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I — Estudos EVOCAÇÃO DE FREI PEDRO DA GUARDA NO QUINTO CENTENÁRIO DA SUA MORTE * D. Frei António Montes Moreira, ofm * Bispo de Bragança-Miranda ————— * Conferência proferida na Casa da Cultura de Câmara de Lobos a 27 de Julho de 2005. 5

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I — Estudos

EVOCAÇÃO DE FREI PEDRO DA GUARDA

NO QUINTO CENTENÁRIO DA SUA MORTE

* D. Frei António Montes Moreira, ofm *

Bispo de Bragança-Miranda

————— * Conferência proferida na Casa da Cultura de Câmara de Lobos a 27 de Julho de

2005.

5

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EVOCAÇÃO DE FREI PEDRO DA GUARDA NO QUINTO CENTENÁRIO DA SUA MORTE

Nesta data jubilar do quinto centenário do bem-aventurado falecimento,

da passagem à glória celeste, do Santo Servo de Deus Frei Pedro da Guarda, congregámo-nos aqui, nesta privilegiada terra donde ele partiu ao encontro do Senhor, para o recordar e homenagear. Recordar é evocar com o coração, retirando lições de vida da vida exemplar do homenageado.

Para melhor enquadramento da presença de Frei Pedro no convento de S. Bernardino da Câmara de Lobos, a exposição da sua biografia será pre-cedida de breve apontamento sobre a história dos Franciscanos em Portugal até ao século XVI, primeiro no Continente e depois no arquipélago da Madeira.

1. OS FRANCISCANOS NO CONTINENTE As tradições sobre a vinda de S. Francisco de Assis a Portugal em 1214,

por ocasião de uma eventual peregrinação a Compostela, não são confir-madas por fontes medievais seguras. Os primeiros conventos da Ordem, simples ermitérios, foram os de Alenquer, Guimarães, Lisboa (todos de 1217) e Coimbra (já existente em 1220). Foi em Coimbra que Santo António de Lisboa passou os primeiros meses da sua vida franciscana antes de embarcar para Marrocos como missionário em fins de 1220. Em 1272 o número de conventos subia a 14. Começando pelo Norte: Bragança, Guimarães, Porto, Lamego, Guarda, Covilhã, Coimbra, Leiria, Santarém, Alenquer, Lisboa, Portalegre, Estremoz e Évora. Até 1330 apareceram mais três: Beja, Loulé e Tavira.

Nessa altura os conventos portugueses pertenciam à província fran-ciscana de Santiago de Compostela. Esse enquadramento jurídico foi alterado com o Cisma do Ocidente (1378-1415). A partir de 1382 a província com-postelana desdobra-se praticamente em duas com ministros provinciais próprios: um em Santiago, ligado ao Papa de Avinhão (de acordo com a

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política oficial do reino de Castela) e outro em Lisboa obedecendo ao Papa de Roma (em conformidade com a orientação seguida quase sempre pela coroa portuguesa). A guerra entre Portugal e Castela, de 1384 e 1387, veio acentuar a ruptura. A legalização canónica da nova Província de Portugal terá sido formalizada no capítulo geral de 1418 ou no de 1421, quando os franciscanos já tinham desembarcado na Madeira.

Entretanto, desde meados do século XIV, defrontavam-se duas ten-dências na Ordem: o Conventualismo (ou a Claustra, como se dizia em Portugal) e a Observância.

Os conventos da Claustra eram normalmente desenhados com amplidão, privilegiavam a vida comum de estilo monástico, seguiam a Regra com dispensas pontifícias em matéria de pobreza, estavam geralmente localizados em centros urbanos e bastantes mantinham escolas públicas de gramática, filosofia e teologia. A mais importante era a de Lisboa, que foi incorporada na Universidade em 1453. Em geral, desde meados do século XIV, a vida quotidiana dos conventos portugueses, marcada pela regularidade dos ofícios litúrgicos e das lições escolares, assumira um ritmo quase monástico, dife-rente da itinerância e da espontaneidade das primeiras gerações franciscanas.

A Observância apareceu na Itália e pouco depois na França e na Espanha. Os seus promotores insistiam na observância integral da Regra (daí o nome do movimento), praticavam a austeridade e a pobreza na simplicidade dos edifícios e no passadio diário, privilegiavam a oração mental e a pregação popular e localizaram-se geralmente em sítios ermos ou em meios rurais. Em meados do século XV também a Madeira foi procurada por bom número de frades de vocação eremítica. Os estudos, descurados pelos iniciadores, foram retomados na segunda geração da Observância, em princípios do século XV, sob o impulso de S. Bernardino de Sena. Data igualmente deste período o regresso progressivo aos centros urbanos sem abandono das implantações eremíticas.

A Observância entrou em Portugal em 1392 e fundou mais de uma dezena de conventos no país ao longo do século XV. O mais célebre foi o de Varatojo (Torres Vedras), construído por D. Afonso V e inaugurado em 1474.

Como noutros países da Europa, os Observantes de Portugal, ao certo desde 1447 e porventura já no decénio de 1420, organizaram-se em vigararia autónoma no seio da única província franciscana do Reino. As vigararias provinciais observantes dependiam da respectiva vigararia geral observante (a cismontana na Itália e a ultramontana fora) e celebravam capítulo provin-cial próprio para eleição do vigário. Esta eleição devia, porém, ser confir-mada pelo ministro provincial.

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Frei Pedro da Guarda é um fruto bem sazonado da Observância em Portugal: primeiro, em vários conventos do Continente durante trinta anos e, depois, por mais outros vinte no convento de S. Bernardino de Câmara de Lobos, onde faleceu em 1505 em odor de santidade.

2. OS FRANCISCANOS NA MADEIRA O arquipélago da Madeira já era conhecido muito antes de João

Gonçalves Zarco e Tristão Vaz Teixeira aqui terem aportado em 1419-14201. Um manuscrito castelhano do século XIV, Livro del conoscimiento de todos los Reynos, faz-lhe referência e várias cartas geográficas do mesmo século, uma delas de 1339, também o localizam com bastante precisão.

Estamos melhor informados sobre o início da navegação portuguesa para as Canárias. Os primeiros contactos datam de meados do século XIV, no reinado de D. Afonso IV, com uma expedição luso-italiana às Canárias efectuada a partir de Lisboa em 13412. Mais tarde, em 1370 e 1376, o rei D. Fernando doou as ilhas de Nossa Senhora a Franca (a actual Lançarote) e de Gomeira ao seu almirante Lançarote da Franca por ele, afirma o Rei, as haver encontrado3. No século XV o Infante D. Henrique enviou seis expedições ao arquipélago canário: em 1415 (ainda antes do descobrimento oficial do Porto Santo e Madeira), em 1424 e as seguintes entre 1447 e 14534. Nenhuma delas com resultados duradouros.

O interesse de Portugal pelas Canárias suscitou uma disputa de sobera-nia com o reino de Castela, logo desde o início. O diferendo só veio a termi-nar com o tratado de Toledo de 1480, pelo qual D. Afonso V reconheceu os direitos de Castela sobre todo o arquipélago. No desenrolar deste contencioso diplomático anoto dois pontos relacionados com a Madeira.

O estabelecimento de missionários franciscanos andaluzes nas Canárias ao longo dos séculos XIV e XV foi utilizado por Castela como argumento de apoio às suas pretensões territoriais sobre o arquipélago. Em igual perspec-

————— 1 Perante as divergências de cronologia das fontes, estas são as datas mais plausí-

veis: 1419 para o Porto Santo e 1420 para Madeira. Cf. Eduardo C. N. Pereira, As Ilhas de Zargo, 4.ª edição, I, Funchal, 1989, p. 15-22.

2Relato desta expedição transcrito na colectânea documental Monumenta Henricina (MH), I, Coimbra 1960, doc. 88, p. 202-206.

3 Cartas de doação reproduzidas em MH, I, doc. 104 e 106, p. 245-247 e 251-252, respectivamente.

4 Informação sobre estas viagens em MH, II, Coimbra, 1960, doc. 113, p. 235-236; III, Coimbra, 1961, doc. 51, p. 93-97; IX, Coimbra, 1968, doc. 154, p. 231-234; e XI, Coimbra, 1970, doc. 138 e 236, p. 174-179 e 340-345, respectivamente.

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tiva de soberania, mas em sentido inverso, compreende-se que a presença de franciscanos de Castela na Madeira em meados do século XV tenha susci-tado reservas na parte portuguesa.

Por outro lado, um dos principais textos de defesa da posição caste-lhana, escrito pelo bispo de Burgos D. Alfonso García de Santa Maria e datado de 1437, atribui à ilha do Porto Santo o nome de Brasil5. Desconheço a origem de tal designação, bem como o seu eventual uso posterior.

Dando por encerrado o parênteses sobre as Canárias, passo à história franciscana da Madeira.

O historiador madeirense Jerónimo Dias Leite6 e o seu homólogo aço-riano Gaspar Frutuoso7, ambos da segunda metade do século XVI, informam que a primeira missa na ilha da Madeira foi celebrada em Machico a 2 de Julho, nessa data festa litúrgica da Visitação de Nossa Senhora. Na segunda metade do século XVII, o cronista franciscano continental Fr. Manuel da Esperança acrescenta mais um dado: aqueles sacerdotes eram dois frades franciscanos8.

O cronista oficial do Reino Gomes Eanes de Zurara, que escreveu bas-tante mais cedo, em meados do século XV, não menciona a participação de sacerdotes na viagem de achamento da Madeira9. Isto não significa negação do facto. Em crítica histórica o recurso ao argumento de silêncio é sempre tarefa delicada. Neste caso, a preocupação exclusiva de Zurara em sublinhar as boas perspectivas de povoamento e exploração agrícola da Ilha não per-mite interpretar aquele silêncio como rejeição da presença de sacerdotes na expedição de Zarco.

Os testemunhos convergem em relação à viagem seguinte, logo em 1421. Os quatro autores supramencionados referem o envio de sacerdotes,

————— 5 MH, VI, Coimbra, 1964, doc. 57, p. 188: “… insula Brasilij que dicitur esse in

linea occidentali contra Vlixbonam et non est habitata et raro possunt eam reperire navigantes, et insula Lignorum que est jn eadem linea magis declinans ad leuam, que a paucis citra temporibus jncepit habitari per aliquos portugalenses”.

6 Jerónimo Dias Leite, Descobrimento da Ilha da Madeira e Discurso da Vida e Feitos dos Capitães da dita Ilha [1579], Coimbra, 1947, p. 9-10, cit. por Frei José António Correia Pereira, S. Francisco de Assis na Madeira, Braga, 1993, p. 15 e 161.

7 Gaspar Frutuoso, As Saudades da Terra – História das Ilhas do Porto Santo, Madeira, Desertas e Selvagens [cerca de 1590], Funchal, 1873, p. 35.

8 Fr. Manuel da Esperança, História Seráfica da Ordem dos Frades Menores da Província de Portugal, II, Lisboa, 1666, p. 594 (livro XI, cap. XXIX, n.º 4): “assistiam--lhe dois frades da nossa Santa Província”.

9 Gomes Eanes de Zurara, Crónica dos feitos de Guiné, cap. 83, transcrito em MH, II, doc. 175, p. 359-360.

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mas também só Esperança os identifica como franciscanos10. Leite, Frutuoso e o cronista franciscano acrescentam uma informação suplementar. Na ilha do Porto Santo (transcrevo de Fr. Manuel da Esperança) embarcaram tam-bém “uns frades da nossa Ordem (não sabemos quantos eram) que nave-gando de Castela às Canárias e perdidos num naufrágio se salvaram na para-gem que por seu respeito ainda hoje se chama Porto dos Frades”11. Por volta de 1430, o mesmo cronista noticia a chegada do castelhano Fr. Rogério e a vinda de “tantos frades de Espanha, Galegos, Castelhanos e Biscainhos, que bem podiam encher de conventos toda a Ilha se ela tivesse povoações em as quais se sustentassem”. Eles “vinham fugindo do reboliço do mundo”; uns, “encovados pela serra conversavam só com Deus” e “ havia outros que com o mesmo intento eram bons para o próximo, trabalhando e cansando para a sua salvação. Discorriam pelos lugares da Ilha, que ainda eram poucos, con-tinuavam muitas vezes em Machico, e em todas as partes pregavam o cami-nho das virtudes como varões apostólicos”12.

A informação de Fr. Manuel da Esperança sobre o elevado número de frades então residentes na Madeira encontra eco no testemunho de Zurara, segundo o qual, ao tempo da redacção da sua crónica, a Ilha “estava em razoada pouoraçom; (…) mercadores e homeens e molheres solteiros e man-cebos e moços e moças que ja nasceram na dicta jlha, e esso meesmo clerigos e frades e outros que vâao e veem”13.

A passagem de bastantes franciscanos à ilha da Madeira resultou em parte da situação da Ordem na Península Ibérica em meados do século XV. A influência crescente do modelo mais estrito da Observância levou muitos fra-des a optar pelo eremitismo, às vezes um pouco à margem da autoridade. O atractivo suplementar do refúgio numa ilha distante incentivou igualmente a demanda destes paragens atlânticas. Os religiosos viviam isolados em ermité-rios ou jornadeavam em trabalhos apostólicos dum sítio para o outro. Eram “frades soltos” – na ajustada expressão do meu mestre de história francis-cana, Fr. Fernando Félix Lopes – sem enquadramento hierárquico e comunitário bem definido. Em 1474 ainda há notícia dum ermitério na Ponta do Sol, dedicado a Nossa Senhora dos Anjos.

Os frades ocupados no ministério pastoral começaram por residir em gasalhados, habitações de madeira e modestas casas particulares “sem forma

————— 10 G. E. de Zurara, op. cit., cap. 83 (MH, II, doc. 175, p. 360), J. Leite, op. cit., p.

16, G. Frutuoso, op. cit., p. 43 e HS, II, p. 594-595 (livro XI, cap. XXIX, n.º 5). 11 HS, II, p. 594 (livro XI, cap. XXIX, n.º 5). 12 HS, II, p. 670 e 671 (livro XII, cap. XII, nº. 2 e 5). 13 G. E. de Zurara, op. cit., cap. 83 (MH, II, doc. 175, p. 360-361).

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de convento”, observa Esperança14. Os lugares de pouso mais habitual situa-vam-se em Machico, no Funchal e nos anexos de uma igreja construída na Ribeira de S. João, localidade então afastada do aglomerado funchalense.

Os franciscanos foram os primeiros a exercer actividades pastorais e funções eclesiásticas na Madeira e a prestar assistência religiosa nas capelas que se iam construindo: no Funchal, as de Santa Catarina, S. Paulo, S. Sebas-tião e Conceição de Cima; nos arredores, a de S. João da Ribeira; e em Machico, a do Senhor. A presença dos frades também se alargou às primeiras paróquias da Ilha, que foram sendo criadas a partir de 1430: no Funchal, Conceição de Baixo ou Nossa Senhora do Calhau, pouco depois designada Santa Maria Maior; fora, as de Câmara de Lobos e Ponta do Sol. Deste modo, a vida cristã da Ilha ficou marcada desde o início pelo espírito francis-cano15.

A acção dos frades não se circunscreveu ao campo da pastoral. Desem-penharam igualmente papel meritório nas áreas da saúde e assistência nomeadamente na primeira gafaria da Madeira, construída ainda no século XV16.

A primeira comunidade franciscana organizada na Ilha foi o convento de S. João da Ribeira. Esperança localiza a sua fundação por volta de 1440, mas o beneplácito pontifício para a mesma só foi concedido em 1450 por Nicolau V17. A comunidade seria então formada por cerca de doze religiosos, todos castelhanos. O documento papal refere-se também ao convento açoriano da ilha de Santa Maria e anota que ambos dependiam do Vigário Provincial dos Observantes de Portugal.

As delimitações territoriais e as competências canónicas nos arquipéla-gos atlânticos não se encontravam ainda bem definidas. Também em 1450 o mesmo Papa autorizou a vigararia franciscana das Canárias a abrir casa na ilha da Madeira, a qual, escreve-se no texto pontifício, estaria englobada na jurisdição da dita vigararia18. O cronista Fr. Fernando da Soledade, continua-

————— 14 HS, II, p. 672 (livro XII, cap. XII, nº. 5). 15 Sobre a acção evangelizadora dos franciscanos na Madeira neste período, cf.

Eduardo C. N. Pereira, As Ilhas de Zargo, I, p. 461-464 e Henrique Henriques de Noronha, Memórias seculares e eclesiásticas para a composição da história da Diocese do Funchal [1722], Funchal, 1996, p. 229-258.

16 António Bandeira de Figueiredo, Introdução à História Médica da Madeira, Porto, 1963, p. 21-22, cit. por Frei José António Correia Pereira, S. Francisco de Assis na Madeira, Braga, 1993, p. 21 e 163.

17 Texto em MH, X, Coimbra, 1969, doc. 157, p. 217-218 (Injunctum nobis de 28.04.1450).

18 Texto em MH, X, doc. 246, p. 328-330 (Dum ad preclara de 10.12.1450).

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dor de Esperança, informa que a concessão papal não foi bem acolhida pela parte portuguesa e não chegou a ser executada19.

