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I! A SOCIOLOGIA PRÉ-CIENTÍFICA
1. O Renascimento 2 . A Ilustração e a sociedade contratual 3 . A crise das explicações religiosas e o
triunfo da ciência
O Renascimento
Introdução
0 Renascimento, talvez mais do que a maioria dos diversos momentos históricos, suscita grandes controvérsias. Há quem veja nesse movimento filosófico e artístico o momento de ruptura entre o mundo medieval — com suas características de sociedade agrária, estamental. teocrática e fundiária — e o mundo moderno urbano, burguês e comercial.
Mudanças significativas ocorrem na Europa a partir de meados do século XV lançando as bases do que viria a ser, séculos depois, o mundo contemporâneo. A Europa medieval relativamente estável e fechada inicia um processo de A e i U a a e eijmrsio UMinacul e marítima. A identidade das pessoas, até es tão baseada n o d ã e n a propriedade fundiária vai sendo progressivamente subsutinda pda identidade narinml e pelo individualismo. A mentalidade vai se tonando paulatinamente b i c a — desligada das ques tões sagradas e transcendentais — > , as preocupações metafísicas vão convivendo com outras nuj&imeiluiisl#ts e materiais, centradas principalmente no homem.
Embora as preocupações metafísicas e filosóficas tenham importado ao homem desde a Antiguidade, no Renascimento a nova sociedade que emerge exige a distinção entre conhecimento especulativo e pragmático.
Diferentes visões do Renascimento
Alguns historiadores têm uma visão otimista do Renascimento, como a tiveram também aqueles que assim o batizaram, por terem erroneamente considerado a Idade Média como a Idade das Trevas e do obscurantismo. Para eles as mudanças que ocorreram na Europa, principalmente na Itália, e depois na Inglaterra e Alemanha, foram essencialmente positivas e responsáveis pelo desenvolvimento do comércio e da navegação, do contato com outros povos, pela proliferação de obras de arte e de obras filosóficas. Nessa ótica foi o movimento renascentista que promoveu o renascer da cultura e da erudição, o gosto pelo saber, além de tê-los, aos poucos, posto à disposição da população em geral.
Mas há t ambém os historiadores mais pessimistas, que conseguem perceber nessa época um período de grande turbulência social e política. Para essa análise, esses historiadores apóiam-se na falta de unidade política e religiosa, nos grandes conflitos existentes entre as nações, nas guerras intermináveis, nas inquisições e perseguições religiosas, no esforço de conservação
O R6NRSCIM6NTO 19
Ilustração da Divina comédia, escrita por Dante Alighieri. Nela, o artista expressa
í * •. -\ sociedade da época.
de um mundo que agonizava, características marcantes do período. Consideram sintomas de tudo isso os exílios, as condenações e os longos processos políticos e eclesiásticos, os grandes genocídios que a Europa promoveu na América e o ressurgimento da escravidão como instituição legal.
De fato, um certo clima de fim de mundo perpassa a produção artística do período, expresso na Divina comédia de Dante Alighieri, no Juízo final de Michelângelo, pintado na Capela Sistina e em vários quadros do artista flamengo Heironymus Bosch. Um clima de insegurança e instabilidade perpassa a todos nessa época de profunda transição.
A retomada do espírito especulativo
De qualquer maneira, o Renascimento marca uma nova postura do homem ocidental diante da natureza e do conhecimento. Juntamente com o descrédito na Igreja como instituição e o consequente aparecimento de novos credos e seitas — que conclamavam os fiéis a uma leitura interpretativa das escrituras —, o homem renascentista retoma a crença no pensamento especulativo. O conhecimento deixa de ser revelado, como resultado de uma atividade de contemplação e fé, para voltar a ser o que era antes entre gregos e romanos — o resultado de uma bem conduzida atividade mental.
Assim como a ciência, a arte também se volta para a realidade concreta, para o mundo terreno, numa ânsia por conhecê-lo, descrevendo-o, analisan-do-o, medindo-o, quer com medidas precisas, quer por meio de uma perspectiva geométrica e plana.
"O visível é t ambém inteligível", afirmava Leonardo da Vinci, encantado com as possibilidades de conhecimento pelo do uso dos sentidos.
Por outro lado, a vida terrena adquire cada vez mais importância e com ela a própria história, que
O Renascimento se caracteriza por uma nova postura do homem ocidental diante da natureza e do conhecimento.
20 fl SOCIOLOGIR PR€-CI€NTÍFICR
Em cenas como a desse banquete de Botticelli, os
pintores renascentistas exaltavam a vida terrena.
passa a ter uma dimensão eminentemente humana. Estimulado pelo individualismo e liberto dos valores que o prendiam irremediavelmente à família e ao clã, o homem já concebe seu papel na história como agente dos acontecimentos. Ele vai aos poucos abandonando a concepção que o tomava por pecador e decaído, um ser em permanente dívida para com Deus, para se tornar, na nova perspectiva, o agente da história.
Shakespeare evoca constantemente em suas peças a tragédia do homem diante de suas opções e sentimentos, enquanto Michelângelo faz quase se encontrarem os dedos de Deus e Adão na cena da Criação.
E nesse ambiente de renovação que o pensamento científico tomará novo fôlego e, com ele, o pensamento acerca da vida social.
