total e comple-tamente, at o prprio levantamento do problema de uma Cinciado Esprito, universal e pura, e o questionamento do esprito pura-

    mente enquanto esprito segundo uma doutrina eidtica, doutrinaque indagasse o incondicionadamente universal da espiritualidade,de acordo com os seus elementos e leis, com a finalidade de obter,por a, explicaes cientficas num sentido absolutamente conclu-sivo.

    As reflexes precedentes sobre a Filosofia do Esprito fornecem-nos a atitude correcta para captar e tratar o nosso tema da Eu-ropa espiritual como um problema puro das Cincias do Esprito,desde logo, por conseguinte, histrico-espiritualmente. Tal comofoi dito desde logo nas palavras introdutrias, por este caminho

    deve tornar-se visvel uma assinalvel teleologia, inata, por assimdizer, apenas nossa Europa, e certamente como intimamente co-nectada com a erupo ou irrupo da Filosofia e suas ramificaes ou seja, as cincias no esprito dos Gregos antigos. Pressenti-mos j que se tratar, com isso, de uma clarificao das razesmais fundas da origem do funesto naturalismo, ou tambm, coisaque se mostrar como equivalente, do dualismo na interpretaodo mundo que caracterstico da Modernidade. Finalmente, de-ver, por esse meio, vir luz do dia o sentido autntico da crise dahumanidade europeia.

    Levantamos a questo: como se caracteriza a forma espiritualda Europa? Por conseguinte, no a Europa compreendida geogr-fica ou cartograficamente, como se, com isso, fosse delimitado,enquanto humanidade europeia, o crculo dos homens que aqui vi-vem territorialmente em conjunto. No sentido espiritual, mani-

    www.lusosofia.net

  • 8/9/2019 Husserl Edmund Crise Da Humanidade Europeia

    19/53

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    A Crise da Humanidade Europeia e a Filosofia 17

    festo que os domnios ingleses, os Estados Unidos, etc., pertencem Europa, no, porm, os esquims ou os indianos das exposiesnas feiras anuais, ou ainda os ciganos, que perpetuamentecircunvagueiam pela Europa. Sob o ttulo de Europa, trata-se aqui,manifestamente, da unidade de uma vida, de um agir, de um criarespirituais: com todas as finalidades, interesses, cuidados e esfor-os, com as formaes finalisticamente produzidas, as instituies,as organizaes. A agem os homens individuais em mltiplas so-

    ciedades de diversos nveis, em famlias, tribos, naes, todas n-tima e espiritualmente ligadas e, como disse, na unidade de umaforma espiritual. s pessoas, s associaes de pessoas e a todasas suas realizaes culturais deve ser outorgado, com isso, um ca-rcter que universalmente as vincula.

    A forma espiritual da Europa que isso? E mostrar a ideiafilosfica imanente histria da Europa (da Europa espiritual) ou,o que o mesmo, a sua teleologia imanente, que se d a conhe-cer, do ponto de vista da humanidade universal enquanto tal, comorompimento e comeo do desenvolvimento de uma nova idade do

    homem, a poca da humanidade que doravante no mais pode eno mais quer viver a no ser na livre formao da sua existncia,da sua vida histrica, a partir de ideias da razo, a partir de tare-fas infinitas. Cada forma espiritual est, por essncia, num espaohistrico universal ou numa unidade particular de tempo histricosegundo a coexistncia e a sucesso ela tem a sua histria. Porconseguinte, se seguirmos as conexes histricas e, como neces-srio, partirmos de ns prprios e da nossa nao, ento a conti-nuidade histrica conduz-nos sempre mais alm, da nossa naoat naes vizinhas e, assim, de naes a naes, de um tempo a

    outro tempo ainda. Por fim, na Antiguidade, somos conduzidosdos Romanos aos Gregos, aos Egpcios, Persas, e assim sucessiva-mente; no h aqui, manifestamente, qualquer termo final. Vamosdar aos tempos primitivos, e no podemos evitar considerar a obra,significativa e rica em ideias, de Menghin sobre a Histria Uni-

    www.lusosofia.net

  • 8/9/2019 Husserl Edmund Crise Da Humanidade Europeia

    20/53

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    18 Edmund Husserl

    versal da Idade da Pedra.1Com este procedimento, a humanidadeaparece como uma nica vida de homens e povos, ligada apenaspor relaes espirituais, com uma profuso de tipos de humani-dade e de cultura que, porm, correm fluentemente uns para osoutros. E como um mar, no qual os homens e os povos so comoondas que fugazmente se formam, se alteram e de novo desapa-recem, umas encrespando-se mais rica e complexamente, outras,de maneira mais primitiva. No entanto, por uma conside-

    rao mais consequente e voltada para o interior, notamos traosde unio e diferenas novas e peculiares. Por mais que as naeseuropeias possam estar inimizadas, elas tm, porm, um especialparentesco interno, no plano do esprito, que a todas atravessa eque sobreleva as diferenas nacionais. E qualquer coisa como umairmandade, que nos d, nestes crculos, a conscincia de um soloptrio. Isto prontamente sobressai assim que queiramos compre-ender, por exemplo, a historicidade indiana, com os seus mltiplospovos e formaes culturais. Neste crculo, h de novo unidade deum parentesco familiar, mas que estranho para ns. Por outro

    lado, os Indianos vivem-nos como estranhos, e s entre si se vi-vem como confrades. No entanto, esta diferena de essncia entreser compatriota e estrangeiro, uma categoria fundamental de toda ahistoricidade, relativizando-se em mltiplos nveis, no pode bas-tar. A humanidade histrica no se articula de um modo sempreigual de acordo com esta categoria. Sentimos isso precisamente nanossa Europa. H nela qualquer coisa singular, que todos os outrosgrupos humanos sentem tambm em ns como algo que, abstraindode todas as consideraes de utilidade, se toma para eles um mo-tivo para sempre se europeizarem, apesar da vontade inquebrvel

    de autopreservao espiritual, enquanto ns, se bem nos compre-endermos a ns prprios, jamais nos quereremos, por exemplo, in-dianizar. Quero com isto dizer que sentimos (e, apesar de toda a

    1 Oswald Menghin Weltgeschichre der Steinzeit. Wien: A. Schroll Co.,1931. [Nota do Tradutor]

    www.lusosofia.net

  • 8/9/2019 Husserl Edmund Crise Da Humanidade Europeia

    21/53

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    A Crise da Humanidade Europeia e a Filosofia 19

    falta de clareza, este sentimento tem plenamente a sua razo de ser)que, na nossa humanidade europeia, est inata uma entelquia querege, de uma ponta a outra, a devenincia das formas europeiase lhes confere o sentido de um desenvolvimento para uma formade vida e de ser ideais, como para um plo eterno. No como sese tratasse, aqui, de um dos bem conhecidos esforos em direcoa fins, que do o seu carcter ao domnio fsico dos seres orgni-cos; por conseguinte, de qualquer coisa como o desenvolvimento

    biolgico, em graus sucessivos, de uma forma embrionria at amaturidade, com o sequente envelhecimento e morte. Por razesessenciais, no h nenhuma zoologia dos povos. Eles so unidadesespirituais; no tm, e particularmente no o tem a supranacionali-dade Europa, nenhuma forma madura, j alcanada ou a alcanar,enquanto forma para uma repetio regular. O telos espiritual dahumanidade europeia, no qual esto encerrados os tel par-ticulares das naes isoladas e dos homens individuais, reside noinfinito, uma ideia infinita, para a qual, por assim dizer, tende,de modo oculto, o inteiro devir espiritual. Assim que, no curso

    do desenvolvimento, ele se torna consciente enquanto telos, torna-se tambm, de modo necessrio, algo prtico, enquanto fim paraa vontade, e com isso se introduz um novo e mais elevado nvelde desenvolvimento, que est sob a direco de normas, de ideiasnormativas.

