Ifigenia Goethe

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  • 7/31/2019 Ifigenia Goethe

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    Johann Wolfgang von Goethe

    Ifignia na Turida

    (1787)

    recriao potica de

    Frederico Loureno

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    Personagens

    Ifignia

    Toas, rei dos Tauros

    Orestes

    Plades

    Arcas

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    ACTO I

    Bosque no santurio de Diana

    Cena 1

    IFIGNIA: Sombras vivas, agitadas copasdeste antigo e sagrado bosque!Ainda hoje estremeoao ver-me aqui no vosso meio;tremo ainda ao pisar este chodo santurio da deusa, como se fosse hoje

    a primeira vez que eu aqui entrasse.A este lugar no se habitua o meu esprito,apesar de h tantos anos aqui me mantera Fora superior a que obedeo.Sinto-me estranha aqui,estranha como no primeiro diaem que a vasta extenso do marme separou de todos aqueles que amo.Dia aps dia deso praia para viajar

    na minha imaginao at Grcia;e l chamo por todos que outrora amei.Porm a rebentao das ondasoutra resposta no d aos meus suspiros,alm de longo e rouco bramido.No foram nunca os deuses o alvo do meu rancor;mas como esconder, deusa,que te sirvo contra a minha vontade,tu que foste a minha salvadora?

    E eu que devia ter dedicado a minha vidaa servir-te voluntariamente...Apesar de tudo, nunca deixeide ter em ti a minha esperana:em ti espero, Diana, tu que recebesteem teus braos divinos esta filhaque o prprio pai sacrificou.Salva-me de novo, tu que antesno consentiste em deixar-me morrer:salva-me agora desta vida que aqui levo,desta vida que tem sido a minha segunda morte.

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    Cena 2

    Ifignia, Arcas

    ARCAS: o rei que aqui me manda para transmitir sacerdotisa de Diana as devidas saudaes.Hoje toda a Turida agradece deusanova vitria miraculosa das suas armas.Apressei-me frente do rei e do exrcitopara te avisar da chegada que se avizinha.

    IFIGNIA: Cumpridos esto os preparativospara recebermos o rei condignamente.A deusa ver com bons olhosa oferta de um sacrifciopor parte do rei

    sacrifcio que lhe seja agradvel.

    ARCAS: Pudesses tambm tuver-me a mim com bons olhos!Pudesse o olhar da sacerdotisaque tanto honramos brilhar-nosmais luminoso ainda, para que a todos nsse afigurasse luz de bom augrio!Mas a tristeza encobre secretamente a tua alma.Temos esperado em voh tantos anos por uma confidncia tua,por uma palavra confiante do teu corao.Desde que te conheo neste santurio,vejo essa expresso no teu olhar,expresso que intimamente me horroriza.

    E com que grilhes de aomantns sempre a tua alma escondidano recanto mais inacessvel do teu ser!

    IFIGNIA: Assim deve comportar-se a rf rejeitada que sou.

    ARCAS: Sentes-te aqui rf e rejeitada?

    IFIGNIA: Pode uma terra estrangeira tornar-se-nos ptria?

    ARCAS: Se a ptria se te tornou terra estrangeira.

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    6no recompensou este povo com tanta generosidade?A vitria acompanha sempre o nosso exrcito,antecede-o at! E todos sentem ser melhor a sua sorte,desde que o rei se encanta com a tua brandura

    e nos aligeira o peso da obedincia silenciosa.Agora ouve o que te diz quem te fala com lealdade:quando hoje o rei aqui vier para falar contigo,aligeira-lhe tu tambm o que ele pensa dizer-te.

    IFIGNIA: Quanto mais solcito me falas mais me assustas.J antes me vi forada a esquivar-me s palavras do rei.

    ARCAS: Pensa bem no que fazes.E pensa no teu prprio benefcio.Desde que o rei perdeu o filho,

    ~ j s confia em poucosdaqueles em que antes confiava

    e mesmo nesses poucosconfia muito menos do que antes.Olha desconfiado para os filhos dos nobres,vendo em cada um deles um possvel sucessor.Na Turida no depositamosqualquer valor na palavra;e quem menos a enaltece o rei.Habituado a mandar e a agir,desconhece a arte de conduziro discurso com prolongadas subtilezas.No lhe dificultes portanto a tarefa,fingindo no o compreenderes.Faz por te encontrares com ele a meio caminho.

    IFIGNIA: Queres que eu ajude a precipitar

    aquilo que mais me ameaa?

    ARCAS: Chamas ameaa ao amor dele?

    IFIGNIA: o que mais me aterroriza.

    ARCAS: Paga-lhe o amor com a tua confiana.

    IFIGNIA: S se ele primeiro me libertar a alma do medo.

    ARCAS: Porque lhe ocultas o teu nome e a tua origem?

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    8a regncia dos teus sbditos,possas tambm tu gozar da ventura.

    TOAS: Bastava-me s o reconhecimento do meu povo.

    De tudo quanto alcancei, so outros a colher o benefcio.Acompanhaste-me nas profundezas do sofrimento,quando a espada inimiga me matou o nico filho.Enquanto a vingana se apoderou do meu esprito,no cheguei a sentir o vazio da minha vida.Mas agora que regresso de vingar o meu filho,apercebo-me de que nada me resta que me d alegria.Assim dirijo-me hoje a este templo, onde tantasvezes pedi deusa a vitria do meu exrcito,para cumprir o desejo que h muito me acompanha:o desejo de te levar para casa como noiva.

    IFIGNIA: mulher desconhecida ofereces honra demasiada, rei.Sou apenas uma refugiada nesta terra, e nada mais queroalm da proteco e da serenidade que nunca me negaste.

    TOAS: Esta terra um mundo de terror para os estrangeiros:assim o exige a lei, assim o exige a necessidade.S a ti foi concedido gozares de bom acolhimento;e por isso de ti esperei em vo estes anos todosa tua confiana, como contrapartida da minha lealdade.

    IFIGNIA: Se te ocultei a minha origem e o nome dos meus pais,no foi por desconfiana: foi por constrangimento.Pois se soubesses quem tens diante de ti,se soubesses quo amaldioada a mulherque protegeste e alimentaste, apoderava-sedo teu corao uma tal repugnncia

    que, em vez de me ofereces o teu trono,escorraavas-me de imediato do teu reino:trespassavas-me at, impedindo assimo meu regresso antes do termodeterminado do meu exlio...

    TOAS: Desconheo a inteno dos deuses.Sei apenas que, desde que aqui chegaste,no faltaram bnos vindas do cu.

    Assim, custa-me acreditar que oferecia minha proteco a uma amaldioada.

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    IFIGNIA: das tuas aces justas que vm as bnos;no da minha presena.

    TOAS: Ento pe fim ao teu silncio, tua resistncia,se no um homem injusto que isso te pede.A deusa ps-te nas minhas mos: to sagradacomo s para ela tens sido para mim.Se tens ainda esperana de regressares a casa,liberto-te de todas as tuas obrigaes.No te estar, porm, o regresso vedado?No ter morrido toda a tua famlia,aniquilada por monstruosa desgraa?Assim sendo, serias minha por mais essa razo tambm.Fala pois abertamente.Serei fiel minha palavra.

    IFIGNIA: com relutncia que a lngua se soltade uma priso to antiga para revelarsegredo h muito silenciado. Ouve ento:sou descendente da raa de Tntalo.

    TOAS: Proferes to serena uma tal enormidade?Nomeias teu antepassado quem o mundoconhece como o homem mais honrado pelos deuses?Ele que se sentou mesa de Jpiter?

    IFIGNIA: Esse mesmo. Mas os deuses no deviam dar-secom homens como se estes fossem da raa deles.A raa humana demasiado fracapara no se desvanecer em vertigens

    l nos pncaros das alturas.Nobreza no faltou a Tntalo; traidor ele no foi.Mas para servo do deus era demasiado divino;e para amigo do deus demasiado humano.E humana foi a sua falta.Severo foi o castigo divino,que o precipitou da mesa de Jpiterpara as profundezas do inferno.E sobre todos os seus descendentes

    recaiu o dio dos deuses!Logo Plops, violento e ambicioso,

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    10filho amado de Tntalo,obteve atravs de carnificina e traioHipodamia, sua mulher,que lhe deu luz dois filhos,

    Tiestes e Atreu. Invejososobservam eles o amor do paipor um filho de casamento anterior;unidos no dio, assassinam o meio-irmo.O pai acusa Hipodamia de ser a assassina;e ela, desesperada, pe fim prpria vida.