Um novo pensamento social
Num mundo que se torna cada vez mais laico e livre da tutela da Igreja Católica, o homem se sente livre para pensar e criticar a realidade que vê e vivência. Sente-se livre para analisar essa realidade como algo em si mesmo e não como um castigo que Deus lhe reservou. E, assim como os pintores que se debruçaram nas minúcias das paisagens, na disposição das figuras numa perspectiva geométrica, os filósofos também passam a questionar e dissecar a realidade social. Ávida dos homens passa a ser fruto de suas ações e escolhas, e não dos desígnios da justiça divina.
Novas instituições políticas e sociais, estados nacionais, exércitos, levam os homens a repensar a vida social e a história.
Detalhe do Juízo final (1536-1541), afresco de Michelângelo.
O R€NRSCIM€NTO 21
i mesmo tempo, emerge uma nova classe social — a burguesia comercial —, com novas aspirações e interesses, que renova o pensamento social.
Nessa visão humana e especulativa da vida social está o germe do pensamento social moderno que vai se expressar na literatura, na pintura, na nlosofia e, em especial, na literatura utópica de Thomas Morus (A Utopia), Tommaso Campanella (A cidade do Sol) e Francis Bacon (Nova Atlântida).
As utopias
Como Platão, os filósofos renascentistas tentaram imaginar uma sociedade perfeita. Assim como a Atlântida, surge através da pena de Thomas Morus uma comunidade onde todas as soluções foram encontradas: a Utopia. Uma ilha cujo nome significa "nenhum lugar", onde existe harmonia, equilíbrio e virtude.
Desse modo, o pensamento social no Renascimento se expressa na criação imaginária de mundos ideais que mostrariam como a realidade deveria ser, sugerindo entretanto que tal sociedade seria construída pelos homens com sua ação e não pela crença ou pela fé.
Utopia é uma ilha onde reina a igualdade e a concórdia. Todos têm sob as mesmas condições de vida e executam em rodízio os mesmos trabalhos. A igualdade e os ideais comunitários são garantidos por uma monarquia constitucional. Cada grupo de 30 famílias escolhe um representante para o conselho que elege o imperador; este permanece até o fim da vida como soberano, sob o olhar vigilante do conselho, que opina sobre cada ato real e pode consultar previamente as famílias, quando considerar necessário.
Além da igualdade quanto ao estilo de vida e ao trabalho, t ambém a distribuição de alimentos se dá de forma comunitária. Não há necessidade de pagar por nada, porque há de tudo em profusão, uma vez que a vida é simples, sem luxo e todos trabalham.
Em A Utopia, Thomas Morus expressa os ideais de vida moderada, igualitária e laboriosa, semelhantes aos praticados pelos monges nos mosteiros pré-renascentistas, assim como defende, em termos políticos, a monarquia absoluta.
Utopia vem d o s termos gregos óu (não) e topos (lugar). Significaria literalmente "nenhum lugar". Corresponde na história d o conhecimento a e s s a evocação, através de uma aspiração, sonho ou desejo manifesto, d e um estado d e perfeição sempre imaginário. Na medida, entretanto, em que a utopia enfoca um estado de perfeição, ela realiza, por oposição, um exercício de análise, crítica e denúncia d a sociedade vigente. O estado de perfeição ensejado na utopia é necessariamente aquele
no qual se tornam evidentes as imperfeições da realidade em que se vive.
Mas, apesar de seu caráter de evasão da realidade, a utopia revela uma apurada crítica à ordem social, podendo inclusive se transformar em autêntica força revolucionária, como indicam os grandes movimentos messiânicos vividos pela humanidade, ou seja, aqueles movimentos que têm por meta a redução da humanidade ou a salvação do mundo.
22 R SOCIOLOGIR PR6-CI6NTÍFICR
Thomas Morus (1478-1535)
Nasceu em Londres. Foi pensador, estadista, advogado e membro da Câmara dos Comuns. Como bom humanista, desenvolveu estudos sobre o grego antigo. Em 1518, foi nomeado membro do Conselho Secreto de Henrique VIII e chegou em 1529 a ocupar o mais alto cargo do reino. Opôs-se à anulação do casamento de Henrique VIII,
recusando-se a jurar fidelidade à Igreja Anglicana fundada pelo rei, em parte por ser católico e em parte por ser contrário aos desmandos da autoridade real. Foi preso, condenado e executado. Em 1935 foi canonizado pela Igreja Católica e sua festa é celebrada em 6 de julho, dia de sua morte. Sua grande obra é A Utopia.
S e r i a i Utopia uma obra sociológica? Não no sentido moderno ou científico do conceito, mas como expressão das preocupações do filósofo com a vida social e com os problemas de sua época. Toda a vida ou, como o próprio autor chama, o "regime social" dos utopienses demonstra claramente a preocupação
com o estabelecimento de regras sociais mais justas e humanas como resposta às críticas que o au-
AnaJisar as contradições sociais e tor fez em relação à Inglaterra de seu tempo, procurar resolvê-las. acreditar que Analisar a sociedade em suas contradições : : : : ~ e ~ zeze^ze e visualizar uma maneira de resolvê-las, acredi-z^i :.'z : :es E : : 5 s e : ze—~-e tar que da organização das re lações polít icas,
económicas e sociais derivam a felicidade do homem e seu bem-estar e, seguramente, o germe do pensamento sociológico.
