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Lingüística I

IESDE Brasil S.A. de modo a tecer o coeso e coerente quadro teórico concebido por Saussure. Em “A operacionalidade da teoria saussuriana do valor”, quinto capítulo deste livro,

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Page 1: IESDE Brasil S.A. de modo a tecer o coeso e coerente quadro teórico concebido por Saussure. Em “A operacionalidade da teoria saussuriana do valor”, quinto capítulo deste livro,

Fundação Biblioteca NacionalISBN 978-85-7638-803-6

IESDE Brasil S.A.Al. Dr. Carlos de Carvalho, 1482. CEP: 80730-200

Batel - Curitiba - PR. 0800 708 88 88 www.iesde.com.br

Lingüística I

Lingü

ística

I

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AutoraFernanda Mussalim

1.ª edição

Lingüística I

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© 2008 – IESDE Brasil S.A. É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autorização por escrito dos autores e do detentor dos direitos autorais.

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www.iesde.com.br

Mussalim, Fernanda.

Lingüística I./Fernanda Mussalim. — Curitiba: IESDE Brasil S.A., 2008.

152 p.

ISBN: 978-85-7638-803-6

1. Lingüística. 2. Gramática Comparada e Histórica. 3. Estru-turalismo. 4. Gerativismo. 5. Funcionalismo. 6. Interacionismo. 7. Teoria do Discurso. I. Título.

CDD 410

M989

1.ª reimpressão

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Sumário

Linguagem humana e “linguagem” animal | 9Linguagem humana X comunicação animal | 9

Os estudos da linguagem e a constituição do campo da Lingüística | 17A reflexão em torno da linguagem | 17Estudos da linguagem X Lingüística: em pauta os critérios de cientificidade | 19Ferdinand Saussure e a constituição do domínio e do objeto da Lingüística | 21

Os estudos lingüísticos do século XIX: a gramática comparada e histórica | 27Primeiras considerações | 27Um pouco do debate: formulações e reformulações em torno da problemática da mudança lingüística | 29

Ferdinand Saussure e a fundação da Lingüística sincrônica | 39O campo da Lingüística: domínio e objeto bem definidos | 39O recorte sincrônico como condição para a delimitação do sistema lingüístico e para a formulação da teoria do valor | 43

A operacionalidade da teoria saussuriana do valor | 49A abordagem de Mattoso Câmara sobre a flexão do gênero em nomes no português | 50

Níveis de análise lingüística | 61As operações de segmentação e substituição | 61Níveis de análise lingüística | 63

Biologia e linguagem: Gerativismo | 69O pressuposto do inatismo | 69

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O Funcionalismo em Lingüística: sistema lingüístico e uso das expressões lingüísticas | 81Funcionalismo e Estruturalismo | 81O Funcionalismo em Lingüística | 82Uma análise | 86

Linguagem e pensamento no Interacionismo Piagetiano | 93O desenvolvimento mental do ser humano | 94

Vygotsky e o componente social do Interacionismo: implicações para o Interacionismo na Lingüística | 103

Interacionismos | 103Vygotsky e as raízes genéticas do pensamento e da linguagem | 104O Interacionismo Social | 106

O Interacionismo no Círculo de Bakhtin | 115Os dois grandes projetos do Círculo | 115A natureza social e semiótica da interação | 118A concepção de linguagem do Círculo | 119

Análise do Discurso | 125O terreno fecundo do Marxismo e da Lingüística | 125A problemática da Lingüística e da análise de texto | 127A Psicanálise: uma teoria do sujeito pertinente ao projeto da AD | 128A especialidade da AD | 129

Gabarito | 137

Referências | 145

Anotações | 149

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Apresentação

O propósito deste livro é dar subsídios para o estudo e aprofun-damento de questões cruciais sobre a linguagem e a Lingüística. O foco de nossa proposta recai sobre a problemática da fundação da Lingüística como ciência, bem como sobre os grandes movimentos epistemológicos que constituíram a complexa e intrigante rede teórica desse campo do conhecimento. O livro compõe-se de 12 capítulos, que apresentaremos, sucintamente, a seguir.

No primeiro capítulo, intitulado “Linguagem humana e ´linguagem´ animal”, abordamos um clássico estudo realizado por Émile Benveniste, em que o lingüista compara a “linguagem” das abelhas à linguagem humana. Nosso intuito é apresentar como a Lingüística define critérios para caracteri-zar a linguagem humana e estabelecer suas propriedades definidoras.

No capítulo dois, “Os estudos da linguagem e a constituição do campo da Lingüística”, a partir de algumas reflexões levadas a cabo pelo lingüista brasileiro Joaquim Mattoso Câmara Jr., apresentamos alguns cri-térios que distinguem os estudos sobre a linguagem da Lingüística propria-mente dita. Essa distinção sustenta-se sobre o movimento de alguns teó-ricos – lingüistas do século XIX e, de modo especial, Ferdinand Saussure no século XX – que trabalharam para constituir, com base em critérios de cientificidade da época, a Lingüística como um campo científico de estu-dos da linguagem.

O capítulo três, intitulado “Os estudos lingüísticos do século XIX: a gramática comparada e histórica”, tem por objetivo apresentar os estu-dos comparatistas e históricos do século XIX a partir do debate suscitado pelas formulações e reformulações que ocorreram em torno da problemá-tica da mudança lingüística e da história das línguas.

