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Ian Fleming - Chantagem Atomica

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osebodigital.blogspot.com

IAN FLEMING

CHANTAGEM ATMICAtraduo de lvaro Cabral

Clique no ttulo para ouvir a msica tema do filme, interpretada por Tom Jones

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1Calma Mr. Bond, Calma...

James Bond estava vivendo um desses dias em que a gente acha que a vida no vale um caracol. Para comear estava meio desgostoso consigo mesmo; um estado de esprito muito raro nele. Estava de ressaca, das fortes! Cabea doendo, msculos e juntas emperrados. Quando tossia (os excessos de bebida e de fumo dobram os efeitos das ressacas) comeava a ver sua frente milhes de pontinhos luminosos movimentando-se loucamente como amebas em guas estagnadas; sinal inequvoco do exagero de doses extras. O seu ltimo copo de whisky e soda, l naquele luxuoso apartamento em Park Lane, no fora diferente da dezena de outros que havia tomado, porm j descera pela sua garganta com certa relutncia, deixando em sua boca um gosto meio amargo e uma sensao de autodesaprovao em sua mente. Mas, ainda percebendo isto, decidira ir um pouco adiante; jogaria mais uma rodada. Cinco libras cem pontos e seria definitivamente a ltima! E le concordara e jogara como um idiota. At agora via sua frente a dama de5

espadas com aquele sorriso de Mona Lisa na face inexpressiva quando o outro bateu! A dama de espadas que o parceiro tanta questo fizera de pegar e que representava a diferena para o bate (duplo para Bond, por efeito da bebida) Quatrocentos pontos, acima da linha, a favor do outro. No fim de tudo foi uma batida que custou a Bond 100 libras.. . quantia bem considervel! Novamente James Bond tocou com o basto cicatrizante o pequeno corte no queixo e fitou com desprezo o rosto que o espelho lhe mostrava: seu cretino, boal! Tudo comeara por causa da falta do que fazer. Mais de um ms lendo aquela papelada, verificando etiquetas sem importncia, escrevendo relatrios que ficavam mais inspidos medida que as semanas passavam, batendo com o telefone quando algum funcionrio inofensivo e maante queria discutir. E alm de tudo sua secretria apanhara uma gripe e tivera que se afastar do servio temporariamente e fora substituda por uma idiota que alm de feia s dizia sim, senhor e no, senhor sempre com a boca cheia de caroos de frutas. E agora era segunda-feira outra vez. Outra semana que comeava. A chuva de maio batia na vidraa. Bond engoliu dois comprimidos e procurou o vidro do sal de frutas. O telefone em seu quarto comeou a tilintar. Era a campainha forte e insistente do telefone de linha direta com o quartel-general. James Bond, com o corao batendo mais do que devia, mesmo depois da corrida pelas ruas de Londres e da espera impaciente pelo elevador para o oitavo andar, puxou a cadeira e sentou olhando para aqueles olhos calmos, cinzentos e terrivelmente lmpidos que conhecia to bem. Que haveria para ler neles? Bom dia, James, desculpe tir-lo da cama to cedo esta manh. Tenho um dia muito cheio pela frente. Quero acertar as coisas com voc antes de comear minhas atividades. A excitao de Bond diminuiu um pouco. No era um bom sinal quando M o tratava pelo nome de batismo em lugar do seu nmero convencional. Isto no parecia assunto6

profissional mas talvez algo mais pessoal. Na voz de M no havia tenso ou nervosismo que indicassem algo sensacional! A expresso de M era interessada, amistosa, quase benevolente. Bond fz um comentrio inconseqente. M apanhou uma folha de papel, espcie de formulrio, da gaveta e segurou-a pronto para ler, porm antes falou: No tenho visto voc ultimamente, James. Como que voc est? Estou me referindo sua sade. Meio desconfiado sobre o que haveria naquele papel Bond respondeu: Estou muito bem, obrigado. No isto que o Observatrio Mdico acha, James. Acabo de receber o relatrio a seu respeito. Creio que voc deve ouvir o que diz aqui. Bond olhou com raiva para a pgina escrita. Ora bolas! Que raio de encrenca estava para vir? Porm controlou-se e disse: Como quiser, senhor. M olhou para Bond cuidadosa e aprovativamente, segurou o papel mais junto dos olhos e leu: Este agente permanece, de modo geral, fisicamente so. Infelizmente seu modo de vida no permite que permanea neste feliz estado de sade por muito tempo. Apesar de prvios avisos le admite estar fumando cerca de sessenta cigarros por dia: estes so de uma mistura dos Balkans com um teor de nicotina muito maior do que as variedades mais baratas. Quando no est comprometido com alguma misso profissional o seu consumo dirio de bebidas alcolicas de uma mdia de meia garrafa de sessenta a setenta graus. No exame geral ficou constatado o sinal de deteriorao definitiva. A lngua est saburrosa. A presso sangnea subiu para 160/90. O fgado no est palpvel. Por outro lado, quando insistimos, o agente admitiu sofrer de enxaquecas occipitais freqentes e espasmos nos msculos trapzios alm do que ndulos da chamada fibrosidade so evidentes. Acredito que estes sintomas so devidos ao modo de vida que o agente leva; le no admite que a indulgncia no remdio para as7

tenses inerentes sua profisso e que pode mesmo resultar num estado de intoxicao que finalmente ter o efeito de reduzir a sua capacidade para o cargo. Recomendo que o 007 deve viver mais devagar, repousar por duas ou trs semanas num regime mais abstmio e creio que assim conseguir voltar ao estado excepcional de integridade fsica, de sade perfeita, de antes. Depois de ler, M colocou a folha de papel na caixa ao lado, espalmou as mos sobre a mesa e olhou muito srio para Bond, dizendo: No me parece muito satisfatrio, no acha, James? Bond procurou dissimular o tom de impacincia da prpria voz quando respondeu: Eu me sinto perfeitamente bem, senhor. Todo mundo pode ter uma dor de cabea de vez em quando. Muitos amadores de golfe tm fibroses, resultado de apanhar uma corrente de ar quando muito suados. Aspirina e embrocao resolvem isto. No h razo para alarme! a que voc se engana, James replicou M severamente. Tomar comprimidos apenas afasta os sintomas, no remove a causa, apenas disfara e o resultado uma intoxicao que pode virar mal crnico. Todas as drogas so nocivas, afinal, so contra a natureza! O mesmo se pode dizer da maioria dos alimentos que ingerimos: trigo branco, acar refinado, leite pasteurizado... tudo fervido, filtrado, perdendo calorias, vitaminas, a fora, enfim, a parte realmente nutritiva! Voc sabe, por exemplo (e M procurou nos bolsos um caderninho que consultou), o que o po que comemos contm, alm da farinha moda? Pois contm grande percentagem de gsso, perxido de benzol, sal amonaco e pedra-ume! Que que voc acha disso? Bem, eu no como tanto po assim, senhor! respondeu Bond na defensiva. Talvez no prosseguiu M meio impaciente mas voc come pelo menos de vez em quando trigo integral? E yogurt. E legumes crus? Amndoas e frutas frescas? Praticamente. . . no, senhor.8

Voc est rindo mas no caso para isso. Tome nota das minhas palavras: o caminho da sade a natureza! E todos os seus problemas... Bond abriu a boca para protestar, mas M ergueu a mo num gesto de impedimento e continuou: O estado de profunda intoxicao revelado pelo relatrio mdico a seu respeito o resultado do seu modo de viver basicamente contrrio natureza! J ouviu falar em Bircher-Brenner, ou Kneipp, Preissnitz, Rikli, Schrot, Gossman ou Biltz?! No, senhor. Pois muito bem. Estes so os homens que voc devia conhecer atravs da leitura! Estes so os grandes naturopatas, os homens cujos ensinamentos estpidamente ignoramos. Felizmente e os olhos de M brilharam de entusiasmo h um nmero de discpulos desses mestres exercendo suas finalidades aqui na Inglaterra. A cura pela Natureza est, pois, ao nosso alcance! James Bond olhou intrigado para M. Que teria acontecido ao velho? Seria tudo isto apenas um sinal de senilidade? Mas M estava na melhor forma possvel desde que James o conhecera. Os frios olhos cinzentos estavam lmpidos como cristal e a pele daquele rosto duro estava luminosa e sadia. Mesmo os cabelos grisalhos pareciam ter nova vida e brilho. Ento, como explicar toda esta conversa doida? M estendeu a mo para a papelada a resolver aquele dia, num gesto caracterstico de despedida, e disse com jovialidade: Muito bem, James, isto tudo. A senhorita Moneypenny j fz a reserva para voc. Duas semanas sero suficientes para bot-lo de novo em boa forma. Voc nem vai se reconhecer quando sair de l! Um novo homem! Bond olhou desconfiado para M, perguntando, temeroso: Mas... quando sair de l... de onde? Um lugar chamado Shrublands. Dirigido por um homem de grande capacidade no assunto. Wain... Joshua Wain9

o nome desse homem notvel. Tem 65 anos mas voc no lhe daria mais de 40. le tomar conta de voc. Todo o equipamento l o que h de mais moderno e le tem at uma horta particular! Belo lugar! Em Sussex, perto de Washington. E no precisa se preocupar com o seu trabalho aqui, tire tudo da cabea por duas semanas. Direi ao 009 para tomar conta da seo. Bond no podia acreditar no que estava ouvindo e insistiu: Mas. . . senhor, eu estou me sentindo perfeitamente bem! O senhor tem certeza, quero dizer, que necessrio? No! respondeu M enftico. No necessrio, essencial! Se voc quer continuar na seo 00. .. assim ! No posso me arriscar a ter naquela seo um agente que no esteja cem por cento em forma. M baixou a cabea, olhando para seus papis numa atitude definitiva que encerrava o assunto, e sem olhar para cima falou: Isto tudo, 007! Bond se ergueu e sem dizer palavra saiu da sala, fechando a porta depois de passar com exagerada cautela. L fora, de sua mesa, a senhorita Moneypenny olhou para le docemente. Bond foi at l e bateu com os punhos na mesa com tanta fora que a mquina de escrever pulou do lugar. E falou, furioso: E agora, Penny, que raio de idia maluca deu no velho? le est atuado? Que est acontecendo aqui? Pois sim que eu vou!? le est completamente doido! A senhorita Moneypenny sorriu impassvel, dizendo: O gerente l foi muito amvel e solcito. le disse que vai dar a voc o quarto do anexo que d para a horta. Eles tm uma horta particular, sabia? Eu sei tudo sobre este raio de horta. Agora escute aqui, Penny, seja boazinha e me conte tudo direitinho. Que houve com o velho? A senhorita Moneypenny, que vivia sonhando, esperanosa, com Bond, ficou com pena dele; baixou a voz num tom10

conspirador e falou: Na verdade eu creio que apenas uma fase. Isto passa. Foi azar seu ser apanhado antes que a fase tivesse passado. Voc sabe como le exigente quanto eficincia do servio aqui. Houve uma poca em que todos ns tnhamos de fazer uma seo diria de ginstica; depois veio a fase dos psicanalistas... Voc no pegou esta, creio que estava viajando. Todo mundo na seo tinha de ser psicanalisado. No durou. Creio que le acabou se assustando com os resultados. Pois bem, no ms passado, M estava com lumbago e um amigo, aquele gordo beberro, indicou esse tal lugar... e Penny voltou para Bond a boca tentadora. O homenzinho garantiu maravilhas; le disse a M que todos somos como automveis e que de vez em quando precisamos ir para a oficina para uma retfica e que le faz isso todo ano, que custa apenas vinte guinus por semana, menos do que le gasta por dia no Blades e que depois le se sente timo! Voc sabe como M gosta de novidades e l foi por dez dias e voltou completamente encantado! Ontem le me deu aulas sobre o assunto e hoje chegaram l em casa latas e latas de melado e de germe de trigo e sei l mais o qu! Nem sei o que fazer de tudo aquilo! Temo que o meu cozinho poodle que vai resolver o caso. Enfim, foi o que aconteceu e confesso que nunca vi o M em lo boa forma! . . . le parece at aquele homem dos anncios de sais de Krusehen, mas. . . por que cargas dgua foi escolher a mim para ir para o tal manicmio? Voc sabe que le acha voc o mximo... ou no sabe?! De qualquer modo, assim que viu o seu relatrio mdico mandou que eu fizesse reserva para voc... Mas, James... Voc fuma e bebe mesmo tanto quanto o relatrio diz? No pode lhe fazer bem, voc sabe... E ela o olhou com afeto maternal. Bond se controlou um pouco, estudou um meio de parecer displicente e comentou: ... que eu prefiro morrer de beber do que de sede. E, quanto aos cigarros... bem, que no sei o que fazer com as mos...11

Bond sentiu novamente os efeitos da ressaca e ouviu suas palavras tilintando como latas velhas, o que le precisava agora era de um whisky-soda duplo! A senhorita Moneypenny franziu os lbios numa expresso de desaprovao e comentou: ... mas quanto s mos... no o que dizem por a!!! Ora, Penny, no vai comear tambm! E Bond caminhou furioso para a porta, voltou o rosto e terminou: Se voc vier me fazer mais sermo quando sair da vou lhe dar uma surra que voc ter de trabalhar sentada num travesseiro de espuma de nylon! A senhorita Moneypenny sorriu docemente encantada e disse: Voc no conseguir dar surra em ningum depois de passar duas semanas comendo amndoas e suco de limo, James...

