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Professor José Lisboa Moreira de Oliveira
“À primeira vista, pode-se pensar que todos saibam o que se significa
com a palavra religião e religioso. Talvez tal pressuposição esteja certa en-
quanto se refere às manifestações mais ostensivas. Mas quando se trata de
precisar a essência da religião logo surgem dificuldades sem fim. Quem pode-
rá fixar os limites entre o verdadeiramente religioso e o puramente cultural,
folclórico ou social? [...]. Se compararmos o fenômeno religioso com o fenô-
meno social ou similar, podemos dizer que designamos a estrutura especial
do homem definida por sistema de relações com os outros homens [...]. No
fundo de toda a situação verdadeiramente religiosa encontra-se a referência
aos fundamentos últimos do homem: quanto à origem, quanto ao fim e quan-
to à profundidade. O problema religioso toca o homem em sua raiz ontológi-
ca. Não se trata de fenômeno superficial, mas implica a pessoa como um to-
do. Pode caracterizar-se o religioso como zona do sentido da pessoa. Em ou-
tras palavras, a religião tem a ver com o sentido último da pessoa, da histó-
ria e do mundo” (ZILLES: 5-6) 1.
“Para entender a condição humana nos seus aspectos mais profundos e
misteriosos, nós certamente devemos levar em conta a religião. Esta ajuda a
formar estruturas imaginativas e elementares sobre como nos orientamos ou
deveríamos nos orientar no cosmos. A religião dá forma e ensaia no ritual
nossos mais importantes laços, uns com os outros e com a natureza, e provê a
lógica tanto ao porque destes laços serem importantes como ao o que signifi-
ca estar comprometido com eles” (NEVILLE: 37).
1 Estes sobrenomes citados entre parênteses se referem aos autores mencionados nas referências bibliográficas no final do texto. Os números indicam as páginas da obra do autor.
UNIVERSIDADE CATÓLICA DE BRASÍLIA – UCB CURSO: Formação Básica
DISCIPLINA: Antropologia da Religião 1ª UNIDADE
O ESTUDO DA RELIGIÃO NA UNIVERSIDADE
2
Estes dois pequenos textos nos mostram quanto a religião seja algo que en-
volve o ser humano e o quanto ela tem a dizer para a existência humana2. Assim
sendo, não há como desconsiderá-la em ambientes como aquele da universidade.
Sendo uma realidade que toca o ser humano na essência de seu ser e de sua exis-
tência, ela não pode deixar de ser analisada no âmbito acadêmico. Além disso, a
religião, como será mostrado ao longo desse semestre, particularmente no Brasil,
tem uma relação toda especial com o ser humano, bem diferente de outros fenôme-
nos antropológicos. Ela, por exemplo, está na raiz de muitas normas e valores da
nossa sociedade; influi na compreensão que os seres humanos têm de si mesmos e
na identidade de muitos povos e nações. Para um número muito grande de pessoas
a religião oferece motivação para viver, ajuda a resolver problemas humanos sérios
e dá respostas para muitas questões (LEMOS: 129-142).
Notamos também como a partir da década de 1980 do século passado houve
um aumento considerável da busca por religiosidade em todo o mundo. No momento
atual, mesmo com o fenômeno da globalização, assiste-se a um multiplicar-se de
experiências religiosas. E essa “gula de Deus”, para usar uma expressão do poeta
francês Rimbaud3, é uma verdadeira tentativa desesperada para “eliminar estados
mórbidos ou de preencher o vazio deixado pelo estado de insatisfação difusa pre-
sente na sociedade moderna” (STEIL: 13).
Essa corrida para as diversas experiências religiosas é caracterizada pela plu-
ralidade, permitindo inclusive que as pessoas freqüentem simultaneamente diversas
religiões e transitem por lugares sagrados diferentes. Apesar disso, um fenômeno
tem causado muita preocupação às pessoas de bom senso: o retorno ao fundamen-
talismo, o qual se caracteriza pelo fechamento de cada religião na própria auto-
suficiência dogmática4, afirmando que vale apenas a sua verdade (TEIXEIRA: 69-
2 Pode ser que, ao estudar esse texto, você encontre termos e expressões que não lhe sejam familiares. Isso é normal, sobretudo se você estiver entrando agora na Universidade. Além disso, o campo da Antropologia e da Religião não é conhecido por muitas pessoas. Por isso não se apavore. É a coisa mais natural do mundo. Afinal de contas você não tem a obrigação de saber tudo. Sugiro então que, para saber o significado de determinadas palavras e expressões, você consulte um dicionário, a Internet ou leve a questão para ser esclarecida em sala de aula. 3 Arthur Rimbaud poeta francês (1854-1891), considerado autor pós-romântico e precursor do surrealismo e um dos maiores influentes da poesia moderna. 4 Pode ser que, ao estudar esse texto, você encontre termos e expressões que não lhe sejam familiares. Isso é normal, sobretudo se você estiver entrando agora na Universidade. Além disso, o campo da Antropologia e da Religião não é conhecido por muitas pessoas. Por isso não se apavore. É a coisa mais natural do mundo. Afinal de contas você não tem a obrigação de saber tudo. Sugiro então que, para saber o significado de determinadas palavras e expressões, você consulte um dicionário, a Internet ou leve a questão para ser esclarecida em sala de aula pelo professor.
3
80). Desse modo recusa-se a cultivar um espírito interativo, não querendo ouvir a
parcela de verdade presente nas outras crenças religiosas. “Fundamentalismo re-
presenta a atitude daquele que confere caráter absoluto ao seu ponto de vista”
(BOFF: 25). Com isso termina-se por não descobrir uma imagem mais verdadeira
dos que professam outra fé e a não contribuir para a construção da paz. De fato,
“quem se sente portador de uma verdade absoluta não pode tolerar outra verdade, e
seu destino é a intolerância” (Ibidem)5. Com freqüência o acirramento entre as religi-
ões contribui para a geração do ódio e da violência.
