IESP-UERJ Clayton M. Cunha Filho Tese

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  • Universidade do Estado do Rio de Janeiro

    Instituto de Estudos Sociais e Polticos

    Clayton Mendona Cunha Filho

    A construo do horizonte plurinacional: liberalismo, indianismo e nacional-

    popular na formao do Estado boliviano

    Rio de Janeiro

    2015

  • Clayton Mendona Cunha Filho

    A construo do horizonte plurinacional: liberalismo, indianismo e nacional-popular na

    formao do Estado boliviano

    Tese apresentada como requisito parcial para

    obteno do ttulo de Doutor, ao programa de

    Ps-Graduao em Cincia Poltica do

    Instituto de Estudos Sociais e Polticos da

    Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

    Orientador: Prof. Dr. Cesar Coelho Guimares

    Rio de Janeiro

    2015

  • Clayton Mendona Cunha Filho

    A construo do horizonte plurinacional: liberalismo, indianismo e nacional-popular na

    formao do Estado boliviano

    Tese apresentada como requisito parcial para

    obteno do ttulo de Doutor, ao programa de

    Ps-Graduao em Cincia Poltica do

    Instituto de Estudos Sociais e Polticos da

    Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

    Aprovada em 06 de maro de 2015.

    Banca Examinadora:

    Prof. Dr. Cesar Coelho Guimares (Orientador)

    Instituto de Estudos Sociais e Polticos - UERJ

    Profa. Dra. Maria Regina Soares de Lima

    Instituto de Estudos Sociais e Polticos - UERJ

    Prof. Dr. Breno Bringel

    Instituto de Estudos Sociais e Polticos - UERJ

    Profa. Dra. Ingrid Sarti

    Universidade Federal do Rio de Janeiro

    Prof. Dr. Salvador Schavelzon

    Universidade Federal de So Paulo

  • AGRADECIMENTOS

    A tentativa de elencar a todos que de alguma maneira contriburam para o sucesso de

    qualquer empreendimento carrega sempre consigo o risco de ver-se trado pela memria e

    acabar cometendo a injustia de esquecer-se de mencionar a algum que merecia ter sido

    mencionado. Ciente de tais riscos, peo desde j desculpas queles a quem deveria agradecer

    e porventura venha a olvidar.

    Agradeo primeiramente a Cesar Guimares, meu orientador, pela confiana e

    incentivo sempre presentes e a Ximena Soruco, coorientadora durante meu estgio de

    doutorado-sanduche na Universidad Mayor de San Andrs (UMSA) em La Paz. Agradeo

    tambm ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico (CNPq) pela

    bolsa que me permitiu dedicao plena ao doutorado, Fundao de Amparo Pesquisa do

    Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ) pela bolsa que me permitiu a realizao do mencionado

    estgio de doutorado-sanduche entre maro e agosto de 2013 e ao Conselho Latino-

    Americano de Cincias Sociais (CLACSO) pela bolsa-prmio concedida em 2010 nos marcos

    Estado y formas de participacin y

    representacin en Amrica Latina y el Caribe contemporneos

    fui selecionado em 2009 quando ainda conclua o mestrado e que me facilitou sobremaneira

    consolidar os achados da dissertao de mestrado e avanar nas hipteses de pesquisa iniciais

    da tese de doutorado.

    Agradeo tambm a toda minha famlia, em especial a meus pais, Clayton e Sulamita,

    e meus irmos, Marlos e Thiago, por todo o apoio e carinho sem os quais todo esse esforo

    teria sido impossvel. Agradeo em especial tambm a meu primo de sangue e irmo de

    corao, Leonel Gois, com quem tive o prazer de dividir um apartamento durante parte

    significativa de minha estadia no Rio de Janeiro para o doutorado.

    professora Maria Regina Soares de Lima e todos os colegas e ex-colegas do

    Observatrio Poltico Sul-Americano (OPSA) por esses vrios anos de convivncia,

    aprendizagem e colaborao acadmica, cabendo meno especial aos meus grandes amigos

    Fidel Prez Flores e Andr Luiz Coelho, com quem tenho e tive o prazer de compartilhar

    interesses acadmicos comuns e a coautoria de diversos trabalhos que espero continuaro

    ocorrendo; Josu Medeiros, que gentilmente se ofereceu para ler e comentar os captulos desta

    tese em um momento crucial; e Guilherme Simes Reis e Flvio Pinheiro, que alm de

  • grandes amigos e companheiros de aulas e bares gentilmente me hospedaram quando preciso

    foi no Rio e em So Paulo respectivamente.

    A Cesar Zucco e Daniela Campello, pelo grande exemplo acadmico e humano que

    representaram na minha trajetria desde o mestrado at esse final de doutorado e pela

    importante inspirao que aportaram no brilhante curso de poltica latino-americana

    ministrado em 2009.1 ainda durante o mestrado. A todos os demais professores do IESP-

    UERJ com quem tive o prazer e a honra de cursar disciplinas durante esse perodo, Fabiano

    Santos, Joo Feres Jr., Thamy Pogrebinshi, Breno Bringel, Renato Boschi e Marcus

    Figueiredo (in memoriam).

    Ao meu orientador de graduao na UFC, Jawdat Abu-El-Haj, pela confiana em mim

    sempre depositada e aos professores Bernadete Beserra (UFC), minha tutora de bolsa de

    iniciao cientfica, Lucio Oliver (UNAM) e Mnica Martins (UECE), cujo papel em

    consolidar em mim o interesse acadmico pela poltica latino-americana foi tambm bastante

    importante em meus primeiros passos de vida universitria. A Gabriel Vitullo (UFRN),

    Aragon Dasso Jr (UFRGS) e Gonzalo Rojas (UFCG), pela parceria intelectual e produtiva

    colaborao acadmica passada, presente e vindoura no GT de Democracia na Amrica Latina

    do CiSO e outros foros.

    Aos meus amigos David Rgo, Flvio Carvalhaes, Ismael Pimentel, Alexis Corts,

    Victor Mouro, Marcelo Martins, Daniela Vairo, Florencia Anta, Lorena Granja, Pedro Jr.,

    Tiago Moreno, Rogrio Raposo, Guilherme Montenegro, Hector Ferreira, Manoel Neto,

    os, Helena Martins e Tiago Rgis, a quem

    sempre serei grato pelos diversos momentos de conversas, apoio, cervejas e cachaas

    compartilhadas em diversos momentos desta trajetria e sem as quais esse trabalho tampouco

    teria sido possvel. E a Dbora Thom, pelos mesmos motivos acima citados e ainda a crucial

    ajuda logstica para a impresso e distribuio desta tese banca em face de minha ausncia

    no Rio de Janeiro. Agradecimentos que estendo a toda a famlia Thom, que por muito tempo

    foi e de certa forma sempre ser tambm a minha.

    Aos meus amigos bolivianos Gilber Mamani, Bayardo Martnez Villarroel, Andrea

    China Terceros, Tania Paz, Carlos, Ariel de la Rocha, e Angela Guerra e toda sua

    famlia.

    Ao professor da Universidad Mayor de San Simn (UMSS), Fernando Mayorga, por

    toda a disposio em ajudar-me com contatos e ideias durante minha estadia boliviana apesar

    de sua agenda bastante concorrida. Ao ento coordenador do departamento de Sociologia da

    UMSA, Eduardo Paz Rada, pela acolhida durante o estgio de doutorado-sanduche. E aos

  • professores Farit Rojas Tudela, da Universidad Catlica Boliviana (UCB), Fernando Garcs

    (UMSS) e Fernando Garca Yapur (PNUD-Bolvia) por me concederem parte de seus

    concorridos tempos para a realizao de conversas cujos insights e informaes aportadas

    foram tambm cruciais para esta tese, alm de Xavier Alb, a quem por minha culpa no fui

    capaz de buscar para uma conversa durante minha estadia em La Paz, mas que muito

    gentilmente respondeu com extrema celeridade a consultas e questionamentos por correio

    eletrnico quando j havia regressado ao Brasil e percebido meu imperdovel erro. Agradeo

    ainda a Andrey Schelchkov, Pablo Stefanoni e Marta Irurozqui alguns de cujos trabalhos

    inspiraram e iluminaram ideias desta tese e que muito gentilmente tambm me responderam a

    questionamentos por correio eletrnico sobre fontes bibliogrficas, inclusive facilitando-me o

    acesso a verses digitais de alguns textos importantssimos aqui utilizados.

    Agradeo ainda a meus colegas bolivianistas Sue Iamamoto, Ana Carolina Delgado,

    Renata Albuquerque de Moraes, Rodrigo Santaella Gonalves, Aiko Ikemura e Danilla

    Aguiar por todas as conversas e trocas de ideias, aqui e alhures, sobre essa paixo acadmica

    compartilhada pela Bolvia.

    Ao Nelson Syozy, por sua inestimvel ajuda tcnica na edio de algumas das imagens

    e figuras aqui reproduzidas.

    E a todos aqueles outros que por inmeras razes diretas ou indiretas contriburam

    para o xito desta tese, mas cujos nomes no foram citados, meus agradecimentos e sinceras

    desculpas pela impossibilidade de lembrar de todos.

  • In thinking about the state, we should not set aside the features of the society it addresses and

    is constituted by, but consider the ways in which societal features influence political

    institutions and mores

    Ton Salman

    El componente de la memoria colectiva en el registro ideolgico es sin duda ms grande de lo

    que por lo comn se supone

    Ren Zavaleta

    As historians recognize, nation-building projects are not plucked from the heavens of pure

    ideas or political imaginaries but are rooted in the earth of social history.

    Brooke Larson

    Se sostiene hoy una presuncin no solo injusta sino falsificadora del pasado, al suponer que la

    Constitucin de 2009 es una construccin ideolgica nacida exclusivamente de la insurgencia

    de los movimientos populares del perodo 2000-2005. En realidad fue un doble camino de

    toma de conciencia; el que sigui el Estado a partir de la Revolucin [del 52] y la

    comprensin de la complejidad cultural en 1994 y la insurgencia de sectores intelectuales del

    mundo andino y de los llanos que entendieron que no se poda continuar con poderes

    subrogados y delegados

    Carlos Mesa

  • RESUMO

    CUNHA FILHO, Clayton M. A construo do horizonte plurinacional: liberalismo,

    indianismo e nacional-popular na formao do Estado boliviano. 2014. 316f. Tese

    (Doutorado em Cincia Poltica) Institudo de Estudos Sociais e Polticos, Universidade do

    Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015.

