Icaro Cunha

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    Gerenciamento de riscos e negociao ambiental em rea porturia

    Icaro Cunha **

    Introduo

    Neste artigo, recuperam-se abordagens que enfatizam a demanda por negociao ambiental como aspecto

    central da evoluo da poltica ambiental brasileira, na perspectiva do desenvolvimento sustentvel. Neste

    cenrio se observa a construo de estratgias socio-ambientais corporativas como resposta a cenrios

    complexos, em que as empresas buscam pactuar com diferentes stakeholders . As grandes linhas do

    programa de excelncia em gesto ambiental da Petrobrs/Transpetro so descritas, recuperando-se a

    experincia de gerenciamento de riscos do terminal de So Sebastio como exemplo de interesse para

    avaliar as possibilidades abertas por iniciativas de gesto que permitem controles ambientais implantados

    conjuntamente com mecanismos de participao e negociao de conflitos.

    1. A GESTO AMBIENTAL COMO ESPAO PARA NEGOCIAESOs conflitos scio-ambientais podem ser entendidos como disputas entre grupos sociais derivadas dos

    distintos tipos de relaes por eles mantidas com seu meio natural. H tres dimenses bsicas a serem

    consideradas no entendimento e na anlise destes conflitos: o mundo biofsico e os ciclos naturais, o mundo

    humano e

    ........................

    **Socilogo, Doutor em Sade Ambiental, Professor de Poltica Ambiental dos Programas de Mestrado em

    Gesto de Negcios e Sade Pblica da Universidade Catlica de Santos

    suas estruturas sociais, e o relacionamento dinmico, interdependente, entre estes dois mundos . Ocorrem

    conflitos pelo controle dos recursos naturais, conflitos gerados pelos impactos ambientais e sociais

    decorrentes de determinados usos, e tambm aqueles ligados aos usos e apropriaes dos conhecimentos

    ambientais (Little, 2001).

    A poltica ambiental vai progressivamente sendo percebida como um espao de negociao de conflitos.

    Leis identifica nesta questo um aspecto estratgico para a evoluo da poltica ambiental brasileira. O pas

    dotado de relativa maturidade na viso de seus problemas ambientais e na importncia conferida a estes

    temas em sua ordem jurdica, enquanto as polticas e a gesto pblica se mantm estancadas e atrasadas.

    Segundo sua anlise, isso se deve justamente ao fato de que ainda predomina um tratamento tcnico e

    burocrtico dos problemas ambientais, quando deveria assumir-se a existncia de um contexto conflitivo .

    As propostas de solues provocam efeitos contrrios, contestaes, porque no incorporam a

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    necessidade de negociar com os diferentes interesses presentes em cada situao (Leis, 1999). Audincias

    pblicas, Conselhos, mecanismos como aes civis na justia, so instrumentos de participao mas no

    tm sido canais de negociao. No apenas os vcios de concepo do pessoal das burocracias

    especializadas tm contribuido para este quadro, mas igualmente os extremismos de atitude de atores

    tradicionais do ambientalismo .

    Esse entendimento se aproxima da viso de desenvolvimento sustentvel de Sachs, para quem este

    conceito consagrado na Rio-92 (Comisso Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, 1988) deve

    ser visto no apenas em sua dimenso ecolgica e espacial; os novos equacionamentos do

    desenvolvimento devem garantir sustentabilidade econmica, bem como social permitindo acesso a nveis

    adequados de consumo aos vrios grupos humanos e poltica, ou seja, devem resultar de processos

    decisrios desenvolvidos de forma democrtica e participativa (Sachs, 1993). A negociao ambiental,

    entendida como via para a operacionalizao do conceito de desenvolvimento sustentvel, pode ser

    facilitada por um enfoque de busca dos ganhos mtuos apoiando a construo de consensos em torno de

    avanos graduais e progressivos para novos patamares mais sustentveis (Susskind e Field, 1996).

    Estratgias ambientais corporativas vm sendo analisadas pelo prisma da negociao com diferentes

    grupos de interesses (stakeholders) que sofrem a influncia e por sua vez podem influenciar o campo de

    atividade das empresas, questionando ou contribuindo para consolidar sua legitimidade (Andrade, 2000).