É verdade que, hoje, existem também outros tipos de fundamentalismos.
“Todos os sistemas, seja culturais, científicos, políticos, econômicos e até ar-
tísticos, que se apresentam como portadores exclusivos da verdade e de so-
lução única para os problemas devem ser considerados fundamentalistas. Vi-
vemos atualmente sob o império feroz de vários fundamentalismos” (Ibid.:
38).
Desse modo, temos hoje a ditadura do neoliberalismo, do paradigma científico
moderno e do fundamentalismo político. O fundamentalismo econômico neoliberal
condena à exclusão social bilhões de pessoas. O fundamentalismo científico destrói
a natureza e a vida, transformando-se, muitas vezes, numa verdadeira máquina de
morte. Por fim, o fundamentalismo político espalha, com seus discursos demagógi-
cos de defesa do bem, muitas vezes mesclado com o fundamentalismo religioso,
terror e ódio por toda parte. Isso porque é próprio do fundamentalismo “responder ao
terror com terror, pois se trata de conferir vitória à única verdade e o bem e destruir a
falsa ‘verdade’ e o mal” (Ibid.: 42-43).
Não podemos esquecer que há uma relação profunda entre fundamentalismo
e política. Para os fundamentalistas a ação política deve ser sempre orientada pela
verdade religiosa. A sociedade perfeita é aquela que se submete a verdade religio-
sa. “Essa investida sobre a política em nome da religião é um aspecto central dos
movimentos de renovação religiosa que começaram a se formar em todo o mundo
desde a década de 1970” (DREHER: 83). A partir desse princípio justificam-se inter-
venções como a ocupação de territórios por parte do estado de Israel, a revolução
que proclamou a república islâmica do Irã em 1979, a eleição do ultraconservador
5 A expressão técnica latina “ibidem” (abreviada: “ibid”.) significa literalmente “no mesmo lugar”. Nesse texto indica o autor citado anteriormente.
4
Ronald Reagan como presidente dos Estados Unidos em 1980, a organização da
“bancada evangélica” no parlamento brasileiro e a constituição de partidos políticos
com conotações e motivações religiosas (Ibid.: 82-86).
O crescimento dos fundamentalismos é reforçado, hoje, pelo fenômeno da
manipulação das informações que acaba levando as pessoas a saberem cada vez
menos. Dessa forma os que detêm o poder político e econômico controlam as infor-
mações e acabam por impor sobre os demais os seus pontos de vista e as suas ide-
ologias. Na grande mídia um determinado fato ou acontecimento nunca chega às
pessoas na sua originalidade. Pelo contrário, ele “já é entregue maquiado ao leitor,
ao ouvinte, ao telespectador, e é também por isso que se produzem no mundo de
hoje, simultaneamente, fábulas e mitos” (SANTOS: 40). Por esse motivo começa a
existir certa insistência para que a explicação da realidade, inclusive aquela religio-
sa, não seja feita de forma unilateral, a partir apenas de uma única forma de saber
dominante, mas tendo presente o espírito da universalidade, o qual consiste na bus-
ca da verdade em todos os campos integrados entre si (FILORAMO; PRANDI: 5-6).
Relacionando esta questão do conhecimento com a realidade da experiência
religiosa podemos então concluir que a reflexão e a busca do saber podem contribuir
para uma perfeita interação entre a redescoberta e valorização do ser (antropologia),
do crer (religião) e do fazer (ação das ciências).
A Antropologia da Religião, partindo de uma reflexão sobre a humanidade e
sobre a cultura como realidades complexas, busca compreender como o ser humano
foi e continua sendo visto por ele mesmo e por uma das suas mais significativas e
originais manifestações, a religião. Naturalmente não será possível analisar cada
uma das religiões, mesmo aquelas mais conhecidas. Faremos, sim, uma análise ci-
entífica do fenômeno religioso, enquanto experiência antropológica, isto é, do ser
humano. E ao fazermos isso poderemos nos reportar a manifestações culturais e
religiosas do mundo, particularmente as mais conhecidas e as que mais influenciam
a vida do povo brasileiro. Na análise das diversas visões antropológicas advindas
das diferentes culturas e religiões nos esforçaremos para perceber a riqueza de ca-
da uma delas, desfazendo preconceitos, reconstruindo nosso pensar, mesmo sem
renunciar à necessária crítica.
1. O estudo da Religião na Universidade
5
Pode acontecer que muitos estudantes, ao ingressarem na Universidade Ca-
tólica de Brasília (UCB), se perguntem sobre o porquê dessa disciplina de formação
geral. Por que estudar religião na Universidade? De início pode haver perplexidades
e até resistência a uma disciplina que parece ser imposta e que deixa a impressão
de que vem para doutrinar os estudantes. Todavia, como veremos no decorrer do
semestre, trata-se simplesmente de estudar um fenômeno profundamente humano e
que está arraigado no coração da humanidade. No caso do Brasil, por exemplo,
quase 93% da população, segundo o Censo do IBGE de 2000, se declaram adeptos
de uma religião.
Ora, uma universidade não pode desconsiderar nenhuma realidade. Pelo seu
caráter de universalidade ela tem o dever de estudar todos os fenômenos que tocam
a humanidade. Não se pode justificar certa indiferença diante de algo que marca
profundamente a existência humana desde o seu início. Uma universidade que se
recusasse a estudar o fenômeno religioso estaria deixando de cumprir o seu papel.
