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IGOR ASCARELLI CASTRO DE ANDRADE A RELAÇÃO ENTRE A CONSTITUIÇÃO DO LIBERALISMO POLÍTICO E AS DESIGUALDADES SOCIAIS E ECONOMICAS EM JOHN RAWLS: A QUESTÃO DO DIREITO A UM MÍNIMO SOCIAL E DO PRINCÍPIO DA DIFERENÇA COMO DIREITOS CONSTITUCIONAIS Brasília DF 2015

IGOR ASCARELLI CASTRO DE ANDRADE - core.ac.uk · Federal da Paraíba, do Centro Universitário de João Pessoa e da Universidade Federal de Minas Gerais que de algum modo contribuíram

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  • IGOR ASCARELLI CASTRO DE ANDRADE

    A RELAO ENTRE A CONSTITUIO DO LIBERALISMO POLTICO E

    AS DESIGUALDADES SOCIAIS E ECONOMICAS EM JOHN RAWLS: A

    QUESTO DO DIREITO A UM MNIMO SOCIAL E DO PRINCPIO DA

    DIFERENA COMO DIREITOS CONSTITUCIONAIS

    Braslia DF

    2015

  • 1

    IGOR ASCARELLI CASTRO DE ANDRADE

    A RELAO ENTRE A CONSTITUIO DO LIBERALISMO POLTICO E

    AS DESIGUALDADES SOCIAIS E ECONOMICAS EM JOHN RAWLS: A

    QUESTO DO DIREITO A UM MNIMO SOCIAL E DO PRINCPIO DA

    DIFERENA COMO DIREITOS CONSTITUCIONAIS

    Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em

    Direito, Estado e Constituio da Faculdade de

    Direito da Universidade de Braslia (UnB) como

    requisito final de concluso de curso e de obteno

    do ttulo de doutor.

    Professor orientador: Dr. Valcir Gassen

    Universidade de Braslia.

    Braslia DF

    2015

  • 2

    Tese de autoria de Igor Ascarelli Castro de Andrade intitulada A relao entre a constituio do

    liberalismo poltico e as desigualdades sociais e econmicas em John Rawls: a questo do

    direito a um mnimo social e do princpio da diferena como direitos constitucionais. Tese

    defendida e aprovada como requisito final de concluso do curso de Doutorado em Direito,

    Estado e Constituio do Programa de Ps-Graduao Stricto Sensu em Direito, Estado e

    Constituio da Universidade de Braslia. Banca examinadora:

    ___________________________________________________________________________

    Prof. Dr. Valcir Gassen FD/UnB Professor Orientador

    ___________________________________________________________________________

    Prof. Dr. Cludia Rosane Roesler FD/UnB Professor Examinador

    ___________________________________________________________________________

    Prof. Dr. Menelick de Carvalho Netto FD/UnB Professor Examinador

    ___________________________________________________________________________

    Prof. Dr. Marcos Aurlio Pereira Valado UCB Professor Examinador

    ___________________________________________________________________________

    Prof. Dr. Nviton de Oliveira Batista Guedes UniCEUB Professor Examinador

    ___________________________________________________________________________

    Prof. Dr. Juliano Zaiden Benvindo

    Coordenador do Programa de Ps-Graduao Stricto Sensu em Direito, Estado e Constituio

    Faculdade de Direito da Universidade de Braslia

    Braslia (DF), 09 de abril de 2015

    Faculdade de Direito da Universidade de Braslia Campus Universitrio Darcy Ribeiro, s/n Asa Norte

    CEP 70.719-970 Braslia Distrito Federal Brasil Tel. +55 (61) 3107-0713.

    UNIVERSIDADE DE BRASLIA

    FACULDADE DE DIREITO

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO STRICTO SENSU

    DOURORDO EM DIREITO, ESTADO E CONSTITUIO

  • 3

    A Maria de Lourdes Castro de Andrade, in memoriam.

    A Jos Ferreira de Andrade.

    A Andrezza Brando Barbosa.

  • 4

    AGRADECIMENTOS

    Agradeo a todos que direta ou indiretamente contriburam para a realizao desta tese.

    Primeiramente, agradeo a Deus, Autor da existncia. Agradeo de forma especial a

    minha me, Maria de Lourdes Castro de Andrade, e a meu pai, Jos Ferreira de

    Andrade, pelo amor e pela dedicao. Sou especialmente grato a Andrezza Brando

    Barbosa, esposa querida, lrio das Gerais, pelo amor e pelo apoio nos momentos

    difceis. Dirijo agradecimentos carinhosos a meus irmos Fernanda Ferreira de Andrade

    e Afonso ris Ferreira de Andrade e sua me, Maria Andrea Fernandes, pelo apoio de

    sempre e pelos momentos em famlia. Sou muito grato a D. Angelina Brando Barbosa

    e a Sr. Benedito Alves Barbosa pelo incentivo. Agradeo s famlias materna e paterna,

    bem como famlia de minha esposa. Sou imensamente grato ao professor Valcir

    Gassen pelos ensinamentos e pela confiana depositada neste seu orientando. Reitero

    meus agradecimentos CAPES [Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel

    Superior] pela bolsa de estudos, sem a qual esta tese no teria sido possvel. Agradeo

    aos professores do Programa de Ps-Graduao em Direito, Estado e Constituio da

    Faculdade de Direito da Universidade de Braslia, em especial aos professores Argemiro

    Cardoso Moreira Martins, Cludia Rosane Roesler, George Rodrigo Bandeira Galindo,

    Gilmar Ferreira Mendes, Juliano Zaiden Benvindo, Marcus Faro de Castro e Menelick

    de Carvalho Netto pelas aulas e pela convivncia salutar. Registro meus agradecimentos

    s servidoras e aos servidores da Universidade de Braslia. Registro tambm meus

    agradecimentos s professoras e professores, s servidoras e servidores da Universidade

    Federal da Paraba, do Centro Universitrio de Joo Pessoa e da Universidade Federal

    de Minas Gerais que de algum modo contriburam para a realizao deste percurso. Aos

    alunos e alunas, aos colegas e colegas, e aos amigos e amigas de todas as pocas, meus

    sinceros agradecimentos.

  • 5

    A base de um estado democrtico a liberdade; que,

    de acordo com a opinio comum dos homens, s pode

    ser usufruda em tal estado; essa eles afirmam ser a

    grande finalidade de toda democracia.

    (Aristteles, Poltica, Livro VI, Captulo II, 1317a 1317b)

  • 6

    RESUMO

    Trata-se de tese de doutorado em direito, estado e constituio. Faz uma relao entre

    filosofia e direito constitucional. Tem como objetivo geral estudar como uma

    constituio se relaciona com normas relevantes que estruturam a diviso dos nus e

    dos bnus da cooperao social no pensamento de John Rawls. Tem como objetivos

    especficos: apresentar a teoria da justia como equidade; descrever a constituio da

    justia como equidade; analisar a constituio do liberalismo poltico; apresentar o

    princpio da diferena e analisar o direito a um mnimo social como um direito inerente

    constituio. O problema consiste em saber por que o princpio da diferena no

    uma parte integrante dos elementos constitucionais essenciais do liberalismo poltico

    descrito por Rawls ao passo que o direito a um mnimo social parte integrante desses

    elementos. A hiptese a de que o princpio da diferena e o direito a um mnimo social

    possam ser considerados como elementos constitucionais essenciais do liberalismo

    poltico descrito por Rawls. Essa hiptese parece no ter sido suficientemente testada

    at o momento e as justificativas que a sustentam tambm parecem no serem

    suficientemente claras diante do contexto mais amplo das obras do autor. Emprega

    como tcnica de pesquisa a documentao indireta, isto , a documentao feita por

    meio da pesquisa documental (fontes primrias) e da pesquisa bibliogrfica (fontes

    secundrias), com nfase dada pesquisa documental. Em funo do objeto estudado,

    as fontes escritas por Rawls so consideradas fontes primrias, ao passo que as fontes

    escritas pelos autores a respeito de Rawls e as demais fontes so consideradas fontes

    secundrias. Em razo da preocupao com a preservao da complexidade do processo

    de interpretao, no h emprego de mtodos heursticos. A metodologia empregada a

    argumentao. Desse modo, o teste da hiptese de trabalho foi feito por meio de dois

    critrios: (1) o critrio da vinculao entre o direito a um mnimo social e o princpio da

    diferena e (2) o critrio de essencialidade, correspondente aos critrios da distino

    entre princpios que abrangem direitos e liberdades fundamentais e princpios

    concernentes s desigualdades sociais e econmicas. Com base nas descries da

    constituio da teoria original da justia como equidade e da constituio do liberalismo

    poltico descrito por Rawls, compreende-se por que os critrios da urgncia, da

    verificao, da concordncia e da diferena entre os papis da estrutura bsica no

    permitem a incluso do princpio da diferena como elemento constitucional essencial

    do liberalismo poltico. Ainda com base nessas descries, compreende-se por que o

    critrio de vinculao entre o direito a um mnimo social e o princpio da diferena

    mantm a plausibilidade de o princpio da diferena ser aceito por uma sociedade

    politicamente liberal como uma questo fundamental da razo pblica, mas no como

    um elemento constitucional essencial do liberalismo poltico. A hiptese de trabalho se

    confirma em parte. Em termos prticos, a confirmao parcial da hiptese significa a

    possiblidade de qualquer pessoa solicitar e receber do estado a remunerao

    correspondente ao mnimo social com fundamento constitucional, observado o critrio

    de razoabilidade do valor estabelecido e observado o direito de imigrao nos casos

    aplicveis, independentemente de o direito a um mnimo social constar por escrito na

    constituio.

    Palavras-chaves: constituio, mnimo social, princpio da diferena, liberalismo

    poltico, justia como equidade, John Rawls.