    2. POLTICA DE GERENCIAMENTO DE RISCOS EM TERMINAIS PORTURIOS DA PETROBRAS /

    TRANSPETRO

    O gerenciamento dos dutos e terminais de petrleo e derivados, inclusive os porturios, foi assignado pela

    Petrobrs a sua subsidiria Transpetro, recentemente criada. Todo o sistema Petrobrs foi sacudido, em

    termos de gesto ambiental, pelos eventos da Baa de Guanabara e pouco tempo depois pelo vazamento

    do Paran, ambos contando com grande repercusso nos meios de comunicao . Hoje, as aes de

    gesto ambiental passam a ser objeto de um programa de investimentos de grande porte, alcanando R$

    3,2 bilhes (tres bilhes e duzentos milhes de reais) at o ano de 2003 . A estratgia se apia na busca de

    benchmarking nas diferentes frentes de gesto ambiental que integram o PEGASO programa de

    excelncia em gesto ambiental e segurana operacional. Empresas como a Dupont, vista como referncia

    na preveno de acidentes, ou a EMBRIDGE canadense , so contratadas para repassar experincias que

    subsidiem as tres dimenses definidas como estratgicas para os procedimentos do sistema Petrobrs: a

    manuteno dos sistemas fsicos, o aperfeioamento das rotinas operacionais e a capacitao das equipes .

    Dessa forma, no basta estar dentro da conformidade com a legislao; trata-se de buscar padres de

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    excelncia, trabalhando com antecipao e minimizao das situaes de risco, e transparncia junto a

    agncias pblicas e populao em geral.

    As grandes linhas do PEGASO abrangem a reviso da totalidade dos Planos de contingncias; a

    implantao de nove Centros de Defesa Ambiental, centrais de atendimento a emergncias capazes de

    mobilizar meios para combate poluio em grande escala; superviso automatizada de 100 % dos 14 000

    quilmetros de dutos; certificao dentro dos padres de segurana ambiental e ocupacional (ISO 14001 e

    BS 8800); reduo de resduos em 80 %; at avanar em etapas futuras para novas tecnologias e energias

    renovveis .

    Dessa forma, o sistema Petrobrs assume um conjunto de desafios, que podem ser exemplificados de

    muitas maneiras: desenvolver 90 diferentes frentes simultneas de trabalho de verificao de dutos em

    busca de vazamentos, corroses, amassamentos; reciclar 40 % dos operadores em dois anos; implantar um

    Sistema completo de gerenciamento dos licenciamentos ambientais; ou, atravs dos servios de ONGs,

    conhecer as comunidades pobres que esto assentadas nas proximidades de dutos de petrleo e

    derivados, em situaes de risco que fazem lembrar Vila Soc, para estabelecer negociaes com vistas a

    garantir a segurana dos dutos e das populaes humanas. De forma abrangente, o desafio dar um salto

    de qualidade para um gigantesco conjunto de operaes que at o marco da Baa de Guanabara pautava-

    se na prtica por uma estratgia de resposta s exigncias do sistema governamental de meio ambiente.

    Em localidades em que as agncias ambientais exerciam um controle mais estrito, continuado, as

    operaes da Petrobrs atingiam estgios mais avanados de gesto ambiental, como no caso de So

    Sebastio; em outros pontos, respondendo a um padro de exigncias menos restritivo e preventivo, a

    empresa permitia-se respostas em tempos mais dilatados, gerando assim situaes de maior probabilidade

    de acidentes com poluio e com capacidade bastante limitada de reao em emergncias. Os eventos da

    Guanabara e do Paran, num contexto de expanso dos cenrios de negcios da empresa, inclusive com

    perspectivas de insero em mercados externos em que a imagem ambiental torna-se fator importante de

    competio , acenderam um sinal de alerta: j no basta ficar colado nas exigncias formuladas pelos

    rgos licenciadores, at porque diante de grandes acidentes estes mesmos rgos no assumem

    solidariamente suas parcelas de responsabilidade no gerenciamento dos riscos. Diante das presses de

    opinio pblica, as atitudes das autoridades ambientais seguem muitas vezes um padro de apresentao

    do vilo ambiental, a empresa poluidora, associado ao anncio de penalidades de alto valor pecunirio,

    em encenaes que ajudam os leigos a esquecerem as perguntas sobre o papel preventivo dos controles

    de poluio que deveriam gerar outro patamar de segurana.