Por isso até mesmo universidades públicas como a Universidade de Brasília, a Fe-
deral de Juiz de Fora e a Estadual do Pará possuem cursos e departamentos volta-
dos para o estudo do fenômeno religioso.
Assim sendo, a UCB sente-se na obrigação de oferecer a seus estudantes,
através da disciplina Antropologia da Religião, uma reflexão séria não só sobre o ser
humano e a cultura, mas também uma análise antropológica sobre o fenômeno reli-
gioso. Não se trata, portanto, de uma catequese ideológica visando conquistar os
estudantes para a Igreja Católica. O que se pretende é, ao mesmo tempo, conhecer
de modo científico o fenômeno religioso e os aspectos antropológicos dele decorren-
tes. De fato, como veremos ao longo do nosso estudo, o fenômeno religioso interfere
na vida social, política e econômica dos povos.
A UCB tem a convicção de que, enquanto freqüentadores do espaço acadê-
mico, nós somos formadores de cultura e, quase todos, também participantes ou
pelo menos simpatizantes das grandes religiões. Com isso tenta colaborar para que
a nossa cultura religiosa efetivamente contribua para melhorar as condições de vida
digna da nossa população. De fato, como afirma Küng, “a religião não serve somen-
te para a opressão, mas também para a libertação das pessoas. E isso não só de
uma forma psíquico-terapêutica, mas também na dimensão social” (KÜNG, 2003:
85-86).
6
Para compreender melhor essa situação é indispensável entender que a a-
bordagem do saber se caracteriza atualmente pelo diálogo, pela interdisciplinaridade
e pela integração. Não podemos mais reduzir a ciência a um método puramente em-
pírico, limitando o conhecimento ao puramente perceptível na ordem material ou físi-
ca. O saber e a ciência são feitos também de estudos sérios sobre determinadas
questões que tocam a essência humana e a sua existência. Aliás, a situação atual
do mundo, seriamente ameaçado por problemas como o aquecimento global, exi-
gem uma reflexão que vai além da simples experimentação em laboratórios. E um
cientista que se preze não pode ser alguém preso a um saber parcial, desarticulado
e incompleto. A busca da verdade exige complementaridade entre os diversos âmbi-
tos do conhecimento. De fato, o caminho da ciência conheceu ultimamente uma “vi-
rada”, passando da reflexão sobre as leis da natureza para uma busca de conheci-
mento sobre o próprio ser humano. Busca-se uma ciência que esteja a serviço da
humanidade e não contra ela.
Hoje estamos convencidos de que ninguém tem o monopólio da verdade e
que a “nova humanidade” com a qual tanto sonhamos passa necessariamente pela
capacidade de convivência e de solidariedade (FILORAMO; PRANDI: 6-12). No atual
debate epistemológico, isto é, sobre o conhecimento e o saber, tem ficado bem claro
que não é mais possível “definir um modelo científico, em função de um modelo de
ciência. A ciência ‘monoteísta’, baseada num conceito racionalmente fortalecido, foi
substituída por uma concepção mais flexível e pluralista, com seu correspondente
‘politeísmo’ metodológico” (Ibid.: 11). Isso significa que existem vários métodos cien-
tíficos e não apenas um e que tais métodos são complementares. Essa mudança se
verificou também no âmbito das ciências humanas, valorizando-se inclusive as ca-
pacidades criativas e intuitivas do pesquisador, a sua subjetividade. Aliás, a mudan-
ça foi muito mais além. Procurou superar o positivismo e o evolucionismo científico
substituindo o modelo da contraposição pelo modelo de integração entre as ciências
naturais e as ciências humanas (Ibid.: 10-12).
Sabemos como, no passado, a relação entre fé e ciência foi bastante tumultu-
ada. Por um lado, a religião condenava a autonomia da ciência, pretendendo ter a
última palavra sobre tudo. O caso Galileu é paradigma dessa realidade6. Por outro, a
6 Galileu Galilei nasceu na Itália em 1564. Foi físico, matemático e astrônomo e inventou o telescópio. A partir de suas observações dos astros passou a defender a teoria heliocêntrica, ou seja, de que o Sol era o centro do universo e não a Terra, como se pensava então. Por isso foi condenado e obrigado a comparecer diante do Tribu-
7
ciência considerava a religião desnecessária e alienante. A pregação da morte de
Deus foi expressão desse radicalismo7. Hoje se percebe um esforço para uma maior
interação entre ambas, apesar de ainda assistirmos a episódios de intolerância e de
fundamentalismo.
2. Objetivo da Antropologia da Religião
A Antropologia da Religião se insere dentro desse objetivo. Ela pretende co-
laborar para o conhecimento do que é bom para o ser humano em todas as suas
dimensões e sentidos. A partir dessa perspectiva é significativa a sua presença nu-
ma universidade. Como sabemos, a universidade surge, por iniciativa da Igreja Cató-
lica, na Idade Média. Aos poucos ela foi se definindo como centro de criatividade e
de irradiação do saber em vista do bem de toda a sociedade (RIBEIRO: 13-27). Fi-
cavam assim muito claras as suas três funções básicas: investigação (pesquisa),
formação das pessoas (ensino) e serviço à comunidade (extensão).
Enquanto católica, a universidade, além de ter um objetivo comum com as
demais universidades, busca uma integração da ciência com a experiência de fé das
pessoas. “Sua tarefa privilegiada é unificar existencialmente, no trabalho intelectual,
duas ordens de realidade que, não raro, tendem a se opor, como se fossem antitéti-
cas: a investigação da verdade e a certeza de conhecer, já, a fonte da verdade”
(JOÃO PAULO II).
