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IGOR ASCARELLI CASTRO DE ANDRADE
A RELAO ENTRE A CONSTITUIO DO LIBERALISMO POLTICO E
AS DESIGUALDADES SOCIAIS E ECONOMICAS EM JOHN RAWLS: A
QUESTO DO DIREITO A UM MNIMO SOCIAL E DO PRINCPIO DA
DIFERENA COMO DIREITOS CONSTITUCIONAIS
Braslia DF
2015
1
IGOR ASCARELLI CASTRO DE ANDRADE
A RELAO ENTRE A CONSTITUIO DO LIBERALISMO POLTICO E
AS DESIGUALDADES SOCIAIS E ECONOMICAS EM JOHN RAWLS: A
QUESTO DO DIREITO A UM MNIMO SOCIAL E DO PRINCPIO DA
DIFERENA COMO DIREITOS CONSTITUCIONAIS
Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em
Direito, Estado e Constituio da Faculdade de
Direito da Universidade de Braslia (UnB) como
requisito final de concluso de curso e de obteno
do ttulo de doutor.
Professor orientador: Dr. Valcir Gassen
Universidade de Braslia.
Braslia DF
2015
2
Tese de autoria de Igor Ascarelli Castro de Andrade intitulada A relao entre a constituio do
liberalismo poltico e as desigualdades sociais e econmicas em John Rawls: a questo do
direito a um mnimo social e do princpio da diferena como direitos constitucionais. Tese
defendida e aprovada como requisito final de concluso do curso de Doutorado em Direito,
Estado e Constituio do Programa de Ps-Graduao Stricto Sensu em Direito, Estado e
Constituio da Universidade de Braslia. Banca examinadora:
___________________________________________________________________________
Prof. Dr. Valcir Gassen FD/UnB Professor Orientador
___________________________________________________________________________
Prof. Dr. Cludia Rosane Roesler FD/UnB Professor Examinador
___________________________________________________________________________
Prof. Dr. Menelick de Carvalho Netto FD/UnB Professor Examinador
___________________________________________________________________________
Prof. Dr. Marcos Aurlio Pereira Valado UCB Professor Examinador
___________________________________________________________________________
Prof. Dr. Nviton de Oliveira Batista Guedes UniCEUB Professor Examinador
___________________________________________________________________________
Prof. Dr. Juliano Zaiden Benvindo
Coordenador do Programa de Ps-Graduao Stricto Sensu em Direito, Estado e Constituio
Faculdade de Direito da Universidade de Braslia
Braslia (DF), 09 de abril de 2015
Faculdade de Direito da Universidade de Braslia Campus Universitrio Darcy Ribeiro, s/n Asa Norte
CEP 70.719-970 Braslia Distrito Federal Brasil Tel. +55 (61) 3107-0713.
UNIVERSIDADE DE BRASLIA
FACULDADE DE DIREITO
PROGRAMA DE PS-GRADUAO STRICTO SENSU
DOURORDO EM DIREITO, ESTADO E CONSTITUIO
3
A Maria de Lourdes Castro de Andrade, in memoriam.
A Jos Ferreira de Andrade.
A Andrezza Brando Barbosa.
4
AGRADECIMENTOS
Agradeo a todos que direta ou indiretamente contriburam para a realizao desta tese.
Primeiramente, agradeo a Deus, Autor da existncia. Agradeo de forma especial a
minha me, Maria de Lourdes Castro de Andrade, e a meu pai, Jos Ferreira de
Andrade, pelo amor e pela dedicao. Sou especialmente grato a Andrezza Brando
Barbosa, esposa querida, lrio das Gerais, pelo amor e pelo apoio nos momentos
difceis. Dirijo agradecimentos carinhosos a meus irmos Fernanda Ferreira de Andrade
e Afonso ris Ferreira de Andrade e sua me, Maria Andrea Fernandes, pelo apoio de
sempre e pelos momentos em famlia. Sou muito grato a D. Angelina Brando Barbosa
e a Sr. Benedito Alves Barbosa pelo incentivo. Agradeo s famlias materna e paterna,
bem como famlia de minha esposa. Sou imensamente grato ao professor Valcir
Gassen pelos ensinamentos e pela confiana depositada neste seu orientando. Reitero
meus agradecimentos CAPES [Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel
Superior] pela bolsa de estudos, sem a qual esta tese no teria sido possvel. Agradeo
aos professores do Programa de Ps-Graduao em Direito, Estado e Constituio da
Faculdade de Direito da Universidade de Braslia, em especial aos professores Argemiro
Cardoso Moreira Martins, Cludia Rosane Roesler, George Rodrigo Bandeira Galindo,
Gilmar Ferreira Mendes, Juliano Zaiden Benvindo, Marcus Faro de Castro e Menelick
de Carvalho Netto pelas aulas e pela convivncia salutar. Registro meus agradecimentos
s servidoras e aos servidores da Universidade de Braslia. Registro tambm meus
agradecimentos s professoras e professores, s servidoras e servidores da Universidade
Federal da Paraba, do Centro Universitrio de Joo Pessoa e da Universidade Federal
de Minas Gerais que de algum modo contriburam para a realizao deste percurso. Aos
alunos e alunas, aos colegas e colegas, e aos amigos e amigas de todas as pocas, meus
sinceros agradecimentos.
5
A base de um estado democrtico a liberdade; que,
de acordo com a opinio comum dos homens, s pode
ser usufruda em tal estado; essa eles afirmam ser a
grande finalidade de toda democracia.
(Aristteles, Poltica, Livro VI, Captulo II, 1317a 1317b)
6
RESUMO
Trata-se de tese de doutorado em direito, estado e constituio. Faz uma relao entre
filosofia e direito constitucional. Tem como objetivo geral estudar como uma
constituio se relaciona com normas relevantes que estruturam a diviso dos nus e
dos bnus da cooperao social no pensamento de John Rawls. Tem como objetivos
especficos: apresentar a teoria da justia como equidade; descrever a constituio da
justia como equidade; analisar a constituio do liberalismo poltico; apresentar o
princpio da diferena e analisar o direito a um mnimo social como um direito inerente
constituio. O problema consiste em saber por que o princpio da diferena no
uma parte integrante dos elementos constitucionais essenciais do liberalismo poltico
descrito por Rawls ao passo que o direito a um mnimo social parte integrante desses
elementos. A hiptese a de que o princpio da diferena e o direito a um mnimo social
possam ser considerados como elementos constitucionais essenciais do liberalismo
poltico descrito por Rawls. Essa hiptese parece no ter sido suficientemente testada
at o momento e as justificativas que a sustentam tambm parecem no serem
suficientemente claras diante do contexto mais amplo das obras do autor. Emprega
como tcnica de pesquisa a documentao indireta, isto , a documentao feita por
meio da pesquisa documental (fontes primrias) e da pesquisa bibliogrfica (fontes
secundrias), com nfase dada pesquisa documental. Em funo do objeto estudado,
as fontes escritas por Rawls so consideradas fontes primrias, ao passo que as fontes
escritas pelos autores a respeito de Rawls e as demais fontes so consideradas fontes
secundrias. Em razo da preocupao com a preservao da complexidade do processo
de interpretao, no h emprego de mtodos heursticos. A metodologia empregada a
argumentao. Desse modo, o teste da hiptese de trabalho foi feito por meio de dois
critrios: (1) o critrio da vinculao entre o direito a um mnimo social e o princpio da
diferena e (2) o critrio de essencialidade, correspondente aos critrios da distino
entre princpios que abrangem direitos e liberdades fundamentais e princpios
concernentes s desigualdades sociais e econmicas. Com base nas descries da
constituio da teoria original da justia como equidade e da constituio do liberalismo
poltico descrito por Rawls, compreende-se por que os critrios da urgncia, da
verificao, da concordncia e da diferena entre os papis da estrutura bsica no
permitem a incluso do princpio da diferena como elemento constitucional essencial
do liberalismo poltico. Ainda com base nessas descries, compreende-se por que o
critrio de vinculao entre o direito a um mnimo social e o princpio da diferena
mantm a plausibilidade de o princpio da diferena ser aceito por uma sociedade
politicamente liberal como uma questo fundamental da razo pblica, mas no como
um elemento constitucional essencial do liberalismo poltico. A hiptese de trabalho se
confirma em parte. Em termos prticos, a confirmao parcial da hiptese significa a
possiblidade de qualquer pessoa solicitar e receber do estado a remunerao
correspondente ao mnimo social com fundamento constitucional, observado o critrio
de razoabilidade do valor estabelecido e observado o direito de imigrao nos casos
aplicveis, independentemente de o direito a um mnimo social constar por escrito na
constituio.