    A presente tese busca compreender e explicar a formao do Estado Plurinacional da

    Bolvia a partir do legado de smbolos, procedimentos e modelos de aquisio de legitimidade

    deixados ao longo de sua histria e que podem ser agrupados em trs grandes matrizes

    polticas: o liberalismo-constitucional, o indianismo-comunitrio e o nacional-popular. Assim,

    o objetivo analisar como o legado destas trs matrizes polticas, atravs principalmente da

    evoluo histrica de seus horizontes polticos e da memria de suas agendas e promessas

    inconclusas acerca do Estado e da nao na Bolvia, influenciam o atual experimento

    inaugurado em 2009 com a promulgao de sua atual Constituio Poltica do Estado (CPE).

    A hiptese subjacente a de que o experimento plurinacional, em sua tentativa de resolver a

    forte crise de legitimidade estatal trazida pela conjuntura crtica dos anos 2000-2005, se nutre

    fortemente das agendas destas trs matrizes seja intencional e deliberadamente como no

    caso do Indianismo e do Nacional-popular ou de maneira reticente como no caso do

    Liberalismo - de forma a tentar reconciliar o Estado com sua altamente heterognea formao

    social. A fim de verific-la, foi realizado um estudo de natureza eminentemente bibliogrfica

    complementado por pesquisa de campo de seis meses a fim de traar a evoluo poltica das

    trs matrizes em seus momentos constitutivos, horizontes e agendas e contrast-las com as

    caractersticas institucionais assumidas pelo novo Estado Plurinacional, bem como a prtica

    poltica dos principais atores bolivianos contemporneos. Dessa maneira, foi possvel

    perceber o quanto de fato persistem no experimento refundacionista atual e na prtica poltica

    corrente do pas uma mescla heterognea e com distintas nfases das agendas e prticas das

    trs matrizes, representadas sobretudo no apego democracia como valor e procedimento; no

    reconhecimento tnico-cultural trazido ao interior do Estado com a incorporao potencial

    pelo mesmo de formatos institucionais comunitrios e a preservao de espaos autnomos de

    deliberao; e na busca por participao poltica mais direta por parte do povo e na nfase

    relativa soberania popular sobre os recursos naturais do pas e um maior intervencionismo

    estatal na economia.

    Palavras-chave: Estado Plurinacional. Matrizes polticas. Horizontes Polticos. Memria.

    Liberalismo. Indianismo. Nacional-popular.

  • RESUMEN

    La presente tesis busca comprender y explicar la formacin del Estado Plurinacional

    de Bolivia a partir del legado de smbolos, procedimientos y modelos de adquisicin de

    legitimidad dejados a lo largo de su historia y que pueden ser agrupados en tres grandes

    matrices polticas: el liberalismo-constitucional, el indianismo-comunitario y lo nacional-

    popular. As, el objetivo es analizar cmo el legado de estas tres matrices, a travs

    principalmente de la evolucin histrica de sus horizontes polticos y de la memoria de sus

    agendas y promesas inconclusas acerca del Estado y de la nacin boliviana influencian al

    presente experimento inaugurado en 2009 con la promulgacin de su actual Constitucin

    Poltica del Estado (CPE). La hiptesis subyacente es la de que el experimento plurinacional,

    en su tentativa de solucionar la fuerte crisis de legitimidad estatal desatada por por la

    coyuntura crtica de los aos 2000-2005, se alimenta fuertemente de las agendas de estas tres

    matrices - ya sea intencional y deliberadamente como en el caso del indianismo y del

    nacional-popular o de manera vacilante como en el del liberalismo - de manera a intentar

    conciliar al Estado con su abigarrada formacin social. A fin de verificarlo, fue realizado un

    estudio de naturaleza eminentemente bibliogrfica complementado por investigacin de

    campo de seis meses con el objetivo de trazar la evolucin poltica de las tres matrices en sus

    momentos constitutivos, horizontes y agendas y contrastarlas con las caractersticas

    institucionales asumidas por el nuevo Estado Plurinacional, bien como la prctica poltica de

    los principales actores bolivianos contemporneos. De esa manera, fue posible observar

    la persistencia en el experimento refundacional actual bien como en la prctica poltica

    corriente del pas una mezcla heterognea y con distintos nfasis de las agendas y prcticas de

    las tres tradiciones, representadas sobre todo en el apego a la democracia como valor y

    procedimiento; en el reconocimiento tnico-cultural trado al interior del Estado

    con la incorporacin potencial por el mismo de formatos institucionales comunitarios y la

    preservacin de espacios autnomos de deliberacin; y en la bsqueda por participacin

    poltica ms directa por parte del pueblo y en el nfasis sobre la soberana popular sobre los

    recursos naturales del pas y una incrementada intervencin estatal en la economa.

    Palabras-clave: Estado Plurinacional. Matrices polticas. Horizontes polticos. Memoria.

    Liberalismo. Indianismo. Nacional-popular.

  • ABSTRACT

    The present thesis seeks to understand and explain the formation of the Plurinational

    State of Bolivia from the legacy of symbols, procedures and models of legitimacy left

    throughout its history and that can be grouped in three great political matrices: Constitutional-

    Liberalism, Communitarian-Indianism and National-popular. Thus, the aim is to analyze how

    the legacy of these three matrices influence - mainly through the historical evolution of their

    political horizons and the memory of the uncompleted agendas and promises towards the

    State and the nation in Bolivia - the current experiment inaugurated in 2009 with the

    enactment of the current Constitution. The underlying hypothesis is that the plurinational

    experiment, in its attempt to solve the strong State legitimacy crisis brought about by the

    critical juncture of the years 2000-2005, feeds itself from these matrices' agendas - be it

    intentionally and deliberately as in the case of Indianism and National-popular or reluctantly

    as in the case of Liberalism - in order to reconcile the State with its motley social formation.

    In order to assess it, a bibliographical study was conducted and complemented with a six-

    months fieldwork in Bolivia in order to trace the political evolution of the three traditions in

    their constitutive moments, agendas and horizons and contrast them with the institutional

    characteristics assumed by the new Plurinational State and the political practice of

    contemporary Bolivian actors. Thus, it was possible to notice indeed how persistent they are

    in the country's ongoing re-foundational experiment and current political practice through an

    heterogeneous and with different intensities mix of the agendas and practices of the three

    matrices, represented especially through the attachment to democracy both as a value and a

    procedure; an ethno-cultural recognition brought inside the State itself with the potential

    incorporation of communitarian institutional forms and the preservation of autonomous

    deliberative spaces; and the search for a more direct political participation by the people and

    the emphasis on popular sovereignty over the country's natural resources and an increased

    economic intervention by the State.

    Keywords: Plurinational State. Political Matrices. Political Horizons. Memory. Liberalism.

    Indianism. National-popular

  • LISTA DE ILUSTRAES

    Figura 1: Bolvia em 1825 ........................................................................................................ 27

    Figura 2: Ocorrncia de Insurreies Polticas, 1825-1909 ..................................................... 51

    Figura 3: Primeiras Maiorias por Departamento, 1980 e 2005 .............................................. 228

    Figura 4: Vias de Acesso s AIOC ......................................................................................... 263

    Quadro 1: Desafios Ps-Liberais Democracia Liberal ........................................................ 276

    Figura 5: Situao das Cartas Orgnicas Municipais, junho de 2013 .................................... 278

    Quadro 2: Situao dos Estatutos Autonmicos de Municpios em Converso AIOC,

    Junho/2013 ............................................................................................................................. 280

    Figura 6: Municpios onde mais de 75% da populao com mais de 15 anos se autoidentifica

    com algum povo IOC ............................................................................................................. 281

  • LISTA DE TABELAS

    Tabela 1: Autoidentificao com povos indgenas Censo 2001 .......................................... 104

    Tabela 2: Resultados Eleitorais Ps-redemocratizao, Repblica da Bolvia ...................... 227

    Tabela 3: Comparativo das Eleies 1980 / 2005, agregado nacional e por departamento ... 227

    Tabela 4: Plebiscito para Converso em Municpio AIOC, 2009 .......................................... 261

    Tabela 5: Composio e Formas de Eleio das ALD, 2010 ................................................. 271

    Tabela 6: Autoidentificao com Naes ou Povos Indgena Originrio Camponeses, Censo

    2012 ........................................................................................................................................ 285

    Tabela 7: Resultados Eleitorais, Estado Plurinacional da Bolvia.......................................... 291

  • LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

    AC - Assembleia Constituinte

    ADN - Ao Democrtica Nacionalista

    AFP - Administradora de Fundos de Penso

    AIOC - Autonomia Indgena Originria Camponesa

    ALD - Assembleia Legislativa Departamental

    ALP - Assembleia Legislativa Plurinacional

    ANMM - Associao Nacional da Minerao Mdia

    AP - Assembleia Popular

    APG - Assembleia do Povo Guarani

    BIC - Bloco Independente Campons

    BID - Banco Interamericano de Desenvolvimento

    CEPB - Confederao dos Empresrios Privados da Bolvia

    CIDOB - Confederao de Povos Indgenas da Bolvia

    CNTCB - Confederao Nacional de Trabalhadores Camponeses da Bolvia

    COB - Central Operria Boliviana

    COR - Central Operria Regional

    CONAMAQ - Conselho Nacional de Markas e Ayllus do Qollasuyu

    Conisur - Conselho Indgena do Sul

    CONDEPA - Conscincia da Ptria

    Comibol - Corporao Mineira da Bolvia

    CPE - Constituio Poltica do Estado

    CPESC - Coordenadora de Povos tnicos de Santa Cruz

    CPEMB - Confederao de Povos tnicos Moxeos do Beni

    CPN - Comit Poltico Nacional do MNR

    CSCB - Confederao Sindical de Colonizadores da Bolvia

    CSCIOB - Confederao Sindical de Comunidades Interculturais Indgena Originrias da

    Bolvia

    CSTB - Confederao Sindical de Trabalhadores da Bolvia

    CSUTCB - Confederao Sindical nica de Trabalhadores Camponeses da Bolvia

    CUD - Concertao de Unidade Democrtica

    DS - Decreto Supremo

    EGTK - Exrcito Guerrilheiro Tupaj Katari

    FDC-SC - Federao Departamental de Colonizadores de Santa Cruz

    FDMC-BS - Federao Departamental de Mulheres Camponesas Bartolina Sisa

    FEJUVE - Federao de Juntas Vicinais

    FIB - Frente de Esquerda Boliviana

    FNMCB-BS -

    FOL - Federao Operria Local

    FOT - Federao Operria do Trabalho

    FSB - Falange Socialista Boliviana

    FSTMB - Federao Sindical de Trabalhadores Mineiros da Bolvia

    FSUTC-SC - Federao Sindical nica de Trabalhadores Camponeses de Santa Cruz

    Apiahuaiki Tumpa

    FUB - Federao Universitria Boliviana

    INRA - Instituto Nacional de Reforma Agrria

    IOC - Indgena Originrio Campons

    LAPOP - Latin American Public Opinion Project

  • LDJ - Lei de Delimitao Jurisdicional

    LEC - Legio de Ex-Combatentes

    LMAD - Lei Marco de Autonomias e Descentralizao "Andrs Ibez"