A comunidade de S. João da Ribeira foi dissolvida em 1459 com a transferência dos seus nove membros para Lisboa, a pedido do rei D. Afonso V, para fundarem o convento observante de Xabregas. A origem castelhana de quase todos estes frades poderá ter influenciado também a decisão do Rei num momento em que continuava pendente o conflito entre Portugal e Cas-tela a respeito da soberania das Canárias.

Provavelmente logo em 1461, quatro dos frades idos para Xabregas regressaram à sua “Tebaida da Ilha da Madeira”20. Instalaram-se em Machico num oratório com quatro celas e uma ermida dedicada a Santo António. Esta fundação veio a extinguir-se de maneira trágica numa noite de invernia de 1467 quando, escreve Fr. Manuel da Esperança, “um dilúvio de água com infinitos penedos chegou ao santo oratório e, sem conhecer que lhe devia res-peito, tudo levou o mar: a igreja, as celas, os moradores”21.

Entretanto, a comunidade de S. João da Ribeira já tinha sido restaurada em 1464 por Fr. Rodrigo de Arruda. Desta vez os frades seriam todos portu-gueses. É o que se depreende do texto de Soledade ao aludir à presença de “religiosos da mesma nação castelhana na Ribeira de S. João em um tugúrio pobre, que depois vestimos à portuguesa, ficando cada um em o seu e aquela Ilha só com religiosos desta nossa Província”22.

A distância de S. João da Ribeira à então vila do Funchal não facilitava o atendimento pastoral da população. Por isso, Fr. Rodrigo decidiu abando-nar este local e construir casa na vila em terrenos doados por benfeitores. O novo convento, que Soledade considera “um dos perfeitos da nossa Ordem”23, foi dedicado a S. Francisco. 1473 é a data da fundação inscrita no túmulo dum benfeitor insigne. Mas a conclusão das obras ainda deve ter demorado, provavelmente até ao início da década de 1480.

S. Francisco do Funchal veio a tornar-se o principal convento da Ilha pela grandiosidade do edifício, o número de religiosos e a variedade das suas actividades. Na igreja tinham sepultura as famílias antigas e nobres da cidade, algumas em jazigos e mausoléus de valioso mármore. A casa deve ter

————— 19 Frei Fernando da Soledade, História Seráfica Cronológica da Ordem de S.

Francisco na Província de Portugal (HS), III, Lisboa, 1705, nº. 51, p. 62 (livro I, cap. VIII).

20 HS, III, nº. 187, p. 126 (livro I, cap. XXVIII). 21 HS, III, nº. 187, p. 126 (livro I, cap. XXVIII). 22 HS, III, nº. 51, p. 62 (livro I, cap. VIII). 23 HS, III, nº. 588, p. 346 (livro III, cap. XXIV).

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albergado perto de 70 frades e era noviciado e centro de estudos filosófico--teológicos dos franciscanos do arquipélago24.

O convento mais conhecido e acarinhado da Madeira foi, porém, o de S. Bernardino nos arredores de Câmara de Lobos devido à marca de santidade que Fr. Pedro da Guarda aí deixou impressa.

Começou por ser um pobre ermitério, levantado por Fr. Gil de Carvalho entre uma ribeira (que depois se chamou Ribeiro dos Frades) e um contra-forte rochoso por volta de 1459. Como orago foi escolhido S. Bernardino de Sena, uma das chamadas “quatro colunas” da Observância italiana, que tinha sido canonizado pouco tempo antes, no Ano Santo de 145025. Em data incerta, a ribeira extravasou e destruiu o convento e parte da igreja. Pelo ano de 1480, tudo foi cuidadosamente reedificado por Fr. Jorge de Sousa em condições de maior segurança e com a igreja em cota mais elevada. No final do século XVI, informa Gaspar Frutuoso, viviam aí “continuamente sete ou oito frades, bons religiosos”26.

Antes da entrada de Fr. Pedro da Guarda em S. Bernardino, merece ainda referência um acontecimento da história franciscana comum aos arqui-pélagos da Madeira e dos Açores. Em 1476 Fr. Rodrigo de Arruda conseguiu autonomizar-se em relação ao Vigário Observante de Portugal, tornando-se Vigário com jurisdição sobre os conventos do Funchal, de Câmara de Lobos e de Nossa Senhora da Guia, em Angra, na ilha açoriana da Terceira. Este regime de autonomia vigorou apenas até 148527.

Foi neste ano que Fr. Pedro da Guarda veio para a Madeira.

————— 24 Os Estatutos marcavam-lhe 50 religiosos (HS, II, p. 677; livro XII, cap. XIV, nº.

4). Em 1739 contaria uns 70 pois nessa data o número global de frades dos quatro conventos então existentes na Ilha (Funchal, S. Bernardino, Santa Cruz e Ribeira Brava) perfazia exactamente a centena (Frei Apolinário da Conceição, Claustro Franciscano erecto no domínio da Coroa Portuguesa, Lisboa, 1740, p. 83 e 106) e os três últimos em conjunto não tinham habitualmente mais de três dezenas.

25 O primeiro convento de Portugal dedicado a S. Bernardino de Sena foi levantado nos arredores de Atouguia da Baleia, perto de Peniche, logo em 1451. Entre os seus fundadores conta-se o já citado Frei Rogério que aportara à Madeira por volta de 1430 e viria a falecer em Cabo Verde em 1466, morto pelo capitão Bartolomeu de Noli cuja vida pouco exemplar o missionário castelhano tinha verberado.

26Gaspar Frutuoso, op. cit., p. 93 e 579. Sobre a fundação e história posterior do convento, cf. Nelson Veríssimo, O Convento de S. Bernardino em Câmara de Lobos – Elementos para a sua história, Câmara de Lobos, 2002.

27 27 HS, III, nº. 588-592, p. 346-348 (livro III, cap. XXIV).

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3. FREI PEDRO DA GUARDA 1. Como introdução à exposição sobre Fr. Pedro da Guarda, indico em

primeiro lugar as principais fontes para a sua biografia. Faço-o não só por imperativos de metodologia, mas também para documentar a vasta difusão da sua fama de santidade dentro e fora da Madeira e do País.

O mais antigo resumo biográfico de Fr. Pedro foi redigido por Fr. Marcos de Lisboa num capítulo do vol. III das suas Chronicas de la Orden de los Frayles Menores, publicado em Salamanca em 1570, isto é, sessenta e cinco anos após a morte do Servo de Deus28. Esta obra, crónica oficial da Ordem Franciscana composta por mandato do ministro geral português Fr. André Álvares ou da Ínsua (1547-1553), foi traduzida em bastantes línguas europeias e, no conjunto, teve perto de cem edições.

A seguir vem um testemunho peculiar. Manuel Tomás na Insulana – poema épico em dez cantos sobre a história da Madeira, editado em Antuérpia em 1635 – dedica todo o canto oitavo, em 128 estâncias, a celebrar as virtudes e milagres do Servo de Deus.

Breves perfis biográficos aparecem em duas obras de meados do século XVII: duas anotações no Agiológio Lusitano dos santos e varões ilustres em virtude do reino de Portugal e suas conquistas do P. Jorge Cardoso29 e uma curta notícia no vol. VIII dos Annales Minorum de outro cronista oficial da Ordem Franciscana, o irlandês Fr. Luke Wadding (Waddingus na forma latinizada)30.

Em 1705 o cronista franciscano da Província de Portugal Fr. Fernando da Soledade escreveu uma biografia em seis capítulos no vol. III da História Seráfica31. É o texto de referência para a história de Fr. Pedro. Para a sua elaboração, o autor recorreu largamente a alguns processos organizados com vista à beatificação do Servo de Deus. —————

28 Crónicas da Ordem dos Frades Menores – Terceira Parte, reimpressão facsimilada da edição espanhola de Lisboa de 1615, Porto, 2001, fol. 255v-256r (livro IX, cap. XXXI).

29Agiológio Lusitano: 11 de Fevereiro (data erroneamente assinalada para a morte do Servo de Deus), I, Lisboa, 1652, reimpressão facsimilada, Porto, 2002, p. 405-406 e 412; e 26 de Maio (dia também indevidamente indicado para a trasladação dos seus restos mortais em 1597), III, Lisboa, 1666, reimpressão facsimilada, Porto, 2002, p. 410 e 415-416. Soledade coloca a trasladação a 28 de Janeiro (187b).

30 Annales Minorum, 1ª. edição, VIII (1501-1540), Roma, 1654, correspondente ao XVI (1516-1540) da 3ª. edição, Quaracchi, 1933, p. 324-325. Por lapso, Wadding situa a morte de Fr. Pedro em 1529.

31 HS, III: Relação da vida, morte e milagres do Servo de Deus Fr. Pedro da Guarda, p. 175-201 (livro II, cap. XII-XVII).

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Em 1732 Frei Apolinário da Conceição, na obra Pequenos na Terra, Grandes no Céu, também dedica um apartado a Fr. Pedro da Guarda, muito decalcado sobre o texto de Soledade32.

Finalmente, a partir da biografia elaborada pelo mesmo cronista e acrescentando dados posteriores relativos à devoção popular a Fr. Pedro nos séculos XVIII e XIX, o Boletim Mensal Diocesano da Obra de S. Francisco de Sales para Defeza e Conservação da Fé, editado no Funchal, publicou em 1897-1898 um extenso artigo anónimo sobre o Servo de Deus33.

Para complemento desta informação sobre as fontes, acrescento que Fr. Pedro ocupa lugar destacado em dois livros recentes: S. Francisco de Assis na Madeira de Fr. José António Correia Pereira, de 199334, e O Convento de S. Bernardino em Câmara de Lobos de Nelson Veríssimo, de 200235. Na presente comunicação utilizei de perto estas obras.

2. Seguindo também Fr. Fernando da Soledade como primeiro e autorizado guia36, passo a apresentar a biografia do Servo de Deus num quadro em forma de tríptico: sua vida, virtudes e prodígios; devoção e culto a ele tributados pelo povo madeirense; e processos instruídos para a sua beatificação.

2.1. A moldura exterior do percurso biográfico de Fr. Pedro reconstitui--se em poucas linhas.

Nasceu na Guarda em 1435, sendo filho de João Luís, tecelão de panos, e de Ângela Gonçalves. Com vinte anos feitos, por volta de 1455 entrou no noviciado da vigararia observante da província franciscana de Portugal, provavelmente no Convento de Santa Cristina, perto de Tentúgal, a duas léguas de Coimbra na direcção do mar. Quase um século depois, também iniciou a vida franciscana em Santa Cristina o supramencionado Fr. Marcos de Lisboa que viria a ser o primeiro biógrafo do Servo de Deus. —————

32 Pequenos na Terra, Grandes no Céu – Memórias históricas dos religiosos da Ordem Seráfica que do humilde estado de Leigos subiram ao mais alto grau de perfeição, I, Lisboa, 1732, p.174-180.

33 Boletim Mensal Diocesano da Obra de S. Francisco de Sales para Defeza e Conservação da Fé, 4 (1897) 1-9, 19-22, 36-44 e 61-65 e 5 (1898) 133-156, 176-181 e 193-202, reproduzido quase na íntegra na revista Girão, Câmara de Lobos, 1 (1992) 391-395, 447-454 e 493-510.

34 S. Francisco de Assis na Madeira. História – Lendas – Tradições, Braga, 1993, p. 115-129.

35 O Convento de S. Bernardino em Câmara de Lobos – Elementos para a sua história, Câmara de Lobos, 2002, p. 79-91.

36 Para reduzir o número de notas, a localização das abundantes citações de Sole-dade, que passarei a fazer, será indicada entre parêntesis no próprio texto com referência à página e à coluna.

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Concluído o noviciado, Fr. Pedro professou como irmão leigo e dedicou-se a trabalhos domésticos em diversos conventos do Reino, não identificados, durante cerca de trinta anos. Em 1485, com o beneplácito dos superiores, passou à Ilha da Madeira e incorporou-se no convento de S. Bernardino de Câmara de Lobos. Aqui serviu ainda vinte anos como cozinheiro e faleceu a 27 de Julho de 150537. Faz hoje quinhentos anos.

2.2. A parcimónia de dados disponíveis sobre as comunidades do Reino

a que pertenceu e as artes e ofícios que nelas praticou contrasta com a abundância de testemunhos sobre a sua caminhada de santidade, logo desde o seio da família.

Seus pais, escreve Soledade, eram “tementes a Deus e muito exercitados em ofícios de piedade, particularmente no agasalho dos pobres e hospedagem de peregrinos” (176a). Sob a sua orientação, Pedro foi crescendo, na Guarda, em idade e virtude, de tal modo que com “assombro se ostentava a toda a cidade, nem havia nela morador que não o alegasse por exemplo a seus filhos, querendo repreendê-los e doutriná-los” (176b).

Quando Pedro decidiu entrar na Ordem Franciscana não foi bater à porta do convento da Guarda, certamente por este ser de tendência claustral, menos estrita no campo da pobreza. Optou por uma casa da Observância, numa linha de maior exigência e fidelidade ao espírito e à letra da Regra de S. Francisco.

Durante o noviciado, o mesmo cronista salienta a “extraordinária reverência com que recebia o Santíssimo Sacramento do Altar” (178a) e sintetiza em frase lapidar o seu itinerário espiritual nesse ano de iniciação à vida franciscana: “o que muitos fazem com trabalho do mau para o bom, executou ele com suavidade do bom para o melhor” (178b).

Nos cinquenta anos da sua vida consagrada, o dia-a-dia de Fr. Pedro desenrolou-se à volta de três eixos fundamentais: penitência, oração e caridade. Algumas vertentes dos dois primeiros são características do modelo espiritual da Observância.

2.2.1. Soledade relata, com algum pormenor, as austeras penitências

praticadas pelo Servo de Deus. Só tinha um hábito e esse, velho, áspero e remendado. Nunca usou túnica interior, como permite a Regra, mesmo “morando em alguns conventos [do Reino] onde os rigores do tempo se —————

37 Soledade, HS, III, nº. 302, p.186 (livro II, cap. XIV), aproveita para corrigir inexactidões de outros autores sobre a data do falecimento de Fr. Pedro. Não foi a 11 de Fevereiro de 1505, como escreve Jorge Cardoso no Agiológio Lusitano, nem em 1529, conforme pretende Wadding nos Annales Minorum.

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experimentam intoleráveis” (179b). Também “sempre andou descalço pelas neves, geadas e mais asperezas de que se compõem as montanhas da sua pátria” (179b). Usava cilício e disciplinava-se todos os dias, mesmo em casa de seu pai quando lá se recolheu “algumas noites depois de religioso” (180b).

Ao vir para a Madeira, acrescenta o cronista, “aqui neste lugar, que elegeu como asilo da virtude, fez logo um teatro espaçoso de rigorosíssimas penitências”, pois “sentia que a luz da vida caminhava para o ocaso da morte e como tocha abrasada ostentou maiores exalações de luz” (180b). Frei Pedro “no Reino passava com o jejum de pão e água”, mas em S. Bernardino “nenhuma coisas destas gostava… comia algumas frutas e estas das mais rústicas e agrestes, produzindo-as aquela terra preciosas” (181a). Foi assim durante vinte anos, excepto nalgumas festividades em que tomava uma tigela de caldo misturado com água fria, algumas espinhas de peixe e um bocado de pão. Por outro lado, “chegando algum dia de sua devoção particular não lhe entrava na boca outra iguaria mais que a dos Anjos, recebendo o Corpo de Cristo Sacramentado” (181a). Enfim, a sua cama era um feixe de vides e, quando não a usava, “descansava em outra mais rigorosa, a qual era o pavimento da Igreja e outras vezes uma tábua” (182ab), servindo-lhe sempre de cobertura apenas o próprio hábito e de travesseiro uma pedra dura.

Não obstante, “todas estas austeridades, mortificações, asperezas e rigores”, conclui Soledade, o Servo de Deus “conservou a saúde com vigorosos alentos até às estâncias da morte” (182b).

Estas formas de penitência, hoje fora de uso, correspondiam ao espírito do tempo e procuravam exprimir a autenticidade da conversão interior no vigor e rigor dos procedimentos exteriores. Assim sendo, a penitência não se buscava como fim em si mesma. Era acompanhada pela oração e desdo-brava-se na caridade. Por isso, nota Fr. Marcos de Lisboa, Fr. Pedro “para si era mui austero, e benigno e caritativo para os frades e para todos os pobres”38.

2.2.2. O espírito e a prática da oração constituíram outra componente

dominante na vida do Servo de Deus. Em consonância com uma das coordenadas espirituais da Observância,

Fr. Pedro foi modelo acabado de oração contemplativa. Neste exercício, testemunha Soledade, “era arrebatado com êxtases tão admiráveis que neles foi visto repetidas vezes levantado da terra três côvados” (183b). Meditava amiúde nos mistérios da vida de Cristo, “aos quais era particularmente

————— 38 Fr. Marcos de Lisboa, op.cit., III, Lisboa, 1615, reimpressão facsimilada, Porto,

2001, fol. 256r (livro IX, cap. XXXI).