Palavras-chaves: constituio, mnimo social, princpio da diferena, liberalismo
poltico, justia como equidade, John Rawls.
7
ABSTRACT
It is a doctoral thesis in law, state, and constitution. It makes a relationship between
philosophy and constitutional law. This doctoral thesis has as a general aim studying
how a constitution is related to relevant norms framing the sharing of burdens and
benefits of social cooperation in the thought of John Rawls. It has as particular aims
introducing the theory of justice as fairness, describing the constitution in justice as
fairness, analyzing the constitution in political liberalism, presenting the difference
principle, and analyzing the right to a social minimum as a right inherent to the
constitution. The problem is to know the reason why the difference principle is not a
constitutional essential of political liberalism as described by Rawls, whilst the right to
a social minimum is such an essential. The hypothesis is that the difference principle
and the right to a social minimum can both be taken as constitutional essentials of
political liberalism as described by Rawls. This hypothesis seem having been tested
enough so far and the justifications holding it seem either not clear enough against the
wider context of the authors works. It makes use as a research technique the indirect
documentation, that is, the documentation made by documental research (primary
sources) and by bibliographic research (secondary sources), with emphasis on
documental research. Taking into consideration the subject matter, the sources written
by Rawls are taken as primary sources, whilst the sources written by other authors on
Rawls are taken as secondary sources. Due to the concern in preserving the complexity
of the interpretation process, there is no use of heuristic methods. The methodology
employed is argumentation. In this way, the test of the hypothesis was made by means
of two criteria: (1) the criterion of the attachment between the right of a social minimum
and the difference principle, and (2) the essentiality criterion, corresponding to the
criteria of the distinction between the principles related to the basic rights and liberties
and the principles related to the social and economic inequalities. Based on the account
of the constitution in the original theory of justice as fairness and on the account of the
constitution in political liberalism as described by Rawls, one understands why the
criterions of urgency, of verifiability, of agreement, and of the difference between the
roles of the basic structure do not allow the inclusion of the difference principle as a
constitutional essential of political liberalism. Still based on these accounts, one
understands why the criterion of the attachment between the right of a social minimum
and the difference principle keeps the plausibility of the difference principle being
accepted by a politically liberal society as a basic matter of public reason, but not as a
constitutional essential of political liberalism. The hypothesis is in part confirmed. In
practical terms, the partial confirmation of the hypothesis means the possibility of any
person ask and receive from the state the revenue corresponding to the social minimum
with constitutional ground, in accordance with the criterion of reasonableness of the
established value and in accordance with the right of immigration in due cases, in spite
of the right of a social minimum being written in the constitution.
Key-words: constitution, social minimum, difference principle, political liberalism,
justice as fairness, John Rawls.
8
SUMRIO
INTRODUO .............................................................................................................. 10
1. A concepo da justia como equidade ...................................................................... 29 1.1 Elucidando a denominao da teoria ........................................................................ 30 1.2 A constituio como parte da estrutura bsica da sociedade .................................... 32 1.3 Como os princpios que regem a estrutura bsica so acordados na posio original
........................................................................................................................................ 35 1.3.1 A forma intuitiva do raciocnio que leva aos dois princpios da justia ................ 36
1.3.2 A forma sistemtica do raciocnio que leva aos dois princpios da justia: a
analogia a ou a relao com a regra de escolha maximin em situao de incerteza ...... 45 1.4 A conveno constitucional: estgio seguinte escolha dos princpios de justia .. 54
2 A constituio na justia como equidade .................................................................... 59 2.1 O procedimento justo: a noo de justia procedimental ......................................... 60 2.2 O critrio independente: a liberdade igual e sua prioridade ..................................... 66
2.2.1 O conceito de liberdade ......................................................................................... 67 2.2.2 O conceito de liberdade igual ................................................................................ 68
2.2.3 O fundamento da constituio: a prioridade da liberdade igual ............................ 75 2.2.3.1 Recordando a ideia intuitiva ............................................................................... 78 2.2.3.2 A razo da relativizao dos interesses no curso geral da civilizao................ 79
2.2.3.3 A razo da liberdade de conscincia e de pensamento ....................................... 80 2.2.3.4 A razo do valor do bem primrio do autorrespeito ........................................... 84
2.2.3.5 A razo da impossibilidade de estabilidade social por meio da igualdade
econmica e social: razo de fundamento da constituio e razo adicional da diviso da
estrutura bsica ............................................................................................................... 90
2.2.4 A constituio e sua relao com as questes sociais e econmicas: a liberdade e o
valor da liberdade ........................................................................................................... 94 2.2.5 A liberdade igual na constituio: a liberdade de participao ........................... 101 2.2.6 A liberdade de participao e o valor da liberdade de participao .................... 110
2.3 Ainda o critrio independente: a provvel efetividade da constituio como inerente
liberdade igual e participao igual ........................................................................ 116 2.4 A justia como equidade e sua teoria da constituio ............................................ 122
3 A constituio no liberalismo poltico ....................................................................... 127 3.1 O problema estabilidade: um ponto de partida para o liberalismo poltico ............ 128
3.2 As bases do liberalismo poltico ............................................................................. 143 3.2.1 O consenso por sobreposio ou consenso sobreposto [overlapping consensus] 152 3.2.2 A ideia de razo pblica ...................................................................................... 177
3.3 Os elementos constitucionais essenciais do liberalismo poltico: uma descrio .. 188 3.4 A constituio do liberalismo poltico em comparao com a constituio da justia
como equidade .............................................................................................................. 196 4 As questes de justia bsica e o mnimo social: enigma dos elementos essenciais da
constituio ................................................................................................................... 202 4.1 O princpio da diferena e as demais questes de justia bsica em Rawls ........... 203 4.2 Primeira aproximao ............................................................................................. 203 4.3 Segunda aproximao ............................................................................................. 206 4.3.1 Interpretao da liberdade natural ....................................................................... 207 4.3.1.1 A eficincia ....................................................................................................... 208
9
4.3.1.2 Igualdade formal de oportunidade [la carrire ouverte aux talents]................ 216 4.3.1.3 A interpretao da liberdade natural quanto aos dois princpios ...................... 217 4.3.2 Interpretao da igualdade liberal........................................................................ 221 4.3.2.1 Igualdade equitativa de oportunidade [fair equality of opportunity] ................ 221 4.3.2.2 A interpretao da igualdade liberal quanto aos dois princpios ...................... 223
4.3.3 Interpretao da aristocracia natural .................................................................... 226 4.3.3.1 O ideal aristocrtico .......................................................................................... 226 4.3.3.2 A interpretao da aristocracia natural quanto aos dois princpios .................. 230 4.3.4 Interpretao da igualdade democrtica .............................................................. 232 4.3.4.1 O princpio da diferena ................................................................................... 234 4.3.4.2 As contribuies marginais ao princpio da diferena: trs esquemas
distributivos .................................................................................................................. 235 4.3.2.4.3 A relao entre o princpio da diferena e o princpio da eficincia ............. 237 4.3.4.4 O princpio da diferena como interpretao de para a vantagem de todos ou o
sentido do princpio da diferena.................................................................................. 238 4.4 Terceira aproximao ............................................................................................. 246 4.4.1 Instituies de fundo da justia distributiva ou um arranjo institucional ideal e no
vinculante que atende exemplificativamente ao segundo princpio ............................. 246 4.4.2 O princpio da poupana justa ............................................................................. 249
4.4.3 A regra de prioridade e a enunciao final dos princpios da justia .................. 255 5. O direito a um mnimo social em Rawls .................................................................. 264 5.1. O mnimo social na justia como equidade ........................................................... 264
5.1.1 O mnimo social como parte de um arranjo institucional .................................... 265 5.1.2 O mnimo social: instituio de fundo [background institution] de um arranjo
institucional e atribuio do setor de transferncia ...................................................... 267 5.1.3 O nvel do valor do mnimo social ...................................................................... 286 5.1.4 O nvel do valor do mnimo social no curso civilizacional ................................. 291
5.2 O mnimo social no liberalismo poltico ................................................................ 297
5.2.1 O mnimo social e a ideia de elementos constitucionais essenciais .................... 300 5.2.2 Uma soluo aos dois enigmas dos elementos constitucionais essenciais .......... 307 5.3 O mnimo social como direito fundamental da constituio do liberalismo poltico
...................................................................................................................................... 325 CONCLUSO .............................................................................................................. 331 REFERNCIAS ........................................................................................................... 337
10
INTRODUO
A concepo de constituio e a concepo de normas que estruturam a diviso de nus
e bnus advindos da cooperao social so descritas, por vezes, por meio de uma
terminologia especfica no pensamento de Rawls. Em sua descrio do liberalismo
poltico1, a constituio analisada em termos de elementos constitucionais essenciais.