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2Shrublands

James Bond atirou a maleta no assento traseiro do Austin cr de chocolate e sentou no banco da frente junto com o chofer do txi. O jovem sardento de casaco de couro tirou um pente do bolso e ajeitou cuidadosamente os lados da cabeleira, guardou o pente com calma e deu a partida. Aquela encenao, pensou Bond, fora para mostrar que le estava aceitando o dinheiro dele e ia transport-lo como um favor especial; gesto tpico dos jovens proletrios de aps-guerra. Este por certo faria umas vinte libras por semana, desprezava os pais e gostaria de estar no lugar de Tommy Steele. A culpa no era dele; nascera entre os compradores de Welfare State e na era da bomba atmica e das naves espaciais. Para le a vida era frgil e sem objetivo. Bond perguntou: Quanto leva daqui a Shrublands? O jovem deu um golpe de direo muito hbil, porm inteiramente desnecessrio e respondeu: Cerca de meia hora. E pisou no acelerador e com percia e muito risco de13

vida passou frente de um caminho no cruzamento. Bond comentou: ... voc sabe tirar o mximo do seu Bluebird! O rapaz olhou de esguelha para ver se estavam fazendo gozao com le e concluiu que no. Respondeu: O velho acha que no preciso de um carro novo. Que esta lata velha j serviu para le durante vinte anos e portanto tem de servir para mim tambm por mais vinte. Por isso estou economizando por minha conta, j tenho metade do que preciso. Bond achou que, apesar da encenao do penteado, le parecia ter senso. E o que pretende comprar? perguntou Bond. Um Volkswagen Minibus. Para as corridas de Brighton. , parece uma boa idia! Bons prmios, muito dinheiro em Brighton! Puxa! Se os olhos do jovem brilharam de entusiasmo. A nica vez que estive l foi para levar dois bookmakers. Foram aqui e ali e me deram uma gorjeta de cinco! Uma boa fatia! Sem dvida... mas preciso cuidado em Brighton. H os que do e os que tiram vantagem. Existem mesmo gangs agindo por l. E o que aconteceu com o Balde de Sangue? No reabriu depois daquele caso que apareceu em todos os jornais. Foi ento que o rapaz notou que estava falando de igual para igual, olhou para os lados, olhou Bond de cima a baixo interessado e perguntou: Ei, est indo para o Scrubs... ou apenas visita? Scrubs? Shrublands.. . Wormwood Scrubs. . . Scrubs! Explicou o rapaz, lacnico. Mas voc no se parece com a maioria que costumo levar l! So sempre umas coroas gordas ou velhotes reumticos que pedem para no correr muito para no atrapalhar a citica, sei l. Tenho que passar quatorze dias l sem alternativa 14

falou Bond, rindo. O mdico acha que preciso descansar, ir com mais calma. Que acham do lugar? O chofer dobrou a curva para fora da estrada de Brighton e tomou a direo oeste sob Downs, atravs de Poynings e Fulking. O Austin gemeu na curva. S ento o moo respondeu: O povo aqui acha que so todos birutas, no ligam para o lugar. Tanta gente rica e ningum emprega capital em melhorias. S casas de ch. O senhor ficaria admirado. Gente grande e grada da cidade. Motorizados em seus Bentleys de barriga vazia passam pela casa de ch e entram para tomar ch! Tambm s o que permitido. Depois olham para os lados e vem algum comendo po com manteiga ou bolo e no resistem, pedem um mundo de gulodices e se atolam! At parecem crianas que roubam gelia, olhando para os lados apavorados. Acho que esta gente devia ter vergonha! , sim. Parece meio idiota quando esto pagando fortunas para fazer a cura ou l o que seja comentou James. Pois . E outra coisa: eu compreendo que se cobre vinte pacotes por semana para oferecer a um cara trs boas refeies por dia e a voz do rapaz era de indignao mas como que eles conseguem receber esta soma s para oferecer gua quente no almoo e no jantar? No sei. . . parte do tratamento. E deve valer o preo, se a pessoa sai curada. Talvez concordou o chofer. Alguns deles saem bem diferentes do que entraram... alguns ficam novos em folha depois desse jejum de ch e amndoas... ... eu devia experimentar tambm um dia! Que quer dizer? perguntou Bond. O jovem olhou para le, achou que le era legal e respondeu: Bem, que h uma garota aqui... mariposa, boa praa. . . voc sabe o que eu quero dizer. Ela de dia garonete de uma casa de ch, a Honey Bee Tea Shop... era. Ela nos iniciou... quero dizer, nos ajudou... sabe o que quero dizer,15

no? Cobrava pouco e conhece uma poro de... de tcnicas francesas; boa praa. Pois bem, algum soube l no Scrubs e os velhos comearam a proteger Polly, Polly Grace; levavam para passear de Bentley, faziam visitas l no Downs... onde ela faz ponto h anos, e o pior que comearam a pagar cinco pacotes, depois dez e chegaram a um preo que ela no mais para ns, entende? Uma espcie de inflao. E no ms passado ela largou o emprego e sabe o que mais? A voz do rapaz vibrava de revolta: Comprou para ela um Austin Metropolitan e anda motorizada botando banca, assim como as de Curzon Street em Londres, que os jornais sempre comentam. Foi para Brighton, Lewes e de vez em quando vem dar uma voltinha com os velhotes do Scrubs. T bom? E o rapaz deu uma buzinada furiosa contra um ciclista que quase caiu de susto. Bond comentou, muito srio: realmente espantoso. Nunca pensei que as pessoas se interessassem tanto por. . . estas coisas depois de uma dieta de amndoas, ch ou sei l o que servem na clnica! s o que sabe? Pois olhe, um dos meus amigos filho do mdico de l e esteve conversando com o velho dele a respeito, discretamente, e o doutor explicou que aquela dieta, nada de bebidas nem fumo e muito repouso, massagem, banhos de imerso quentes e frios e no sei mais o qu.. . que isto tudo limpa o sangue, equilibra o sistema nervoso, sabe o que quero dizer, e ressuscita os coroas e eles querem voltar ativa outra vez, como aquela cano da Rosemary Clooney, sabe? Bond caiu na gargalhada, comentando, divertido: ... ... afinal a clnica tem l suas vantagens. Neste ponto viram na estrada uma tabuleta que dizia: Shrublands! Portal para a sade! Primeira direita! Silncio, por favor. E a estrada seguia entre alamedas de sempre-vivas. Um muro alto surgiu ento e logo uma entrada imponente de pedras e um pavilho estilo Vitoriano de cujo telhado, l no centro, saa uma espiral delgada de fumaa desfazendo-se por entre as rvores paradas. O chofer deu a volta e seguiu uma passagem de cascalho ladeada por espessos arbustos16

de louros. Um casal idoso saiu do caminho assustado pela buzina do txi e direita havia extensos gramados e canteiros bem cuidados e algumas pessoas passeavam lentamente, sozinhas ou em pares. L atrs uma monstruosidade Vitoriana em tijolos vermelhos de onde saa um solrio que ia at o gramado. O jovem chofer parou embaixo de um prtico pesado com um telhadinho de ameias. Um porto envernizado e preso em gonzos de ferro, ao lado do qual uma alta urna com um aviso: Proibido fumar. Cigarros aqui, por favor. Bond desceu do txi, retirou a maleta e deu uma gorjeta de dez xelins ao chofer, que aceitou sem muito entusiasmo, mas agradeceu: Obrigado. Se quiser dar uma volta por a, s me chamar. Polly no a nica, sabe? E h tambm uma casa de ch na estrada de Brighton que tem uns bolinhos amanteigados... Bem. At logo. E ele entrou no carro batendo a porta e voltando disparado pelo caminho que viera. Bond apanhou a maleta e caminhou resignado, subindo os degraus e passando pela pesada porta de madeira. L dentro estava quente e silencioso. No balco de recepo, do hall de lambris de carvalho, uma pequena bonita e compenetrada de uniforme branco engomado cumprimentou-o com vivacidade. Depois que assinou o livro de registro ela o conduziu atravs de uma srie de salas de mobilirio sbrio at um corredor branco que dava para a parte dos fundos do edifcio. Ali havia uma porta de comunicao com o anexo, uma construo baixa e longa, de estrutura comum com quartos de um lado e outro e uma passagem no meio. As portas dos quartos tinham nomes de flores e arbustos. Bond foi levado ao Murta, disseram-lhe que o chefe iria v-lo dentro de uma hora, s seis em ponto. O quarto era comum, com mveis comuns e cortinas limpas. A cama estava equipada com um cobertor eltrico. Ao lado da cabeceira da cama havia um jarro com calndulas e um livro: A cura pela Natureza explicada por Alan Moyle,17