E. refletindo basicamente os anseios de sua época, Thomas Morus considera esse mundo ideal possível, graças ao plano sábio de um monarca absoluto: Utopos, fundador da Utopia.
O monarca esclarecido, justo e sábio é o ideal político do Renascimento, organizador das sociedades perfeitas criadas pela literatura de Thomas Morus e de outros.
Maquiavel: o criador da ciência política
Nicolau Maquiavel, pensador florentino, escreveu um livro, O príncipe, dedicado a Lourenço de Medici (1449-1492), governador de Florença, prote-tor das artes e das letras, ele mesmo um ditador. Nesse livro, Maquiavel se propõe a explorar as condições pelas quais um monarca absoluto é capaz de fazer conquistas, reinar e manter seu poder.
Como Thomas Morus, Maquiavel acredita que o poder depende das característ icas pessoais do príncipe — suas virtudes —, das circunstâncias históricas e de fatos que ocorrem independentemente de sua vontade — as oportunidades. Acredita t ambém que do bom exercício da vida política depende a felicidade do homem e da sociedade. Mas, sendo mais realista do que seus companheiros utopistas, Maquiavel faz de O príncipe um manual de ação política, cujo ideal é a conquista e a manutenção do poder. Disserta
O RENASCIMENTO 23
Nicolau Maquiavel (1469-1527)
Nasceu em Florença, mas fez sua carreira diplomática em diversos países da Europa. De
1 a 1512 esteve a serviço de Soderini, presidente perpétuo de Florença. Ajudava-o
E E : e : soes políticas, escrevia-lhe discursos e reorganizou o exército florentino. Foi exilado z bastado da vida pública quando Soderini foi
destronado por Lourenço de Medici. A partir de então, limitou-se a ensinar e a escrever sobre a arte de governar e guerrear. É considerado o fundador da ciência política e, segundo alguns, nesse campo jamais foi superado. Suas principais obras são: O príncipe e Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio.
speito das relações que o monarca deve L".:er com a nobreza, o clero, o povo e seu
sterio. Mostra como deve agir o sobera-^ • p a r a alcançar e preservar o poder, como •anipular a vontade popular e usufruir seus
: es e aliados. Faz uma análise clara das rases em que se assenta o poder político: como conseguir exércitos fiéis e corajosos, como castigar os inimigos, como recompensar os aliados, como destruir, na memória do povo, a imagem dos antigos líderes.
A visão laica da sociedade e do poder
Em relação ao desenvolvimento do pen-- ..mento sociológico, Maquiavel teve mais êxito do que Thomas Morus, na medida em que seu objetivo foi conhecer a realidade tal como se lhe apresentava, em vez de imaginar como ela deveria ser.
De qualquer maneira, nas obras de Thomas Morus e de Maquiavel percebemos como as relações sociais passam a constituir objeto de estudo dotado de atributos próprios e deixam de ser, como no passado, consequência do acaso ou das qualidades pessoais dos sujeitos. A vida dos homens já aparece, nessas obras, como resultado das condições económicas e políticas e não de sua fé ou de sua consciência individual.
Além disso, esses filósofos expressam os novos valores burgueses ao colocar os destinos da sociedade e de sua boa organização nas mãos de um indivíduo que se distingue por características pessoais. A monarquia proposta no Renascimento não se assenta na legitimidade do sangue ou da linhagem, na herança ou na tradição, mas na capacidade pessoal do governante e sua sabedoria. A história, tanto como ciência quanto como conhecimento dos fatos, passa a ter um papel relevante nesse novo contexto. Desconhecer a história é desconhecer a evolução e as leis que regem a sociedade onde se
Nicolau Maquiavel, autor de O príncipe, é considerado o fundador da ciência política.
24 fl SOCIOLOGin PR€-CI€NTÍFICn
vive. Nessa ideia de monarquia se baseia a aliança que a burguesia estabelece com os reis para o surgimento dos estados nacionais, onde a ordem social será tanto mais atingível quanto mais o soberano agir como estadista, pondo em marcha as forças económicas do capitalismo em formação.
2 A Ilustração e a sociedade contratual
Introdução: uma nova etapa no pensamento burguês
0 Renascimento desenvolveu nos homens novos valores, diferentes daqueles vigentes na Idade Média. Os valores renascentistas estavam mais adequados ao espírito do capitalismo, um sistema económico voltado para a produção e a troca, para a expansão comercial, para a circulação crescente de mercadorias e para o consumo de bens materiais. Instalava-se uma sociedade baseada na distinção pela posse de riqueza e não pela origem, nome e propriedade fundiária.
Essa mudança radical no mundo ocidental exigia uma nova ordem social, dirigida por pessoas dispostas a buscar um espaço no mundo, a competir por mercados e a responder de forma produtiva à ampliação do consumo. Pessoas cuja vida estivesse direcionada para a existência terrena e suas conquistas, e não para a vida após a morte e para os valores transcendentais.
Todas essas mudanças se anunciavam no Renascimento e se tornavam cada vez mais radicais à medida que se adentrava a Idade Moderna e a Revolução Industrial se tornava realidade.