No quarto capítulo, “Ferdinand Saussure e a fundação da Lingüística sincrônica”, pontuamos as diretrizes colocadas e os deslocamentos realiza-dos pelo Curso de Lingüística Geral (1916), obra póstuma de Saussure, que colocaram a Lingüística em um outro eixo de reflexões. Para tanto, apresen-taremos as clássicas concepções saussureanas – as dicotomias sincronia/dia-cronia e língua/fala, bem como a noção de signo lingüístico –, relacionando-

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as de modo a tecer o coeso e coerente quadro teórico concebido por Saussure.

Em “A operacionalidade da teoria saussuriana do valor”, quinto capítulo deste livro, pretendemos mostrar a operacionalidade dessa teo-ria a partir da descrição do sistema lingüístico do português. Para tanto, consideramos um dos estudos clássicos de Joaquim Mattoso Câmara Jr., a saber, o estudo do mecanismo da flexão nominal em português – mais especificamente, seu estudo sobre a flexão do gênero em nomes.

No sexto capítulo, intitulado “Níveis de análise lingüística”, apre-sentamos, seguindo Émile Benveniste, quatro diferentes níveis de análise lingüística: o nível fonêmico, o morfêmico, o do lexema e o da frase. Apre-sentamos, também, duas operações a partir das quais se pode, de acor-do com Benveniste, estabelecer o procedimento de abordagem desses níveis de análise: a operação de segmentação e a operação de substitui-ção. O objetivo central é possibilitar a percepção de que o funcionamen-to da língua, em toda sua complexidade, opera em vários níveis que, mesmo distintos, afetam-se mutuamente.

No capítulo sete, “Biologia e linguagem: o Gerativismo”, apresen-tamos os pressupostos fundamentais da Gramática gerativa ou Gerati-vismo, uma das correntes mais produtivas do século XX na Lingüística e liderada pelo americano Noam Chomsky. Abordam-se, para tanto, aspec-tos que possam esclarecer sobre: a) a realidade biológica da linguagem; b) os critérios de distinção entre o que pode ser considerado criação cultural e o que é predisposição biológica; c) as hipóteses fundamentais de Chomsky a respeito da faculdade de linguagem.

No oitavo capítulo, “O Funcionalismo em Lingüística: sistema lin-güístico e uso das expressões lingüísticas”, buscamos dar visibilidade ao postulado central do paradigma funcionalista, a saber, de que o siste-ma lingüístico é estruturado (e reestruturado) pelo uso que os falantes fazem das expressões lingüísticas em condições reais de produção da linguagem. Nosso intuito é mostrar que, da perspectiva do Funciona-lismo, são as condições e as exigências comunicacionais que moldam o sistema lingüístico, que existe para cumprir funções essencialmente comunicativas. As línguas, portanto, são concebidas como instrumentos de interação social e devem, por isso, ser descritas e explicadas a partir do esquema efetivo da interação verbal.

No capítulo nove, intitulado “Linguagem e pensamento no Inte-racionismo Piagetiano”, iniciamos a abordagem da perspectiva teórica do Interacionismo. Neste capítulo, em específico, apresentamos uma das teorias sobre o desenvolvimento da inteligência humana mais conhecidas

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no cenário educacional brasileiro: o Cognitivismo construtivista do biólogo suíço Jean Piaget. Nosso interesse é pelo conceito de interação pressupos-to nas elaborações do biólogo – motivo pelo qual, não raras vezes, a teo-ria é referida como o Interacionismo Piagetiano –, bem como pelo modo como o autor concebe o processo de aquisição de linguagem.

O capítulo dez, “Vygotsky e o componente social do Interacionis-mo: implicações para o Interacionismo na Lingüística”, possibilita uma me-lhor compreensão da perspectiva interacionista de abordagem do fenô-meno da linguagem. Nele, apresentamos alguns estudos em aquisição da linguagem influenciados pelo pressuposto vygostskiano de que o com-ponente social é pré-requisito para que esse processo de aquisição ocor-ra. Esses estudos dão visibilidade ao fato de que há diferentes noções de interação e, conseqüentemente, vários interacionismos.

No capítulo onze, “O Interacionismo no Círculo de Bakhtin”, apresen-tamos a noção de interação presente nos trabalhos do Círculo de Bakhtin, a partir das reflexões levadas a cabo em Marxismo e Filosofia da Linguagem, visto que as formulações feitas nesse livro a respeito da problemática da interação são bastante representativas do pensamento do Círculo. Além disso, apresentamos, a partir das considerações de Bakhtin e Voloshinov, a concepção de linguagem que embasa os trabalhos desses estudiosos que, apesar de manterem relações distintas com a Lingüística, sustentam – e todos os estudiosos do Círculo – seus projetos a partir do postulado da primazia da interação sobre a abordagem formal da linguagem.

No capítulo doze, intitulado “Análise do Discurso”, tratamos da gênese dessa disciplina na França da década de 1960, abordando suas relações com a Lingüística, o Marxismo e a Psicanálise. O intuito é apresentar de que maneira a Lingüística constitui um dos pilares epistemológicos da Análise do Discurso e em que sentido a Análise do Discurso afeta a Lingüística.