    Tudo isto, porm, no pretende ser uma interpretao especu-lativa da nossa historicidade, mas antes a expresso de um pres-sentimento vivido, que se eleva na reflexo sem preconceitos. Ested-nos, contudo, uma guia intencional para discernir, na histria daEuropa, conexes altamente significativas em cuja prossecuo o

    pressentimento se torna para ns certeza comprovada. Pressenti-mento , segundo o modo do sentimento, o indicador de caminhosem todas as descobertas.

    Passemos ao desenvolvimento. A Europa espiritual tem umlugar de nascimento. No quero dizer com isto um lugar de nas-

    www.lusosofia.net

  • 8/9/2019 Husserl Edmund Crise Da Humanidade Europeia

    22/53

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    20 Edmund Husserl

    cimento geogrfico num territrio, se bem que tambm isso su-ceda, mas antes um lugar de nascimento espiritual numa nao,ou seja, nos homens individuais e grupos humanos dessa nao.Essa nao a Grcia Antiga dos sculos VII e VI a.C. Nela surgeuma atitude de tipo novo dos indivduos para com o mundo circun-dante. Como sua consequncia, verifica-se a irrupo de um tipode formaes espirituais completamente novas, crescendo rapida-mente para uma forma cultural sistematicamente fechada sobre si;

    os Gregos denominaram-na Filosofia. Correctamente traduzida, nosentido originrio, esta palavra no quer dizer outra coisa seno Ci-ncia Universal, cincia do todo mundano, da unidade total de tudoaquilo que . Bem depressa comea o interesse pelo todo e, comisso, a pergunta pelo devir omni-englobante, e pelo ser no devir, co-mea a particularizar-se segundo as formas e regies gerais do ser assim se ramifica a Filosofia, a Cincia una, numa diversidade decincias particulares.

    Na irrupo da Filosofia neste sentido na qual todas as ci-ncias esto, por conseguinte, includas vejo eu, por mais para-

    doxal que isso possa soar, o protofenmeno da Europa espiritual.Por meio de explanaes mais detalhadas, por mais sucintas quetenham de ser, a aparncia de paradoxo depressa ser afastada.

    Filosofia, Cincia, o ttulo para uma classe especial deformaes culturais. O movimento histrico que tomou a formae o estilo da supranacionalidade europeia avana para uma formanormativa que reside no infinito, mas no para uma que fosse jlegvel na mutao das formas, por meio de uma simples consi-derao morfolgica exterior, O permanente estar dirigido para anorma habita interiormente a vida intencional das pessoas indivi-

    duais e, a partir da, das naes e das suas sociedades particularese, finalmente, do organismo das naes ligadas enquanto Europa;certamente que no habita todas as pessoas, no est plenamentedesenvolvido nas personalidades de nvel superior constitudas poractos intersubjectivos, mas, apesar de tudo, habita-as sob a forma

    www.lusosofia.net

  • 8/9/2019 Husserl Edmund Crise Da Humanidade Europeia

    23/53

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    A Crise da Humanidade Europeia e a Filosofia 21

    de uma marcha necessria do desenvolvimento e propagao deum esprito de normas universalmente vlidas. isto tem ao mesmotempo, porm, o significado de uma progressiva transformao dahumanidade no seu todo, por via da formao de ideias que se tor-nam eficazes em pequenos, pequenssimos crculos. As ideias ouseja, as formaes de sentido, produzidas nas pessoas individuais,com o maravilhoso modo novo de albergar em si infinitudes inten-cionais no so como as coisas reais no espao que, entrando no

    campo da experincia humana, no tm ainda qualquer significadopara os homens enquanto pessoas. Com a primeira concepo deideias, torna-se o homem, gradualmente, um novo homem. O seuser espiritual entra no movimento de uma reformao progressiva.Este movimento desenrola-se, desde o incio, comunicativa mente;no seu prprio crculo de vida, ele desperta um novo estilo de exis-tncia pessoal e, atravs da recompreenso do outro, um correspon-dente novo devir. Nele se difunde, desde logo (e, no seguimento,tambm para l dele), uma humanidade especial que, vivendo na fi-nitude, vive para o plo da infinitude. Precisamente com isso surge

    um novo modo de comunalizao e uma nova forma de comuni-dade duradoura, cuja vida espiritual, comunalizada pelo amor dasideias, pela produo de ideias e a normalizao ideal da vida, trazem si a infinitude como horizonte de futuro: a de uma infinitudede geraes que se renovam a partir do esprito das ideias. Istoconsuma-se, primeiro, no espao espiritual de uma nao, a naogrega, enquanto desenvolvimento da Filosofia e da comunidade fi-losfica. Em unidade com isso, surge nesta nao, desde logo, umesprito de cultura universal, que atrai com o seu sortilgioo todo da humanidade, e assim se produz uma progressiva mutao

    sob a forma de uma nova historicidade.Este esboo grosseiro ganhar plenitude e maior compreensibi-lidade se seguirmos no encalo da origem histrica da humanidadefilosfica e cientfica, esclarecendo, a partir da, o sentido da Eu-

    www.lusosofia.net

  • 8/9/2019 Husserl Edmund Crise Da Humanidade Europeia

    24/53

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    22 Edmund Husserl

    ropa e, com isso, do novo tipo de historicidade que se destaca dahistria universal com esta nova espcie de desenvolvimento.

    Para comear, aclaremos a assinalvel peculiaridade da Filoso-fia, desdobrada em sempre novas cincias especiais. Contrastemo-la com outras formas culturais, j disponveis na humanidade pr-cientfica, contrastemo-la com os ofcios, a cultura do solo, com acultura domstica, etc. Todas elas designam classes de produtosculturais, com os correspondentes mtodos para a produo bem

    sucedida. De resto, elas tm uma existncia transitria no mundocircundante. Por outro lado, as aquisies cientficas, depois de,para elas, terem sido obtidos os mtodos de produo bem suce-dida, tm um modo de ser totalmente diferente, uma totalmentediferente temporalidade. Elas no se desgastam, so imperecveis;a produo repetida no produz algo semelhante, algo de igual-mente utilizvel, no melhor dos casos, ela produz, sim, qualquerque seja o nmero de produes da mesma pessoa e de quaisqueroutras pessoas, identicamente o mesmo, algo idntico segundo oseu sentido e validade. As pessoas ligadas umas s outras na com-

    preenso recproca actual no podem deixar de experienciar o quefoi produzido pelos companheiros respectivos, em actos de produ-o iguais, como identicamente o mesmo que o que elas prpriasproduzem. Por outras palavras: aquilo que o fazer cientfico ob-tm no algo real, mas sim ideal. Mas h. mais ainda: o que assim obtido como vlido, como verdade, serve de material para apossvel produo de idealidades de nvel superior e de sempre ou-tras novas. No interesse terico desenvolvido, tudo o que obtidoconserva de antemo o sentido de uma finalidade simplesmente re-lativa, torna-se ponto de passagem para finalidades sempre novas,

    sempre de um nvel superior, numa infinitude prefigurada comocampo de trabalho universal, como domnio da Cincia. Cinciadesigna, portanto, a ideia de uma infinitude de tarefas, das quais,em cada tempo, uma parte finita est j acabada e conservadacomo uma validade persistente. Esta parte forma, ao mesmo

    www.lusosofia.net

  • 8/9/2019 Husserl Edmund Crise Da Humanidade Europeia

    25/53

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    A Crise da Humanidade Europeia e a Filosofia 23

    tempo, o fundo de premissas para um horizonte infinito de tarefas,enquanto unidade de uma tarefa omni-englobante.