A disciplina Antropologia da Religião aqui na UCB está dividida em três eixos
complementares. Começa com a reflexão sobre o estudo da religião na Universida-
de. Em seguida fala da conceituação, objeto e objetivo da Antropologia. Trata das
suas divisões e campos de atuação, além dos métodos, técnicas de pesquisa e prin-
cipais aplicações dessa ciência na vida concreta dos homens e das mulheres.
Em seguida estuda a cultura, analisando os seus principais elementos: natu-
reza, estrutura e os níveis de participação dos indivíduos nos processos culturais.
Analisa as qualidades da cultura, os processos culturais e a relação entre cultura e
personalidade. Aborda temas relacionados com a questão antropológica, cultural e
cultural religiosa: a) a presença, as relações e a influência das religiões nas culturas
nal da Inquisição e a assinar um termo no qual renunciava à teoria heliocêntrica. Morreu em 1642, condenado pela Igreja Católica, tendo as suas obras censuradas e proibidas. 7 A morte de Deus foi proclamada por uma corrente filosófica chamada niilismo, cujo representante principal foi o filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900).
8
e vive-versa; b) o pluralismo cultural e o pluralismo religioso; c) conflitos religiosos e
culturais, diálogo, relativismo, aprendizado da cultura da paz d) religião e cidadania.
Por fim, faz uma análise antropológica do fenômeno religioso. Estuda a
religião como sistema de representação e sistema cultural, aprofundando conceitos
como sagrado, profano, religiosidade e religião, magia e sincretismo religioso. Faz
ainda estudos e pesquisas sobre as culturas religiosas brasileiras, vendo como se
deu a formação cultural e religiosa do povo brasileiro e quais os elementos e carac-
terísticas peculiares das nossas culturas. Conclui o estudo com uma pesquisa acer-
ca da contribuição das culturas religiosas para a paz, tendo presente que a alterida-
de, característica forte dessas culturas religiosas, é a base para o diálogo, de modo
que o diferente não seja visto como adversário. No final verifica a relação que existe
entre o âmbito religioso e outros âmbitos da vida social
3. O estudo científico da Religião
Os primeiros estudos acerca da religião se moveram num espaço muito limi-
tado e usaram métodos que hoje são considerados superados. Por essa razão sen-
te-se cada vez mais a necessidade de um tipo de pesquisa que leve em conta a glo-
balidade, mesmo que isso possa comportar alguns riscos, como, por exemplo, aque-
le de não aprofundar os detalhes de cada experiência religiosa (MOREIRA: 17-35).
A partir do século XIX o estudo da religião foi sendo influenciado pelo proces-
so de ramificação das ciências naturais e humanas. Além disso, o declínio da hege-
monia cristã no Ocidente contribuiu significativamente para a revisão de muitos pa-
râmetros. O desencanto do mundo e com o mundo suscitou uma reflexão mais sis-
temática e crítica, livre da influência da filosofia e da teologia cristã. A tradição cristã
teve que se confrontar com outras tradições religiosas que se tornavam cada vez
mais conhecidas, graças aos relatos e testemunho dos missionários cristãos e dos
viajantes europeus. “O interesse crescente pelas religiões vivas, por exemplo, obri-
gou sociólogos e psicólogos da religião a sair dos confins de uma sociologia e psico-
logia cristianocêntrica para confrontar-se com a globalidade do fenômeno religioso”
(FILORAMO; PRANDI: 25).
Em vista disso surgiu nas universidades, a partir de então, uma disciplina que
se chamou inicialmente História das Religiões, com a finalidade de fazer um estudo
comparado das diferentes tradições religiosas, em vista de uma reconstituição da
9
evolução da trajetória religiosa da humanidade. Mais tarde essa disciplina passou a
se chamar Ciência da Religião, com a finalidade de unificar as diversas contribuições
provenientes dos diferentes estudos feitos através da observação de muitos estudio-
sos.
No final do século XIX, com a crise do positivismo8, os pressupostos da Ciên-
cia da Religião começaram a ser seriamente questionados. Mas somente no início
do século XX acontece uma mudança substancial. Passa-se aos poucos da preten-
são de querer explicar a religião para o princípio da compreensão. A religião passa-
va a ser vista a partir de uma estrutura própria e de uma verdade que ia sendo aos
poucos desvelada, de acordo com o desenrolar da pesquisa. No modelo de compre-
ensão se propunha um esforço para captar a experiência germinal livre e criadora
que está na base de cada fenômeno religioso e cultural. Neste modelo tem-se como
pressuposto o fato de que a religião tem a sua autonomia absoluta. Ela se explica
por si mesma, não estando necessariamente condicionada aos pressupostos epis-
temológicos das ciências.
4. Os conceitos de Religião
Para que o nosso estudo possa atender ao seu objetivo é indispensável, an-
tes de tudo, compreender o conceito de “religião” (FILORAMO; PRANDI: 253-284).
Isso é necessário porque nem sempre esse termo possuiu, ao longo dos séculos, o
mesmo significado para todas as pessoas. Além disso, num mundo globalizado e
informatizado, como o nosso, esse conceito de religião vem passando por muitas
compreensões e significados (POMPA: 153-170).
Nós estamos acostumados ao conceito cristão de religião que se firmou a par-
tir do século V d.C. com o escritor latino Macróbio, o qual fazia o termo religião deri-
var do verbo latino relinquere, isto é, deixar, abandonar. Religião seria, então, o ato
de abandonar-se nas mãos de Deus. Um pouco antes disso, entre os séculos III e IV
d.C., o escritor Lactâncio já tinha afirmado que religião vem do verbo religare. Neste
caso a religião seria um vínculo de piedade que nos une e nos liga a Deus. Mais ou
menos nesse período, Agostinho (354-430 d.C.), escritor cristão que vivia no norte
8 O positivismo foi uma corrente filosófica surgida no século XIX, cujo mentor e iniciador principal foi Augusto Comte. Foi uma reação ao idealismo, opondo ao primado da razão, o primado da experiência sensível e dos dados positivos. O positivismo propôs uma ciência sem teologia ou metafísica, baseada apenas no mundo físico (material).