A nova concepção de lucro, elaborada e praticada pelo comerciante burguês renascentista, é a marca decisiva da ruptura com os valores e as ideias do mundo medieval. O lucro não é mais apenas o valor que se paga ao comerciante pelo trabalho realizado. O lucro expressa a premissa da acumulação, da ostentação, da diferenciação individual e assim realiza a ideia de que tenho o direito de cobrar o máximo que uma pessoa pode pagar. A ideia e a realização do lucro não eram de forma alguma novas. Eram conhecidas desde a Antiguidade, a partir do momento em que surgiu o comércio usando o dinheiro como equivalente de troca e, em decorrência, a acumulação de riqueza. No entanto, a forma de pensar e praticar o lucro era distinta. Enquanto no Império Romano o comércio realizado com a prática de preços considerados abusivos era considerado ilegal e pouco nobre, e a Igreja Católica considerava pecaminosa a atividade lucrativa, no capitalismo, o lucro tornou-se a finalidade de qualquer atividade económica. Vejamos esta situação hipotética: na Grécia, um armador vivia da compra, do transporte e da venda de azeitonas à Europa. O preço final do produto remunerava o comerciante por seu trabalho 0 pensamento burguês de intermediação. Nesse preço estavam embutidas a reposi- representou uma ruptura ção dos navios e dos escravos e a viagem de volta. Muitos c o m relação ao mundo comerciantes enriqueceram, porque agora também se cobra- medieval va o máximo possível pela mercadoria. Essa forma de enten-
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der o lucro era nova na história e foi instaurada pela burguesia a partir do Renascimento.
Se um comerciante pode auferir numa troca comercial o maior preço possível que a situação permite — resultante da relação entre oferta e procura e de outras condições produtivas e de mercado —, então é preciso que a produção seja organizada de forma mais racional e em larga escala. O fato de a concorrência ser cada vez maior também exige maior racionalidade e previsão. A
procura por novas técnicas mais eficientes se torna uma constante. Muitos prémios são oferecidos aos inventores, e projetos como os de Leonardo da Vinci, que ficaram apenas no papel, passam a fazer enorme sucesso. Desen-vohem-se a ciência e a tecnologia, enquanto na filosofia cada vez mais se procuram as raízes das formas de pensar.
O Renascimento introduziu e desenvolveu o antropocentrismo, a laicidade. o individualismo e o racionalismo. Com relação à vida social, passou a concebê-la como uma realidade própria sobre a qual os homens atuam; percebeu-se também a existência de diferentes modelos — a República, a Monarquia — e passou-se a analisá-los e a defender um ou outro modelo. Conseguiu-se vislumbrar a oposição entre indivíduo e sociedade, entre vontade individual e regras sociais.
- = : : zzizz z^z emergiu do movimento renascentista exaltava a livre concorrência e a livre contratação. (Xilogravura de Jost Amman, século XVI)
Ao pregar o fim do controle do Estado
sobre a economia nacional, a
Ilustração ajudou o desenvolvimento da
indústria. (Londres em 1870, gravura de
Gustave Doré)
fi IWSTRRÇRO € R SOCI€DRD€ CONTRRTURL 31
A Ilustração, movimento filosófico que sucedeu o Renascimento, deu mn passo além. Concebeu novas ideias de vida social e entendeu a coletivida-de como um organismo próprio. Começou a discernir aspectos e áreas da oda social com diferentes características e necessidades — a agricultura, a - iustria, a cidade, o campo. O conceito de nação, como forma de organiza
ção política pela qual as populações estabelecem relações intersocietárias, já K cristalizara na Ilustração. O nacionalismo emergente do Renascimento, cientificado ainda com o monarca e preso ao sentimento de fidelidade e sujeição, dá lugar à noção de organismo representativo da coletividade, independentemente de quem ocupa, por certo tempo, os cargos disponíveis.
O princípio de representatividade política, revelando um aprofundamento no entendimento da vida social, assim como o aparecimento de teorias capazes de explicar a origem do valor das mercadorias e outros mecanismos sociais, mostram o grau de desenvolvimento do pensamento social. Já era possível identificar fenómenos sociais e concebê-los em sua natureza própria diferenciada. O surgimento de conceitos, como Valor e Estado, revela a existência de uma metodologia e a emergência de uma nova forma de conhecer a realidade social.
O Renascimento correspondeu a uma primeira fase da sistematização do pensamento burguês , na medida em que procurava trazer de volta à Europa os valores laicos, o gosto pela vida e o racionalismo, e atribuía ao individuo f l o r e s pessoais que não provinham da sua origem.
Embora ainda tivesse um certo caráter religioso, o Renascimento exaltava a natureza e os prazeres da vida terrena, fossem o êxtase religioso ou o nmples prazer dos sentidos, que se consegue junto à natureza.
Nos séculos X V I I e XVI I I , entretanto, a burguesia avança na concep-[ io de uma forma de pensar própria, capaz de transformar o conhecimento não só numa exaltação da vida e dos feitos de seus heróis , mas t ambém num processo que frutificasse em termos de utilidade prática. Afinal, o de-—nvolvimento industrial se anunciava em toda sua potencialidade; os em-
: eendimentos, quando bem dirigidos, prometiam lucros miraculosos. Por-nto, era preciso preparar a sociedade para receber os resultados desse
trabalho. Os próprios sábios deveriam se interessar em desenvolver conhecimentos de aplicação prática.