    Todavia, algo importante deve ser aqui notado em jeito de com-plemento. Na Cincia, a idealidade dos produtos do trabalho cien-tfico as verdades no significa a simples repetibilidade sobidentificao do sentido e da comprovao: a ideia de verdade, nosentido da Cincia, aparta-se (e teremos ainda de falar disso) daverdade da vida pr -cientfica Ela quer ser verdade incondicio-

    nada. Reside a uma infinitude que d, a cada verdade e comprova-o fcticas, o carcter de ser apenas relativa, de ser uma simplesaproximao, referida precisamente ao horizonte infinito no quala verdade em si vale, por assim dizer, como ponto infinitamentedistante. Correlativamente, esta infinitude reside tambm, ento,no ser efectivo em sentido cientfico, assim como, de novo, navalidade universal para qualquer um, entendido este qualquerum enquanto sujeito de todas as fundamentaes a realizar; nomais se trata, pois, de falar de qualquer um no sentido finito davida pr-cientfica.

    Depois, desta caracterizao da peculiar idealidade cientfica,com as infinitudes ideais multiplamente implicadas no seu sentido,sobressai, diante do nosso conspecto histrico, um contraste queenunciamos nesta proposio: nenhuma outra forma de cultura nohorizonte histrico antes da Filosofia , num sentido tal, cultura deideias, nenhuma conhece tarefas infinitas, nenhuma conhece taisuniversos de idealidades que, segundo o seu sentido, so porta-dores da infinitude, tanto enquanto totalidades, como segundo assuas individualidades, bem como ainda segundo os seus mtodosde produo.

    A cultura extracientfica, no ainda tocada pela Cincia, tarefae realizao do homem na finitude. O horizonte aberto sem fim, noqual ele vive, no descerrado, os seus fins e o seu agir, o seu modode viver, a sua motivao pessoal, de grupo, nacional, mtica tudo isso se movimenta na circum-mundaneidade da circunspeco

    www.lusosofia.net

  • 8/9/2019 Husserl Edmund Crise Da Humanidade Europeia

    26/53

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    24 Edmund Husserl

    finita. No h a nenhuma tarefa infinita, nenhum adquirido ideal,cuja infinitude seja o prprio campo de trabalho, e, sem dvida, oseja de um modo tal que, para aquele mesmo que trabalha, tenhaconscientemente, como seu modo de ser, o sentido de um campoinfinito de tarefas.

    Todavia, com o surgimento da Filosofia Grega e a suaprimeira formulao, numa idealizao consequente, do novo sen-tido da infinitude, consuma-se, a este respeito, uma transformao

    continuada, que finalmente atrai para a sua esfera todas as ideias dafinitude e, com isso, a inteira cultura espiritual e a humanidade quelhe correlativa. Para ns, Europeus, h ainda, fora da esfera filo-sfico -cientfica variadssimas ideias infinitas (se esta expresso aqui permitida), mas elas tm de agradecer o carcter anlogo deinfinitude (tarefas infinitas, finalidades, comprovaes, verdades,verdadeiros valores, bens autnticos, normas absolutamentevlidas) transformao da humanidade atravs da Filosofia e dassuas idealidades.

    Cultura cientfica sob ideias de infinitude significa, por conse-

    guinte, um revolucionamento da cultura no seu todo, um revolucio-namento do inteiro modo de ser da humanidade enquanto criadorade cultura. Ela significa, tambm, um revolucionamento da his-toricidade, a qual , agora, histria do desfazer-se da humanidadefinita no fazer-se humanidade de tarefas infinitas.

    Encontramos aqui a objeco, fcil, de que a Filosofia, a Cin-cia dos Gregos, no para eles emblemtica, no algo que comeles por vez primeira tivesse vindo ao mundo. Ao fim ao cabo, elesprprios nos falam dos sbios egpcios, babilnios, etc., e apren-deram, de facto, muitas coisas com eles. Possumos, hoje em dia,

    uma profuso de trabalhos sobre a Filosofia Indiana, a FilosofiaChinesa, etc., nos quais estas so postas no mesmo plano que a Fi-losofia Grega e so tomadas como simples enformaes histricasdiversas no interior de uma mesma ideia de cultura. Naturalmenteque no falta aqui algo comum. No entanto, no devemos permitir

    www.lusosofia.net

  • 8/9/2019 Husserl Edmund Crise Da Humanidade Europeia

    27/53

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    A Crise da Humanidade Europeia e a Filosofia 25

    que o geral simplesmente morfolgico encubra as profundezas in-tencionais e nos torne cegos para as mais essenciais diferenas deprincpio.

    Antes do mais, a prpria atitude de ambos os filsofos, a di-reco universal do seu interesse, j fundamentalmente diferente.Podemos verificar, num lado e noutro, um interesse abrangendo omundo, um interesse que conduz de ambos os lados por conse-guinte, tambm nas filosofias indiana, chinesa e semelhantes

    a conhecimentos universais do mundo, operando, por todo lado,como um interesse vocacional de vida e conduzindo, atravs demotivaes compreensveis, a comunidades de vocao emque, de gerao em gerao, os resultados gerais se propagam e,correspondentemente, se aperfeioam. S com os Gregos temos,porm, um interesse de vida universal (cosmolgico) na formade tipo essencialmente novo de uma atitude puramente terica, eisto enquanto forma comunitria em que este interesse tem eficciaa partir de fundamentos internos: a correspondente comunidade detipo novo dos filsofos, dos cientistas (os matemticos, os astrno-

    mos, etc.) Eles so os homens que, no isoladamente, mas antesuns com os outros e uns para os outros, portanto, em trabalho co-munitrio ligado interpessoalmente, almejam e alcanam a teoriae nada de diferente da teoria, cujo crescimento e permanente aper-feioamento, com o alargamento do crculo de colaboradores e asucesso das geraes de investigadores, so finalmente assumidospela vontade com o sentido de uma tarefa infinita a todos comum.A atitude terica tem nos Gregos a sua origem histrica.

    Falando em termos gerais, atitude significa um estilo habitual-mente fixo da vida volitiva em direces da vontade ou interesses

    por ele prefigurados, em fins ltimos, em realizaes culturais cujoestilo de conjunto fica, portanto, deste modo determinado. Nesteestilo persistente, enquanto forma normal, decorre a vida em cadacaso determinada. Os teores concretos da cultura mudam numahistoricidade relativamente fechada. Na sua situao histrica, a

    www.lusosofia.net

  • 8/9/2019 Husserl Edmund Crise Da Humanidade Europeia

    28/53

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    26 Edmund Husserl

    humanidade (ou seja, uma comunidade fechada, como a nao, atribo, etc.) vive sempre em uma ou outra atitude. A sua vida temsempre um estilo normal e, nele, uma constante historicidade oudesenvolvimento.

    Por conseguinte, na sua novidade, a atitude terica refere-se re-trospectivamente a uma atitude precedente, que era antes a norma,ela caracteriza-se como converso de atitude.2 Considerando uni-versalmente a historicidade da existncia humana em todas as suas

    formas comunitrias e nos seus nveis histricos, agora visvelque uma certa atitude , por essncia, a atitude em si primeira, ouseja, que um certo estilo normal do existente humano (dito numageneralidade formal) marca uma primeira historicidade, no inte-rior da qual o estilo normal, de cada vez facticamente actual, doexistente criador de cultura permanece formalmente o mesmo emtoda ascenso, decadncia ou estagnao. Falamos, a esterespeito, da atitude natural, primeva, da atitude da vida originaria-mente natural, da primeira forma originariamente natural das cul-turas, superiores ou inferiores, desenvolvendo-se sem impedimen-

    tos ou estagnantes. Todas as outras atitudes esto, assim, retros-pectivamente referidas a esta atitude natural enquanto converses.Falando mais concretamente, numa das atitudes naturais histori-camente factuais da humanidade devem surgir, a partir da situaointerna e externa que, num determinado momento do tempo, se tor-nou concreta, motivos que, no seu interior, levem primeiro homensisolados e depois grupos humanos a uma converso.