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afectuoso e os trazia sempre estampados no interior da sua alma” (178b). A busca de lugares ermos e retirados, também nota peculiar da Observância, foi um dos motivos que o trouxe a S. Bernardino para aqui beneficiar do recolhimento interior indispensável à contemplação.

Exercendo o ofício de cozinheiro, refugiava-se manhãs inteiras no coro ou numa lapa, imerso em contemplação fervorosa. Mas na hora própria a refeição estava pronta para ser servida aos frades “com tanta oportunidade e tão bom tempero que sem muitas especulações se conhecia feito pelas mãos dos espíritos celestiais” (181b). A cozinha do convento, por causa desta fama de Fr. Pedro, passou mais tarde a capela onde se celebrava missa.

2.2.3. Finalmente, a caridade de Fr. Pedro manifesta a fecundidade

cristã da sua oração e confirma a autenticidade eclesial das suas práticas de penitência.

O Servo de Deus raramente deixava o convento. Só o fazia por obediência ou para assistir enfermos, confortar aflitos, visitar encarcerados e proceder a obras semelhantes, “todas de piedade”, observa o cronista (182a), nomeadamente exortar à penitência “em público e em particular a muitos e graves pecadores” (179a).

Fr. Pedro também foi beneficiado, acrescenta Soledade, com a “graça especial de Deus no particular de fazer pazes entre a gente daquela Ilha, belicosa por natureza; e tal respeito lhe tinham todos que ao império de uma só palavra sua se moderavam, fazendo quanto o Servo de Deus dispunha” (182a).

No convento, a caridade do Servo de Deus manifestou-se no serviço aos confrades e no atendimento dos pobres que batiam à porta a mendigar. Em ambos os casos, Soledade classifica de “esmeradíssimo” (183b) o desempenho de Fr. Pedro. As crónicas registaram não poucas situações em que a comunidade e os pobres foram socorridos graças a “milagres evidentes e multiplicados” (183b).

2.3. Para conclusão da biografia do Servo de Deus, resta considerar os

dons sobrenaturais de que terá sido agraciado, bem como os prodígios e milagres a ele atribuídos em vida e após a morte.

Completando o que acabo de referir a respeito da sua caridade, o pão aparecia na arca do convento de S. Bernardino quando os mendigos o reclamavam. Num dia de tempestade, quando a enchente da ribeira impedia os frades de a atravessar para se abastecerem, por intercessão de Fr. Pedro um moço, “peregrino no mundo e natural da glória” (184b), bateu à porta do convento com um mimo para a refeição dos frades. O milagre do pão

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“aconteceu repetidas vezes” (184b), bem como o do azeite, do peixe e da carne. Na hora própria o Servo de Deus encontrava na portaria aquilo de que a comunidade precisava.

Soledade, por sua vez, assegura que ele “teve o dom da profecia… penetrava o coração de todos, alcançando os segredos deles… de longe via as almas dos que morriam e sabia o estado a que eram levadas” (183a).

Ao avizinhar-se a morte, Fr. Pedro pediu a um irmão leigo que lhe fizesse a cova, informando-o com precisão da hora do passamento. Quando faleceu, “os sinos do convento, agitados de superior impulso, começaram a dobrar, sem que os movesse pessoa alguma”, acrescenta Soledade (186b). Acudiram os frades e acharam-no “com os braços em cruz, vestido no seu hábito e lançado com muita compostura sobre o feixe de vides que na vida lhe servira de descanso” e “exalando fragrâncias tão activas como se estivera embalsamado com âmbares preciosos” (186b).

Acorreram também ao convento os habitantes da Ilha “em concursos nunca vistos”, anota Soledade, e, acrescenta, “como a devoção que lhe tinham na vida, se apurou com a experiência das maravilhas da morte, entrou a Fé buscando diante de Deus a sua intercessão e começaram a chover do Céu os milagres” (186b.187a).

A 28 de Janeiro de 1597, por ocasião da abertura do túmulo de Fr. Pedro, um camponês, que tinha assistido ao acto, levou terra da sepultura e aplicou-a sobre um filho enfermo, o qual se curou de repente. Daí proveio a tradição de se aplicar aos enfermos terra do sepulcro do Servo de Deus. Escrevendo em 1705, Soledade testemunha que “ainda hoje pretendem esta terra salutífera como remédio universal de todos os males” e acrescenta que “nunca falta esta terra miraculosa a quem a deseja” apesar de ser “tanta a que tem saído desta cova por espaço de cem anos que dela bem se podia formar uma grande serra” (188a). O caso mais recente desta prática, de que tenho notícia, data de 27 de Abril de 189839.

Desde a morte de Fr. Pedro até 1597, o autor do Agiológio Lusitano, P. Jorge Cardoso, regista 600 milagres “autorizados”, isto é, reconhecidos pelos inquiridores que organizaram o primeiro processo de beatificação do Servo de Deus40.

Por sua vez, o autor anónimo do artigo sobre o Servo de Deus publicado em 1897-1898 no Boletim Mensal Diocesano da Obra de S. Francisco de Sales para Defeza e Conservação da Fé apresenta uma resenha de 114 —————

39 Boletim Mensal Diocesano da Obra de S. Francisco de Sales para Defeza e Conservação da Fé, 5 (1898) 199-200.

40 Agiológio Lusitano, I, reimpressão facsimilada da edição de 1652, Porto, 2002, p. 406.

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milagres contidos nos processos de beatificação de 1623, 1652 e 1655. Trata--se de curas na esmagadora maioria dos casos, muitas delas obtidas mediante aplicação de terra da sepultura do Servo de Deus41.

3. Passo agora ao segundo painel do tríptico desta exposição, a saber: a

devoção e o culto a Fr. Pedro da Guarda na Madeira. Ainda ele vivia no Reino e já, informa Soledade, “todos o aclamavam

Santo e particular amigo de Deus, implorando o seu patrocínio nas adversi-dades da fortuna, ruínas da alma e misérias do corpo” (180a). As graças recebidas por seu intermédio suscitavam a admiração e os aplausos das pessoas a ponto de lhe parecer necessário “segurar-se dos assaltos da vaidade” (180a). Por isso, decidiu transferir-se para a Madeira onde, julgava ele, poderia viver ignorado.

Não foi o caso. A população da Ilha tributou-lhe igual afecto e devoção. Depois da sua morte, logo cresceu a veneração popular a Fr. Pedro.

Atribuiu-se-lhe a carinhosa designação de “Santo Servo de Deus”. O seu culto estendeu-se a toda a Ilha com a sua imagem colocada em todas as igrejas, “dando-lhe culto, como o têm os santos canonizados” (187a).

S. Bernardino tornou-se local de afluência de devotos e peregrinos. Era a romagem de maior concurso na Ilha, segundo testemunha Henrique de Noronha em 172242. No convento levantaram-se três capelas em honra do Servo de Deus: na cozinha onde ele trabalhou, na lapa onde se recolhia a meditar e, depois da exumação dos seus restos mortais em 1597, no local da sepultura.

Em S. Bernardino também se fazia festa a Fr. Pedro todo os anos como refere Jorge Cardoso no Agiológio Lusitano escrito em 1652: celebrava-se--lhe “comummente a missa de Todos-os-Santos, por não estar ainda cano-nizado”43. Soledade acrescentará em 1705 que um Bispo, não identificado, quis impedir essa festa, “mas, vendo as maravilhas do Servo de Deus e uni-versal aclamação das gentes, temeu os motins destas e venerou a santidade daquele” (187a).

Depois da exumação de 1597, o que restava dos ossos de Fr. Pedro foi colocado num nicho da capela-mor da parte do Evangelho onde esteve em grande veneração até Novembro de 1619. Nessa altura o nicho foi aberto e retiraram-se três ossos de suficiente dimensão para outros conventos da Ilha. Os restantes despojos continuaram no mesmo local até 1667, data em que

————— 41 Art. cit., 5 (1898) 176-181 e 193-202. 42 Henrique H. de Noronha, op.cit., p. 330-331. 43 Agiológio Lusitano, III, p. 415

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passaram para a capela construída sobre a sua sepultura, “sendo milagre contínuo a fragrância que exala sucessivamente”, anota Soledade44.

Como é sabido, o Papa Urbano VIII em 1625 e 1634 reformulou a legislação sobre os processos de beatificação e canonização e proibiu todo o culto anterior à beatificação. Mas explicitou que esta norma não se aplicava aos casos de culto imemorial, isto é, prestado há mais de cem anos. Era o caso de Fr. Pedro da Guarda. Deste modo, o seu culto não foi deslegitimado pelas disposições canónicas de Urbano VIII.

No século XIX, em 1835, registou-se um episódio triste na história multicentenária do culto a Fr. Pedro da Guarda. Nessa altura de implantação do Liberalismo, a generalidade das dioceses do país era governada por Vigários Capitulares impostos pelo Governo sem o beneplácito da Santa Sé. Foi uma situação de “cisma não declarado” na Igreja em Portugal, que se prolongou até 1841 quando se reataram as relações diplomáticas entre Portugal e a Santa Sé.

Por ironia da história, o Vigário Capitular do Funchal era o egresso franciscano Cónego António Alfredo Braga, muito influenciado pela ideologia liberal e que considerava nefasto obscurantismo o culto prestado a Fr. Pedro da Guarda. Por isso, decidiu suprimir essa devoção popular. A 2 de Junho de 1835 efectuou uma visita extraordinária ao antigo convento de S. Bernardino. Mandou queimar a imagem e as relíquias de Fr. Pedro da Guarda “para desengano perpétuo das almas crédulas ou supersticiosas”, como ele próprio esclareceu numa circular enviada no dia seguinte a todos os párocos da Diocese. Nesse mesmo documento, o Vigário Capitular proibiu qualquer forma de culto a Fr. Pedro sob pretexto de que ele não tinha sido beatificado do modo expresso no Direito Canónico.

Apesar deste incidente de percurso, o culto ao Santo Servo de Deus, embora sofresse abrandamento, não se extinguiu. Uma retoma significativa verificou-se no final do século, por intermédio da Obra Diocesana de S. Francisco de Sales, com a publicação de um extenso artigo sobre o Servo de Deus em 1897-1898. Também contribuiu para o mesmo objectivo a acção da Ordem Franciscana Secular que manteve capela própria junto ao convento. A 18 de Julho de 1905, no quarto centenário do falecimento de Fr. Pedro, o Bispo D. Manuel Agostinho Barreto promoveu e presidiu a uma reunião extraordinária do Tribunal Eclesiástico do Funchal, que decretou a

————— 44 HS, III, nº. 306, p. 188 (livro II, cap. XIV).

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ilegitimidade da proibição do culto de Fr. Pedro pelo Vigário Capitular António Alfredo em 183545.

4. Concluo com uma breve apresentação do terceiro painel do tríptico

desta exposição: história do processo de beatificação de Fr. Pedro da Guarda. É uma história longa que passo a resumir nas suas grandes linhas.

Tanto quanto sabemos, elaboraram-se onze processos com vista à beatificação. Tudo indica que nem todos terão seguido para Roma.

O primeiro deve ter sido aberto em 1597, aquando da trasladação dos restos mortais do Servo de Deus para a igreja do convento. Provavelmente terá sido apenas uma recolha de milagres.

A seguir, organizou-se outro em 1620 e mais um em 1623. Este foi apresentado em Roma ao Papa Urbano VIII, o qual “mandou passar ordem em 30 de Agosto de 1625 para que o mesmo Bispo [D. Jerónimo Fernando] fizesse nova inquirição por autoridade apostólica” (193b). O processo pedido pelo Papa ficou concluído em 1628 e dele se fizeram duas cópias. Uma foi para Roma e perdeu-se por descuido dos agentes: outra ficou no Funchal, mas já estava incompleta em 1652.

Entretanto, apareceu publicado em Nápoles em 1626 outro processo para a beatificação do Servo de Deus.

Em 1652 o Deão Pedro Moreira, então Provisor do Bispado do Funchal em situação de Sé vacante, elaborou outro processo com novos casos de milagres (194a). Pelo mesmo ano, Fr. Baptista de Jesus organizou dois processos, um no Funchal e outro em Lisboa, e partiu para Roma, para tratar pessoalmente do assunto, mas regressou à Madeira sem nada conseguir. Soledade anota, a este propósito, que “nestas matérias têm mais eficácia a diligência e habilidade dos Procuradores do que o afecto particular dos devotos” (194a).

Seguiram-se ainda mais dois processos de milagres para efeito de beatificação: um em Lisboa em 1655 e o segundo no Funchal, mais tardio, no tempo do Bispo D. Frei Manuel Coutinho (1722-1739).

Os próprios Reis se interessaram pela beatificação de Fr. Pedro da Guarda e cuidaram de garantir receitas para ocorrer aos encargos do processo. Com essa finalidade saíram provisões régias em 1653, 1729 e 1753 (de D. João IV, D. João V e D. José I, respectivamente) determinando que metade das condenações judiciais decretadas na Madeira fosse canalizada para a beatificação do Servo de Deus.

————— 45 Cf. Quinzena Religiosa da Ilha da Madeira, 1 de Agosto de 1905, nº. 108, p.

237, cit. por J. A. Correia Pereira, S. Francisco de Assis na Madeira, p. 127-128 e 174.

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O último processo foi organizado no Funchal por iniciativa de D. Manuel Agostinho Barreto em 1905, no quarto centenário do passamento de Fr. Pedro da Guarda. Algumas peças do mesmo saíram publicadas em forma avulsa em 1908. Há notícia de alguma correspondência sobre a situação deste processo em Roma em 1912 e 1926. Neste mesmo ano o P. João Vieira Caetano, para apoio documental do processo, escreveu uma monografia intitulada O Santo Servo de Deus Frei Pedro da Guarda (1435-1505): breve resumo da sua vida, culto e milagres que lhe são atribuídos e que não chegou a ser impressa.

Por fim, acrescento duas intervenções de autoridades civis junto da Santa Sé a respeito de Fr. Pedro da Guarda. Em 24 de Novembro de 1624 a Câmara Municipal da Guarda pediu a sua beatificação e a 24 de Outubro de 1905 (ano jubilar do Servo de Deus) a Câmara Municipal de Câmara de Lobos solicitou o restabelecimento do “culto público e oficial do Santo Servo de Deus”46.

Decorridos vários séculos, a causa de beatificação de Fr. Pedro da Guarda continua em aberto.

————— 46Texto publicado na revista Girão, Câmara de Lobos, nº. 10, 1993, p. 492.

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TAREFAS DA TEOLOGIA FRANCISCANA1

Por Fr. Fernando Uribe, ofm

————— 1 Conferência proferida no simpósio em honra de Fr. Carlos Balic. Foi publicada

em “Memoria eius benedictione. Atti del Simposio internazionale per il 1º centenario della nascita di P. Carlos Balic (1899-19999, a cura di G. Calvo – S. Cecchin (Citá del Vaticano 2001) 219-233.

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TAREFAS DA TEOLOGIA FRANCISCANA

“Aprouve… confiar à nossa pequenez a redacção do memorial dos

actos e palavras do nosso glorioso pai Francisco para conforto dos presen-tes e memória dos vindouros” 2(2C 1,1).

Assim começa Tomás de Celano a segunda parte do Memoriale in desi-derio animae, mais conhecida como Vida Segunda de S. Francisco. (Omiti-mos parte da introdução que está relacionada com o contexto em que foi proferida a conferência, durante o simpósio em honra do P. Carlos Balic, nos cem anos do seu nascimento). Esta frase de Celano mostra-nos como ao celebrar a memória dos pais, os filhos são não só exortados ao amor pelos pais, mas são também estimulados a imitar o seus feitos e a tomarem com-promissos em relação ao futuro. Com efeito, se se trata de um amor verda-deiro, não pode voltar-se só para o passado, mas deve também abrir perspec-tivas para o futuro, de maneira a que a memória se torne viva e se prolongue ao longo da história.

Considerar o valor e o significado de homens como Carlos Balic e as obras por ele realizadas, constitui um desafio para nós e um convite a cons-truir o futuro, não repetindo os mesmos esquemas, nem retomando as mes-mas propostas teológicas, hoje talvez superadas em alguns aspectos, mas lou-vando o seu amor pela verdade, a sua decisão por contribuir na construção do Reino de Deus, a sua valentia por terem aberto caminhos no meio das dificul-dades e a sua fidelidade aos ideais franciscanos.

Pergunto-me em que consiste este desafio e creio que para uma institui-ção como o Pontifício Ateneu Antoniano e em particular a sua Faculdade de Teologia, incluindo a Cátedra de Estudos Mariológicos, associada à Acade-mia Pontifícia Mariana Internacional, isso comporta o contribuir à reflexão teológica com perspectivas abertas ao futuro. Quando falo do futuro, quero advertir que não desejo cair na retórica, tão abundante nestes primeiros anos do terceiro milénio. Quero referir-me a algo mais específico e determinante e —————

2 2C 1,1.

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duma amplitude maior que a simples sucessão das horas e dos dias e a passa-gem dos anos.