M. B. N. A.. Bond folheou-o ligeiramente e viu que as iniciais eram: Membro da British Naturopathic Association. Desligou o aquecimento central e abriu as janelas inteiramente e olhou; a horta l em baixo sorria para le: leiras e leiras de plantinhas sem nome arrumadas como raios de sol. Bond abriu a mala, guardou as coisas nos armrios e sentou na poltrona para ler como eliminar impurezas do organismo e aprendeu um bocado acerca de alimentos que desconhecia inteiramente, como sopa de potssio, suco de amndoas, e j estava no captulo da massagem e estava refletindo na sua diviso em aflorao, golpeamento, friccionamento, manipulao, amassamento, tapinhas e vibraes. O telefone tocou e uma voz feminina avisou que o Sr. Wain gostaria de v-lo na sala de consultas A dentro de cinco minutos. O Sr. Joshua Wain tinha um aperto de mo seco e firme e uma voz ressonante e animadora. Tinha cabelos fartos e grisalhos acima de uma testa sem rugas, olhos mansos, castanhos, e um sorriso sincero e cristo. Parecia genuinamente contente em ver Bond e muito interessado nele. Usava um jaleco muito limpo, de mangas curtas, das quais saam braos peludos e descansados; calas riscadas de giz e usava sandlias e meias cinzentas e quando caminhava pela sala seu andar era leve e arisco. O Sr. Wain pediu a Bond que despisse toda a roupa, exceto as cuecas. Quando viu toda a coleo de cicatrizes comentou discretamente: . . . o senhor parece ter tomado parte em muitas guerras, Sr. Bond! Bond replicou, meio indiferente: No perco uma. .. quando h guerra. Realmente. Guerra entre pessoas uma coisa terrvel. Agora respire fundo, por favor. O Sr. Wain auscultou as costas de Bond, tomou a sua presso, pesou-o e anotou a sua altura e ento pediu que deitasse de braos numa cama clnica e tateou suas vertebras e juntas com dedos hbeis. Enquanto Bond se vestia novamente, Wain escrevia sentado sua mesa. Depois recostou-se para trs na cadeira18

e falou: Muito bem, Sr. Bond. No h motivos para preocupao, creio. A presso est um pouco alta, ligeiras leses osteopticas na vrtebra superior, talvez seja isto responsvel pelas dores de cabea. Tambm tenso direita no sacroilaco, o lio direito levemente deslocado para trs, conseqncia de alguma queda, provavelmente. E o Sr. Wain olhou para Bond esperando confirmao; este disse: Talvez. . . uma queda. . . Bond lembrou que seria possivelmente quando pulara do Arlberg Express depois que Heinkel e seus homens o descobriram durante o levante hngaro em 1956. O Sr. Wain pegou uma folha impressa e foi marcando itens na lista e avisando: Bem, Sr. Bond, dieta rigorosa por uma semana para eliminao das toxinas do sangue. Massagem para equilibrar, irrigao, banhos quentes e frios, tratamento osteoptico e aplicaes de trao para reparar as leses. Isto deve p-lo em forma. E repouso absoluto, naturalmente. E calma, Sr. Bond, calma. O senhor um funcionrio civil, eu compreendo, mas lhe far muito beneficio afastar qualquer preocupao por alguns dias. E o Sr. Wain estendeu a lista para Bond. Esteja na sala de tratamentos dentro de meia hora. No h inconveniente em comear j. Muito obrigado respondeu Bond, pegando a lista. E a propsito, o que trao? Um aparelho mecnico para distender a espinha, muito benfico. E no se preocupe com o que os outros pacientes disserem a respeito, eles chamam o aparelho de mquina de tortura, o senhor sabe como certas pessoas so irreverentes. Sim, sei. Bond saiu pelo corredor branco, havia pessoas sentadas nas salas de estar lendo e conversando em voz baixa. Quase todos idosos e de classe mdia, em maioria mulheres usando robes pouco elegantes. O ambiente aquecido e o vo19

zerio sussurrante das mulheres deram a Bond uma sensao de claustrofobia e le caminhou para fora a fim de respirar um pouco de ar puro. James foi andando pelas alamedas sentindo o cheiro das plantas. Ser que agentaria? Haveria outra sada para cair fora dali sem perder o emprego? Absorto em seus pensamentos le quase esbarrou numa pequena que vinha em sentido contrrio. No momento em que ela sorriu divertida para Bond surgiu um Bentley cinzento na curva mais prxima e quase no mesmo instante estava em cima dela. Dentro de um mesmo segundo ela estava quase embaixo das rodas do carro e Bond, num gesto rpido, pegou-a pela cintura e num volteio acrobtico praticamente arrancou-a de sob o carro. Recolocou-a lentamente no cho enquanto o automvel parava logo adiante, bruscamente. Em sua mo direita Bond guardou a lembrana da forma de um seio bonito e firme. A moa ento exclamou um Oh! assustado e olhou dentro dos olhos de seu salvador e s ento pareceu compreender tudo o que acontecera em to curto espao de tempo e falou ainda sem flego: Oh! Muito obrigada! E a garota olhou ento para o automvel do qual um homem acabara de saltar sem pressa. Com muita calma le disse: Sinto muito. Est bem? E de repente, reconhecendo-a, sorriu contente e exclamou: Oh! Mas a minha amiga Patrcia! Como vai, Pat? Tudo bem? O homem era extremamente atraente, tipo bronzeado desses que as mulheres adoram, com um bigode sobre uma bca sensual que as mulheres sonham beijar; suas feies eram regulares, mostrando influncia acentuada de sangue espanhol ou sul-americano, olhos castanhos, escuros e misteriosos; porte atltico, talvez mais de um metro e oitenta e trajava com displicncia roupas bem feitas, possivelmente Anderson & Sheppard, camisa de seda branca e gravata de pois, suter marrom de gola em V parecendo vicunha. Bond chegou concluso de que aquele homem era do20

tipo que pode ter a mulher que quiser e viver com ela ou s custas dela... e viver bem. Agora a garota havia recuperado a calma e o flego e falou com severidade para o gal irresistvel: Voc precisa ter mais cuidado, conde Lippe! Voc sabe que sempre h pacientes andando por aqui. Se no fosse por este cavalheiro e ela sorriu para Bond eu teria ficado debaixo das rodas do seu carro. E afinal de contas h um aviso enorme pedindo aos motoristas para ter cuidado. Sinto muito, querida. Eu estava com muita pressa. Estou atrasado para encontrar o simptico Sr. Wain... estou precisando muito de uma retfica, principalmente agora que voltei de uma estada de duas semanas em Paris. E voltando-se para Bond falou com superioridade: Obrigado, cavalheiro, o senhor tem reflexos muito rpidos! E agora, se me permitem... E, levantando a mo numa despedida displicente, voltou a ocupar a direo do seu Bentley e partiu com o motor ronronando. A moa falou ento: Eu tambm tenho de ir andando, estou terrivelmente atrasada! E os dois comearam a andar seguindo a mesma direo que o carro havia tomado. Bond olhou-a com ateno e perguntou: Trabalha aqui? E ela respondeu que sim, havia trs anos estava no Shrublands e gostava dali, e le? Quanto tempo iria ficar? E a conversa seguiu assim. A pequena pareceu a Bond ser do tipo atltico, talvez uma tenista, patinadora ou nadadora de saltos ornamentais. Suas formas eram firmes, rijas, muito atraentes para le, e tinha tambem um tipo de beleza sadia quase comum se no fosse a boca sensual e um tanto desafiadora, o que era uma tentao para os homens. Estava vestindo uma verso feminina do jaleco do Sr. Wain e pelo contorno inequvoco dos seios e dos quadris era evidente que no usava mais nada21

por baixo. Bond tratou de perguntar se ela no se sentia entediada ali e o que costumava fazer com seus momentos de folga. Ela recebeu a pergunta com bom humor e respondeu: Eu tenho um carrinho e dou umas voltas por a. H passeios maravilhosos pelos arredores. Alm disso aqui estamos sempre conhecendo gente diferente e algumas pessoas so mesmo bem interessantes. . . Aquele rapaz do carro, por exemplo, o conde Lippe, vem aqui todos os anos e me conta coisas realmente fascinantes sobre o Oriente, a China e outros lugares. le parece ter negcios num lugar chamado Macau, fica perto de Hong Kong, no mesmo? Sim, exatamente... Ento aqueles olhos puxados do bonito tinham algo a ver com chins! Seria interessante conhecer mais a respeito das atividades dele; talvez tivesse sangue portugus, j que vinha de Macau. Chegaram entrada e no hall aquecido a moa se despediu: Bem, mais uma vez agradeo. E agora tenho que ir correndo e ofertou um sorriso a Bond, que para a recepcionista atrs do balco pareceu perfeitamente neutro, e terminou: Espero que goste daqui. E foi embora em passos rpidos e elegantes. Bond seguiu com os olhos o movimento cadenciado que ela fazia com os quadris. Depois olhou para o relgio e tratou tambm de ir andando e seguiu pelo tal corredor branco cheirando a leo e a desinfetante at chegar a uma porta onde estava escrito: Tratamento-Homens, entrou e foi recebido por um massagista. Bond despiu-se e com uma toalha amarrada em volta da cintura foi levado para um compartimento longo dividido em cabines por cortinas plsticas. Na primeira delas dois homens deitados transpiravam abundantemente, rosto avermelhado, envoltos em cobertores eltricos. No seguinte havia duas mesas para massagens; na primeira um homem jovem porm gordssimo era sacudido quase que de maneira obscena pelos golpes enrgicos do massagista. Resignado, Bond retirou a toalha e deitou de bruos pronto para receber22

o castigo da massagem mais violenta de sua vida. Vagamente entre sacudidelas e dores dos msculos e tendes ressentidos Bond percebeu que o gorducho se levantara e fora para outra sala, sendo imediatamente substitudo por outro paciente. Ouviu a voz do massagista avisando: Creio que teremos de tirar o seu relgio de pulso, senhor! E a voz autoritria que Bond imediatamente reconheceu replicou com energia: Tolices, meu caro. Eu venho aqui todos os anos e sempre me foi permitido conservar o relgio de pulso! Prefiro continuar com le, se no se importa. Sinto muito, senhor. A voz do massagista era polida, porm firme. Por certo o senhor foi atendido por outro massagista. Eu no consinto porque isso interfere com a corrente sangnea quando chega a vez do tratamento nos braos. Logo... queira tir-lo, senhor. Houve um momento de silncio. Bond podia quase ouvir o conde Lippe tentando controlar-se e, quando este falou, as palavras foram cuspidas com certa violncia: Tire-o, ento! (Os improprios que no foram pronunciados foram perfeitamente pressentidos pelo tom da voz). Houve pequena pausa, o massagista agradeceu e comeou a trabalhar. Aquele pequeno incidente chamou a ateno de Bond; tirar o relgio de pulso era a coisa mais natural para quem ia ser massageado! Por que o homem insistira tanto em contrrio? Parecia meio pueril isto! Vire-se, por favor, senhor pediu o massagista, e Bond obedeceu e ento olhou para o lado direito onde estava o conde com o rosto virado para a parede e com o brao esquerdo pendente da mesa. Foi ento que notou uma marca esbranquiada no pulso do outro, onde a correia do relgio protegia da ao do sol e no meio do crculo, que ficara marcado pelo uso contnuo do relgio, havia um sinal tatuado na pele branca. Parecia um pequeno ziguezague cortado por duas linhas verticais. Ento era isto que o conde Lippe no queria que fosse visto! . .. Seria interessante telefonar para23

Records e pedir informaes sobre a espcie de pessoas que tm aquele sinal secreto tatuado no pulso...