  • 7

    ABSTRACT

    It is a doctoral thesis in law, state, and constitution. It makes a relationship between

    philosophy and constitutional law. This doctoral thesis has as a general aim studying

    how a constitution is related to relevant norms framing the sharing of burdens and

    benefits of social cooperation in the thought of John Rawls. It has as particular aims

    introducing the theory of justice as fairness, describing the constitution in justice as

    fairness, analyzing the constitution in political liberalism, presenting the difference

    principle, and analyzing the right to a social minimum as a right inherent to the

    constitution. The problem is to know the reason why the difference principle is not a

    constitutional essential of political liberalism as described by Rawls, whilst the right to

    a social minimum is such an essential. The hypothesis is that the difference principle

    and the right to a social minimum can both be taken as constitutional essentials of

    political liberalism as described by Rawls. This hypothesis seem having been tested

    enough so far and the justifications holding it seem either not clear enough against the

    wider context of the authors works. It makes use as a research technique the indirect

    documentation, that is, the documentation made by documental research (primary

    sources) and by bibliographic research (secondary sources), with emphasis on

    documental research. Taking into consideration the subject matter, the sources written

    by Rawls are taken as primary sources, whilst the sources written by other authors on

    Rawls are taken as secondary sources. Due to the concern in preserving the complexity

    of the interpretation process, there is no use of heuristic methods. The methodology

    employed is argumentation. In this way, the test of the hypothesis was made by means

    of two criteria: (1) the criterion of the attachment between the right of a social minimum

    and the difference principle, and (2) the essentiality criterion, corresponding to the

    criteria of the distinction between the principles related to the basic rights and liberties

    and the principles related to the social and economic inequalities. Based on the account

    of the constitution in the original theory of justice as fairness and on the account of the

    constitution in political liberalism as described by Rawls, one understands why the

    criterions of urgency, of verifiability, of agreement, and of the difference between the

    roles of the basic structure do not allow the inclusion of the difference principle as a

    constitutional essential of political liberalism. Still based on these accounts, one

    understands why the criterion of the attachment between the right of a social minimum

    and the difference principle keeps the plausibility of the difference principle being

    accepted by a politically liberal society as a basic matter of public reason, but not as a

    constitutional essential of political liberalism. The hypothesis is in part confirmed. In

    practical terms, the partial confirmation of the hypothesis means the possibility of any

    person ask and receive from the state the revenue corresponding to the social minimum

    with constitutional ground, in accordance with the criterion of reasonableness of the

    established value and in accordance with the right of immigration in due cases, in spite

    of the right of a social minimum being written in the constitution.

    Key-words: constitution, social minimum, difference principle, political liberalism,

    justice as fairness, John Rawls.

  • 8

    SUMRIO

    INTRODUO .............................................................................................................. 10

    1. A concepo da justia como equidade ...................................................................... 29 1.1 Elucidando a denominao da teoria ........................................................................ 30 1.2 A constituio como parte da estrutura bsica da sociedade .................................... 32 1.3 Como os princpios que regem a estrutura bsica so acordados na posio original

    ........................................................................................................................................ 35 1.3.1 A forma intuitiva do raciocnio que leva aos dois princpios da justia ................ 36

    1.3.2 A forma sistemtica do raciocnio que leva aos dois princpios da justia: a

    analogia a ou a relao com a regra de escolha maximin em situao de incerteza ...... 45 1.4 A conveno constitucional: estgio seguinte escolha dos princpios de justia .. 54

    2 A constituio na justia como equidade .................................................................... 59 2.1 O procedimento justo: a noo de justia procedimental ......................................... 60 2.2 O critrio independente: a liberdade igual e sua prioridade ..................................... 66

    2.2.1 O conceito de liberdade ......................................................................................... 67 2.2.2 O conceito de liberdade igual ................................................................................ 68

    2.2.3 O fundamento da constituio: a prioridade da liberdade igual ............................ 75 2.2.3.1 Recordando a ideia intuitiva ............................................................................... 78 2.2.3.2 A razo da relativizao dos interesses no curso geral da civilizao................ 79

    2.2.3.3 A razo da liberdade de conscincia e de pensamento ....................................... 80 2.2.3.4 A razo do valor do bem primrio do autorrespeito ........................................... 84

    2.2.3.5 A razo da impossibilidade de estabilidade social por meio da igualdade

    econmica e social: razo de fundamento da constituio e razo adicional da diviso da

    estrutura bsica ............................................................................................................... 90

    2.2.4 A constituio e sua relao com as questes sociais e econmicas: a liberdade e o

    valor da liberdade ........................................................................................................... 94 2.2.5 A liberdade igual na constituio: a liberdade de participao ........................... 101 2.2.6 A liberdade de participao e o valor da liberdade de participao .................... 110

    2.3 Ainda o critrio independente: a provvel efetividade da constituio como inerente

    liberdade igual e participao igual ........................................................................ 116 2.4 A justia como equidade e sua teoria da constituio ............................................ 122

    3 A constituio no liberalismo poltico ....................................................................... 127 3.1 O problema estabilidade: um ponto de partida para o liberalismo poltico ............ 128

    3.2 As bases do liberalismo poltico ............................................................................. 143 3.2.1 O consenso por sobreposio ou consenso sobreposto [overlapping consensus] 152 3.2.2 A ideia de razo pblica ...................................................................................... 177

    3.3 Os elementos constitucionais essenciais do liberalismo poltico: uma descrio .. 188 3.4 A constituio do liberalismo poltico em comparao com a constituio da justia

    como equidade .............................................................................................................. 196 4 As questes de justia bsica e o mnimo social: enigma dos elementos essenciais da

    constituio ................................................................................................................... 202 4.1 O princpio da diferena e as demais questes de justia bsica em Rawls ........... 203 4.2 Primeira aproximao ............................................................................................. 203 4.3 Segunda aproximao ............................................................................................. 206 4.3.1 Interpretao da liberdade natural ....................................................................... 207 4.3.1.1 A eficincia ....................................................................................................... 208

  • 9

    4.3.1.2 Igualdade formal de oportunidade [la carrire ouverte aux talents]................ 216 4.3.1.3 A interpretao da liberdade natural quanto aos dois princpios ...................... 217 4.3.2 Interpretao da igualdade liberal........................................................................ 221 4.3.2.1 Igualdade equitativa de oportunidade [fair equality of opportunity] ................ 221 4.3.2.2 A interpretao da igualdade liberal quanto aos dois princpios ...................... 223

    4.3.3 Interpretao da aristocracia natural .................................................................... 226 4.3.3.1 O ideal aristocrtico .......................................................................................... 226 4.3.3.2 A interpretao da aristocracia natural quanto aos dois princpios .................. 230 4.3.4 Interpretao da igualdade democrtica .............................................................. 232 4.3.4.1 O princpio da diferena ................................................................................... 234 4.3.4.2 As contribuies marginais ao princpio da diferena: trs esquemas

    distributivos .................................................................................................................. 235 4.3.2.4.3 A relao entre o princpio da diferena e o princpio da eficincia ............. 237 4.3.4.4 O princpio da diferena como interpretao de para a vantagem de todos ou o

    sentido do princpio da diferena.................................................................................. 238 4.4 Terceira aproximao ............................................................................................. 246 4.4.1 Instituies de fundo da justia distributiva ou um arranjo institucional ideal e no

    vinculante que atende exemplificativamente ao segundo princpio ............................. 246 4.4.2 O princpio da poupana justa ............................................................................. 249

    4.4.3 A regra de prioridade e a enunciao final dos princpios da justia .................. 255 5. O direito a um mnimo social em Rawls .................................................................. 264 5.1. O mnimo social na justia como equidade ........................................................... 264

    5.1.1 O mnimo social como parte de um arranjo institucional .................................... 265 5.1.2 O mnimo social: instituio de fundo [background institution] de um arranjo

    institucional e atribuio do setor de transferncia ...................................................... 267 5.1.3 O nvel do valor do mnimo social ...................................................................... 286 5.1.4 O nvel do valor do mnimo social no curso civilizacional ................................. 291

    5.2 O mnimo social no liberalismo poltico ................................................................ 297

    5.2.1 O mnimo social e a ideia de elementos constitucionais essenciais .................... 300 5.2.2 Uma soluo aos dois enigmas dos elementos constitucionais essenciais .......... 307 5.3 O mnimo social como direito fundamental da constituio do liberalismo poltico

    ...................................................................................................................................... 325 CONCLUSO .............................................................................................................. 331 REFERNCIAS ........................................................................................................... 337

  • 10

    INTRODUO

    A concepo de constituio e a concepo de normas que estruturam a diviso de nus

    e bnus advindos da cooperao social so descritas, por vezes, por meio de uma

    terminologia especfica no pensamento de Rawls. Em sua descrio do liberalismo

    poltico1, a constituio analisada em termos de elementos constitucionais essenciais.

    Os elementos constitucionais essenciais do liberalismo poltico so normas que

    possuem funo inequivocamente constitucional. Eles so de dois tipos: (1) os

    elementos ou as normas que estabelecem a estrutura geral do Estado e do processo

    poltico e (2) os elementos ou as normas que estabelecem os direitos e liberdades

    fundamentais2. A constituio assim descrita parece estar de acordo com o que se espera

    do liberalismo poltico em sentido amplo e no parece suscitar nenhum interesse

    adicional seno o do conhecimento dos prprios componentes constitucionais

    indispensveis3.

    Entre os elementos constitucionais essenciais do liberalismo poltico descrito por Rawls,

    so estudados os que estabelecem direitos e liberdades fundamentais. Rawls procura

    descrever que normas so abarcadas e que normas no so abarcadas no conjunto dos

    direitos e liberdades fundamentais. Entre as normas no abarcadas, esto alguns

    princpios relativos s desigualdades sociais e econmicas. O liberalismo poltico no

    abarca entre os direitos e liberdades fundamentais, de acordo com essa descrio,

    princpios como o princpio da igualdade equitativa de oportunidades e o princpio da

    diferena, embora ele considere como essenciais o princpio da liberdade de

    movimento, o princpio da livre escolha de ocupao e um mnimo social relativo s

    necessidades bsicas dos cidados4.

    O no-pertencimento do princpio da diferena ao conjunto dos elementos que

    estabelecem direitos e liberdades fundamentais e o pertencimento de um direito a um

    1 John Rawls, 2005; id., 2000b.

    2 John Rawls, 2005, p. 227; id., 2000b, p. 277.

    3 O art. 16 da Dclaration des Droits de lHomme et du Citoyen [Declarao dos Direitos do Homem e do

    Cidado], uma das declaraes importantes do liberalismo poltico clssico, registra os elementos

    caracterizadores e indispensveis de uma constituio. Cf. Maurizio Fioravanti, 1999, p. 112. 4 John Rawls, 2005, p. 230; id., 2000b, p. 280.