    LPP - Lei de Participao Popular

    MACOJMA - Marka de Ayllus e Comunidades Originrias de Jesus de Machaca

    MAS - Movimento Ao Socialismo

    MDS - Movimento Democrtico Social

    MIP - Movimento Indgena Pachakutik

    MIR - Movimento da Esquerda Revolucionria

    MITKA - Movimento ndio Tupaj Katari

    MNR - Movimento Nacionalista Revolucionrio

    MNRI - Movimento Nacionalista Revolucionrio de Esquerda

    MRTK - Movimento Revolucionrio Tupaj Katari

    MRTKL - Movimento Revolucionrio Tupaj Katari de Liberao

    MST - Movimento Sem Terra

    MTD - Marcha por Territrio e Dignidade

    NFR - Nova Fora Republicana

    NPE - Nova Poltica Econmica

    NPIOC - Naes e Povos Indgena Originrio Camponeses

    OEP - rgo Eleitoral Plurinacional

    ONG - Organizao No Governamental

    OIT - Organizao Internacional do Trabalho

    OTB - Organizao Territorial de Base

    PCB - Partido Comunista Boliviano

    PDC - Partido Democrata Cristo

    PIR - Partido da Esquerda Revolucionria

    PMC - Pacto Militar-Campons

    Podemos - Poder Democrtico Social

    POR - Partido Operrio Revolucionrio

    PRA - Partido Revolucionrio Autntico

    PRG - Partido Republicano Genuno

    PRIN - Partido Revolucionrio da Esquerda Nacional

    PRS - Partido Republicano Socialista

    PSE - Partido Socialista do Estado

    PSOB - Partido Socialista Operrio Boliviano

    RADEPA - Razo da Ptria

    TCO - Terras Comunitrias de Origem

    TCP - Tribunal Constitucional Plurinacional

    THOA - Taller de Historia Oral Andina

    TIOC - Territrio Indgena Originrio Campons

    TIPNIS - Territrio Indgena e Parque Nacional Isiboro-Scure

    UCS - Unio Cvica Solidariedade

    UDP - Unio Democrtica e Popular

    UN - Unidade Nacional

    YPFB - Jazidas Petrolferas Fiscais Bolivianas

  • SUMRIO

    INTRODUO ...................................................................................................................... 16

    1. A MATRIZ POLTICA DO LIBERALISMO -CONSTITUCIONAL .......................... 29

    1.1 Das reformas bolivarianas consolidao da Repblica Oligrquica ................. 33

    1.2 Do auge ao colapso da Repblica Oligrquica: conflitos intraelite e acelerao

    das contradies no sistema ............................................................................................... 52

    1.3 Ocaso e restaurao oligrquica: interldio militar e democracia pactuada ...... 70

    1.4 Auge e queda do novo modelo: consolidao gonista, crise e colapso .................. 84

    1.5 Horizontes do liberalismo-constitucional boliviano ............................................... 92

    2. A MATRIZ POLTICA DO IN DIANISMO -COMUNITRIO .................................... 95

    2.1 Indigenismo, Indianismo e horizontes polticos indgenas na Bolvia

    contempornea .................................................................................................................... 96

    2.2 Da Colnia Repblica: estruturao e persistncia do regime de convivncia.....

    ...................................................................................................................... 112

    2.3 Tentativas de extino e resistncia comunitria: da grande ofensiva republicana

    crise do sistema oligrquico .......................................................................................... 123

    2.4

    subordinada reemergncia tnica autnoma .............................................................. 137

    2.5 Horizontes da matriz indianista-comunitria ....................................................... 151

    3. A MATRIZ POLTICA DO NACIONAL -POPULAR ................................................. 156

    3.1 Origens da matriz Nacional-Popular na Bolvia ................................................... 159

    3.2 Da consolidao da repblica oligrquica crise do Chaco ................................ 170

    3.3 Do Socialismo Militar Revoluo: ascenso do nacional-popular boliviano .. 177

    3.4 A Revoluo de 1952: auge e queda do nacional-popular ................................... 189

    3.5

    nacional-popular boliviano .............................................................................................. 203

  • 3.6 O quinqunio 2000-2005 e o renascimento do nacional-popular boliviano ....... 218

    3.7 Horizontes da matriz nacional-popular ................................................................. 228

    4. A CONSTRUO DO HORIZONTE PLURINACIONAL ........................................ 232

    4.1 Do colapso do Estado refundao constitucional: a constituinte como

    entroncamento institucional das trs matrizes .............................................................. 238

    4.2 A construo do horizonte plurinacional como redefinio

    .......................................................................................................................... 249

    4.3 - Construo estatal abigarrada e novas instituies assimtricas: as autonomias

    como chave e a constituio como cadeado .................................................................... 255

    CONCLUSO: UTOPIAS, REALPOLITIK PLURINACIONAL E TENSES

    REMANESCENTES ............................................................................................................ 272

    REFERNCIAS ................................................................................................................... 294

  • 16

    Introduo

    -se que, durante uma visita Frana nos anos 1970, o lder comunista chins Zhou

    Enlai foi perguntado sobre sua opinio acerca da importncia histrica da Revoluo

    (CUNHA FILHO,

    2009, p. 18).

    Com essas mesmas palavras, iniciei a escritura de minha dissertao de mestrado em

    Cincia Poltica defendida em 2009 no ento Iuperj e com elas decido iniciar a introduo

    desta tese de doutorado no atual IESP-UERJ porque a inteno com que tinham sido

    utilizadas naquele contexto mantm-se praticamente inalterada neste de agora: enfatizar as

    dificuldades inerentes anlise e estudo de temas extremamente recentes e de resultados

    ainda inacabados e em andamento. Se naquela dissertao de mestrado busquei estudar os

    elementos de legitimidade com os quais o governo de Evo Morales (ento ainda em seu

    primeiro mandato) procurava construir seu bloco histrico em busca de transformaes na

    excludente sociedade boliviana a partir da memria dos legados das matrizes polticas

    indianista e nacional-popular, nesta tese procuro compreender e explicar a formao do

    Estado Plurinacional da Bolvia inaugurado com a Constituio de 2009.

    Em grande medida um desdobramento daquela dissertao e dos trabalhos levados a

    cabo no interior do Observatrio Poltico Sul-Americano (OPSA/IESP-UERJ) ao qual ainda

    me encontro vinculado na condio de pesquisador responsvel pela Bolvia, esta tese busca

    aprofundar a compreenso do legado e das agendas histricas obtidas ou inconclusas das duas

    matrizes polticas ali estudadas, e agregar uma terceira a do liberalismo para compreender

    os contornos poltico-institucionais assumidos pelo novo Estado Plurinacional.

    A incluso da matriz liberal como objeto de investigao desta tese no , contudo, um

    desdobramento bvio e natural na medida em que o novo Estado Plurinacional foi construdo

    aps um conturbado processo de lutas sociais que para muitos representou uma verdadeira

    revoluo (por exemplo, ALMEYRA, 2011; DUNKERLEY, 2007b; GUTIRREZ

    AGUILAR, 2008; HYLTON; THOMSON, 2007; STEFANONI; DO ALTO, 2006) tendo

    precisamente o (neo)liberalismo como representao daquilo que se buscava transformar e

    superar. Mas ainda que os atores que refundaram o Estado tenham buscado faz-lo

    reivindicando de maneira mais ou menos explcita a memria, os projetos e legados das

    matrizes indianista e nacional-popular e negando o liberalismo, a posio central ocupada por

    este ao longo de quase toda a histria poltica boliviana (ver GOODALE, 2008) fez com que,

    apesar de todo o peso oligrquico a ele associado, ele tenha deixado um conjunto de smbolos,

  • 17

    procedimentos e modelos de aquisio de legitimidade poltica dos quais a refundao

    plurinacional dificilmente poderia escapar. Tal como descrito por Marx (1997, p. 21)

    Assim, a presente tese buscar compreender o novo Estado Plurinacional da Bolvia a

    partir no apenas das duas grandes matrizes polticas insurgentes (HYLTON; THOMSON,

    2007) o nacional-popular e o indianismo-comunitrio que em suas histrias de contestao

    ao excludente Estado liberal-oligrquico deixaram uma memria cujo resgate permitira a

    construo dos fundamentos de legitimidade do bloco histrico liderado por Evo Morales e

    seu partido Movimento Ao Socialismo (MAS) (ver CUNHA FILHO, 2009, 2011), mas

    tambm a partir da incluso na anlise da prpria matriz liberal-constitucional. O objetivo

    ser mostrar como as trs grandes matrizes polticas da histria boliviana deixaram legados,

    agendas e marcos de legitimidade que se fizeram presentes na construo do novo artefato

    institucional inaugurado em 2009.

    matrizes

    como trs grandes projetos de construo do Estado e da Nao no territrio do pas que aps

    a independncia passaria a ser conhecido como Bolvia se deve a dois fatores principais. O

    planejada de construo do Estado boliviano, que se bem como se ver nos captulos

    seguintes de fato existiu em alguns momentos constitutivos chave da histria do pas, no foi

    a regra e mesmo quando nessas excees, jamais pode ser levado a cabo tal como planejado

    devido s vicissitudes da vida e luta poltica no pas. Como aponta Joachim Hirsch (2010, p.

    36 7, itlicos no original),

    o Estado [...] no nem o instrumento criado conscientemente pela classe dominante, nem a

    corporificao de uma "vontade popular" democrtica, tampouco um sujeito ativo

    autnomo. Ele bem mais uma relao social entre indivduos, grupos e classes, a

    "condensao material de uma relao social de fora" [nas palavras de Poulantzas] (ver

    tambm .

    Assim, mesmo a matriz liberal cujos principais atores de fato tinham um projeto

    consciente de reformulao radical das relaes sociais vigentes herdadas do perodo colonial

    e que foram aqueles que por mais tempo detiveram o controle poltico do Estado, viram-se

    constrangidos em seus objetivos por uma mirade de fatores (dentre os quais, como se ver, as

    lutas e agendas das outras duas matrizes) que lhes impeliram a abortar ou modificar os planos

    iniciais e assim foram gestando um Estado em muitas maneiras e graus diferente dos objetivos

    iniciais. Apesar de tentarem vrias vezes redefinir a sua maneira as relaes sociais herdadas

  • 18

    uma e outra vez eles tinham que admitir publicamente que no podiam

    1 (GOTKOWITZ, 2007, p. 19. Traduo nossa).