A sociedade apresentava necessidades urgentes ao desenvolvimento centífico: melhorar as condições de vida; ampliar a expectativa de sobrevi-encia humana a fim de engrossar as fileiras de consumidores e, principal
mente, de mão-de-obra disponível; mudar os hábitos sociais e formar uma mentalidade receptiva às inovações técnicas. A prática de elaboração dos pro-jetos científicos para o desenvolvimento da indústria passa a ser aplicada à sociedade, pois sem um planejamento racional dos meios de transporte terrestres e marí t imos, da distribuição e armazenamento dos produtos, da melhoria da infra-estrutura, todo o esforço produtivo estaria perdido. O planejar e o projetar o futuro trouxeram consigo também o conceito de nação, correspondendo à extensão territorial onde a burguesia de determinado país teria total controle sobre o mercado. A nação deveria se submeter a uma or-
32 n SOCIOLOGIR PR€-CI€NTÍf ICR
ganização política que pudesse favorecer o desenvolvimento económico e estimulá-lo. Dentro dessa nova organização política da sociedade deveria pri-vilegiar-se o indivíduo, principal motor do progresso económico. Este deveria estar livre das amarras impostas até então pela sociedade feudal, pois, de posse de sua total liberdade de agir, mover-se e estabelecer-se, o indivíduo poderia promover o progresso económico.
Novos valores guiando a vida social para sua modernização, maior empenho das pesquisas e do saber em conquistar avanços técnicos, melhora nas condições de vida, tudo isso somado levou a esse surto de ideias, conhecido pelo nome de Ilustração.
Após um primeiro momento em que a existência de um poder central garantia a emergência e a organização dessa nova ordem social, o mercado exigia liberdade de expansão. As novas formas de pensar e agir aliavam-se à necessidade de a burguesia libertar-se das amarras estabelecidas pelas monarquias absolutas, que não permitiam a livre iniciativa, a liberdade de comércio e a livre concorrência de salários, preços e produtos.
Assim, a Ilustração foi essencialmente pragmática e liberal, uma vez que a burguesia queria uma ordem económica, politica e social em que tivesse participação no poder e pudesse realizar seus negócios sem entraves.
Podemos dizer que a burguesia ja se sentia suficientemente forte e confiante em seus próprios objetivos de vida para dispensar a figura do rei como seu aliado contra os privilégios feudais, tal como sucedera durante a época mercantilista, em que o Estado nacional favoreceu uma política de acumulação de capital por meio de monopólios, fiscalização, manufaturas e colonialismo. Fortalecida, a burguesia propunha agora formas de governo baseadas na legitimidade popular, até mesmo governos republicanos. Conclamava o povo a aderir a defesa da igualdade jurídica e do sufrágio universal.
A filosofia social dos séculos XVII e XVIII
O pensamento da Ilustração, apoiado principalmente na contribuição dos fisiocratas (escola económica da época), defendia a ideia de que a economia era regida por leis naturais de oferta e procura que tendiam a estabelecer, de maneira mais eficiente do que os decretos reais, o melhor preço, o melhor produto e o melhor contrato, pela livre concorrência. Além desse apreço pelo livre curso das relações económicas, os fisiocratas, opondo-se ao uso ocioso que a nobreza fazia de suas propriedades agrárias, propunham melhor aproveitamento da agricultura, atividade que consideravam a principal fonte de riqueza das nações.
Segundo esse ponto de vista, as relações económicas e sociais eram regidas por leis físicas e naturais que funcionariam de maneira racional, desde que não prejudicadas pela intervenção do Estado absolutista. O controle
das relações humanas surgia, portanto, da própria dinâmica da vida económica e social, dotada de uma racionalidade intrínseca, cuja descoberta era a principal meta dos estudos científicos.
O desenvolvimento do capitalismo estimulou a sistematização do pensamento sociológico.
fl IIUSTRRÇRO € R SOCI6DRD6 CONTRRTURL 33
A racionalidade estava na origem natural e física das leis de organização áa sociedade humana e na base da própria atividade humana e do conhecimento, tal como defendiam os pensadores franceses René Descartes e Denis Diderot. O racionalismo cartesiano — termo derivado de Cartesius, nome lati-
Descartes — se expressava pela frase "penso, logo existo", na qual mostrara que a razão^era a essência do ser humano.
Reconhecia-se no homem, portanto, a capacidade de pensar e escolher, de opinar e resolver sem que leis rígidas perturbassem sua conduta. No plano económico, essa ideia se traduzia na ânsia por liberdade de ação, empreendimento e contratação. Traduzia-se ainda na concepção de que as relações entre os homens resultariam na livre contraposição de vontades, na liberdade contratual. No plano político, expressava-se no objetivo de livre escolha dos governantes, segundo o ideal de um Estado representativo da vontade popular. Finalmente, no plano social, manifestava-se na noção de que as sociedades se baseavam em acordos mútuos entre os indivíduos que as compunham.
Um dos pensadores que mais desenvolveu essa ideia de um pacto social originário foi Jean-Jacques Rousseau. Em sua obra Contrato social, Rousseau afirmava que a base da sociedade estava no interesse comum pela vida social, no consentimento unânime dos homens em renunciar as suas vontades particulares em favor de toda a comunidade.