Os elementos constitucionais essenciais do liberalismo poltico so normas que
possuem funo inequivocamente constitucional. Eles so de dois tipos: (1) os
elementos ou as normas que estabelecem a estrutura geral do Estado e do processo
poltico e (2) os elementos ou as normas que estabelecem os direitos e liberdades
fundamentais2. A constituio assim descrita parece estar de acordo com o que se espera
do liberalismo poltico em sentido amplo e no parece suscitar nenhum interesse
adicional seno o do conhecimento dos prprios componentes constitucionais
indispensveis3.
Entre os elementos constitucionais essenciais do liberalismo poltico descrito por Rawls,
so estudados os que estabelecem direitos e liberdades fundamentais. Rawls procura
descrever que normas so abarcadas e que normas no so abarcadas no conjunto dos
direitos e liberdades fundamentais. Entre as normas no abarcadas, esto alguns
princpios relativos s desigualdades sociais e econmicas. O liberalismo poltico no
abarca entre os direitos e liberdades fundamentais, de acordo com essa descrio,
princpios como o princpio da igualdade equitativa de oportunidades e o princpio da
diferena, embora ele considere como essenciais o princpio da liberdade de
movimento, o princpio da livre escolha de ocupao e um mnimo social relativo s
necessidades bsicas dos cidados4.
O no-pertencimento do princpio da diferena ao conjunto dos elementos que
estabelecem direitos e liberdades fundamentais e o pertencimento de um direito a um
1 John Rawls, 2005; id., 2000b.
2 John Rawls, 2005, p. 227; id., 2000b, p. 277.
3 O art. 16 da Dclaration des Droits de lHomme et du Citoyen [Declarao dos Direitos do Homem e do
Cidado], uma das declaraes importantes do liberalismo poltico clssico, registra os elementos
caracterizadores e indispensveis de uma constituio. Cf. Maurizio Fioravanti, 1999, p. 112. 4 John Rawls, 2005, p. 230; id., 2000b, p. 280.
11
mnimo social que abarque as necessidades bsicas dos cidados a esse mesmo conjunto
chamam a ateno. O princpio da diferena faz parte de uma concepo de justia
social representativa do liberalismo da segunda metade do sculo vinte e sua no-
incluso na descrio do que ento se poderia compreender como liberalismo poderia
ser visto como um problema da descrio. Essa interpretao possvel em funo de
essa descrio do liberalismo poltico ser elaborada pelo mesmo autor da teoria da
justia como equidade. Mesmo na reformulao da teoria da justia como equidade, o
princpio da diferena no considerado como uma parte dos elementos constitucionais
essenciais, embora o direito a um mnimo social que atenda s necessidades bsicas de
todos os cidados continue sendo considerado como parte essencial da constituio
liberal5.
Em termos mais genricos, o problema que surge consiste em saber se h ou se no h,
nisso, uma contradio. O problema abordado pode ser colocado em termos mais
precisos e de forma mais analtica. A questo consiste em saber, com base nas
justificativas6 oferecidas por Rawls em sua descrio do liberalismo poltico, por que o
princpio da diferena no considerado como elemento constitucional essencial do
liberalismo poltico descrito por ele e, em seguida, por que o direito a um mnimo social
que atenda s necessidades bsicas das cidads e cidados poderia compor a concepo
de direitos e liberdades fundamentais do liberalismo poltico descrito por Rawls. Em
termos mais precisos e de forma mais sinttica, o problema consiste em saber por que o
princpio da diferena no uma parte integrante dos elementos constitucionais
essenciais do liberalismo poltico descrito por Rawls ao passo que o direito a um
mnimo social parte integrante desses elementos.
O modo de formulao do problema permite entrever a hiptese deste trabalho. A
hiptese a de que o princpio da diferena e o direito a um mnimo social possam ser
considerados como elementos constitucionais essenciais do liberalismo poltico descrito
por Rawls. Faz-se necessrio observar que essa hiptese parece no ter sido
suficientemente testada at o momento e que as justificativas que a sustentam tambm
parecem no serem suficientemente claras diante do contexto mais amplo das obras do
5 John Rawls, 2001, p. 48.
6 John Rawls, 2005, p. 227-230; id., 2000b, p. 277-281.
12
autor. Primeiro, o autor apresenta justificativas contra a incluso do princpio da
diferena e a favor da incluso do direito a um mnimo social entre os elementos
constitucionais essenciais muito sucintamente7 em meio a um acervo de escritos que
abrangem obras reconhecidas por ele mesmo como extensas e complexas8. Segundo,
elas no encontram respaldo na soluo proposta por autores que estudam a questo
constitucional em Rawls, como Lawrence Gene Sager9 e Frank Isaac Michelman
10. Eles
esto, possivelmente, entre os primeiros autores a debater sobre os elementos
constitucionais essenciais; a relao entre o pensamento de Rawls e o direito parece ter
sido debatida pela primeira vez por tericos da constituio e tericos do direito num
simpsio realizado apenas poucos meses depois do falecimento do autor11
. As
colocaes de Sager e de Michelman certamente respaldam a colocao do problema. O
teor da soluo proposta pode diferir do teor das solues que eles propem para essa
questo e avanar na compreenso das razes apresentadas pelo autor.