    E nessas tentativas (parcialmente) frustradas de redefinio social e construo estatal,

    desenvolveu-se o que Brooke Larson (2004, p. 40. Traduo nossa)

    confli2, padres discursivo-legais de interao entre o Estado e sujeitos polticos reativos a

    tais planos de redefinio social atravs dos quais este Estado era frequentemente forado a

    renegociar suas bases de legitimidade perante tais sujeitos. O que nos traz segunda razo da

    matrizes

    da nao bolivianos: mutatis mutandis, o processo se assemelha bastante ao descrito pelo

    historiador E. P. Thompson (1979)

    motins de subsistncia relacionados ao preo do trigo na Inglaterra do sculo XVIII. Na

    transio economia industrial moderna de livre mercado, os setores populares ingleses

    sentiam-

    tradio instituda de paternalismo e proteo social em torno do trigo cuja violao punha,

    perante seus olhos, em questo a prpria legitimidade do Estado. Assim, seguindo a

    denominao proposta por Thompson pela sua similitude com o caso boliviano3, opto por

    cham- matrizes

    busco reconstruir nos captulos 1, 2 e 3 geraram foram, alm de demandas e agendas muitas

    vezes (parcialmente) inconclusas, padres e fontes de legitimao do Estado boliviano os

    quais, como buscarei demonstrar no captulo 4, influenciaram e condicionaram os contornos

    possveis da refundao estatal empreendida pela Assembleia Constituinte (AC) que faria

    nascer o atual Estado Plurinacional da Bolvia.

    Antes de passar reconstruo das trs matrizes propriamente ditas, entretanto,

    necessrio antecipar algumas consideraes sobre a prpria formao social e estatal

    bolivianas durante a colnia e em seu convulsivo processo de independncia. Aps a

    conquista do Imprio Inca, do qual grande parte da atual Bolvia fazia parte, a Coroa

    espanhola estabeleceu um sistema indireto de governo atravs das chamadas encomiendas.

    Grandes extenses territoriais eram concedidas a encomendeiros, juntamente com toda a

    populao indgena nela contida, que eram ento oficialmente responsveis por catequizar os

    ndios e tinham o direito de explorar sua mo de obra mediante o pagamento de impostos e o

    fornecimento de mo de obra e auxlio militar Coroa. Os caciques indgenas, entretanto,

    1 O texto em

    2

    3 Algo j reconhecido em grande medida pela bibliografia boliviana e bolivianista desde pelo menos o seminal

    trabalho de Tristn Platt (1982).

  • 19

    tiveram sua nobreza reconhecida e atuavam como intermedirios entre os encomendeiros (e

    por extenso a Coroa) e o resto da populao aborgene, sendo responsveis pelo

    recolhimento de tributos e reunio de mo de obra para a mita4.

    No entanto, o sistema no era totalmente confivel para a Espanha na medida em que

    muitos encomendeiros se tornavam demasiadamente poderosos e lutavam entre si por maiores

    poderes e autoridade. Especialmente aps a descoberta das imensas jazidas de prata de Potos

    nos anos 1540, tornou-se imperativo a montagem de um sistema mais eficiente e confivel

    para a explorao das imensas riquezas que se anunciavam. A fundao em 1561 da Real

    Audincia de Charcas, rgo jurdico-administrativo responsvel pela maior parte do territrio

    correspondente Bolvia (ento chamada de Alto Peru), dependente do Vice-Reino do Peru,

    mas com certo grau oficial de autonomia e cujas funes de governo frequentemente se

    superpunham s daquele, foi uma primeira tentativa de racionalizao do sistema

    administrativo colonial. Mas foi o vice-rei Francisco de Toledo quem desenharia o novo

    sistema colonial entre 1574-77 a partir de reformas que buscaram, ao mesmo tempo,

    sistema administrativo de padres ibricos e integrar as comunidades indgenas ao mercado

    colonial (KLEIN, 1992, 2003; MESA; GISBERT; MESA GISBERT, 2008; SAIGNES, 1999;

    THORNTON, 2011).

    Toledo buscou concentrar as comunidades indgenas que viviam espalhadas por

    grandes territrios em redues de geografia semelhante ao urbanismo castelhano de ento.

    Como forma de diminuir algo do poder dos caciques, criou uma srie de postos civis anlogos

    aos existentes na Espanha, como prefeitos e corregedores, cujas autoridades se sobrepunham

    ao poder soberano dos caciques sobre as comunidades. Mas para garantir o controle sobre

    essas mesmas comunidades e sua aquiescncia extrao de tributos e trabalho necessrios

    para a colnia, o vice-rei manteve em grande medida o papel dos caciques como

    intermedirios entre os dois mundos e com a manuteno de altos graus de autonomia interna

    s comunidades conquanto seguissem cumprindo com suas obrigaes coloniais tributrias e

    de fornecimento de mo de obra s minas. Como ser visto nos captulos 1 e 2, esse sistema

    de soberania territorial indireta e pacto colonial de reciprocidade seriam mantidos ainda

    durante muito tempo na Repblica independente por razes de necessidade fiscal e

    4 Trabalhos forados prestados pelos indgenas Coroa, em geral nas minas. A mita fora uma incorporao pelo

    sistema colonial do sistema pr-existente de trabalhos coletivos rotativos obrigatrios que as comunidades

    deviam prestar ao Imprio Inca.

  • 20

    dissoluo formal e jurdica das comunidades indgenas, essa autonomia de facto seria

    mantida em muitos lugares do extenso territrio boliviano que, por um motivo ou outro em

    geral, ausncia de recursos econmicos de interesse estratgico imediato , no eram objeto

    de ateno do poder pblico e suas instituies. Mesmo j avanado o sculo XX, s vsperas

    da Revoluo de 1952 e em muitos casos tambm ainda alm dela (como ser visto no

    5 (IRUROZQUI, 2000a)

    6 (MALLOY, 1970) para

    diferenciar entre aqueles atores e grupos sociais e polticos plenamente integrados ao que se

    poderia qualificar como sistema poltico nacional, propriamente boliviano, e no meramente

    local e com pouca vinculao com as disputas nacionais, correspondendo estes ltimos

    durante a maior parte de sua histria maior parte do territrio e da populao bolivianos.

    Foi a persistncia to profunda dessa situao de desconexo ftica entre o Estado e

    seu territrio e a maioria de seus cidados7 que levou o socilogo Ren Zavaleta a cunhar o j

    clebre conceito de formao social abigarrada8: a sociedade boliviana seria composta, na

    verdade, por muitas sociedades e civilizaes justapostas, com tempos socioeconmicos

    distintos e na qual nenhuma delas capaz de impor sua hegemonia completamente sobre as

    outras (ver SANTAELLA GONALVES, 2012; TAPIA, 2002; ZAVALETA MERCADO,

    2009b). Ao mesmo tempo em que possua setores capitalistas modernos e conectados

    economia mundial, como os enclaves mineiros, a Bolvia ostentava inmeras comunidades

    isoladas e com economias de subsistncia no capitalista ou pouqussimo integradas ao

    mercado nacional9. O encadeamento entre essas vrias sociedades e economias seria mnimo,

    muitas vezes meramente formal e era nessa caracterstica peculiar, cujas origens remontam

    em grande medida ao legado colonial espanhol (preservado durante a maior parte do perodo

    republicano), que Zavaleta identificava a origens das frequentes crises de hegemonia pelas

    quais passava o pas.

    Embora o conceito tenha em alguma medida se tornado um chavo reificado, que de

    to repetido s vezes se presta a confuses e exageros, como quando Luis Tapia (2011b, p.

    5

    6

    7

    somente se torna uma realidade aps a Revoluo de 1952. At ento, a cidadania boliviana muito mais do que

    um direito era um privilgio de poucos

    passava a servir como uma distino quase de casta, separando aqueles que a detinham do restante das massas

    brbaras e ignaras (ver IRUROZQUI, 1996, 2000a, 2004). 8 Abigarrado, em espanhol, seria traduzido ao portugus como variegado, feito de retalhos justapostos. Como a

    traduo parece perder um pouco do sentido original, opto por manter o termo no original. 9 O qual, num sentido pleno do termo, era virtualmente inexistente durante a maior parte da histria boliviana,

    salvo para alguns produtos especficos como a coca, utilizada como estimulante pelos trabalhadores mineiros.

  • 21

    48) afirma que a Bolvia seria apenas o nome formal de um pas referido apenas a sua

    sociedade dominante e sem maiores vinculaes com suas multi-sociedades subalternas10

    ,

    com as devidas matizaes a noo de que a Bolvia uma sociedade abigarrada continua

    sendo um conceito chave para a compreenso das dinmicas polticas do pas e de sua

    tentativa de refundao institucional enquanto Estado Plurinacional, como ser visto no

    captulo 4. Se na alvorada do sculo XXI a formao social boliviana talvez j no seja to

    abigarrada quanto o fora em pocas pretritas em termos de uma desconexo to profunda

    entre seus elementos constituintes, havendo j fortes indcios de que se possa falar em um

    Estado e uma sociedade efetivamente nacionais (ainda que esta permanea profundamente

    plural e heterognea), algo que se conecta fortemente com a discusso do abigarrado em

    termos poltico-instuticionais o fenmeno que George Gray Molina (2008, p. 110.Traduo

    nossa) 11

    .

    [S]em dvidas um dos mais persistentes legados do domnio colonial espanhol na

    12 (GRAY MOLINA, 2008, p. 112), o Estado boliviano

    teve que ir se construindo no como costuma acontecer, fruto de um processo linear de

    expanso territorial da soberania de um ncleo pr-existente, mas sim em um lento processo

    de negociao de limites e fronteiras da legitimidade da ao estatal frente a soberanias locais

    protoestatais constitudas. Comunidades indgenas autnomas de jure ou de facto, caudilhos e

    elites regionais locais frequentemente em disputa entre si e mais contemporaneamente

    sindicatos mineiros e camponeses frequentemente detinham na prtica a soberania territorial

    em suas regies, bem como a legitimidade local frente ao seu exerccio de funes e aes

    tidas como tipicamente estatais. Isto no quer dizer que o Estado boliviano tenha abdicado de

    10

    O que, como se ver no captulo 4, inexato e contradito pelos nmeros das pesquisas de opinio pblica.