    Como se deve caracterizar, ento, a atitude por essncia origi-nria, o modo histrico fundamental do existente humano? Res-pondemos: compreensivelmente, por razes generativas, os ho-

    mens vivem sempre em comunidades, na famlia, tribo, nao,2 Jogo de palavras entre Einstellung, aqui traduzido por atitude, e Ums-

    tellung, reorientao, transposio, converso. Optmos por converso de ati-tude, ou simplesmente converso, para Umstellung e por converter quandose trata, no mesmo contexto de sentido, do verbo umstellen e suas flexes [Notado Tradutor].

    www.lusosofia.net

  • 8/9/2019 Husserl Edmund Crise Da Humanidade Europeia

    29/53

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    A Crise da Humanidade Europeia e a Filosofia 27

    estando estas, por sua vez, mais rica ou mais pobremente articu-ladas em socialidades particulares. A vida natural caracteriza-se,agora, como uma vida que, ingnua e directamente, se entrega aomundo, ao mundo que, enquanto horizonte universal, est semprea consciente de um certo modo, mas no tematicamente. Temtico aquilo para que estamos dirigidos. A vida desperta sempre umestar dirigido para isto ou para aquilo, dirigido para isto enquantofim ou meio, enquanto relevante ou irrelevante, para o interessante

    ou o indiferente, o privado ou o pblico, para o que quotidiana-mente indispensvel ou para algo irrompendo como novo. Tudoisto repousa no horizonte do mundo, mas so precisos motivos par-ticulares para que quem est agarrado a uma tal vida mundana seconverta e, por a, chegue de algum modo a fazer dessa vida umtema e a ganhar por ela um interesse persistente.

    Todavia, aqui so necessrias explanaes mais detalhadas. Oshomens individuais que se convertem tm, enquanto homens, a suacomunidade universal de vida (a sua nao) e tambm os seus in-teresses naturais continuados, cada um os seus prprios interesses;

    no os podem perder simplesmente por qualquer converso, por-que isso seria, para cada um deles, deixar de ser quem , deixarde ser aquilo em que se tornou desde o nascimento. Quaisquerque sejam as circunstncias, a converso s pode, portanto, durarum lapso de tempo; ela s pode ter uma validade continuada paratoda a restante vida sob a forma de uma deciso incondicionada davontade de reassumir, em Lapsos de tempo peridicos, mas inti-mamente unificados , sempre a mesma atitude e de manterfirmemente como vlidos e realizveis estes interesses de novo tipoatravs desta continuidade lanando intencionalmente pontes so-

    bre as descontinuidades e de, finalmente, os realizar nas formasculturais correspondentes.Conhecemos situaes semelhantes nas profisses que surgem

    j nas vidas de cultura naturalmente originrias, com as suas tem-poralidades profissionais peridicas, que permeiam a restante vida

    www.lusosofia.net

  • 8/9/2019 Husserl Edmund Crise Da Humanidade Europeia

    30/53

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    28 Edmund Husserl

    e a sua temporalidade concreta (as horas de servio do funcionrio,etc.)

    Agora, dois casos so possveis. Ou os interesses da nova ati-tude querem servir os interesses da vida natural ou, coisa que essencialmente o mesmo, da prxis natural, caso em que a novaatitude ser, ela prpria, uma atitude prtica. Isto pode ter, agora,um sentido semelhante ao da atitude prtica do poltico que, en-quanto funcionrio da nao, est dirigido para o bem geral e, por

    conseguinte, quer servir, pela sua prpria prxis, a prxis de todosos outros (e, mediatamente, tambm a sua prpria). Isto pertence,certamente, ainda ao domnio da atitude natural, a qual, por essn-cia, se diferencia nos diversos tipos de membros da comunidade e, de facto, diferente para aqueles que regem a comunidade e paraos cidados ambos tomados, naturalmente, no sentido mais latopossvel. Em todo caso, a analogia torna compreensvel que a uni-versalidade de uma atitude prtica no caso vertente, uma que sedirige para o mundo no seu todo no tem, de modo nenhum, dequerer dizer um estar interessado e ocupado com todas as individu-

    alidades e totalidades particulares no interior do mundo, coisa queseria certamente impensvel.

    Perante a atitude prtica de grau superior, h, porm, ainda umaoutra possibilidade essencial de alterao da atitude natural geral(que logo aprenderemos a conhecer no caso tipo da atitude mtico-religiosa), a saber, a atitude teortica assim a denominamos deantemo porque nela surge, por um desenvolvimento necessrio, ateoria filosfica, que se torna num fim autnomo ou num campode interesse. A atitude teortica, se bem que seja, de novo, umaatitude profissional, totalmente no-prtica. No quadro da sua

    vida profissional prpria, ela repousa, por conseguinte, numa epo-ch voluntria de toda e qualquer prxis e tambm da de grausuperior que esteja ao servio da natural idade.

    Todavia, seja desde j dito que, com isto, no se fala demodo nenhum de um estrangulamento definitivo do fluxo entre

    www.lusosofia.net

  • 8/9/2019 Husserl Edmund Crise Da Humanidade Europeia

    31/53

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    A Crise da Humanidade Europeia e a Filosofia 29

    vida teortica e vida prtica, correspondentemente, de uma desa-gregao da vida concreta do terico em duas continuidades devida desenrolando-se desconexamente, coisa que, socialmente fa-lando, teria, portanto, como significado o surgimento de duas es-feras culturais espiritualmente sem conexo. Porque ainda poss-vel uma terceira forma da atitude natural (frente atitude mtico-religiosa naturalmente fundada e, por outro lado, atitude teor-tica), a saber, a sntese de ambos os interesses, que se consuma

    na passagem da atitude teortica para a prtica, de tal modo quea teoria, surgindo numa unidade fechada e sob epoch de toda equalquer prxis (a Cincia Universal), chamada (e na prpriainteleco teortica atesta ela o seu chamamento) a servir de ummodo novo a humanidade, a qual, na sua existncia concreta, vivesempre primeiro de modo natural. Isto sucede sob a forma de umaprxis de um tipo novo, o da crtica universal de toda a vida e detodas as finalidades da vida, de todas as formaes e sistemas cul-turais j surgidos a partir da vida dos homens e, com isso, tam-bm uma crtica da prpria humanidade e dos seus valores reito-

    res, tanto expressos como inexpressos; e, numa consequncia maislata, sob a forma de uma prxis que tem em vista elevar a huma-nidade, segundo normas de verdade de todas as formas, atravsda razo cientfica universal, modific-la desde a raiz numa novahumanidade, capacitada para uma auto-responsabilidade absolutacom base em inteleces teorticas absolutas. Todavia, antes destasntese da universalidade teortica e da prxis universalmente inte-ressada, h, manifestamente, uma outra sntese da teoria e da prxis a saber, o aproveitamento para a prxis da vida natural de resulta-dos limitados da teoria, das cincias especializadas, limitadas, que

    deixam a universalidade do interesse terico cair na especializao.Portanto, aqui se ligam, por finitizao, a atitude originariamentenatural e a atitude teortica.