Ainda que o termo “futuro” exprima uma categoria inexistente, enquanto se refere a algo possível, que, todavia, ainda não é realidade, parece-me que é lícito falar de uma “teologia do futuro” na medida em que os homens que tratam sobre Deus sabem captar os sinais da sua palavra dis-persos no momento presente (semini verbi), os relacionam com os dados da revelação e os projectam com toda a força profética para as exigências dos tempos novos. Desde este ponto de vista, a teologia não se reduz a uma espé-cie de “arqueologia teológica”, dedicada à narração e à reflexão teológica do passado, mas busca respostas aos interrogantes do homem contemporâneo, acompanhando-o nos seus grandes desafios. Neste sentido a teologia do futuro garante o futuro da teologia.

Mas não é possível fazer teologia “ex nihilo”, prescindindo ou igno-rando o passado. Para além do dado fundante da Revelação, qualquer teolo-gia necessita, pelo menos como ponto de referência, dos dados da reflexão teológica precedente. Fazer teologia com perspectivas de futuro, implica necessariamente entrar numa tensão dialéctica entre a sabedoria dos tempos que nos precederam e os desafios dos tempos novos.

Numa instituição como o Ateneu Antoniano, a sabedoria do passado tem uma característica inteiramente particular, uma vez que implica colocar-se na esteira dos herdeiros de Francisco de Assis. É uma herança com oito séculos de história, ao longo da qual se sucederam homens de grande dimensão no campo do saber e da santidade. Bastaria pensar no doutor seráfico S. Boa-ventura e no doutor subtil, beato Duns Escoto, os dois luminares que guiaram o primeiro século da reflexão franciscana e que foram o ponto de referência de tantos outros irmãos que, ao longo dos séculos, contribuíram de forma eminente para a reflexão teológica da Igreja católica. Trata-se de um passado glorioso, mas muito incómodo para nós, porque, como disse um autor moderno, “não é fácil ser filhos dignos de antepassados tão gloriosos”3. De todos estes pensadores e mestres, diz-se que constituem a “Escola Fran-ciscana”, título criado na primeira metade do século XX4 e que entrou na Carta Apostólica Alma parens do Papa Paulo VI5, mas que não vou referir

————— 3 J. LANG, « Gibt es heute eine franziskanische Theologie ?», em Franziskanische

Studien 57 (1975) 40. 4 Não se deve confundir esta intenção recente de unificar numa só Escola os

diversos mestres franciscanos do passado com a “Escola Escotista”, a “Escola Boaventuriana” ou outras, das quais se fala já no século XVI.

5 Cf. Acta Apostolicae Sedis 58 (1966) 611.

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por causa dos problemas que comporta6 e que não vem para o caso mencio-nar aqui. No campo específico da teologia, eles desenvolvem uma reflexão teológica muito rica, mesmo que nem sempre unitária o que, de algum modo, faz com que não seja de todo exacto dizer que elaboraram uma “teologia franciscana”. Trata-se duma distinção semântica, com alguma razão, na medida em que o pluralismo da reflexão teológica feita pelos franciscanos ao longo da história não nos permite catalogá-la integralmente numa determi-nada escola, sistema ou corrente de pensamento. Sem embargo, apesar da diversidade na reflexão teológica dos franciscanos ao longo dos séculos, podemos assinalar alguns elementos comuns que, em certo sentido, dão corpo a uma tradição própria, à qual em sentido amplo se poderia dar o nome de “teologia franciscana”.

Tomando-a dentro destes limites, podemos adoptar a definição dum estudioso contemporâneo que diz que a teologia franciscana “é uma leitura e uma confrontação como as problemáticas socioeconómicas, espirituais, reli-giosas, etc., de um determinado contexto cultural, levada a cabo a partir do interior da experiência da fé cristã, vivida por quantos que se consideram e proclamam seguidores de Francisco de Assis”7.

Assim entendida, não se pode identificar a Escola Franciscana exclusi-vamente com um ou alguns mestres do passado, nem sequer se pode identi-ficá-la com uma lista de teses teológicas estabelecidas de uma vez para sem-pre. Apesar de tudo, pode-se assinalar alguns elementos comuns que caracte-rizam, de certa forma, o estilo e as preferências temáticas da reflexão teoló-gica franciscana ao longo da história. Entre estes elementos atrever-me-ia a indicar cinco que oferecem um perfil bastante claro da nossa tradição teoló-gica e que considero de especial valor para todos os tempos.

1. Em primeiro lugar, é uma teologia que se deve considerar, antes de

tudo, como uma ciência prática, não se reduzindo a um exercício racional nem ao conhecimento em si mesmo, mas que faça com que a verdade reve-

————— 6 Tomo neste caso o termo Escola segundo a aceitação que, por extensão, tem esta

palavra em muitas línguas modernas: “Conjunto de pensadores, escritores, cientistas, etc., que seguem e desenvolvem as teorias, os métodos, o estilo, o pensamento, etc., de um mestre, ou que seguem um mesmo método na linha de pensamento; às vezes, mais em abstracto, a linha seguida, isto é, o conjunto de caracteres que informam e unificam a produção de um grupo de artistas, artesãos, poetas, pensadores, cientistas, etc., de uma época ou de uma região…” (Lessico Universale Italiano di lingua, lettere, arti, scienza e tecnica, Roma, t. XX, 1978, 409).

7 G. IMMARRONE, “Possibilitá, senso e compiti di una “Teologia francescana” en sé e per il momento attuale”, em Miscellanea Francescana 78 (1978) 344-345.

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lada se converta em saber que se reflecte em forma de vida e como serviço apostólico. Isto quer dizer, por um lado, que se alimenta da prática de uma forma de vida iluminada pela vida de Francisco de Assis, decantada segundo as exigências do momento histórico; por outro lado, que não seja uma teolo-gia de gabineta, alheia da vida concreta, mas uma busca que tem em conside-ração a cultura e o momento histórico em que se vive, que escuta os clamores e as aspirações do homem contemporâneo, ao qual oferece a contribuição da sua reflexão.

2. Em segundo lugar, é uma teologia em que a relação do homem com

Deus se fundamenta na liberdade e no amor, inflamada no “ardor seráfico”8 que distinguiu os grandes mestres franciscanos. Neste sentido a vontade tem um primado determinante que permeia todas as dimensões da vida humana, seja na relação consigo mesmo, com os outros, com as criaturas e com o Criador. Este voluntarismo constitui precisamente uma das causas da rica diversidade e do exuberante pluralismo de pensamento franciscano ao longo dos séculos, e que impede que se possa enquadrar dentro dos parâmetros de determinada escola.

3. Uma terceira característica da teologia franciscana latente já desde as

suas primeiras manifestações, é a marca do cristocentrismo, com o acento sobre o primado de Jesus Cristo e da sua realeza universal no desígnio divino de salvação. Jesus cristo é considerado como Summum Opus Dei, o Summum Bonum in entibus, para usar a terminologia escotista, é o motivo supremo da criação. A teologia franciscana destaca a grandeza da misericórdia de Deus para com os homens em Jesus Cristo e põe nela o fundamento da humildade e da pobreza. Jesus Cristo é a máxima glorificação da Trindade e ao mesmo tempo a realização pragmática mais perfeita possível do ideal do ser humano.

4. Com o Verbo Encarnado e em estreita união com Ele, a teologia fran-

ciscana dedicou sempre uma particular atenção à Bem-aventurada Virgem Maria e o seu papel peculiar no plano divino de salvação, particularmente nas dimensões que são mais próximas à condição do homem viator. Não sem razão, os dois últimos dogmas marianos, o da Imaculada Conceição e da Assunção, foram, em grande parte, preparados e tornados possíveis graças ao trabalho infatigável dos mestres franciscanos. —————

8 Esta expressão, aplicada a Francisco por Boaventura na Legenda Maior (“angelicus deputatus afficio incendioque seraphico totus ignitus”, Prol 1,6), não só caracterizou o Poverello ao longo da história (o seráfico Francisco), mas também a reflexão teológica franciscana.

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5. Um quinto elemento muito característico e que atrai com muita força a atenção dos estudiosos nos últimos tempos é a chamada “utopia da frater-nidade universal e cósmica” no qual se afirma uma relação íntima entre os homens de todas as raças, de todas as culturas e de todas as religiões (frater-nidade universal), e entre os homens e todas as criaturas (fraternidade cós-mica), seja ao nível da forma de vida, seja na concepção do ser humano e do universo. Tal utopia baseia-se na experiência mesma de Francisco de Assis e constitui, hoje, um dos aspectos mais típicos do seu carisma e que mais cati-vam o homem contemporâneo.

Estas características, e outras mais, deveriam estar presentes hoje, não para serem contempladas como grandes intuições intocáveis e conquistas teológicas definitivas, nem como panaceias para toda a classe de problemas teológicos que vêm ao nosso encontro. Uma teologia que possa ser rotulada de franciscana, não deveria ser considerada como um factum mas como um faciendum, isto é, como uma realidade em continuo devir9. Durante a pri-meira metade do século XX fez-se um meritório trabalho de compilação e de sistematização da teologia franciscana desde o ponto de vista histórico--crítico, e fizeram-se esforços para sintetizar, no que então se chamava “Escola Franciscana”, as diversas expressões históricas da teologia e da filo-sofia desenvolvidas por diversos mestres da Ordem menorítica (nestes casos “Escola Boaventuriana” e “Escola Escotista”, etc.).

Creio que chegou o momento de dar um passo em fente, de sermos mais criativos, procurando oferecer uma resposta adequada às exigências do momento presente, inspirada, certamente, nos grandes princípios do passado. Mas tais princípios devem olhar-se com a distância crítica que permite des-pojá-los do revestimento dos condicionamentos socioculturais em que nasce-ram e de identificar os valores permanentes, válidos também para o momento actual e para o futuro. Se se considera que a teologia franciscana é uma refle-xão em contínua tensão dialógica com a grande tradição vivida e teologal da Ordem franciscana, mas sempre aberta e sempre em acto, se a olharmos, pois, como uma reflexão sobre uma realidade em contínua realização, então podemos dizer que há um futuro para a teologia franciscana.

Sem a pretensão de compilar um manifesto para a teologia franciscana do futuro (não seria este o lugar para tal proposta), desejaria simplesmente sublinhar três dos elementos característicos da forma franciscana de fazer teologia mencionados atrás, que julgo de grande importância para o momento actual, propondo-os como pontos de partida para um trabalho de reflexão,

————— 9 Cf. A.de VILLAMONTE, “Es que necessitamos una teologia franciscana?”, em

Estudios Franciscanos 87 (1987) 683-718.

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certamente não fácil, mas que, de certa maneira acolhe o desafio que nos é proposto nesta comemoração que estamos a encerrar.

A. Em primeiro lugar, desejaria chamar a atenção sobre o carácter prá-tico da teologia franciscana. Isto significa que, para nós, a reflexão teológica exige que se considere hoje a situação actual e concreta, a nível pessoal, comunitária e do mundo que nos rodeia, como ponto de partida. Tal realidade deverá necessariamente ser iluminada com o mistério do amor misericor-dioso de Deus para com os homens, em Jesus Cristo. Daqui deve brotar a “sequela franciscana”, que consiste fundamentalmente no despojamento com Cristo e em Cristo através do que a moderna terminologia franciscana cos-tuma chamar de menoridade10. Conhecer o pensamento de Francisco de Assis e colocar-se nas raízes das suas matrizes espirituais deve ser sempre um dos pontos de referência e de verificação no processo de actualização da teologia franciscana, mas não só. É necessário também aprender dos grandes mestres que, como Boaventura, souberam fazer a simbiose entre o viver e o pensar as realidades divinas, como ele mesmo nos ensina num texto do Itine-rarium mentis in Deum, citado pela Optatam totius, ao qual queremos recor-dar, dada a sua beleza: “(Ninguém) acredite que basta a leitura sem a unção, a especialização sem a devoção, a busca sem o encanto, a prudência sem a exaltação, a consagração sem a piedade, a ciência sem a caridade, a inteli-gência sem a humildade, o estudo sem a graça de Deus, o espelho sem a sabedoria inspirada por Deus”11. Noutros termos, isto quer dizer que se necessita fazer teologia contemplativa, orante, existencial12.

Sem uma prática concreta iluminada pelo seguimento de Cristo, à maneira de Francisco, falta ao teólogo franciscano os verdadeiros estímulos para poder desenvolver uma tarefa de reflexão e de sistematização de um pensamento que não seja uma simples arquitectura racional. Privilegiar a dimensão prática no fazer teológico, não significa cair num activismo des-—————

10 Cf. J. LAUTER, “Franziskanische Theologie für unsere Zeit”, em Wissenschaft und Weisheit 33 (1970); segundo este autor, só a partir do descobrimento de um seguimento assim entendido se pode levar a teologia franciscana ao seu núcleo central e ao seu fim.

11 S. BOAVENTURA, “Itinerarium mentis in Deum”, Prol., n. 4, in Optatam Totius 16, nota 32. Não menos interessante é o texto da Instrução Donum veritatis, n. 7, com o qual a Congregação para a doutrina da fé, citando o comentário de Boaventura ao prólogo do livro das Sentenças (q. 2, ad 6) que se refere à vocação do teólogo nestes termos: “A teologia que obedece ao impulso da verdade que tende a comunicar-se, nasce também do amor e do dinamismo: no acto de fé o homem conhece a bondade de Deus e começa amá-lo, mas o amor deseja conhecer sempre melhor aquele a quem ama.”

12 Cf. J. LAUTER, Franziskanische Theologie für unsere Zeit, 1.

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controlado, ignorando a importância da dimensão analítica e especulativa, componente necessária da reflexão teológica. A actividade teológica deve saber confrontar-se e dialogar com os grandes temas do seu próprio tempo e as promessas do Evangelho, mas sempre em conexão existencial com o pen-samento e a prática de Francisco e da Família Franciscana ao longo da histó-ria, num trabalho ao mesmo tempo hermenêutico e pastoral. Desta forma se supera o perigo de reduzir as nossas cátedras de teologia a uma actividade meramente histórico-teológica.

Uma autêntica teologia franciscana hoje, não deveria ser outra coisa que a elaboração teórica, isto é, a iluminação e a organização intelectual e racio-nal da doutrina com vista à prática. É fazer com que à vida, segundo o Evan-gelho, corresponda uma teologia da Palavra, ou melhor ainda, uma tradução e um desenvolvimento no plano doutrinal da forma vitae de Francisco e de seus irmãos no contexto socio-cultural em que se movimenta, pensa e traba-lha o franciscano de hoje13. Isto significa o regresso da prioridade da ortopraxis sobre a ortodoxia que nos leva a momentos mais férteis da refle-xão teológica, também na Família Franciscana, e nos recorda que o cristia-nismo é uma forma vitae, antes de ser uma forma mentis. Da experiência comunitária dos conteúdos da fé, a teologia sente-se estimulada a uma refle-xão crítica sobre si mesma e sobre alguns erros cometidos no passado.

Neste sentido se expressava recentemente o Cardeal Ratzinger numa entrevista sobre o futuro da teologia, com as seguintes palavras cuja impor-tância merece uma transcrição textual: “Creio, dizia o Cardeal, que se pode demonstrar que todos os grandes teólogos sentem que uma nova elaboração da teologia só é possível se primeiro o elemento profético abrir uma brecha. Talvez se tenham construído sistemas cada vez mais precisos, mas a abertura verdadeira, desde onde pode surgir de novo a grande teologia não é produto do trabalho racional da teologia, mas de um impulso carismático e profético. E, neste sentido, afirmo – conclui o Cardeal –, que a profecia e a teologia devem caminhar ao mesmo passo. A teologia, como ciência teológica em sentido estrito, não é profética, mas só pode chegar a ser realmente teologia viva, quando está movida e iluminada por um impulso profético14”.

B) Un segundo elemento típico da teologiafía franciscana a merecer destaque, é o seu carácter tipicamente cristocêntrico. Para compreender melhor as implicações desta característica e as repercussões que deveria ter —————

13 G., IAMMARRONE, Possibilitá, senso e compiti di una Teologia franciscana en sí y para el momento attuale, 347.

14 N. C., HVIDT, Il problema della profezia cristiana. Intervista al Cardinale Jo-seph Ratzinger, in 30 Giorni, n. 1, 17 (1999) 88.

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na reflexão teológica do futuro, vale a pena recordar a definição que a Summa Halensis nos traz da teologia:

“A teologia é uma ciência que trata sobre a essência divina que nos foi revelada através de Cristo para nossa salvação”15. Notamos que as três dimensões – Deus, Cristo e o homem –, que numa elaboração teológica harmónica e equilibrada conformam o dado global da revelação, a pessoa de Cristo tem um papel importante para a teólogo, enquanto Revelador do Deus Trino e mediador entre o Criador e a criatura.

Isto não tira nada ao carácter teocêntrico que desde sempre teve a teologia franciscana, enquanto uma reflexão que se faz a partir de Deus, em Deus e por Deus, como o expressa Boaventura na parte final do Prólogo do Breviloquium, num texto que já se tornou clássico:

“Posto que a teologia é um discurso sobre Deus e sobre o primeiro princípio, dado que, enquanto ciência é doutrina profundíssima, ela mesma reconduz todas as coisas a Deus, princípio primeiro e supremo; por isso ao dar a razão de todas as coisas que estão contidas neste opúsculo, ou tratado, procurei tomá-la do primeiro princípio, para mostrar assim que a verdade da Sagrada Escritura vem de Deus, trata de Deus, está de acordo com Deus e é para Deus. Desta maneira esta ciência aparece como única, ordenada e se chama teologia com todo o merecimento”16.