    (pausa)

    TOAS: Ficas agora em silncio? No te arrependasda confiana que me demonstraste. Fala.

    IFIGNIA: Aps a morte do pai, Atreu e Tiestes regemjuntos a cidade. Mas a concrdia no pde durar.Em breve desonra Tiestes a cama do irmo.Vingativo, Atreu expulsa-o do reino;mas Tiestes, ardiloso, tinha j enganado o irmo,criando um dos filhos dele como se fosse seu.Enche o corao do jovem com dio contra Atreue mando-o de novo ao reino,para que no tio o prprio pai ele assassine.O plano descoberto e Atreu condena morteo jovem com atrozes sevcias,pensando ver morrer o filho do irmo.Demasiado tarde descobre quem o rapazque morre martirizado diante de seus olhos embriagados.Congemina ento vingana inaudita.Finge-se tranquilo e reconciliado

    e atrai de novo ao reino o irmo com os dois sobrinhos.Apodera-se dos rapazes, mata-ose oferece-os como refeio ao pai deles,no primeiro banquete aps a sua chegada.Depois de Tiestes se ter saciado com a sua prpria carne,sente de sbito uma tristeza saudosa.Pergunta pelos filhos; julga ouviros passos deles e as vozes porta da sala,quando Atreu, com um sorriso rasgado,

    lhe atira as cabeas e os ps dos assassinados.

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    11(Toas desvia o olhar)

    Desvias o teu olhar, rei. Tambm o sol nesse diadesviou o rosto e a quadriga do caminho eterno.

    So estes os antepassados da tua sacerdotisa.A noite cobre com as suas asas pesadaso destino desafortunado dos homens,deixando-os num crepsculo obscuro.

    (pausa)TOAS: Por que milagre nasceu algum

    como tu de raa to selvagem?

    IFIGNIA: O filho mais velho de Atreu foi Agammnon. meu pai. Sempre vi neleo exemplo mximo da perfeio.Fui a primeira a nascerdo amor dele e de Clitemnestra;depois nasceu Electra.Reinou a calma na casa de Tntalo.Mas faltava ainda, para completara felicidade dos pais,o nascimento de um filho varo,desejo que se cumpriucom o nascimento de Orestes,que cresceu feliz com as duas irms.Porm preparava-se jnova desgraa para a nossa casa.O rumor da guerrachegou aqui decerto aos vossos ouvidos:a guerra para vingar o rapto da mulher mais bela.E todo o poder dos prncipes da Grcia

    voltou-se para a conquista das muralhas de Tria.Se tal aconteceu, no sei.Meu pai comandou o exrcito.Em ulide ficaram retidos,esperando em vo ventos propcios.Pois Diana, irada, retinha os ventose exigiu atravs da boca dos adivinhosque no seu altar fosse eu sacrificada.Atraram-me ao engano com a minha me

    para o acampamento; arrastaram-mepara o altar e consagraram-me deusa.

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    12Mas Diana no queria o meu sangue:escondeu-me numa nuvem para me salvar.Quando voltei a mim, vi-me aqui neste templo.Sou eu, Ifignia, que te falo: filha de Agammnon,

    neta de Atreu, propriedade de Diana.

    TOAS: Mais estima e consideraodo que dei desconhecidano darei princesa.Renovo por isso a minha oferta:vem, acompanha-me e partilha tudo o que tenho.

    IFIGNIA: Como poderia eu, rei, dar passo tamanho?No ser a deusa, que me salvou,a nica a ter direito sobre a minha vida?Aprouve-lhe este refgio para me guardar,at que me possa reencontrar com o meu pai.No o castigou j a deusa sobejamentecom a aparncia da minha morte?Serei a consolao da velhice dele quem sabe se o regresso no est prximo?Seria vontade da deusa que eu aquificasse para sempre? rei,s um sinal da prpria deusame permitiria aqui permanecer.

    TOAS: Esse sinal est dado: o facto de aqui estares.No procures no teu desesperoexpedientes dessa laia.Respondes-me com palavras abundantes e vs,das quais eu oio apenas esta: no.

    IFIGNIA: No so palavras para te ofuscar;revelei-te o mais ntimo do meu sentir.E foste tu prprio a falar-me em temposda saudade que eu decerto haveria de sentirdos meus pais e dos meus irmos.Que no antigo palcio, onde no silncioo luto murmura ainda o meu nome,o jbilo coroe de novo as colunas!

    Por isso prepara uma nau e manda-me para a Grcia!D-me a mim e aos meus vida renovada!

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    TOAS: Regressa, se isso que queres!Faz o que te manda o corao!No ds ouvidos ao conselho avisado,

    razo! S mulher dos ps cabeae entrega-te compulsoque desenfreadamente te domina!

    IFIGNIA: Lembra-te, rei, do que me disseste anteriormente! assim que respondes minha confiana?Parecias preparado para me ouvires com calma...

    TOAS: Mas no preparado para ouvir o inesperado.Mas j devia ter contado com isso.No sabia eu que vinha falar com uma mulher?

    IFIGNIA: No sero gloriosas como as vossas,mas ignbeis no so tambm as armas da mulher.Acredita em mim:conheo melhor a tua venturado que tu prprio.

    Julgas que um lao mais estreitoentre ns nos trar a felicidade;por isso queres obrigar-mea submeter-me tua vontade.Mas eu dou graas aos deuses,que me do a fora de no aceitar esse jugo;que me probem de ceder ao que eles no consentem.

    TOAS: No so os deuses que te probem!(furioso) o teu prprio corao!

    IFIGNIA: atravs dele que os deuses nos falam.

    TOAS: E eu no tenho o direito de os ouvir?

    IFIGNIA: O turbilho dentro de tino te deixa ouvir voz to imperceptvel.

    TOAS: S a sacerdotisa, ao que parece, que a ouve.(sarcstico) Ou ser o privilgio herdado

    do lugar mesa de Jpiterque te coloca mais perto dos deuses

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    14do que um brbaro mortal?

    IFIGNIA: Assim me fazes arrepender-meda confiana que de mim exigiste?

    TOAS: No passo de um ser humano. melhor no falarmos mais disto.Queres permanecer sacerdotisa de Diana?Ento s sacerdotisa de Diana.Por tua causa j no continuareia impedir os antigos sacrifcios humanosque o meu povo com insistncia reclama.

    IFIGNIA: Ofende os deuses quem os julga(indignada) sedentos de sangue! Atribui-lhes

    apenas a sua prpria sanguinolncia.No te contei como a prpria deusame arrebatou do altar da imolao?O meu servio foi-lhe mais gratodo que a minha morte.

    TOAS: No nos compete a ns falsearcom explicaes fceis e movediaso sentido do antigo ritual sagrado.Cumpre o teu dever. Eu cumpro o meu.Tenho em meu poder dois estrangeiros,que foram encontrados escondidos numa gruta.Com eles receba de novo a deusao sacrifcio h tanto tempo adiado.Para aqui os mandarei.Sabes o que tens de fazer.

    (sai)

    Cena 4

    Ifignia, s

    IFIGNIA: Nuvens, salvadora, tens tupara esconderes e levares inocentesat aos lugares mais longnquos da terra.

    s sbia e conheces o futuro:o passado para ti no passou ainda.

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    15O teu olhar repousa sobre os que te pertencem,como a tua luz, que d vida s noites,repousa sobre a terra.Por isso mantm as minhas mos

    puras de sangue! Pois o sangueno traz benefcio nem descanso;e a imagem do assassinado voltapara assombrar durante longas horasquem com triste relutncia o assassinou.Os imortais amam a boa raa humana:sempre que possvel, do-lhe de bom gradoum pouco mais tempo de vida,para que tambm o homem possagozar da contemplao temporriada felicidade eterna dos deuses.

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    ACTO II

    Cena 1

    Orestes, Plades

    ORESTES: o caminho da morte que pisamos.A cada passo se adensa o silncio na minha alma.Quando pedi a Apolo que afastasse de mima presena constante dos espritos da vingana,pareceu prometer-me ajuda e salvaono templo de sua irm que rege a Turida.Que toda a desgraa encontre agora

    o seu termo no termo da minha vida.Fcil me ser despedir-me da luz do sol.No encontrei um fimcoroado de glria na batalha;sangrarei at morte como besta sacrificial,como fez meu pai. Assim seja.S me custa arrastar-te comigo, meu Plades;tu que foste o cmplice inocente da minha desgraa.Como me custa levar-te antes do tempo para a morte!