    Mesmo em um ano altamente conflitivo e que para muitos se inseria em uma conjuntura plenamente

    revolucionria como foi 2004, 85% da populao afirmara sentir

    (VERDESOTO; ZUAZO, 2006, p. 33), dado estatstico que no mostrava variaes significativas mesmo

    diante da autoidentificao positiva dos respondentes com identidades tnicas. Pelo contrrio, em alguns casos

    como na autoidentificao enquanto quchua, embora pequena a tendncia era inclusive de reforo ao

    sentimento de pertencimento comunidade nacional boliviana (VERDESOTO; ZUAZO, 2006, p. 37). Mas

    mesmo em perodos bastante anteriores (ver ALB; BARRIOS SUVELZA, 2007, p. 36), como durante a

    presidncia de Manuel Isidoro Belzu (1848-1855), o presidente que consolidou os smbolos nacionais

    bolivianos (bandeira, braso e hino nacional), h registros historiogrficos de busca pelo presidente do reforo

    de sua legitimidade poltica atravs da adoo de atos simblicos embebidos nas tradies indgenas e, o que

    pelas massas indgenas do pas (ver THIESSEN-REILY, 2008). Eram sem dvidas elementos bastante

    massificar somente aps a Revoluo de 1952 (ALB;

    BARRIOS SUVELZA, 2007, p. 169), mas que so importantes de reconhecer e considerar a fim de no cair

    em simplificaes excessivas ou exageros demasiados sobre a ideia de ausncia de uma bolivianidade capaz de

    - 11

    O texto em lngua estrangeira : 12

    -standing legacies from Spanish

    colonial rule in present-

  • 22

    frequentemente adotava uma espcie de mando indireto atravs de proxies que ocupavam um

    legitimidade precisavam ser frequentemente renegociadas (GRAY MOLINA, 2008, p. 112).

    Ainda segundo Gray Molina (2008, p. 120. Traduo nossa), contemporaneamente o

    devido incapacidade de alcanar a populao, mas

    devido falha em adquirir uma legitimidade vinculante quando o faz13

    . Segundo ele, teria se

    desenvolvido no pas um modus vivendi entre Estado e sociedade fortemente marcado por

    legitimidades conflitantes que, atravs dessa perene renegociao bilateral da legitimidade,

    teria conseguido evitar no pas graus elevados de violncia poltica, guerras civis prolongadas

    ou conflitos tnicos exacerbados apesar dos notrios ndices de pobreza extrema,

    desigualdades sociais, fragmentao tnica e desequilbrios econmicos regionais. Mas por

    outro lado, tambm teria sido incapaz de gerar um ncleo comum de legitimidade, fazendo

    com que conflitos que envolvam mais do que um ncleo territorial de proto-soberania (e,

    portanto, de legitimao) inevitavelmente derivem em demonstraes de fora e aes de

    protesto poltico direto, pois a soluo passaria inevitavelmente por uma poltica crua de

    demonstrao e exerccios de fora, ainda que a mesma viesse posteriormente a ser

    r de reformas e aes legislativas.

    ltimo pas sul-americano a consolidar sua independncia em 1825, o territrio da

    atual Bolvia fora, no entanto, pioneiro nas lutas independentistas. J no perodo 1780-1 partes

    do atual territrio boliviano (entre outros, Chayanta, Oruro, Tupiza e La Paz) foram

    importantes epicentros da grande sublevao anticolonial pan-andina liderada em diferentes

    fases por heris indgenas como Jos Gabriel Condorcanqui (Tupac Amaru II), Toms Katari,

    Julin Apaza (Tupaj Katari) e Bartolina Sisa (HYLTON; THOMSON, 2007; KLEIN, 1992,

    2003; MESA; GISBERT; MESA GISBERT, 2008; THOMSON, 2002). Embora a

    historiografia oficial tenha por muito tempo negado o carter precursor de tais revoltas no

    processo independentista (THOMSON, 2002, 2003), como ser visto no captulo 2 as

    sublevaes do final do sculo XVIII foram importantes momentos constitutivos que

    delinearam importantes partes do horizonte poltico indianista contemporneo e cuja memria

    seria devidamente resgatada e ativamente mobilizada por intelectuais e lderes polticos

    indgenas da Bolvia ps-52. Mas mesmo desconsiderando o papel precursor de tais

    sublevaes, ainda a partir da historiografia oficial o pas continua pioneiro no incio do

    13

    ach the population

  • 23

    processo independentista tendo sido o primeiro a emitir no uma, mas duas proclamas

    independentistas em 1809: a de 25 de maio na atual cidade de Sucre, sede da Real Audincia

    de Charcas e proclamada pelos prprios ouvidores da Audincia; e a de 16 de julho na cidade

    de La Paz14

    , liderada entre outros pelo mestio Pedro Domingo Murillo.

    Dentro do contexto da ocupao napolenica da Pennsula Ibrica na Europa, que

    resultou no aprisionamento do monarca espanhol Fernando VII e na fuga da famlia real

    da

    Audincia proclamaram seu desconhecimento da autoridade do vice-rei Liniers e a

    constituio de um governo independente em Charcas. O argumento utilizado era a doutrina

    Francisco Xavier, localizada na mesma cidade da Audincia, e que se baseando nas doutrinas

    de So Toms de Aquino proclamava que a autoridade governamental provinha do povo e que

    o rei governava em seu nome; desaparecendo o rei, a soberania voltava ao povo e somente

    este poderia tomar determinaes. Assim, com o pretexto da priso de Fernando VII, os

    ouvidores da Audincia de Charcas proclamaram a independncia da mesma e enviaram

    emissrios a outras cidades sob sua jurisdio para informar dos sucessos ali ocorridos. Foi,

    entretanto, um acontecimento quase completamente restrito prpria burocracia da audincia

    e sem maiores consequncias ou aes populares (KLEIN, 2003, p. 912; MESA; GISBERT;

    MESA GISBERT, 2008, p. 24850).

    J a proclama emancipatria pacenha, por sua vez, embora tenha se valido do mesmo

    silogismo alto peruano como pretexto para proclamar a independncia, foi um evento mais

    radical e de maior participao popular. Aproveitando-se da procisso religiosa da Virgem de

    Carmem, os revolucionrios de La Paz detiveram ao intendente Tadeo Dvila e convocaram a

    uma assembleia pblica (cabildo) que declarou a conformao de uma Junta Tuitiva

    independente sob a presidncia de Domingo Murillo e que contou, inclusive, com a

    participao de trs representantes indgenas em nome das provncias de Yungas, Omasuyos e

    Sorata. A Junta foi, entretanto, brutalmente esmagada por tropas realistas enviadas desde

    Cusco e maioria de seus lderes, incluindo Domingo Murillo, foram executados, esquartejados

    e seus restos exibidos em locais pblicos de diversas localidades (KLEIN, 2003, p. 923;

    MESA; GISBERT; MESA GISBERT, 2008, p. 2512; WHITEHEAD, 2001, p. 24).

    14

    Quito, no atual Equador, tambm se rebelaria em 1809, mas apenas em dezembro e Buenos Aires iniciaria seu

    processo independentista apenas no ano seguinte, em maio de 1810 (MESA; GISBERT; MESA GISBERT,

    2008, p. 248).

  • 24

    Entretanto, a luta independentista prosseguiu no pas atravs de guerrilhas rurais

    algumas das quais conseguiram, por algum momento, deter o poder e controle territorial

    conformando-se em proto-estados conhecidos na histria boliviana como as republiquetas.

    Todas elas, com exceo da republiqueta de Ayopaya15

    , entretanto, foram suprimidas pelas

    tropas realistas ao longo das lutas de independncia que passaram ento a ser travadas sob

    comando principal de foras estrangeiras que j haviam conseguido consolidar sua

    emancipao do domnio colonial espanhol, primeiro os Exrcitos Auxiliares de Buenos Aires

    e logo as tropas colombianas de Bolvar e Sucre. A relao entre as republiquetas e as tropas

    estrangeiras ao longo do processo, sobretudo as argentinas, no esteve livre de tenses, j que

    se bem as mesmas procuraram se auxiliar mutuamente, por vezes havia desconfianas entre

    suas lideranas e a percepo (no sem fundamentos) de que as tropas auxiliares perseguiam

    objetivos prprios e no necessariamente congruentes com o desejo local por autonomia e

    emancipao. A lgica inescapvel da guerra de independncia ditava s tropas

    independentistas estrangeiras a necessidade de buscar recursos de onde pudessem ser

    extrados, como a Casa da Moeda de Potos, e a empreender aes de terra arrasada quando

    necessitavam bater em retirada frente s ofensivas realistas que geravam forte rechao das

    populaes locais que arcavam com o pior da devastao de uma guerra longa e arrastada e

    percebiam tais aes, muitas vezes, como mera pilhagem e conquista. Alm disso, lderes das

    republiquetas como Miguel Lanza de Ayopaya ou Manuel Ascencio Padilla em La Laguna16

    que durante muito tempo representaram a nica resistncia local ao poder espanhol eram por

    vezes tratados como meros subordinados apesar do valor e lealdade demonstrados nos campos

    de combate, at serem abandonados prpria sorte quando os interesses portenhos j no

    rioridade. Tais contradies, no entanto,

    ajudaram a consolidar uma espcie de sentimento protonacional em Charcas que, em ltima

    instncia, acabou determinando a formao em seu territrio de uma repblica independente

    em 1825 (ver Figura 1) apesar dos desejos de anexao do mesmo por Buenos Aires ou dos

    projetos de Simn Bolvar de uni-la ao Peru (ver ROCA, 2011).

    Essa narrativa resumida de parte do processo independentista boliviano importante

    por algumas razes. A primeira, porque a experincia das republiquetas, de ampla

    15

    Liderada por Miguel Lanza, a Republiqueta de Ayopaya chegou a controlar uma rea de aproximadamente

    1400km2 e conseguiu perdurar por todo o longo perodo de lutas independentistas e chegou mesmo a

    conquistar e ocupar La Paz pouco antes da chegada das tropas lideradas pelo Marechal Antonio Jos de Sucre. 16

    A Republiqueta de La Laguna foi liderada por Manuel Ascencio Padilla e sua esposa Juana Azurduy de

    Padilla e contou com ampla participao popular, incluindo indgenas, na regio norte de Chuquisaca. A

    republiqueta foi derrotada na chamada Batalha de La Laguna em 13 de setembro de 1816 com a morte de

    Manuel Ascencio Padilla. Sua esposa, entretanto, conseguiu escapar e continuou realizando importantes aes

    de guerrilha em cooperao com outras republiquetas ainda em resistncia.