    Para a compreenso mais aprofundada da Cincia greco-europeia(falando universalmente: a Filosofia) na sua diferena de princpio

    www.lusosofia.net

  • 8/9/2019 Husserl Edmund Crise Da Humanidade Europeia

    32/53

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    30 Edmund Husserl

    a respeito das filosofias orientais, que se supe serem equivalen-tes, agora necessrio considerar mais de perto a atitude prtico-universal, tal como ela criou estas filosofias antes, da ci-ncia europeia, e esclarec-la enquanto atitude mtico-religiosa. Eum facto bem conhecido, mas tambm uma visvel necessidade deessncia, que, a cada humanidade vivendo naturalmente antes dairrupo e da efectuao da Filosofia Grega e, deste modo, antes deuma considerao cientfica do mundo , correspondem motivos

    mtico-religiosos e uma prxis mtico-religiosa. A atitude mtico-religiosa consiste, agora, em que o mundo, enquanto totalidade, setorna temtico e, decerto, temtico de um modo prtico; o mundo tal quer naturalmente dizer, aqui, o mundo que concreta e tradi-cionalmente vlido para a correspondente humanidade (digamos, anao), por conseguinte, o mundo miticamente apercebido. A estaatitude mtico-natural pertencem, de antemo e primeiro que tudo,no apenas homens e animais e outros seres sub-humanos e sub-animais, mas tambm seres sobre-humanos. O olhar que os abarcaenquanto totalidade prtico, mas no como se o homem que, no

    deixar-se viver natural, est apenas actualmente interessado em re-alidades particulares, pudesse alguma vez chegar a uma situaoem que, subitamente, tudo fosse, de modo igual e em conjunto,para ele relevante do ponto de vista prtico. Mas, uma vez queo todo do mundo vale como mundo regido por poderes mticos eque o destino do homem depende, mediata ou imediatamente, domodo como esses poderes exercem o seu domnio, a consideraomtico-universal do mundo , possivelmente, incitada pela prxise , ento, ela prpria uma considerao praticamente interessada.Motivados para esta atitude mtico-religiosa esto, compreensivel-

    mente, os sacerdotes, pertencentes a uma casta sacerdotal que ad-ministra unitariamente os interesses mtico-religiosos e a sua tradi-o. Nela surge e se propaga o saber, linguisticamente cunhado efixado, acerca dos poderes mticos (pensados de um modo pessoal,no sentido mais alargado). Ele toma, a partir de si mesmo, a forma

    www.lusosofia.net

  • 8/9/2019 Husserl Edmund Crise Da Humanidade Europeia

    33/53

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    A Crise da Humanidade Europeia e a Filosofia 31

    de especulao mtica, a qual, surgindo como interpretao ingenu-amente convincente, transforma o prprio mito. Compreende-se,assim, que o olhar esteja constantemente co-dirigido para o res-tante mundo regido pelos poderes mticos e para o que lhe corres-ponde de seres humanos e sub-humanos (que, de resto, no estandofixados no seu ser prprio, esto abertos ao influxo de elementosmticos), para o modo como esses poderes regem os acontecimen-tos deste mundo, para o modo como eles prprios se de-

    vem juntar numa ordem suprema de poder, para o modo como,por fim, eles intervm, atravs de funes e funcionrios indivi-duais, criando, executando e impondo o destino. Todo este saberespeculativo tem, porm, como finalidade servir os homens nassuas finalidades humanas, para que conformem a sua vida mun-dana do modo mais feliz possvel, a possam proteger da doena,da fatalidade de todo tipo, da misria e da morte. E concebvelque, nesta considerao e conhecimento mtico-prtico do mundo,possam surgir muitos conhecimentos cientificamente aproveitveisacerca do mundo factual, ou seja, do mundo conhecido a partir da

    experincia cientfica. Mas, no seu contexto de sentido, eles soe permanecem conhecimentos mtico-prticos, e um erro e umafalsificao do sentido que algum, porque foi formado nos modosde pensar criados na Grcia e aperfeioados na Modernidade, falej de Filosofia e Cincia Indiana e Chinesa (Astronomia, Matem-tica), interpretando europeiamente, portanto, a ndia, a Babilnia ea China.

    Desta atitude universal, mas mtico-prtica, destaca-se nitida-mente, agora, a atitude teortica, no-prtica em qualquer dossentidos anteriores, a do

    J a u m z e i n a que as figuras maiores do

    primeiro perodo culminante da Filosofia Grega, Plato e Arist-teles, reconduzem a origem da Filosofia. Apodera-se dos homenso fervor de uma considerao e de um conhecimento do mundoque se afasta de todo e qualquer interesse prtico e que, no crculofechado das suas actividades cognitivas e nos tempos a elas con-

    www.lusosofia.net

  • 8/9/2019 Husserl Edmund Crise Da Humanidade Europeia

    34/53

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    32 Edmund Husserl

    sagrados, nada mais almeja e alcana que pura teoria. Por outraspalavras, o homem torna-se um espectador descomprometido, si-nptico, do mundo, torna-se um filsofo; ou melhor: a partir da, asua vida torna-se receptiva apenas s motivaes que so possveisnesta atitude, motivaes para novos objectivos de pensamento emtodos, atravs dos quais se realiza, por fim, a Filosofia e o pr-prio homem se realiza enquanto filsofo.

    Naturalmente, a irrupo da atitude teortica tem, como tudo o

    que se forma historicamente, a sua motivao fctica no contextoconcreto do acontecer histrico. Importa, portanto, a este respeito,esclarecer como, a partir do tipo e do horizonte de vida da humani-dade grega do sculo VII no seu comrcio com as grandese j altamente cultivadas naes do seu mundo circundante, aqueleJ a u m z e i n

    pde aparecer e tornar-se habitual, primeiro que tudonos indivduos singulares. No vamos entrar em detalhes; maisimportante, para ns, compreender o caminho motivacional, o ca-minho da doao e criao de sentido que conduz da simples con-verso de atitude, ou seja, do simples

    J a u m z e i n , at a teoria um

    facto histrico que deve ter, porm, a sua essencialidade prpria.Importa esclarecer a transmutao que vai da teoria originria, daviso do mundo (conhecimento do mundo a partir da simples vi-so universal) totalmente descomprometida (decorrente da epo-ch de todo e qualquer interesse prtico) at a Cincia autntica,ambas mediadas pelo contraste entre

    d x a e

    p i s j h e m e . O inte-

    resse teortico incipiente, enquantoJ a u m z e i n

    , manifestamenteuma modificao dessa curiosidade que tem j o seu lugar origi-nrio na vida natural, enquanto brecha na marcha da vida sria,seja como efeito de interesses de vida originalmente formados, seja

    como um olhar lanado em volta como que por jogo, quando estosatisfeitas as necessidades directas actuais ou quando esto decor-ridas as horas de ocupao profissional. A curiosidade (aqui nocomo vcio habitual) tambm uma modificao, um interesseque se eximiu aos interesses vitais, os deixou cair.

    www.lusosofia.net

  • 8/9/2019 Husserl Edmund Crise Da Humanidade Europeia

    35/53

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    A Crise da Humanidade Europeia e a Filosofia 33

    Instalado nesta atitude, o homem v, primeiro que tudo o mais,a diversidade das naes, a sua prpria e as estrangeiras, cada umacom o seu prprio mundo circundante, que vale evidentementepara ela como o mundo efectivo puro e simples, com as suas tradi-es, os seus deuses, demnios, as suas potestades mticas. Nestecontraste espantoso, sobrevm a distino entre representao domundo e mundo efectivo, e surge a nova pergunta pela verdade;por conseguinte, no a verdade do quotidiano, vinculada tradi-

    o, mas antes uma verdade idntica, vlida para todos que noesto ofuscados pela tradio, uma verdade em si. Compete, por-tanto, atitude teortica do filsofo que ele esteja constantementee de antemo decidido a consagrar sempre a sua vida futura, nosentido de uma vida universal, tarefa da teoria, a edificar conhe-cimento teortico sobre conhecimento teortico in infinitum.