Em relao s expectativas que se possa ter sobre o contedo das pginas que se
seguem, talvez seja necessrio fazer alguma considerao a respeito de sua
caracterstica de tese. Uma tese pode ser definida como um documento que representa o
resultado de um trabalho experimental ou de um estudo cientfico de tema nico e bem
delimitado, que deve ser elaborado com base em investigao original, de forma que
esse documento se constitua em contribuio real para sua especialidade12
. Alm disso,
a elaborao desse documento precisa ser orientada por um doutor e ser realizada com
vistas obteno do ttulo de doutor ou de ttulo similar13
. Sua caracterizao externa se
relaciona, portanto, titulao do orientador e finalidade da realizao como tese, ao
passo que sua caracterizao interna se relaciona a trs fatores: cientificidade do
estudo, unicidade e delimitao do tema e originalidade de sua investigao, no
sentido de que ela se constitua em contribuio real para sua especialidade. A
cientificidade do estudo ser abordada ainda nesta introduo. A unicidade e a
delimitao do tema parecem estar demonstradas por meio da especificidade do
7 John Rawls, 2005, p. 227-230; id., 2000b, p. 277-281.
8 John Rawls, 2001, p. xv-xvi. Rawls se refere a Uma teoria da justia [A theory of justice].
9 Lawrence Gene Sager, 2004, p. 1421-1433.
10 Frank Isaac Michelman, 2004, p. 1407-1420.
11 William Michael Treanor, 2004, p. 1385-1386.
12 Associao Brasileira de Normas Tcnicas, 2011, p. 4.
13 Associao Brasileira de Normas Tcnicas, 2011, p. 4. Snia Vieira, 2001, p. 8.
13
problema. A questo, no momento, a de saber se este documento elaborado com
base em uma investigao original, de forma que ele se constitua em contribuio real
para sua especialidade.
A originalidade de uma investigao nesses termos considerada um aspecto envolvido
na definio de tese14
. Isso pode ser mais bem compreendido por meio da recuperao
da definio de dissertao. Uma dissertao pode ser definida como um documento
que representa o resultado de um trabalho experimental ou de um estudo cientfico
retrospectivo, que tem por objetivo reunir, analisar e interpretar informaes, no sentido
de evidenciar o conhecimento de literatura existente sobre o assunto e a capacidade de
sistematizao de seu autor15
. Alm disso, a elaborao desse documento precisa ser
orientada por um doutor e ser realizada com vistas obteno do ttulo de mestre pelo
autor16
. Uma dissertao tem uma contribuio a oferecer, mas essa contribuio
consiste na sistematizao do conhecimento existente sobre determinado assunto. A
dissertao tem uma finalidade retrospectiva. Uma tese faz uso do conhecimento
existente e de sua sistematizao para, por assim dizer, dar um passo adiante, no sentido
de apresentar um resultado que antes no era conhecido pela comunidade cientfica ou
pela comunidade de estudiosos especializados. A tese tem uma finalidade prospectiva.
Essa prospeco relativa: embora toda tese represente um real avano para o
conhecimento, toda tese representa uma contribuio de alguma importncia
prospectiva para os interessados no tema abordado por ela17
. O teste da interpretao de
que o princpio da diferena no possa ser considerado e de que o direito a um mnimo
social possa ser considerado como um direito pertencente ao conjunto dos elementos
constitucionais essenciais do liberalismo poltico descrito por Rawls pode ser visto
como uma expresso de certa dimenso prospectiva entre as anlises de sua obra e
entre os estudos sobre direito constitucional e filosofia do direito. Essa interpretao, se
confirmada, no se pretenderia correta em detrimento das demais, mas ela possuiria
14
Umberto Eco, 2009, p. 2. Snia Viera, 2001, p. 12. A autora observa que uma tese tem trs
caractersticas cumuladas. Ela deve ser original, importante e vivel. A originalidade se relaciona ao fato
de ela tratar de um assunto no estudado e de ela ter capacidade para surpreender. A importncia se
relaciona especialmente ao fato de ser considerada importante por quem tem importncia na rea de
conhecimento respectiva. A viabilidade se relaciona aos prazos e aos recursos disponveis. 15
Associao Brasileira de Normas Tcnicas, 2011, p. 2. 16
Associao Brasileira de Normas Tcnicas, 2011, p. 2. 17
Snia Viera, 2001, p. 99.
14
razes suficientemente bem estruturadas para torn-la plausvel entre as demais
interpretaes.
A caracterizao cientfica do estudo outro aspecto envolvido na definio de tese. A
cincia pode ser entendida como um conjunto de atitudes e de atividades racionais que
visam a um conhecimento sistemtico e limitado e cujos procedimentos e resultados so
passveis de verificao18
. Aquilo que a cincia pretende conhecer seu objeto de
estudo. Como foi dito anteriormente, o objeto de estudo em questo a relao entre
normas sociais e econmicas (o princpio da diferena e o direito a um mnimo social
como pontos de interesse, embora a igualdade equitativa de oportunidade tambm seja
abordada) e normas de direito fundamental (o segundo tipo de elementos constitucionais
essenciais na definio de Rawls). No s o princpio da diferena e o direito a um
mnimo social so linguagem, mas normas de direito fundamental so linguagem, assim
como a relao entre eles linguagem. Este estudo tambm tem essa dimenso de
linguagem. possvel entender a relao entre este estudo e seu objeto como uma
relao lingustica. Sob essa ptica, possvel redefinir cincia como uma linguagem
racional que visa ao conhecimento sistemtico e limitado de outra linguagem e cujos
procedimentos e resultados so passveis de verificao. Nesse sentido, este estudo
um estudo cientfico19
.
A definio de tese como um estudo cientfico e a redefiniao de cincia como uma
linguagem relacionada a um conhecimento passvel de verificao formam uma
combinao que, por um lado, pressupe a distino entre sujeito e objeto, e que, por
outro lado, redefine a relao entre sujeito e objeto como relao lingustica. Isso suscita
vrias discusses. A cincia redefinida em termos de linguagem envolve uma discusso
sobre interpretao. Com efeito, toda forma de conhecimento envolve linguagem e
linguagem envolve interpretao. A abordagem do objeto tem como pressuposto a
relevncia da dimenso interpretativa do conhecimento. Em sendo um conhecimento
18
Alfonso Trujillo Ferrari, 1982, p. 2. Marina de Andrade Marconi; Eva Maria Lakatos, 2003, p. 80. 19
Umberto Eco, 2009, p. 20-24. Umberto Eco observa que a cientificidade requerida para a
caracterizao de uma tese interpretada em sentido amplo, compreendendo o fato de o estudo se voltar
para um objeto reconhecvel pelos outros, dizer algo que ainda no foi dito ou rever sob uma ptica
diferente o que j foi dito, ser til aos demais e fornecer elementos para a verificao das hipteses que
apresenta. Esse sentido amplo permite a realizao de pesquisas sobre temas como a moral em Aristteles
e como a conscincia de classe nos levantes camponeses na poca da reforma protestante.
15
interpretativo, a experincia envolvida no processo de estudo do objeto ultrapassa o
controle da metodologia cientfica vista de forma heurstica20
. Proceder interpretao
do objeto estudado com base em verificaes heursticas um problema para todas as
formas de conhecimento. O caso das cincias humanas e sociais, inclusive o da
filosofia, no diferente. Ele conta com a caracterstica adicional, embora no
exclusiva, de contiguidade entre sujeito e objeto: o objeto estudado referido ao
sujeito21
. Neste trabalho, o estudo da pertinncia do princpio da diferena e do direito a
um mnimo social ao conjunto dos direitos e liberdades fundamentais do liberalismo
poltico um estudo interpretativo. Seus enunciados possuem um compromisso com a
verificao, mas ultrapassam-no, no sentido de que tm um compromisso com a
preservao da complexidade da interpretao, evitando, assim, a adoo apriorstica de
um mtodo especfico. Tambm desse modo, este texto certamente atende ao requisito
de cientificidade de uma tese.