Para alicerçar suas ideias a respeito da legitimidade do Estado a serviço dos interesses comuns e dos direitos naturais do homem, Rousseau procurou traçar a trajetória da humanidade a partir do igualitarismo primitivo até a
iedade diferenciada. Para ele, a origem dessa diferenciação estava no aparecimento da propriedade privada. Justamente por essa crítica à propriedade, áistingue-se dos demais filósofos da Ilustração.
Jean-Jacques Rousseau (1712-1778)
Nascido em Genebra, filho de burgueses protestantes, Rousseau teve uma vida errante que o levou continuamente da Suíça à França, à Itália e à Inglaterra. Foi aprendiz de gravador, secretário de nobres ilustres e até seminarista. Dedicou-se também ao desenho, à pintura e à música. Na França, foi contemporâneo de filósofos da Ilustração,
como Diderot. Suas principais obras foram Emílio, Contrato social, Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens e Discurso sobre as ciências e as artes. Foi alvo de críticas severas e perseguições, mas na época da Revolução Francesa suas ideias foram intensamente divulgadas.
John Locke, pensador inglês, t ambém defendeu a ideia de que a sociedade resultava da livre associação entre indivíduos dotados de razão e vontade. Para Locke, essa contratação estabelecia, entre outras coisas, as formas de poder, as garantias de liberdade individual e o respeito à propriedade. Seus princípios deveriam ser redigidos sob a forma de uma constituição.
Entre os filósofos da Ilustração, ganhava adeptos a ideia de que toda matéria tinha uma origem natural, não-divina, e que todo processo vital não
34 n SOCIOIOGIR PR€-CI€NTÍFICR
era senão o movimento dessa matéria, obedecendo a leis naturais. Esses princípios guiavam o conhecimento racional da sociedade, na busca das leis naturais da organização social.
Podemos afirmar que a filosofia social da Ilustração levaria à descoberta das bases materiais das relações sociais. Percebe-se claramente que os filósofos dessa época já desenvolviam a consciência da diferença entre indivíduo e coletividade. Já percebiam que esta possuía regras próprias que regulavam a vida coletiva, como as regras naturais regiam o surgimento, o
desenvolvimento e as relações entre as espécies. Mas, presos ainda à ideia de indivíduos, esses filósofos entendiam a vida coletiva como a fusão de individualidades. O comportamento social decorreria da manifestação explícita das vontades individuais.
A filosofia social da Ilustração levou à descoberta das bases materiais das relações sociais.
John Locke (1632-1704)
Era inglês de Wrington. Formado em Oxford, ingressou na carreira diplomática. Durante o período em que residiu na França, tomou contato com o método cartesiano. Sofreu perseguições políticas na Inglaterra que o obrigaram a se refugiar na Holanda. Em sua obra Dois tratados sobre o governo civil, defende o liberalismo político, os direitos naturais do homem e da propriedade privada. Suas ideias políticas tiveram grande reper
cussão assim como sua contribuição ao problema do conhecimento, expressa na obra-' Ensaio sobre o entendimento humano, na qual repudia a proposição cartesiana de que o homem possua ideias inatas e defende o conhecimento como resultado da experiência, da percepção e da sensibilidade. Publicou, ainda, Epístola sobre a tolerância, Alguns pensamentos sobre educação e Racionalidade do cristianismo.
Adam Smith: o nascimento da ciência económica
Foi Adam Smith, considerado fundador da ciência económica, quem demonstrou que a análise científica podia ir além do que era expressamente manifesto nas vontades individuais. Em sua análise sobre a riqueza das nações descobriu no trabalho, ou seja, na produtividade, a grande fonte de r iqueza. Não era somente a agricultura, como queriam os fisiocratas, a principal fonte de bens; mas o trabalho capaz de transformar matéria bruta em produtos com valor de mercado. Veremos adiante como essa ideia será retomada e reelaborada no século XEK por Karl Marx.
Adam Smith revelara a importância do trabalho ao pensar a sociedade não como um conjunto abstrato de indivíduos dotados de vontade e liberdade, tal como fizeram Rousseau e Locke, mas ao aprender e perceber a natureza própria da vida social segundo a qual o comportamento social obedece a regras diferentes daquelas que regem a ação individual. A coletividade deixava de ser a soma dos indivíduos que a compõem. A Revolução Industrial estava em pleno andamento e seus frutos se anunciavam.
n IWSTRRÇRO € R SOCI€DRD€ CONTRRTURL 35
Adam Smith (1723-1790)
Nasceu na Escócia. Foi professor da Universidade de Glasgow. É considerado o •undador da ciência económica. Sua principal obra foi Investigação sobre a natureza e as causas da riqueza das nações (A riqueza das nações). Desenvolveu ideias a esperto da divisão do trabalho, da função
da moeda e da ação dos bancos na economia. Continuou seus estudos no livro Teoria dos sentimentos morais, no qual afirma que a vida social humana está fundada em sentimentos de benevolência e simpatia. Foi o grande defensor do liberalismo económico.
Legitimidade e liberalismo
As teorias sociais da I lustração no século X V I I I foram ainda o início do pensar científico sobre a sociedade. Tiveram o poder de orientar a ação politica e lançar as bases do que viria a ser o Estado capitalista, desenvolvido no século XIX, constitucional e democrá t ico . Lançaram t a m b é m as bases para o movimento político pela legi t imação do poder, fosse de ca-
:er monárqu ico , como na Revolução Gloriosa da Inglaterra, fosse de aráter republicano, como na Revolução Francesa, ou ainda do tipo ditato-
rial, como no império napoleónico. Tão importante quanto seu valor como forma de entendimento da vida social e política foi sua r epe rcussão prática na sociedade.