Todo esse percurso, além de dar visibilidade às grandes teorias e teóricos da história da Lingüística, também possibilita que se percebam a seriedade, a relevância e a contribuição dos trabalhos de vários lingüistas brasileiros, dos quais citamos aqueles a quem mais diretamente fizemos referência aos trabalhos: Ana Paula Scher, Carlos Alberto Faraco, Cláudia T. Guimarães de Lemos, Erotilde Goreti Pezatti, Ester Mirian Scarpa, José Borges Neto, Luiz Carlos Travaglia, Maria Helena Moura Neves, Marina R. A. Augusto, Miriam Lemle, Roberto Gomes Camacho, Rodolfo Ilari, Rosane de Andrade Berlinck e Sírio Possenti. Além, obviamente, do clássico e mais proeminente lingüista brasileiro – Joaquim Mattoso Câmara Jr.

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Não tivemos a pretensão de esgotar a problemática dos temas tratados, nem tampouco de abordar tudo o que há de mais relevante em Lingüística. Ao contrário, esperamos que este livro cumpra o papel de estimular, instigar e abrir portas para o estudo da linguagem e da Lingüística, uma área que tem ocupado cada vez mais um lugar central na formação de alunos dos cursos de Letras.

Gostaríamos de agradecer, em especial, a duas pessoas: Tere-sa Cristina Ribeiro, pela tão gentil interlocução e cuidadosa revisão; e Heloisa Mara Mendes, professora de Lingüística, pelo constante e frutí-fero diálogo.

Aos alunos, desejamos um feliz e produtivo percurso de formação.

Fernanda Mussalim

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Análise do Discurso

O terreno fecundo do Marxismo e da LingüísticaNeste capítulo, trataremos da gênese de uma disciplina – a Análise do Discurso (AD) –, que teve

sua origem na França na década de 1960. Denise Maldidier (1994) descreve o nascimento da disciplina por meio das figuras de Jean Dubois e Michel Pêcheux. Dubois é um lexicólogo envolvido com os em-preendimentos da Lingüística; Pêcheux, um filósofo envolvido com debates teóricos em torno do Mar-xismo, da Psicanálise, da Epistemologia. Apesar dessas diferenças, ambos partilhavam, na contramão das idéias dominantes da época, de convicções marxistas e políticas sobre a luta de classes, a história e o movimento social. É, pois, sob o horizonte teórico do Marxismo que os projetos desses dois estudiosos encontraram um espaço em comum.

Nessa mesma conjuntura teórica, a Lingüística – promovida a partir do Estruturalismo ao status de ciência piloto – acaba por se impor às ciências sociais como uma área que confere cientificidade aos estudos, visto que, para serem realizados, eles deveriam passar por suas leis, ao invés de se prenderem diretamente a instâncias socioeconômicas. É neste contexto que nasce a AD. O próprio Dubois, por exemplo, aplicou de maneira pioneira os métodos da análise estrutural a um dos episódios – a Comuna de Paris1 – mais fortes da história de luta de classes na França.

O projeto do filósofo Louis Althusser, de releitura do livro O Capital, de Karl Marx (em uma tenta-tiva de romper com a predominante leitura dogmática que se fazia da obra), também se inscreve nesse horizonte, presidido pelo Marxismo e pela Lingüística2. Como explica Dominique Maingueneau (1990), a Lingüística caucionava tacitamente a linha de horizonte do Estruturalismo na qual se inscreve o pro-cedimento althusseriano. Vejamos mais detalhadamente como isso se opera.

Em Ideologia e Aparelhos Ideológicos do Estado (1974), Althusser distingue uma “teoria das ideolo-gias particulares”, que exprimem posições de classe, de uma “teoria da ideologia em geral”, que permiti-

1 Governo revolucionário instalado em Paris, após a insurreição de 18 de março de 1871, cujo objetivo era assegurar, em um quadro municipal e sem recorrer ao Estado, a gestão dos negócios públicos.2 Althusser não se inscreve no campo da Análise do Discurso, mas será uma referência basilar no projeto de Michel Pêcheux, que emerge da confluência do projeto político marxista com o Estruturalismo.

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ria evidenciar o mecanismo responsável pela reprodução das relações de produção, comuns a todas as ideologias particulares. É nesse último aspecto que reside o interesse do autor. Ao propor-se a investigar o que determina as condições de reprodução social, Althusser parte do pressuposto de que as ideolo-gias têm existência material, ou seja, devem ser estudadas não como idéias, mas como um conjunto de práticas materiais que reproduzem as relações de produção – trata-se do Materialismo Histórico. Um exemplo: no modelo econômico do capitalismo3, as relações de produção implicam divisão de trabalho entre aqueles que são donos do capital e aqueles que “vendem” a mão-de-obra. Esse modo de produção é a base da formação social capitalista. Na metáfora marxista do edifício social, a base econômica é cha-mada de infra-estrutura, e as instâncias político-jurídicas e ideológicas são denominadas superestrutura. A infra-estrutura determina a superestrutura, ou seja, a base econômica determina o funcionamento das instâncias político-jurídicas e ideológicas de uma sociedade. A ideologia – parte da superestrutura do edifício –, portanto, só pode ser concebida como uma reprodução do modo de produção, uma vez que é por ele determinada. Ao mesmo tempo, por uma “ação de retorno” da superestrutura sobre a infra-es-trutura, a ideologia acaba por perpetuar a base econômica que a sustenta. Nesse sentido é que se pode reconhecer a base estruturalista da teoria de Althusser, na medida em que a infra-estrutura determina a superestrutura e é ao mesmo tempo perpetuada por ela, como um sistema cuja circularidade faz com que seu funcionamento recaia sobre si mesmo.