    A esperana que me restava era a tua vida.

    PLADES: No estou to resignado como tu, Orestes,a descer j para o reino das sombras.Nestes caminhos confusos em direco noite escura, na salvao das nossas vidas que penso,no penso na morte. Medito e escutose os deuses no nos abrem caminho fuga.A morte, quer a temamos ou no,

    chegar quando tiver de chegar.No prprio momento em que a sacerdotisaerguer a mo para nos cortar a madeixade cabelo consagrada ainda pensareiem como nos salvar. Levanta poisa tua alma dessa tristeza. Com as tuas dvidaspioras ainda mais o perigo. Apolo deu-nosa sua palavra: no templo de sua irmencontrarias a tua salvao. As palavrasdos deuses no admitem a ambiguidadeque no seu tormento lhes atribui o atormentado.

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    ORESTES: Foi a minha me que logo me cobriu a cabeacom o negro manto da vida e assim cresci,imagem fiel do rosto do meu pai; a maneira

    como olhava em silncio para ela e para o amantes lhe podia ser a mais amarga acusao.Muitas vezes me admirava das lgrimasde Electra, minha irm; depois ela contava-mehistrias do nosso pai como eu queria estar ao lado dele!Ora me desejava em Tria, ora o desejava em casa.Mas depois veio aquele dia...

    PLADES: Deixa que sobre esse dia falems entre si os espritos infernais!Que a recordao de tempos mais felizesnos conceda renovada forapara feitos hericos! Os deuses precisamde homens bons para os serviremnesta ampla terra. Contam contigo.No te deixaram acompanhar o teu pai,pois ele seguiu para a morte involuntariamente.

    ORESTES: Pudesse eu ter agarrado no manto delepara o seguir nesse caminho!

    PLADES: O que de mim seria, se tu no vivesses, coisa que no consigo pensar,pois desde a minha infncia por tie s por ti que vivo e quero viver.

    ORESTES: No me recordes esses dias to belos,quando a casa do teu pai me deu refgio

    e eu te tinha sempre minha volta:tal era o nimo que me davasque esquecia a minha tristezae deixava-me arrastar por tina pura alegria de viver.

    PLADES: Foi no momento em que te ameique comeou a minha vida.

    (beijam-se)

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    18ORESTES: Comeou a tua desgraa, devias dizer.

    O que me angustia no meu destino isto:como repudiado pestilento que sou,trago no corao a dor e a morte;

    basta-me chegar a stio so para logo verpor culpa minha no rosto antes alegreo sinal doloroso da morte lenta.

    PLADES: O primeiro a sofrer essa morte seria eu,Orestes, se o sopro da tua boca envenenasse.No me vs sempre cheio de nimo e de alegria?So o amor e a alegria a dar asas a grandes feitos!

    ORESTES: Grandes feitos? Lembro-me do tempoem que os vamos nossa frente!Quando tantas vezes seguamos juntosa caa por vales e montanhase espervamos defrontar salteadores!Depois noite nos sentvamosna praia, encostados um ao outro,deixando as ondas chegarem-nos aos ps.To amplo, to aberto nos parecia o mundo!Os feitos do futuro cintilavam por cima de nscomo astros incontveis na noite brilhante de estrelas.

    PLADES: Infindvel o trabalho que a alma nos exige.Por isso agradece aos deuses que j tantotenhas alcanado em to pouco tempo.

    ORESTES: Quando uma bela aco que eles oferecem ao homem,aco que lhe permite afastar a desgraa daqueles que ama,ento sim, fica-lhe bem agradecer. Mas a mim

    escolheram-me eles como carniceiro,como assassino da me que apesar de tudo honrava:vergonhosamente vinguei uma vergonhae por isso fui condenado por eles. Acredita,condenaram toda a casa de Tntalo:nem permitiram que eu, o ltimo,morresse livre de culpa.

    PLADES: Os deuses no fazem recair sobre os filhos

    os erros dos pais. Cada um tem um caminho prprioa seguir. a bno dos antepassados

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    19que herdada, no a sua culpa.

    ORESTES: Bno no me parece ser o que aqui nos traz.

    PLADES: Se outra coisa no for, a vontade dos deuses.

    ORESTES: Ento essa a vontade que nos destri.

    PLADES: Faz o que te foi ordenado e confia!Se levares daqui a irm de Apolo,e se ambos ficarem juntos em Delfos,venerados por um povo de nobres pensamentos,ser-te- favorvel o par divino.Sero eles a salvar-te das divindades subterrneas.Repara como neste recinto sagradonenhuma delas se atreve a entrar.

    ORESTES: Que da me advenha ao menos uma morte tranquila.

    PLADES: Vejo as coisas de outra maneira:consigo conciliar o que j foicom o que est para vir.Quem sabe se desde h muito no temvindo a amadurecer um grandioso plano divino?Diana deseja afastar-se desta terra brbarae dos seus sangrentos sacrifcios humanos.Para este feito hericofomos ns os escolhidos!

    ORESTES: Concilias com curioso artifcioos teus desejos com a vontade dos deuses.

    PLADES: Afinal o que a inteligncia humana,se no for a capacidade de escutarmosa vontade que nos chega l de cima?Um deus chama agora por um homem nobre,que muito errou, e d-lhe a cumpriraquilo que impossvel poderia parecer-nos;mas o verdadeiro heri triunfar.E ao mesmo tempo que se penitencia,serve os deuses e serve o mundo!

    ORESTES: Se a minha opo for viver,

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    20que um deus me afaste da testaa vertigem que me arrasta para a mortenum caminho manchado pelo sangue da minha me.Que ele seque essa fonte de sangue,

    que brota incessante,e que eternamente me conspurca.

    PLADES: Aumentas tu prprio a tua desgraae tomas sobre ti o papel das Frias.Deixa agora que eu pense por ti;fica tu sereno e tranquilo.O que nos serve agora a audcia e o engenho !

    ORESTES: Oio Ulisses a falar.

    PLADES: Cada um tem de escolhero heri que lhe convm, que o ajudarno seu caminho. No me pareceque a astcia envergonhequem precise, como ns,de socorrer-se de actos ousados.

    ORESTES: Admiro apenas a coragem e a verdade.

    PLADES: E por isso no procurei ouvir a tua opinio.Mas um passo ao menos j est dado.Dos guardas consegui tirar importantesinformaes. Sei que uma mulher estrangeira, dizem de aspecto divino , est presa nas malhasdeste culto sangrento. Venera os deusesde corao puro, apenas com oraes.

    Por todos admirada; pensam que descendeda raa das Amazonas e que se refugiou aqui,para escapar a uma terrvel desgraa.

    ORESTES: Uma mulher? Uma mulher no nos salvar.

    PLADES: Ventura a nossa que seja uma mulher!Um homem habituava-se depressa crueldade destes costumes e faria deles

    lei inquebrantvel, mesmo abominando-os.Agora uma mulher mantm-se fiel

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    21aos seus princpios: podes semprecontar com ela, nos bons e maus momentos.Silncio! Ela aproxima-se!Deixa-nos ss. No lhe vou revelar logo

    os nossos nomes, nem lhe porei j nas moso nosso destino. Vai, afasta-te!Falar-te-ei ainda, antes que ela fale contigo.

    Cena 2

    Ifignia, Plades

    IFIGNIA: Quem s tu, estrangeiro, e donde vens?Mais a um Grego te assemelho do que a um brbaro.

    (tira-lhe as correntes)

    Perigosa a liberdade que te ofereo.Afastem os deuses o que vos ameaa!

    PLADES: voz mais doce! tom bem-vindoda lngua materna em terra estrangeira!Vejo diante dos olhos as montanhas azuladasdo porto na terra do meu pai! Que esta alegriate assegure que tambm eu sou Grego!Diz-me, se uma maldio te no sela a boca,de que linhagem das nossas provns.

    IFIGNIA: a sacerdotisa, pela prpria deusa escolhidae consagrada, que te fala. Que isso te baste.

    Diz-me agora tu quem s e que triste destinopara aqui te mandou com o teu companheiro.