  • 25

    participao popular e quase todas (sobretudo a de La Laguna) com grande participao

    indgena serve para mostrar que os caminhos que o pas independente tomaria de excluso

    sistemtica de sua populao aborgene de sua vida poltica nacional no era uma necessidade

    histrica inexorvel e talvez por isso mesmo a historiografia oficial boliviana, uma vez

    perodo mesmo omitido o registro dessa participao indgena na luta pela independncia. Em

    segundo lugar, porque tambm alude aos primrdios da formao dos horizontes de

    camaradagem horizontal e destino compartilhado apontados por Benedict Anderson (2006)

    oligrquica posterior independncia tenha limitado a amplitude de incluso nessa

    comunidade imaginada a uma parcela nfima da populao, de modo a permitir que se falasse

    17 (DEMELAS, 1980. Traduo nossa), como se ver no captulo 1 ela deixou

    mesmo assim um legado de smbolos, rituais e procedimentos de legitimidade que

    contriburam para a percepo de existncia de um pas e sem os quais talvez de fato a Bolvia

    fosse mesmo hoje apenas um nome formal referente apenas a sua sociedade dominante como

    exagera Tapia (2011b, p. 48). E por ltimo, porque a memria de alguns de seus

    acontecimentos, desta vez j no como mero peso das geraes mortas como descrito por

    Marx (1997, p. 21), mas como recuperao e mobilizao consciente e necessria para a luta

    emancipatria como a define Walter Benjamin em suas teses Sobre o Conceito de Histria

    (apud. LWY, 2005) ser fundamental para os atores das matrizes insurgentes indianista e

    nacional-popular. Para Benjamin, que concebia a histria como um anjo com as costas

    voltadas para o futuro e constantemente soprado adiante pelos ventos do passado, a luta

    transformadora alimenta- vizados, e no do ideal dos

    (apud. LWY, 2005, p. 108). A histria, para ele, seria como uma

    foram vencidos ou esquecidos [...], por no terem podido se realizar continuam latentes e

    18 (TAPIA, 2002, p. 32) por essa fasca.

    em grande medida por aceitar como vlido o paradigma benjaminiano sobre o

    carter da histria e sua influncia nas lutas polticas presentes que esta tese se estrutura a

    partir da busca em suas trs grandes matrizes polticas das razes e horizontes de que se nutre

    17

    18

    lvidados

  • 26

    o atual experimento institucional do Estado Plurinacional inaugurado em 2009. A noo de

    que h de fato na histria poltica boliviana tradies to arraigadas ao ponto de poderem ser

    -19

    (WHITEHEAD, 2001, p. 35.

    Traduo nossa) no indita. Por exemplo, o citado Laurence Whitehead (2001) aponta para

    a prpria constituio da Audincia de Charcas e a proclamao independentista dos

    matriz liberal-constitucionalista no pas

    matriz de

    participao popular e atuao poltica direta, muitas vezes ultrapassando os canais

    institucionais excludentes e que culminaria na Revoluo de 1952, matriz esta que ser aqui

    tratada no captulo 3 sob o nome de nacional-popular. Forrest Hylton e Sinclair Thomson

    (2007), por sua vez, j trataram dos impactos das memrias das lutas nacional-popular e

    indgena sobre a conjuntura crtica do quinqunio 2000-2005, enquanto Silvia Rivera (1987)

    j abordara os impactos do que ela chama de memria longa (referente ao passado colonial) e

    curta (referente reforma agrria conduzida aps a Revoluo de 1952) sobre os horizontes

    de luta indgena-camponesa da Bolvia contempornea. Maristella Svampa (2007), por sua

    vez, j especulara se o mencionado quinqunio e sua confluncia de indianismo e nacional-

    popular no teria sido j um momento constitutivo suficientemente potente para converter a

    curta a influenciar os horizontes polticos do pas.

    ir

    aos projetos e agendas inconclusas das trs matrizes e seus legados enquanto fontes possveis

    semntica que se adequa perfeitamente ao sentido aqui buscado: como notam Hylton e

    Thomson (2007, p. 31), horizonte no apenas uma projeo futura de expectativas e

    possibilidades, mas em arqueologia significa tambm as diversas camadas sobrepostas de

    terra e vestgios humanos cuja escavao o ofcio dessa cincia. Esse duplo sentido, ao

    mesmo tempo uma projeo futura e uma acumulao de camadas do passado, torna a palavra

    horizonte perfeita para expressar essa noo dos legados das trs matrizes polticas bolivianas

    na conformao do atual Estado Plurinacional na medida em que este obviamente um

    projeto institucional com aspiraes de futuro, mas tambm e este o argumento desta tese

    uma espcie de entroncamento dos legados deixados pelas matrizes pretritas, tanto como

    19

    -

  • 27

    peso opressor inescapvel das geraes passadas (MARX, 1997, p. 21) quanto como busca

    consciente e recuperao ativa de agendas inconclusas (BENJAMIN apud. LWY, 2005).

    Certamente o maior pensador boliviano do sculo XX, Ren Zavaleta Mercado

    considerava que o presente poltico podia ser muito melhor explicado atravs da inquisio de

    sua gnese histrica que pela descrio de suas instituies e atores sociais contemporneos.

    Zavaleta desenvolveu assim a noo de momento constitutivo, processos e conjunturas

    normalmente marcados por algum tipo de crise intensa (guerra, mortalidade, depresso

    econmica aguda) nos quais se produzem os marcos dentro dos quais se enquadrar a luta

    poltica e as estruturas sociais de determinada polis pelos seguintes anos (ver TAPIA, 2002, p.

    293 304). Assim, seguindo o mtodo zavaletiano, o que se buscar nos captulos 1, 2 e 3,

    respectivamente, ser perscrutar a histria poltica das trs matrizes polticas aqui

    denominadas de liberalismo-constitucional, indianismo-comunitrio e nacional-popular em

    busca de seus momentos constitutivos e o legado por elas deixados em termos de projetos e

    agendas de construo do Estado boliviano para, no captulo 4, tentar mostrar como a sntese

    das mesmas influenciou os contornos institucionais concretos do Estado Plurinacional

    inaugurado em 2009. Por fim, na concluso busco analisar at que ponto este novo Estado

    poder ser bem-sucedido em alcanar aquilo que, como aponta Gray Molina (2008), mais

    falta fez a seus antecessores: a constituio de um ncleo comum de legitimidade

    institucional.

    Figura 1: Bolvia em 1825

  • 28

    Fonte: Reproduzido de Hylton e Thomson (2007, p. vii).

  • 29

    1. A matriz poltica do liberalismo-constitucional

    Embora seja possvel argumentar que em certo sentido, no apego a um governo

    constitucional regido por leis, antecedentes importantes datem da prpria colnia e da

    instituio da Audincia de Charcas como rgo governante do territrio hoje correspondente

    ao pas (WHITEHEAD, 2001, p. 223), com a fundao da independente Repblica Bolvar

    em 1825, posteriormente renomeada para Repblica da Bolvia, que se consolida o

    nascimento da matriz poltica liberal boliviana. O prprio processo de independncia no pas,

    assim como o dos demais pases da Amrica Hispnica, est marcado em suas origens pelas

    controvrsias derivadas da ocupao da Espanha pelas tropas napolenicas, com a priso do

    monarca Fernando VII e a revoluo liberal das Cortes de Cdiz na primeira dcada do sculo

    XIX. Ainda que em geral os processos independentistas tenham sido deflagrados justamente

    pela recusa formal da aceitao do constitucionalismo liberal proposto em Cdiz e as

    proclamas de lealdade ao monarca absoluto capturado (ROCA, 2011), o processo das lutas

    independentistas tomaria uma dinmica prpria atravs da qual por volta de sua concluso

    todos os novos Estados fundados estavam fortemente influenciados - ao menos em um nvel

    formal e retrico - pelos ideais associados ao liberalismo europeu e defendidos pelos

    principais prceres do Exrcito Libertador de Simn Bolvar.

    No caso da Bolvia, que inclusive adotou tal nome em homenagem ao Libertador e

    como forma de facilitar a obteno de seu beneplcito consolidao da proclamao de uma

    repblica independente no territrio da antiga Audincia de Charcas20

    , essa influncia bvia

    desde sua primeira constituio, outorgada pelo prprio Bolvar com a inteno declarada de

    ser a constituio mais liberal j tida por um pas (ver KOHL, BENJAMIN H.; FARTHING,

    2006, p. 41; URIOSTE NARDIN, 2009, p. 71). As reformas propostas por Bolvar eram

    extremamente ambiciosas e buscavam liquidar com as estruturas coloniais herdadas, como os

    privilgios da Igreja ou as estruturas de posse comunal de terras indgenas e os impostos

    20

    Em suas ideias de unio continental, Bolvar favorecia pessoalmente a constituio de um nico Estado

    independente nos territrios que hoje formam Peru e Bolvia. Entretanto, as experincias de autogoverno

    propiciadas pela longa existncia da Audincia de Charcas (fundada em 1561) com atribuies que muitas

    vezes se sobrepunham s do Vice-Reino do Peru (e nos ltimos anos da colnia ao de Buenos Aires), alm de

    vicissitudes prprias da dinmica mesma da longa e arrastada guerra de independncia no solo boliviano

    ocasionaram o surgimento de um embrio de sentimento nacional percebido pelo Marechal Sucre e que o levou

    a acatar o desejo local de constituio de um Estado independente apesar das resistncias de Bolvar. A escolha

    do nome teria sido uma forma de tentar atrair suas simpatias ao projeto a partir da homenagem (ROCA, 2011).

  • 30

    corporativos por eles pagos, sem no entanto preocupar-se com entender como funcionavam

    realmente na prtica as estruturas sociais, polticas e econmicas no novo pas.

    Como logo constataria o Marechal Antnio Jos de Sucre, brao direito de Bolvar e

    primeiro presidente a exercer de fato a presidncia boliviana (1825-28)21

    , a realidade concreta

    do novo pas logo imporia claros limites e resistncias ao ambicioso projeto de reformas

    liberais, mesmo entre grupos pensados como beneficirios diretos das mesmas. Por exemplo,

    os decretos de Bolvar de 1824 e 1825 estabeleciam que os indgenas seriam os proprietrios

    individuais das terras que ocupavam e aboliam o status corporativo das comunidades

    indgenas e o tributo indgena, com a inteno de assim eliminar o que ele via como um

    oneroso e discriminador resqucio colonial e integrar os indgenas como cidados plenos da

    nova repblica. Entretanto, as reformas foram resistidas pelos prprios indgenas tanto pela

    inadequao da quantidade de terras individuais a ser recebidas aos padres andinos de

    agricultura vigentes, quanto pelo temor a um novo status individual desconhecido e sem as

    protees corporativas comunitrias de que gozavam. De qualquer forma, a prpria situao

    econmica desastrosa do novo pas se encarregaria de sepultar os projetos de reforma: com a

    economia em runas pela longa guerra de independncia, com as minas abandonadas e sem

    capital suficiente para sua recuperao, o Estado boliviano tinha no tributo indgena a nica

    fonte de ingressos com que podia contar com segurana naquele momento, de modo que

    Sucre abortou a ambiciosa reforma agrria bolivariana pelo pragmtico motivo da

    dependncia fiscal (ver KLEIN, 1993, 2003; LANGER, 1988; LANGER; JACKSON, 1997;

    MESA; GISBERT; MESA GISBERT, 2008).