A filosofia social desse período teve, em relação à renascentista, a vantagem de não constituir apenas uma crítica social baseada no que a sociedade poderia idealmente vir a ser, mas de criar projetos concretos de realização política para a sociedade burguesa emergente.
A ideia de Estado como uma entidade cuja legitimidade se baseia na pretensa representatividade da sociedade é um avanço em relação à ideia de monarquia absoluta. O Estado já não é a pessoa que governa, mas uma instituição abstrata com relações precisas com a coletividade. Além da circulação de leis e de riquezas, o Estado criava o princípio da circulação de poder. O confronto de interesses t ambém está subjacente às ideias propostas pelos políticos iluministas.
As ideias de Locke e de Montesquieu, outro importante pensador da Ilustração, foram a base da Constituição norte-americana de 1787. Ambos pregaram a divisão do Estado em t rês poderes: legislativo, incumbido da elaboração e da discussão das leis; executivo, encarregado da execução das leis, tendo em vista a proteção dos direitos naturais à liberdade, à igualdade e à propriedade; e judiciário, responsável pela fiscalização à observância das leis que asseguravam os direitos individuais e seus limites. Essa divisão estabelecia a distribuição das tarefas governamentais e a mútua fiscalização entre os poderes do Estado. Locke defendia, ainda, a ideia de que a origem do poder não estava nos privilégios da tradição, da herança ou da concessão divina, mas no contrato expresso pela livre manifestação das vontades individuais.
R SOOOLOGIfl Pfi€-CJ€NTÍFICfi
A legislação norte-americana, instituindo a divisão do Estado nos três poderes e estabelecendo mecanismos para garantir a eleição legítima dos governantes e os direitos do cidadão, pôs em prática os ideais políticos liberais e democráticos modernos. Os Estados Unidos da América constituíram a primeira república liberal-democrática burguesa.
A crise das explicações religiosas e o triunfo da ciência
Introdução: o milagre da ciência
Vários aspectos da filosofia da Ilustração prepararam o surgimento das iencias sociais no século XIX. O primeiro deles foi a sistematização do pen
s a m e n t o científico. Os efeitos de novos inventos, como o pára-raios e as vacinas, o desenvolvimento da mecânica, da química e da farmácia, eram amplamente verificáveis e pareciam coroar de êxitos as atividades científicas. Claro está que a sociedade europeia da época não se dava conta das nefastas consequências que a Revolução Industrial do século XVII I traria para o mundo tradicional agrário e manufatureiro. Aos olhos dos homens da época, eram vitoriosas as conquistas do conhecimento humano, no sentido de abrir caminho para o controle sobre as leis da natureza.
As ideias de progresso, racionalismo e cientificismo exerceram todo um encanto sobre a mentalidade da época. A vida parecia submeter-se aos ditames do homem esclarecido. Preparava-se o caminho para o amplo progresso científico que aflorou no final do século XEX.
Se a ciência tinha sucesso na explicação da natureza, poderia também explicar a sociedade, como elemento da natureza.
A crise das explicações religiosas %*J e o triunfo da ciência
Introdução: o milagre da ciência
Vários aspectos da filosofia da Ilustração prepararam o surgimento das ciências sociais no século XEK. O primeiro deles foi a sistematização do pensamento científico. Os efeitos de novos inventos, como o pára-raios e as vacinas, o desenvolvimento da mecânica, da química e da farmácia, eram amplamente verificáveis e pareciam coroar de êxitos as atividades científicas. Claro está que a sociedade europeia da época não se dava conta das nefastas conse-
encias que a Revolução Industrial do século XVII I traria para o mundo tradicional agrário e manufatureiro. Aos olhos dos homens da época, eram
: dosas as conquistas do conhecimento humano, no lentido de abrir caminho para o controle sobre as leis da natureza.
As ideias de progresso, racionalismo e cientificismo xerceram todo um encanto sobre a mentalidade da épo
ca. A vida parecia submeter-se aos ditames do homem esclarecido. Preparava-se o caminho para o amplo progresso científico que aflorou no final do século XEX.
Se a ciência tinha sucesso na explicação da natureza, poderia também explicar a sociedade, como elemento da natureza.
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Se esse pensamento racional e científico parecia válido para explicar a natureza, intervir sobre ela e transformá-la, ele poderia também explicar a sociedade vista como um elemento da natureza. E a sociedade, da mesma forma que a natureza, poderia ser conhecida e transformada.
As questões de método
O filósofo da Ilustração, além de preocupar-se com a descoberta das leis que regiam o próprio conhecimento, queria conhecer a natureza e intervir sobre ela. Dessa preocupação provieram as discussões em torno do método científico. A indução, método que concebia o conhecimento como resultado da experimentação contínua e do aprofundamento da manipulação empírica, havia sido desenvolvida por Bacon desde o f im do Renascimento. Em contraposição, Descartes defendia a validade do método dedutivo, ou seja, aquele que possibilitava descobertas pelo encadeamento lógico de hipóteses elaboradas exclusivamente a partir da razão.