    PLADES: Ser fcil contar-te o mal que nos persegue.Pudesses tu dar-nos, divina, com a mesmafacilidade, o olhar feliz da esperana!Vimos de Creta, somos filhos de Adrasto.Sou eu o mais novo. Chamo-me Cfalo.Ele Laodamante, o primognito.

    Entre ns havia um terceiro irmo,cruel e selvagem: desde a nossa juventude

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    22que ele nos envenenava o amor fraternal.Acatmos as palavras de nossa me,enquanto o pai combatia em Tria.Mas quando regressou com ricos esplios,

    morrendo logo de seguida, depressa separouos irmos a luta pela herana e pelo reino.A minha preferncia foi sempre pelo primognito,que matou o nosso irmo. Por causa desse crime,persegue-o a Fria violentamente.Para esta costa inspita nos mandou Apolo,deus de Delfos, com esta esperana:havamos de esperar no tempo da irmo auxlio de mo abenoada.Fomos presos e trazidos para aqui,para te servirmos de vtimas. Mas isso tu sabes.

    IFIGNIA: Tria caiu? Confirma-me isso, caro homem.

    PLADES: Caiu. Mas tu, garante-nos a salvao!Precipita j o auxlio, que o deus nos prometeu!Apieda-te do meu irmo. D-lhe palavra amigvel.Porm poupa-o, quando falares com ele,pois tanto a felicidade como a dor o prostramfacilmente. Acomete-o um delrio febrile a sua alma, to bela e generosa,fica sujeita rapina das Frias.

    IFIGNIA: Por grandes que sejam os teus males,peo-te que os esqueas.D-me antes resposta.

    PLADES: A soberba cidade, que resistiu durante dez anos

    ao exrcito dos Gregos, est agora reduzida a cinzas.No renascer. E so muitos os tmulos dos nossosque l ficaram, que nos fazem sempre pensar nela.Aquiles ficou l enterrado, com o seu belo amigo.

    IFIGNIA: Ento sois p vs tambm, vs que reis deuses!

    PLADES: Palamedes e jax, filho de Tlamon:estes j no viram a luz da ptria.

    IFIGNIA: Ele no diz nada sobre o meu pai,

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    23no o nomeia entre os mortos.Ele ainda vive! V-lo-ei um dia!Mantm a esperana, meu corao!

    PLADES: Venturosos os que morreram aos milhares em Tria!Que encontraram a morte to amargamas to doce s mos dos inimigos!Pois aos que regressaram no foio triunfo que os esperou. No chegamaqui at vs notcias do mundo dos vivos?No sabes nada da dor que acometeu Micenas?No sabes que, no dia do seu regresso,Agammnon foi morto por Clitemnestra,sua mulher, com a ajuda de Egisto?

    (Ifignia vacila)

    Vejo que lutas em vo com a monstruosidadedesta notcia. No me leves a mal o que anunciei.

    IFIGNIA: Diz-me: como foi tal crime perpetrado?

    PLADES: No dia do regresso do rei. Depois do banho,pede mulher que lhe d a roupa;e esta atira-lhe sobre a cabeae os ombros uma rede inextricvel.Logo Egisto lhe desferiu o golpe mortal.

    IFIGNIA: Na esperana de que recompensa?

    PLADES: A recompensa era a cama da rainhae o reino, que alis j eram dele.

    IFIGNIA: Foi ento um prazer vergonhosoa dar origem a vergonhoso acto?

    PLADES: Pesou tambm uma vingana antiga:o rei sacrificara Ifignia, sua filha mais velha,no altar de Diana em ulide. Isto feznascer no peito de Clitemnestratal dio pelo marido que cedeu

    seduo de Egisto.

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    24IFIGNIA: No digas mais nada.

    Voltars a ver-me em breve.

    (sai)

    PLADES: O destino da casa real sensibilizou-aprofundamente. Deve ter conhecido o rei,seja ela l quem for. Agora, meu corao,mantm a calma e deixa-te guiar pelaestrela da esperana que diante de ns cintila!

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    TERCEIRO ACTO

    Cena 1

    Ifignia, Orestes

    IFIGNIA: Infeliz, solto-te os grilhes mas apenascomo penhor do sofrimento que est para vir.A liberdade que este santurio concede pressgio de morte, como quando o moribundovislumbra pela ltima vez a luz da vida.Pela minha parte, no consigo ainda

    compenetrar-me de que estais perdidos como poderia eu consagrar-vos mortecom mo assassina? A todos probo de vos tocar,enquanto eu for sacerdotisa de Diana.Recuso-me a cumprir o rito exigido pelo rei.Que escolha outra sacerdotisa para o meu lugar.Como eu gostaria de vos receber aquicom honra condigna, vs que me recordaiso herosmo que aprendi a venerar em minha casa!

    ORESTES: Ocultas-me o teu nome e a tua origem.Poderei saber quem como uma deusade mim se aproxima?

    IFIGNIA: Havers de conhecer-me. Mas agora diz-meo que ficou para dizer no me que disseo teu irmo. Fala-me de como morreramaqueles que, no regresso de Tria, foram recebidos

    na soleira das suas casas por duro e inesperado destino.Vim ainda jovem para estas margens mas lembro-me ainda do olhar tmidode admirao que lancei aos herisque partiam para Tria. Acima de todosme pareceu na altura Agammnon glorioso!Agora diz-me: morreu ao chegar a casa,por causa da perfdia da mulher e de Egisto?

    ORESTES: s tu a diz-lo.

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    26IFIGNIA: Ai de ti, desventurada Micenas!

    Assim semearam os descendentes de Tntalomaldio sobre maldio com mo cheia e demente!Revela-me agora o que ficou por dizer

    no discurso do teu irmo: que feitode Orestes? Como sobreviveu ao dia da matana?Vive ainda? Vive Electra, sua irm?

    ORESTES: Vivem ambos.

    IFIGNIA: luz dourada do sol, empresta-meos teus raios mais brilhantese depe-nos em gratidodiante do trono de Jpiter!

    ORESTES: Eras amiga da casa real de Micenas?Porm vejo que s sabes da morte de Agammnon.

    IFIGNIA: E no me d essa notcia tristeza suficiente?

    ORESTES: S ouviste metade da desgraa.

    IFIGNIA: Que temerei ainda? Orestes e Electra esto vivos.

    ORESTES: Nada receias quanto a Clitemnestra?

    IFIGNIA: Nem a esperana nem o receio a podem salvar.

    ORESTES: que tambm ela partiu desta vida.

    IFIGNIA: O remorso levou-a decerto a verter o prprio sangue.

    ORESTES: No, mas foi o sangue dela a dar-lhe a morte.

    IFIGNIA: Fala abertamente.

    ORESTES: Assim os deuses me escolherampara mensageiro de algoque eu desejaria ter escondidonas cavernas mudas e sombrias da noite!No dia em que morreu o pai, Electra

    escondeu e salvou o irmo. Estrfio,cunhado de seu pai, recebeu-o,

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    27criando-o com o seu prprio filho,Plades, que com o recm-chegadologo forjou belos laos de amizade.E, crescendo, cresceu-lhes na alma

    o desejo ardente de vingarem a morte do rei.Disfarados, chegam um dia a Micenas,trazendo a triste nova da morte de Orestese as suas cinzas. A rainha aceita receb-los.Entram no palcio e Orestes d-se a conhecer a Electra,que nele acende o fogo da vingana,que entretanto esmorecera graas presena venervel da me.Em silncio o conduz ao lugaronde o pai fora assassinado,lugar marcado por sangueque nenhuma gua conseguira levar.Descreveu-lhe com lngua de fogoo assassinato em todo o pormenor,sua vida de dor e de servido,a arrogncia dos traidores e os perigosque agora esperavam os irmos rfosda parte de uma me que se tornara madrasta.Deu-lhe o punhal que na casa de Tntalotantos males causara j.E, s mos do filho, Clitemnestra morreu.

    IFIGNIA: imortais, que na bem-aventurana viveiso dia puro por cima de nuvens que sempre se renovam!Dos homens me afastastes tantos anospara eu sentir mais tarde e com dor maioros horrores da minha casa?Mas tu, conta-me o que depois aconteceu

    ao desgraado. Fala-me de Orestes.