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da África, nas suas obras De civitate Dei (A Cidade de Deus) e De vera religione
(Sobre a verdadeira religião) afirma que o termo religião vem do verbo religere, isto
é, “reeleger”, entendendo-a como movimento humano de retorno a Deus. Agostinho
entende a religião como sendo uma passagem da negligência para a diligência, ou
seja, do descuido para a atenção, o cuidado para com Deus, fazendo dele o centro
das atenções e do amor da pessoa humana.
Percebe-se que mesmo no cristianismo o termo “religião” teve vários signifi-
cados, embora a partir de Agostinho passe a ser definido como ligação, feita de
submissão e de amor, entre a pessoa humana e Deus. No século XIII Tomás de A-
quino, na sua Suma Teológica, unificará os diversos conceitos, afirmando que religi-
ão implica uma relação com Deus. Tal concepção passará de forma definitiva para a
cultura cristã. E como o cristianismo, especialmente na sua versão católica, foi du-
rante muitos séculos o único modelo de religião na Europa, o conceito tomista per-
maneceu imutável mesmo depois do debate provocado pelo iluminismo.
Não podemos, porém, esquecer que em outras culturas existem significados
próprios de religião que chegam a serem diferentes daqueles dados pelo cristianis-
mo. Não podemos, mesmo que brevemente, deixar de analisar tais conceitos, uma
vez que eles são importantíssimos para o nosso objetivo, que é estudar a religião
como manifestação antropológica e cultural.
Antes de tudo é importante afirmar que para as culturas mais antigas, como
aquela dos aborígines da Austrália, a religião nada mais era do que a transmissão,
através da crença, “de uma visão da vida, uma atitude perante a vida e uma norma
para o bem viver” (KÜNG, 2004: 16). A religião estava intimamente vinculada com a
vida concreta das pessoas. A separação entre religião e vida é algo recente, fruto do
positivismo e da modernidade.
No hinduísmo, por exemplo, considerado a religião atual mais antiga, a religi-
osidade está tão associada à vida que é impossível dissociá-la da alegria e da festa.
De fato, como todas as religiões mais antigas, também o hinduísmo tem a sua ori-
gem nos cultos de fertilidades. Nesses cultos o encontro com a divindade se dá na
vida concreta, naquilo que as pessoas realizam ao longo dos ciclos da vida. Por es-
sa razão a força dessas religiões se manteve estática e presente por milênios, tendo
os seus ritos e cultos atravessado dezenas de séculos (Ibid.: 55-60).
A religião para os antigos, para as antigas civilizações, é um repetir-se de ri-
tuais e de ritos que coloca as divindades em contato com as pessoas para oferecer
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aos seres humanos segurança e proteção. Há, pois, uma verdadeira relação entre
os cultos religiosos, a natureza, a casa (família, comunidade) e o templo. Diferente-
mente de nós ocidentais, as religiões antigas, e, sobretudo, as orientais, não conse-
guem separar o divino do humano. Toda a realidade está permeada pela presença
da divindade, de modo que haveria uma “sacralização” de tudo, pois toda a realida-
de, todas as coisas da natureza expressam o transcendente e dele são símbolos.
Nesse sentido elas foram muito valiosas para a humanidade porque, com essa sen-
sibilidade, souberam venerar e preservar a natureza. Pelo contrário, os ocidentais
com a visão do primeiro livro da Bíblia de que o ser humano é o “representante” de
Deus para “dominar tudo” (Gn 1,28-30), acabaram por destruir o planeta, colocando
em sério risco a vida na Terra.
Poderíamos então afirmar que segundo essas culturas não ocidentais, a reli-
gião é a intervenção permanente da divindade para corrigir o caos, para gerar a vi-
da, para pô-la em ordem e para manter essa ordem. Pôr em ordem aqui significa
fazer com que cada ser e cada coisa funcionem com perfeição, interajam com os
demais, sem ameaçar ou desequilibrar a inteira criação. É o que vemos, por exem-
plo, na narrativa judaico-cristã primitiva da criação do mundo, presente no livro do
Gênesis, na qual a divindade age para pôr ordem no caos reinante que fazia da terra
algo “deserto e vazio” (Gn 1,1-2). Uma intervenção, como veremos mais adiante no
estudo dos mitos, que se deu no início, mas que continua no presente, nos momen-
tos mais significativos da vida das pessoas e das comunidades. Portanto, para as
culturas não ocidentais a religião não é, como hoje, algo privatizado, uma relação do
indivíduo com a divindade, mas uma atividade essencialmente comunitária. O divino
age na comunidade e por meio da comunidade. Para se comunicar com o divino a
pessoa precisa estar inserida num grupo, numa comunidade. Isolada ela não conse-
gue essa façanha.
Isso também está presente, por exemplo, na cultura chinesa com cerca de
cinco mil anos de história (Ibid.: 96-148). Nela a religião está muito voltada para a
questão da vida. Nascimento, casamento, morte e outros acontecimentos são ocasi-
ões para venerar os ancestrais e os deuses. Aliás, nas religiões chinesas os deuses
são domésticos, no sentido que elas funcionam sem a presença de sacerdotes, sem
doutrinas, sem dogmas, sem normas religiosas e sem hierarquia para vigiar o com-
portamento das pessoas.