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    A empresa assim rev sua estratgia ambiental, buscando exemplos de novos tipos de relacionamento com

    a comunidade e as autoridades ambientais, como o que foi estabelecido em torno de sua maior operao

    de terminal martimo.

    3. O DESAFIO DA COMUNICAO DE RISCOS DO MAIOR TERMINAL DE PETRLEO DA AMRICA

    LATINA

    So Sebastio, sede do maior terminal petrolfero da Amrica Latina, vive seu Dia do Alerta em outubro.

    Estabelecida por decreto municipal no terceiro sbado deste mes, a data se destina a um exerccio de

    conscientizao da populao sobre os riscos ambientais para as vizinhanas urbanas das instalaes do

    terminal, e em especial para um trabalho de orientao sobre o que deve ser feito no caso de uma

    emergncia. Submetido a um trabalho de controle e gerenciamento de riscos desde a dcada de 80, o

    Terminal comunicou claramente pela primeira vez em 2000, para o conjunto da populao local, quais so

    as modalidades de acidentes de grande porte que podem ocorrer, suas possiveis consequncias externas e

    os planos de ao a serem seguidos nestas eventualidades , como parte dos passos de implantao do

    plano APELL de preparao para emergncias ambientais. A estratgia de comunicao encontrada pelas

    equipes envolvidas, distribuindo uma cartilha e mobilizando setores da comunidade para uma gincana cujas

    tarefas pretenderam chamar ateno para os conteudos da mesma, tem resultado numa mobilizao

    considervel e num clima positivo de adeso, animando os diferentes setores envolvidos a prosseguir na

    delicada tarefa de comunicar abertamente riscos, o que no usual por parte das grandes instalaes

    industriais no pas.

    So Sebastio um municpio da costa norte de So Paulo, limitando-se ao sudoeste com Bertioga e ao

    norte com Caraguatatuba. Para o interior, as cristas da Serra do Mar fazem o limite com Salespolis. Com

    cerca de cem quilmetros de costa, o municpio tem sua rea porturia no Canal de So Sebastio,

    protegido pela ilha do mesmo nome, que pertence ao municpio de Ilhabela. Ali situam-se o porto de cargas

    secas, com um bero para navios de carga, e o terminal petrolfero, com quatro beros, por onde

    descarregado cerca de 50 % do petrleo movimentado no pas, bem como derivados como nafta ou

    querosene de aviao. A construo do terminal data dos anos 60, sendo sua localizao determinada pela

    existncia do porto natural profundo do Canal, onde desde antes da instalao do terminal j eram feitos

    transbordos de leo de navios cujo calado no permitia a acostagem em Santos (Kandas, 1988).

    So Sebastio tem cerca de 55 mil habitantes permanentes, nmero que aumenta de duas a tres vezes,

    pelo menos, nas temporadas de vero, com o afluxo turstico dirigido principalmente s praias famosas da

    chamada costa sul do municpio, onde grande nmero de colunveis paulistas tm suas residncias de

    veraneio. Este movimento turstico expandiu-se notavelmente a partir da dcada de 80, com o asfaltamento

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    da rodovia Rio-Santos, que abriu praias isoladas, at ento marcadas pela simples arquitetura caiara, para

    violento movimento de especulao imobiliria. Todo este conjunto de transformaes gerou notveis

    impactos ambientais, responsveis pela ecloso de um aguerrido movimento ambientalista local, na dcada

    de 80. A poltica local refletiu a presena destas lutas, tendo os ltimos governos municipais, em especial

    nos perodos 89-92 e 97-2000, desenvolvido iniciativas abrangentes de poltica ambiental (Cunha, 1996 e

    2000). O controle dos riscos associados ao movimento de petrleo e derivados um dos principais focos

    destas iniciativas, em que se somam aes locais a outras desenvolvidas pelas autoridades estaduais.