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3Mquina de Tortura

No final de uma hora de tratamento Bond se sentia como se o seu corpo tivesse sido virado pelo avesso e depois desvirado outra vez. Vestiu-se novamente, e praguejando contra M, subiu com esforo os degraus para o que lhe pareceu um ambiente civilizado em comparao com a simplicidade quase rstica do resto do prdio. entrada havia duas cabines telefnicas. Entrou em uma e pediu ligao para o nico nmero que lhe permitiam chamar de fora; le sabia que todas as chamadas eram ouvidas e fiscalizadas. Quando pediu Records ouviu o clic caraterstico da extenso, le se identificou pelo nmero e fz a consulta, adiantando que a pessoa em questo era oriental, talvez, ou de origem portuguesa. Dez minutos depois veio a resposta. A tatuagem era um sinal Tong, o Relmpago Rubro. Era, porm, muito estranho que algum que no fosse de sangue puramente chins fizesse parte da organizao, alis organizao criminosa; a Estao H j havia lidado com eles uma vez; eles tm representao em Hong Kong, porm o quartel-general em Macau. A Esta25

o H teve de pagar uma soma considervel pelo erro de entrar em contato com um membro como intermedirio numa transao em Pequim. Ia tudo bem quando a coisa estourou e houve perda de vidas de funcionrios H, houvera traio da outra parte. Uma confuso. Da por diante eles tm negociado clandestinamente com tudo, desde drogas da ndia, escravas brancas, tudo. Eles so poderosos. Ns gostaramos que nos informasse qualquer descoberta a respeito. Muito obrigado, Records falou Bond. Por enquanto no tenho nada a informar. a primeira vez que ouo falar nessa organizao. Se souber algo, direi. Adeus. Bond desligou sem rudo. Que interessante! E que estaria este homem fazendo em Shrublands?! Bond saiu da cabine e ouviu movimento na outra ao lado. Olhou e viu o conde Lippe que, de costas, acabava de levantar o fone. Havia quanto tempo estaria le ali? Ser que ouvira a conversa com a Records? Ou o que le, Bond, dissera... ? James sentiu um friozinho no estmago que infalivelmente indicava que teria cometido ura erro! Olhou para o relgio, eram sete e meia, e foi para o salo onde o jantar estava sendo servido. Deu o seu nome senhora vestida de branco por trs do balco, ela consultou uma lista e serviu sopa de legumes bem quente numa tigela plstica e entregou a le. Bond segurou a tigelinha e perguntou admirado: O jantar ... s isso? A mulher olhou para le sem sorrir antes de responder: O senhor est com sorte. Outros recebem menos. Tomar sopa todos os dias e ch duas vezes. Bond olhou-a meio ressentido, sorriu sem jeito e l se foi com sua antiptica tigela para uma mesinha de onde se via pela janela o parque s escuras, l fora. Foi tomando a sopa enquanto olhava seus dbeis companheiros andando pela sala e sentiu um pouco de solidariedade, sim, le tambm agora era um deles. Sim, agora le tinha sido iniciado. E bebeu sua sopa at a ltima gota e o ltimo cubinho de cenoura. Depois saiu da sala meio autmato, pensando no26

conde, pensando em dormir e, acima de tudo, pensando no estmago vazio. Dois dias depois, sob esse regime, Bond estava se sentindo arrasado. Comeou a sentir uma dor de cabea permanente e o branco dos seus olhos foi ficando amarelo, sua lngua grossa e pesada. Seu massagista tranqilizou-o. Era assim mesmo. Tudo aquilo era sinal de que as toxinas estavam deixando seu organismo e Bond, agora presa permanente de uma certa lassido, nem teve foras para discutir. Nada mais agora lhe importava; laranja e gua morna no desjejum, tigelas de sopa e xcaras de ch como almoo e jantar. Bond se compensava, dentro do possvel enchendo seu ch com colheradas de acar preto que era o nico luxo que o Sr. Wain lhe permitia. No terceiro dia, depois das massagens e do impacto das duchas, Bond viu no seu programa: Manipulao e Trao Osteoptica! E foi levado a uma nova seo limpa e silenciosa. Quando abriu a porta, esperando encontrar um homem S sua espera, flexionando os msculos (homem S significava Homem Sadio, bela designao para um naturopata), Bond ficou parado de surpresa diante da moa Patrcia que no vira mais desde o dia do incidente. Ela o esperava junto mesa forrada. Bond perguntou admirado: Mas ento esse o seu trabalho?! Patrcia j estava meio acostumada a esta reao por parte dos pacientes masculinos e, sem sorrir, e com voz profissional, falou: Quase dez por cento do nmero de osteopatas constitudo por mulheres. Agora, dispa-se. Tire tudo, exceto a cueca. Quando Bond acabou de cumprir a ordem, meio divertido, ela mandou que ficasse de p diante dela e le obedeceu. E a moa andou em volta dele, examinando-o com olhos atentos nos quais no havia seno interesse puramente profissional. Sem fazer qualquer comentrio sobre as inmeras cicatrizes de Bond a pequena mandou que le deitasse de bruos sobre a mesa forrada e com mos hbeis e experien27

tes fz o reconhecimento de todas as juntas e msculos, etc. Logo Bond se convenceu de que Patrcia era uma garota bastante forte, os msculos dele, possantes mas relaxados, perdiam muito de importncia sob os dedos geis e le sentiu at um certo ressentimento pela indiferena com que ela estava cumprindo aquela tarefa. Era, afinal, uma moa atraente e um homem meio nu! Neste ponto ela pediu que le ficasse de p novamente e pusesse as mos entrelaadas fortemente por trs da sua nuca (isto , dela!) E seus olhos agora muito prximos dos dele no continham mais do que eficincia profissional! E ela fz um movimento de resistncia evidentemente com o propsito de estudar as reaes das vrtebras do paciente. Mas para Bond isto era demais!!! E quando Pat deu por terminado o movimento e mandou que le relaxasse o gesto e soltasse seu pescoo, le no fz absolutamente nada disso. Ao contrrio Bond puxou-a fortemente para si e beijou-a com vontade na boca. A pequena escapuliu com agilidade, empertigou-se ainda com o rosto ruborizado e os olhos brilhando de raiva. Bond sorriu para ela quando se esquivou, sabendo que nunca escapara com tanta habilidade de uma bofetada to forte e disse rindo: Pronto, pronto. Est tudo bem outra vez. Mas eu no pude resistir! Afinal, se voc tinha que ser uma osteopata, no devia ter a boca que tem...! A raiva nos olhos de Patrcia diminuiu muito pouco e ela avisou: O ltimo que cometeu esta tolice teve de partir no prximo trem! Bond fingiu que avanava outra vez para ela dizendo s gargalhadas: ba! Se h esperanas de cair fora daqui por este processo delicioso, vou j beij-la outra vez! No seja idiota! Agora apanhe suas coisas e venha. Voc vai ter meia hora de trao. E Pat sorriu, vingada: Isto o far acalmar-se... Bond no pareceu muito satisfeito com a idia e res28

mungou: Est bem, vou. Mas s com a condio de que voc sair comigo na sua prxima folga. Isto o que ainda vamos ver. Tudo depende de como se comportar no prximo tratamento. E ela abriu a porta para que le passasse. Bond apanhou as roupas e obedeceu, quase colidindo com um homem que entrava no momento. Era o conde Lippe, de slacks e bluso. le ignorou a presena de Bond e cumprimentou a pequena: Como vai? Aqui est o carneirinho pronto para o sacrifcio. Espero que no esteja se sentindo muito exuberante hoje. E piscou os olhos de maneira encantadora. Patrcia respondeu sria: Apronte-se. Eu no me demoro. Vou colocar o Sr. Bond no aparelho de trao. Entraram em outra sala. Bond colocou as roupas sobre uma cadeira e Patrcia abriu a cortina que separava um pequeno compartimento. L dentro le viu uma estranha mesa cirrgica, coberta de couro e com armaes de alumnio reluzente, que no lhe despertou a menor simpatia. A moa comeou a desatrelar uma srie de tiras de couro presas a pequenas peas acolchoadas que pareciam correr sobre engrenagens macias. Bond olhava tudo aquilo muito desconfiado. Sob a mesa havia um possante motor eltrico com uma plaqueta que dizia: Mesa de Trao Motorizada Hrcules. Alavancas de acionamento com o feitio de manches saam do motor para as peas acolchoadas terminando por porcas de tenso. Em frente da almofada onde a cabea do paciente ficaria e ao nvel dos olhos estava um mostrador marcando a presso em libras at 200. Depois do nmero 150 os algarismos estavam em vermelho. Havia tambm alas para que o paciente se agarrasse, em que Bond notou com desnimo manchas inconfundveis de suor. Deite-se aqui, por obsquio falou Patrcia, esperando.29

, mas no antes que voc me explique toda essa geringona! respondeu Bond, sempre desconfiado. No estou gostando nada disto! Isto apenas uma mquina para distender a sua espinha explicou a moa, pacientemente. Voc tem ligeiras leses vertebrais e isto corrigir os defeitos. Na base da espinha voc tem um pequeno desvio sacroilaco que tambm precisa de correo. No vai incomodar nada, apenas uma sensao de distenso que at repousante. Muitos pacientes acabam adormecendo. ... mas o papai aqui, no! retrucou Bond com firmeza. Que presso voc vai aplicar em mim? E por que estes nmeros em vermelho? Veja l se vai me esquartejar! A pequena comeou a ficar impaciente e terminou a conversa: No seja bobo. Naturalmente que a presso demais perigosa mas eu sei o que fao e vou ligar apenas 90 libras e dentro de um quarto de hora voltarei para ver se posso subir para 120. E vamos logo. Tenho outro paciente esperando. Com certa relutncia Bond subiu na tal mesa e deitou de bruos com o rosto encostado na almofada e ainda falou meio abafado: Se voc me trucidar eu promovo uma ao judicial contra voc! Sentiu ento as tiras de couro serem ajustadas em volta do seu trax e dos quadris. A roupa da pequena passou roando seu rosto quando ela se abaixou para ligar os controles e o motor comeou a pulsar. As tiras de couro apertavam e afrouxavam, apertavam e afrouxavam ritmadamente. Bond sentia o corpo ser distendido por mos de gigante. Era uma sensao estranha mas no desagradvel. Com muita dificuldade ergueu um pouco a cabea, o ponteiro no mostrador indicava 90. Agora o motor fazia um certo embalo, como um cavalo mecnico, e as engrenagens engatavam e desengatavam compassadamente. Voc est bem? Tudo certo? perguntou Patrcia. Tudo bem respondeu Bond, e ouviu os passos da30

moa se afastando. le ento relaxou bem os msculos e nervos e ficou acompanhando meio hipnotizado o vaivm do motor. No era to ruim assim. Que bobagem ter tido medo e apreenso antes. Meia hora depois ouviu o clic do trinco da porta e a voz de Pat: Tudo bem? timo... Na altura dos seus olhos viu a mo da moa movendo o Controle, ergueu um pouco a cabea e viu o ponteirinho subir para 120. Sentiu ento os movimentos bem mais fortes e o rudo do motor aumentou. A osteopata baixou a cabea at le, pousou a mo em seu ombro e, elevando a voz para ser ouvida acima do barulho ambiente, disse: S mais quinze minutos. Est certo respondeu Bond cuidadosamente para no perturbar os movimentos em seu corpo, agora bem mais enrgicos. Novamente a cortina foi puxada, a porta fechada e Bond procurou relaxar novamente e entregar-se ao movimento ritmado. Talvez nem cinco minutos tivessem passado quando um movimento junto ao rosto de James fz com que abrisse os olhos sonolentos. Viu ento a mo de um homem procurando os controles para acelerao. Bond olhou, primeiro intrigado e depois com indisfarvel horror, medida que a alavanca ia sendo levada ao mximo de presso e as correias comearam a apertar seu corpo. Gritou algo que nem le mesmo soube o qu. Sentiu o seu corpo todo doer atrozmente. Em desespero tentou erguer a cabea e gritou outra vez; no mostrador o ponteiro marcava 200! Sua cabea tombou sobre a almofada, estava exausto. Atravs de uma nvoa viu a mo largar a alavanca na posio. Aquela mo ficou ento numa posio que lhe permitiu ver na faixa de pele no queimada de sol onde estivera o relgio de pulso a pequena tatuagem do relmpago rubro. Uma voz conhecida falou baixo junto ao seu ouvido:31

Vai deixar de se intrometer agora, meu caro. E ento s ouviu num crescendo o rudo ensurdecedor da mquina e sentiu as correias que pareciam estar cortando seu corpo em pedaos. Bond comeou a gritar e foi enfraquecendo enquanto o suor que saa do seu corpo escorria at o cho. De repente, escurido completa e mais nada.