    Em personalidades singulares, como Tales, etc., origina-se, comisso, uma nova humanidade; homens que criam por vocao avida filosfica, que criam a Filosofia como uma forma cul-tural de tipo novo. Compreensivelmente, origina-se, do mesmo

    lance, um correspondente tipo novo de comunalizao. Estas for-maes ideais da teoria so, sem mais, vividas e assumidas con-juntamente pela recompreenso do outro e pela reproduo. Semmais, elas conduzem ao trabalho conjunto, que se entreajuda pelacrtica. Mesmo os que esto margem, os no-filsofos, tornam-seatentos a um to singular fazer e agir. Recompreendendo os ou-tros, ou se tornam eles prprios filsofos, ou se tornam discpulos,se esto j profissionalmente muito manietados. Assim se difundea Filosofia de uma maneira dupla: enquanto ampliao da comu-nidade de vocao dos filsofos e enquanto ampliao conjunta do

    movimento comunitrio da educao. Mas aqui reside, tambm, aorigem da ciso interna, posteriormente to decisiva, da unidade dopovo em cultos e incultos. Manifestamente, esta tendncia de difu-so no tem, porm, os seus limites na nao natal. Diferentementede todas as outras obras culturais, ela no um movimento do inte-

    www.lusosofia.net

  • 8/9/2019 Husserl Edmund Crise Da Humanidade Europeia

    36/53

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    34 Edmund Husserl

    resse vinculado ao solo da tradio nacional. Tambm os homensde naes estrangeiras aprendem a recompreender e tomam, emgeral, parte na violenta transformao cultural que irradia da Filo-sofia. Todavia, isto mesmo precisa ainda de ser caracterizado. DaFilosofia, que se amplia na forma da investigao e da educao,deriva um duplo efeito espiritual. Por um lado, o mais essencial daatitude teortica do homem filosfico a peculiar universalidadeda postura crtica, a qual est decidida a no aceitar sem questo

    qualquer opinio pr-dada, qualquer tradio, de modo a que possaperguntar logo de seguida, a respeito do todo do universo pr-dadosegundo a tradio, pelo que em si verdadeiro, por uma idea-lidade. Mas isto no apenas uma nova postura cognitiva. Emvirtude da exigncia de submeter a empina no seu todo a normasideais a saber, as da verdade incondicionada , depressa resultada uma transformao de grande alcance da inteira prxis da exis-tncia humana e, portanto, da vida de cultura no seu todo; ela nomais deve deixar que as suas normas sejam tomadas da empiria in-gnua do quotidiano e da tradio, mas antes da verdade objectiva.

    Assim devm a verdade objectiva um valor absoluto que, no movi-mento da educao e no constante efeito na formao dos jovens, traz consigo uma prxis universal modificada. Se reflectir-mos um pouco mais neste tipo de transmutao, logo compreen-demos o inevitvel: se a ideia geral da verdade em si se torna anorma universal de todas as verdades relativas que surgem na vidahumana, das verdades de situao efectivas ou supostas, ento istotambm diz respeito a todas as normas tradicionais, s normas doDireito, da beleza, da utilidade, dos valores pessoais dominantes,dos valores pessoais do carcter, etc.

    Resulta, portanto, uma particular humanidade e uma particularvocao de vida, em correlao com a realizao de uma nova cul-tura. O conhecimento filosfico do mundo no cria apenas estesresultados de tipo particular, mas cria, antes, uma postura humanaque imediatamente engrena em toda a restante vida prtica, com

    www.lusosofia.net

  • 8/9/2019 Husserl Edmund Crise Da Humanidade Europeia

    37/53

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    A Crise da Humanidade Europeia e a Filosofia 35

    todas as suas exigncias e fins, os fins dessa tradio histrica nointerior da qual se foi educado e de onde retiram a sua validade.Edifica-se entre os homens uma comunidade nova e ntima, pode-ramos mesmo dizer, uma comunidade de puros interesses ideais homens que vivem a Filosofia, entre si ligados pela dedicao sideias que no so apenas teis a todos, mas que so prprias detodos eles. Necessariamente se forma uma eficincia comunitriade tipo particular, a do trabalhar com o outro e do trabalhar para

    o outro, mutuamente se coadjuvando no exerccio crtico, a partirda qual resulta a verdade pura e incondicionada enquanto bem co-mum. A isso se junta, agora, a tendncia necessria para a propaga-o do interesse, por meio da recompreenso do que foi pretendidoe realizado; portanto, uma tendncia para a incluso de sempre no-vas pessoas ainda no filosficas na comunidade dos filsofos. As-sim acontece, primeiro, no interior da nao natal. A extenso nopode ocorrer exclusivamente como difuso da investigao cient-fica profissional, mas, lanando as suas mos muito alm do crculoprofissional, ela ocorre, antes, enquanto movimento educativo.

    Se o movimento educativo se difunde para crculos cada vezmais largos de povos e, por natureza, para os mais elevados,para os dominantes, para os menos constrangidos pelos cuidadosda vida , que consequncias resultam da? Manifestamente, istono conduz simplesmente a uma modificao homognea da nor-mal vida do Estado e da Nao, satisfatria no seu conjunto, masantes, com toda a probabilidade, a grandes 335> cises interiores,nas quais esta vida e o todo da cultura nacional entram em convul-so. Os que esto conservadoramente satisfeitos com a tradio eo crculo humano dos filsofos tornam-se antagonistas mtuos e,

    seguramente, a luta desenrolar-se- nas esferas polticas do poder.A perseguio inicia-se j nos prprios comeos da Filosofia. Soproscritos os homens cuja vida se entrega a estas ideias. Aindaassim, as ideias so sempre mais fortes que quaisquer poderes em-pricos.

    www.lusosofia.net

  • 8/9/2019 Husserl Edmund Crise Da Humanidade Europeia

    38/53

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    36 Edmund Husserl

    Alm disso, temos tambm de tomar aqui em linha de contaque a Filosofia, provindo de uma atitude crtica universal contratoda e qualquer pr-doao tradicional, no impedida na sua pro-pagao por qualquer limite nacional. Apenas deve estar presente acapacidade de assumir uma atitude crtica universal, a qual tem cer-tamente como pressuposto um certo nvel de cultura pr-cientfica.Assim se pode propagar a convulso da cultura nacional, primeiroque tudo quando a Cincia Universal em progresso se torna um

    bem comum para as naes, antes alheadas umas das outras, e aunidade de uma comunidade cientfica e educativa atravessa a plu-ralidade das naes.

    H ainda uma coisa importante que deve ser aqui trazida, res-peitante relao da Filosofia com as tradies. Duas possibilida-des devem ser aqui consideradas. Ou o que vale segundo a tradio totalmente rejeitado, ou o seu contedo filosoficamente assu-mido e, com isso, tambm de novo formado no esprito da ideali-dade filosfica. Um caso notvel , aqui, o da Religio. No queropr na sua conta as religies politestas. Deuses no plural, pode-

    res mticos de todo e qualquer tipo so objectos circum-mundanoscom a mesma efectividade que animais ou homens. No conceitode Deus, o singular essencial. Mas ele implica:, do ponto devista humano, que a sua validade de ser e de valor seja experien-ciada como um vnculo interior absoluto. Aqui se produz, agora,uma fuso desta absolutez com a da idealidade filosfica. No pro-cesso geral de idealizao, que procede da Filosofia, Deus , porassim dizer, logicizado, torna-se portador do logos absoluto. Eugostaria, de resto, de ver j o lgico no facto de a Religio apelarteologicamente para a evidncia da f, enquanto tipo seu,

    mais prprio e profundo de fundamentao do verdadeiro ser. Osdeuses nacionais esto, porm, simplesmente a, sem questo, en-quanto factos reais do mundo circundante. Antes da Filosofia, nin-gum levanta quaisquer questes crtico-gnosiolgicas, quaisquerquestes acerca da evidncia.

    www.lusosofia.net

  • 8/9/2019 Husserl Edmund Crise Da Humanidade Europeia

    39/53

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    A Crise da Humanidade Europeia e a Filosofia 37