    Desde a segunda metade da dcada de 80, um trabalho de gerenciamento de riscos vem sendo

    desenvolvido em relao ao Terminal Almirante Barroso . O trabalho comeou por enfocar os

    derramamentos de leo no mar, o tipo de ocorrncia mais frequente, somando, segundo recente estudo,

    220 eventos at novembro de 2000 (Poffo, 2000) . A CETESB, agncia de controle de poluio do estado

    de So Paulo, vem exigindo da Petrobrs a elaborao e apresentao de estudos de riscos, com base nos

    quais medidas de segurana ambiental so requisitadas. O atendimento a este programa gerou

    investimentos em medidas de segurana ambiental, por parte da Petrobrs, na casa de U$ 36 milhes

    (trinta e seis milhes de dlares) nas suas instalaes de So Sebastio, distribuidas no pier, nos dutos, na

    rea de tancagem, no sistema operacional geral. Na segunda metade da dcada de 90, tais medidas

    mostraram resultados, ocorrendo uma sensivel reduo no volume de acidentes (Poffo, 2000, e Cunha,

    1996).

    Mais recentemente, este trabalho de gerenciamento de riscos passou a abranger a rea de tancagem e os

    dutos que levam produtos do terminal para tres diferentes instalaes de refino (em Cubato e no planalto),

    com os mais recentes estudos de riscos permitindo o desenvolvimento de um plano para emergncias na

    rea urbana central de So Sebastio. Nesta regio, o ptio de tanques da Petrobrs, com capacidade de

    armazenamento para 12 milhes de barris, ocupa grande rea que se limita diretamente, muro com muro,

    com bairros ou partes de bairros cuja populao permanente de cerca de 3200 pessoas, aos quais se

    somam aproximadamente 3000 alunos das escolas localizadas no permetro e um nmero no

    precisamente conhecido de visitantes nas temporadas de vero.

    Segundo estes estudos de riscos, as hipteses acidentais mais graves so de vazamentos de produtos que

    podem evoluir, caso no sejam eficazes as medidas de controle, para ocorrncia de incndio de poa, ou

    seja queima do produto contido no dique que cerca o tanque; ou para a formao de nuvem de vapor

    inflamvel ou explosiva . Dadas as medidas preventivas de controle de estoque de produtos, os estudos de

    riscos limitam as consequncias destes acidentes ocorrncia de calor forte na rea externa, sem contudo

    gerar incndio externo; ou possibilidade de, ocorrendo exploso de nuvem, o deslocamento de ar gerar a

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    queda de parede ou muro. Existe um tempo de evoluo entre o possivel incio de um evento acidental com

    vazamento e os potenciais desdobramentos com possibilidade destes efeitos externos. Este tempo permite

    a proteo da populao dos bairros limtrofes, mediante seu afastamento organizado, que precisa ser

    acionado oportunamente caso as medidas de controle do vazamento se mostrem ineficazes.

    Trabalhando com base na equao de risco ambiental ( R = f x c , risco frequncia ou probabilidade do

    evento multiplicada pela consequncia) a reduo do risco se faz diminuindo a probabilidade de um evento

    acidental, mediante medidas de segurana como aterramento de tanques para evitar incndios por raios, ou

    implantao de tetos de tanques mveis para evitar acmulo de gases, etc.; e pela reduo das

    consequncias dos possiveis eventos, que vo desde a diminuio dos estoques de produtos perigosos e a

    construo de diques para evitar o alastramento de acidentes para tanques vizinhos, at os planos de

    evacuao da populao.