    Aps sua renncia presidncia em 1828 provocada em grande medida, entre outros

    motivos, pela forte resistncia das elites locais a tentativas de reformas que ameaavam

    alguns de seus privilgios o pas ingressaria em um perodo relativamente longo no qual o

    liberalismo boliviano entraria numa espcie de refluxo ideolgico, sendo deixados de lado

    projetos mais ambiciosos de reforma com intenes plenamente programticas de liquidar

    com os legados no-liberais herdados da colnia pela nova repblica. Com a presidncia do

    Marechal Andrs de Santa Cruz (1829- entre os ideais

    universais de modernidade proclamados pela repblica e heranas coloniais como as

    comunidades indgenas de facto autnomas seria inclusive formalizado em 1831, com lei

    aprovada que declarava os indgenas proprietrios de todas as terras que houvessem ocupado

    por um prazo mnimo de dez anos, mantendo a cobrana do imposto indgena colonial e que

    21

    Bolvar foi declarado seu primeiro presidente, mas no chegou a exercer na prtica o cargo que lhe fora

    designado, abdicando em favor de Sucre (ver MESA GISBERT, 2006).

  • 31

    -se na negao dos decretos promulgados entre 1824 e 1825 pelo

    22 (LANGER, 1988, p. 62. Traduo nossa). A partir da, com algumas pequenas

    alteraes como os decretos de Jos Ballivin (1841-47) em 1842 que estabeleceram que a

    propriedade das terras comunais pertencia ao Estado, embora sua posse aos indgenas

    estivesse assegurada em

    nacional sairia do primeiro plano da agenda poltica at pelo menos a dcada de 1860 quando

    retornaria com fora total. Durante o perodo, o grande alvo da matriz liberal boliviana se

    concentraria principalmente em temas econmicos, com a pugna pela implementao de um

    regime econmico livre-cambista em oposio a preocupaes mercantilistas de consolidao

    de um mercado nacional defendidas por nomes como o prprio Santa Cruz e Manuel Isidoro

    Belzu (1848-55) depois dele (ver LANGER, 1988; SCHELCHKOV, 2007; ZAVALETA

    MERCADO, 2008). Mas cada vez mais essas ideias iriam perdendo a batalha ideolgica com

    o livre-cambismo que se consolidaria como o modelo econmico do pas e a espinha dorsal da

    matriz liberal boliviana at o retorno das preocupaes com a modernizao de suas estruturas

    sociais mais profundas que, como veremos, no voltaria apenas por preocupaes

    programticas ou compromissos plenamente ideolgicos.

    Mas j durante esse perodo, no entanto, alm das discusses econmicas a matriz

    liberal local tambm foi se assentando mesmo atravs dos defensores de polticas

    econmicas protecionistas que, como ser visto no captulo 3, dariam incio ao embrio da

    matriz nacional-popular boliviana por meio da consolidao dos elementos simblicos de

    deteno legtima do poder estatal prprios do iderio liberal como a realizao de eleies, a

    proclamao de constituies, a existncia de parlamentos e a separao de poderes. Ainda

    que at a consolidao do primeiro sistema de partidos do pas a partir de 1880 o golpe de

    Estado tenha sido a forma por excelncia de acesso ao poder e mesmo a partir da as fraudes

    eleitorais tambm tenham sido regra e o prprio golpe como possibilidade de tomada do

    poder nunca tenha sido totalmente descartada como atestariam seu retorno em 1899 e 1920

    o fato que mesmo o mais autoritrio dos caudilhos militares nunca abdicou de recorrer

    promulgao de uma nova constituio e convocao do parlamento como forma de

    legitimar ex post sua deteno do poder poltico nacional, razo pela qual opto por chamar

    aqui tal matriz de liberal-constitucional. E como nas disputas intraelite pelo poder as faces

    perdedoras sempre denunciavam os abusos, atropelos e descumprimentos das regras

    22

    O texto em lngua

  • 32

    discursos acusatrios em torno do que deveriam realmente ser e como deveriam realmente ser

    operados foram contribuindo para sedimentar uma imagem do que deveriam ser a repblica e

    a democracia legtimas. O que, por vias tortas, acabaria sendo o maior e mais duradouro

    legado da matriz liberal-constitucional boliviana ao pas (ver IRUROZQUI, 2000a, 2004,

    2011; PERALTA RUIZ; IRUROZQUI, 2000).

    Ao longo desse perodo de expanso das polticas econmicas de livre-mercado que

    coincide com a lenta, mas firme recuperao da atividade mineira associada a capitais

    internacionais e com ela o aumento da influncia poltica dos grandes magnatas mineiros

    o pas foi consolidando suas instituies em um formato republicano-oligrquico, com

    eleies censitrias e critrios excludentes de cidadania poltica que deixavam oficialmente de

    fora maior parte de sua populao e que com alteraes persistiria at o sculo XX, sendo

    totalmente superado apenas com a Revoluo de 1952. Obviamente que essa profunda

    oligarquizao da Repblica da Bolvia contradizia os ideais de igualdade e liberdade

    universais celebrados nos discursos e objetivos oficiais da mesma. Mas ainda que no seja o

    foco de interesse principal deste captulo discutir o quanto desses contornos concretos se

    devem ou no a faltas de compromisso verdadeiros com os preceitos programticos dessa

    ideologia ou a sua apropriao meramente retrica e com fins interesseiros por parte da elite

    nacional, creio caber aqui uma pequena digresso terica sobre c

    de determinados segmentos populacionais ao mesmo tempo em que proclama ideais

    universais de incluso. Como explica o filsofo poltico Uday Mehta (1997), a universalidade

    do liberalismo se baseia em uma espcie de antropologia filosfica que reputa ao homem

    certas capacidades inatas:

    as proclamas universais [do liberalismo] podem ser feitas porque derivam de certas

    caractersticas comuns a todos os seres humanos. Centrais dentre essas caractersticas

    antropolgicas ou fundantes para a teoria liberal so as alegaes de que todos so

    naturalmente livres, que so iguais nos aspectos morais relevantes, e finalmente que so

    racionais. Pode-se assim dizer que o ponto de partida para as prescries polticas e

    institucionais da teoria liberal um mnimo antropolgico ou denominador antropolgico

    comum23 (MEHTA, 1997, p. 63. Traduo nossa).

    O problema que permite a excluso sistemtica de segmentos sociais determinados ao

    mesmo tempo em que se proclamam ideais universais de igualdade que esse denominador

    antropolgico comum depende de qualificativos para a definio de quem os cumpre que

    23

    characteristics that are common to all human beings. Central among these anthropological characteristics or

    foundations for liberal theory are the claims that everyone is naturally free, that they are in the relevant moral

    respects equal, and finally that they are rational. One might therefore say that the starting point for the political

    and institutional prescriptions of liberal theory is an anthropological minimum or an anthropological common

  • 33

    esto firmemente enraizados em definies culturais especficas. Assim que essa

    racionalidade exigida para a participao como igual nos critrios de cidadania poltica

    invariavelmente esteve associada a uma definio ligada aos ideais eurocntricos de

    civilizao que negavam de partida qualquer possibilidade de racionalidade a coletivos como

    escravos, populaes aborgenes, mulheres, menores de idade ou demais segmentos

    subalternos aos quais sempre era possvel reputar por irracionais e, portanto, excludos da

    comunidade poltica cidad plena (ver tambm POSTERO, 2007). Seria essa caracterstica,

    que Mehta identifica como inerente s premissas tericas do liberalismo desde John Locke e

    passando pelos demais prceres dessa corrente intelectual como James e John Stuart Mill, a

    que teria permitido a essa corrente intelectual submeter pases inteiros ao jugo colonial sem

    contradizer formalmente seus ideais polticos e excluir durante muito tempo imensos

    segmentos populacionais da vida poltica nacional.

    No caso boliviano, ela serviria para justificar a posio poltica subalterna no apenas

    da maioria indgena

    civilizatria, sempre podia ser tida por incapaz de exercer racionalmente seus direitos

    polticos por supostamente estar submetida vontade dos caciques comunitrios ou dos

    patres nas haciendas , mas tambm dos artesos supostamente submetidos ao arbtrio dos

    mestres das oficinas s quais se vinculavam, das mulheres submetidas ao arbtrio de seus

    maridos etc., embora como ser visto adiante essa excluso poltica nunca tenha sido

    completa e em suas contradies tenha favorecido as condies para a implementao do

    ideal democrtico no pas e para o nascimento e consolidao da matriz nacional-popular.

    1.1 Das reformas bolivarianas consolidao da Repblica Oligrquica

    Quando Antnio Jos de Sucre, o Marechal de Ayacucho, assumiu a presidncia da

    Bolvia em 1826, o brao direito do Libertador Simn Bolvar estava comprometido a levar

    adiante as reformas sociais e polticas iniciadas por seu mentor e amigo visando liquidar

    plenamente com o passado colonial e moderniz-lo a partir de ideais liberais e republicanos.

    Entretanto, a magnitude do alcance das reformas almejadas somada fragilidade das

    capacidades institucionais do novo Estado independente, a resistncia de interesses

    estabelecidos e o ainda indefinido balano geopoltico entre os novos pases com fronteiras

  • 34

    em disputa conspiraram para o fracasso da mais profunda tentativa de romper com o passado

    colonial em nome de ideais e princpios liberais.

    Como j mencionado, o prprio Bolvar decretara em 1824 e 1825 uma reforma

    agrria que pretendia transformar os indgenas em proprietrios individuais de suas terras e

    abolia suas obrigaes coloniais como o trabalho forado (mita) e o tributo indgena, mas que

    ao mesmo tempo acabava com suas distines corporativas como a existncia legal das

    comunidades. Isto acabou gerando resistncias s mudanas por parte dos prprios indgenas,

    sobre quem as obrigaes coloniais eram certamente uma carga onerosa, mas que temiam as

    incertezas da mudana de status e seu nivelamento jurdico com a sociedade crioula que lhes

    oprimia. A reviso da histria boliviana, especialmente a partir do surgimento de importantes

    intelectuais indgenas e do fortalecimento da matriz indianista no pas sobretudo a partir do

    Katarismo (ver captulo 2), tem criticado severamente os decretos bolivarianos por tentar

    impor valores e estruturas fundirias de matriz eurocntricos sobre a organizao tradicional

    agrcola andina, mas se verdade que uma razo fundamental do fracasso destas reformas foi

    o seu grande desconhecimento da realidade concreta realmente existente, preciso reconhecer

    que sua inspirao era claramente progressista. Os objetivos ltimos dos decretos de Bolvar

    eram possibilitar a incorporao de sua grande massa indgena como cidados plenos da nova

    repblica, embora a forma escolhida tenha realmente pecado por um idealismo talvez

    excessivo que o fez tentar implementar uma reforma baseada em princpios ideolgicos

    De qualquer maneira, Sucre partiu dos decretos bolivarianos e dos efeitos de renncia

    fiscal neles contidos para desenhar seu primeiro grande projeto, a reforma do sistema

    tributrio nacional. Alm do tributo indgena que representava cerca de 60% da arrecadao

    (KLEIN, 2003, p. 1045) , o sistema tributrio colonial inclua uma srie de impostos e taxas

    de carter regressivo, que incidiam desproporcionalmente sobre os setores da populao e

    desincentivavam o comrcio e a produo ao estabelecer monoplios e taxar o consumo.