    ORESTES: Se ao menos fosse possvel falar da sua morte!Como ferveu o sangue da assassinada,como chamou o esprito da mepelas filhas antiqussimas filhas da noite:no deixem escapar o matricida!Persigam o traidor! Est nas vossas mos!Escutam-na as Frias. O seu olhar oco

    estende-se em redor com a rapina da guia.Agitam-se nos seus negros covis,

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    28e dos cantos rastejam os seus aclitos:a Dvida e o Remorso.De volta da cabea do culpado,permanece, eterna, a imagem do acontecido.

    E elas perseguem o fugitivo,s lhe dando trguas para mais o aterrorizarem.

    IFIGNIA: Infeliz, o teu caso igual ao dele,e o que ele sofre sentes tu tambm!

    ORESTES: Que dizes? De que caso falas?

    IFIGNIA: Sobre ti pesa um crime igual ao daquele.Foi o que me disse o teu irmo mais novo.

    ORESTES: No aguento mais enganar-te com falsas palavras.Que entre ns prevalea a verdade! Sou Orestes!Quem vs tua frente s procura a morte:em qualquer forma ela ser bem-vinda!Sejas tu quem fores, desejo para tie para meu amigo a salvao.Pareces estar aqui contra a tua vontade;por isso fugi ambos e deixai-me ficar.Ide vs para a Grcia;l recomeai uma vida nova.

    (afasta-se)

    IFIGNIA: Assim desces at mim, Promessa cumprida,filha mais bela do pai supremo!Como te mostras grandiosa minha frente!Mal alcano com o olhar as tuas mos,

    cheias de grinaldas, de frutos e de bnos!S vs, deuses, conheceis o amplo reino do futuro,quando, noite aps noite, brumas e astrosnos fecham o horizonte. Calmos,ouvis a nossa urgncia; mas a vossa mos colhe maduros os frutos dourados do cu!

    (Orestes aproxima-se de novo)

    ORESTES: Se invocas os deuses para ti e Plades,

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    29no profiras o meu nome.No salvas o infeliz a quem te juntas,s partilhas a sua maldio e a sua errncia.

    IFIGNIA: O meu destino est ligado ao teu.

    ORESTES: De modo algum! Quero ir s para os mortos.Ainda que com teu vu ocultes o culpado,no o escondes das deusas sempre vigilantes.A tua presena s as afasta; no as afugenta.Elas no podem pisar o cho sagrado deste bosque;mas oio ao longe o seu riso horrendo.Assim os lobos cercam as rvoresonde o viandante pensa ter encontrado refgio.Esto l fora; se eu sair do bosque,atacam-me logo, agitando as cabeas viperinas,acossaro a presa sua frente.

    IFIGNIA: Orestes, no queres ouvir uma palavra amiga?

    ORESTES: Guarda-a antes para um amigo dos deuses.

    IFIGNIA: Eles te do a luz de nova esperana.

    ORESTES: O que vejo atravs de fumos e vapores a luz cansada da entrada para o inferno.

    IFIGNIA: S tens uma irm? Electra apenas?

    ORESTES: Foi a nica que conheci; a mais velha teveum excelente destino, que achmos terrvel,mas que a livrou dos males da nossa casa.

    IFIGNIA: Meu querido Orestes, no consegues ouvir-me?Se te chama para o Hades o sangue derramadoda nossa me, no ouves ao mesmo tempoa palavra apaziguadora da tua irm?

    ORESTES: Queres tambm tu perder-me?Quem s tu, cuja vozme revolve o ser at ao fundo?

    IFIGNIA: Do fundo do corao me revelo:

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    30sou eu, Orestes! Sou Ifignia! Estou viva!

    ORESTES: Tu?

    IFIGNIA: Meu irmo!

    ORESTES: No, vai-te! No me toques,no te aproximes de mim!Deixa-me morrer, s, uma morte indigna.

    IFIGNIA: No morrers! Ouve-me!V como depois de tanto tempoo meu corao se abre felicidadede poder beijar a fronte do homemque no mundo para mim o mais amado!Orestes! Meu irmo!

    ORESTES: Afasta os braos do meu peito!Se por amor queres salvar um jovem,volta o teu esprito para o meu amigo,esse homem digno que anda ali a vaguearentre aqueles penhascos. Procura-o a ele.

    IFIGNIA: No condenes o jbilo puro da tua irm.Tens aqui a irm que tanto tempodeste por perdida. A deusa levou-medo altar de ulide e salvou-me para este templo.Como vtima sacrificial, encontrasna sacerdotisa a tua irm.

    ORESTES: Assista ento o solaos ltimos horrores da nossa casa!

    S falta aqui Electra, para morrer connosco!Est bem, sacerdotisa: para o altarte sigo. O fratricdio tradioda nossa famlia. Dou graas aos deusespor terem decidido dar-me fim.Mas ouve s o meu conselho:no ames tanto o sol e as estrelas.No chores. Tu no tens culpa.Desde a minha infncia que nada amei

    como a ti te podia ter amado, irm.Vamos! Brande esse ferro, no me poupes,

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    31rasga j este peito!

    (desmaia)

    IFIGNIA: Sozinha no suporto este sofrimento,nem esta felicidade. Onde estar Plades?

    (afasta-se procura de Plades)

    Cena 2

    (Orestes vem a si

    )

    ORESTES: Que murmrios so estes nas ramagens?Que sussurros ecoam daquela penumbra?Vm para ver quem chegou ao inferno?Vm em paz, velhos e novos, homense mulheres; como deuses se mostramestas sombras errantes. Sim,so eles, os meus antepassados!Em amvel conversa vai Atreucom Tiestes. Os rapazes brincam sua volta. Foi-se o dio entre vs?O rancor apagou-se como o sol?Ento serei bem-vindo e poderei

    juntar-me ao vosso cortejo festivo.Nobres avs, Orestes vos sada,ltimo homem sado deste tronco;ele colheu o que vs semeastese, amaldioado, a vs desceu.

    Mas todo o fardo aqui fica mais leve:acolhei-o tambm no vosso crculo!Presto-te honras, Atreu, e a ti, Tiestes!Aqui deixou de haver inimizades.Mostrai-me o pai que em toda a minha vidauma s vez vi. s tu, meu pai? Venscom a me, num abrao to ntimo?Se Clitemnestra te pode dar a mo,tambm Orestes se pode aproximar

    dela e dizer: aqui tens o teu filho!As boas-vindas me dai, e acolhei-me!

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    32Pareceis hesitantes. J vos ides?Que se passa?

    Cena 3

    Orestes, Ifignia, Plades

    ORESTES: Tambm vs j descestes a este reino?Sado-te, irm! Falta s Electra;um deus benevolente a far descerem breve ao mundo dos mortos.A ti, pobre amigo, s te lamento!

    IFIGNIA: Vs que no alto cu enviais aos homensa bela luz, dia e noite, e os mortosno podeis iluminar, salvai-nos,que, como vs, irmos somos tambm!Tu, Diana, amas o teu irmomais que tudo o que Cu e Terra oferecem,e voltas o teu rosto virginalem nostalgia para a sua luz eterna.No deixes que este irmose perca assim na escurido da loucura!E se a tua vontade, ao me acolheresneste lugar, se encontra j cumprida,liberta-o daquela maldiopara que seja este o dia da nossa fuga!

    PLADES: Reconheces-nos? Reconheces este bosque?Vs esta luz, que no alumia os mortos?Sentes o brao do amigo e da irm

    que, vivos, te apertam? Segura-tebem a ns. No somos sombras vs.Presta ateno, concentra-te e escuta!Cada momento precioso.

    ORESTES: Deixa que pela primeira vez, e livre,em teus braos sinta pura alegria!Vs, deuses, que com violncia flamejantecostumais romper as nuvens pesadas,

    e furaces despejais sobre a terra,para depois o novo sol se espelhar em mil reflexos

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    33nas gotas frescas das folhas renovadas,deixai tambm que nos braos da irme do amigo eu goze das vossas graas!Sinto que se desfaz a maldio.

    As Eumnides descem ao Trtaro:j as oio, trovejando ao longe,e fechando atrs de si as portas de ferro.Da terra sobe um perfume revigoranteque me convida a correr ao encontro da vida.

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    QUARTO ACTO

    Cena 1

    Ifignia, s

    IFIGNIA: Sempre que os deuses celestesnos destinam numerosas perturbaese nos preparam uma transio excrucianteda alegria para a dor e da dor para a alegria,fazem tambm nascer um amigo sereno,para que na hora da necessidadeesteja pronto para nos ajudar.