    4. POLTICA LOCAL DE MEIO AMBIENTE E PARTICIPAO DA COMUNIDADE NA GESTO DE

    RISCOS

    Durante o governo municipal 89-92, um sistema local de administrao ambiental foi organizado e

    estabelecido atravs de lei ambiental municipal. No que se refere ao gerenciamento de riscos, os principais

    instrumentos do sistema municipal so a exigncia de autorizao ambiental para funcionamento do

    terminal, renovvel a cada dois anos; a possibilidade de exigncia de auditoria ambiental a cada dois anos,

    intercalada com a autorizao ambiental, o que permite na prtica que se exera uma fiscalizao anual; e

    o papel do Conselho Municipal de Urbanismo e Meio Ambiente (COMDURB), paritrio em sua composio

    (dos votantes, metade de membros representando o governo municipal, metade representando a sociedade

    civil e com entidades como a Petrobrs, a CETESB ou a SABESP comparecendo como convidadas). O

    COMDURB funciona como um espao permanente para acompanhamento das polticas de interesse

    urbano e ambiental e, de fato, um frum de negociaes. As autorizaes ambientais da Petrobrs, de

    competncia da Secretaria Municipal de Meio Ambiente, so debatidas publicamente no Conselho, que

    contm desde os ambientalistas locais at representao dos sindicatos de trabalhadores (Cunha, 1996).

    As anlises da CETESB so o ponto de partida para os posicionamentos do municpio, que pode a seu

    critrio apoiar-se ainda em consultores independentes que faam anlises tcnicas complementares, sendo

    estes custos pagos pela empresa interessada, a Petrobrs.

    Desde a primeira autorizao municipal dada Petrobrs em 1992, a Prefeitura se manifestara propondo o

    incio da implantao do Plano APELL em So Sebastio. APELL, alerta e preparao da comunidade para

    emergncias em nivel local, uma metodologia desenvolvida pela agncia de indstria e meio ambiente da

    ONU como alternativa aos fracassos colecionados pelos planos de defesa civil tradicionais, por ocasio de

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    grandes acidentes qumicos como o de Bhopal ou o de Seveso. O que se constatou nessas tragdias foi

    que no basta preparar as instituies para agir em emergncias. A populao, surpreendida por

    catstrofes de alcance insuspeitado, foi tomada por pnico coletivo, o que tornou-se um fator de risco em si

    mesmo no interior da dinmica do desastre, impedindo ademais que se desenvolvessem aes ordenadas

    por parte das equipes previamente adestradas. A concluso foi que a informao sobre o risco e sobre o

    que fazer em situaes de acidentes de grandes propores no apenas um direito democrtico mas um

    fator essencial para que planos de ao sejam operacionais (UNEP, 1990). No Brasil, poucas experincias

    de implantao do APELL foram desenvolvidas, podendo-se encontrar avaliaes de seus alcances no

    trabalho de Souza Jr. e Souza (2000).

    Em So Sebastio, os histricos de eventos geradores de pnico indicavam a necessidade de trabalhar

    nessa direo. Dois fatos se destacam dentre o conjunto de eventos relatados na comunidade. Numa

    ocasio, um navio incendiou-se atracado ao pier, gerando um espetculo assustador. Houve fuga em

    massa pela avenida/estrada que se dirige a Caraguatatuba. De outra feita, depois de um extravasamento de

    leo para crrego que corta a cidade na rea central, um incndio se seguiu. Novamente, pnico

    generalizado, fuga em massa absolutamente catica, em todas as direes. No havia, e no h, motivos

    para supor que seja diferente se ocorrer um acidente de grandes propores e perigos reais para a

    comunidade do entorno das instalaes, a no ser que haja investimento adequado e continuado na

    preparao dos moradores e das equipes das instituies que venham a atender uma emergncia

    realmente ameaadora.