Para este grande mestre da teologia franciscana, significa isto que a perspectiva de Deus é a que deve predominar na reflexão teológica, mas isso não significa que se ignorem as outras; pelo contrário, também o homem e o cosmos devem entrar em tal perspectiva. Como diz um estudioso que recentemente se ocupou deste temática, “a teologia franciscana, fiel à sua própria identidade, deverá assinalar o sentido último da vida humana na glorificação de Deus, mas ao mesmo tempo deve escutar as perguntas do humanismo que, a partir duma leitura teológica dos acontecimentos, podem também ser entendidas como vindas de Deus”17. Se, por um lado, a reflexão teológica contemporânea deve dar nova vida à dimensão teocêntrica e latrêutica da mensagem, por outro lado, não é menos prioritária a tarefa de contribuir com uma nova luz para que o homem encontre o verdadeiro sentido da sua existência, o seu lugar no cosmos e a sua missão no mundo e na história.

————— 15 Theologia est scientia de substancia divina cognoscenda per Christum in opere

reparationis. (A.de Hales, Summa Theologica, I, introd. Q. I, cap. III, resp. I. 6a. Cf. ib., I, 13b; t. IV, Prolegomena CCII.

16 S. BOAVENTURA, Breviloquio, Pról. 6. 17 A. DE VILLAMONTE, Es que necessitamos una teologia franciscana? 516.

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A cultura posmoderna foi invadida por um tecnicismo sofisticado, o que põe em causa a predominância do antropocentrismo que, na nossa época, parece ter chegado ao ponto de esgotamento, o que contribui para desvios na reflexão teológica contemporânea. O regresso a um são teocentrismo em Cristo, poderia projectar uma nova luz e dar um ar de frescura à Ordem franciscana, que parece ter perdido a própria identidade, e a um mundo tolhido por tantas luzes artificiais oferecidas pela sociedade de consumo. Consideremos a este propósito que a reflexão teológica do futuro deveria tirar proveito das muitas intuições e conclusões válidas deixadas pela dimensão antropocêntrica da reflexão teológica do século XX. Referimo-nos a tudo o que se refere à problemática do homem contemporâneo, como a corporeidade, a temática da pertença à polis e a responsabilidade na sua construção, sujeito como está às múltiplas pressões da vida social e econó-mica. Assim se evita o perigo de cair nos vícios do espiritualismo idealista, intimista e individualista, que caracterizou em muitos aspectos a teologia clássica, ausente das realidades intermundanas.

A dimensão humana, que pertence ao conteúdo da Revelação, adquire o seu verdadeiro significado à luz da outra dimensão fundamental: Jesus Cristo. Sendo o cristocentrismo uma das notas características da teologia franciscana, nele se deveria encontrar a inspiração e o ponto de partida duma reflexão que responda às necessidades e às expectativas do homem contem-porâneo, particularmente dos novos leprosos e crucificados que deambulam pelas ruas das cidades, os verdadeiros escravos do consumismo e das ideologias, vítimas duma desigual distribuição dos bens materiais. São estas situações que encontrariam uma luz da forma franciscana de compreender e de viver o seguimento de Jesus Cristo pobre e humilde e de reflexão sobre o despojamento de Deus, a sua misericórdia e o seu amor presente ontem, hoje e sempre na pessoa de Cristo. Esta reflexão foi sempre uma das mais atraentes da teologia franciscana clássica. Com efeito, para os grandes mestres franciscanos, o homem é sempre o centro do universo, o cume da criação. Criado à imagem e semelhança de Deus, é senhor do mundo e porta--voz de todas as criaturas perante o criador. A reflexão franciscana cultivou sempre um conceito elevado da dignidade humana, do lugar do homem no cosmos, na história e perante Deus. O ponto de referência para a valoração teológica do homem é a sua relação com Cristo, do qual é imagem. Regressar aos critérios que estão na génese do seu carisma e inventar soluções adequadas às exigências actuais, levaria os franciscanos ao seu núcleo central e específico18.

————— 18 Cf. Lauter, Franziskanische Theologie für unsere Zeit, 5.

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C) Para finalizar, parece-me importante mencionar o papel que deveria ter na nossa reflexão o tema da fraternidade universal e cósmica. Mesmo que não tenha sido dos temas mais desenvolvidos pelos primeiros mestres da teologia franciscana, creio que é válido como um dos mais urgentes desafios que temos num futuro imediato. Entre as grandes aspirações da humanidade actual, transtornada com o processo acelerado de globalização, cada vez mais estimulada a um diálogo com o cosmos, a fraternidade universal ocupa um lugar cimeiro. A teologia franciscana deveria sentir-se fortemente inter-pelada, sentindo a obrigação de oferecer uma contribuição específica neste campo. A sua proposta de fraternidade universal está fundamentalmente guiada pela gratuidade e liberalidade, excluindo em absoluto o interesse pessoal e a utilidade egoísta. Trata-se duma utopia que encontra a sua razão de ser no amor, elemento que, mais que em nenhuma outra corrente de teologia cristã, está no centro e nos parâmetros fundamentais da reflexão teológica franciscana19.

Mais que um sentimento poético ou uma aspiração romântica, a frater-nidade universal implica hoje, em primeiro lugar, um compromisso determi-nado e determinante no campo do ecumenismo, na perspectiva mariológica e um são espírito de diálogo com homens de todas as religiões, de todas as culturas e de todas as raças. Implica também uma séria responsabilidade com o cuidado e preocupação pela natureza, o equilíbrio ecológico, as relações harmónicas entre o homem e a natureza, um justo aproveitamento dos bens da criação e a justa distribuição desses bens. A utopia franciscana da frater-nidade universal parte de um profundo sentido da liberdade interior, dum grande respeito pelo ser humano e por todas as criaturas, consideradas irmãs, segundo a linguagem de Francisco de Assis e da convicção de que Deus é o Pai e o Altíssimo, omnipotente e bom Senhor de todos e de tudo. Trata-se duma visão celebrativa da vida, da criação, da própria história, no respeito e desapego interior, no espírito da perfeita alegria.

A fraternidade universal tem um reflexo particular na construção da paz entre os homens e povos da terra. Neste campo, pode a teologia franciscana dar um contributo específico, fazendo ver que a paz não é uma simples conveniência social, nem o objecto de uma estratégia política, mas algo mais comprometedor e profundo, que se baseia no mistério de Deus e da presença do seu espírito no coração do homem.

————— 19 A. de VILLAMONETE, Contribución de la teologia franciscana a la teologia del

futuro, em Franciscanismo y Profecía, ao cuidado de E. Covi, Ed. Col. San Lorenzo de Brindisi, Roma 1985, 533.

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Estes três pontos não pretendem ser um programa completo, nem uma proposta orgânica para o reconhecimento da teologia franciscana; só pretendem chamar a atenção sobre alguns aspectos duma tarefa muito mais ampla e comprometedora: a de tornar responsável a rica herança da teologia franciscana que recebemos e projectá-la para o futuro com novas forças, superando qualquer visão estreita de escola e renunciando inclusive a todo o escolasticismo, de forma a que a teologia franciscana do futuro reconquiste a sua verdadeira fisionomia não como sistema teológico propriamente dito, mas antes como um estilo de fazer teologia cristã, uma forma original, um itinerário de fé e uma orientação sempre nova e renovada de reflectir sobre os grandes conteúdos da fé.

Trata-se, além do mais, de uma tarefa necessária para toda a família franciscana, tarefa estreitamente ligada à sua sobrevivência no futuro e, sobretudo, em estreita ligação com a responsabilidade histórica. Só à luz duma reflexão teológica qualificada e específica, a família franciscana poderá contemplar melhor e saborear as múltiplas riquezas que se escondem no seu carisma específico, dilatando assim os horizontes da sua espiritua-lidade em função de uma evangelização ao serviço de todos os homens e de todas as culturas.

Traduziu fr. José António Correia Pereira

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O ENCONTRO: S. FRANCISCO COM O SULTÃO1

Por Fr. Gwenolé Jeusset, ofm

————— 1 Publicado em Vita Minorum, Anno LXXIV, Março-Junho de 2003, sob o título

L’incontro: S. Francesco e il Sultano.

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O ENCONTRO: S. FRANCISCO COM O SULTÃO Na primavera de 1205, depois de curar a doença que contraiu na prisão,

Francisco Bernardone retoma a vida normal, incorporando-se no exército de Gualter de Briene, o exército do Papa, que combatia o imperador germânico. Em Espoleto, onde passa a primeira noite, foi levado, em sonho, a uma sala de armas e sente que Cristo o desafia para outros combates: “Francisco, o que é melhor, servir o senhor ou o servo?”. E recebe a ordem: “Volta para Assis”. Regressou sem hesitar. Podemos constatar uma caminhada em três etapas.

1º Etapa. A guerra em que Francisco estava envolvido, era encarada

como um serviço. Ele acreditava que, colocando-se ao serviço de Inocêncio III, estava na linha do Evangelho. Mas Cristo não queria um exército pontifício. “O regresso a Assis” assemelha-se um pouco “à entrada em Damasco” de S. Paulo. A sua vida oscila entre os sonhos de cavalaria e a pobreza e despojamento. Então foi dado a Francisco de Assis a atitude e a graça do encontro. Primeiro que tudo o encontro com o homem Crucificado. De repente… Francisco passa da mentalidade das cruzadas ao amor apaixonando pelo Senhor Jesus.

2ª Etapa. O encontro com Cristo inquietou-o, mas não o encerrou em si

mesmo. Francisco está a passar da mentalidade de conquista à mentalidade do encontro. Que tipo de encontro: com o leproso, com os violentos, com o lobo, com o sultão, levam consigo a destruição da muralha do medo e das fronteiras. Francisco aparece como uma personagem contra a corrente. A visão do Evangelho torna-o um homem sem muros nem fronteiras.

3ªEtapa. Do espírito da cruzada ao espírito de fraternidade. Este

homem não podia ficar confinado a cidadão duma cidade, está chamado a ser cidadão do mundo, mais exactamente irmão universal. A cidadania é um

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assunto jurídico; para Francisco o encontro com os homens é uma questão de fraternidade. Cristo é o meu irmão, o Cristo é irmão de todos os homens. Tomás de Celano, seu primeiro biógrafo, fala assim do seu amor à Virgem: “ Rodeava de um amor indizível a Mãe de Jesus, por ter feito irmão nosso o Senhor de toda a majestade”(2C 198,1).Tudo se passa nesta perspectiva e intuição. A sua vida será uma peregrinação da fraternidade.

ABATER OS MUROS ENTRE IRMÃOS QUE SE IGNORAM

Esta peregrinação investiu contra três muralhas. Quando se evoca o

fenómeno da exclusão na Idade Média, fala-se da lepra que abandona às portas das cidades os homens e as mulheres contaminados. Na realidade, segundo me parece, no tempo de Francisco, vemos três formas de exclusão, três formas de lepra que geram medo, três formas de leprosos que geram exclusão: o leproso físico, o leproso moral, o leproso espiritual.

O encontro com o “leproso físico” é bem conhecido. Deu-se fora da cidade de Assis. Constata-se que tendo derrubado a muralha entre saudáveis e doentes, Francisco percorre o seu primeiro caminho de conversão: está pronto para compreender o Cristo da Capela de S. Damião. Tinha abatido outro muro numa vida de conversão que só termina com a nossa pertença no outro lado do rosto de Cristo.

A segunda muralha, é a dos bem pensantes e mal pensantes da moral. Os “leprosos morais” eram, por exemplo, os bandidos de todos os caminhos. Depois de restituir tudo a seu pai, diante do bispo, Francisco saltou as muralhas de Assis, refugiando-se nos bosques: os bandidos e ladrões eram o símbolo da maldade… a quem Francisco oferecia cantigas em francês, motivo de grande alegria para eles. Interrogado sobre a sua identidade… a sua riqueza, saltou a fronteira do medo, dizendo muito descontraído: “Eu sou o arauto do grande Rei, isso incomoda-vos?” Não tendo nada para lhes dar, podia sujeitar-se a levar pancada, mas isso não impedia de poder cantar a Deus como sabia, sobretudo sem rancor, rompendo assim a escalada da violência.

Um texto da Legenda Perusina (90, 1-20), oferece a chave para compreender esta forma de exclusão. Os frades do ermitério da floresta dão--se conta da chegada dos ladrões: alguns queriam dar-lhes de comer, outros pensavam que isso seria encorajá-los à maldade. O Pai, de passagem, convidou-os à opção franciscana. Resolve-lhes o caso de consciência dizendo que é responsável pelos bandidos e que primeiro era necessário tratá-los como irmãos que passam fome, e deixar as questões morais para depois, quando já estiverem domesticados: “Ide procurar pão, do bom; e

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vinho, do melhor. Levai tudo convosco lá aos esconderijos da floresta, onde sabeis que eles estão refugiados. Chegando perto, gritai com força: ‘Irmãos ladrões, vinde cá. Nós somos irmãos e trazemo-vos bom vinho!’ Eles hão-de acudir logo à vossa chamada. Vós então estendeis uma toalha no chão, sobre a qual pondes o pão e o vinho. Com humildade e alegria haveis de servi-los, enquanto comerem” (LP 90,7-9).

Notemos bem no texto algumas semelhanças e diferenças: irmãos, mais bandidos e bandidos, mais irmãos. Recordemos o convívio entre eles: humildade e alegria são necessárias no encontro com o outro.

Quem é o leproso no sentido espiritual? É o não cristão, o pagão da Ásia, mas sobretudo o muçulmano, membro do povo sarraceno, a raça escrava. Mesmo em relação a eles, Francisco supera as barreiras do medo.

Vamos ser um pouco mais longos nas considerações, porque se trata da “grande muralha”. A guerra com o outro mundo, o mundo das trevas, não era uma guerra entre clãs como na Europa de então, era uma guerra santa, uma guerra contra o mal, uma guerra entre dois sistemas, e mesmo que haja momentos de paz e gestos cavalheirescos entre os chefes, é porque estes ignoram algumas vezes os ideólogos do outro lado (sobretudo os chefes religiosos).

Os dois sistemas estão frente a frente. Até os místicos se mobilizaram neste combate. Do lado cristão, S. Bernardo, no século XII, foi encarregado pelo seu discípulo eleito Papa, a tornar-se pregador da cruzada. Chega a escrever que todos os Templários podiam matar os muçulmanos: “matando um malfeitor, ele não se comporta como homicida, mas como malicida…Os fiéis cavaleiros podem purificar a terra santa das ‘imundícies dos sarracenos imundos’”. A expressão, graças a Deus, não é de S. Bernardo, mas de Gregório IX!

Francisco identifica-se numa outra lógica.

FRANCISCO E SEUS IRMÃOS VÃO AO ENCONTRO DO ISLÃO, A GRANDE MURALHA

S. Boaventura sublinha que a viragem da fraternidade foi uma das causas da viagem ao Oriente: “A intensidade desse amor sem limites que o impelia para Deus, fez com que também aumentasse a ternura afectuosa para com os que com ele participavam da natureza e da graça. Os sentimentos naturais do seu coração bastavam para o transformar num irmão de todas as criaturas. Não é de admirar, portanto, que o seu amor a Cristo, o tenha tornado ainda mais irmão daqueles que são a imagem do Criador e foram resgatados pelo sangue de Cristo”(LM 9.4, 1-3).

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O confronto entre Francisco de Assis e alguns frades a propósito da aproximação ao mundo muçulmano e a sua partida para Marrocos, ajuda-nos a compreender como se pode abater a “grande muralha”.

O modelo de Damieta Francisco leva consigo a Fr. Iluimado de Rieti, seu companheiro desde

1210. Primeiramente, presos como espiões e maltratados pelos soldados, são levados, segundo o seu desejo à presença do sultão Malik al Kâmil. Este interroga o estranho monge.

“O servo de Cristo esclareceu que tinha sido enviado de além dos mares, não por qualquer homem, mas pelo Deus Altíssimo” (LM 9. 8,5). Assim se destaca dos cruzados e do Papa. Gostaríamos de saber os detalhes do coló-quio, mas não temos muitos elementos. Uma coisa é certa: “o monge” declara-se cristão, vai direito ao essencial e… foi escutado. Passam alguns dias. Como é estranho: estes infiéis são homens de oração. Cinco vezes ao dia Francisco e Iluminado ouvem os muezins lançar o pregão para chamar à oração. O homem de Deus, vindo do país dos francos, descobre, por iluminação divina, um aspecto desconhecido. Ele já sabia que estas pessoas eram seus irmãos como seres criados; também sabia que eram irmãos, porque Jesus deu o sangue também por eles. Agora descobre que são irmãos porque estão em comunhão de oração com o único Deus.