    Por isso abenoai, deuses,o nosso Plades, e tudoquanto ele possa empreender!A alma dele serenae salvaguarda esse sagrado bemque a paz.Agora foram para a praia,para porem em prtica o seu plano.Vo ficar espera do meu sinal na enseada escondida,

    onde deixaram o navio e os companheiros.Instruram-me sobre o que deverei dizerao rei quando ele me vier exigiro cumprimento do sacrifcio.Ai de mim! Amaldioo a mentira!Ela no liberta a alma, ao contrrio da verdade.No consola; apenas angustia quem a inventa. uma flecha que, depois de disparada,volta a atingir quem a disparou.

    Mas parece-me ouvir o barulho de armas...Aproxima-se o mensageiro do rei.Sinto o corao a bater... e a alma entristecida,por causa das falsidades que estou prestes a dizer.

    Cena 2

    Ifignia, Arcas

    ARCAS: Apressa o sacrifcio, sacerdotisa!

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    35O rei est espera; todo o povo est espera.

    IFIGNIA: Eu teria j cumprido o meu dever,se no tivesse surgido um contratempo

    a interpor-se entre mim e o sacrifcio.

    ARCAS: Que coisa essa, que frustra a vontade do rei?

    IFIGNIA: O acaso, coisa que no dominamos.

    ARCAS: Ento informa-me do que se passa,pois o rei decidiu j a morte de ambos.

    IFIGNIA: Essa morte no a decidiram ainda os deuses.O mais velho dos dois est maculadopela culpa da morte de um parente,cujo sangue ele verteu. Chega-nosperseguido pelas Frias e a sua presenaprofanou este santurio sagrado.Terei de descer at praiacom as minhas servidoraspara banhar a imagem da deusa,em secreto ritual de purificaoa que ningum poder assistir.

    ARCAS: Apresso-me a transmitir ao reia notcia deste impedimento.No ds incio cerimniasem a sua autorizao.

    IFIGNIA: Essa autorizao s sacerdotisa compete.

    ARCAS: Um caso assim to estranhotem de ser comunicado ao rei.

    IFIGNIA: A opinio dele no alterar a situao.

    ARCAS: Depressa lhe levarei a notciae de novo aqui estarei, rapidamente,para te dizer o que ele decidiu.Se ao menos fosse outra a mensagem

    a transmitir-lhe! No seguiste o meu conselho...

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    36IFIGNIA: Mais do que fiz no poderia ter feito.

    ARCAS: Ainda vais a tempo de mudar a tua deciso.

    IFIGNIA: Lamento, mas coisa que no est nas minhas mos.

    ARCAS: Arriscas tudo, assim to tranquila?

    IFIGNIA: Agora est tudo nas mos dos deuses.

    ARCAS: A salvao divina so os homens a traz-la.Digo e repito: est tudo nas tuas mos.Sabes to bem quanto eu que a ira do reia determinar a morte dos forasteiros.Nem as tropas se interessam jpor esses cruis e sangrentos sacrifcios.

    IFIGNIA: No me faas vacilar a alma.No me converters tua vontade.

    ARCAS: Pensa melhor enquanto tempo.

    IFIGNIA: Cansas-te com essa insistnciae a mim fazes-me sofrer. Deixa-me.

    ARCAS: justamente ao teu sofrimentoque peo ajuda! Mas direi ao reio que aqui se passou. E recorda tuna tua alma a forma nobre como elese comportou contigo,desde que aqui chegaste.

    Cena 3

    Ifignia s

    IFIGNIA: As palavras deste homem abalaram-me...Vieram abalar-me fora de tempo...Sinto medo, pavor.Nos braos tive o impossvel.

    J tinha a Turida atrs de mim...e agora a voz leal daquele homem

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    37veio despertar-me, veio lembrar-meque tambm aqui h seres humanosque deixarei ficar para trs...Dupla mentira!

    Acalma-te, minha alma!Desconheces o mundo;desconheces-te a ti prpria.

    Cena 4

    Ifignia, Plades

    PLADES: Quero dar-te sem demora a notciada nossa salvao. O teu irmo est curado!Fomos daqui juntos em carinhosa conversaem direco s rochas da praia;deixmos para trs o bosque sagrado,sem nos darmos conta disso.A beleza da juventude iluminava-lheo rosto, cada vez mais esplendorosa!Os olhos dele brilhavam de nimoe entregava-se de livre vontade alegria de salvar a sua salvadora,e de me salvar a mim tambm, seu amigo!

    IFIGNIA: Abenoado sejas! Que nunca da tua bocasaiam palavras de dor e de desespero!

    PLADES: Outras boas notcias trago ainda,pois a sorte nunca vem s.Encontrmos os nossos companheiros,

    que tinham escondido o navionuma enseada no meio das rochas.Estavam ali, tristes e desanimados.Quando viram o teu irmo, gritaramem tremendo regozijo, pedindo-lheque antecipasse a hora da partida.Apressemo-nos ento! Leva-me ao temploe deixa-me tocar o objecto sagradopor causa do qual aqui viemos.

    Acho que consigo levar sozinhoaos ombros o imagem da deusa.

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    38Como anseio por esse fardo to desejado!

    (avana para o templo, mas depois pra, vendo que Ifignia no o segue )

    Paras? Hesitas? Explica-me porque estsassim perturbada. Surgiu algum problemaque concorra contra a nossa boa fortuna?Fala! Mandaste dizer ao reiaquilo que combinmos?

    IFIGNIA: Mandei. Mas vais censurar-me;vejo j a censura na expresso do teu rosto.O rei mandou aqui Arcas, seu mensageiro,e contei-lhe tudo, tal como pretendias.Ele achou estranhas as minhas palavrase insistiu em comunicar primeiro ao reique estaria para decorrer uma inslita cerimnia;e que esta no podia ter lugarsem o consentimento do rei.Espero a qualquer momento o seu regresso.

    PLADES: Ai de ns! Mas porque no fizeste valera tua condio de sacerdotisa?

    IFIGNIA: Nunca dela me servi para me fazer valer.

    PLADES: Com isso, alma pura, te arrunase arrunas-nos a ns tambm!

    IFIGNIA: No podia ser de outra maneira.

    PLADES: Aumentou o perigo, mas no devemos fraquejar.

    Espera calmamente que volte o mensageiro.Diga o que disser, mantm-te firme.Pensa que a ordem para a cerimniacabe sacerdotisa e no ao rei.Se ele exigir ver o estrangeiroacometido pela loucura,diz-lhe que isso no possvel,pois ambos estamos guardadosno interior do templo. Isso ir permitir-nos

    roubar a esttua sagrada a este povo rude e selvagem.Apolo j cumpriu uma parte do que prometeu:

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    39Orestes est livre, est curado!

    IFIGNIA: Ouvindo-te, volta-se-me a almapara o doce consolo, como se me atingisse

    a luminosidade das tuas palavras!

    PLADES: Agora parto. Depois voltoa esperarei aqui, escondidonos arbustos, espera do teu sinal.Mas no que pensas agora?Vejo que de novo a frontese te obnubila...

    IFIGNIA: Perdoa-me! Como as nuvens passamleves frente do sol, tambm os medosme passam diante da alma...

    PLADES: No tenhas medo!

    IFIGNIA: Custa-me enganar e defraudaro rei que foi para mimum segundo pai...

    PLADES: Foges de quem pretende matar o teu irmo!

    IFIGNIA: Mas esse mesmo homem a mim s fez bem...

    PLADES: No te estars a mostrar ingrata.Obedeces apenas ao destino.

    IFIGNIA: Que o destino desculpe ento a minha ingratido.

    PLADES: V-se bem que tens vivido resguardada neste templo.A vida ensina-nos a ser menos exigentesconnosco e com os outros. Hs-de aprender isto.No nascemos para sermos juzes de ns mesmos.O nosso primeiro dever adaptarmo-nos mudanaexigida pelo caminho que percorremos nesta vida.Poucos so os que sabem o valor do que fizeram;e quase nunca sabem quanto vale o que fazem.

    IFIGNIA: Ests quase a convencer-me de que tens razo.

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    40PLADES: preciso persuaso, se no h escolha?

    S tens um caminho para salvares o teu irmo,para te salvares a ti e a mim. Ainda o pes em causa?

    IFIGNIA: Deixa-me vacilar! Tu prprio tambm nocometerias injustias contra um homema quem devesses inmeros favores.