Esse entendimento de cientificidade compatvel com a construo de uma tese como
esta, que lida com conhecimento jurdico. A caracterstica predominantemente zettica22
deste estudo deve ser vista como uma nfase da compreenso do fenmeno jurdico que
no minimiza a importncia da dimenso dogmtica. Entender o conhecimento jurdico
como uma relao entre zettica e dogmtica, com possibilidade de nfase em uma
delas, reflete uma tendncia da produo do conhecimento. Trata-se de um
aprofundamento da reaproximao entre conhecimento cientfico e conhecimento
filosfico havido no incio do sculo vinte23
e consolidado em termos de
reconhecimento de sua interdependncia.
20
Hans-Georg Gadamer, 2002, p, 31-36 (1-5), especialmente p. 31. 21
Wilhelm Dilthey, 1949, p. 13-21; id., 1968, p. 242-258. 22
Trcio Sampaio Ferraz Jnior, 2007, p. 39-51. Cludia Rosane Roesler, 2004, p. 53-82. Theodor
Viehweg elabora a distino entre zettica e dogmtica em 1968 num artigo intitulado Problemas
sistmicos na dogmtica jurdica e na pesquisa jurdica [Systemprobleme in Rechstsdogmatik und
Rechtsforschung] que pode ser encontrado na coletnea Filosofia do direito e teoria retrica do direito
[Rechtsphilosophie und Rhetorische Rechtstheorie: Gesammelte Kleine Schriften]. Cf. Cludia Rosane
Roesler, 2004, p. 53. 23
Alfonso Trujillo Ferrari, 1982, p. 12-13. Com efeito, a teoria da relatividade foi uma das primeiras a
suscitar essa reunio. Arrhenius observa, no inicio de seu discurso de apresentao de Albert Einstein
como vencedor do Prmio Nobel de Fsica de 1921, que a teoria da relatividade pertence essencialmente
epistemologia, parte da filosofia que estuda a possiblidade de conhecimento. Cf. Svante August
Arrhenius, 1967.
16
Feitas as consideraes a respeito do problema, da hiptese trabalho e da caracterstica
de tese deste trabalho, penso ser o momento de passarmos especificao do objeto
estudado, dos objetivos e da metodologia. O objeto de estudo a relao entre normas
sociais e econmicas (o princpio da diferena e o direito a um mnimo social) e normas
de direito fundamental (o segundo tipo de elementos constitucionais essenciais na
definio de Rawls). Em relao a esse objeto, o objetivo geral consiste em estudar
como uma constituio se relaciona com normas relevantes que estruturam a diviso dos
nus e dos bnus da cooperao social no pensamento de John Rawls. Procura-se
estudar tanto a constituio do liberalismo poltico descrito por esse autor, quanto sua
relao com uma das normas que organizam a diviso dos nus e bnus da cooperao
social de acordo com sua teoria: o princpio da diferena e o direito a um mnimo social.
Isso no significa nem que outros autores sejam no estudados com vistas a
compreender essa descrio, nem que outras normas no sejam consideradas. Isso
significa que outros autores e as demais normas so estudas com vistas a compreender a
relao desse princpio com a constituio do liberalismo poltico interpretado nos
termos de Rawls. Se, em termos gerais, o objetivo estudar a relao entre uma
dimenso da constituio com uma dimenso da justia distributiva lato sensu no
pensamento de Rawls, em termos especficos, os objetivos so apresentar a teoria da
justia como equidade, descrever a constituio da justia como equidade; descrever a
constituio do liberalismo poltico, analisar o princpio da diferena e estudar o direito
a um mnimo social como um direito inerente constituio e testar, em meio a esses
estudos, a possibilidade de que o princpio da diferena e o direito a um mnimo social
sejam vistos como direitos fundamentais no liberalismo poltico.
Surge, agora, a questo de saber que metodologia empregada na abordagem do objeto
e na consecuo dos objetivos. A esse respeito, inicio dizendo que h uma preocupao
com a preciso da linguagem em termos de verificao24
, no obstante os conceitos
terem sua preciso comprometida em funo de sua porosidade ou textura aberta25
. H,
igualmente, uma preocupao com a preservao da complexidade da interpretao,
deixando-a livre do emprego de mtodos heursticos. A preocupao com a verificao
24
Alfonso Trujillo Ferrari, 1982, p. 29-31. A relao entre uma abordagem dialtica e uma preocupao
com a linguagem no significa que se proceda dialtica do signo como encontrada em Mikhail Bakhtin,
no obstante a importncia dessa perspectiva. Cf. Mikhail Bakhtin, 1997. 25
Friedrich Waismann, 1945, p. 121.
17
perpassa todo o trabalho; o cuidado em no empregar mtodos heursticos tambm.
preciso observar, no entanto, que a ausncia de mtodos heursticos no significa
ausncia de mtodo. No h uso de um mtodo concebido aprioristicamente como
conducente obteno da verdade, mas h uso de uma racionalidade que permite a
obteno de um resultado plausvel diante dos dados do problema. A racionalidade que
leva plausibilidade da hiptese , portanto, argumentativa.
A hiptese de que o princpio da diferena e o direito a um mnimo social possam ser
elementos constitucionais essenciais do liberalismo poltico pode ser testada com base
nos expedientes empregados pelo prprio Rawls na concretizao institucional do
princpio da diferena. Estruturo, assim, um argumento que pode ser mais bem
entendido quando decomposto em duas partes. A primeira parte se refere enunciao
completa do princpio da diferena na teoria da justia como equidade. O princpio da
diferena enunciado por Rawls com a restrio do princpio da poupana justa. Com
efeito, levando em conta o princpio da liberdade e o princpio da igualdade equitativa
de oportunidades, Rawls afirma que desigualdades sociais e econmicas devem ser
arranjadas de forma que elas sejam []: (a) para o maior benefcio dos menos
favorecidos, em consistncia com o princpio da poupana justa [] 26
. A discusso do
princpio da poupana justa surge quando se indaga se um sistema social capaz de
satisfazer os princpios da justia. A questo saber se as principais instituies sociais
podem satisfazer, em especial, o princpio da diferena. A resposta de Rawls a de que
isso depende do nvel fixado para o mnimo social. O nvel fixado para o mnimo social
se liga, por sua vez, questo de se saber em que termos a gerao presente obrigada a
respeitar as reivindicaes da gerao que lhe sucede. A aplicao do princpio da
diferena envolve essa questo. Cada gerao tem no apenas o dever de preservar os
ganhos da cultura e da civilizao, mas tambm o dever de poupar um valor adequado
para a acumulao efetiva de capital real. Admitindo-se que exista um princpio justo de
poupana que nos diga qual deve ser o montante desse investimento, chega-se
determinao do nvel adequado do mnimo social. A aplicao do princpio da
diferena exige a ideia de mnimo social. O princpio da diferena s poderia ser aceito
26
John Rawls, 1971, p. 302. John Rawls, 1999a, p. 266. Second Principle. Social and economic
inequalities are to be arranged so that they are both: (a) to the greatest benefit of the least advantaged,
consistent with the just savings principle, and (b) attached to offices and positions open to all under
conditions of fair equality of opportunity.
18
se o ponto em que ele fosse fixado, levando-se em conta os salrios, pudesse maximizar
as expectativas de quem viesse a se encontrar no grupo dos menos favorecidos27
. Isso
depende, novamente, do princpio da poupana justa.