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4Ch e Animosidade

A coisa mais certa que o corpo no guarda lembrana das dores sofridas. verdade que um absccsso, uma fratura doem e impressionam, porm logo se esquece a intensidade da dor, crebro e nervos no querem lembrar mais. O mesmo no acontece com as coisas agradveis, um perfume, um sabor, a sensao de um beijo... estas coisas podem ser sempre relembradas. Bond, tentando definir suas reaes medida que a vida foi voltando a seu corpo, ficou admirado por ver que a onda de agonia que havia dominado inteiramente seu ser acabava de desaparecer to completamente. verdade que a sua coluna vertebral toda doa ao menor movimento, cada vrtebra parecia ter sido triturada separadamente, mas isto era compreensvel e estava dentro da lgica e de contrle. Porm o furaco que havia entrado em seus msculos sacudindo-os furiosamente havia passado. Que acontecera? Como acontecera? Bond no conseguia lembrar. S sabia que havia sido reduzido na escala de resistncia a algo menos resistente que uma garfada de espinafre cozido e batido.33

Comeou a ouvir com mais nitidez o som de vozes. Algum perguntava: O que foi que chamou a sua ateno de que algo estava errado, Pat? Foi o rudo, o rudo da mquina. Eu acabara de fazer um tratamento e minutos depois ouvi o motor; jamais o ouvira to alto, fui ver se a porta teria ficado aberta. No estava preocupada, mas fui verificar. E quando cheguei vi. O ponteiro indicava 200! Desliguei rpido, soltei as correias e levei o paciente para a seo de cirurgia onde dei uma injeo de coramina na veia. O pulso estava muito fraco e telefonei para o senhor. A senhorita fz tudo o que era possvel fazer e eu tenho certeza de que a responsabilidade do incidente no sua... A voz do Sr. Wain, porm, no estava muito segura. Foi terrvel! realmente lamentvel. Suponho que o prprio paciente tenha puxado a alavanca. . . talvez experimentado... mas poderia ter morrido. Precisamos falar com a fbrica e pedir que instalem uma trava de segurana. Bond sentiu uma mo firme segurando seu pulso e achou que era hora de voltar ao mundo dos vivos. E precisava ir a um mdico; mas a um mdico mesmo e no um desses comedores de cenoura e sentiu uma onda de raiva invadi-lo. Era tudo culpa de M. Porque M devia estar doido. Mas le ia ouvir umas boas quando o encontrasse e, se necessrio, iria at o mximo, o chefe do gabinete ou at o Primeiro Ministro! M era um doido perigoso, uma ameaa ao pas! E cabia a le, Bond, salvar a Inglaterra das conseqncias... Os pensamentos se embaralharam com a histeria e fraqueza dentro do crebro de Bond e se mesclaram com a viso da mo de Lippe, a boca de Patrcia Fearing, o gosto da sopa de cenouras e sumindo, sumindo, a voz de Wain falando: No houve leso estrutural, apenas abraso superficial e dos extremos nervosos e, naturalmente, choque. A senhorita tomar conta pessoalmente do caso. Repouso, aflorao, aquecimento, confere? Repouso, aquecimento, aflorao... Quando Bond vol34

tou a si novamente j estava em seu quarto, deitado de bruos e sentia o corpo todo ser percorrido por uma estranha sensao; estava deitado sobre um macio cobertor eltrico e suas costas brilhavam sob o calor que vinha de duas possantes lmpadas solares. Sentia duas mos que pareciam forradas de arminho ritmadamente passando, uma aps a outra, em todo o comprimento de seu corpo, indo da nuca at os joelhos. Era uma experincia muito delicada e quase luxuriosa e Bond se deixou levar. Depois de algum tempo perguntou com voz sonolenta: isto que chamam de aflorao? Logo vi que j estava se recuperando falou a pequena, animada. Senti que estava voltando a cr sua pele. Como se sente? Agora? Me sinto timo... mas estaria melhor se pudesse arranjar uma dose de whisky com gelo... O Sr. Wain havia recomendado ch falou Patrcia, rindo. Mas eu achei que algo estimulante seria bom e s por esta vez... trouxe um pouco comigo. Quanto ao gelo no h problema. Espere, vou cobri-lo com o robe para que se possa virar e vou olhar para o outro lado. Bond ouviu que as lmpadas eram afastadas e ento se virou rpido, mas logo sentiu que as dores voltavam, embora mais fracas, e ento com mais cuidado sentou na cama com as pernas pendendo para fora. Patrcia Fearing estava ali na frente dele, limpa, de branco, reconfortante e tentadora. Tinha na mo um par de luvas de plo de lontra e na outra um copo e, enquanto bebia, Bond achou que o rudo das pedras de gelo no copo traziam a vida de volta e pensava: Que garota formidvel! Com esta eu seria capaz de ficar... Ela podia fazer aflorao o tempo todo interrompendo de vez em quando para me dar um bom drink gelado. Isto sim que seria vida... E sorrindo para ela estendeu o copo: Mais! Patrcia sorriu aliviada por ver que le estava realmente vivo e disse:35

S mais uma dose, ento. . . no esquea que est de estmago vazio e o lcool pode subir muito depressa. E ento ela voltou atitude profissional e fria, pedindo: Agora quer me contar exatamente o que aconteceu? Voc esbarrou por acaso nos controles. . . ou o qu? Voc nos deu um susto terrvel. Jamais aconteceu algo semelhante por aqui, Aquele aparelho de trao perfeitamente seguro! Bond olhou para lela com calma e a tranqilizou: , devo ter esbarrado tentando uma posio mais cmoda. Lembro que minha mo bateu em algo metlico... possivelmente a alavanca... e depois no sei mais nada. Tive muita sorte de voc ter aparecido to depressa. Muito bem, est tudo certo agora falou ela, entregando a segunda dose de whisky e felizmente no houve leses de gravidade. Com mais dois dias de tratamento voc estar novinho em folha. Oh! verdade! Pat parecia um pouco embaraada, mas continuou: E o Sr. Wain gostaria que tudo isto... ficasse s entre ns, le no quer que os outros pacientes fiquem com medo, sabe? Bond ficou pensando nas conseqncias de uma publicidade naquele sentido e chegou a ver as manchetes gritando: PACIENTE ESQUARTEJADO EM CLINICA NATUROPATA; A MQUINA DE TRAO ENLOUQUECEU. O MINISTRO DA SADE INTERVM Bond meditou sobre tudo isto e falou com calma: Naturalmente no direi nada a ningum. Afinal, foi minha culpa. E, acabando a bebida, devolveu o copo e deitou de novo, dizendo: Estava to bom... Que tal mais um pouco de aflorao? E por falar neste toque macio de arminho... quer casar comigo? Voc a nica pequena que eu conheo que sabe mesmo tratar bem um homem! Patrcia caiu na gargalhada, dizendo: Deixe de ser bobo e vire o rosto para l. . . O trata36

mento nas costas. ...? E como que voc sabe? Dois dias depois Bond entrou novamente na rotina do tratamento pela natureza: laranja, copo de gua morna pela manh, sendo a laranja artisticamente cortada por alguma mquina prpria para tal, os tratamentos, a sopa, a sesta de tarde e os passeios a p ou de nibus at a casa de ch para uma ou duas revigorantes xcaras de ch com bastante acar preto. Bond detestava ch e considerava-o um inspido pio para as multides; no obstante, nas condies em que estava, a infuso com acar mascavo era a soluo. Trs xcaras chegavam a dar-lhe a iluso de uma taa de champanhe no mundo real c de fora. Chegou a conhecer todos os pontos, todas as casas de ch Rose Cottage (que le passou a evitar desde que a proprietria resolveu cobrar extraordinrio pelo excesso de acar que consumia); Thatched Barn, que era divertida porque fazia questo de colocar em cada mesa um prato com pezinhos de minuto quentinhos e tentadores; Transport Caf, onde o ch da ndia era preto e forte e havia um cheiro real de gasolina e suor por causa dos choferes de caminho que iam l. Bond achou que seus sentidos estavam cada vez mais aguados. Enfim, um sem-nmero de locais freqentados tambm por donos de fordecos e Morris Minors falando em gente e em crianas chamadas Len, Ron, Pearl e Ethel e comendo com cuidados exagerados para dar a impresso de bem educados. Coisas que normalmente Bond detestaria mas que agora, to purificado, apreciava com inocncia quase infantil. Dentro dessa mentalidade tudo era possvel, mesmo conseguir divertir-se com aquelas conversas burguesas sobre receitas caseiras e o ch est fraco, forte, bom e quantos cubos quer de acar? O mais extraordinrio de tudo isso que no lembrava de j se ter sentido melhor (no forte) bem disposto, sem dores, sem cefalias, com olhos lmpidos e viso clara, pele sadia, dormindo tranqilamente dez horas por dia e acima de tudo sem aqueles acessos de mau humor com que despertava todas as manhs e o remorso de que estava destruindo37

a prpria sade. Ficou meio intrigado. Ser que estava mudando de personalidade? Estaria perdendo sua fibra? Seus pontos de vista inflexveis? Sua identidade? Estaria perdendo definitivamente os vcios que eram parte integrante do seu carter duro, cruel, fundamentalmente impiedoso e spero? Em que estaria se transformando? Ser que ia virar um idealista molenga, bondoso, que sai do trabalho para fazer humanitrias visitas aos asilados e prisioneiros, interessados em associaes beneficentes, comendo alimentao vegetariana e tentando consertar o mundo!!! James Bond estaria muito mais preocupado medida que os dias de tratamento se arrastavam se no fossem os trs pontos que eram para le no momento uma obsesso e que eram traos sua personalidade que no estava ameaado de perder: sonhava com um suculento prato de Spaghetti Bolognesa com bastante alho e acompanhado pelo Chianti mais barato no mercado (s pensar nisto de estmago vazio, sedento e faminto!); um desejo incontido, despertado pelas formas firmes e macias de Patrcia Fearing, e uma idia fixa procura da melhor maneira de tirar uma desforra sobre o conde Lippe! Os dois primeiros itens teriam de esperar o que era, sem dvida, um suplcio tantlico, aumentando sempre a impacincia para sair de Shrublands. Quanto ao conde... Os planos comearam no dia em que Bond voltou rotina normal da clnica. Com a mesma intensidade fria que le teria empregado contra um agente inimigo num hotel em Estocolmo ou Lisboa durante a guerra, James Bond comeou a vigiar cuidadosamente o homem. Foi ficando, aparentemente, expansivo e perguntador, conversando com Pat acerca das rotinas da clnica, tudo com genuno interesse. Perguntando sobre o regulamento das refeies dos funcionrios, horas de deixar os turnos. . . e tambm que o conde Lippe estava to bem disposto! Sim, estava preocupado com a medida da cintura! Os banhos com cobertor eltrico resolvem isto? Ah! os banhos turcos... no, le ainda no havia estado naquela seo, mas iria experimentar breve. E com o massagista puxava o38

assunto, que no tinha visto aquele rapaz forte ultimamente... o conde de no sei qu!? Ripper, Hipper. . . ah! sim, Lippe. Ah, le era do horrio de meio-dia, bom horrio, iria experimentar tambm... ficava livre o resto do dia e gostaria de dar uma olhada na cmara de Banhos Turcos depois das massagens, curiosidade, sabe? E suar um pouco bom, no ? Inocentemente, pedao por pedao, Bond ia armando seu plano como um quebra-cabeas... Um plano que o deixasse a ss com o conde na sala de banhos turcos, entre as mquinas, na sala prova de som! No haveria por certo outras oportunidades, o conde ficava em seu quarto at a hora do tratamento ao meio-dia, de tarde sumia no seu Bentley lils para Bournemouth, talvez, onde tinha negcios a resolver, e s voltava s onze da noite. Uma tarde, na hora da sesta, Bond aproveitou para introduzir na fechadura do quarto de Lippe uma pea que cortara de um aviozinho de brinquedos comprado j com essa finalidade na cidade vizinha. Conseguiu abrir a porta e fazer uma revista meticulosa e cautelosa, porm, infrutfera; s conseguiu saber pelas etiquetas das roupas que o conde, muito viajado, se vestia com camisas Charvet, gravatas Tripler, Dior e Hardy Amies, sapatos Peel e pijamas de seda pura de Hong Kong. A mala de couro, etiqueta Mark Cross, talvez tivesse compartimentos secretos e Bond procurou sem resultado. No! O melhor mesmo seria o que estava planejado. Na mesma tarde, tomando ch com melado, Bond fz mentalmente um relatrio do que sabia sobre Lippe: cerca de trinta anos de idade, atraente para as mulheres, fisicamente muito forte pelo que vira na sala das massagens; teria sangue portugus com traos chineses e aparentava riqueza. De que vivia? Qual seria a sua profisso? primeira vista Bond o teria classificado como maquereau do Ritz em Paris, do Palace em St. Moritz, do Carlton em Cannes... bom no plo, no gamo, no esqui aqutico, mas com a marca inconfundvel do homem que vive s custas das mulheres. Acontece, porm, que o conde ouvira Bond fazendo perguntas a seu39