Duas semanas depois da chegada, a trégua tinha terminado e aproximava-se o momento do regresso. Não podendo reter este sufi cristão, o Sultão quis enchê-lo de prendas e dinheiro. Mas Francisco escolheu a pobreza “para imitar a Virgem Maria e os seus discípulos”, e não aceitou nada.

Pensando possivelmente no pilar do Islão que é a esmola aos pobres e a construção de mesquitas, mostrando verdadeiramente uma abertura intereli-giosa (para usar os termos de hoje), o Sultão propõe ao monge que utilize aqueles presentes para os cristãos pobres e para as igrejas. Mesmo assim Francisco rejeita: chegou sem armas, partirá sem riquezas. Não condena o belo gesto do Sultão, mas o seu modo de imitar o Senhor Jesus é radical.

Chegou a hora do adeus. E sabiam que não se voltavam a ver. Malik al Kâmil recomenda-se às orações do não muçulmano… Francisco parte com seu confrade, sem um soldo como o seu mestre Jesus, mas é seguido por uma escolta principesca: é o último gesto do Sultão, com o qual o nosso herói não se deve ter sentido muito cómodo. O encontro terminou com este espectáculo um tanto fora de tempo: estupefactos estavam os muçulmanos ao ver passar a

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comitiva; estupefactos estavam os cruzados ao ver Francisco de volta. Já tinha sido dado como morto.

Imagino o Sultão, dentro dos seus aposentos, sonhando com o dia em que seja possível o encontro entre cristãos e muçulmanos, sem ódio e sem guerra. De um lado e de outro, ainda não estamos no século XIII, particular-mente quando os irmãos de Francisco tomam o caminho de Marrocos.

O atalho cego de Marrakesh Vital, Otão, Berardo, Adjuto, Acúrcio e Pedro, todos originários de Itá-

lia, deixaram o seu país com um entusiasmo, sem esmorece um instante. Com um enorme desejo de morrer, não conseguiram o martírio em Sevilha, mas sim em Marrakesh.

A dar crédito a uma crónica do século XIV, os frades, para penetrar incógnitos na cidade, trocaram o hábito religioso por vestimenta que lhe tinha sido oferecida pela irmã do rei de Portugal. Um outro frade, de nome Pedro, irritado com o rei, fugiu em Marrocos, tornando-se depois chefe da guarda do sultão.

Uma vez na cidade, a prudência não parece ser uma virtude franciscana. Diante do príncipe de Sevilha, afirmam sem qualquer receio: “Nós somos do partido dos romanos…”. Romanos eram inimigos chefiados pelo Papa, ven-cedores de Navas de Tolosa seta anos antes e que queriam escorraçar da Andaluzia todos os muçulmanos.

“Que viestes aqui fazer?” – Viemos anunciar-vos a fé em nosso Senhor Jesus Cristo, para que abandoneis Maomé, esse vil escravo do diabo, respon-deram eles. O efeito é radical, o filho deseja degolá-los, mas o pai convida-o à prudência. Depois de 1212 os cristãos tornaram-se muito fortes e parece prudente evitar represálias. O príncipe desembaraçou-se deles, enviando-os ao seu chefe, o sultão que reside em Marrakesh.

Ali os frades menores proclamam a grandeza da religião cristã e… insultam o islão e o seu profeta. Por duas vezes se cruzam com o sultão El Mostancir. Da primeira vez deixou-se impressionar pelos frades. Depois prende-os como dementes, libertando-os vinte dias depois, devolvendo-os a D. Pedro e à milícia cristã que se encarregam de os conduzir até à fronteira do norte. Mas eles escapam-se.

Hei-los de novo no meio da grande praça de Marrakesh. É sexta-feira, e o sultão saiu do palácio para ir rezar á Mesquita de Koutoubia. Bela ocasião para Fr. Berardo se fazer notado e escutado: “Maomé conduz-vos por um caminho falso e a mentira vai levar-vos à morte eterna, onde sereis eterna-mente atormentados, vós e os vossos seguidores”. Levam os pobres de Deus

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ao palácio. Procuram aliciá-los para o islão com ofertas, dinheiro e… mulhe-res e, por fim, com a tortura. Resistem a tudo, perseverantes na fé católica que confessam intrepidamente, condenando à iniquidade de Maomé e da sua lei. O sultão tem uma crise de nervos: corta-lhes a cabeça com a sua própria mão. Foi a 16 de Janeiro de 1220.

As relíquias que D. Pedro trouxe para Portugal, suscitam a devoção dos peregrinos. Os hagiógrafos enfatizam, mas a verdade é que a atmosfera de Marrakesh não é a mesma de Damieta. Isso parece claro. Damieta significa o encontro sem martírio. Marrakesh é o martírio sem encontro. Damieta é o en-contro de dois crentes, Marrakesh é o confronto de dois sistemas. Marrakesh é o espírito das cruzadas. Damieta é o espírito de Assis.

No horizonte duma fraternidade sem fronteiras Pelo espírito de encontro, Francisco está em contracorrente. Em contra-

corrente está também o seu silêncio, um silêncio estridente num mundo onde qualquer insulto contra o muçulmano, era considerado um louvor a Deus. Acreditava-se que uma visita ao Sultão era morte certa, mesmo para Fran-cisco. Porque razão induz os irmãos a partir para o meio dos infiéis? “E os irmãos que partem, de dois modos podem viver espiritualmente entre eles. O primeiro é não abrirem debates nem discussões, mas mostrarem-se submissos a toda a humana criatura por amor de Deus e confessarem que são cristãos. O outro modo é que, quando julgarem ser do agrado do Senhor, anunciem a palavra de Deus, para que creiam no Deus omnipotente, Pai, Filho, e Espírito Santo, Criador de todas as coisas no Filho redentor e Salvador, e sejam bap-tizados e se façam cristãos…(1R 16, 5-7).

São dois os métodos possíveis na terra de não-cristãos. O segundo é tra-dicional: construir a Igreja. O primeiro é uma bomba pronta para explodir… uma das vítimas foi Charles de Foucauld. Pode-se resumir assim:

Submissos à autoridade muçulmana em tudo o que não diga respeito à fé: coisa proibida pelo quarto Concílio de Latrão, de 1215; Viver no meio, testemunhando o Deus-amor, Pai de Jesus Cristo e Pai de todos nós.

Resumindo, trata-se de construir um mundo novo, um programa de fra-ternidade universal. Por isso estes pontos foram retirados da Regra aprovada pelo cardeal Hugolino e pela cúria romana.

Mais uma razão para acentuar a atitude de Francisco, homem de forma-ção cristã que começou a evoluir à medida que descobriu Jesus como irmão de todos os homens. No capítulo XIV da Primeira Regra, indica a forma como os irmãos devem andar entre os cristãos: “Quando os irmãos vão pelo mundo, não levem nada para o caminho, nem saco, nem alforge, nem pão,

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nem dinheiro, nem bordão. E, ao entrar em qualquer casa, digam, antes de mais nada: A paz seja nesta casa”(1R 14, 1-2). No capítulo dezasseis, como já vimos, Francisco dá instruções sobre o modo como estar entre os infiéis. São dois mundos.

Na regra definitiva fala-se só duma maneira de encontrar-se com o outro, porque o bem e o mal não passam por dois mundos, mas pelo interior de cada coração. Francisco fala mais do despojamento material, mas ampli-fica os desejos de paz com um texto semelhante ao capítulo dezasseis da pri-meira regra: “Aconselho, admoesto e exorto no Senhor Jesus Cristo a todos os meus irmãos que, quando vão pelo mundo, não litiguem, nem questionem, nem censurem os demais, mas sejam mansos, pacíficos e modestos, sossega-dos e humildes, e a todos falem honestamente como convém… (2R 3, 10--11).

O mundo unido pela fraternidade, na aceitação da diferença, já não tem muralhas.

Deus convida-nos… do outro lado do mar Assim Francisco coloca-se numa fronteira física, moral e espiritual para

suprimir o medo que origina as fronteiras, a exclusão. Em Francisco, Deus convida-nos a peregrinar com os outros, para os amar como Deus ama, a encontrar Deus nos outros, para além da nossa cultura, religião e mentali-dade. Para além do nosso “querido eu”, constituído pela nossa minúscula pessoa e para além do cargo que gerimos e do posto que ocupamos na Igreja.

Abraçando o leproso físico, Francisco vence o seu eu individual, a sua minúscula pessoa que o impedia de ter o encontro com o Cristo de S. Damião. Para lá chegar, ele desce dos muros de Assis para a planície envol-vente. No encontro com os ladrões, os leprosos morais, ele abandona o seu eu social de bem pensante. Para superar a fronteira do apartheid espiritual, ele vence o seu eu eclesial. Desce do gueto cristão e aproxima-se do leproso espiritual que é o muçulmano, percorrendo o caminho até ao outro lado do mar…

Se o ladrão, leproso moral, é um sujeito detestado, excomungado de muitas formas, tornou-se, todavia, um irmão pelo baptismo. O muçulmano, leproso espiritual, apreciado pelos cristãos da época, como rosto desfigurado pelo diabo, nem é digno de ser considerado irmão. Ora para Francisco, se o leproso físico é o irmão cristão desacreditado, o muçulmano é o não cristão reconhecido como irmão.

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Francisco é o peregrino que vai ao encontro do irmão desconhecido. Mendicante de Deus e do homem, ele é o irmão universal. O muçulmano, mesmo que não o saiba, é irmão de Jesus Cristo e Francisco vai ao seu encontro apesar dos perigos do mar, do outro lado da guerra, com os perigos da guerra, do outro lado do mar.

Todo o encontro é uma peregrinação. Deus convida-me a descobrir com Ele o outro lado do rosto do irmão. Eu não vislumbro tudo no outro, só Deus o conhece verdadeiramente. Deus é seu criador e redentor, e veio ao seu encontro. Até que eu não o encontre à maneira de Deus – só Ele não é racista, nem facciosista, o único que tem o poder necessário para o julgar, a inteligência para compreender e a luz para ver – conservo e conservarei mais facilmente o rosto horrível do outro no meu espelho mesquinho, que a santa face do outro no grande espelho de Deus.

O outro é diferente. E agora? Devo aceitar as diferenças como Deus me aceita, apesar de eu não ser a imagem que Deus quis que eu fosse. Em Jesus Cristo, Deus assumiu toda a nossa humanidade, aceitou a nossa incapacidade de O amar até ao fim. Devo tentar viver à maneira de Deus a diferença que me separa do outro.

Que fantásticos os versículos do Evangelho de Mateus: “E se saudais somente os vossos irmãos, que fazeis de extraordinário? Não o fazem tam-bém os pagãos?” (Mt 5, 45-48).

Saudar os outros, estranhos ao evangelho, é como dar um bom dia com um sorriso. “Saudar os outros”, à maneira de Jesus, aumenta a minha fé, abre-me ao Evangelho, torna-me mais discípulo, faz com que me dobre diante do santo rosto de Deus. O “sede perfeitos como o vosso Pai celeste é perfeito”, palavra impossível, torna-se possível na medida em que me apro-ximo do meu Deus.

O encontro com o outro pode ter por detrás muitos motivos humanos, mas para nós o motivo mais profundo e forte é o de caminhar sobre as pega-das de Jesus Cristo.

O encontro com o outro deve ter as marcas da gratuidade, se bem que não a fundo perdido. O encontro gratuito não é um jogo de xadrez, mesmo quando eu não converto o outro, é antes uma demonstração do jeito de Deus em mim, da vitória de Deus em mim. O outro coloca-me diante de Deus; o outro ajuda-me a desembaraçar-me do meu “querido eu”. O outro aproxima--me de Deus. Se entro neste plano divino, entre mim e Deus está este leproso que eu tenho a tendência de afastar para fora dos meus muros, para fora da minha cidade, porque, evidentemente, eu sou um modelo…

Quando eu arrisco derrubar esta muralha começa o grande encontro com o “totalmente outro”, porque ele me convida a peregrinar em conjunto. Todas

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as vezes que aceito entre mim e Deus este integrista cristão ou muçulmano, este ateu desagradável, este homem ou esta mulher impossível da minha comunidade, da minha família ou da minha vizinhança, quando aceito este outro entre mim e Deus, dou a Deus a alegria de mostrar-se ainda mais Pai, que envolve num mesmo tecto o outro e eu, reunidos por um amor para além de todas as barreiras. Despojado como Francisco diante do bispo de Assis, Deus cobre-me com o seu manto e nos conduz então, como o círio pascal, a mim e ao outro comigo, em direcção ao albergue da fraternidade onde já pre-pararam três tendas.

Traduziu Fr. José António Correia Pereira

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CONTEMPLAÇÃO DO CRUCIFIXO DE S. DAMIÃO

Por Fr. António Baú, ofm1

————— 1 ANTÓNIO BAÚ é frade menor e tem-se empenhado no campo do ensino da

filosofia, na formação, sendo especialista em arte e pintura. Este artigo foi publicado em VITA MINORUM, Anno LXXV, Março-Abril de 2004, pp. 125-148, sob o título Contemplazione del Crocifisso di San Damiano.

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CONTEMPLAÇÃO DO CRUCIFIXO DE S. DAMIÃO Introdução “Que beleza salvará o mundo?” perguntava Dostoievski. Salvará o

mundo a beleza do amor, sobretudo a beleza do amor que se faz dom, sacrifício, que se faz redenção. O ícone do Crucifixo tornou-se verda-deiramente memória e instrumento de salvação para o género humano. Um destes ícones, o Crucifixo de S. Damião, é, sem dúvida, o mais conhecido, tanto, para a história que o liga intimamente com a forte experiência religiosa e de fé de Francisco de Assis, como pela difusão carregada de devoção que envolveu o franciscanismo ao longo dos séculos.

O desconhecido autor do ícone quis expor à oração e à meditação dos fiéis esta imagem do Crucificado que se apresenta como o Vivente e o Glorioso. Desconhecemos a mensagem do autor e, todavia, podemos intui-la, pelo menos em parte, detendo-nos com amorosa atenção perante o mundo misterioso que se apresente diante de nós, cheio de harmonia e cor.

Para os contemporâneos do autor do ícone, a mensagem era mais familiar, habituados que estavam a ler os segredos de Deus, desconhecidos e ao mesmo tempo revelados na beleza de obras de arte impregnadas de referências à Sagrada Escritura e de oração; também nós, homens do segundo milénio, pouco inclinados à meditação prolongada no silêncio pleno de Deus, ávidos de beleza que nos salvará da destruição, seremos repletos daquela luz que nos ajudará a libertar-nos dos falsos ídolos que nos prendem aos bens enganosos, às miragens falaciosas, que se dissolvem como espuma, à luz da verdade e do amor, e impede que entremos na plenitude da vida de Cristo.

Efectivamente, a verdadeira postura diante dum ícone é a de uma silenciosa contemplação feita oração, que abrindo-nos à profundidade do mistério nos convido a entrar nele, para comunicar a única beleza que salvará o mundo.

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Convencidos disso, a nossa postura agora será de ler a beleza desta obra de arte, tendo sempre presente o mistério de amor que dela emana como reflexo da vida divina.

Da cruz ao Crucifixo, na vida da Igreja A cruz é o símbolo da unidade dos extremos, da síntese e do equilíbrio.

Nela se conjugam o espaço e o tempo. É o símbolo mais universal da media-ção e do mediador, muito antes da actualização da linguagem figurativa cristã, em cujo âmbitos e insere o significado exacto da morte de Cristo na cruz. Tal morte era para o pensamento clássico de tal modo escandalosa e infame, que só gradualmente esta representação contraditória de um Deus crucificado foi superada pelo profundo sentido religioso da morte expiatória. È sob este fundo que se devem ver as primeiras e hesitantes representações do crucifixo.

A primeira representação datadas da cruz como monumento cristão, encontra-se numa inscrição de Palmira, de 134 d.C. Pertencem também às mais antigas representações do crucifixo (sec.II-III), três gemas, provavel-mente gnósticas: uma calcedónia encarnada de Gaza com um Cristo nu, em pé, circundado de auréola; uma ágata com um Cristo crucificado e os doze apóstolos e uma ágata com um crucifixo em pé sob um supedâneo, com os doze apóstolos e um anjo. Também se tornou célebre o crucifixo da “Casa dos oficiais” no Palatino, que segundo os arqueólogos pertence à primeira metade do século III, e mostra um crucifixo de cabeça de burro e um devoto com a inscrição: “Alessameno adora o seu Deus”.

Nas catacumbas, a cruz aparece muito raramente, e muitas vezes é substituída pelo Tau. Nos sarcófagos do século IV tende-se a representar a cruz, mas não o Crucificado.. mas há uma tabuleta em marfim do início do século IV que representa Cristo carregando a cruz e o Cristo na cruz, como também sobre a porta da igreja de santa Sabina em Roma, século V, se representa Cristo na cruz entre os dois ladrões. A influência bizantina no ocidente leva a representar a cruz, mas não o Crucificado; pensamos no mosaico que se encontra na igreja de Santo Apolinário, em Ravena.

A interpretação da cruz pode-se sintetizar assim. - centro da nova criação - árvore da vida - centro (asse) do mundo - escada do céu.