    Aps 1825, a reforma tributria se tornou necessria por duas razes. Era imperativo

    simplificar e modernizar a complicada, desigual e ineficiente estrutura tributria colonial para

    torn-la compatvel com os princpios republicanos. Com a mesma importncia, a reforma

    tributria era tambm necessria para suprir os crescentes custos do governo independente, de

    modo que as novas instituies polticas pudessem sobreviver o primeiro e crtico ano24

    (LOFSTROM, 1970, p. 281. Traduo nossa).

    24

    It was imperative

    to simplify and modernize the complicated, inequitable, and inefficient colonial tax structure, to make it

    conform with republican principles. Equally important, tax reform was needed to provide for the growing costs

    of independent government,

  • 35

    O tributo indgena j havia sido abolido pelo decreto de Bolvar de 1825, que ademais

    imposto direto e universal consistindo de um

    imposto pessoal, um imposto sobre a propriedade e um imposto de renda para os indivduos

    25 (LOFSTROM, 1970, p. 282. Traduo nossa)

    que seria implementada em carter experimental por um ano, prazo aps o qual o parlamento

    do novo pas deveria decidir. Em janeiro de 1826, o presidente Sucre emitiu uma resoluo

    reforma revolucionria e prometia modernizar a estrutura tributria do Estado ao estabelecer a

    26 (KLEIN, 2003, p. 107. Traduo nossa).

    De acordo com a resoluo presidencial, deveria ser elaborada uma listagem geral de todos os

    habitantes do pas por canto e provncia de modo a servir de base ao imposto pessoal e uma

    comisso especial seria criada para realizar a avaliao de todas as propriedades rurais e

    urbanas sobre as quais incidiria o imposto de propriedade. Em fevereiro do mesmo ano, o

    presidente Sucre ainda aboliu ou reduziu significativamente os impostos incidindo sobre os

    produtos alimentcios e em agosto foram abolidos impostos sobre o comrcio conhecidos

    como alcabalas e reduzidas as taxas sobre o comrcio de coca, ndigo e manufaturados com a

    inteno de estimular a produo. Com o mesmo objetivo, j havia sido abolido o monoplio

    estatal sobre o tabaco.

    Entretanto, as resistncias ao novo cdigo tributrio no se fizeram esperar. O

    principal foco de crticas era a abolio do tributo indgena e sua substituio por uma taxao

    universal que incidiria sobre um grande universo de pessoas que jamais havia pagado

    Abusos

    cometidos pelas autoridades locais encarregadas da avaliao das propriedades tambm

    contriburam para aumentar as resistncias, de modo que o governo chegou a crer que poderia

    revert-las atravs de um maior controle sobre esses funcionrios, o que foi tentado com lei de

    julho de 1826. Mas a persistncia dessa oposio social crescente que impediu a

    concretizao do cadastro fiscal necessrio para o novo modelo somada forte queda na

    arrecadao levaria o governo a iniciar uma volta atrs j em agosto, quando o Congresso

    aprovou uma lei reinstalando temporariamente o tributo indgena e prorrogando em seis

    meses a vigncia de alguns tributos indiretos. Mas mesmo isso foi insuficiente para calar as

    crticas e em dezembro a reforma foi praticamente revertida ao status quo ante, com a

    25

    and an income tax for individuals engaged in 'the sciences, ar 26

  • 36

    abolio da contribuio pessoal, o reestabelecimento pleno do tributo indgena e a converso

    do imposto sobre propriedades em uma taxa cobrada a partir dos valores informados

    voluntariamente pelos prprios proprietrios (ver KLEIN, 2003, p. 107; LOFSTROM, 1970,

    p. 285 6).

    Alm das dificuldades provocadas pela resistncia social reforma, foi decisiva para

    seu aborto a severa situao fiscal do novo Estado, com uma economia estagnada e incapaz de

    gerar os recursos necessrios para sua sustentao. Sucre estava ciente do caos econmico e

    vinha tentando reviver a indstria mineira boliviana atravs de incentivos ao investimento de

    capitais estrangeiros e da reestruturao da Casa da Moeda e do Banco Real de San Carlos,

    entidade estatal responsvel pela compra e revenda de ouro e prata. Mas se a reestruturao

    desses dois organismos estatais de interveno no setor mineiro conseguiu ser bem sucedida,

    as medidas de incentivo atrao de capitais estrangeiros mostraram-se insuficientes diante

    da magnitude dos custos envolvidos em reativar as minas abandonadas e inundadas num

    contexto em que a mo de obra barata indgena tradicionalmente utilizada no pas se

    encontrava indisponvel pela abolio da mita. Mas foram tambm em parte esses fracassos e

    a consequente necessidade urgente de encontrar recursos que levaram Sucre a sua reforma de

    mais profundo e duradouro sucesso: o ataque Igreja.

    Embora a constituio bolivariana tenha mantido o catolicismo como culto oficial,

    tanto Sucre como Bolvar eram, em coerncia com o liberalismo por ambos professados,

    anticlericais e na busca por encontrar recursos com os quais sustentar o novo Estado o

    Marechal de Ayacucho buscou destruir de vez o poder poltico da Igreja no pas atravs da

    confiscao dos dzimos arrecadados e das terras da Igreja. Sucre ordenou ainda o fechamento

    da maioria dos monastrios e conventos e na prtica converteu ao clero que permaneceu em

    funcionrios pblicos do Estado. Embora em termos fiscais o ataque Igreja no tenha sido

    suficiente para as necessidades do Estado, tanto pela grande magnitude destas quanto pela

    estagnao econmica que impediu maiores arrecadaes com o leilo das terras confiscadas,

    em termos polticos, as reformas eclesisticas de Sucre foram um sucesso absoluto. [...] Como

    resultado, a Igreja se tornou um ator dependente e passivo pelo resto do sculo. Alm disso, a

    Bolvia foi poupada dos horrores dos conflitos religiosos experimentados por muitas das

    repblicas da Amrica e mostrou uma tolerncia religiosa incomum para os padres latino-

    americanos27 (KLEIN, 2003, p. 109. Traduo nossa; ver tambm LANGER; JACKSON,

    1997; LOFSTROM, 1970).

    27

    ms, the Sucre church reforms were a total success. [...] As a

    result, the church became a dependent and passive actor in the affairs of the state for the rest of the century.

    Furthermore, Bolivia was spared the horrors of the religious conflicts that were experienced by many of the

  • 37

    Em agosto de 1828, no entanto, Sucre seria ferido na tentativa de conter um motim

    militar (era a terceira sublevao de tropas enfrentada pelo marechal) e, desiludido,

    renunciaria presidncia desenhada por Bolvar para ser ocupada de forma vitalcia e deixaria

    o pas em um exlio voluntrio. A queda de Sucre, que sempre teve uma presidncia

    politicamente instvel ao longo de seus cerca de trs anos como mandatrio, certamente foi

    muito influenciada pelo descontentamento gerado por sua ampla agenda de reformas, mas

    outros fatores tambm tiveram importncia.

    Em primeiro lugar, disputas pelo prprio poder em si e pelo controle de cargos

    estratgicos tidos como recompensa legtima esperada por membros da elite com participao

    importante no processo anterior de independncia. No processo que Lofstrom (1973) chama

    buscava substituir a todos os espanhis por patriotas indicados por comits locais, mas o mau

    desempenho de muitos dos novos funcionrios incluindo notveis prceres locais da

    independncia como o ex-guerrilheiro da republiqueta de Ayopaya, Jos Miguel Lanza, ou

    Casimiro Olaeta nos cargos para os quais haviam sido designados deixara Sucre

    desapontado com a capacidade administrativa local. Assim, a poltica fora revertida em prol

    de uma maior centralizao das nomeaes nas mos de Sucre, as quais passaram a ser feitas

    em favor cada vez maior de oficiais do Exrcito Libertador, veteranos companheiros de armas

    do marechal.

    As reformas econmicas e sociais empreendidas por Sucre foram inspiradas no pensamento

    liberal e tinham como objetivo ltimo a destruio dos vestgios do Estado patrimonial

    espanhol. Mas para poder ter a mais remota chance de sucesso, esse programa de reformas de

    inspirao democrtica teve que ser imposto sociedade Alto Peruana da maneira mais

    antidemocrtica possvel, virtualmente eliminando a participao dos Alto Peruanos28

    (LOFSTROM, 1973, p. 197. Traduo nossa; ver tambm PERALTA RUIZ; IRUROZQUI,

    2000, p. 38).

    Alm da oposio prpria natureza das reformas, o ressentimento por seu alijamento

    dos altos cargos administrativos e o fato de que elas eram implementadas por mos

    estrangeiras includas as do prprio Sucre logo se tornariam um pretexto imperdvel de

    converter a oposio a elas em uma questo nacional, na oposio ao controle do novo pas

    por filhos de outras ptrias. E uma terceira razo importante, mas tambm relacionada a essa

    questo nacional tem a ver com o equilbrio geopoltico do continente. A presena do brao

    direito de Simn Bolvar na presidncia de um pas cuja independncia fora aceita a

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    liberal thought and had as their ultimate goal the destruction of the vestiges of the Spanish patrimonial state. In

    order to have a remote chance of success, however, this democratically inspired reform program had to be

    imposed on Upper Peruvian society in a most undemocratic fashion, virtually eliminating the participation of

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    contragosto tanto pelo Peru quanto pela Argentina era uma fonte constante de tenso na

    poltica dos vizinhos, ainda mais quando cerca de 8000 soldados do Exrcito Libertador

    permaneciam aquartelados no territrio da Bolvia. Assim, o pas se viu imerso nas disputas

    geopolticas que tomavam conta de um continente de fronteiras ainda incertas, disputas essas

    que incidiam nas conspiraes internas e que contriburam para a queda de Sucre e a expu