respeito e isto fora suficiente para que cometesse um ato de violncia; ato esse que le realizara com requintes de fleugma e cuidado depois que terminou o tratamento com a senhorita Fearing e sabendo pelo comentrio dela que Bond estaria sozinho na cabine de trao. Pode ser que a violncia tivesse por finalidade apenas avisar e assustar, porm, como Lippe devia conhecer os efeitos de 200 libras de presso sobre a espinha. . . podia tambm ter sido para matar! Por qu? Quem seria esse homem que tinha tanto a esconder? E quais seriam os seus segredos? E Bond serviu mais ch e muito mais acar mascavo e pensou: uma coisa era certa os segredos eram de grande importncia! Bond no havia cogitado de relatar ao quartel-general quem era o conde Lippe nem que le fizera aquele atentado contra sua vida. Tudo aquilo se passando nos cenrios de Shrublands parecia to fantstico e to ridculo. . . alm do mais James Bond, o invencvel, o terrvel homem de ao, sara da cena mole como marshmallow. Enfraquecido por uma dieta de gua e sopa o s do Servio Secreto tinha ficado amarrado numa geringona e outro homem chegara e puxara uma alavanca reduzindo o heri de mil batalhas a gelia. No! S havia mesmo uma soluo; soluo pessoal, discreta, de homem para homem. Mais tarde talvez, para satisfazer sua curiosidade, poderia ir aos arquivos da Records e ver as fichas sobre Lippe. Por enquanto Bond ia ficar calado, quietinho, para no assustar a lebre e o plano cuidadoso funcionaria com preciso. Quando chegou o dcimo quarto dia, o feliz ltimo dia para Bond e por le escolhido para levar avante o plano, todos os detalhes foram revistos, local, hora e mtodo de ao. s dez horas Joshua Wain recebeu Bond para o ltimo check-up. Quando Bond entrou no consultrio Wain fazia exerccios respiratrios diante da janela e com um movimento final voltou-se jovial para o paciente com um alegre: Ah! Bisto! na fisionomia saudvel. Seu sorriso era sincero e comunicativo quando cumprimentou: Ento... como vai a vida? Sr. Bond, nenhuma conseqncia daquele pequeno e desagradvel acidente, espero?40

No, por certo. A natureza humana um mecanismo notvel em sua capacidade regeneradora. Agora, dispa a camisa por favor e vamos ver o que a clnica fz ao senhor. Dez minutos mais tarde James Bond, ciente de que a sua presso voltara a 132/84, seu peso reduzira uns cinco quilos, as leses osteopticas tinham desaparecido, os olhos estavam lmpidos e a lngua limpa, descia pelo corredor a caminho do seu ltimo tratamento. Como de hbito os corredores e salas estavam inodoros e impessoais com suas paredes brancas; de vez em quando na cabine vizinha, separada por cortinas plsticas, havia ligeira troca de comentrios entre paciente e naturopata e, como fundo, o zumbido do aparelho de ventilao. O resto era quietude. Estava quase na hora e Bond deitado de bruos esperava atento a aproximao da sua presa. Ento ouviu o rudo da porta se abrindo e fechando de novo, dos ps descalos e da voz inconfundvel, que falou: Bom dia, Beresford. Tudo pronto para mim? Procure caprichar hoje. Preciso perder um quilo e meio e hoje o ltimo dia. Certo? Tudo certo, senhor. E Bond seguiu ouvindo as passadas de sapatos de borracha do instrutor e dos ps nus do conde passando para a ltima cabine, a dos banhos turcos. Ouviu a porta que abria quando ambos entraram na cabine prova de som e depois os mesmos sons do instrutor que saa depois de instalar o conde devidamente. Vinte minutos, vinte e cinco, e Bond desceu da mesa, dizendo: Muito bem, Sam. Obrigado. Voc me fz um bocado de bem, rapaz. Voltarei qualquer dia. Agora vou para uma boa ducha. Voc pode ir almoar. No precisa se preocupar comigo. Quando acabar, vou embora. E Bond amarrou uma toalha em volta da cintura e foi andando. Houve ainda um pouco de movimento dos pacientes que passavam para o almoo e os instrutores tambm. O ltimo paciente, um bbado recuperado, se despediu com uma piada, algum riu e a voz de Beresford deu as ltimas41

ordens: Viu as janelas, Bill? Certo. O prximo o Sr. Dumbar, no n. 2. Len, diga lavanderia para mandar mais toalhas de tarde. Ted... voc est a? Sam, veja o Sr. Lippe no banho turco. Bond acompanhara esta rotina durante uma semana reparando nos instrutores que saam um pouco antes da hora para almoar e os que ficavam at o ltimo instante e, seguro, respondeu imitando a voz de Sam: O. K., Sr. Beresford. E ficou esperando o rudo caracterstico da sola de borracha sobre a passadeira de linleo e a porta que se abriu e fechou. E agora havia silncio quase absoluto, apenas os ventiladores. A sala de tratamento estava vazia e ali estavam, naquele pavilho, apenas James Bond e Lippe. Bond esperou um pouco, depois saiu da cabine das duchas e devagar abriu a porta da cmara de Banho Turco. le tivera o cuidado de tomar um banho daqueles para poder guardar bem a disposio do ambiente e a cena lhe era familiar. Era um cubculo branco como os outros, s que no centro havia uma espcie de caixa de metal e plstico de um metro e pouco de altura por outro tanto de largura laqueada de cr creme, era toda fechada, como um dado, menos na parte de cima onde havia uma abertura circular forrada de espuma de borracha para a cabea do paciente emergir com a nuca e o queixo apoiado em suportes de borracha. A parte da frente abria por meio de dobradias para que o paciente pudesse entrar e sair. L dentro o corpo da pessoa ficava exposto ao calor de fileiras de lmpadas eltricas e a intensidade da temperatura era graduada termostaticamente por meio de um dial. Era apenas uma caixa para fazer suar, desenhada, planejada e executada (como Bond havia notada antes) por Medikalischer Maschinenbau G.m.b.H 44 Franziskanerstrasse, Ulm, Baviera. O paciente dentro da caixa ficava de costas para a porta e ao ouvir o hissss do fecho hidrulico o conde Lippe gritou impaciente: Raios, Beresford! Tire-me logo daqui. Estou suando42

como um animal! O senhor disse que queria perder peso respondeu Bond, imitando a voz do instrutor, amvelmente. Ora. . . no discuta. Bolas! Tire-me daqui! Creio que o senhor est subestimando o valor do calor na cura-H. O calor remove as toxinas da corrente sangnea e conseqentemente dos tecidos musculares tambm. O paciente que sofre, como o senhor, de pronunciada toxemia tira muitos benefcios deste tratamento. Bond descobriu que estava imitando com facilidade e perfeio o modo de falar dos homens S da clnica. E no estava preocupado com as conseqncias contra Beresford, pois este teria testemunhas vendo-o almoar naquele momento. No me venha com palestras, tire-me deste forno. Bond examinou o mostrador e viu que o ponteiro indicava 120. O que deveria oferecer ao conde? A graduao ia at 200, mas esta temperatura dava para torrar o homem vivo e le queria apenas dar um castigo e no cometer um assassinato; talvez 180 fosse uma boa retribuio ao que lhe acontecera. E resolveu. Prosseguindo na imitao disse: Acho que meia hora de calor mesmo vai lhe fazer bem, senhor e ento, parando de imitar, terminou rispidamente em sua voz natural e se voc pegar fogo pode promover uma ao contra mim! Nesse momento a cabea coberta de suor que estava de costas tentou se virar e no o conseguiu. Bond foi caminhando para a porta. O conde agora tinha uma entonao diferente na voz desesperada, mas sem arrogncia: Eu lhe darei mil libras e estaremos quites. Ouvindo o hissss da porta, insistiu: Dou dez mil. Est bem ento, cinqenta mil! Mas Bond fechou a porta bem direitinho e seguiu pelo corredor a fim de vestir-se e ir embora. Ainda ouviu o som abafado de um pedido de socorro, mas fz ouvidos de mercador e continuou. Uma semana de sofrimento num bom hospital e as novas cras e gelias medicinais curam tudo. Na sua cabea, porm, ficou a interrogao: um homem que43

podia oferecer at cinqenta mil libras devia ser muito rico mesmo ou ento estar desesperadamente necessitado e com urgncia da sua liberdade de movimento. Era um preo muito, muito alto s para se livrar de uma dor fsica! James Bond tinha razo. Esta comparao de fora, esta queda de brao quase infantil entre dois homens fortes e de fibra resistente no ambiente estranho da clnica de naturopatas em Sussex iria influir, embora de maneira breve, no mecanismo de preciso de um compl que estava para surgir e abalar os governos do mundo ocidental!

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5S. P. E. C. T. R. E.

O Boulevard Haussmann vai da rua do Faubourg St. Honor at a pera; muito longo e montono mas talvez a mais slida rua de toda Paris. No a mais rica, esta distino dada Avenue dIna, porm as pessoas ricas no so propriamente as mais slidas em prestgio e muitos dos moradores da Avenue dIna tm nomes que terminam por escu, ovitch, ski e stein e nem sempre estes sufixos representam respeitabilidade. Alm do que aquela avenida quase que exclusivamente residencial. As poucas e discretas placas metlicas indicando nomes de firmas em Liechtenstein ou nas Bahamas ou em Canton de Vaud na Sua esto ali por questo relacionada com impostas, nomes comerciais para desviar a ateno sbre o imposto de renda de particulares abastados... falando mais francamente: sonegao de impostos! J o Boulevard Haussmann no assim. Os pesados prdios estilo Segundo Imprio em tijolo e estuque trabalhado so sedes de negcios realmente vultosos. Aqui esto os45

escritrios principais dos grandes industriais de Lille, Lyon, Bordeaux, Clermont Ferrand... o pessoal de peso no comrcio de algodo, seda, carvo, vinhos, aos e navegao para transporte de cargas. Se neste meio houvesse alguns contaprosas disfarados em capitalistas, simulando des fonds srienx atrs de um bom endereo... temos que admitir que estas coisas acontecem at por trs das slidas fachadas de Lombard e Wall Street. natural que entremeando estas firmas de nomes respeitveis houvesse na mesma rua algumas igrejas, um pequeno museu, a Sociedade Francesa de Shakespeare e algumas organizaes beneficentes. No n. 136 bis, por exemplo, modesta plaquinha de metal indicava F.I.R.C.O. (Fraternit Internationale de la Rsistence Contre 1Oppression). Quem estivesse interessado na organizao, quer por idealismo, quer para fins comerciais, venda de peas de mobilirio etc, e comprimisse o polido boto da entrada seria recebido por um concierge tipicamente francs. Se o assunto fosse srio o mesmo porteiro, bem intencionado, o levaria atravs de um corredor poeirento at uma gaiola chocalhante que o elevador que o alaria at uma sala convencional, evidentemente necessitando de pintura, contendo meia dzia de escrivaninhas surradas onde homens comuns escreviam mo ou mquina muito atentos s suas tarefas; cestas de papis, telefones (daquele modelo bem antigo e bem tpico de Paris) e arquivos de metal pintados de verde com gavetas entreabertas. Para um bom observador seria fcil notar que os empregados pareciam ter todos a mesma idade e o mesmo tipo fsico e que no havia ali secretrias, como seria de esperar, mas apenas homens trabalhando. O visitante seria recebido por um funcionrio um tanto apressado e atarefado e quando seus propsitos fossem explicados ento um sorriso (talvez de alvio) e uma voz menos afobada explicariam as finalidades da Fraternidade, sua existncia a fim de manter viva a chama do ideal que animou durante a guerra tantos patriotas, etc, etc... Uma organizao inteiramente apoltica! Os fundos para subsistncia? Provinham de modestas con46