A segunda parte do argumento se refere enunciao de um dos direitos e liberdades
fundamentais da constituio do liberalismo poltico: descrio de uma parte dos
elementos constitucionais essenciais. Rawls distingue entre as normas integram e as
normas que no integram os direitos e liberdades fundamentais do liberalismo poltico.
Nesse processo, Rawls afirma que, [] embora um mnimo social que atenda s
necessidades bsicas de todos os cidados seja tambm um [elemento] essencial, o que
eu chamei de princpio da diferena mais exigente e no [um elemento essencial]
28. A fixao do mnimo social, como mencionei, considerada por Rawls como
dependendo da extenso do legado deixado de uma gerao a outra. Isso envolve fatores
como a preservao e a promoo das instituies justas, dos bens da cultura e da
civilizao e do capital real. O que se mostra de certo modo problemtico na enunciao
do direito a um mnimo social na descrio do liberalismo poltico a dissociao entre
seu estabelecimento e suas questes tpicas: o benefcio dos mais favorecidos
condicionado ao benefcio dos menos favorecidos e o princpio da poupana justa entre
geraes. Essa questo problemtica pelo menos do ponto de vista do arranjo
institucional exemplificado na teoria da justia como equidade29
. Sem essa dissociao
no haveria como afirmar, pelo menos do ponto de vista do arranjo institucional
sugerido na justia como equidade, que o princpio da diferena no pudesse fazer parte
dos elementos constitucionais essenciais do liberalismo poltico. Com essa segunda
parte do argumento, completo, assim, uma razo que poderia levar possibilidade de se
sustentar que o princpio da diferena seja um elemento constitucional essencial. Esse
argumento parece ser complexo, mas ele ser retomado mais adiante, no captulo
terceiro.
H, pelo menos, mais uma forma de testar da hiptese de trabalho. A indagao sobre a
relao entre a constituio e as normas sobre desigualdade social e econmica na
27
John Rawls, 1971, p. 284-286. 28
John Rawls, 2005, p. 228-229. John Rawls, 2000b, p. 279. Similarly, though a social minimum
providing for the basic needs of all citizens is also an essential, what I have called the difference
principle is more demanding and is not. 29
John Rawls, 1971, p. 274-284; id., 1999a, p. 242-251.
19
justia como equidade, realizada no captulo segundo, e a indagao sobre os critrios
de essencialidade constitucional na descrio do liberalismo poltico via a indagao
sobre a distino entre princpios que abrangem direitos e liberdades bsicas ou
fundamentais e princpios concernentes s desigualdades sociais e econmicas,
realizada no captulo terceiro, tambm so meios argumentativos que apresento para
testar a hiptese. A combinao das descries nos permite entender se h
compatibilidade entre o liberalismo descrito por Rawls e sua teoria original da justia
como equidade. Em outras palavras, se a constituio do liberalismo poltico comporta a
constituio da justia como equidade original. Isso significa que os captulos que
compem este trabalho seguem uma metodologia argumentativa.
Ainda no mbito metodolgico, poder-se-ia indagar quais seriam os processos usados
para a obteno dos dados necessrios ou quais seriam as tcnicas de pesquisa usadas
com vistas realizao dos objetivos30
. Em tendo caractersticas de pesquisa
exploratria31
, a obteno dos dados se processa por meio da documentao indireta,
que a documentao feita por meio da pesquisa documental (fontes primrias) e da
pesquisa bibliogrfica (fontes secundrias), embora seja dada nfase pesquisa
documental. Em funo do objeto estudado, as fontes escritas por Rawls so
consideradas fontes primrias, ao passo que as fontes escritas pelos autores a respeito de
Rawls e as demais fontes so consideradas fontes secundrias32
. A pesquisa documental
e a pesquisa bibliogrfica so realizadas em livros, em artigos e em formas textuais
disponveis nos mais variados locais como em bibliotecas e em bases de dados on-line.
A obteno de dados por meio de documentao direta, como a obteno por meio de
pesquisa de campo e de pesquisa de laboratrio, no faz sentido em funo do objeto e
dos objetivos definidos. A documentao indireta, especialmente a pesquisa
bibliogrfica, a tcnica que oferece os meios mais adequados para obter dados neste
caso. A pesquisa bibliogrfica no consiste numa mera repetio do que j foi escrito:
30
Marina de Andrade Marconi; Eva Maria Lakatos, 2003, p. 174. 31
Antnio Carlos Gil, 1991, p. 45-48. Com base em seus objetivos gerais, esse autor classifica as
pesquisas em exploratrias, descritivas e explicativas. Este escrito realiza, nos termos de Gil, uma
pesquisa exploratria, que aquela que tem como objetivo principal o aprimoramento de ideias ou a
descoberta de intuies. Na maioria dos casos, a pesquisa exploratria assume a forma de pesquisa
bibliogrfica, que a pesquisa desenvolvida exclusivamente com fontes bibliogrficas. por meio de
pesquisas bibliogrficas que pesquisas sobre ideologias e pesquisas que analisam diversas posies
relativas a um problema costumam ser realizadas. 32
Umberto Eco, 2009, p. 35.
20
ela fornece os meios para o exame do problema sob uma perspectiva diferente e, desse
modo, ela permite chegar a concluses relativamente novas33
.
Para que a estrutura da pesquisa esteja mais bem elucidada, resta saber se compensa
realizar o esforo de seguir adiante34
. H vrias razes que levam construo destas
pginas. A importncia do pensamento de Rawls uma delas. O texto considerado
como o mais importante do autor seu primeiro livro, intitulado Uma teoria da justia
[A theory of justice]35
. No obstante o fato de essa obra ter assumido uma dimenso
referencial, a teoria da justia como equidade foi objeto de vrias crticas relevantes.
Algumas delas levaram Rawls a realizar uma descrio do liberalismo poltico em seu
segundo livro, intitulado Liberalismo poltico [Political liberalism]36
. As crticas a
sua teoria mais conhecida tambm suscitaram uma reelaborao da teoria da justia
como equidade. Isso resultou na publicao de seu quarto livro: Justia como
equidade: uma reformulao [Justice as fairness: a restatement] 37
. Seu terceiro livro
est menos vinculado s criticas dirigidas teoria da justia como equidade. Trata-se de
uma concepo de justia voltada para o direito internacional, que foi publicada
inicialmente como artigo e posteriormente como livro: O direito dos povos [The law
of peoples] 38
. A obra de Rawls torna-se completa quando se incluem seus artigos. Eles
foram publicados em vrios peridicos especializados. Os considerados mais
importantes pelo prprio Rawls foram reunidos e publicados no livro intitulado Artigos
coletados [Collected papers] 39
. Rawls ainda teve publicado seu curso sobre histria da
filosofia moral, Leituras sobre a histria da filosofia moral [Lectures on the history of
moral philosophy] 40
, em vida, e seu curso sobre histria da filosofia poltica, Leituras
sobre a histria da filosofia poltica [Lectures on the history of political philosophy] 41
,
33
Marina de Andrade Marconi; Eva Maria Lakatos, 2003, p. 183. 34
Jos Augusto de Souza Peres, 1979, p. 15-21. Alfonso Trujillo Ferrari, 1982, p. 167-171. Marina de
Andrade Marconi; Eva Maria Lakatos, 2003, p. 219-220. 35
John Rawls, 1971; id., 1999a. O livro foi publicado originalmente em 1971 e foi reeditado com
pequenas alteraes em 1999. No Brasil, h trs tradues: a primeira, de Vamireh Chacon publicada
originalmente em 1976; a segunda, de Almiro Pisetta e de Lenita Maria Rimoli Esteves publicada
originalmente em 1997; e a terceira, de Jussara Simes publicada originalmente em 2008. Cf.,
respectivamente, John Rawls, 1981; id., 2000a; id., 2008. Em razo das dificuldades interpretativas
inerentes ao processo de traduo, oriento-me ao longo da tese pelas duas edies em lngua inglesa. 36
John Rawls, 2005. Primeira edio em 1993. Segunda edio em 1996. 37
John Rawls, 2001. 38
John Rawls, 1999b. 39
John Rawls, 1999c. 40
John Rawls, 2000c. 41
John Rawls, 2007.
