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SEGUNDA-FEIRA, 5 DE NOVEMBRO DE 2012 Ideia do Comunismo Na pornografia, a utopia de uma sociedade sem classes se apresenta por meio do exagero caricatural dos traços que distinguem tais classes e da sua transfiguração na relação sexual. Em nenhum outro contexto, nem mesmo nas máscaras carnavalescas, é possível encontrar tamanha insistência nos sinais de classe no vestuário no próprio momento em que a situação o transgride e anula da maneira mais incongruente. As toucas e os aventais das empregadas domésticas, o macacão do operário, as luvas brancas e os galões do mordomo e, recentemente, até mesmo as batas e as máscaras das enfermeiras, celebram sua apoteose no instante em que, posando como estranhos amuletos sobre corpos nus inextricavelmente confundidos em seu enlace, parecem anunciar, como um toque estridente de trombeta, o último dia em que deverão aparecer como sinais de uma comunidade ainda não anunciada. Algo parecido encontra-se somente no mundo antigo, nas representações das relações amorosas entre deuses e homens, que constituem uma fonte inesgotável de inspiração para a arte clássica até a sua fase final. Na união sexual com o deus, o mortal, vencido e feliz, apagava de uma vez a infinita distância que o separava dos imortais; mas, ao mesmo tempo, essa distância se reproduzia invertida na metamorfose animal da divindade. O

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SEGUNDA-FEIRA, 5 DE NOVEMBRO DE 2012Ideia do Comunismo

Na pornografia, a utopia de uma sociedade sem classes se apresenta por meio do exagero caricatural dos traos que distinguem tais classes e da sua transfigurao na relao sexual. Em nenhum outro contexto, nem mesmo nas mscaras carnavalescas, possvel encontrar tamanha insistncia nos sinais de classe no vesturio no prprio momento em que a situao o transgride e anula da maneira mais incongruente. As toucas e os aventais das empregadas domsticas, o macaco do operrio, as luvas brancas e os gales do mordomo e, recentemente, at mesmo as batas e as mscaras das enfermeiras, celebram sua apoteose no instante em que, posando como estranhos amuletos sobre corpos nus inextricavelmente confundidos em seu enlace, parecem anunciar, como um toque estridente de trombeta, o ltimo dia em que devero aparecer como sinais de uma comunidade ainda no anunciada.Algo parecido encontra-se somente no mundo antigo, nas representaes das relaes amorosas entre deuses e homens, que constituem uma fonte inesgotvel de inspirao para a arte clssica at a sua fase final. Na unio sexual com o deus, o mortal, vencido e feliz, apagava de uma vez a infinita distncia que o separava dos imortais; mas, ao mesmo tempo, essa distncia se reproduzia invertida na metamorfose animal da divindade. O cndido focinho do touro que rapta Europa, o bico arguto do cisne inclinado sobre o rosto de Leda, so a cifra de uma promiscuidade to ntima e heroica que para ns se torna, pelo menos por pouco tempo, insuportvel.Se procurarmos o contedo de verdade da pornografia, imediatamente ela nos coloca diante dos olhos a sua ingnua e simplista pretenso de felicidade. O carter essencial desta ltima ser exigvel a todo momento e em toda ocasio: qualquer que seja a situao inicial, dever infalivelmente terminar numa relao sexual. Um filme pornogrfico em que, por um contratempo, isso no acontecesse, seria, talvez, uma obra prima, mas no seria um filme pornogrfico. Ostreap-tease, nesse sentido, o modelo de toda intriga pornogrfica: no incio h sempre e apenas pessoas vestidas, numa determinada situao, e o nico espao deixado ao imprevisto diz respeito ao modo em que, no fim, elas devero encontrar-se juntas e despidas. (A pornografia recupera aqui o gesto severo da grande literatura clssica: no deve haver espao para a surpresa e o talento consiste em imperceptveis variaes sobre um mesmo tema mtico.) E eis, ao mesmo tempo, desvelado o segundo carter essencial da pornografia: a felicidade que ela exibe sempre anedtica, sempre histria e ocasio apreendidas, jamais condies naturais, jamais algo de j dado: o naturismo, que simplesmente retira as roupas, , desde sempre, o mais aguerrido adversrio da pornografia; e, do mesmo modo como um filme pornogrfico sem evento sexual no teria sentido, tampouco poderia ser definida pornogrfica a exibio pura e simples da sexualidade natural do homem.Mostrar o potencial de felicidade presente em qualquer insignificante situao quotidiana e onde quer que haja uma socialidade humana: essa a eterna razo poltica da pornografia. Mas o seu contedo de verdade, que a coloca nos antpodas dos corpos nus que inundam a arte monumental de fim de sculo, que ela no eleva o quotidiano ao cu eterno do prazer, mas, ao contrrio, exibe o irremedivel carter episdico de todo prazer, a ntima digresso de todo universal. Por isso, somente na representao do prazer feminino, que pode ser vista unicamente em um rosto, ela esgota a sua inteno.

O que diriam as personagens do filme pornogrfico que estamos observando se pudessem, por sua vez, ser espectadoras da nossa vida? Os nossos sonhos no podem nos ver - essa a tragdia da utopia. A troca entre personagem e leitor - boa regra de toda leitura - deveria funcionar tambm aqui. Mas o importante, entretanto, no tanto que ns aprendamos a viver os nossos sonhos, mas que estes aprendam a ler a nossa vida.

"Mostrar-se-, ento, que h muitssimo tempo o mundo possui o sonho de uma coisa, da qual ele deve somente possuir a conscincia para possu-la verdadeiramente". Certamente - mas como se possuem os sonhos, onde esto custodiados? Aqui no se trata, naturalmente, de realizar algo - nada mais enfadonho do que um homem que tenha realizado os prprios sonhos: o zelo tolo e insosso da social-democracia. Mas nem mesmo se trata de guardar em cmaras de alabastro, intangveis e coroados de rosas e jasmins, ideais que, tornando-se coisas, quebrar-se-iam: o secreto cinismo do sonhador.Bazlen dizia: o que sonhamos algo que j tivemos. H muito tempo que nem mais nos lembramos disso. No em um passado, portanto - disso no possumos os registros. Ao contrrio, os sonhos e os desejos no cumpridos da humanidade so os membros pacientes da ressurreio, sempre a ponto de despertar no ltimo dia. E no dormem fechados em preciosos mausolus, mas esto pregados como astros vivos no remotssimo cu da linguagem, cujas constelaes mal conseguimos decifrar. E isso - ao mesmo - no o sonhamos. Saber apreender as estrelas que caem como lgrimas do firmamento jamais sonhado da humanidade a tarefa do comunismo.

Giorgio Agamben.Idea del comunismo. In.: Idea della Prosa.Macerata: Quodlibet, 2002. pp. 55-57. (Traduo: Vincius Nicastro Honesko)

Imagem: Hieronymus Bosch.O ltimo Julgamento(detalhe do paineldireito). 1504-08.Akademie der Bildenden Knste, ViennaPOSTADO PORKHRAS4:41 PMhttp://flanagens.blogspot.com.br/search?updated-max=2012-12-03T10:09:00-02:00&max-results=7&start=26&by-date=false