Como modo de apreensão do funcionamento da ideologia, o conceito de aparelhos ideológicos de Althusser é bastante esclarecedor. Retomando a teoria marxista de Estado, o autor afirma que o que tradicionalmente se chama de Estado é o aparelho repressivo de Estado (ARE), que funciona “pela violência” e cuja ação é complementada por instituições – a escola, a religião, por exemplo –, que funcionam “pela ideologia” e são denominadas aparelhos ideológicos de Estado (AIE). Pela maneira como se estruturam e agem esses aparelhos ideológicos – por meio de suas práticas e de seus discursos – é que se pode depreender como funciona a ideologia.

A Lingüística, então, aparece como um horizonte para o projeto althusseriano da seguinte ma-neira: como a ideologia deve ser estudada em sua materialidade, a linguagem se apresenta como o lugar privilegiado em que a ideologia se materializa. A linguagem se coloca, para Althusser, como uma via por meio da qual se pode depreender o funcionamento da ideologia.

Podemos agora melhor compreender a afirmação de Maingueneau, de que a Lingüística caucio-nava tacitamente a linha do horizonte do Estruturalismo na qual se inscreve o procedimento althusse-riano, e também entender em que sentido o Marxismo e a Lingüística presidem o nascimento da AD. O projeto althusseriano, inserido em uma tradição marxista que buscava apreender o funcionamento da ideologia a partir de sua materialidade, isto é, por meio das práticas e dos discursos dos AIE, via com bons olhos uma Lingüística fundamentada sobre bases estruturalistas. Mas uma Lingüística saussuria-na, uma Lingüística da língua, não seria suficiente; só uma teoria do discurso, concebido como o lugar teórico para o qual convergem componentes lingüísticos e sócio-histórico-ideológicos, poderia acolher esse projeto. Foi nessa perspectiva que Michel Pêcheux desenvolveu, como veremos, um questiona-mento crítico sobre a Lingüística.

3 Estamos nos referindo aqui à concepção clássica de capitalismo, tal como ele foi considerado nas teorias marxistas.

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A problemática da Lingüística e da análise de textoEm seu texto “Análise Automática do Discurso (AAD-69)”, Pêcheux afirma que, antes da chamada

Lingüística moderna (cuja origem pode ser marcada com o Curso de Lingüística Geral, de Ferdinand Saussure), estudar uma língua era, na maioria das vezes, estudar textos e colocar a seu respeito questões de natureza distinta provenientes, ao mesmo tempo, da atividade do gramático e da prática escolar. Perguntava-se: de que fala esse texto?; quais são as idéias principais contidas nele?; ele está de acordo com as normas da língua na qual foi escrito?; quais as normas próprias a este texto? Todas essas ques-tões eram colocadas simultaneamente porque remetiam umas às outras – as questões concernentes aos usos semânticos e sintáticos colocados em evidência pelo texto ajudavam a responder às questões referentes ao sentido do texto. Isto porque a ciência clássica da linguagem (antes de Saussure) preten-dia ser ao mesmo tempo ciência da expressão e ciência dos meios dessa expressão: o estudo gramatical e semântico era um meio de se chegar à compreensão do texto.

O deslocamento conceptual realizado por Saussure consistiu em separar a “prática” da “teoria da linguagem”. A língua, ao ser pensada como um sistema, deixa de ser compreendida como tendo a função de exprimir sentido, visto que ela se torna “um objeto do qual uma ciência pode descrever o funcionamento” (PÊCHEUX, 1990, p. 62). A implicação desse deslocamento, de acordo com Pêcheux, é que o texto não pode, de modo algum, ser um objeto pertinente para a ciência lingüística, pois ele não funciona, o que funciona é a língua (um conjunto de sistemas que autorizam combinações e substitui-ções, cujos mecanismos colocados em causa são de dimensão inferior ao texto). Nesse sentido, o deslo-camento a partir do qual a Lingüística constituiu sua cientificidade deixou a descoberto o terreno que ela estava abandonando (o do estudo da compreensão do texto), e as questões que ela teve de deixar de responder (o que quer dizer esse texto?; em que sentido esse texto difere daquele? etc.) continuaram a se colocar, motivadas por interesses ao mesmo tempo práticos e teóricos.

Como nos relata Pêcheux, várias respostas foram fornecidas a essas questões, a partir de métodos não-lingüísticos e para-lingüísticos.

O autor classifica como métodos não-lingüísticos aqueles que buscam responder à questão da compreensão textual sob uma forma pré-saussuriana. São métodos que, mesmo baseando-se em concei-tos de origem lingüística, mobilizam conceitos defasados em relação à chamada Lingüística moderna.

Os métodos para-lingüísticos, por sua vez, referem-se abertamente à Lingüística moderna para, paradoxalmente, responder à questão (sobre o sentido contido em um texto) que essa mesma Lin-güística teve que colocar de lado para se constituir enquanto ciência. As disciplinas que se valeram dos métodos para-lingüísticos, como a crítica literária, por exemplo, reconheceram o fato teórico fun-damental que marcou o nascimento da ciência da lingüística – a passagem da função ao funciona-mento – e decifraram esse fato como uma abertura, uma possibilidade de efetuar uma segunda vez esse mesmo deslocamento, mas desta vez no nível do texto: uma vez que existem sistemas sintáticos, faz-se a hipótese de que existem, por exemplo, sistemas literários. Ou seja, faz-se a hipótese de que os textos, como a língua, funcionam. Supõe-se, portanto, uma homogeneidade entre os fatos da lín-gua e os fenômenos da dimensão do texto, o que autorizaria o emprego dos mesmos instrumentos conceptuais para a análise de ambos, hipótese veementemente problematizada por Pêcheux (1990, p. 73):

[...] não é certo que o objeto teórico que permite pensar a linguagem seja uno e homogêneo, mas talvez a concep-tualização dos fenômenos que pertencem ao “alto da escala” necessite de um deslocamento da perspectiva teórica, uma “mudança de terreno” que faça intervir conceitos exteriores à região da lingüística moderna.