  • 11

    mnimo social que abarque as necessidades bsicas dos cidados a esse mesmo conjunto

    chamam a ateno. O princpio da diferena faz parte de uma concepo de justia

    social representativa do liberalismo da segunda metade do sculo vinte e sua no-

    incluso na descrio do que ento se poderia compreender como liberalismo poderia

    ser visto como um problema da descrio. Essa interpretao possvel em funo de

    essa descrio do liberalismo poltico ser elaborada pelo mesmo autor da teoria da

    justia como equidade. Mesmo na reformulao da teoria da justia como equidade, o

    princpio da diferena no considerado como uma parte dos elementos constitucionais

    essenciais, embora o direito a um mnimo social que atenda s necessidades bsicas de

    todos os cidados continue sendo considerado como parte essencial da constituio

    liberal5.

    Em termos mais genricos, o problema que surge consiste em saber se h ou se no h,

    nisso, uma contradio. O problema abordado pode ser colocado em termos mais

    precisos e de forma mais analtica. A questo consiste em saber, com base nas

    justificativas6 oferecidas por Rawls em sua descrio do liberalismo poltico, por que o

    princpio da diferena no considerado como elemento constitucional essencial do

    liberalismo poltico descrito por ele e, em seguida, por que o direito a um mnimo social

    que atenda s necessidades bsicas das cidads e cidados poderia compor a concepo

    de direitos e liberdades fundamentais do liberalismo poltico descrito por Rawls. Em

    termos mais precisos e de forma mais sinttica, o problema consiste em saber por que o

    princpio da diferena no uma parte integrante dos elementos constitucionais

    essenciais do liberalismo poltico descrito por Rawls ao passo que o direito a um

    mnimo social parte integrante desses elementos.

    O modo de formulao do problema permite entrever a hiptese deste trabalho. A

    hiptese a de que o princpio da diferena e o direito a um mnimo social possam ser

    considerados como elementos constitucionais essenciais do liberalismo poltico descrito

    por Rawls. Faz-se necessrio observar que essa hiptese parece no ter sido

    suficientemente testada at o momento e que as justificativas que a sustentam tambm

    parecem no serem suficientemente claras diante do contexto mais amplo das obras do

    5 John Rawls, 2001, p. 48.

    6 John Rawls, 2005, p. 227-230; id., 2000b, p. 277-281.

  • 12

    autor. Primeiro, o autor apresenta justificativas contra a incluso do princpio da

    diferena e a favor da incluso do direito a um mnimo social entre os elementos

    constitucionais essenciais muito sucintamente7 em meio a um acervo de escritos que

    abrangem obras reconhecidas por ele mesmo como extensas e complexas8. Segundo,

    elas no encontram respaldo na soluo proposta por autores que estudam a questo

    constitucional em Rawls, como Lawrence Gene Sager9 e Frank Isaac Michelman

    10. Eles

    esto, possivelmente, entre os primeiros autores a debater sobre os elementos

    constitucionais essenciais; a relao entre o pensamento de Rawls e o direito parece ter

    sido debatida pela primeira vez por tericos da constituio e tericos do direito num

    simpsio realizado apenas poucos meses depois do falecimento do autor11

    . As

    colocaes de Sager e de Michelman certamente respaldam a colocao do problema. O

    teor da soluo proposta pode diferir do teor das solues que eles propem para essa

    questo e avanar na compreenso das razes apresentadas pelo autor.

    Em relao s expectativas que se possa ter sobre o contedo das pginas que se

    seguem, talvez seja necessrio fazer alguma considerao a respeito de sua

    caracterstica de tese. Uma tese pode ser definida como um documento que representa o

    resultado de um trabalho experimental ou de um estudo cientfico de tema nico e bem

    delimitado, que deve ser elaborado com base em investigao original, de forma que

    esse documento se constitua em contribuio real para sua especialidade12

    . Alm disso,

    a elaborao desse documento precisa ser orientada por um doutor e ser realizada com

    vistas obteno do ttulo de doutor ou de ttulo similar13

    . Sua caracterizao externa se

    relaciona, portanto, titulao do orientador e finalidade da realizao como tese, ao

    passo que sua caracterizao interna se relaciona a trs fatores: cientificidade do

    estudo, unicidade e delimitao do tema e originalidade de sua investigao, no

    sentido de que ela se constitua em contribuio real para sua especialidade. A

    cientificidade do estudo ser abordada ainda nesta introduo. A unicidade e a

    delimitao do tema parecem estar demonstradas por meio da especificidade do

    7 John Rawls, 2005, p. 227-230; id., 2000b, p. 277-281.

    8 John Rawls, 2001, p. xv-xvi. Rawls se refere a Uma teoria da justia [A theory of justice].

    9 Lawrence Gene Sager, 2004, p. 1421-1433.

    10 Frank Isaac Michelman, 2004, p. 1407-1420.

    11 William Michael Treanor, 2004, p. 1385-1386.

    12 Associao Brasileira de Normas Tcnicas, 2011, p. 4.

    13 Associao Brasileira de Normas Tcnicas, 2011, p. 4. Snia Vieira, 2001, p. 8.

  • 13

    problema. A questo, no momento, a de saber se este documento elaborado com

    base em uma investigao original, de forma que ele se constitua em contribuio real

    para sua especialidade.

    A originalidade de uma investigao nesses termos considerada um aspecto envolvido

    na definio de tese14

    . Isso pode ser mais bem compreendido por meio da recuperao

    da definio de dissertao. Uma dissertao pode ser definida como um documento

    que representa o resultado de um trabalho experimental ou de um estudo cientfico

    retrospectivo, que tem por objetivo reunir, analisar e interpretar informaes, no sentido

    de evidenciar o conhecimento de literatura existente sobre o assunto e a capacidade de

    sistematizao de seu autor15

    . Alm disso, a elaborao desse documento precisa ser

    orientada por um doutor e ser realizada com vistas obteno do ttulo de mestre pelo

    autor16

    . Uma dissertao tem uma contribuio a oferecer, mas essa contribuio

    consiste na sistematizao do conhecimento existente sobre determinado assunto. A

    dissertao tem uma finalidade retrospectiva. Uma tese faz uso do conhecimento

    existente e de sua sistematizao para, por assim dizer, dar um passo adiante, no sentido

    de apresentar um resultado que antes no era conhecido pela comunidade cientfica ou

    pela comunidade de estudiosos especializados. A tese tem uma finalidade prospectiva.

    Essa prospeco relativa: embora toda tese represente um real avano para o

    conhecimento, toda tese representa uma contribuio de alguma importncia

    prospectiva para os interessados no tema abordado por ela17

    . O teste da interpretao de

    que o princpio da diferena no possa ser considerado e de que o direito a um mnimo

    social possa ser considerado como um direito pertencente ao conjunto dos elementos

    constitucionais essenciais do liberalismo poltico descrito por Rawls pode ser visto

    como uma expresso de certa dimenso prospectiva entre as anlises de sua obra e

    entre os estudos sobre direito constitucional e filosofia do direito. Essa interpretao, se

    confirmada, no se pretenderia correta em detrimento das demais, mas ela possuiria

    14

    Umberto Eco, 2009, p. 2. Snia Viera, 2001, p. 12. A autora observa que uma tese tem trs

    caractersticas cumuladas. Ela deve ser original, importante e vivel. A originalidade se relaciona ao fato

    de ela tratar de um assunto no estudado e de ela ter capacidade para surpreender. A importncia se

    relaciona especialmente ao fato de ser considerada importante por quem tem importncia na rea de

    conhecimento respectiva. A viabilidade se relaciona aos prazos e aos recursos disponveis. 15

    Associao Brasileira de Normas Tcnicas, 2011, p. 2. 16

    Associao Brasileira de Normas Tcnicas, 2011, p. 2. 17

    Snia Viera, 2001, p. 99.

  • 14

    razes suficientemente bem estruturadas para torn-la plausvel entre as demais

    interpretaes.

    A caracterizao cientfica do estudo outro aspecto envolvido na definio de tese. A

    cincia pode ser entendida como um conjunto de atitudes e de atividades racionais que

    visam a um conhecimento sistemtico e limitado e cujos procedimentos e resultados so

    passveis de verificao18

    . Aquilo que a cincia pretende conhecer seu objeto de

    estudo. Como foi dito anteriormente, o objeto de estudo em questo a relao entre

    normas sociais e econmicas (o princpio da diferena e o direito a um mnimo social

    como pontos de interesse, embora a igualdade equitativa de oportunidade tambm seja

    abordada) e normas de direito fundamental (o segundo tipo de elementos constitucionais

    essenciais na definio de Rawls). No s o princpio da diferena e o direito a um

    mnimo social so linguagem, mas normas de direito fundamental so linguagem, assim

    como a relao entre eles linguagem. Este estudo tambm tem essa dimenso de

    linguagem. possvel entender a relao entre este estudo e seu objeto como uma

    relao lingustica. Sob essa ptica, possvel redefinir cincia como uma linguagem

    racional que visa ao conhecimento sistemtico e limitado de outra linguagem e cujos

    procedimentos e resultados so passveis de verificao. Nesse sentido, este estudo

    um estudo cientfico19

    .

    A definio de tese como um estudo cientfico e a redefiniao de cincia como uma

    linguagem relacionada a um conhecimento passvel de verificao formam uma

    combinao que, por um lado, pressupe a distino entre sujeito e objeto, e que, por

    outro lado, redefine a relao entre sujeito e objeto como relao lingustica. Isso suscita

    vrias discusses. A cincia redefinida em termos de linguagem envolve uma discusso

    sobre interpretao. Com efeito, toda forma de conhecimento envolve linguagem e

    linguagem envolve interpretao. A abordagem do objeto tem como pressuposto a

    relevncia da dimenso interpretativa do conhecimento. Em sendo um conhecimento

    18

    Alfonso Trujillo Ferrari, 1982, p. 2. Marina de Andrade Marconi; Eva Maria Lakatos, 2003, p. 80. 19

    Umberto Eco, 2009, p. 20-24. Umberto Eco observa que a cientificidade requerida para a

    caracterizao de uma tese interpretada em sentido amplo, compreendendo o fato de o estudo se voltar

    para um objeto reconhecvel pelos outros, dizer algo que ainda no foi dito ou rever sob uma ptica

    diferente o que j foi dito, ser til aos demais e fornecer elementos para a verificao das hipteses que

    apresenta. Esse sentido amplo permite a realizao de pesquisas sobre temas como a moral em Aristteles

    e como a conscincia de classe nos levantes camponeses na poca da reforma protestante.