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Não é, pois, de admirar que tal cultura religiosa fascine os ocidentais, especi-
almente pelo seu humanismo ético, no qual se passa de uma religiosidade mágica
para a racionalidade. Tal passagem consiste basicamente na prioridade dada ao ser
humano em relação aos espíritos e aos deuses. Por essa razão, ainda hoje, busca-
mos, nos chineses, soluções para alguns dos nossos problemas. Mais recentemente
tem crescido a busca pela medicina chinesa, especialmente a de tradição taoísta, a
qual está revestida da visão integral do ser humano (Ibid.: 123-124).
As culturas não ocidentais, especialmente as mais antigas, costumam não dar
conceitos descritivos das coisas e das realidades. Elas preferem a linguagem indire-
ta, como, por exemplo, a narrativa de mitos, as parábolas e o uso de simbologias.
Analisando essa linguagem simbólica e mitológica podemos concluir que, para tais
culturas, a religião é: a) intervenção da divindade, para manter o ser humano inte-
grado numa comunidade; b) resposta do ser humano assumindo a sua condição de
criatura da divindade, participando da comunidade; c) relação com a divindade que
se expressa em relações éticas com os demais membros da comunidade; d) relação
com o transcendente que gera no sujeito dever moral e responsabilidade social; e)
relação com o divino que determina o respeito pelo outro; f) relação com o divino que
faz do sujeito filho da Terra e cultivador de uma grande harmonia com a natureza; g)
relação que se abre para a transcendência, para uma vida que se amplia para além
dos horizontes terrenos.
5. Análise da função da religião na sociedade
No final do século XIX e início do século passado houve um deslocamento na
questão do estudo da religião. Passou-se aos poucos da análise da religião em si
para o seu aspecto funcional. Os estudiosos não buscavam tanto saber o que é reli-
gião, mas procuravam analisar a função da religião num grupo humano ou social.
Tentavam responder à pergunta: para que serve a religião? Os cientistas interessa-
dos na questão funcional da religião recuperam uma afirmação do poeta latino Lu-
crécio (século I a.C.), o qual sustentava que se as pessoas encontrassem uma saída
segura para os seus problemas e tribulações certamente esqueceriam e até se opo-
riam à religião.
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Para Lucrécio a origem da religião está no medo e por isso o seu destino é a
extinção, na medida em que as pessoas adquirirem racionalidade e consciência. Eis
como ele se expressava:
“Qual coração não se sente tomado pelo medo dos deuses, qual homem não
mantém seus membros retesados de terror quando, sob os golpes aterrori-
zantes dos raios, a terra treme e se ilumina por toda parte, e surdos lamentos
percorrem toda a extensão do céu? Não é verdade que os povos e nações se
apavoram e que até empavonados reis empalidecem, tomados pelo medo
dos deuses? [...] Se os homens vissem que há uma saída segura para as su-
as tribulações, teriam condição de opor-se às religiões e às ameaças desses
adivinhos” (apud FILORAMO; PRANDI: 259).
Com esse deslocamento há uma retomada da crítica iluminista a religião. Re-
cupera-se, por exemplo a crítica de Voltaire, o qual, no seu Dicionário filosófico, dizi-
a, entre outras coisas, que a religião melhor é aquela simples, com pouquíssimos
dogmas, que ajude a pessoas a serem mais justas, que não obrigue a crer em ab-
surdos e em coisas contraditórias e impossíveis; que ensine apenas a adoração a
Deus, bem como a justiça, a tolerância e a humanidade.
Tal crítica lembrava que o papel das religiões é trabalhar pela melhoria das
classes mais pobres. Relembrava os chamados “mestres da suspeita” (Marx, Weber,
Freud, etc.) que fizeram sérias críticas à religião. Marx, por exemplo, seguindo a filo-
sofia de Feuerbach, insistirá no fato de que a religião é alienação, ou seja, estra-
nhamento, despossessão do ser humano de si mesmo. Projetando a sua essência
na figura de Deus a pessoa humana se torna alheia a si mesma (COLLIN: 28-57).
Freud, por sua vez, afirmará que a religião é uma pura ilusão que nasce de um esta-
do patológico da condição humana. Ela apresenta apenas soluções erradas para a
situação das pessoas e se extinguirá quando for removida essa patologia. A religião
é, ao mesmo tempo, o sintoma e o falso remédio dessa patologia (FILORAMO;
PRANDI: 173-179).
No dizer de Cipriani essa análise da religião salienta “a conotação funcional, o
papel da religião na sociedade” (CIPRIANI: 8). Não importa tanto definir o que é a
religião, a sua referência à divindade, mas ver o seu caráter funcional, ou seja, se
ela, de fato, ajuda a melhorar a qualidade de vida da população. Assim sendo, “a
atenção é colocada sobre a regulação das relações entre aquilo que é humano e
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aquilo que é sobrenatural, de modo que a definição implícita de religião se torna
nesse caso também de tipo funcional, enquanto serve para gerenciar relações” (I-
bid.: 9).
Mesmo reconhecendo que a experiência religiosa é um fenômeno antropoló-
gico universal, os estudiosos da religião concentram suas pesquisas em torno da
influência ou ingerência da religião na construção social da realidade e na concep-
ção de mundo. Analisando a capacidade que as experiências religiosas têm de re-
duzir a incerteza, de determinar o que parece indeterminado, de representar o que
não pode ser representado, os teóricos buscam perceber de modo científico a forma
como a religião interfere na formação da complexa estratificação e diferenciação que
vigoram nas sociedades (Ibid.: 11-16)
Nesta linha, estudiosos, como o sociólogo norte-americano Yinger, passam a
polarizar a definição de religião em torno do tema da ultimate concern (preocupação
última). O termo “último”, segundo esses estudiosos, não se refere a algo metafísico9
ou transcendente e nem pretende negá-lo. No dizer de Yinger a religião é uma res-
posta para as questões terrenas, deste mundo, especialmente para aqueles casos
nos quais a técnica e a ciência não conseguiram eliminar certos problemas da hu-
manidade como o sofrimento, o mal, a hostilidade e as injustiças. A religião então
teria esse papel de buscar uma solução definitiva para tais problemas. Esquecer es-
se aspecto é, segundo Yinger, cair na abstração. Se o estudo científico da religião
esquece o papel de legitimação social que ela sempre exerceu, estará esvaziando-a
de seu real e verdadeiro conteúdo.