    Embora se mostrasse disposta a promover a implantao do plano APELL desde 92, e inclusive fosse

    cobrada quanto a um plano de emergncia externo ao terminal pela CETESB, a Petrobrs dependia para

    tanto de iniciativas dos poderes pblicos, em especial a Prefeitura. A Defesa Civil um sistema estruturado

    com bases municipais, e cabe sua coordenao, de responsabilidade da administrao local, a

    organizao de planos como este e a mobilizao dos diferentes setores da comunidade cuja participao

    indispensvel, como os Bombeiros, o policiamento civil e militar, servios de sade e transporte, escolas,

    etc. Via de regra, na hiptese de falta de apoio continuado do governo municipal, esforos de comunicao

    de risco e preparao para emergncias tendem a fracassar (Souza Jr. e Souza, 2000). Esto em jogo

    fatores como credibilidade das informaes sobre os riscos e as medidas de segurana, neutralidade de

    quem organiza as atividades, hierarquia e poder de coordenao entre diferentes nveis de instituies

    governamentais e privadas, aporte de recursos humanos, materiais e financeiros, e responsabilidades

    diante de possiveis situaes catastrficas.

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    5. DIA DO ALERTA : A COMUNICAO COMO VIA PARA COMBATER O MEDO; E O MEDO DE

    COMUNICAR-SE COM O PBLICO

    A elaborao de uma cartilha consumiu esforos considerveis das equipes envolvidas, at chegar-se a um

    roteiro direto, conciso, e ao mesmo tempo completo no sentido de orientar aos moradores sobre os riscos e

    as melhores atitudes numa emergncia. Partia-se de exemplos como o de Bahia Blanca, na Argentina (

    PNUMA, 1996) e de literatura sobre comunicao de riscos (Santos, 1990) para definir uma proposta de

    texto que contivesse comunicao adequada, ao mesmo tempo clara sobre possiveis perigos e organizada

    quanto ao plano de ao a ser seguido.

    A cartilha forma um conjunto com os treinamentos e simulados, para construir entre os moradores a

    confiana num plano de ao. Esta confiana bsica, pois comum deparar-se em situaes de

    emergncia com obstculos inesperados: as pessoas no querem se afastar de seus pertences por medo

    de roubos, ou simplesmente no sabem do que se trata ou no acreditam em nada do que foi divulgado.

    As dificuldades de comunicao esto no apenas na busca da melhor forma de faz-lo, dando conta de

    diferenas culturais, da melhor linguagem, etc. Ao mesmo tempo, estava-se rompendo uma atitude de

    bloqueio das instituies e pessoas envolvidas com aquela tarefa. Durante anos e anos, tcnicos e

    dirigentes tinham vivido o medo de falar claramente para o conjunto da populao a respeito dos riscos e

    perigos das instalaes da vizinhana. No h exemplos e modelos a seguir na realidade brasileira,

    treinamentos fceis trazidos por quem pratica a comunicao de riscos no dia a dia. Nossa democracia

    recente, e o direito informao sobre os riscos tecnolgicos raramente reconhecido (Sev, 2000).

    Fazer a cartilha, por outro lado, parecia pouco. Era preciso promover a cartilha, alertar sobre sua

    importncia, motivar as pessoas para l-la e entend-la, fixar seus contedos bsicos. Pensada com esta

    finalidade, a gincana do Alerta tem dado resultados animadores, abrindo espao para jogos de perguntas e

    respostas na Rdio local, sendo tema de peas de teatro a cargo das equipes inscritas. Os bairros so

    coloridos pelos moradores ajudando a memorizar os setores de risco, e tem havido considervel

    mobilizao das 10 escolas da rea afetada: de um total de cerca de 3000 alunos, aproximadamente 2500

    participaram dos simulados promovidos durante a primeira gincana. A presena de patrocnios de pequenos

    comrcios locais nas atividades das equipes um indicador de que pode estar surgindo uma nova forma de

    entretenimento na cidade, auto sustentvel, que ao mesmo tempo se constitui numa maneira alegre de

    falar de coisas muito srias. A comunicao de riscos comea em So Sebastio positivamente,

    associada a uma festa com bom potencial de mobilizao em torno do lazer. A prpria pesquisa domiciliar

    sobre hbitos e lideranas passou a encontrar atitudes mais receptivas a partir do comeo da divulgao

    sobre a gincana do alerta.