  • 15

    interpretativo, a experincia envolvida no processo de estudo do objeto ultrapassa o

    controle da metodologia cientfica vista de forma heurstica20

    . Proceder interpretao

    do objeto estudado com base em verificaes heursticas um problema para todas as

    formas de conhecimento. O caso das cincias humanas e sociais, inclusive o da

    filosofia, no diferente. Ele conta com a caracterstica adicional, embora no

    exclusiva, de contiguidade entre sujeito e objeto: o objeto estudado referido ao

    sujeito21

    . Neste trabalho, o estudo da pertinncia do princpio da diferena e do direito a

    um mnimo social ao conjunto dos direitos e liberdades fundamentais do liberalismo

    poltico um estudo interpretativo. Seus enunciados possuem um compromisso com a

    verificao, mas ultrapassam-no, no sentido de que tm um compromisso com a

    preservao da complexidade da interpretao, evitando, assim, a adoo apriorstica de

    um mtodo especfico. Tambm desse modo, este texto certamente atende ao requisito

    de cientificidade de uma tese.

    Esse entendimento de cientificidade compatvel com a construo de uma tese como

    esta, que lida com conhecimento jurdico. A caracterstica predominantemente zettica22

    deste estudo deve ser vista como uma nfase da compreenso do fenmeno jurdico que

    no minimiza a importncia da dimenso dogmtica. Entender o conhecimento jurdico

    como uma relao entre zettica e dogmtica, com possibilidade de nfase em uma

    delas, reflete uma tendncia da produo do conhecimento. Trata-se de um

    aprofundamento da reaproximao entre conhecimento cientfico e conhecimento

    filosfico havido no incio do sculo vinte23

    e consolidado em termos de

    reconhecimento de sua interdependncia.

    20

    Hans-Georg Gadamer, 2002, p, 31-36 (1-5), especialmente p. 31. 21

    Wilhelm Dilthey, 1949, p. 13-21; id., 1968, p. 242-258. 22

    Trcio Sampaio Ferraz Jnior, 2007, p. 39-51. Cludia Rosane Roesler, 2004, p. 53-82. Theodor

    Viehweg elabora a distino entre zettica e dogmtica em 1968 num artigo intitulado Problemas

    sistmicos na dogmtica jurdica e na pesquisa jurdica [Systemprobleme in Rechstsdogmatik und

    Rechtsforschung] que pode ser encontrado na coletnea Filosofia do direito e teoria retrica do direito

    [Rechtsphilosophie und Rhetorische Rechtstheorie: Gesammelte Kleine Schriften]. Cf. Cludia Rosane

    Roesler, 2004, p. 53. 23

    Alfonso Trujillo Ferrari, 1982, p. 12-13. Com efeito, a teoria da relatividade foi uma das primeiras a

    suscitar essa reunio. Arrhenius observa, no inicio de seu discurso de apresentao de Albert Einstein

    como vencedor do Prmio Nobel de Fsica de 1921, que a teoria da relatividade pertence essencialmente

    epistemologia, parte da filosofia que estuda a possiblidade de conhecimento. Cf. Svante August

    Arrhenius, 1967.

  • 16

    Feitas as consideraes a respeito do problema, da hiptese trabalho e da caracterstica

    de tese deste trabalho, penso ser o momento de passarmos especificao do objeto

    estudado, dos objetivos e da metodologia. O objeto de estudo a relao entre normas

    sociais e econmicas (o princpio da diferena e o direito a um mnimo social) e normas

    de direito fundamental (o segundo tipo de elementos constitucionais essenciais na

    definio de Rawls). Em relao a esse objeto, o objetivo geral consiste em estudar

    como uma constituio se relaciona com normas relevantes que estruturam a diviso dos

    nus e dos bnus da cooperao social no pensamento de John Rawls. Procura-se

    estudar tanto a constituio do liberalismo poltico descrito por esse autor, quanto sua

    relao com uma das normas que organizam a diviso dos nus e bnus da cooperao

    social de acordo com sua teoria: o princpio da diferena e o direito a um mnimo social.

    Isso no significa nem que outros autores sejam no estudados com vistas a

    compreender essa descrio, nem que outras normas no sejam consideradas. Isso

    significa que outros autores e as demais normas so estudas com vistas a compreender a

    relao desse princpio com a constituio do liberalismo poltico interpretado nos

    termos de Rawls. Se, em termos gerais, o objetivo estudar a relao entre uma

    dimenso da constituio com uma dimenso da justia distributiva lato sensu no

    pensamento de Rawls, em termos especficos, os objetivos so apresentar a teoria da

    justia como equidade, descrever a constituio da justia como equidade; descrever a

    constituio do liberalismo poltico, analisar o princpio da diferena e estudar o direito

    a um mnimo social como um direito inerente constituio e testar, em meio a esses

    estudos, a possibilidade de que o princpio da diferena e o direito a um mnimo social

    sejam vistos como direitos fundamentais no liberalismo poltico.

    Surge, agora, a questo de saber que metodologia empregada na abordagem do objeto

    e na consecuo dos objetivos. A esse respeito, inicio dizendo que h uma preocupao

    com a preciso da linguagem em termos de verificao24

    , no obstante os conceitos

    terem sua preciso comprometida em funo de sua porosidade ou textura aberta25

    . H,

    igualmente, uma preocupao com a preservao da complexidade da interpretao,

    deixando-a livre do emprego de mtodos heursticos. A preocupao com a verificao

    24

    Alfonso Trujillo Ferrari, 1982, p. 29-31. A relao entre uma abordagem dialtica e uma preocupao

    com a linguagem no significa que se proceda dialtica do signo como encontrada em Mikhail Bakhtin,

    no obstante a importncia dessa perspectiva. Cf. Mikhail Bakhtin, 1997. 25

    Friedrich Waismann, 1945, p. 121.

  • 17

    perpassa todo o trabalho; o cuidado em no empregar mtodos heursticos tambm.

    preciso observar, no entanto, que a ausncia de mtodos heursticos no significa

    ausncia de mtodo. No h uso de um mtodo concebido aprioristicamente como

    conducente obteno da verdade, mas h uso de uma racionalidade que permite a

    obteno de um resultado plausvel diante dos dados do problema. A racionalidade que

    leva plausibilidade da hiptese , portanto, argumentativa.

    A hiptese de que o princpio da diferena e o direito a um mnimo social possam ser

    elementos constitucionais essenciais do liberalismo poltico pode ser testada com base

    nos expedientes empregados pelo prprio Rawls na concretizao institucional do

    princpio da diferena. Estruturo, assim, um argumento que pode ser mais bem

    entendido quando decomposto em duas partes. A primeira parte se refere enunciao

    completa do princpio da diferena na teoria da justia como equidade. O princpio da

    diferena enunciado por Rawls com a restrio do princpio da poupana justa. Com

    efeito, levando em conta o princpio da liberdade e o princpio da igualdade equitativa

    de oportunidades, Rawls afirma que desigualdades sociais e econmicas devem ser

    arranjadas de forma que elas sejam []: (a) para o maior benefcio dos menos

    favorecidos, em consistncia com o princpio da poupana justa [] 26

    . A discusso do

    princpio da poupana justa surge quando se indaga se um sistema social capaz de

    satisfazer os princpios da justia. A questo saber se as principais instituies sociais

    podem satisfazer, em especial, o princpio da diferena. A resposta de Rawls a de que

    isso depende do nvel fixado para o mnimo social. O nvel fixado para o mnimo social

    se liga, por sua vez, questo de se saber em que termos a gerao presente obrigada a

    respeitar as reivindicaes da gerao que lhe sucede. A aplicao do princpio da

    diferena envolve essa questo. Cada gerao tem no apenas o dever de preservar os

    ganhos da cultura e da civilizao, mas tambm o dever de poupar um valor adequado

    para a acumulao efetiva de capital real. Admitindo-se que exista um princpio justo de

    poupana que nos diga qual deve ser o montante desse investimento, chega-se

    determinao do nvel adequado do mnimo social. A aplicao do princpio da

    diferena exige a ideia de mnimo social. O princpio da diferena s poderia ser aceito

    26

    John Rawls, 1971, p. 302. John Rawls, 1999a, p. 266. Second Principle. Social and economic

    inequalities are to be arranged so that they are both: (a) to the greatest benefit of the least advantaged,

    consistent with the just savings principle, and (b) attached to offices and positions open to all under

    conditions of fair equality of opportunity.

  • 18

    se o ponto em que ele fosse fixado, levando-se em conta os salrios, pudesse maximizar

    as expectativas de quem viesse a se encontrar no grupo dos menos favorecidos27

    . Isso

    depende, novamente, do princpio da poupana justa.

    A segunda parte do argumento se refere enunciao de um dos direitos e liberdades

    fundamentais da constituio do liberalismo poltico: descrio de uma parte dos

    elementos constitucionais essenciais. Rawls distingue entre as normas integram e as

    normas que no integram os direitos e liberdades fundamentais do liberalismo poltico.

    Nesse processo, Rawls afirma que, [] embora um mnimo social que atenda s

    necessidades bsicas de todos os cidados seja tambm um [elemento] essencial, o que

    eu chamei de princpio da diferena mais exigente e no [um elemento essencial]

    28. A fixao do mnimo social, como mencionei, considerada por Rawls como

    dependendo da extenso do legado deixado de uma gerao a outra. Isso envolve fatores

    como a preservao e a promoo das instituies justas, dos bens da cultura e da

    civilizao e do capital real. O que se mostra de certo modo problemtico na enunciao

    do direito a um mnimo social na descrio do liberalismo poltico a dissociao entre

    seu estabelecimento e suas questes tpicas: o benefcio dos mais favorecidos

    condicionado ao benefcio dos menos favorecidos e o princpio da poupana justa entre

    geraes. Essa questo problemtica pelo menos do ponto de vista do arranjo

    institucional exemplificado na teoria da justia como equidade29

    . Sem essa dissociao

    no haveria como afirmar, pelo menos do ponto de vista do arranjo institucional

    sugerido na justia como equidade, que o princpio da diferena no pudesse fazer parte

    dos elementos constitucionais essenciais do liberalismo poltico. Com essa segunda

    parte do argumento, completo, assim, uma razo que poderia levar possibilidade de se

    sustentar que o princpio da diferena seja um elemento constitucional essencial. Esse

    argumento parece ser complexo, mas ele ser retomado mais adiante, no captulo

    terceiro.