tribuies de membros da mesma e de doaes generosas de particulares idealistas. Estaria o visitante querendo alguma informao acerca de alguma pessoa do grupo de Resistncia durante a guerra? Pois no! Nome, por favor... Gregor Kalski, perfeitamente. Um momento... Aqui est... Foi visto pela ltima vez perto de Mihailovitch no vero de 1943... Jules (outro funcionrio chamado a cooperar na busca), Jules! Procure no arquivo: Kalski, Gregor Kalski, Mihailovitch, 1943. Jules vai, demora um pouco e volta com a informao: Morto. Morto durante o bombardeio de 21 de outubro de 1943. Sinto muito, senhor. Em que mais podemos servi-lo? Talvez queira levar alguns dos nossos panfletos e peo desculpas, mas no disponho de tempo para falar mais detalhadamente sobre a nossa Fraternidade. Mas a nos livretos h tudo sobre a FIRCO. Hoje um dia atarefadssimo! Este o ano dos Refugiados Internacionais e temos recebido muitas consultas como a do senhor. Boa tarde, pas de quoi. A coisa se passaria assim ou mais ou menos assim e a pessoa sairia muito satisfeita e bem impressionada com a organizao e sua dedicao e eficincia para com uma causa to nobre! No dia seguinte aquele em que James Bond completou a sua cura na clnica e partiu para Londres depois de satisfazer seus apetites devorando noite um prato suculento de Spaghetti Bolognesa, acompanhado de Chianti, no Luciens em Brighton, e de ter passado momentos agradveis com Patrcia Fearing dentro do carrinho dela, l pelos arredores do Downs, uma reunio extraordinria dos maiorais da FIRCO foi convocada s sete horas em ponto. Os homens (pois todos os componentes eram masculinos) vieram de todos os cantos da Europa, de trem, de avio, de automvel, para o n. 136 bis; alguns entravam pela porta principal, outros pela entrada de servio cada um tinha uma hora marcada para chegar e havia revezamento quanto a passar pela porta principal ou no. Dois porteiros atendiam em cada porta e havia outras medidas de segurana, campainhas de alarme disfaradas, circuito fechado de televiso47

cobrindo as duas entradas, etc. . . e medidas de emergncia que permitiriam transformar qualquer reunio secreta rapidamente em um sero inocente com expediente normal da FIRCO. s sete em ponto todos os homens convocados, obedientes s ordens recebidas, chegaram sala de reunio do terceiro andar. O chefe j estava no seu lugar. No houve cumprimentos porque o chefe achava que era desperdcio de flego e de tempo alm do que, pelo esprito da coisa, seria uma atitude hipcrita. Os homens formaram ao redor da mesa tomando seus lugares de acordo com a numerao, de 1 a 21, pelo que eram chamados, havendo um rodzio no primeiro dia de cada ms como uma pequena medida de precauo e segurana. Era proibido fumar e beber e ningum ousava olhar para a folha da agenda FIRCO frente do seu lugar. Sentavam-se todos muito quietos e olhavam apenas em direo ao chefe, com expresso de grande interesse e, para alguns, de grande respeito. Quem quer que olhasse para o n. 2 (este era o nmero do ms para o chefe), mesmo pela primeira vez, no poderia esconder um certo sentimento de interesse pois le era desse tipo de pessoas que a gente encontra apenas duas ou trs vezes na vida; seu olhar parecia atrair como um m; era do tipo raro de homem que rene trs atributos pouco comuns: aparncia fsica extraordinria, certo poder de controle e autoconfiana e a capacidade de emitir uma fora magntica quase animal! Em todos os tempos e em todas as tribos o indivduo dotado destas qualidades o escolhido para chefe. Alguns dos homens que passaram histria, com Genghis Khan, Alexandre o Grande e Napoleo, possuam estas qualidades. Talvez haja nisto uma explicao para indivduos de menor envergadura como Adolf Hitler, por exemplo, que dominou por tanto tempo uma populao de mais de oitenta milhes de uma das naes mais bem dotadas da Europa. Por certo o n. 2 possua todos esses dons e qualquer transeunte na rua o reconheceria, quanto mais os vinte homens ali reunidos! Para eles, a despeito do cinismo e do impiedoso48

desprezo e insensibilidade inerentes falta de carter de todos, aquele homem era o chefe supremo e de certo modo uma espcie de deus. O nome desse homem era Ernest Stavro Blofeld e nascera em Gdynia, pai polons e me grega, no dia 28 de maio de 1908. Estudou Histria Poltica e Econmica na Universidade de Varsvia e Engenharia e Eletrnica no Instituto Tcnico de Varsvia. Aos 25 anos ocupou um lugar modesto na administrao central do Departamento de Correios e Telgrafos. Parecia pouco para um ser to dotado de qualidades mas que Blofeld havia chegado a uma interessante concluso acerca do futuro do mundo. le achava que uma carreira rpida e produtiva vem da concentrao do poder em um s ponto, uma espcie de corao para o mundo, representado por um homem forte e hbil, capaz de decises precisas e acertadas. O conhecimento das coisas, da verdade, na paz ou na guerra, e firmeza nas decises eis a fonte de toda reputao slida. E baseado nessa teoria le estava satisfeito com a sua posio nos Correios onde tinha chance de enriquecer seus conhecimentos lendo telegramas e cabogramas que passavam por suas mos, aproveitando para especular na Bolsa de Varsvia de acordo com o que podia extrair das informaes trazidas nas correspondncias. Quando, por exemplo, a Polnia se preparou para a guerra a correspondncia diplomtica e poltica, ordens referentes a munies, cartas e telegramas passaram pelas mos de Blofeld e ento le mudou de ttica; aquelas informaes no tinham o menor valor para le, porm. . . para o inimigo valiam qualquer preo. Cautelosamente a princpio, e depois com mais segurana, le desenvolveu uma tcnica para copiar os telegramas escolhendo naturalmente, de preferncia, aqueles marcados com avisos de urgente e secreto. Tratou tambm de selecionar uma equipe fictcia de colaboradores (embora com nomes de pessoas reais que conseguiu com astcia, telefonando em nome da Cruz Vermelha para firmas e embaixadas e perguntando por elementos de pouca importncia como secretrias de secretrios, tradutores de cdigos etc.).49

Uma vez obtida a lista batizou a sua organizao de TARTAR e tratou de procurar contatos com o Adido Militar alemo, o que conseguiu, sendo da levado a presenas mais importantes em vista do valor das informaes que tinha para vender. A engrenagem comeou a funcionar e o dinheiro (s aceitava pagamento em dlar) a entrar com fartura (a lista dos agentes fictcios com nomes reais era rendosa folha de pagamento extra! Tudo para o seu bolso) e Blofeld resolveu ampliar seus negcios. Comeou a pensar nos Russos... mas tirou-os das suas cogitaes. Os Tchecos... no, no eram bons pagadores. Ah! os Americanos! E os Suecos! E o dinheiro entrou em profuso. Porm le era um homem precavido e sabia que aquilo no poderia durar para sempre. Podia acontecer algo com as relaes entre a Alemanha e a Sucia (com sua acuidade e inteligncia deduzira muita coisa em seus contatos com os espies de ambas as partes). E havia o Servio do Contra-espionagem das foras aliadas... Havia tambm o perigo do falecimento do dono de algum dos nomes que le usava e a descoberta da fraude. Alm do mais j conseguira acumular uma soma considervel, a guerra ameaava todas as seguranas e o melhor seria procurar um porto seguro at as coisas melhorarem. Comeou a manobra alegando que a fiscalizao estava apertando o cerco, talvez suspeitassem e era arriscado, os agentes dele em vista do maior risco exigiam somas absurdas e tinha de se afastar por algum tempo. Qualquer nova possibilidade seria por le comunicada. Foi ento Bolsa e vendeu ttulos e investiu a fortuna em aes da Shell Bearer em Amesterdo e finalmente transferiu tudo para um cofre numerado no Diskonto Bank em Zurique. Pouco antes de dizer aos fregueses que no poderia continuar foi a Gdynia na seo de registros e igreja onde fora batizado e com a habilidade que lhe era inerente conseguiu surrupiar as pginas onde seu nascimento estava anotado, depois tratou de procurar um fabricante de passaportes, que os h em toda parte, e comprou por $2,000 o de um marinheiro canadense. Dali foi para a Sucia para observar o movimento e de l voou para a Turquia, usando seu passa50

porte original, fz transferncia de dinheiro da Sua para o Banco Otomano e esperou que a Polnia casse. Quando realmente isto aconteceu pediu asilo na Turquia e, com o capital j a isso destinado, comprou a legalidade necessria e a se estabeleceu. Arranjou emprego na Ankara Rdio e teceu outra rede de espionagem, a RAHIR, nos mesmos moldes da TARTAR, porm mais segura. Foi agindo a seu modo e s quando von Rommel foi expulso da frica que le voltou as vistas para os Aliados. E terminou a guerra brilhantemente com condecoraes e citaes pelos britnicos, americanos e franceses! Ento, com meio milho de dlares em bancos suos e um passaporte sueco sob o nome de Serge Agstrom, foi descansar na Amrica do Sul, comer boa comida e pensar com calma. E agora, com o nome de Ernst Blofeld, que lhe pareceu perfeitamente seguro, resolvera vir para o Boulevard Haussmann e naquela noite olhava com ateno as fisionomias dos vinte homens que trabalhavam para sua organizao e que na verdade no se sentiam muito vontade ao fit-lo cara a cara. Os olhos de Blofeld eram como lagos profundos e escuros, cercados totalmente (como os de Mussolni) pelo branco azulado muito simtrico, o que s vezes dava a impresso de olhos de boneca especialmente pelos clios longos, escuros e sedosos, quase femininos. Esses olhos singulares quando fitavam algum conseguiam evitar qualquer outra expresso alm de forte interesse no objeto focalizado, e denunciavam apenas uma segurana absoluta de acerto na anlise que faziam. Para os menos avisados aquela expresso inspirava confiana e no raro provocava confidencias dos que se julgavam em muito boas mos. le conseguia desnudar qualquer ntimo e torn-lo transparente como um aqurio, do qual Blofeld retirava os peixes que lhe interessavam e os gros de verdade. O olhar de Ernst era uma espcie de microscpio, janela de um mundo mental privilegiado e aguado por trinta anos de vida perigosa e de antecipao e lhe garantiam sucesso em todos os setores que tentasse. A ctis em redor dos olhos que, no momento, examinavam len51