    PLADES: Se Orestes e eu morrermos, espera-teum duro remorso, que te trar o desespero.V-se bem que no ests habituadaa sofrer perdas. Nem para evitar mal maiorarriscas a mentira!

    IFIGNIA: Tivesse eu um corao de homem,que se fecha to facilmentea tudo o que no lhe convm!

    PLADES: Tudo decide a mo de ferro da Necessidade.Qualquer gesto seu lei suprema.Os prprios deuses esto submetidos a ela.Ters de suportar o que ela te impe.Faz o que ela de ti exige. O resto j sabes.Voltarei em breve para receberda tua mo abenoadao selo da nossa salvao.

    Cena 5

    Ifignia, s

    IFIGNIA: Tenho de o seguir. Pois vejo quem amoem perigo terrvel. Pela minha parte,receio cada vez mais pelo meu prprio destino...No poderei salvar a esperana silenciosa,que fui alimentando nesta solido?Dominar-me- para sempre esta maldio?Se a minha famlia renascesse com bnos renovadas!Tirai-me tudo, ento! Se a felicidade

    e a fora vital acabam por esmorecer,no pode uma maldio esmorecer tambm?

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    41Esperei em vo, aqui retida,poder expiar um dia todas as maldies.Cai-me nos braos o irmo amadoe cura-se por milagre da loucura terrvel;

    vem ao meu encontro um naviopara me levar para a Grcia e logo o Destino atira sobre mimuma dupla ignomnia:roubar a imagem divina que me foi confiadae ludibriar o homem a quem devo a minha vida.Oio de novo o velho canto,o Canto das Parcas,que elas cantaram cruelmentequando da queda de Tntalo;canto que no bero ouvi minha ama:

    Que a raa humanatema os deuses!Seguram o poderem mos eternase podem exerc-loconforme lhes aprouver.

    Duplamente os temaquem os deuses elevam!Nos cumes, nas nuvens,h assentos preparados volta de mesas de ouro.

    Mas instalando-se o conflito,despenham-se os convidados,cobertos de vergonha,

    nas profundezas da noite;e aguardam em vo,acorrentados nas trevas,que sejam julgados com justia.

    Mas eles, os deuses,permanecem nas festas eternas,nas mesas douradas.Desta montanha

    mudam-se para aquela;porm dos fundos abismos

  • 7/31/2019 Ifigenia Goethe

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    42se eleva o soprodos Tits sufocadoscomo odor de sacrifcio:levssima neblina!

    Os deuses desviamseus olhos bem-aventuradosde raas inteiras;e evitam ver nos netosdos que outrora amaramos mudos traos falantesdos seus antepassados.

    Assim cantaram as Parcas.E o velho banido,nas cavernas nocturnas,ouviu os seus cantos;pensa nos filhos e nos netos.E abana a cabea.

  • 7/31/2019 Ifigenia Goethe

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    QUINTO ACTO

    Cena 1

    Toas, Arcas

    ARCAS: Confesso-me confuso. A tal ponto que no seipara onde dirigir a minha desconfiana.So os prisioneiros, que preparam a fugaem segredo? a sacerdotisa que os ajuda?Propaga-se o rumor de que o navio,que os trouxe a esta terra, est aindaescondido, algures nalguma enseada.A loucura daquele homem, o rito,

    o adiamento tudo isto aumentaainda mais a minha desconfiana!

    TOAS: Que depressa aqui se apresente a sacerdotisa!Depois ide vs, vede bem o que se passana praia, desde o promontrio ao bosque da deusa.Sem profanardes os recessos sagrados,armai a cilada e prendei-os da maneira que sabeis.

    Cena 2

    Toas, s

    TOAS: Terrvel se me alterna a ira no peito.Primeiro contra ela, que por to sagrada tinha;depois contra mim, pois eduquei-a para a traiocom a bondade e a complacncia que lhe demonstrei. escravido se habitua depressa o homem

    e aprende depressa a obedecerse de todo lhe tirarmos a liberdade.Devia ela ter cado nas mos dos meus antepassados!Ter-se-ia sentido felizpor se salvar a si prpriae teria aceitado com gratido o seu destino,fazendo correr sangue estrangeirodiante do altar; e obrigao teria chamado dever.Agora, a minha bondade faz nascer nelavoluntariosas ousadias em vo esperei lig-la a mim.Quer ela determinar o seu prprio destino!

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    44Com lisonjas conseguiu ela ganhar o meu corao.Como sente a minha oposio, procura agorarecorrer astcia e ao engano; e a minha bondadeparece-lhe um bem envelhecido e caduco.

    Cena 3

    Ifignia, Toas

    IFIGNIA: Chamaste por mim? O que te traz aqui at ns?

    TOAS: Adiaste o sacrifcio. Porqu?

    IFIGNIA: Expliquei tudo claramente a Arcas.

    TOAS: Quero ouvi-lo da tua boca.

    IFIGNIA: A deusa d-te um tempo de reflexo.

    TOAS: Tempo que tu prpria pareces requerer.

    IFIGNIA: Se empederniste o corao nessa cruel deciso,no devias ter vindo para aqui. Ao rei desumanono faltam servos que, mediante recompensa,aceitam tomar sobre si metade da culpa,enquanto ele prprio se mantm sem mancha.Decide a morte envolto numa nuvem impenetrvele logo os seus representantes a fazem recairsobre as pobres cabeas das vtimas.Mas o rei mantm-se acima da tempestade,um deus inatingvel, l nas alturas.

    TOAS: Que canto selvagem entoa hoje a boca santa!

    IFIGNIA: No a sacerdotisa que te fala,mas apenas a filha de Agammnon! palavra da mulher desconhecidadeste sempre honra e crdito; princesa queres agora dar ordens? No!Desde a minha infncia que aprendi a obedecer:primeiro aos meus pais, depois divindade.

    Senti sempre a minha alma mais livrequanto mais obedecia; mas h uma coisa

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    45a que nunca aprendi a obedecer,nem na Grcia nem aqui: palavra brutade um homem que fora me quer submeter.

    TOAS: uma lei antiga, no eu, que manda em ti.

    IFIGNIA: No nos sirvamos de leis que servemde armas s nossas paixes.A lei que me fala e que me levaa desobedecer-te outra: a lei segundo a qualtoda a vida humana sagrada.

    TOAS: Ao que parece, souberam os presosinsinuar-se no teu corao. Na tua comoo,no teu enternecimento, pareces ter esquecidoa lei bsica da prudncia humana:nunca se deve contrariar os poderosos.

    IFIGNIA: Quer eu fale, quer me mantenha silenciosa,sabes sempre o que me est na alma.Mas no te parece natural que a recordaode destino igual ao deles me incite compaixo?No tremi eu como vtima diante do altar?A morte prematura no cercou solenea pobre donzela que ali estava de joelhos?

    J o cutelo se erguia para me cortar a garganta,tudo se revolvia dentro de mim em terrore confuso... e depois de repente vi que estava salva.E no daremos ns a estes infelizeso que uma divindade benvola me deu a mim?Sabes quem sou, sabes o que sofri

    e queres forar-me a fazer este sacrifcio?

    TOAS: Obedece ao que te obriga a posio de sacerdotisa.

    IFIGNIA: Se o filho de Agammnon aqui estivessediante de ti, e se tu exigisses deleo que ele se recusava a dar-te,teria ele um brao forte e uma espada,para defender a sua integridade.

    Eu, como mulher, s tenho como armaa palavra; e compete ao homem nobre

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    46honrar as palavras de uma mulher.

    TOAS: Honro-as mais do que a espada de um irmo.

    IFIGNIA: Mas estarei eu desarmada tua frente?A bela splica, o gracioso ramo,a ambos tu rejeitaste! O que me resta,para defender o que me ntimo?Deverei pedir deusa que opere um milagre?No haver j fora nas profundezas da minha alma?

    TOAS: O destino destes estrangeirosprovoca-te preocupao exagerada.Quem so eles, diz-me,para assim te porem nessa agitao?

    IFIGNIA: So... parecem-me ser... julgo que so Gregos.

    TOAS: Teus conterrneos, portanto?E decerto te avivaram o desejode regressares tua ptria!

    (pausa)

    IFIGNIA: Ter s o homem o direito valentia?S cabe o impossvel no peito de um heri?O que a grandeza? Que faanhasinspiram a alma do poeta? S aquiloque o mais corajoso conseguiu com xito inesperado?S aquele que ataca de noite o exrcito do inimigoe mata silencioso os que esto a dormir,para depois lhes fugir com os cavalos?