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Mais tarde a Igreja decide abandonar a representação da cruz sem o Cristo crucificado.

O Crucifixo de S. Damião Este ícone está ligada intimamente á experiência religiosa de S.

Francisco. Não é simplesmente um belo quadro, mas a imagem de Cristo presente na sua paixão, morte e ressurreição. É conhecido por Crucifixo de S. Damião porque primeiro esteve colocado na capela de S. Damião e depois foi colocado na Basílica de Santa Clara, em Assis, onde se encontra actualmente. Em S. Damião está uma cópia fiel e muito antiga. Recordemos o texto das Fontes Franciscanas que nos fala do encontro perturbador e traumatizante, sobre alguns aspectos, que o jovem Francisco teve com o Crucifixo. Tomás de Celano, o seu primeiro biógrafo, descreve-o assim:

“Já inteiramente transformado em seu coração, e muito próximo de o estar igualmente quanto à maneira de viver, calhou de passar um dia perto da igreja de S. Damião, quase em ruínas e de todos abandonada. Conduzido pelo Espírito, entra nela para orar, prostra-se devoto e suplicante aos pés do Crucifixo, e sente-se tocado de modo extraordinário pela graça divina, que o torna completamente diferente do que era momentos antes. E, estando ainda profundamente emocio-nado, vê de repente – inaudito milagre – a imagem pintada de Cristo crucificado despregar os lábios e falar-lhe, chamando-o pelo próprio nome: ‘Francisco, vai e repara a minha casa que, como vês, está em ruínas’. Francisco pasma, treme, quase perde os sentidos e não atina na resposta. Propõe-se, no entanto, obedecer imediatamente à ordem recebida e concentra todas as suas forças para a executar. Mas, como nem ele mesmo conseguiu alguma vez exprimir a inefável transfor-mação sofrida nesse instante, cumpre-nos também a nós cobri-la com o véu do silêncio. No entanto, como a partir daí se enraizou tão estranha-damente em sua santa alma a compaixão pelo Crucificado, é-nos lícito supor que, antes mesmo de receber os estigmas em sua carne, já desde esse momento os tenha trazido profundamente impressos no coração” (2C 10, 1-8).

Numerosos manuscritos recordam uma oração que Francisco teria rezado diante deste Crucifixo, apresentando-a assim: “Estas são as palavras do beato Francisco quando rezou diante da imagem do Crucifixo, na igreja

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de S. Damião, quando ouviu da cruz aquele voz: ‘Francisco, repara minha casa etc’.” Eis a oração de Francisco:

“Ó glorioso Deus altíssimo, ilumina as trevas do meu coração, concede-me uma fé verdadeira, uma esperança firme e um amor perfeito. Mostra-me, Senhor, o (recto) sentido e conhecimento, a fim de que possa cumprir o sagrado encargo que na verdade acabas de dar-me. Ámen.”

História do Crucifixo de S. Damião e sua mensagem A sua origem O Cristo de S. Damião é um ícone do século XII, pintado por um monge

sírio, provavelmente proveniente de monges orientais da Síria que tinham um mosteiro no vale de Espoleto. Esta imagem poderia ser definida justamente como: o ícone de Cristo glorioso. De facto, através das cores da pintura, é desenhada toda a glória do mistério de Cristo e da Igreja.

Nesta pintura é recolhida um ampla riqueza de ensinamentos. para nós ocidentais, nem sempre é fácil compreender um ícone oriental. Precisamos de fazer algum esforço para poder descobrir a riqueza da mensagem subjacente.

As pinturas ocidentais estão orientadas para agradar aos olhos, mas a sua mensagem, muitas vezes, é limitada. O ícone pretende revelar o mistério profundo do ser. Muitas vezes é necessário fazer a anatomia do desenho. A intenção do iconografista não se situa na dimensão estética, mas na mensagem espiritual que quer anunciar.

Inspiração do Evangelho de S. João (glória) É o Evangelho de S. João que inspira este ícone. É necessário ressaltar

alguns detalhes iconográficos que justifiquem esta tese. Antes de tudo está a coroa de glória que substitui a coroa de espinhos. O

sofrimento e a morte são absorvidas na glorificação: “Pai, glorifica o teu Filho”(Jo 17,1).

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Os personagens sob os braços de Cristo estão presentes em João. Como a ferido no lado de Cristo somente se encontra no testemunho do discípulo amado, que a tradição identifica como João.

Enquanto os evangelistas sinópticos apresentam o aspecto humano com cores vivas, com influências na arte ocidental, neste ícone, ao contrário, fala--se do mistério profundo do Verbo de Deus, à maneira de João.

O Evangelho de João fala muitas vezes da luta entre a luz e as trevas (Jo 1, 5). Neste ícone manifesta-se o resultado final desta luta. De facto, o corpo glorioso de Cristo aparece tanto mais luminoso, enquanto sobressai do fundo negro de incredulidade e de pecado, símbolo da oposição à luz. A cor encar-nada, símbolo do amor, envolve todo o ícone, apresentando-a como lugar dramático da vitória da luz e do amor sobre as trevas.

Contemplando o ícone de S. Damião, somos atraídos pela figura solene de Cristo crucificado. Esta domina a pintura, destacando-se não só pela sua majestade, mas também pela tonalidade das cores. Com efeito, da figura de Cristo emana uma luz brilhante que é ainda reforçada pelos contornos de cor negra, símbolo da morte e do poder satânico, que a envolvem.

O enquadramento Muito interessante é o enquadramento do ícone. Este remete-nos logo

para um contexto de profundo ensinamento. Está enquadrado por uma multidão de vieiras. Para os antigos, a vieira,

pela sua beleza e resistência, é o símbolo da beleza e da eternidade no céu. Assim este enquadramento de vieiras indica que este ícone se destina, por sua natureza, a revelar o mistério celeste na sua beleza e na sua eternidade.

Mas o enquadramento não está completo: não fecha na base e deixa um espaço livre que constitui uma entrada. À entrada vemos umas personagens, das quais só algumas são totalmente visíveis. Por agora diremos que são os crentes, mais à frente daremos uma explicação mais profunda. É interessante a sua posição: estão sob a base da cruz, quase saídos da terra, da qual Jesus, com a sua enorme estatura, aparece como a Árvore da vida, na Cidade Santa. As personagens sob os braços estão já “na luz de Cristo”, são frutos vivos. Isto porque Cristo se tornou grão que frutificando lhes deu a vida. Pode-se dizer agora que este ícone nos revela o Reino. Na verdade introduz-nos no caminho da fé. Todavia não somos capazes de discernir claramente a realidade espiritual, “vêmo-la como num espelho” (1Cor 13, 12).

Por fim, a base do ícone parece formada por um bloco de pedra. A lógica induz-nos a ver aquela Rocha, isto é, a autoridade de Pedro, a sede

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visível do reino, segundo a palavra de Jesus: “Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja” (Mt 16, 18).

O rosto de Jesus A coroa de glória Com o enquadramento, a coroa de glória de Jesus, dá o tom a todo o

ícone. Não se diminui, nem se esconde o mistério do sofrimento. Mas este encontra o sentido e o seu complemento na glória. É à luz desta coroa que devemos ler todo o ícone.

Na coroa de glória de Jesus, são traçadas as linhas da cruz, mas sempre imersas na luz. Esta coroa, com a cruz subentendida, reassume toda a vida de Jesus, o despojamento e a exaltação. Na carta aos Filipenses S. Paulo escreve com força: “Ele que é de condição divina… rebaixou-se a si mesmo, tornando-se obediente até à morte e morte de cruz. Por isso mesmo é que Deus o exaltou… para que ao nome de Jesus… toda a língua proclame: Jesus Cristo é o Senhor! Para a glória de Deus Pai” (Fl 2, 6-11).

Aquela coroa de glória está plena de consolação, dá sentido a todo o sofrimento, quer recordar que toda a coroa de espinhos pode ser mudada em coroa de glória. Anuncia a vitória da vida sobre a morte.

Contemplando esta cruz gloriosa não podemos deixar de rezar com as palavras de S. Francisco: “Digno é o Cordeiro que foi imolado de receber poder e divindade, sabedoria e força, honra e glória e bênção: louvêmo-lo e exaltêmo-lo para sempre.”

O rosto Se observamos com atenção o ícone, nota-se que tanto o rosto de Jesus

como a coroa estão ligeiramente veladas. O seu resplendor está obscurecido por uma sombra que vem até ao pescoço de Jesus. Como a glória do Senhor “permaneceu sobre a montanha do Sinai, e a nuvem envolve-o” (Ex 24,16). A própria humanidade de Jesus é um véu. Para S. Paulo a humanidade de Jesus (cf. Hb 10, 20). Durante a transfiguração esse véu estava um tanto tol-dado e a glória de Jesus se manifestou. Os apóstolos Pedro, Tiago e João, tiveram a graça de contemplar esse esplendor por pouco tempo.

S. João estende este privilégio a todos os crentes. Para o apóstolo do amor, todos os verdadeiros crentes estão já na presença da glória de Jesus. Disse Jesus: “…se creres verás a glória de Deus” (Jo 11, 40). Sobre as bodas de Caná, escreve o evangelista: “Jesus realizou o primeiro dos seus sinais, com o qual manifestou a sua glória e os discípulos acreditaram nele.” (Jo 2, 11).

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Os familiares de Jesus não foram capazes de ver a sua glória porque olhavam com olhos muito humanos. Para ver a sua glória é necessário olhar Jesus com olhos de fé: “Porque é o espírito que dá vida, a carne não serve para nada” (Jo 6, 63).

Os olhos de Jesus Os olhos de Jesus, bem abertos, apresentam-n’O como o único

“vivente”, por excelência. Ele mesmo diz: “Eu sou o Primeiro e o Último; aquele que vive. Estive morto; mas como vês, estou vivo”(Ap 1, 17-18). Ele é o “Príncipe da vida” (Act 3, 15), a própria vida (cf. Jo 14, 16). Ele quer introduzir-nos na sua vida, “… Ele pode salvar… os que se aproximam de Deus, pois, Ele está vivo para sempre” (Hb 7, 25).

Os olhos de Jesus são muito grandes, exageradamente grandes. Esta desproporção indica que Ele é o “vidente”, o único que vê o Pai (Jo 6, 46), porque sempre “está no seio do Pai” (Jo 1, 18).

Mas já agora, Jesus quer partilhar connosco a sua visão do Pai. Ele mostra-nos o Pai e exorta-nos a o ver n’Ele. “Quem me vê, vê o Pai” (Jo 14, 9). E S. João precisa: “O que sabemos é que, quando Ele se manifestar, seremos semelhantes a Ele, porque o veremos tal como Ele é” (1Jo 3, 2). Não estamos na expectativa, antes começamos a contemplar o Pai na sua imagem (Cl 1, 15) que é Jesus; tornamo-nos videntes no Vidente.

É belo sentir-se guardado pelos olhos de Jesus. Ele é o pastor de olhar penetrante, que “conhece as suas ovelhas e chama a cada uma pelo seu nome” (Jo 10, 3. 14).

Aqui surge uma pergunta: “Porque é que os olhos de Jesus estão

dirigidos para o céu e a terra? Como vimos, neste ícone Jesus apresenta-se como sumo sacerdote, oferecendo-se ao Pai por todos os homens. Sendo “mediador” (Hb 8, 6), o seu olhar atinge o céu e a terra. Este olhar é ao mesmo tempo grave e sereno. Grave, porque Jesus está consciente da importância do drama do qual Ele é o centro.; sereno porque sabe que “as portas dos infernos não prevalecerão contra ela” (Mt 16, 18).

O pescoço de Jesus Nota-se que o pescoço de Jesus é muito robusto. É assim na maior parte

dos ícones que representam Jesus, mesmo criança. Seguindo as regras da estética, seria uma desproporção, mas, como

dissemos, à luz da iconografia mais preocupa pela mensagem que o ícone propõe do que pela estética, tem a sua justificação: depois da Ressurreição, Jesus aparece aos seus discípulos e sopra sobre eles dizendo: “Recebei o

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Espírito Santo. A quem perdoardes os pecados ser-lhes-ão perdoados…” (Jo 20, 22). O verbo grego “soprar” reverte-nos para a primeira criação do homem (Jo 2, 7) e sugere que se trata duma nova criação, de uma autêntica ressurreição (Ex 37, 9; Ro 4, 17).

Prestemos atenção. Imaginemos o pecado como uma gangrena mortal que infecta todos os homens, devorando a maior parte e isto ao longo de todos os séculos. É para sarar esta gangrena, para restaurar esta humanidade e fazer uma nova criação, que Jesus derrama o seu Espírito sobre os apóstolos. Podemos compreender com quanta força Jesus soprou o seu Espírito e podemos compreender porque este ícone nos apresenta Jesus com um pescoço tão forte.

Há um outro aspecto que exprime a beleza do pescoço de Jesus: os cabelos. Estes estão bem ordenados envolvendo todo o rosto do crucificado e caem delicadamente sobre os ombros, dando a Jesus uma expressão duma beleza serena e nobre.

As chagas de Jesus As chagas das mãos, dos pés e do lado de Jesus tornaram-se nascentes

que derramam com abundância o sangue do Cordeiro de Deus. É o sangue da nova aliança que nos obteve a redenção eterna. Como vítima sem mácula oferecida a Deus, purificará a nossa consciência das obras da morte, para que prestemos culto ao Deus vivo (Cf. Hb 9, 12-14).

Vemos dois anjos que fixam o olhar nas chagas das mãos de Jesus. Outros anjos, sob os braços de Jesus, admiram, estupefactos, o espectáculo do sangue derramado do Filho único de Deus. S. Pedro escreve sobre as realidades do sofrimento e da glória de Cristo, “as mesmas que os Anjos avidamente contemplam” (1Pe 1, 12). Contemplemos com gratidão as chagas de Jesus, tornadas fontes de vida: “Pelas suas chagas fomos curados” (Is 53,5).

A ferida do lado direito de Jesus Segundo os especialistas que estudaram o santo Sudário, era necessário

que o golpe de lança fosse directo ao lado direito, para que saísse sangue e água. O profeta Ezequiel (47,2), falando do Templo, diz duas vezes que brotava uma fonte do lado direito. Este templo anuncia o corpo de Cristo, o lugar do novo culto espiritual. A água que saía em torrentes do templo recuperava tudo o que encontrava ao longo do seu percurso, dando às árvores uma fecundidade extraordinária. “Os frutos servirão de alimento e as folhas, de remédio” (Ez 47, 12). Tal é a eficácia da Água Viva que jorra do lado

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direito de Cristo. O sangue de Jesus foi derramado para nosso resgate e purificação, como explica a Carta aos Hebreus: “Mas Cristo… entrou uma só vez no santuário, não com o sangue de carneiros ou de vitelos, mas com o seu próprio sangue, tendo obtido uma redenção eterna. Se, de facto, o sangue dos carneiros e dos touros e a cinza da vitela com que se aspergem os impuros, os santifica, purificando-os no corpo, quanto mais o sangue de Cristo, que pelo Espírito eterno se ofereceu a si mesmo a Deus, sem mácula, purificará a nossa consciência das obras mortas, para que prestemos culto ao Deus vivo” (Hb 9, 11-14).

Por último, tenhamos presente como são marcadas as chagas: grossos sinais negros, dos quais jorram abundantes fios de sangue que se derramam sobre as personagens que estão á volta da cruz.

Francisco compreendeu o grande valor das chagas do Senhor e pede a Deus que, de alguma forma, participe dos seus frutos.

As vestes de Jesus Apesar da sua extraordinária majestade, é revestido somente de

perizoma (ou efod) que lhe cinge os flancos. Esta vestimenta, que significava extrema pobreza, encerra em si uma preciosidade que ultrapassa a imagem que dela se tem: é um simples pano branco, mas todo ornado a ouro, apertado à cintura. Recorda o efod, a veste típica que o sumo sacerdote usava quando se costava ao altar para oferecer o sacrifício do cordeiro e invocar a misericórdia do Altíssimo para todo o povo.

Jesus é apresentado como o novo e eterno sacerdote, e também a vítima do sacrifício mais santo. O altar não é de pedra, mas uma cruz, uma árvore, sobre a qual Jesus, novo Adão, se oferece a Deus pela remissão de todos os pecados da humanidade.

Nos dias de festa o sacerdote vestido de paramentos sagrados dançava diante do trono do Altíssimo. Parece um paradoxo, mas o dia da paixão é o dia da festa maior: o dia da nossa redenção e Jesus, revestido com o ornamento sagrado da sua pobreza e da sua divindade, dança sobre a cruz, o novo trono de Deus. Francisco encantado com tanta bondade, exclamava, voltando-se para o Senhor: “Quem sois vós, dulcíssimo Deus, e quem sou eu, miserável verme e inútil servo teu?”

As personagens sob os braços de Jesus O pintor do ícone preocupou-se por identificar as personagens sob os

braços de Jesus. Da esquerda para a direita vemos Maria (a mãe de Jesus), João, Maria Madalena, Maria (mãe de João) e por fim o Centurião.