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No caso de Pêcheux – e da Análise do Discurso, portanto – os conceitos exteriores à Lingüística advieram do Materialismo Histórico althusseriano, já abordado anteriormente, e também da Psicanálise lacaniana, visto que o discurso, tal como concebido pela AD, é o lugar onde intervêm questões relativas à ideologia e, como veremos, ao sujeito.

A Psicanálise: uma teoria do sujeito pertinente ao projeto da AD

A partir da descoberta do inconsciente por Freud, o conceito de sujeito sofre uma alteração substancial, pois seu estatuto de entidade homogênea (regida pela consciência) passa a ser questio-nado diante da concepção freudiana de sujeito clivado, dividido entre o consciente e o inconsciente. Lacan faz uma releitura de Freud recorrendo ao Estruturalismo lingüístico, numa tentativa de abordar com mais precisão o inconsciente, muitas vezes tomado como uma entidade misteriosa, abissal.

Lacan assume que o inconsciente se estrutura como uma linguagem, como uma cadeia de sig-nificantes latente que se repete e interfere no discurso efetivo, como se houvesse sempre, sob as pa-lavras, outras palavras, como se o discurso fosse sempre atravessado pelo discurso do Outro, isto é, do inconsciente. A tarefa do analista seria a de fazer vir à tona, por meio de um trabalho na palavra e pela palavra, essa cadeia de significantes, “essas outras palavras”, esse “discurso do Outro”. O inconsciente é o lugar desconhecido, estranho, de onde emana o discurso do pai, da família, da lei, enfim, do Outro, e em relação ao qual o sujeito se define e ganha identidade. Nesse sentido, o sujeito é da ordem da linguagem. Apoiado em alguns critérios do Estruturalismo lingüístico, Lacan aborda esse inconsciente, demonstrando que existe uma estrutura discursiva que é regida por leis.

Decorrem dessa proposta lacaniana implicações para a Psicanálise. A que mais diretamente interessa à AD diz respeito ao conceito de sujeito, definido em função do modo como ele se estrutura a partir da relação que mantém com o inconsciente, com a linguagem, portanto, já que, para Lacan, a linguagem é condição do inconsciente. Vejamos, pois, em linhas gerais, qual a relevância do projeto lacaniano para a AD.

O sujeito lacaniano, clivado, dividido, mas estruturado a partir da linguagem, fornecia para a AD uma teoria de sujeito condizente com um de seus interesses centrais, a saber, o de conceber os textos como produtos de um trabalho ideológico não consciente. Calcada no Materialismo Histórico, a Análise do Discurso concebe o discurso como uma manifestação, uma materialização da ideologia, decorrente do modo de organização dos modos de produção social. Sendo assim, o sujeito do discurso não poderia ser considerado como aquele que decide sobre os sentidos e as possibilidades enunciativas do próprio discurso, mas como aquele que ocupa uma posição em uma formação social e a partir dela enuncia. Em outras palavras, o sujeito não é livre para dizer o que quer, mas é levado, sem que tenha consciência disso (e aqui reconhecemos a propriedade do conceito lacaniano de sujeito para a AD), a ocupar seu lugar em determinada formação social e enunciar o que lhe é possível a partir do lugar que ocupa. Como explica Althusser (1974), a ideologia é um sistema de representações que, na maior parte do tempo, nada tem a ver com a “consciência”. Tais representações, afirma o autor, podem ser imagens ou conceitos, mas é sobretudo como estruturas que elas se impõem aos homens, sem passar por suas consciências.

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Foi nessa perspectiva, pois, que o Materialismo Histórico althusseriano e a Psicanálise lacaniana, ambos caucionados no horizonte do Estruturalismo lingüístico, constituíram um terreno fecundo para Michel Pêcheux pensar a constituição da Análise do Discurso, não como um progresso natural permi-tido pela Lingüística – como se o estudo do discurso se desse com base em uma passagem natural, da lexicografia (estudo das palavras) para o discurso, o nível mais alto da “escala” dos objetos de estudo da Lingüística –, mas a partir de uma ruptura epistemológica, que coloca o estudo do discurso em um outro terreno em que, como já dito, intervêm questões relativas à ideologia e ao sujeito. Nesse sentido, o objeto “discurso” de que se ocupa Pêcheux não é uma simples superação da Lingüística saussuriana, mas implica, nas palavras do próprio autor, uma ““mudança de terreno” que faça intervir conceitos exte-riores à região da Lingüística moderna” (PÊCHEUX, 1990, p. 73).

Mas, se há uma ruptura da AD com o campo da Lingüística, como a língua é pensada pela Análise do Discurso? É o que veremos a seguir.