    Ou s contam as faanhas daquelesque eliminam da face da terraraas inteiras, porque estas sodiferentes da dele? S isso conta? mulher delicada nenhum valor assenta?Mas fica sabendo que no meu peitose agita uma faanha ousada:de mim a sabers, porque ao dizer-teestarei a glorificar a verdade!

    Perguntas em vo pelos estrangeiros.Partiram daqui procura daqueles

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    47que na praia os esperam com o navio.O mais velho, a quem a loucura acometeu:esse Orestes, o meu irmo.O outro o seu companheiro,

    Plades, amigo amado desde a infncia.Apolo mandou-os para esta terra,para daqui roubarem a imagem da deusa.S assim se curaria Orestes, o matricida.Ponho o nosso destino nas tuas mos.Aos ltimos descendentes da casa de Tntalo,d o fim que entenderes e que te for legtimo dar.

    TOAS: Pensas que o rei brbaro escutara voz da humanidade que Atreu,o heleno, no ouviu?

    IFIGNIA: Todos a ouvem, nascidos sob qualquer cu;todos para quem a fonte da vida fluipura, sem impedimento ou censura.Que pensas tu agora, rei, fazer de mim?

    J que nos vais executar, mata-me primeiro!Agora que no h qualquer esperanade salvao, sinto o perigo horrendoem que lancei aqueles dois que tanto amo.Ai de mim. Pensar que os verei acorrentados minha frente! Como conseguirei despedir-medo meu irmo, que fui eu prpria a assassinar?Nunca mais poderei olh-lo nos olhos,nos olhos por mim to amados, desde que ele nasceu...

    TOAS: Portanto foi assim que te enganaramos impostores! Enredaram-te na teiadas suas mentiras a ti, presa fcil!

    IFIGNIA: Quis ser enganada. Eles so verdadeiros.Se vires que o no so, podes mandarexecut-los e podes banir-me a mimpara uma ilha deserta. Mas se de factoeste for o meu irmo amado, por quem esperoh tanto tempo, deixa-nos ir. Meu pai morreu.Foi a minha me que o matou. Ela morreu

    depois s mos do filho. A ltima esperanada linhagem de Atreu est nele. Deixa pois

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    49Pouca margem nos resta para a fuga.Vem depressa!

    TOAS: Na minha presena ningum se atreve

    a mostrar-se de espada desembainhada!

    (desembainha a espada)

    IFIGNIA: No profanai o santurio da deusacom sangue e carnificina!Mandai parar os homens!Ouvi a sacerdotisa, ouvi a irm!

    ORESTES: Quem este homem que nos ameaa?

    IFIGNIA: Honra nele o rei que foi para mim um pai!Perdoa-me, irmo. Mas o meu coraolevou-me a pr nas mos deleo nosso destino. Tudo lhe confessei.

    ORESTES: E est ele disposto a dar-nos pacificamente o regresso?

    IFIGNIA: A tua espada desembainhadaprobe-me qualquer resposta.

    (Orestes repe a espada)

    ORESTES: Fala ento. Como vs, estou atentos tuas palavras.

    Cena 5

    Os mesmos e Plades; depois Arcas. Ambos de espada na mo

    PLADES: No percais tempo! Os nossos lutamcom as foras derradeiras; esto quasea ser empurrados para o mar.Que dilogo de prncipes venho aqui encontrar?Ser esta a pessoa veneranda do rei?

    ARCAS: Com a tua serenidade habitual, rei,

    contemplas os inimigos. O atrevimentodeles ser em breve castigado.

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    50Os seus companheiros j cedeme o navio deles nosso. Bastauma ordem tua para irromper em chamas.

    TOAS: Ordena aos homens que faam trguas!No quero mais combates enquanto aqui conversamos.

    (Arcas sai)

    ORESTES: Aceito.

    (para Plades)

    Vai, querido amigo, e rene os nossos.Diz-lhes que esperem at que os deusesdecidam o desfecho dos nossos actos.

    (Plades sai)

    Cena 6

    Ifignia, Toas, Orestes

    IFIGNIA: Libertai-me da preocupao,antes de comeardes a falar.Temo a discrdia maligna,se tu, rei, no deres ouvidos reconciliao; e tu, meu irmo,no dominares o mpeto juvenil.

    TOAS: Domino a ira, como fica bem

    a um homem mais velho.Agora responde-me tu:como provas que s filho de Agammnone irmo dela?

    ORESTES: Est aqui a espada que lutoucontra os guerreiros de Tria.Tirei-a ao assassino de meu paie pedi aos deuses a coragem

    do grande rei que ele foi,assim como a benesse de uma morte mais digna.

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    51Escolhe tu, se quiseres, um dos nobresdo teu exrcito, para que com ele eu combata.

    TOAS: Os antigos costumes desta terra

    no consentem ao estrangeiro esse privilgio.

    ORESTES: Iniciemos ns ento esse novo costume!Todo o povo imitar o exemplo do rei.Deixa-me que lute pela liberdade,no s nossa, mas de todo o estrangeiroque de futuro aqui aportar.Se eu morrer, ter ficado o destino deletraado, imitao do meu.Se eu prevalecer, que no venhamais ningum a estas praiassem que encontre bom acolhimentoe a possibilidade de seguir o seu caminho.

    TOAS: No me pareces indigno dos antepassadosde que tanto vos orgulhais.No faltam soldados valentesno meu exrcito; mas apesar da minha idadeainda combato o inimigo! E estou dispostoa medir-me contigo.

    IFIGNIA: Para qu esta prova de sangue?Esquecei as espadas e pensai em mim,nas minhas lgrimas infinitasse um de vs matasse o outro.Estou segura, rei, de que ele Orestes.Na mo direita dele vs o sinalde trs estrelas. J no dia em que ele nasceu

    os adivinhos proclamaram que estavadestinado a feitos enormes. E reparana cicatriz por cima da sobrancelha:aconteceu quando Electra o deixou caire ele bateu com a testa numa trpode.E a semelhana com o meu pai?No ela a causa da alegriaque me enche a alma quandoolho para ele? No acreditas

    nestes sinais da minha certeza?

  • 7/31/2019 Ifigenia Goethe

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    52TOAS: Mesmo que eles afastassem a dvida,

    ainda assim teriam de ser as armasa decidir o desfecho. No vejo outra sada.No vieram eles para roubar a imagem da deusa?

    Como posso ser indiferente a uma coisa dessas?Os Gregos comprazem-se demais em roubaraos brbaros o ouro, os cavalos e as filhas.Mas nem sempre foi feliz o regresso a casacom o esplio...

    ORESTES: No ser a imagem da deusa a razodo nosso conflito, rei. Pois agoraentendo as palavras de Apolo;foi isto que ele me disse em Delfos:se trouxeres da costa da Turidapara a Grcia a irm, que est lcontrariada no templo, acaba-se a maldio.Pensmos que era Diana, a irm de Apolo:Mas eras tu, Ifignia! Soltaram-se os laose regressas aos teus. De te ver, curei-me.Por causa de ti, volto a fruir da luz do dia.Quanto a ti, rei, que a paz te entre na alma.No ponhas entrave purificaoda nossa casa! Retribui a Ifignia as benessesque ela te trouxe. A maior das glrias humanas superada pela verdade desta alma elevada!Prevalece no fim a confiana pura no homem nobre!

    TOAS: Ento ide.

    IFIGNIA: Mas no dessa maneira, meu rei!Sem a tua bno no me despeo de ti.

    No nos estejas a condenar ao exlio.Estimado como um pai foste tu para mim.Se um dia na Grcia o mais humildedos teus sbditos me trouxer aos ouvidosa voz desta terra, se eu discernir no mendigoo traje daqui, receb-lo-ei como um deus!Na cadeira que eu lhe der minha lareira,falar-me- de ti, das tuas boas aces,da tua bondade. Dos deuses recebers

    a justa recompensa! Agora digo-te adeus.E tu volta para mim o teu olhar

  • 7/31/2019 Ifigenia Goethe

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    53e d-nos uma palavra de amizadeneste momento da despedida!Mais suave ser o ventoa encher-nos as velas,

    mais ternas sero as lgrimasque das faces me escorrero!Adeus! D-me agora a tua mo.

    TOAS: Vivei na felicidade. Adeus.