    H, pelo menos, mais uma forma de testar da hiptese de trabalho. A indagao sobre a

    relao entre a constituio e as normas sobre desigualdade social e econmica na

    27

    John Rawls, 1971, p. 284-286. 28

    John Rawls, 2005, p. 228-229. John Rawls, 2000b, p. 279. Similarly, though a social minimum

    providing for the basic needs of all citizens is also an essential, what I have called the difference

    principle is more demanding and is not. 29

    John Rawls, 1971, p. 274-284; id., 1999a, p. 242-251.

  • 19

    justia como equidade, realizada no captulo segundo, e a indagao sobre os critrios

    de essencialidade constitucional na descrio do liberalismo poltico via a indagao

    sobre a distino entre princpios que abrangem direitos e liberdades bsicas ou

    fundamentais e princpios concernentes s desigualdades sociais e econmicas,

    realizada no captulo terceiro, tambm so meios argumentativos que apresento para

    testar a hiptese. A combinao das descries nos permite entender se h

    compatibilidade entre o liberalismo descrito por Rawls e sua teoria original da justia

    como equidade. Em outras palavras, se a constituio do liberalismo poltico comporta a

    constituio da justia como equidade original. Isso significa que os captulos que

    compem este trabalho seguem uma metodologia argumentativa.

    Ainda no mbito metodolgico, poder-se-ia indagar quais seriam os processos usados

    para a obteno dos dados necessrios ou quais seriam as tcnicas de pesquisa usadas

    com vistas realizao dos objetivos30

    . Em tendo caractersticas de pesquisa

    exploratria31

    , a obteno dos dados se processa por meio da documentao indireta,

    que a documentao feita por meio da pesquisa documental (fontes primrias) e da

    pesquisa bibliogrfica (fontes secundrias), embora seja dada nfase pesquisa

    documental. Em funo do objeto estudado, as fontes escritas por Rawls so

    consideradas fontes primrias, ao passo que as fontes escritas pelos autores a respeito de

    Rawls e as demais fontes so consideradas fontes secundrias32

    . A pesquisa documental

    e a pesquisa bibliogrfica so realizadas em livros, em artigos e em formas textuais

    disponveis nos mais variados locais como em bibliotecas e em bases de dados on-line.

    A obteno de dados por meio de documentao direta, como a obteno por meio de

    pesquisa de campo e de pesquisa de laboratrio, no faz sentido em funo do objeto e

    dos objetivos definidos. A documentao indireta, especialmente a pesquisa

    bibliogrfica, a tcnica que oferece os meios mais adequados para obter dados neste

    caso. A pesquisa bibliogrfica no consiste numa mera repetio do que j foi escrito:

    30

    Marina de Andrade Marconi; Eva Maria Lakatos, 2003, p. 174. 31

    Antnio Carlos Gil, 1991, p. 45-48. Com base em seus objetivos gerais, esse autor classifica as

    pesquisas em exploratrias, descritivas e explicativas. Este escrito realiza, nos termos de Gil, uma

    pesquisa exploratria, que aquela que tem como objetivo principal o aprimoramento de ideias ou a

    descoberta de intuies. Na maioria dos casos, a pesquisa exploratria assume a forma de pesquisa

    bibliogrfica, que a pesquisa desenvolvida exclusivamente com fontes bibliogrficas. por meio de

    pesquisas bibliogrficas que pesquisas sobre ideologias e pesquisas que analisam diversas posies

    relativas a um problema costumam ser realizadas. 32

    Umberto Eco, 2009, p. 35.

  • 20

    ela fornece os meios para o exame do problema sob uma perspectiva diferente e, desse

    modo, ela permite chegar a concluses relativamente novas33

    .

    Para que a estrutura da pesquisa esteja mais bem elucidada, resta saber se compensa

    realizar o esforo de seguir adiante34

    . H vrias razes que levam construo destas

    pginas. A importncia do pensamento de Rawls uma delas. O texto considerado

    como o mais importante do autor seu primeiro livro, intitulado Uma teoria da justia

    [A theory of justice]35

    . No obstante o fato de essa obra ter assumido uma dimenso

    referencial, a teoria da justia como equidade foi objeto de vrias crticas relevantes.

    Algumas delas levaram Rawls a realizar uma descrio do liberalismo poltico em seu

    segundo livro, intitulado Liberalismo poltico [Political liberalism]36

    . As crticas a

    sua teoria mais conhecida tambm suscitaram uma reelaborao da teoria da justia

    como equidade. Isso resultou na publicao de seu quarto livro: Justia como

    equidade: uma reformulao [Justice as fairness: a restatement] 37

    . Seu terceiro livro

    est menos vinculado s criticas dirigidas teoria da justia como equidade. Trata-se de

    uma concepo de justia voltada para o direito internacional, que foi publicada

    inicialmente como artigo e posteriormente como livro: O direito dos povos [The law

    of peoples] 38

    . A obra de Rawls torna-se completa quando se incluem seus artigos. Eles

    foram publicados em vrios peridicos especializados. Os considerados mais

    importantes pelo prprio Rawls foram reunidos e publicados no livro intitulado Artigos

    coletados [Collected papers] 39

    . Rawls ainda teve publicado seu curso sobre histria da

    filosofia moral, Leituras sobre a histria da filosofia moral [Lectures on the history of

    moral philosophy] 40

    , em vida, e seu curso sobre histria da filosofia poltica, Leituras

    sobre a histria da filosofia poltica [Lectures on the history of political philosophy] 41

    ,

    33

    Marina de Andrade Marconi; Eva Maria Lakatos, 2003, p. 183. 34

    Jos Augusto de Souza Peres, 1979, p. 15-21. Alfonso Trujillo Ferrari, 1982, p. 167-171. Marina de

    Andrade Marconi; Eva Maria Lakatos, 2003, p. 219-220. 35

    John Rawls, 1971; id., 1999a. O livro foi publicado originalmente em 1971 e foi reeditado com

    pequenas alteraes em 1999. No Brasil, h trs tradues: a primeira, de Vamireh Chacon publicada

    originalmente em 1976; a segunda, de Almiro Pisetta e de Lenita Maria Rimoli Esteves publicada

    originalmente em 1997; e a terceira, de Jussara Simes publicada originalmente em 2008. Cf.,

    respectivamente, John Rawls, 1981; id., 2000a; id., 2008. Em razo das dificuldades interpretativas

    inerentes ao processo de traduo, oriento-me ao longo da tese pelas duas edies em lngua inglesa. 36

    John Rawls, 2005. Primeira edio em 1993. Segunda edio em 1996. 37

    John Rawls, 2001. 38

    John Rawls, 1999b. 39

    John Rawls, 1999c. 40

    John Rawls, 2000c. 41

    John Rawls, 2007.

  • 21

    postumamente. O reconhecimento da caracterstica referencial do pensamento de Rawls

    feito por praticamente todos que trabalham com filosofia poltica e teoria da justia,

    independentemente do posicionamento crtico que se adote e independentemente das

    caractersticas do sistema poltico-jurdico com que se lide mais diretamente,

    especialmente em razo da teoria da justia como equidade42

    . Embora relacionado ao

    contexto cultural da sociedade norte-americana, o pensamento de Rawls pode contribuir

    para a reflexo filosfica e constitucional de sociedades as mais diversas. Como lembra

    Michel Rosenfeld, importa mais ao apelo de uma filosofia como a de Rawls a relevncia

    dos argumentos que ela prope do que a localizao dessa filosofia na tradio de uma

    comunidade poltica43

    .

    Em meio ao universo das obras de Rawls, o problema que procuro estudar se situa na

    relao entre a teoria da justia como equidade e a descrio do liberalismo poltico. Por

    meio da teoria da justia como equidade, Rawls realizou uma cesura na histria mais

    recente da filosofia prtica44

    . No obstante, objees foram dirigidas teoria. Ele

    acolheu vrias delas em sua descrio do liberalismo poltico45

    e em sua reafirmao da

    teoria da justia como equidade46

    . Com efeito, em sua reafirmao da teoria da justia

    como equidade, Rawls procura retificar as faltas relativas s ideias mais importantes em

    seu primeiro livro e conectar essa concepo de justia com as principais ideias

    encontradas em seus ensaios datados de 1974 em diante47

    . Como o princpio da

    diferena um dos pontos mais importantes da teoria da justia como equidade e como

    os elementos constitucionais essenciais so um dos pontos mais importantes da

    descrio do liberalismo poltico, nota-se que essas duas dimenses do objeto de estudo

    esto, com efeito, no cerne do pensamento do autor, ressalvada sua concepo de justia

    para o direito internacional. O princpio da diferena compe um dos dois princpios da

    teoria da justia como equidade, tanto a original, quanto a reafirmada, e os elementos

    constitucionais essenciais compem a ideia de razo pblica que, ao lado da ideia de

    42

    Robert Nozick, 2009, p. 228. Michael Walzer, 2003, p. xxii, p. 3-4, p. 17, p. 41. Gerald Allan Cohen,

    2008, p. 11-14. Simone Goyard-Fabre, 2006, p. 266-267. Otfried Hffe, 2006, p. 4. Amartya Sen, 2009,

    p. 8. Liam Murphy e Thomas Nagel, 2002, p. 4. Jrgen Habermas, 1997a, p. 65. Arthur Kaufmann, 2004,

    p. 37 e p. 260. Barbara Herman, 2005, p. xi. Will Kymlicka, 2002, p. viii. Sebastiano Maffettone;

    Salvatore Veca, 2005, p. xi. Luiz Paulo Rouanet, 2002, p. 7. Cecilia Caballero Lois, 2005, p. 25. 43

    Michel Rosenfeld, 2010, p. 90. 44

    Jrgen Habermas, 1997a, p. 65; id., 2002a, p. 61. 45

    Roberto Gargarella, 2008, p. 224. 46

    John Rawls, 2001. Em portugus: Justia como equidade: uma reformulao. 47

    John Rawls, 2001, p. xv.