“A religião pode ser pensada como um modo último de resposta e de adapta-
ção; é uma tentativa de explicar aquilo que de outra maneira não seria expli-
cável; de recuperar o vigor quando todas as outras forças terminam; de ins-
taurar o equilíbrio e a serenidade diante do mal e do sofrimento, que outros
esforços não foram capazes de eliminar” (apud FILORAMO; PRANDI: 267).
Tendo presente essa realidade da importância da religião como resposta para
as questões mais importantes das pessoas, outros autores, como o sociólogo Robert
Bellah, passaram a defender a tese de que a religião, com seus símbolos, mecanis-
mos e rituais, desempenha um papel fundamental na definição e na defesa da iden-
9 Metafísico é aquilo que está além do físico, do material. É o que está relacionado ao sobrenatural. Assim sendo, a Metafísica é a ciência que estuda o sobrenatural.
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tidade coletiva. O estudioso inglês Raymond Firth afirma que a religião intervém co-
mo instrumento na defesa e na proteção dos objetivos e dos valores de um determi-
nado grupo humano, quando esses são ameaçados por situações e experiências
que fogem do controle humano. Nesse sentido a religião é “uma relação que liga o
homem, dentro da sociedade, aos seus fundamentais fins e módulos de valor, atra-
vés de algumas entidades e forças não-humanas” (apud ibid.: 268).
Percebe-se com isso que a leitura funcional da religião se impôs entre os es-
tudiosos nos últimos tempos. Na pós-modernidade, lembra Luhmann, a religião pode
apenas oferecer modelos de interpretação que facilitem o processo de integração
daquilo que está fragmentado e dividido. E para manter esse papel um conceito es-
sencial, segundo René Girard, é aquele de sacrifício, entendido como ritualização
preventiva das tendências agressivas que surgem nas sociedades.
“O religioso visa sempre a aplacar a violência, impedir que ela se desenca-
deie. Os comportamentos religiosos e morais visam à não-violência de modo
imediato na vida cotidiana e, freqüentemente, de modo imediato na vida ritual,
através do trâmite paradoxal da violência. O sacrifício chega a afetar o con-
junto da vida moral e religiosa [...] O religioso primitivo domestica a violência,
regula-a, ordena-a e canaliza-a, com a finalidade de usá-la contra todas as
formas de violência propriamente incontrolável, e isso num clima geral de não
violência e de calma” (apud ibid.: 271).
Girard acredita que a disposição para o sacrifício é essencial para manter a
unidade e impedir a autodestruição da sociedade. Por isso ele vê uma relação entre
religião e violência, Para impedir que a violência se desencadeie apela-se para a
violência do sacrifício. Isso aconteceria inclusive no cristianismo que tem como refe-
rência o sacrifício de Cristo. O objetivo da religião seria manter a paz, mas para se
chegar à paz nunca se dispensa a violência sacrifical, ou seja, a canalização da vio-
lência nas suas formas incontroláveis para a não-violência e a calma. O sacrifício,
cultivado por meio dos ritos, faz com que os conflitos não eclodam em violência e em
vingança. Seria uma forma diferente de dar vazão ao desejo interior de praticar a
vingança, diante de uma violência sofrida. Os sacrifícios ritualizados restauram a
harmonia nas sociedades e grupos; fazendo com que as comunidades readquiram a
tranqüilidade e a serenidade, reforçando, desse modo, a unidade de uma nação ou
de uma cultura.
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6. A classificação das religiões
Essa constatação colocou um dilema para a classificação das religiões. De
fato, o estudo comparado das religiões tinha sugerido a existência de um núcleo, de
um denominador comum mínimo próprio de todas as religiões. A observação atenta
desses detalhes permitiu que estudiosos como Ugo Bianchi pudessem afirmar que
as religiões não são religiões no mesmo sentido desse termo. Nas diversas religiões
não está presente, na sua inteireza, apenas um único gênero de “religião”, com sig-
nificado unívoco. Por isso toda comparação entre religiões deve ser uma “categoria
vaga”, isto é, “uma categoria usada de maneira que seja vaga o suficiente para dei-
xar espaço para a coexistência de diferentes coisas em sua abrangência” (NEVILLE:
52).
Não podemos esquecer que os detalhes, as nuanças, geralmente são as mais
importantes características de uma tradição religiosa. Por isso autores como Terrin
insistem em dizer que toda classificação das religiões é imprópria porque se baseia
em critérios que terminam por ser discriminativos (TERRIN: 319-320). Assim sendo,
quando se quer tentar uma classificação, duas coisas são muito importantes no es-
tudo das religiões: a) que o estudioso esteja muito atento para o paradigma de reli-
gião do qual ele é portador; b) que o fenômeno religioso seja profundamente exami-
nado em todas as suas estratificações e não de modo superficial.