A ciência se fundava, portanto, como um conjunto de ideias que diziam respeito à natureza dos fatos e aos métodos para compreendê-los. Por isso, as primaras questões que os sociólogos do século XIX tentarão responder serão relativas à definição dos fatos sociais e ao método de investigação. Tanto o método indutivo de Bacon como o dedutivo de Descartes serão traduzidos em procedimentos validos para as pesquisas sobre a natureza da sociedade.
O anticlericalismo
Um aspecto de especial importância no pensamento desse período, sobretudo aquele de origem francesa, foi o anticlericalismo. Entre os filósofos e os literatos que se insurgiram contra a religião, em particular contra a Igreja Católica, destaca-se Voltaire, que, não se atendo somente à propagação de ideias anticlericais, t ambém moveu processos judiciais contra a Igreja Católica, a fim de rever antigas condenações da Inquisição. Voltaire chegou a comprovar a injustiça de alguns veredictos eclesiais e a obter indenizações para as famílias dos condenados.
Dessa forma, a Igreja foi questionada como fonte de poder secular, político e económico, na medida em que se imiscuía em questões civis e de Estado. Tal questionamento levou a uma descrença na doutrina e na infalibilidade eclesiásticas, assim como ao repúdio à secular atuação do clero.
Esse processo, denominado por alguns historiadores "laicização da sociedade", por outros, "descristianização", atingiu seu apogeu no século XIX. Nesse período desenvolveram-se filosofias materialistas e o próprio estudo da religião como instituição social, em suas origens e funções.
A Igreja como objeto de pesquisa
A existência da Igreja como instituição social foi discutida por alguns pensadores e sociólogos do século XIX. Emile Durkheim a considerava um
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meio de integrar os homens em torno de ideias comuns. Karl Marx a julgava responsável por uma falsa imagem dos problemas humanos, ligada à acomodação e à submissão pregadas por sua doutrina.
Defendida por uns, repudiada por outros, a Igreja perdia, de qualquer maneira, o importante papel de explicar o mundo dos homens; passava, ao contrário, a ser explicada por eles. A religião começou a ser encarada como um dos aspectos da cultura humana, como algo criado pelos homens com finalidades práticas relativas à vida terrena, e não apenas à vida futura. Assim, a Igreja e sua doutrina sofreram um processo de dessacralização, em q u e se eliminou muito de seu aspecto sobrenatural e transcendente. Toda
igião — em especial o catolicismo — era agora vista de maneira favorá-' ou desfavorável, conforme sua inserção na vida concreta e material dos
homens, como promotora de valores sociais importantes para a orientação da conduta humana. Na filosofia, grandes pensadores sistematizaram o pensamento laico e anticlerical. Feuerbach, filósofo alemão, atacou a concepção segundo a qual o homem havia sido criado por Deus, invertendo a situação ao afirmar que o homem criara Deus à sua imagem e semelhança. Nietzsche chega a anunciar a morte de Deus e a necessidade de o homem assumir a plena responsabilidade sobre sua existência no mundo.
A nova maneira de encarar a doutrina religiosa auxiliou o desenvolvimento das ciências humanas, em particular das ciências sociais, na medida em que a pró- O pensamento laico-científico pria sociedade perdeu a sacralidade, isto é, deixou de permitiu pensar a sociedade ser vista como obra de Deus. Para o pensamento como obra humana e não divina. cientificista do século XIX, são os homens que criam os deuses e não o contrário. A vida humana em sociedade deixa de ser mero estágio para a vida após a morte e passa agora a buscar explicações para a existência das crenças religiosas na própria sociedade.
A sacralização da ciência
A sociologia se desenvolveu no século XIX quando a racionalidade das ciências naturais e de seu método havia obtido o reconhecimento necessário para substituir a religião na explicação da origem, do desenvolvimento e da finalidade do mundo.
Nesse momento, a ciência, com sua possibilidade de desvendar as leis naturais do mundo físico e social, por meio de procedimentos adequados e controlados, havia conquistado parte da sacralidade que antes pertencia às explicações religiosas: a de descobrir e apontar aos homens o caminho em direção à verdade.
A ciência já não parecia mais uma forma particular de saber, mas a única capaz de explicar a vida, abolir e suplantar as crenças religiosas e até mesmo as discussões éticas. Supunha-se que, utilizando-se adequadamente os métodos de investigação, a verdade se descortinaria diante dos cientistas — os novos "magos" da civilização —, quaisquer que fossem suas opiniões pessoais, seus valores sobre o bem e o mal, o certo e o errado.
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A ciência mostrava sua capacidade de desvendar o mundo.
Com a mesma proposta de isenção de valores com que se descobriria a lei da gravitação dos corpos celestes no universo, julgava-se possível descobrir as leis que regulavam as relações entre os homens na sociedade, leis naturais que existiriam independentemente do credo, da opinião e do julgamento humano. O poder do método científico assim se assemelhava ao poder das antigas práticas mágicas: bem usado, revelaria ao homem a essência da vida e suas formas de controle.
Toda essa nova mentalidade, reforçando a crença na materialidade da vida e no poder da ciência, orientou a formação da primeira escola científica do pensamento sociológico, o positivismo, que estudaremos no próximo capítulo.