A especialidade da ADPossenti (2004) afirma que os textos de AD apresentam uma concepção de língua indireta, na

medida em que se busca conceituá-la mais se negando do que se propondo características. Nessa pers-pectiva, uma das definições clássicas de língua para a AD é: “A língua não é transparente”. O fundamen-tal dessa tese é que

a AD não aceita que, dada uma palavra, seu sentido seja “óbvio”, como se estabelecido por convenção ou como se a palavra pudesse se referir diretamente à “coisa” [...].

[...]

A AD propõe que a língua tenha um funcionamento parcialmente autônomo, ou seja, que uma língua funcione segundo regras “próprias” de fonologia, morfologia e sintaxe [...], mas que são postas a funcionar de uma forma ou de outra se-gundo o processo discursivo de que se trata numa certa conjuntura. (POSSENTI, 2004, p. 360)

Em outras palavras, a AD reconhece a especificidade da língua (que tem regras próprias de fun-cionamento), mas limita seu domínio: o sentido, conforme afirma Pêcheux (1988), não é da ordem da língua, não se submetendo, pois, aos seus critérios. A Lingüística saussuriana, analisa o autor, permitiu a constituição da fonologia, da morfologia e da sintaxe, mas não foi suficiente para permitir a constitui-ção da semântica, lugar de contradições da Lingüística. Para ele, o sentido, objeto da semântica, escapa às abordagens de uma Lingüística da língua, já que a significação não é sistematicamente apreendida, devido ao fato de sofrer alterações de acordo com as posições ocupadas pelos sujeitos que enunciam. Nesse sentido é que Pêcheux, considerando que as condições de produção de um discurso são constitu-tivas de suas significações, propõe uma semântica do discurso no lugar de uma semântica lingüística.

A especialidade da AD, portanto, é o campo do sentido, de modo que as questões em torno do funcionamento da língua somente serão relevantes (e são!) na medida em que afetarem esse campo. Assim sendo, a AD não é anti-lingüística. Ao contrário, conforme esclarece Possenti (2004, p. 361), “não há AD sem lingüística”.

A seguir, faremos uma breve análise do texto de uma tira de Angeli a fim de esclarecer melhor não apenas a especialidade (ou especificidade) da AD, mas também para que seja possível compreender, de maneira mais efetiva, sua estreita relação com a Lingüística.

Análise do Discurso

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Uma análiseComo aponta Maingueneau (1997), o campo da Lingüística, de maneira muito esquemática, opõe

um núcleo rígido a uma periferia de contornos instáveis, que está em contato com a Sociologia, a Psico-logia, a História, a Filosofia etc. O núcleo rígido se ocupa do estudo da língua como se ela fosse apenas um conjunto de regras e propriedades formais, ou seja, não considera a língua enquanto produzida em determinadas conjunturas históricas e sociais. A outra região, de contornos instáveis, ao contrário, “se re-fere à linguagem apenas à medida que esta faz sentido para sujeitos inscritos em estratégias de interlo-cução, em posições sociais ou em conjunturas históricas” (MAINGUENEAU, 1997, p. 11). A Análise do Dis-curso pertence a essa última região, ou seja, considera esse último modo de compreender a linguagem, o que não significa que, para ela, a linguagem não apresente também um caráter “formal”, como apon-tava o próprio Pêcheux (1988), ao afirmar que existe uma base lingüística regida por leis internas (con-junto de regras fonológicas, morfológicas, sintáticas) sobre a qual se constituem os efeitos de sentido, como poderemos observar a partir da análise4 da tira de Angeli, que descreveremos a seguir:

Wood e Stock conversam na janela:

W: Vinte anos atrás eu vivia na base de sexo, drogas e rock’n’roll!

S: Eu também!!

W: Passava noite e dia viajando de ácido, escutando Jefferson Airplane...

S: Eu também!!

W: ...E fazendo sexo com a Bete Speed, minha noiva!

S: Eu também!!

Há duas maneiras de interpretar o último enunciado de Stock “Eu também!!”: que há 20 anos atrás ele vivia fazendo sexo com a própria noiva, ou então, que há vinte anos atrás ele vivia fazendo sexo com a noiva de Wood, seu amigo. Em termos essencialmente lingüísticos, diríamos que o que permite essa ambigüidade é a presença do pronome possessivo de primeira pessoa “minha”. Pelo fato de ser um dêitico – termo que permite identificar pessoas, coisas, momentos e lugares a partir da situação de fala –, possibilita que o seu referente seja tanto Stock quanto Wood, ou seja, permite ao leitor que ele interprete o pronome “minha” como referindo-se à noiva de Stock, o responsável pelo enunciado, ou à noiva de Wood. Isto porque poderíamos perguntar: sobre que parte do enunciado o advérbio “também” da expressão “Eu também” incide? Sobre “Bete Speed” (eu também fazendo sexo com a Bete Speed) ou sobre “minha noiva” (eu também fazendo sexo com minha noiva)? Em outras palavras, qual o escopo de “também”?

Essa primeira análise, referente ao funcionamento da língua, explica o porquê da ambigüidade na tira, mas não explica porque achamos graça quando Stock enuncia pela última vez “Eu também!!”. Por que lemos essa tira como um discurso de humor? Devido às suas condições de produção. Produzido para circular em uma sociedade em que fazer sexo com a noiva de outro seria um comportamento bastante fora dos padrões morais apresentados como adequados a seus membros, a possibilidade de Stock ter feito sexo com a noiva de seu amigo gera riso, pois coloca Wood em uma situação bastante constrangedora. No entanto, esse mesmo discurso produzido no interior da comunidade dos esquimós, por exemplo, não geraria riso, pois, segundo os costumes dessa comunidade, quando um esquimó

4 Esta análise foi apresentada em um texto meu intitulado “Análise do Discurso”, publicado em: MUSSALIM, F., BENTES, A. C. (Orgs.). Introdução à Lingüística: domínios e fronteiras. São Paulo: Cortez, 2001, v.2.