  • 22

    consenso por sobreposio, uma das duas principais ideias do liberalismo poltico.

    Entre as razes que levam construo dessas pginas, a primeira delas , portanto, a

    importncia do objeto de estudo. Estas linhas tratam de questes centrais do pensamento

    de um autor que, por sua vez, representa um marco reconhecido para a filosofia prtica.

    A afirmao de que este estudo aborda aspectos centrais de um autor central em termos

    filosficos prticos tem o propsito de mostrar a importncia do objeto de estudo, mas

    isso no elide a adoo de uma atitude crtica perante o objeto. Penso ser importante

    fazer algumas consideraes a esse respeito. Por um lado, o objeto no considerado

    nestas pginas como dissociado do sujeito, mas como mantendo com o sujeito uma

    relao de referncia contgua48

    . Por outro lado, a atitude critica perante o objeto

    envolve tanto o estudo das razes que sustentam os pontos de concordncia, quanto o

    estudo das razes que sustentam os pontos de discordncia das ideias estudadas.

    Sustentar a hiptese de que pode haver razes suficientes para que se considere o

    princpio da diferena como um direito fundamental do liberalismo poltico certamente

    expressa essa atitude. Essa observao feita com o objetivo de colocar em evidncia a

    precauo deste trabalho de no ratificar passivamente a interpretao sustentada nos

    textos estudados e a de evitar estruturar a investigao em torno de pontos irrelevantes

    no contexto do pensamento do autor. Essas so precaues que devem ser tomadas

    quando o objeto de estudo o pensamento de um autor, uma vez que podem existir

    pontos de contato entre o pensamento do autor e o pensamento de quem o estuda. A

    suposio, em funo do que foi exposto, a de que essas precaues tenham sido

    tomadas.

    Continuando no mbito das razes que levam construo dessas pginas, cabe

    perguntar por que importante estudar a pertinncia ou a no pertinncia do princpio

    da diferena e do direito a um mnimo social ao conjunto dos elementos constitucionais

    essenciais, mais especificamente ao conjunto dos direitos e liberdades fundamentais.

    Trata-se da indagao a respeito da importncia de levar-se adiante o teste da hiptese

    levantada perante a dimenso problemtica do objeto. A importncia de testar a

    48

    Wilhelm Dilthey, 1949, p. 13-21; id., 1968, p. 242-258. Richard E. Palmer, 1969, p. 103-106; id., 2006,

    p. 110-113. Maria Helena Diniz, 1997, p. 24. Como observa Dilthey, o objeto de estudo das cincias

    humanas referido ao sujeito: o sujeito , em parte, o objeto que ele mesmo estuda, como dito

    anteriormente na frase referenciada pela nota n. 24.

  • 23

    possibilidade de pertencimento do princpio da diferena e do direito a um mnimo

    social ao conjunto das normas constitucionais relativas a direitos e liberdades

    fundamentais a segunda razo que leva a construo dessas pginas. H uma

    importncia terica e uma importncia prtica na realizao desse teste.

    A interpretao de Rawls de que o princpio da diferena no integra os elementos

    constitucionais essenciais do liberalismo pode ser considerada estranha para quem toma

    contato com os dois princpios da justia. O princpio da diferena compe os dois

    princpios da justia e est entre as principais asseres, se no for a principal assero,

    que notabilizam essa teoria. Considerando que o liberalismo poltico sustenta tanto a

    liberdade quanto a igualdade entre os indivduos e considerando que uma descrio

    sempre comporta uma interpretao, possvel supor que a descrio da constituio do

    liberalismo poltico feita por Rawls inclusse o princpio da diferena. Poder-se-ia

    esperar que os dois princpios fossem parte da constituio. A afirmao de Rawls em

    contrrio na descrio dos elementos constitucionais essenciais parece ser uma questo

    enigmtica49

    na relao entre as principais obras do pensamento de Rawls. Isso nos leva

    a afirmar a relevncia do teste da hiptese em termos tericos.

    O estudo da possibilidade de pertinncia do princpio da diferena e do direito a um

    mnimo social ao conjunto dos direitos e liberdades fundamentais coloca em suspenso

    vrias certezas normativas, ao mesmo tempo em que lana luzes sobre vrias questes

    jurdicas, polticas e administrativas. A definio desses princpios e direitos como

    pertencentes ou como no pertencentes ao conjunto dos direitos e liberdades

    fundamentais repercute nos processos de elaborao e interpretao da prpria

    constituio e de todos os estgios normativos infraconstitucionais. Alm disso, o teste

    dessa hiptese tem o efeito paralelo de lanar luzes sobre o modo como diversas

    questes sociais e econmicas so tratadas juridicamente. Acompanhar o desenrolar

    dessas questes nos faz refletir tanto sobre o significado da constituio, da liberdade e

    dos direitos polticos, como sobre as definies jurdicas da tributao, do oramento

    pblico, da propriedade, do salrio mnimo e de tantas outras questes sobre direitos e

    liberdades fundamentais e sobre as formas jurdico-institucionais de mitigao das

    desigualdades sociais e econmicas. Isso nos ajuda a avaliar as instituies que regem a

    49

    Frank Isaac Michelman, 2004, p. 1407-1420; Lawrence Gene Sager, 2004, p. 1421-1433.

  • 24

    distribuio dos nus e bnus da vida social em nosso meio, bem como as decises

    judiciais e as polticas pblicas efetivas. Com efeito, essas so questes que se

    relacionam tanto ao direito nacional como ao direito internacional50

    .

    Um caso talvez possa ilustrar melhor a importncia de uma discusso como essa. Uma

    questo sobre a qual o simples acompanhamento da discusso poderia lanar luzes a

    do Fundo de Participao dos Estados e do Distrito Federal (FPE). Uma parte do

    produto da arrecadao de dois dos impostos da Unio, o imposto sobre renda e

    proventos de qualquer natureza (IR) e o imposto sobre produtos industrializados (IPI),

    vinte e um inteiros e cinco dcimos por cento (21,5%) do produto da arrecadao desses

    impostos, devem ser destinados pela Unio ao Fundo de Participao dos Estados e do

    Distrito Federal (FPE) 51

    . A norma que rege o fundo determina que a repartio desse

    montante e de seus acessrios seja realizada da seguinte forma: oitenta e cinco por cento

    (85%) devem ser destinados s Unidades da Federao integrantes das regies Norte,

    Nordeste e Centro-Oeste e quinze por cento (15%) devem ser destinados s Unidades da

    Federao integrantes das regies Sul e Sudeste52

    . Ela determina, ainda, que os

    coeficientes individuais de participao dos Estados e do Distrito Federal no FPE so os

    constantes no Anexo nico que dela faz parte e que devem ser definidos critrios de

    rateio com base em censo demogrfico a ser realizado pela Fundao do Instituto

    Brasileiro de Geografia e Estatstica53

    . A repartio e os coeficientes individuais54

    foram

    declarados inconstitucionais sem pronncia de nulidade pelo Supremo Tribunal

    Federal55

    . No caso do FPE, a compreenso do alcance do princpio da diferena

    fornecer subsdios, ainda que de forma indireta, para se avaliar a justia dos critrios de

    repartio e dos critrios de fixao dos coeficientes individuais variveis a serem

    adotados. preciso considerar, contudo, que na teoria da justia como equidade, o

    princpio da diferena aparece em posio subordinada ao princpio da liberdade igual e

    ao princpio da igualdade equitativa de oportunidade, alm de ser condicionado pelo

    princpio da poupana justa e se relacionar com o direito a um mnimo social. Um

    50

    Entre os vrios exemplos no direito internacional est o problema da repartio das receitas tributrias

    entre estados em processo de integrao. Cf. Valcir Gassen, 2004. 51

    Brasil. Constituio da Repblica Federativa do Brasil, art. 159, I, a. 52

    Brasil. Lei Complementar n. 62, de 28 de dezembro de 1989, art. 2., I e II. 53

    Brasil. Lei Complementar n. 62, de 28 de dezembro de 1989, art. 2., 1. a 3.. 54

    Brasil. Lei Complementar n. 62, de 28 de dezembro de 1989, art. 2., I e II, 1. a 3.. 55

    Brasil. Supremo Tribunal Federal, Ao Direta de Inconstitucionalidade n. 875.

  • 25

    tribunal teria de estar atento a esse aspecto na aplicao do princpio, uma vez que ele

    no foi pensado para aplicaes fora dessa ordem serial, nem foi pensado para ser

    aplicado diretamente soluo de casos concretos. Esse um caso sobre o qual o

    acompanhamento da discusso terica pode lanar luzes, embora no necessariamente

    fornecer uma resposta definitiva.

    O pertencimento do direito a um mnimo social aos elementos constitucionais essenciais

    do liberalismo poltico tem vrias implicaes prticas. Esse pertencimento suscita a

    necessidade de sua efetivao jurdico-institucional permanente por meio da

    arrecadao tributria e da dotao oramentria. Alm disso, o pertencimento do

    mnimo social ao conjunto dos direitos e liberdade fundamentais abre a possibilidade de

    controle de constitucionalidade. O controle judicial de constitucionalidade passa a poder

    ser exercido sobre essa questo. No caso do controle concentrado de

    constitucionalidade, inequvoco que a natureza de direito fundamental do direito a um

    mnimo social torna a corte constitucional competente para deferir pedido de

    transferncia monetria relativa ao mnimo social independentemente da existncia de

    norma escrita sobre o mnimo social e de aparato institucional apto a efetiv-lo. No caso

    do controle difuso de constitucionalidade, igualmente inequvoco que qualquer juzo

    se torna em tese competente para deferir o pedido. A dificuldade no caso de norma

    constitucional no escrita de um estado federal est na determinao de qual ente

    federativo responsvel pelo pagamento. Diante da indefinio, presumvel que a

    competncia para o empenho do pagamento seja comum a todos os entes. Outra

    dificuldade no caso de norma no escrita est na determinao de seu valor. Essa

    questo dever ser abordada no decorrer deste escrito. Enfim, a constatao de que a

    natureza do direito a um mnimo social de direito fundamental inerentemente

    garantido pela constituio, isto , independentemente de previso escrita, nega que o

    mnimo social seja um ato de liberalidade, uma agenda partidria, uma poltica pblica

    provisria. Sua natureza de direito fundamental garantido pela constituio afirma sua

    relao com o status de cidadania igual e com todas as dimenses correlatas da

    cidadania igual. Isso significa que, na prtica, um direito fundamental deixa de ser

    usado como meio de negociao poltica no processo eleitoral. Certamente, h outros

    efeitos prticos do reconhecimento do direito a um mnimo social como direito

  • 26

    fundamental inerentemente garantido pela constituio, mas penso que esses so os

    mais importantes.