    No essencial, se bem que um pouco esquematicamente, estagora delineada a motivao histrica que torna compreensvel como,a partir de um punhado de gregos extravagantes, pde ser posta emmarcha uma convulso da existncia humana e da sua inteira cul-tura, primeiro na sua prpria nao e, depois, nas vizinhas. Mas agora tambm visvel que, a partir daqui, poderia despontar umasupranacionalidade de um tipo completamente novo. Refiro-me,naturalmente, forma espiritual da Europa. Agora, no mais se

    trata de uma justaposio de diferentes naes, influenciando-semutuamente apenas por lutas comerciais e de poder um novo es-prito, procedente da Filosofia e das cincias particulares, de livrecrtica e de instituio de normas para tarefas infinitas domina ahumanidade, cria novos e infinitos ideais! Estes so-no para oshomens individuais e as suas naes, so-no tambm para as pr-prias naes. Mas, finalmente, eles so tambm ideais infinitospara a sntese em expanso das naes, na qual cada uma destasnaes, precisamente porque aspira sua prpria tarefa ideal noesprito da infinitude, oferece o seu melhor s naes com que est

    unida. Por via deste ofertar e receber, eleva-se o todo supranaci-onal, com todas as suas sociedades escalonadas, preenchido peloesprito exaltado de uma tarefa infinita, articulada em vrias infini-tudes, mas que apenas uma nica. Nesta sociedade total dirigidapara o ideal, a Filosofia detm tanto a funo de guia como as suastarefas infinitas especficas; refiro-me funo de reflexo teorticalivre e universal, que compreende todos os ideais e o ideal total por conseguinte, o universo de todas as normas. Numa humanidadeeuropeia, a Filosofia tem constantemente de exercer a sua funo,enquanto arconte de toda a humanidade.

    www.lusosofia.net

  • 8/9/2019 Husserl Edmund Crise Da Humanidade Europeia

    40/53

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    38 Edmund Husserl

    II

    Todavia, devem agora tomar voz os mal-entendidos, seguramentemuito incisivos, e as objeces que, como me quer parecer,retiram a sua fora sugestiva dos preconceitos em moda e da suafraseologia. No ser o que foi aqui exposto uma intempestiva rea-

    bilitao do racionalismo, da iluminice,3

    do intelectualismo quese vai perder em teorias alheadas do mundo, com as suas neces-srias consequncias nefastas do diletantismo inane, do snobismointelectual? No significa isto querer retomar, uma vez mais, aoerro fatal segundo o qual a Cincia que faz sbios os homens, queela est vocacionada para criar uma humanidade autntica, que sesobreponha ao destino e que seja suficiente? Quem, hoje, levarainda a srio estes pensamentos? Esta objeco tem certamenteuma legitimidade relativa para o estado do desenvolvimento euro-peu desde o sculo XVII at o fim do sculo XIX. Ela no toca osentido prprio da minha exposio, porm. Quer-me parecer queeu, o suposto reaccionrio, sou muito mais radical e muito maisrevolucionrio que todos aqueles que, hoje em dia, se comportamto radicalmente em palavras.

    Tambm estou certo de que a crise europeia radica num racio-nalismo extraviado. Mas no se pode tomar isto como se a racio-nalidade enquanto tal fosse o mal, ou tivesse um significado subor-dinado no todo da existncia humana: naquele sentido elevado eautntico, de que exclusivamente falamos como sentido prstinogrego, que se tornou um ideal no perodo clssico da FilosofiaGrega, ela carece, decerto, de muitas clarificaes na auto-reflexo,

    mas chamada, na sua forma amadurecida, a conduzir o nosso de-3 Aufkrerei palavra pejorativa com que, em crculos hegelianos, se desig-

    nou o movimento do Iluminismo, Aufklrung. Traduzirmo-la por iluminice,um neologismo que comporta tambm o mesmo sentido desdenhoso [Nota doTradutor].

    www.lusosofia.net

  • 8/9/2019 Husserl Edmund Crise Da Humanidade Europeia

    41/53

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    A Crise da Humanidade Europeia e a Filosofia 39

    senvolvimento. Por outro lado, concedemos de boa vontade (e oIdealismo Alemo h muito nos precedeu nesta viso) que a formade desenvolvimento da ratio, enquanto Racionalismo do perododo Iluminismo, foi um extravio, se bem que, ainda assim, um ex-travio compreensvel.

    Razo um ttulo amplo. Segundo a boa velha definio, ohomem o ser vivo racional e, neste sentido amplo, o papua tambm homem e no bicho, Ele tem as suas finalidades e age

    pensadamente, considerando as possibilidades prticas. As obras eos mtodos resultantes entram na tradio, que sempre de novocompreensvel na sua racionalidade. Mas tal como o homem e oprprio papua representam um novo nvel da animalidade,a saber, em contraposio aos bichos, tambm a razo filosficarepresenta um novo nvel da humanidade e da sua razo. O nvelda existncia humana sob4 normas ideais para tarefas infinitas, onvel da existncia sub specie aeterni, , porm, apenas possvelna absoluta universalidade, precisamente aquela que est, desde oincio, contida na ideia de Filosofia. A Filosofia Universal, com

    todas as cincias particulares, constitui certamente uma aparioparcelar da cultura europeia. Mas est implcito no sentido de todaa minha exposio que esta parte seja, por assim dizer, o crebrofuncionante, de cujo funcionamento normal depende a autntica,a saudvel espiritualidade europeia. A humanidade elevada ao hu-mano superior, ou razo, exige, portanto, uma Filosofia autntica.

    Aqui reside, porm, o ponto periclitante! Filosofia de-vemos, aqui, separar filosofia como facto histrico de um tempodeterminado e Filosofia enquanto ideia, ideia de uma tarefa infi-nita. A filosofia de cada vez historicamente efectiva a tentativa,

    mais ou menos conseguida, de realizar a ideia reitora da infinitudee mesmo da totalidade das verdades, ideais prticos, a saber, ide-

    4 Lemos underem vez de und der, de acordo com a lio seguida j por DavidCarr (vide The Crisis of European Sciences and Transcendental Phenomenology.Evanston: Northwestern University Press, 1970, p. 290) [Nota do Tradutor].

    www.lusosofia.net

  • 8/9/2019 Husserl Edmund Crise Da Humanidade Europeia

    42/53

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    40 Edmund Husserl

    ais vistos como plos eternos de que no nos podemos desviar nanossa inteira vida sem arrependimento, sem nos tornarmos desle-ais e, por isso, infelizes, no so de modo algum, para este olhar,j claros e determinados, eles so antecipados numa generalidadeplurvoca. A determinidade resulta somente do trabalho concretoe do fazer que , no mnimo, relativamente bem sucedido. H, a,a constante ameaa de se cair em unilateralidades e em contenta-mentos precipitados, que se vingam em contradies subsequentes.

    Da o contraste entre as grandes pretenses dos sistemas filosficose o facto de serem entre si incompatveis. A isso h que juntar anecessidade e novamente a periculosidade da especializao.

    Assim pode a racionalidade unilateral tornar-se, sem dvida,um mal. Podemos tambm dizer: pertence essncia da razo queos filsofos s possam compreender as suas tarefas infinitas e tra-balhar nelas primeiro que tudo numa unilateralidade absolutamentenecessria. No h a nenhuma improcedncia, nenhum erro, masantes, como foi dito, o caminho que para eles recto e necessriopermite-lhes captar, de incio, apenas um aspecto da tarefa, pri-

    meiro sem notarem que a tarefa infinita no seu todo, o co-nhecimento teortico da totalidade daquilo que , tem ainda outrosaspectos. Se as insuficincias se anunciam em obscuridades e con-tradies, isso motiva um comeo para uma reflexo universal, Ofilsofo deve, portanto, ter sempre em vista apoderar-se do sentidoverdadeiro e completo da Filosofia, da totalidade dos seus hori-zontes de infinitude. Nenhuma linha de conhecimento, nenhumaverdade singular pode ser absolutizada e isolada. Somente nestaautoconscincia suprema, que se torna ela prpria um dos ramosda tarefa infinita, pode a Filosofia preencher a sua funo, pode

    pr-se a caminho e, atravs dela, a autntica humanidade. Mas queassim seja coisa que pertence, tambm, de novo, ao campo de co-nhecimento da Filosofia no nvel supremo de auto-reflexo. UmaFilosofia conhecimento universal apenas atravs desta constantereflexividade.