tamente os presentes, era lisa e no havia sinais de desgaste por farras ou mesmo da idade no rosto claro e limpo. A linha do queixo traa a tendncia autoritria. Apenas a boca, sob o nariz grosso e largo, destoava da fisionomia que poderia ser de um cientista, de um filsofo. Era estreita e desdenhosa, mais parecia um talho mal cicatrizado, os lbios sempre comprimidos eram escuros e capazes apenas de esboar sorrisos falsos, feios, de desprezo, tirania e crueldade; tudo com acentuada intensidade nada era pequeno em Blofeld. Seu corpo devia pesar uns noventa quilos e houve ocasio em que era todo msculos! Praticara levantamento de peso na juventude. . . agora, porm, a gordura tomara conta e le procurava esconder em calas amplas e em jaquetes bem talhados o daquela noite era beige a barriga avantajada. Assim os ps e mas de Blofeld eram longos, pontudos, e podiam ser muito ligeiros quando o queria, porm normalmente, como agora, aparentavam calma e moderao ou controle. Quanto ao resto. . . no bebia nem fumava e nunca se soube que houvesse dormido com uma pessoa do sexo oposto. Nem mesmo comia demais. No que se refere a vcios ou fraquezas fsicas, permanecia um enigma para todos. Os vinte homens que, sentados ao redor daquela mesa, esperavam pacientemente que o chefe falasse, formavam uma mistura curiosa de tipos e raas. Tinham, porm, algumas caractersticas em comum. Todos tinham idade entre trinta e quarenta anos, todos pareciam em excelente forma e quase todos, com exceo de dois, tinham o olhar matreiro e arisco de lobos ou gavies prontos a atacar cordeiros. Os dois diferentes eram cientistas e tinham olhos de cientistas; eram Kotze, o fsico alemo, que viera para ali cinco anos antes trocando os segredos de suas descobertas por um modesto ordenado e uma residncia retirada na Sua, e Maslov, ex-Kadinsky, o tcnico em eletrnica que, em 1956, havia renunciado ao posto de chefe do departamento de pesquisas da Philips A.G. de Eindhoven e desaparecera na obscuridade. Os outros dezoito provinham de seis nacionalidades diferentes e de seis52

organizaes criminosas diversas (Blofeld aceitara o sistema triangular comunista por medida de segurana): trs deles eram sicilianos, elementos caractersticos da Unione Siciliana, a Mfia; trs outros eram corsos franceses da Unio Corsa, sociedade secreta e semelhante Mfia, e controladora da rede de crimes na Frana; mais trs eram ex-membros da Smersh, organizao sovitica destinada execuo de traidores e inimigos, extinta por ordem de Krushchev em 1958, substituda pelo Departamento Especial Executivo do MVD; havia trs sobreviventes da antiga Sonderdienst da Gestapo; trs carrascos iugoslavos que haviam renunciado polcia secreta do Marechal Tito e ainda trs turcos (os turcos da plancie so perigosos), antigos membros da RAHIR de Blofeld e conseqentemente elementos responsveis pela KRYSTAL, importante fornecedora de herona do Oriente Mdio, com base em Beirute. Dezoito homens, todos peritos em conspiraes, aes secretas no mais alto grau, sabendo silenciar e mais que tudo comungando numa virtude suprema todos possuam slida cobertura. Todos possuam passaportes vlidos com vistos para qualquer parte do mundo e folha limpa com a INTERPOL, assim como com a polcia de suas ptrias. O simples fato de todos aqueles homens terem a habilidade de conseguir reputao limpa depois de uma existncia de crimes e traies bastava como condio para seu ingresso na S. P. E. C. T. R. E. (Sociedade Poltica Especializada em Contra-espionagem, Terrorismo, Rapinagem e Extorso). O fundador e chefe dessa empresa privada para lucros privados era Ernst Stavro Blofeld.

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6Hlito de Violeta

Blofeld terminou a inspeo visual de todas as faces presentes. Como j esperava, apenas um par de olhos procurou esquivar-se da anlise visual, ele sabia que suas suspeitas estavam bem certas. O resultado das pesquisas que fizera a respeito indicavam o mesmo, mas os seus olhos eram para le a prova real. Lentamente retirou as duas mos de cima da mesa e descansou uma delas sobre a coxa enquanto com a outra retirava do bolso uma caixinha dourada que colocou sobre a mesa sua frente, abriu-a com o polegar e tirou uma pastilha de essncia de violeta que colocou na boca. Era costume seu perfumar o hlito quando precisava dizer algo desagradvel. Ajeitou a pastilha sob a lngua e comeou a falar em voz pausada, macia e muito bem empostada: Tenho pontos a explicar aos membros da organizao acerca do grande Plano, a Operao mega (Blofeld jamais se dirigia a amigos, colegas, cavalheiros, achava futilidade). Antes, porm, de entrar no assunto, por medida de segurana, preciso tratar do um outro tpico e olhou55

novamente rosto por rosto, sentindo que os mesmos olhos o evitavam de novo, e prosseguiu: Temos todos de concordar que estes trs anos de funcionamento tm sido de sucesso para a organizao graas em parte nossa seo alem que recuperou as jias de Himmler e conseguiu discretamente dispor das pedras atravs da seo turca, em Beirute, obtendo um rendimento de 750 000 libras. O desaparecimento do cofre do MVD com todo seu contedo nunca descoberto e sua venda para a Agncia Americana trouxe mais 500 000. A interceptao de mil onas de narctico em Npoles e sua venda em Los Angeles para Firpone rendeu mais 800 000. J o Servio Secreto britnico nos pagou 100 000 libras pelas ampolas para guerra bactericida do laboratrio tcheco de produtos qumicos em Pilsen. A chantagem com o antigo SS Gruppenfhrer, Sonntag, que vivia sob o nome de Santos em Havana, rendeu a ninharia de 100 000 (infelizmente era tudo o que le possua); o assassinato de Peringue, o especialista em gua pesada que passou para os comunistas atravs de Berlim... graas importncia do que le sabia e ao fato de que o pegamos antes que falasse, nos rendeu um bilho de francos pagos pelo Deuxime Bureau. Em nmeros redondos, como de conhecimento geral, a nossa renda total at o momento, sem contar com a ltima soma ainda no dividida, monta aproximadamente a um milho e meio de libras esterlinas que, por motivos de segurana e prudncia, esto em francos suos e bolvares venezuelanos, moedas correntes seguras. A distribuio feita, como o Executivo tem cincia, de acordo com o combinado: dez por cento para cobrir despesas, dez por cento para mim e o restante em partes iguais de quatro por cento para cada membro, o que d uma renda de aproximadamente 60 000 libras por membro. Esta soma me parece uma remunerao justa pelos servios prestados. Creio, porm, que a Operao do Plano Omega vai propiciar, a cada um, proventos suficientes, uma fortuna considervel, que permitir, a quem assim o quiser, uma ampliao da organizao com transferncia de atividades em outros sentidos. E Blofeld, olhando para a mesa, perguntou amavel56

mente: Alguma dvida? Alguma pergunta? Vinte pares de olhos (desta vez todos) se voltaram para fitar o chefe, sem emoo; cada um havia feito seus clculos... No, ningum perguntou nada. Estavam satisfeitos, porm no lhes era dado externar isso devido as suas personalidades duras, alm do mais tudo o que o chefe tinha dito era fato conhecido. Eles queriam saber coisas novas. Blofeld colocou outra pastilha do violeta sob a lngua e continuou a falar: Pois muito bem. Vamos nossa ltima operao, completada h um ms e com renda de um milho do dlares. E correndo os olhos pela fila de homens do lado direito da mesa at o fim falou mansamente: Levante-se, n. 7! Marius Domingue, da Unio Corsa, orgulhoso, olhos astutos, vestindo terno comprado feito (provavelmente na Galleries Barbes em Marselha) levantou-se lentamente, e olhou de frente para Blofeld. Suas mos grandes e pesadas descansavam calmas ao longo do corpo. Blofeld olhou de volta para o n. 1, porm na verdade aproveitara para observar a reao do homem ao lado, o n. 12, Pierre Borraud. ste membro estava sentado exatamente de frente para Blofeld no outro lado da mesa e eram seus olhos os que estavam evasivos todo tempo, J agora, no; le parecia aliviado, como se o que ele temia houvesse passado. Blofeld se dirigiu a todos: A ltima operao, como todos sabem, envolvia o rapto da filha, de dezessete anos, de Magnus Blomberg, dono do Hotel Principality em Las Vegas e participante de outras empresas atravs de sua associao com a Detroit Purple Gang. A pequena foi raptada do apartamento do pai no Hotel de Paris em Monte Carlo e levada por mar para a Crsega. Esta parte da operao foi executada pela seo corsa. Um resgate de um milho de dlares foi pedido. O Sr. Blomberg estava disposto a pagar e, de acordo com as instrues dadas pela SPECTRE, colocou o dinheiro dentro de uma balsa pneumlica e deixou-a flutuando no ponto certo da costa italiana perto de San Remo, ao escurecer. Mais tarde a balsa, foi recolhida pela nossa representao siciliana. Esta seo57

mereceu o nosso aplauso por ter descoberto e interceptado um pequeno transmissor transistorizado escondido na balsa, evidentemente com a finalidade de fornecer a nossa posio Marinha francesa e possibilitar a nossa captura. Recebemos o dinheiro do resgate e, de acordo com o trato, a pequena foi devolvida a seus pais aparentemente intacta (a no ser pela colorao dos cabelos, que foi necessria para sua remoo da Crsega para um Wagonlit no Trem Azul de Marselha). Eu disse aparentemente. Pois soube, por um contato do comissariado de polcia de Nice, que a moa foi violentada durante o seu cativeiro na Crsega. Blofeld fz uma pausa proposital para deixar que a notcia fosse assimilada e continuou: Seus pais afirmam que ela foi violentada. possvel que apenas tenha havido relaes carnais e com o seu consentimento, mas isto no vem ao caso. O que importa que a organizao prometeu que a moa voltaria intacta. No vou entrar em detalhes com referencia importncia do conhecimento ou no da pequena sobre relaes sexuais, porque o meu ponto de vista apenas este: quer o fato se tenha passado com ou sem o consentimento da moa, esta foi devolvida a seus pais em condies contrrias ao que havamos prometido, podemos dizer em ltimo caso... foi usada. Raramente Blofeld recorria gesticulao, porm no momento espalmou lentamente a mo esquerda pousando-a sobre a mesa e continuou no mesmo tom de voz: Ns somos uma organizao grande e poderosa, no tenho nada a ver com ticas e moral mas quero recomendar ainda uma vez aos membros que o meu desejo que a SPECTRE se porte com justeza e superioridade. A nica disciplina que se exige aqui a autodisciplina. Somos uma fraternidade cuja nica fora est justamente na capacidade de cada membro. A fraqueza em um dos membros tem o mesmo efeito daninho de cupim em estrutura de madeira, pode destru-la! Todos sabem de sobra o meu modo de pensar a respeito e nos momentos em que foi preciso fazer uma profilaxia tomei atitudes que todos aprovaram. Neste preciso caso, por exemplo, tomei a providncia que achei certa:58

devolvi famlia da moa a metade do resgate, meio milho de dlares, com um pedido de desculpas pelo sucedido. No levei em conta o fato do transmissor escondido na balsa, que feria o nosso acordo, porque acredito que a famlia no o fz; foi um ato tpico da polcia, que de certo modo no me surpreendeu. Bem, em conseqncia disto tudo, o dividendo de todos ns ficou sensivelmente reduzido. E quanto ao responsvel pela irregularidade. . . estou agora seguro de que realmente culpado. J decidi a atitude a tomar. Blofeld correu a mesa com os olhos e fitou o n. 7, o corso Marius Domingue, que olhou firme do volta, sabia que estava inocente. E sabia quem era o culpado. le estava firme e tenso, mas no tinha medo. Ele confiava, como todos os outros, na correo do critrio de Blofeld. No entendia bem porque estava ali escolhido para ser