    J o hipottico pertencimento das normas relativas ao princpio da diferena aos

    elementos constitucionais essenciais do liberalismo poltico suscitaria a necessidade de

    essas normas serem aprovadas e modificadas pelo poder constituinte reformador, pelo

    menos nos sistemas jurdicos regidos por uma constituio escrita, somente por meio de

    qurum qualificado. Alm disso, seu pertencimento aos elementos constitucionais

    essenciais suscitaria o controle de constitucionalidade de todas as normas jurdicas que

    tenham efeito sobre a distribuio de renda e riqueza e sobre a distribuio equitativa de

    oportunidades. Um entendimento ntido sobre o princpio da diferena, sobre o princpio

    da poupana justa, sobre a igualdade equitativa de oportunidades poderia ser

    compartilhado por todos os poderes do estado e pelos cidados em sua compreenso dos

    mandamentos constitucionais e das demais normas jurdicas, bem como das polticas

    pblicas levadas a efeito. A distribuio de renda e riqueza e de postos de autoridade

    poderia ser debatida como uma questo de direito fundamental e a possibilidade de

    experimentao institucional nesse setor seria restrita.

    Como acabamos de ver, vrias podem ser as implicaes da discusso da relao entre o

    direito a um mnimo social, o princpio da diferena e a categoria de direitos

    fundamentais. A esse respeito, cabe fazer algumas observaes. Embora o pensamento

    de Rawls seja considerado bastante relevante na histria da filosofia prtica inclusive

    por seus crticos, como mencionado anteriormente, h controvrsia em relao

    natureza das solues por ele propostas para o problema da justia. H quem interprete

    essa controvrsia como dificuldade de coerncia, de plausibilidade e de validade56

    e h

    quem a interprete como resultado da atratividade da prpria teoria, no sentido de que

    uma teoria que exerce atratividade normalmente suscita objees57

    . Neste trabalho,

    estudo a oposio de uma objeo de coerncia entre partes importantes do pensamento

    desse autor. No obstante essa e outras as crticas que possam ser apropriadamente

    dirigidas sua obra, deve-se observar que ela est entre as que estabelecem, na transio

    do sculo vinte para o sculo vinte e um, as linhas em que passou a ser realizada a

    56

    Sebastiano Maffettone; Salvatore Veca, 2005, p. xi. 57

    Roberto Gargarella, 2008, p. xix-xx.

  • 27

    discusso sobre liberdade e igualdade em termos sociais e econmicos. Estudar a

    relao entre o direito a um mnimo social, o princpio da diferena e os direitos

    fundamentais no pensamento de Rawls uma forma de aproximar os estudos sobre

    liberdade e igualdade social e econmica dos estudos jurdicos. No se trata de

    defender uma nica leitura sobre direitos fundamentais ou sobre constituio com base

    em um autor. Trata-se de tentar contribuir para o avano da compreenso sobre direitos

    sociais e econmicos por meio do estudo de um autor que est fortemente relacionado a

    essas discusses fundamentais. Por meio deste estudo, talvez seja possvel conhecer

    melhor suas propostas. Isso certamente permite ampliar as possibilidades de soluo de

    questes poltico-jurdicas relacionadas a direitos sociais e econmicos fundamentais

    tanto sob a ptica desse autor, quanto sob a ptica de outros autores envolvidos na

    discusso. A delimitao da discusso em termos de princpio da diferena e uma parte

    dos elementos constitucionais essenciais um meio possivelmente mais produtivo de

    levar a discusso sobre direitos sociais e econmicos fundamentais adiante. A

    aproximao dos estudos sobre liberdade e igualdade social e econmica do meio

    jurdico mais uma razo, a terceira, que me conduz realizao deste trabalho.

    Em tendo sido feitas essas consideraes, talvez seja possvel afirmar que a estrutura da

    pesquisa est relativamente definida e justificada. Isso nos permite prosseguir em

    direo proposta de soluo do problema. S nos resta agora, em conformidade com

    os objetivos especficos, tratar da teoria da justia como equidade no primeiro captulo,

    da constituio da justia como equidade no segundo captulo, da constituio do

    liberalismo poltico descrito por Rawls no terceiro captulo, do princpio da diferena no

    quarto captulo e do direito a um mnimo social no quinto captulo. Essas descries

    possuem uma importante dimenso interpretativa e, em meio a elas, o teste da hiptese

    certamente nos levar a uma concluso.

  • 28

    CAPTULO I

  • 29

    1. A concepo da justia como equidade

    Uma das principais preocupaes da teoria da constituio saber o que torna

    tipicamente constitucional uma norma jurdica. Essa preocupao se justifica, uma vez

    que as normas constitucionais ocupam a posio principal ou superior em meio s

    demais normas jurdicas. A afirmao da relevncia superlativa da constituio uma

    elaborao histrica no linear associada a vrias concepes polticas58

    . Uma das

    principais concepes polticas associadas a essa afirmao o liberalismo poltico.

    Desde seu surgimento, o liberalismo poltico interpretado por seus prprios tericos de

    diversas maneiras. Entre elas, est a interpretao realizada por John Rawls. As

    implicaes dessa interpretao para a teoria da constituio precisam ser mais bem

    compreendidas.

    Inicialmente, Rawls aborda a constituio na fase em que seus estudos se voltam para a

    elaborao da teoria da justia como equidade. Poder-se-ia pensar que, nesse momento,

    Rawls no discute o liberalismo poltico. Essa suposio tem razo de ser em parte.

    verdade que Rawls faz distino entre a justia como equidade e o liberalismo

    poltico59

    . preciso observar, no entanto, que a justia como equidade uma

    interpretao do liberalismo poltico. Para Rawls, portanto, h a justia com equidade

    [justice as fairness], que uma interpretao do liberalismo poltico entre tantas outras

    interpretaes, e h o liberalismo poltico propriamente dito [political liberalism].

    Portanto, a constituio abordada inicialmente por Rawls em meio a uma interpretao

    do liberalismo poltico, a interpretao fornecida pela teoria da justia como equidade.

    Neste captulo, a questo que se coloca a de saber como Rawls descreve a justia

    como equidade. Uma das primeiras questes a resolver, por conseguinte, sobre o que

    a teoria da justia como equidade. Procurarei fazer isso de forma introdutria e

    mantendo em mente o objetivo de elucidar a relao entre ela e a questo constitucional.

    Uma forma inicial de resolver a questo sobre o que a teoria da justia como equidade

    elucidando a denominao da teoria: justia como equidade.

    58

    Mauro Capelletti, 1992. Maurizio Fioravanti, 1999. 59

    John Rawls, 2005, p. xviii, p. xxix, p. 7.

  • 30

    1.1 Elucidando a denominao da teoria

    A denominao da teoria veicula uma de suas principais caractersticas: a de que ela

    uma teoria da justia que emprega o mtodo contratualista. A teoria da justia elaborada

    por Rawls , como ele mesmo diz60

    , uma concepo de justia cujas bases esto na

    teoria do contrato social tal como ela encontrada em autores como Locke, Rousseau e

    Kant61

    . H, no entanto, distines no contrato social proposto por Rawls. Entre elas est

    o fato de que ele no concebe o contrato social como o contrato que estabelece uma

    forma de governo especfica ou uma sociedade especfica. O objeto do contrato no

    nem um nem outro. Rawls concebe um acordo original que estabelece princpios da

    justia para a estrutura bsica da sociedade [the basic structure of society] 62

    . Os

    princpios de justia, esses so os objetos ou, metonimicamente, o objeto do contrato

    social ou do acordo original. O objeto do contrato so princpios da justia de que

    devem resultar todos os demais acordos sociais. Rawls eleva, assim, a conhecida teoria

    do contrato social a um nvel mais alto de abstrao63

    , j que ela trata no desta ou

    daquela forma de governo ou desta ou daquele tipo de cooperao social, mas de

    princpios de justia para qualquer forma de governo ou para qualquer forma de

    cooperao social.

    Outra distino est na caracterizao do que ele chama de posio original [original

    position]. A posio original corresponde ao estado de natureza da tradicional teoria do

    contrato social. Essa uma situao puramente hipottica e no , evidentemente, vista

    como uma situao histrica real e muito menos, diz Rawls, como uma condio

    primitiva da cultura64

    . Tambm Kant concebia o acordo original como puramente

    60

    John Rawls, 1971, p. 11; id., 1999a, p. 10. 61

    Rawls observa que o contratualismo em questo est em John Locke, Segundo tratado do governo

    [Second treatise of government] [1689]; em Jean-Jacques Rousseau, Do contrato social ou princpios do

    direito poltico [Du contract social ou principes du droit politique] [1762]; e em Immanuel Kant,

    comenando por Fundamentao metafsica dos costumes [Grundlegung zur Metaphysik der Sitten]

    [1785]. A respeito de Leviat ou o problema, a forma e o poder de uma comunidade eclesistica e civil

    [Leviathan or the matter, form, and power of a commonwealth ecclesiastical and civil] de Thomas

    Hobbes [1651], Rawls afirma que, por toda sua grandiosidade, essa obra levanta problemas especiais.

    Cf. John Rawls, 1971, p. 11; id., 1999a, p. 11; nota 4. 62

    John Rawls, 1971, p. 11; id., 1999a, p. 10. 63

    John Rawls, 1971, p. 11; id., 1999a, p. 10. 64

    John Rawls, 1971, p. 12, p. 120; id., 1999a, p. 11, p. 104.

  • 31

    hipottico e, nisso, sua teoria converge com a clssica teoria do contrato social65

    . Uma

    caracterstica distintiva da posio original est no modo como as partes so pensadas.