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    6. INFORMAO E NEGOCIAO DE CONFLITOS AMBIENTAIS: AS RESPONSABILIDADES

    COMPARTILHADAS

    Como bem analisa Sev em seus trabalhos sobre riscos de acidentes industriais (Sev, 1989, 2000), a

    convivncia da populao com riscos tecnolgicos associados a instalaes e processos industriais deve

    ser encarada tambm pelo prisma dos direitos democrticos. Via de regra, as situaes de risco so

    impostas e ignoradas pelos que sofrem ou podem sofrer as consequncias de eventos catastrficos. Esse

    diagnstico se aproxima com a viso de Ulrich Beck, que destaca essa convivncia com o risco como

    elemento central da nova modernidade (Beck, 1998), chegando-se ao ponto em que muitas vezes as

    prprias responsabilidades pela gerao e pelo controle do risco se diluem.

    O Plano APELL em So Sebastio completou um ciclo de implantao de um sistema democrtico de

    controle dos riscos tecnolgicos associados s atividades do terminal petrolfero. Com a divulgao das

    informaes sobre os tipos de acidentes possiveis na rea de tancagem, hoje os moradores da cidade

    dispem da base para construirem um controle participativo destes mesmos riscos. No se trata apenas de

    saber dos perigos e preparar-se para por-se em segurana da melhor forma, se possivel em calma. Os

    moradores dispem dos mecanismos para reduzir o risco.

    A informao sobre o risco, o elemento que faltava, agora est disponivel. Ao reconhecer-se o direito bsico

    do cidado informao sobre os riscos a que est submetido, se criam as condies para que ele participe

    da gesto das situaes acidentais. Atuando sobre o comportamento do seu grupo humano, ele transforma

    tambm o nivel de risco, j que o pnico , como foi visto, um fator de insegurana nestas situaes. Mas

    fora das situaes de emergncia, abre-se o espao para outras iniciativas de reduo dos riscos, j que

    existem os mecanismos para exerccio de um feedback crtico da comunidade, que converge para a

    discusso do nivel de risco que a populao est disposta a aceitar.

    Este espao de participao ao mesmo tempo um espao de negociao. Ao

    controlar os niveis de risco da Petrobrs, a comunidade exerce o poder de influir sobre a equao

    econmica de uma atividade que gera bom nmero de empregos e metade da arrecadao municipal. A

    qualidade do ambiente e a segurana dos moradores no so os nicos parmetros em questo, o que

    garantido pela diversidade de representaes no Conselho Municipal.

    Por outro lado, a abertura destes canais de participao modifica o panorama de agressividade das atitudes

    em relao empresa. Torna-se possivel s lideranas comunitrias, e atravs dessas aos grupos que

    representam, familiarizar-se com as operaes complexas de transporte, descarga e armazenamento de

    petrleo e derivados. Mais que isso: progressivamente, as decises de gerenciamento ambiental so

    compartilhadas. Ao mesmo tempo que isso garante a manuteno de um ritmo constante das aes de

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    poltica ambiental com base na cobrana da comunidade sobre as burocracias ambientais de outro lado

    se nota aquilo que Susskind e Field (1996) descrevem sobre atitudes do pblico diante do perigo: pessoas

    e grupos reagem com mais agressividade quando submetidas a riscos sobre os quais no puderam

    decidir. Ainda que no se disponha de comparaes organizadas sobre reaes a acidentes em diferentes

    regies brasileiras, ntido que na localidade mais castigada por esta forma de poluio existe um

    comportamento de dilogo firmemente estabelecido.

    Este clima cooperativo reconhecido como um diferencial importante pela rea de meio ambiente da

    empresa, que cogita hoje implantar o APELL na Baixada Santista, regio bastante conflagrada em termos

    de risco ambiental. Podemos ter a uma nova experincia cujo acompanhamento guardaria grande

    interesse.

    .....................................................................................................................

    Referncias Bibliogrficas

    Andrade, J. C. Conflito, cooperao e convenes: a dimenso poltico-institucional das estratgias

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    Abstract

    This article discusses environmental policy as a field of conflicts negotiation. The Petrobras risk

    management strategy is presented, with informations about the case of the biggest petroleum terminal in

    Latin America, which had its environmental control developed with community participation.