21
postumamente. O reconhecimento da caracterstica referencial do pensamento de Rawls
feito por praticamente todos que trabalham com filosofia poltica e teoria da justia,
independentemente do posicionamento crtico que se adote e independentemente das
caractersticas do sistema poltico-jurdico com que se lide mais diretamente,
especialmente em razo da teoria da justia como equidade42
. Embora relacionado ao
contexto cultural da sociedade norte-americana, o pensamento de Rawls pode contribuir
para a reflexo filosfica e constitucional de sociedades as mais diversas. Como lembra
Michel Rosenfeld, importa mais ao apelo de uma filosofia como a de Rawls a relevncia
dos argumentos que ela prope do que a localizao dessa filosofia na tradio de uma
comunidade poltica43
.
Em meio ao universo das obras de Rawls, o problema que procuro estudar se situa na
relao entre a teoria da justia como equidade e a descrio do liberalismo poltico. Por
meio da teoria da justia como equidade, Rawls realizou uma cesura na histria mais
recente da filosofia prtica44
. No obstante, objees foram dirigidas teoria. Ele
acolheu vrias delas em sua descrio do liberalismo poltico45
e em sua reafirmao da
teoria da justia como equidade46
. Com efeito, em sua reafirmao da teoria da justia
como equidade, Rawls procura retificar as faltas relativas s ideias mais importantes em
seu primeiro livro e conectar essa concepo de justia com as principais ideias
encontradas em seus ensaios datados de 1974 em diante47
. Como o princpio da
diferena um dos pontos mais importantes da teoria da justia como equidade e como
os elementos constitucionais essenciais so um dos pontos mais importantes da
descrio do liberalismo poltico, nota-se que essas duas dimenses do objeto de estudo
esto, com efeito, no cerne do pensamento do autor, ressalvada sua concepo de justia
para o direito internacional. O princpio da diferena compe um dos dois princpios da
teoria da justia como equidade, tanto a original, quanto a reafirmada, e os elementos
constitucionais essenciais compem a ideia de razo pblica que, ao lado da ideia de
42
Robert Nozick, 2009, p. 228. Michael Walzer, 2003, p. xxii, p. 3-4, p. 17, p. 41. Gerald Allan Cohen,
2008, p. 11-14. Simone Goyard-Fabre, 2006, p. 266-267. Otfried Hffe, 2006, p. 4. Amartya Sen, 2009,
p. 8. Liam Murphy e Thomas Nagel, 2002, p. 4. Jrgen Habermas, 1997a, p. 65. Arthur Kaufmann, 2004,
p. 37 e p. 260. Barbara Herman, 2005, p. xi. Will Kymlicka, 2002, p. viii. Sebastiano Maffettone;
Salvatore Veca, 2005, p. xi. Luiz Paulo Rouanet, 2002, p. 7. Cecilia Caballero Lois, 2005, p. 25. 43
Michel Rosenfeld, 2010, p. 90. 44
Jrgen Habermas, 1997a, p. 65; id., 2002a, p. 61. 45
Roberto Gargarella, 2008, p. 224. 46
John Rawls, 2001. Em portugus: Justia como equidade: uma reformulao. 47
John Rawls, 2001, p. xv.
22
consenso por sobreposio, uma das duas principais ideias do liberalismo poltico.
Entre as razes que levam construo dessas pginas, a primeira delas , portanto, a
importncia do objeto de estudo. Estas linhas tratam de questes centrais do pensamento
de um autor que, por sua vez, representa um marco reconhecido para a filosofia prtica.
A afirmao de que este estudo aborda aspectos centrais de um autor central em termos
filosficos prticos tem o propsito de mostrar a importncia do objeto de estudo, mas
isso no elide a adoo de uma atitude crtica perante o objeto. Penso ser importante
fazer algumas consideraes a esse respeito. Por um lado, o objeto no considerado
nestas pginas como dissociado do sujeito, mas como mantendo com o sujeito uma
relao de referncia contgua48
. Por outro lado, a atitude critica perante o objeto
envolve tanto o estudo das razes que sustentam os pontos de concordncia, quanto o
estudo das razes que sustentam os pontos de discordncia das ideias estudadas.
Sustentar a hiptese de que pode haver razes suficientes para que se considere o
princpio da diferena como um direito fundamental do liberalismo poltico certamente
expressa essa atitude. Essa observao feita com o objetivo de colocar em evidncia a
precauo deste trabalho de no ratificar passivamente a interpretao sustentada nos
textos estudados e a de evitar estruturar a investigao em torno de pontos irrelevantes
no contexto do pensamento do autor. Essas so precaues que devem ser tomadas
quando o objeto de estudo o pensamento de um autor, uma vez que podem existir
pontos de contato entre o pensamento do autor e o pensamento de quem o estuda. A
suposio, em funo do que foi exposto, a de que essas precaues tenham sido
tomadas.
Continuando no mbito das razes que levam construo dessas pginas, cabe
perguntar por que importante estudar a pertinncia ou a no pertinncia do princpio
da diferena e do direito a um mnimo social ao conjunto dos elementos constitucionais
essenciais, mais especificamente ao conjunto dos direitos e liberdades fundamentais.
Trata-se da indagao a respeito da importncia de levar-se adiante o teste da hiptese
levantada perante a dimenso problemtica do objeto. A importncia de testar a
48
Wilhelm Dilthey, 1949, p. 13-21; id., 1968, p. 242-258. Richard E. Palmer, 1969, p. 103-106; id., 2006,
p. 110-113. Maria Helena Diniz, 1997, p. 24. Como observa Dilthey, o objeto de estudo das cincias
humanas referido ao sujeito: o sujeito , em parte, o objeto que ele mesmo estuda, como dito
anteriormente na frase referenciada pela nota n. 24.
23
possibilidade de pertencimento do princpio da diferena e do direito a um mnimo
social ao conjunto das normas constitucionais relativas a direitos e liberdades
fundamentais a segunda razo que leva a construo dessas pginas. H uma
importncia terica e uma importncia prtica na realizao desse teste.
A interpretao de Rawls de que o princpio da diferena no integra os elementos
constitucionais essenciais do liberalismo pode ser considerada estranha para quem toma
contato com os dois princpios da justia. O princpio da diferena compe os dois
princpios da justia e est entre as principais asseres, se no for a principal assero,
que notabilizam essa teoria. Considerando que o liberalismo poltico sustenta tanto a
liberdade quanto a igualdade entre os indivduos e considerando que uma descrio
sempre comporta uma interpretao, possvel supor que a descrio da constituio do
liberalismo poltico feita por Rawls inclusse o princpio da diferena. Poder-se-ia
esperar que os dois princpios fossem parte da constituio. A afirmao de Rawls em
contrrio na descrio dos elementos constitucionais essenciais parece ser uma questo
enigmtica49
na relao entre as principais obras do pensamento de Rawls. Isso nos leva
a afirmar a relevncia do teste da hiptese em termos tericos.