    www.lusosofia.net

  • 8/9/2019 Husserl Edmund Crise Da Humanidade Europeia

    43/53

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    A Crise da Humanidade Europeia e a Filosofia 41

    Disse: o caminho da Filosofia ultrapassa a ingenuidade. Este ,ento, o lugar de crtica do to afamado Irracionalismo, ou seja, olugar para pr a descoberto a ingenuidade desse racionalismo que tornado pela racionalidade filosfica pura e simples, mas que , se-guramente, caracterstico da Filosofia da Modernidade no seu con-junto, desde a Renascena, e se toma pelo Racionalismo efectivoe, portanto, universal. Nesta ingenuidade, inevitvel no comeo,esto, portanto, mergulhadas todas as cincias cujos comeos j

    na Antiguidade se tinham desenvolvido. Dito com mais preciso:o ttulo generalssimo para esta ingenuidade objectivismo, en-formado nos diversos tipos do naturalismo, da naturalizao doesprito. As antigas e as novas filosofias eram e permanecem in-genuamente objectivistas, Para ser justo, h que acrescentar que oIdealismo Alemo, procedente de Kant, estava j fervorosamenteempenhado em Superar uma ingenuidade que se tornara j muitosensvel, sem que, porm, fosse capaz de atingir efectivamente onvel mais alto de reflexividade, decisivo para a nova forma da Fi-losofia e da humanidade europeia.

    S posso tornar compreensvel o que foi dito por indicaesgrosseiras. O homem natural (tornemo-lo como o homem do pe-rodo pr-filosfico) est mundanamente dirigido em todos os seuscuidados e fazeres. O seu campo de vida e de efectuao o mundo circundante estendendo-se espcio-temporalmente sua volta, no qual ele prprio se inclui. Isto permanece con-servado na atitude teortica, a qual, de incio, no pode ser outracoisa seno essa atitude do espectador descomprometido de ummundo que, por essa via, se desmitifica. A Filosofia v no mundoo universo daquilo que , e o mundo torna-se mundo objectivo

    frente s representaes do mundo, que mudam do ponto de vistadas naes e das subjectividades individuais; a verdade torna-se,por conseguinte, verdade objectiva. Assim comea a Filosofia en-quanto Cosmologia; como compreensvel, ela est, no seu inte-resse teortico, dirigida primeiro para a natureza corprea, porque

    www.lusosofia.net

  • 8/9/2019 Husserl Edmund Crise Da Humanidade Europeia

    44/53

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    42 Edmund Husserl

    todo o dado espcio-temporal tem, em todo caso, pelo menos nasua base, a frmula existencial da corporalidade. Homens e bi-chos no so simples corpos, mas, na direco circum-mundana doolhar, eles aparecem como qualquer coisa que corporeamente e,por consequncia, aparecem como realidades inseri das na espcio-temporal idade universal. Assim tm todos os acontecimentos an-micos os do eu respectivo, como experienciar, pensar, querer uma certa objectividade. A vida em comunidade, a das famlias,

    povos, e semelhantes, parece, ento, dissolver-se nos indivduossingulares, enquanto objectos psicofsicos; a vinculao espiritualatravs da causalidade psicofsica carece de uma continuidade pu-ramente espiritual a natureza fsica intervm em toda parte.

    A marcha histrica do desenvolvimento est prefigurada, demodo determinado, por esta atitude para com o mundo circun-dante. J o olhar mais fugidio para a corporalidade que pode serencontrada de antemo no mundo circundante mostra que a natu-reza um todo omniconectado homogneo, por assim dizer, ummundo para si, abraado pela espcio-temporalidade homognea,

    repartido em coisas individuais, todas iguais entre si enquanto resextensae e determinando-se causalmente umas s outras. Muitodepressa se d um primeiro, grande passo na descoberta; a supe-rao da finitude da natureza j pensada como um em si objectivo,uma finitude no obstante a aberta ausncia de fim. E descobertaa infinitude, primeiramente, na forma de idealizao das grande-zas, das medidas, dos nmeros, das figuras, das rectas, plos, su-perfcies, etc. A natureza, o espao, o tempo tornam-se idealiterextensveis ao infinito, assim como idealiter partveis ao infinito.A partir da arte da Agrimensura desponta a Geometria, a partir

    da arte dos nmeros, a Aritmtica, da mecnica quotidiana, a Me-cnica matemtica, etc. Transformam-se, agora, sem que sobre isso seja formulada uma hiptese expressa, a natureza e omundo intuitivos num mundo matemtico, o mundo das cinciasmatemticas da natureza. A Antiguidade foi frente neste cami-

    www.lusosofia.net

  • 8/9/2019 Husserl Edmund Crise Da Humanidade Europeia

    45/53

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    A Crise da Humanidade Europeia e a Filosofia 43

    nho e, com a sua Matemtica, consumou-se, ao mesmo tempo, aprimeira descoberta de ideais infinitos e de tarefas infinitas. Istotornou-se, para todos os tempos posteriores, a estrela orientadoradas cincias. Que eficcia teve, agora, o sucesso embriagante destadescoberta da infinitude fsica para a tentativa de dominar cienti-ficamente a esfera espiritual? Na atitude circum-mundana, na que constantemente objectivista, todo o espiritual aparecia como quesobreposto na corporalidade. Est, assim, prxima uma transposi-

    o do modo de pensar cientfico-natural. Da que encontremos, jnos comeos, o Materialismo e Determinismo de Demcrito. Osespritos maiores, porm, recuam diante disso, e tambm diante detoda e qualquer psicofsica neste estilo novo. Desde Scrates, ohomem torna-se tema na sua especfica humanidade como pessoa,nas sua vida espiritual comunitria. O homem permanece inse-rido no mundo objectivo, mas torna-se j num terna maior paraPlato e Aristteles. Torna-se sensvel, aqui, uma ciso digna denota: o humano pertence ao universo dos factos objectivos, mas,enquanto pessoas, enquanto eu, tm os homens objectivos, fins,

    eles tm normas da tradio, normas de verdade normas eter-nas. Se o desenvolvimento na Antiguidade se entorpece, nem porisso ele se perde, porm. Dmos o salto para a chamada Moderni-dade. Com entusiasmo ardente, retomada a tarefa infinita de umconhecimento matemtico da natureza e do mundo em geral. Osresultados portentosos do conhecimento da natureza devem, agora,ter a sua contrapartida no conhecimento do esprito. A razo ha-via provado a sua fora na natureza. Tal como o Sol que alumiae aquece um s, assim tambm uma s a razo (Descartes).5

    5 Trata-se de uma citao truncada de um passo clebre das Regulae ad di-

    rectionem ingenni (regra primeira), de Descartes, provavelmente de memria epor mistura com um outro no menos conhecido de Plato (Repblica, VI 508be sgs.), onde h, de facto, a referncia indirecta, omissa em Descartes, a qual-quer coisa como um poder generativo do calor do Sol, O texto de Descartes o seguinte: Nam cm scientiae omnes nihil aliud sint qum humana sapientia,quae semper una & eadem manet, quantumvis differentibus subjectis applicata,

    www.lusosofia.net

  • 8/9/2019 Husserl Edmund Crise Da Humanidade Europeia

    46/53

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    i

    44 Edmund Husserl

    O mtodo cientfico-natural deve tambm abrir os segredos do es-prito, O esprito real, objectivamente no mundo e, enquanto tal,fundado na corporalidade. A concepo do mundo assume, porconseguinte, de modo imediato e totalmente dominante, a formade uma concepo dualista e, seguramente, psicofsica. A mesmacausalidade, apenas duplamente cindida, abarca o mundo uno, osentido da aclarao racional por todo lado o mesmo, mas de talmodo que a aclarao do esprito, se quiser ser nica e, com isso,

    filosoficam