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recebe um visitante em sua casa, ele oferece sua mulher como sinal de hospitalidade. Nesse contexto, portanto, o discurso apresentado nessa tira não seria de humor, seria apenas uma conversa corriqueira entre dois amigos que relembram fatos do passado.

A ambigüidade se mantém tanto em um como em outro contexto, mas os efeitos que ela gera são diferentes, e são justamente esses efeitos de sentido que interessam à Análise do Discurso. No caso da tira em questão, uma pergunta possível para os analistas do discurso seria: por que essa ambigüidade gera riso? Para a Análise do Discurso, perguntar somente o que gera ambigüidade seria muito pouco, essa pergunta já seria feita, por exemplo, pela semântica e pela pragmática (as noções de escopo e de dêixis utilizadas para a análise da tira pertencem, respectivamente, a essas duas áreas da Lingüística). O que garante a especificidade da Análise do Discurso é a formulação de uma pergunta subseqüente a essa: qual o efeito dessa ambigüidade? A resposta a essa pergunta reside justamente na relação que os analistas do discurso procuram estabelecer entre um discurso e suas condições de produção, ou seja, entre um discurso e as condições sociais e históricas que permitiram que ele fosse produzido e gerasse determinados efeitos de sentido e não outros.

Texto complementar

“On a gagné” [“Ganhamos”](PÊCHEUX, 1990, p. 19-28)

Paris, 10 de maio de 1981, 20 horas (hora e local): a imagem, simplificada e recomposta eletroni-camente, do futuro presidente da República Francesa aparece nos televisores... Estupor (de maravi-lhamento ou de terror): é a de François Mitterand!

Simultaneamente, os apresentadores de TV fazem estimativas calculadas por várias equipes de informática eleitoral: todas dão F. Mitterand como “vencedor”. No “especial-eleições” dessa noite, as tabelas de porcentagem põem-se a desfilar. As primeiras reações dos responsáveis políticos dos dois campos já são anunciadas, assim como os comentários ainda quentes dos especialistas de po-liticologia; uns e outros vão começar a “fazer trabalhar” o acontecimento (o fato novo, as cifras, as primeiras declarações) em seu contexto de atualidade e no espaço de memória que ele convoca e que já começa a reorganizar: o socialismo francês de Guesde e Jaurès, o Congresso de Tours, o Front Popular, a Liberação...

Esse acontecimento que aparece como o “global” da grande máquina televisiva, esse resultado de uma supercopa de futebol político ou de um jogo de repercussão mundial (F. Mitterand ganha o campeonato de Presidenciáveis da França) é o acontecimento jornalístico e da mass-media que re-mete a um conteúdo sociopolítico ao mesmo tempo perfeitamente transparente (o veredito das ci-fras, a evidência das tabelas) e profundamente opaco. O confronto discursivo sobre a denominação desse acontecimento improvável tinha começado bem antes do dia 10 de maio, por um imenso trabalho de formulações (retomadas, deslocadas, invertidas, de um lado a outro do campo político)

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tendendo a prefigurar discursivamente o acontecimento, a dar-lhe forma e figura, na esperança de apressar sua vinda... ou de impedi-la; todo esse processo vai continuar, marcado pela novidade do dia 10 de maio. Mas esta novidade não tira a opacidade do acontecimento, inscrita no jogo oblíquo de suas denominações: os enunciados

“F. Mitterand é eleito presidente da República Francesa”

“A esquerda francesa leva a vitória eleitoral dos presidenciáveis”

“A colonização socialista-comunista se apodera da França”

não estão evidentemente em relação interparafrástica; esses enunciados remetem (Bedeutung) ao mesmo fato, mas eles não constroem as mesmas significações (Sinn). O confronto discursivo pros-segue através do acontecimento...

E depois, no meio dessa circulação-confronto de formulações, que não vão parar de atravessar a tela da TV durante toda a noite, surge um flash que é ao mesmo tempo uma constatação e um apelo: todos os parisienses para quem esse acontecimento é uma vitória se reúnem em massa na Praça da Bastilha, para gritar sua alegria (os outros não serão vistos nessa noite). E acontecerá o mesmo na maior parte das outras cidades. Ora, entre esses gritos de vitória, há um que vai “pegar” com uma intensidade particular: é o enunciado “On a gagné” [“Ganhamos”] repetido sem fim como um eco inesgotável, apegado ao acontecimento.

A materialidade discursiva desse enunciado coletivo é absolutamente particular: ele não tem nem o conteúdo, nem a forma, nem a estrutura enunciativa de uma palavra de ordem de uma manifestação ou de um comício político. “On a gagné” [“Ganhamos”], cantado com um ritmo e uma melodia determinados (on-a-gagné/dó-dó-sol-dó) constitui a retomada direta, no espaço do acon-tecimento político, do grito coletivo dos torcedores de uma partida esportiva cuja equipe acaba de ganhar. Esse grito marca o momento em que a participação passiva do espectador-torcedor se converte em atividade coletiva gestual e vocal, materializando a festa da vitória da equipe, tanto mais intensamente quanto ela era mais improvável.