Somente a partir desses dois princípios é que se pode tentar uma tipologia
que possa ordenar a grande quantidade de religiões. Sem tais cuidados corre-se o
risco de construir apenas rotulações, as quais não são suficientes para expressar
toda a complexidade, variedade e riqueza do fenômeno religioso. De fato, “a exigên-
cia de rotular as religiões carrega também o risco de construir um mapa abstrato de
etiquetas, em si mesmo insuficiente para expressar a complexidade e a polivalência
dos objetos assim definidos” (FILORAMO; PRANDI: 275). Os estudiosos da questão
afirmam, então, que é preciso fazer uma abordagem que parta de um traço saliente
ou primário, mas sem a pretensão de comprimir a complexidade de um determinado
fenômeno religioso nos seus limites. Trabalha-se, no dizer de Neville, com “categori-
as vagas”, com conceitos que deixam sempre espaço para a inclusão em seu âmbito
de elementos novos.
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Outra questão problemática que influencia a classificação das religiões é a di-
ficuldade que os estudiosos encontram para separar a religião da magia, entenden-
do essa última como atribuição de poderes sobrenaturais a coisas, a objetos, sem
necessariamente acreditar em seres ou entidades divinas.
Tendo presentes essas considerações, a maioria dos estudiosos classifica as
religiões em duas categorias (Ibid.: 276-282):
a) Religiões étnicas ou pré-históricas, ligadas às culturas primitivas, mais an-
tigas. Elas inicialmente eram iletradas, embora mais tarde passassem a
ser dotadas de escrita. Uma das suas principais características é a de não
ter um fundador historicamente identificável e nem uma mensagem para
ser transmitida às gerações seguintes. Exemplos desse tipo de religião: a
religião egípcia, as religiões do Oriente Médio, o hinduísmo, as religiões
pré-colombianas e as religiões gregas e romanas. Geralmente essas reli-
giões são politeístas.
b) Religiões universais, assim chamadas porque querem se expandir, isto é,
ultrapassar os próprios limites geográficos, sociais e lingüísticos, com a fi-
nalidade de fazer adeptos. Possuem um fundador identificável histórico ou
mítico, e uma linguagem a ser transmitida às gerações futuras. Normal-
mente são monoteístas. Exemplos desse tipo de religião: o cristianismo, o
judaísmo e o islamismo. Com relação ao judaísmo existem dificuldades
para encaixá-lo em uma definição tipológica, uma vez que a sua vocação
universalista firmada durante a diáspora10 choca com a sua tradição étni-
co-cultural voltada para a sustentação da identidade do Estado de Israel.
Todavia, convém lembrar que o binômio étnico-universal não está revestido
de contradição. Encontram-se traços de universalidade nas religiões étnicas, como
por exemplo naquela egípcia, e o fenômeno do fechamento nas religiões universais.
Na história do cristianismo isso é bem visível. Ela está cheia de rupturas e de leituras
ideológicas bem localizadas, chegando inclusive a constituir-se em “confissões” dis-
tintas. Tais diferenças se constituíram a partir dos choques dos dinamismos da reli-
10 Chama-se diáspora judaica o fenômeno da dispersão dos judeus pelo mundo que, segundo alguns estudiosos, teria começado em 721 a.C. quando o reino de Israel foi invadido pela Babilônia. Atualmente somente 40% dos judeus vivem no Estado de Israel.
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giosidade popular com a religião oficial ou a partir da relação dialética entre religião
e política. De modo que para compreender bem uma religião não é suficiente deter-
se na análise da sua mensagem ou revelação oficial, mas é fundamental analisar
criteriosamente o modo como se deu a sua vivência em determinadas épocas e lu-
gares.
Embora essa seja a grande classificação adotada pela maioria dos estudio-
sos, existem também outras formas de classificação. Há autores, por exemplo, que
falam de religiões místicas (primitivas), sapienciais (orientais: chinesas, japonesas) e
reveladas ou proféticas (judaísmo, cristianismo, islamismo). Outros vão falar de mo-
noteísmo, politeísmo e panteísmo como formas de crença no divino. Porém, como
observa muito bem Terrin, qualquer forma de classificação das religiões, embora
tenha o seu lado prático, pode sempre cometer injustiças, uma vez que corre o risco
de excluir aspectos importantes do patrimônio religioso e cultural de cada uma delas.
Ele observa, por exemplo, que toda religião, de um modo geral, tem os seus aspec-
tos místicos, sapienciais e proféticos (TERRIN: 319-333). Além disso, toda classifi-
cação pode também conter uma boa dose de preconceito contra determinadas ex-
pressões religiosas. O cristianismo, por exemplo, até bem pouco tempo atrás discri-
minava muitas formas de religiosidade. E hoje, a grande maioria das pessoas é sen-
sível a essa questão e não mais aceita atitudes preconceituosas. Por essa razão, se
não tivermos cuidado ao classificar as religiões, podemos criar conflitos absurdos e
desnecessários (Ibid.: 252-256).
Além do mais, nota ainda Terrin, há o outro lado da moeda: a identidade de
cada religião não é absoluta.
“É preciso dizer antes de mais nada que nenhuma religião é totalmente origi-
nal. Todas as religiões dependem de outras religiões mais antigas, que por
sua vez são formações que se devem a uma visão precedente; em outras pa-
lavras, são formações sincréticas” (Ibid.: 338).
Pode-se então concluir com Terrin que, sendo a experiência religiosa algo u-
niversal e antropológico, as religiões são consangüíneas e dependentes entre si,
possuindo uma grande semelhança entre elas. Embora na história das religiões te-
nham existido episódios de intolerância e grandes conflitos, precisamos caminhar na
direção da tolerância. O mundo de hoje é pluralista e aberto cada vez mais às dife-
renças. Por isso, mesmo respeitando o direito de cada religião preservar a sua iden-
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tidade, somos convidados e convidadas a cultivar a tolerância. No dizer de Terrin, os
aspectos culturais que diferenciam cada religião nada mais são que degraus, esta-
ções e paisagens de um mesmo caminho nesta viagem da humanidade em busca
do transcendente, do divino (Ibid.: 339-352).
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