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Vendo-os assim tão próximos de Jesus, constatamos que a sua ardente prece foi escutada: “Pai, quero que onde eu estiver estejam também comigo aqueles que Tu me confiaste, para que contemplem a minha glória…” (Jo 17, 24). Observa-se que todas estas personagens estão todas imersas na luz. Tornaram-se “filhos da luz”(Jo 12, 36). Deles está escrito: “O Senhor Deus irradiará sobre eles a sua luz e serão reis pelos séculos dos séculos” (Ap 22, 5). Nota-se também que todas estas personagens têm a mesma estatura. Esta particularidade ressalta que o mais importante não é mostrar a santidade pessoal de cada um, mas o facto de que “Cristo é tudo em todos” (Cl 3, 11). Para eles já se realizou a palavra de Paulo:… “até que cheguemos todos à unidade da fé e do conhecimento do Filho de Deus, ao homem adulto, à medida completa da plenitude de Cristo” (Ef 4, 13).

Notemos, por fim, como todos estas personagens são semelhantes. Têm todos grandes olhos, uma boca pequena e um rosto oval. Se nos fixamos em Jesus, vemos n’Ele as mesmas características. Isto faz ressoar de novo a palavra de Paulo em nossos corações: “Porque aqueles que Ele de antemão conheceu, também os predestinou para serem uma imagem idêntica à do seu Filho” (Rm 8, 29). Como este Filho é imagem viva do Pai (Cl 1, 15), – “Quem me vê, vê o Pai” (Jo 14, 9) – também vemos modelada n’Ele a imagem do próprio Pai. Em Jesus é restaurado o original projecto de Deus: “Façamos o ser humano à nossa imagem, à nossa semelhança” (Jo 1, 26).

Maria, mãe de Jesus, e João Maria Maria encontra-se no extremo direito de Jesus, é o posto de honra: é

“aquela que encontrou graça diante de Senhor”. O rosto voltado para João reflecte uma ternura plena de admiração: sente-se ressoar a palavra de Cristo: “Mulher, eis o teu filho”(Jo 19,26). Ao mesmo tempo está voltado para Cristo, manifestando a sua dor ao contemplar o seu Filho.

A mão esquerda levada á boca exprime admiração frente ao mistério de Cristo crucificado; a mão direita aponta para Jesus Cristo. Este gesto mani-festa dois factos: Cristo é o objecto da conversa entre a mãe e o discípulo; a Virgem apresenta o Filho à humanidade.

A boca de Maria está aberta ao sorriso, sinal da certeza de que tudo agora se completa e manifesta (é a única que fica com Jesus até ao fim e que no ícone se apresenta sempre a sorrir). Dos ombros da Virgem pende um longo manto branco. Isso exprime a vitória da fidelidade ao Evangelho (Ap 3, 5), e é sinal da purificação trazida por Cristo (Ap 7, 14), indicando

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também as boas obras que Deus concede que os santos realizem. O manto branco está recoberto de pedras preciosas e de jóias, que simbolizam os dons do Espírito Santo (Jo 24, 22; Ez 28, 13; Is 61, 10). Debaixo do manto branco ressalta um vestido vermelho escuro. O vermelho é o símbolo dum amor intenso (Lc 2, 34) manifestado na participação da paixão do Filho. A túnica é do cor violeta e significa que Maria é a verdadeira Arca da Aliança, porque leva o Senhor. Na antiguidade a arca era forrada no interior com telas de púrpura violeta (Ex 26, 14). Aquela que foi fiel à Palavra, que foi preservada do pecado, aquela que acreditou na Palavra, que foi repleta dos dons do Espírito e superabundante de amor é a Arca da Aliança da nova Tábua da Lei.

João João foi colocado ao lado de Jesus. Ocupa o lugar da ternura, ao lado da

ferida donde corre sangue e água, a fonte da Igreja. A cabeça está voltada para a Mãe, como expressão daquele que se sente amado e acolhe o amor como dom preciosíssimo. A mão direita é dirigida a Jesus, objecto de adoração. Está coberto com um manto de cor rosa como sinal daquele amor pela Sabedoria, o que o distingue dos outros evangelistas. Do seu Evangelho transparece um João ávido de conhecimento do mistério em que está envolvido e daquela Sabedoria que nos abre ao mistério. A túnica branca significa a vitória sobre a carne, a castidade perfeita que a tradição lhe reconhece e que é confirmada pelo rosto jovem, sinal daquela candura que é fruto da sua intimidade com o Verbo encarnado.

“Então, Jesus, ao ver ali ao pé a sua mãe e o discípulo que Ele

amava, disse à mãe: ‘Mulher, eis o teu filho!’ Depois, disse ao discípulo: ‘Eis a tua mãe!’. E, desde aquela hora, o discípulo acolheu-a como sua” (Jo 19, 25-27). Neste ponto a contemplação torna-se oração filial dirigida à Mãe de

Jesus: “Ó filho da Virgem, Deus da Virgem e Criador do mundo! Tua é a

paixão, e a profundidade da ciência. Aquele que és e aquele que há-de vir. Foste tu, que aceitando o sofrimento, dignaste-te a vir salvar o homem. Tomaste sobre ti a nossa culpa como Cordeira. Foste tu que vencendo a morte pela imolação a todos salvaste. És o mesmo no sofrimento e no não sofrimento. És tu quando morres e quando salvas. Deste à Santa aquela certeza que lhe faz gritar: “O meu filho é Deus”(Romano o cantor, Inni, xl, 17).

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Maria de Magdala e a outra Maria e o Centurião Maria de Magdala Maria Madalena é colocada próxima de Jesus, à sua esquerda. Cumpre-

-se a Palavra. “Alguns dos últimos serão os primeiros” (Lc 13, 30). O vermelho é a cor predominante do vestido de Madalena. É a cor que simbo-liza o amor e que bem se adapta à mulher de quem Jesus disse que muito amou (Lc 7, 47). A cabeça toca a cabeça de Maria mãe de João, sinal de conversas íntimas e a transmissão de algum evento importante tal como é a Ressurreição de Cristo. A mão esquerda está levantada até á boca e indica uma atitude de admiração e espanto (a mesma atitude da Virgem). Pureza e pecado perdoado estão sob os braços de Cristo.

A outra Maria: Mãe de João Maria mãe de João representa aquela miríade de crentes humildes e

desprezados da história, que um dia o juízo de Deus coroará de glória. Ela escuta as confidências de Maria Madalena. O gesto das mãos exprime dois sentimentos: admiração ilimitada pelo que Jesus fez em Madalena; afirmação da sua fé na ressurreição de Jesus (Mt 28, 8).

O Centurião Trata-se do centurião romano, um pagão. É o único sem auréola, mas

com a mesma estrutura das mulheres. A fé deste homem exprime-se de duas maneiras: com o seu olhar fixo no rosto de Jesus; com os dedos da mão direita: três estendidos a indicar a Trindade e dois a significar que aquele que olha é o Homem de Deus: “Verdadeiramente este é o Filho de Deus”(Mc 15, 39). A mão esquerda coberto com o manto vermelho, segura um pedaço de madeira a lembrar a sinagoga que tinha construído em Cafarnaum, segundo relata o evangelista Lucas (7, 5…). Sobre os ombros do centurião aparece uma figura, sobre a qual não há clareza quanto à identidade: podia ser o filho de centurião que foi curado por Jesus (Jo 4, 48); o que encomendou o ícone, que parece querer contemplar o Senhor. O centurião representa a multidão de pessoas que cresceram sem conhecer Deus e o seu Filho Jesus, mas que foram fiéis à acção do Espírito Santo no seu coração. Ao seu lado estão assinaladas algumas pequenas cabeças que evocam todo o povo de Deus.

Os dois homens pequenos Diante da Virgem Maria e do Centurião, vemos duas pequenas persona-

gens bem identificadas. O que está à esquerda tem um aspecto semelhante ao do centurião, podemos por isso concluir que seja um romano. O personagem

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que está à direita assume a mesma posição que o da esquerda: o joelho levan-tado, a mão sobre a anca e o rosto voltado para Jesus. Esta posição significa que foi cúmplice com o seu companheiro da esquerda. Mas não é romano.

Estes homens representam todos os que foram encarregados da exe-cução de Jesus, romanos e judeus, como está escrito: “Judas, então, guiando um destacamento romano e os guardas ao serviço dos sumos sacerdotes e dos fariseus, munidos de lanternas, archotes e armas, entrou lá” (Jo 18, 3). Estas duas personagens indicam que a responsabilidade da morte de Jesus recai igualmente sobre pagãos e judeus. Devemo-nos interrogar sobre o sentido da sua modesta estatura. Significa que o seu papel foi modesto. Aos olhos dos homens é claro que mataram Jesus, mas na realidade “ninguém me tirou a vida, fui eu que a dei” (Jo 10, 18). Os homens fizeram tudo para se insurgirem contra Jesus, para o flagelar, o crucificar e para o matar… mas só conseguiram glorificá-lo. Não olvidemos isto, quando sofremos perse-guições.

Mas contemplemos o prodígio!. Os mesmos que crucificaram Jesus, têm agora os olhos fixos n’Ele, como está escrito: “Hão-de olhar para aquele que trespassaram” (Jo 19, 38). Matando-O, descobrem que Jesus é o Filho de Deus, e os seus olhos abrem-se e chegam à fé, à vida. Como é grande a vitória do amor!

O galo Ao lado da perna esquerda de Jesus, está pintado um galo. Pareceria

anacronismo ver aí “o galo de S. Pedro”. O ícone mostra-nos o crucificado glorioso com seus eleitos. Passou o tempo das negações.

Para os antigos, muito próximos da natureza, o galo é o símbolo daquele que anuncia o nascimento do sol. Este sol é Jesus, a luz que se difunde no mundo. Por isso fala-se num estrela que deve surgir para iluminar o mundo. S. Pedro chama a Jesus de “estrela da manhã”. São muitas as citações do Antigo e do Novo Testamento que nos fala de Cristo verdadeira luz que liberta das trevas do mal e da morte. Por outro lado, o galo anuncia que Cristo é a verdadeira luz, que pelos séculos sem fim, se derrama sobre o mundo para o vivificar.. As nuvens podem cobrir este sol, mas não passam de nuvens, que os raios do sol trespassam para deixar passar a luz refulgente de Cristo.

As outras personagens Há outras personagens menos visíveis, mas igualmente significativas. Sob a base da cruz encontram-se outras personagens difíceis de identi-

ficar e que se apresentam, em grande parte, deterioradas. Certamente que o

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tempo contribui para esta desfiguração, mas certamente também a piedade dos fiéis, que tocando com a mão em sinal de veneração a delicada pintura, deterioraram involuntariamente as cores. Isto acontecia porque na pequena igreja de S. Damião o ícone do Crucifixo não se encontrava pendurado, mas sobre o altar, como o confirma Giotto no quarto fresco do seu estupendo ciclo pictórico que ornamenta a Basílica superior de S. Francisco.

Na parte esquerda o retrato dos santos perdeu-se. Pode-se supor que fossem representações de S. Cosme e Damião, titulares da igreja a quem este ícone foi destinado.

Do lado direito podem-se reconhecer distintamente dois homens com auréola, pintados de frente e a meio corpo. Com toda a probabilidade são os apóstolos Pedro e Paulo, representados muitas vezes na iconografia. São, com os outros apóstolos não representados, colunas da Igreja, que saídas do lado de Cristo, continua na história a obra salvífica de Cristo. Estão numa posição intermédia entre o céu e a terra, fazendo que com o seu ensinamento e com as suas obras, o céu e a terra se encontrem, depois de se tornar um em todos. São aqueles que imploram a ajuda de Cristo para o povo redimido pelo seu sangue. Alguns querem ver aos pés da cruz uma rocha, uma pedra. Nela se quer reavivar a autoridade do Papa.

A Ascensão: sinal de vitória Na parte superior do ícone, de forma ligeiramente oval, é representada a

Ascensão do Senhor. Apresenta-se Jesus imerso duma outra dimensão do seu mistério. Podemos intuir que se trata da Ascensão, pelo movimento ascen-dente da sua perna direita. Jesus vai em direcção ao Pai que se torna nosso Pai, em direcção ao seu Deus que se torna nosso Deus (Jo 20, 17). A sua veste cor de ouro anuncia a vitória e a sua realeza. Sobre os seus ombros pende uma estola vermelha, sinal do seu domínio: domínio levado a cabo pelo amor. Na sua mão esquerda segura uma cruz, instrumento do seu aniquilamento mas também de vitória. Na verdade, esta cruz é de ouro e tornou-se “um ceptro da justiça, um ceptro real” (Sl 45, 47). Com efeito, é da cruz de Jesus que seremos julgados, segundo a palavra de S. Paulo: “… nós pregamos um Messias crucificado, escândalo para os judeus e loucura para os gentios” (1Cor 2, 23).

Se olharmos atentamente o rosto de Jesus, descobrimos um amplo sorriso. Ele foi “ungido com o óleo da alegria” (Sl45, 8). Finalmente, a sua prova terminou e saiu vencedor. É acolhido pelos anjos vestidos de vermelho e de ouro como o mesmo Senhor: levam as suas cores. Aqueles que viram o Filho sair do Pai e vir ao mundo, festejam-no triunfalmente, enquanto regressa ao Pai (Jo 16, 28).

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A mão no alto: fidelidade ao Pai No meio do medalhão colocado na extremidade superior do ícone, apa-

rece uma mão direita, com o gesto de abençoar. É a direita do Pai. Ele, que nenhum olho humano viu, revela-se na bênção.

A bênção do Pai, não é outra coisa que o dom do Espírito, fruto da morte de Jesus que disse: “… é melhor para vós que Eu vá, pois, se Eu não for, o Paráclito não virá a vós; mas, se Eu for, Eu vo-lo enviarei” (Jo 16, 7). Na realidade será o Pai a mandar o Paráclito, o Espírito Santo, em nome de Jesus (Jo 14, 26), quando este entrar na sua glória. Assim o Pai abençoa com os dons do Espírito Santo.

É muito interessante esta referência à Santíssima Trindade. Nos momentos mais importantes da vida de Cristo, sentimos fortemente a pre-sença da Trindade, como no Baptismo e Transfiguração.

O escrito Por sobre a coroa de Glória, encontramos uma frase bem clara. As letras

I.H.S. são as primeiras três letras da palavra Jesus em maiúsculas gregas. A frase completa. JESUS O NAZARENO, REI DOS JUDEUS.

Estas palavras resumem toda a vida de Jesus. O seu profundo despoja-mento afirma-se também da terra donde é originário: “De Nazaré pode vir alguma coisa boa?” (Jo 1, 46). A sua glorificação é proclamada com inscrição oficial e universal da sua realeza.

Este escrito resume também o juízo que os homens de todos os tempos e de todos os lugares fizeram sobre Jesus: viram-no “com os olhos da carne” (2Cor 5, 16) e desprezaram-no como impostor (Mt 27, 63), depois viram--no segundo o Espírito e acolheram-no como verdadeiro Filho de Deus (Mc 15, 39). “É o Espírito que vivifica, a carne não serve para nada” (Jo 6, 63).

Diante deste escrito não há nenhuma escapatória: é necessário pôr-se a favor ou contra Jesus, não se pode ficar neutral.

Os Anjos, testemunhas da paixão do Senhor, mensageiros da luz Anjo significa mensageiro de Deus. Estes seres celestes estão dia e noite

diante de Deus louvando ao Senhor Deus da história e da vida. No ícone de S. Damião o número é bastante alto. O drama do Gólgota

não toca só a terra e a humanidade, mas também o próprio céu. Se para a humanidade é motivo de salvação, para o céu é motivo de festa e vitória.

Alguns anjos estão sob os braços de Jesus, contemplando com olhar triste, mas sereno, as chagas da crucifixão. Não se nota no seu rosto a

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desesperação que se encontra nos rostos dos anjos pintados por Giotto na cena da morte de Cristo na Capela dos Scrovegni. A sua serenidade é prelúdio duma eminente vitória e aquelas chagas, sinal de opróbrio tornar-se--ão ao contrário sinal de um amor salvífico que ninguém poderá superar.

Aqueles que se encontram na parte superior da cruz são mais nume-rosos. Os seus rostos estão iluminados de uma luz vivíssima carregada de serenidade e duma alegria profunda. Acolhem festivamente o seu Senhor que finalmente liberto dos ligames terrenos pode ser introduzido naquela glória que tinha sido preparada desde a criação do mundo. Esta entronização de Jesus provoca neles uma alegria tal que a querem exprimir através duma dança festiva. Pode-se dizer que esta parte do ícone é a mais alegre de todas as partes.

Conclusão A vida de Santa Clara, faz-nos supor, mesmo que as fontes franciscanas

não o refiram, que ela rezou muito frequentemente diante deste Crucifixo, sentindo-o presente e vivo diante de si.

O fascínio daquele ícone deve ter impregnado no coração da Santa o desejo de plasmar toda a sua vida segundo aquela carta de amor que é o Cru-cifixo.

A força daquele amor que se dá ao Pai pelos irmãos leva Clara ao humilde e perseverante desejo de ver aprovada aquela regra, como expressão do seu imenso amor, pelo Amor que não é Amado.

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