O fato de que o esporte tenha aparecido assim pela primeira vez em maio de 1981, com esta limpidez, como a metáfora popular adequada ao campo político francês, convida a aprofundar a crítica das relações entre o funcionamento da mídia e aquele da “classe política”, sobretudo depois dos anos 70.

Em todo caso, o que podemos dizer é que este jogo metafórico em torno do enunciado “On a gagné” [“Ganhamos”] veio sobredeterminar o acontecimento, sublinhando sua equivocidade: no domínio esportivo, a evidência dos resultados é sustentada pela sua apresentação em um quadro lógico (a equipe X, classificada na enésima divisão, derrotou a equipe Y; a equipe X está, pois, quali-ficada para se confrontar com a equipe Z, etc.). O “resultado” de um jogo é, evidentemente, objeto de comentários e de reflexões estratégicas posteriores (da parte dos capitães de equipe, de comen-tadores esportivos, de porta-vozes de interesses comerciais etc.), pois sempre há outros jogos no horizonte..., mas enquanto tal, seu resultado deriva de um universo logicamente estabilizado (cons-truído por um conjunto relativamente simples de argumentos, de predicados e de relações) que se pode descrever exaustivamente através de uma série de respostas unívocas a questões factuais (sendo principalmente, evidentemente: “de fato, quem ganhou, X ou Y?”). [...]

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Mas simultaneamente, o enunciado “On a gagné” [“Ganhamos”] é profundamente opaco: sua materialidade léxico-sintática (um pronome “indefinido” em posição de sujeito, a marca temporal-aspectual de realizado, o lexema verbal “gagner” [“ganhar”], a ausência de complementos) imerge esse enunciado em uma rede de relações associativas implícitas – paráfrases, implicações, comen-tários, alusões, etc. – isto é, em uma série heterogênea de enunciados, funcionando sob diferentes registros discursivos, e com uma estabilidade lógica variável.

Assim, a interpretação político-esportiva que acaba de ser evocada não funciona como pro-posição estabilizada (designando um acontecimento localizado como um ponto em um espaço de disjunções lógicas) senão com a condição de não se interrogar a referência do sujeito do verbo “gagner” [“ganhar”], nem a de seus complementos elididos. [...]

Sobre o sujeito do enunciado: quem ganhou?A sintaxe da língua francesa permite através do on indefinido, deixar em suspenso enunciativo a de-

signação da identidade de quem ganhou: trata-se do “nós” dos militares dos partidos da esquerda? Ou do “povo da França”? ou daqueles que sempre apoiaram a perspectiva do Programa Comum? ou daqueles que, não mais se reconhecendo na categorização parlamentar direita/esquerda, se sentem, no entanto, li-berados subitamente pela partida de Giscard d’Estaing e de tudo o que ele representa? Ou daqueles que, “nunca tendo feito política”, estão surpresos e entusiasmados com a idéia de que enfim “vai mudar”?

O apagamento do agente induz um complexo efeito de retorno, misturando diversas posições militares com a posição de participação passiva do espectador eleitoral, torcedor hesitante e cético até o último minuto... em que o inimaginável acontece: o gol decisivo é marcado e o torcedor voa em apoio à vitória. O enunciado “On a gagné” [“Ganhamos”] funde “aqueles que ainda acreditavam nisso” com “aqueles que já não acreditavam”.

Sobre o complemento do enunciado: ganhou o quê, como, por quê? [...]

[...] “On a gagné” [“Ganhamos”]... A alegria da vitória se enuncia sem complemento, mas os com-plementos não estão longe: ganhamos o jogo, a partida, a primeira rodada (antes das legislativas); mas também (...) ganhamos por sorte, como se ganha o grande prêmio quando nem se acredita; e, claro, ganhamos terreno sobre o adversário, já com a promessa de ocupar posições nesse terreno e, antes de tudo, ocupar com toda legitimidade o lugar do qual se governa a França, o lugar do poder governamental e do poder do Estado; “A esquerda toma o poder na França” é uma paráfrase plausível do enunciado-fórmula “On a gagné” [“Ganhamos”], no prolongamento do acontecimento.

[...]

A partir do exemplo de um acontecimento, o do dia 10 de maio de 1981, a questão teórica que coloco é, pois, a do estatuto das discursividades que trabalham um acontecimento, entrecru-zamento, proposições de aparência logicamente estável, suscetíveis de resposta unívoca (é sim ou não, é X ou Y, etc.) e formulações irremediavelmente equívocas.

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Estudos lingüísticos1. Na perspectiva de Denise Maldidier, a gênese da Análise do Discurso pode ser descrita por

meio de dois nomes: Jean Dubois e Michel Pêcheux. Dubois, um lexicólogo envolvido com os empreendimentos da Lingüística, e Pêcheux, um filósofo envolvido com debates teóricos em torno do Marxismo, da Psicanálise e da Epistemologia. Entretanto, apesar dessas diferenças, ambos partilhavam de convicções em comum. Que convicções eram essas?

2. Ao pensar a língua como um sistema, Saussure promoveu um deslocamento conceitual: a língua deixou de ser compreendida como tendo a função de exprimir sentido e tornou-se um objeto cujo funcionamento é passível de ser descrito por uma ciência. Para Pêcheux, qual é a implicação desse deslocamento?

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3. Uma das definições clássicas de língua em Análise do Discurso é “A língua não é transparente”. Explicite as principais idéias envolvidas nessa concepção.

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