    As partes so pensadas como racionais e mutuamente desinteressadas66

    . Rawls observa

    que isso no significa que as partes sejam egostas, isto , indivduos com apenas

    certos tipos de interesses, digamos em riqueza, prestgio e dominao 67

    . No entanto,

    observa Rawls, elas so concebidas como no tendo interesse nos interesses uns dos

    outros, de sorte que mesmo as finalidades espirituais das partes podem ser opostas, isto

    , mesmo as finalidades daqueles com diferentes religies podem ser contrrias entre

    si68

    . Ainda quanto s partes, Rawls assume que elas so pessoas morais, isto , so

    pessoas racionais capazes de um senso de justia69

    .

    Alm dessas caractersticas das partes, a distino certamente mais marcante da posio

    original est no que Rawls chama de vu da ignorncia [veil of ignorance]. As partes

    escolhem os princpios da justia sob o vu da ignorncia. Isso significa que, embora

    todas sejam capazes de um senso de justia, na posio original, ningum conhece suas

    circunstncias sociais, ningum conhece suas circunstncias naturais, ningum sabe

    sequer quais so suas concepes do bem, isto , quais so as finalidades pessoais que

    elas pretendem atingir na vida ou mesmo quais so suas propenses psicolgicas

    especiais70

    . O vu da ignorncia garante que ningum seja favorecido ou desfavorecido

    na escolha dos princpios da justia em razo quer de circunstncias sociais, quer de

    circunstncias naturais. Ele garante que os princpios da justia possam ser escolhidos

    como resultado do equilbrio entre as partes e de uma situao de imparcialidade.

    H pouco, eu disse que a constituio abordada por Rawls inicialmente em meio a

    uma interpretao do liberalismo poltico, a interpretao da teoria da justia como

    equidade, e que uma das primeiras questes a resolver, portanto, era sobre que teoria

    essa. Como ela composta de vrias partes, o que requer sua explicao gradual, eu

    acabei optando por comear por sua denominao. Com efeito, a denominao da teoria

    65

    John Rawls, 1971, p. 12; id., 1999a, p. 11. 66

    John Rawls, 1971, p. 13; id., 1999a, p. 12. 67

    John Rawls, 1971, p. 13; id., 1999a, p. 12. This does not mean that the parties are egoists, that is,

    individuals with only certain kinds of interest, say wealth, prestige, and domination. 68

    John Rawls, 1971, p. 14; id., 1999a, p. 12. But they are conceived as not taking an interest in one

    anothers interests. 69

    John Rawls, 1971, p. 11; id., 1999a, p. 12. 70

    John Rawls, 1971, p. 12; id., 1999a, p. 11.

  • 32

    da justia de Rawls veicula uma de suas principais caractersticas, a de que ela uma

    teoria contratualista. Toda teoria contratualista se compe de pelo menos duas partes.

    Uma descreve uma situao inicial da qual surge o contrato: isso envolve o problema da

    escolha que se coloca ali. A outra descreve o acordo a que se chegou: os princpios

    resultantes. O acordo, evidentemente, decorre da situao inicial. Como vimos, a

    situao inicial do contratualismo de Rawls, a posio original, interpretada de modo a

    permitir que princpios de justia aplicveis a qualquer sociedade ou a qualquer forma

    de governo sejam elaborados de forma racional, consensual, mutuamente desinteressada

    e sob o vu da ignorncia. Os princpios de justia escolhidos dessa forma,

    especialmente em razo do vu da ignorncia, so resultantes de uma deciso entre

    partes imparciais em suas convices, simtricas nas relaes recprocas e nas relaes

    do todos com cada um, no propriamente porque elas se dizem ser assim, mas porque a

    situao em que elas se encontram as torna assim. Os princpios da justia escolhidos

    dessa maneira resultam, portanto, de uma situao equitativa71

    : a teoria da justia como

    equidade [justice as fairness] a teoria que descreve princpios de justia resultantes de

    uma deciso consensual tomada numa situao de deciso idealmente equitativa [fair].

    Na frmula justia como equidade, justia [justice] so os princpios de justia, a

    concepo de justia, ao passo que equidade [fairness] a forma equitativa de escolha

    desses princpios, o tipo de procedimento de escolha. Feita essa distino, torna-se

    evidente que Rawls no realiza uma equivalncia entre os termos justia [justice] e

    equidade [fairness]. Afinal, o nome [da teoria] no significa que os conceitos de

    justia e equidade sejam os mesmos, no mais do que a frase poesia como metfora

    signifique que os conceitos de poesia e metfora sejam os mesmos 72

    . Nas palavras de

    Rawls, essa maneira de ver os princpios da justia, eu chamarei justia como

    equidade 73

    .

    1.2 A constituio como parte da estrutura bsica da sociedade

    71

    John Rawls, 1971, p. 12; id., 1999a, p. 11. 72

    John Rawls, 1971, p. 12-13; id., 1999a, p. 11. The name does not mean that the concepts of justice and

    fairness are the same, any more than the phrase poetry as metaphor means that the concepts of poetry

    and metaphor are the same. 73

    John Rawls, 1971, p. 11; id., 1999a, p. 10. This way of regarding the principles of justice I shall call

    justice as fairness.

  • 33

    Estando resolvida a questo da denominao da teoria e estando apresentada a justia

    como equidade, ainda que de modo muito incipiente, temos condies de vislumbrar os

    primeiros lineamentos da relao entre ela e a constituio.

    Ns vimos anteriormente que as partes, na posio original, discutem quais so os

    princpios de justia para a estrutura bsica. Elas discutem a justia social. Nos termos

    de Rawls, a justia social consiste em princpios de justia, isto , uma concepo de

    justia, para a estrutura bsica da sociedade. Rawls fala em princpios da justia para a

    estrutura bsica da sociedade e no em princpios de justia para a sociedade. A

    estrutura bsica da sociedade a maneira pela qual as instituies sociais mais

    importantes realizam duas coisas: distribuem direitos e deveres fundamentais e

    determinam a diviso das vantagens advindas da cooperao social74

    . A estrutura bsica

    precisamente a maneira pela qual elas se encaixam num sistema e como elas

    distribuem os direitos e deveres fundamentais e como elas moldam as vantagens que

    emergem por meio da cooperao social75

    . Isso significa que a constituio poltica e os

    principais arranjos econmicos e sociais pertencem estrutura bsica76

    . So exemplos

    de instituies sociais mais importantes dados por Rawls: a proteo jurdica da

    liberdade de pensamento e da liberdade de conscincia; os mercados competitivos e a

    organizao da economia em geral; a propriedade privada dos meios de produo e

    todas as formas juridicamente protegidas da propriedade; a famlia monogmica e assim

    por diante77

    . Em suma, a estrutura bsica da sociedade a maneira pela qual a

    constituio poltica e os principais arranjos econmicos e sociais distribuem direitos e

    deveres e repartem as vantagens resultantes da cooperao social.

    Na teoria da justia como equidade, a constituio no aparece como objeto do acordo

    inicial. O objeto desse acordo uma concepo de justia social: os princpios da justia

    para a estrutura bsica da sociedade. A constituio aparece como um dos objetos da

    justia. Ela o objeto da justia que apresenta um modo de distribuio de direitos e

    deveres fundamentais. A constituio aparece ao lado do modo como os principais

    arranjos econmicos e sociais distribuem as vantagens resultantes da cooperao social.

    74

    John Rawls, 1971, p. 7; id., 1999a, p. 6. 75

    John Rawls, 1977, p. 159. 76

    John Rawls, 1971, p. 7; id., 1999a, p. 6. 77

    John Rawls, 1971, p. 7; id., 1999a, p. 6; id., 1977, p. 159; id., 2001, p. 162-168.

  • 34

    A justia como equidade distingue, portanto, entre o objeto do acordo inicial (a justia)

    e o objeto da justia (a estrutura bsica) e interpreta a constituio como a instituio

    social qual est associada a distribuio dos direitos e deveres fundamentais.

    A constituio no responsvel pela diviso das vantagens advindas da cooperao

    social. A repartio das vantagens advindas cooperao social resultado dos arranjos

    econmicos e sociais e, tendo isso em mente, os arranjos econmicos e sociais no so a

    constituio. Essa uma observao importante a respeito da justia como equidade. H

    uma diviso de funes entre a constituio em os arranjos econmicos e sociais. A

    diviso de funes entre a constituio e os arranjos econmicos e sociais na justia

    como equidade est fora do curso de vrias anlises crticas a respeito da estrutura

    bsica78

    . Essa diviso tambm est fora da anlise realizada por Rawls em artigo

    especfico79

    , mas, no caso dele, as consideraes esto presentes em seu principal

    escrito80

    . O problema da fatorao da estrutura bsica ser retomado com mais detalhe

    adiante. Por ora, vale observar que a estrutura bsica da sociedade repartida, na justia

    como equidade, entre o modo como a constituio poltica distribui os direitos e deveres

    fundamentais, a primeira parte da estrutura bsica, e o modo como as principais

    instituies econmicas e sociais distribuem os frutos da cooperao social, a segunda

    parte da estrutura bsica. A constituio faz parte, portanto, da primeira parte da

    estrutura bsica. Sua caracterizao como primeira parte da estrutura bsica se justifica,

    pois [] a constituio a fundao da estrutura social, o sistema da mais alta ordem

    de regras que regulam e controlam outras instituies [] 81

    .

    A observao atenta do modo como Rawls descreve a estrutura bsica da sociedade

    somada observao atenta do modo como Rawls descreve o objeto da justia na teoria

    da justia como equidade nos mostra outra coisa muito importante. No contexto da

    justia como equidade, posso dizer que a justia social ter tantos objetos identificveis

    quantas forem as partes isolveis, no obstante sempre interligadas, da estrutura bsica.

    Isso significa que a justia social tem como objeto parcial a constituio e como demais

    78

    Gerald Allan Cohen, 2000, p. 122-124; id., ibid., p. 134-142; Iris Marion Young, 2006, p. 91-97; Nancy

    Fraser, 1996, p. 13-14. 79

    John Rawls, 1977, p. 159-165. 80

    John Rawls, 1971, p. 546; id., 1999a, p. 478. 81

    John Rawls, 1971, p. 227; id., 1999a, p. 200. [] the constitution is the foundation of the social

    structure, the highest-order system of rules that regulates and controls other institutions [].

  • 35

    objetos parciais as princi