O estudo da possibilidade de pertinncia do princpio da diferena e do direito a um
mnimo social ao conjunto dos direitos e liberdades fundamentais coloca em suspenso
vrias certezas normativas, ao mesmo tempo em que lana luzes sobre vrias questes
jurdicas, polticas e administrativas. A definio desses princpios e direitos como
pertencentes ou como no pertencentes ao conjunto dos direitos e liberdades
fundamentais repercute nos processos de elaborao e interpretao da prpria
constituio e de todos os estgios normativos infraconstitucionais. Alm disso, o teste
dessa hiptese tem o efeito paralelo de lanar luzes sobre o modo como diversas
questes sociais e econmicas so tratadas juridicamente. Acompanhar o desenrolar
dessas questes nos faz refletir tanto sobre o significado da constituio, da liberdade e
dos direitos polticos, como sobre as definies jurdicas da tributao, do oramento
pblico, da propriedade, do salrio mnimo e de tantas outras questes sobre direitos e
liberdades fundamentais e sobre as formas jurdico-institucionais de mitigao das
desigualdades sociais e econmicas. Isso nos ajuda a avaliar as instituies que regem a
49
Frank Isaac Michelman, 2004, p. 1407-1420; Lawrence Gene Sager, 2004, p. 1421-1433.
24
distribuio dos nus e bnus da vida social em nosso meio, bem como as decises
judiciais e as polticas pblicas efetivas. Com efeito, essas so questes que se
relacionam tanto ao direito nacional como ao direito internacional50
.
Um caso talvez possa ilustrar melhor a importncia de uma discusso como essa. Uma
questo sobre a qual o simples acompanhamento da discusso poderia lanar luzes a
do Fundo de Participao dos Estados e do Distrito Federal (FPE). Uma parte do
produto da arrecadao de dois dos impostos da Unio, o imposto sobre renda e
proventos de qualquer natureza (IR) e o imposto sobre produtos industrializados (IPI),
vinte e um inteiros e cinco dcimos por cento (21,5%) do produto da arrecadao desses
impostos, devem ser destinados pela Unio ao Fundo de Participao dos Estados e do
Distrito Federal (FPE) 51
. A norma que rege o fundo determina que a repartio desse
montante e de seus acessrios seja realizada da seguinte forma: oitenta e cinco por cento
(85%) devem ser destinados s Unidades da Federao integrantes das regies Norte,
Nordeste e Centro-Oeste e quinze por cento (15%) devem ser destinados s Unidades da
Federao integrantes das regies Sul e Sudeste52
. Ela determina, ainda, que os
coeficientes individuais de participao dos Estados e do Distrito Federal no FPE so os
constantes no Anexo nico que dela faz parte e que devem ser definidos critrios de
rateio com base em censo demogrfico a ser realizado pela Fundao do Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatstica53
. A repartio e os coeficientes individuais54
foram
declarados inconstitucionais sem pronncia de nulidade pelo Supremo Tribunal
Federal55
. No caso do FPE, a compreenso do alcance do princpio da diferena
fornecer subsdios, ainda que de forma indireta, para se avaliar a justia dos critrios de
repartio e dos critrios de fixao dos coeficientes individuais variveis a serem
adotados. preciso considerar, contudo, que na teoria da justia como equidade, o
princpio da diferena aparece em posio subordinada ao princpio da liberdade igual e
ao princpio da igualdade equitativa de oportunidade, alm de ser condicionado pelo
princpio da poupana justa e se relacionar com o direito a um mnimo social. Um
50
Entre os vrios exemplos no direito internacional est o problema da repartio das receitas tributrias
entre estados em processo de integrao. Cf. Valcir Gassen, 2004. 51
Brasil. Constituio da Repblica Federativa do Brasil, art. 159, I, a. 52
Brasil. Lei Complementar n. 62, de 28 de dezembro de 1989, art. 2., I e II. 53
Brasil. Lei Complementar n. 62, de 28 de dezembro de 1989, art. 2., 1. a 3.. 54
Brasil. Lei Complementar n. 62, de 28 de dezembro de 1989, art. 2., I e II, 1. a 3.. 55
Brasil. Supremo Tribunal Federal, Ao Direta de Inconstitucionalidade n. 875.
25
tribunal teria de estar atento a esse aspecto na aplicao do princpio, uma vez que ele
no foi pensado para aplicaes fora dessa ordem serial, nem foi pensado para ser
aplicado diretamente soluo de casos concretos. Esse um caso sobre o qual o
acompanhamento da discusso terica pode lanar luzes, embora no necessariamente
fornecer uma resposta definitiva.
O pertencimento do direito a um mnimo social aos elementos constitucionais essenciais
do liberalismo poltico tem vrias implicaes prticas. Esse pertencimento suscita a
necessidade de sua efetivao jurdico-institucional permanente por meio da
arrecadao tributria e da dotao oramentria. Alm disso, o pertencimento do
mnimo social ao conjunto dos direitos e liberdade fundamentais abre a possibilidade de
controle de constitucionalidade. O controle judicial de constitucionalidade passa a poder
ser exercido sobre essa questo. No caso do controle concentrado de
constitucionalidade, inequvoco que a natureza de direito fundamental do direito a um
mnimo social torna a corte constitucional competente para deferir pedido de
transferncia monetria relativa ao mnimo social independentemente da existncia de
norma escrita sobre o mnimo social e de aparato institucional apto a efetiv-lo. No caso
do controle difuso de constitucionalidade, igualmente inequvoco que qualquer juzo
se torna em tese competente para deferir o pedido. A dificuldade no caso de norma
constitucional no escrita de um estado federal est na determinao de qual ente
federativo responsvel pelo pagamento. Diante da indefinio, presumvel que a
competncia para o empenho do pagamento seja comum a todos os entes. Outra
dificuldade no caso de norma no escrita est na determinao de seu valor. Essa
questo dever ser abordada no decorrer deste escrito. Enfim, a constatao de que a
natureza do direito a um mnimo social de direito fundamental inerentemente
garantido pela constituio, isto , independentemente de previso escrita, nega que o
mnimo social seja um ato de liberalidade, uma agenda partidria, uma poltica pblica
provisria. Sua natureza de direito fundamental garantido pela constituio afirma sua
relao com o status de cidadania igual e com todas as dimenses correlatas da
cidadania igual. Isso significa que, na prtica, um direito fundamental deixa de ser
usado como meio de negociao poltica no processo eleitoral. Certamente, h outros
efeitos prticos do reconhecimento do direito a um mnimo social como direito
26
fundamental inerentemente garantido pela constituio, mas penso que esses so os
mais importantes.
J o hipottico pertencimento das normas relativas ao princpio da diferena aos
elementos constitucionais essenciais do liberalismo poltico suscitaria a necessidade de
essas normas serem aprovadas e modificadas pelo poder constituinte reformador, pelo
menos nos sistemas jurdicos regidos por uma constituio escrita, somente por meio de
qurum qualificado. Alm disso, seu pertencimento aos elementos constitucionais
essenciais suscitaria o controle de constitucionalidade de todas as normas jurdicas que
tenham efeito sobre a distribuio de renda e riqueza e sobre a distribuio equitativa de
oportunidades. Um entendimento ntido sobre o princpio da diferena, sobre o princpio
da poupana justa, sobre a igualdade equitativa de oportunidades poderia ser
compartilhado por todos os poderes do estado e pelos cidados em sua compreenso dos
mandamentos constitucionais e das demais normas jurdicas, bem como das polticas
pblicas levadas a efeito. A distribuio de renda e riqueza e de postos de autoridade
poderia ser debatida como uma questo de direito fundamental e a possibilidade de
experimentao institucional nesse setor seria restrita.
Como acabamos de ver, vrias podem ser as implicaes da discusso da relao entre o
direito a um mnimo social, o princpio da diferena e a categoria de direitos
fundamentais. A esse respeito, cabe fazer algumas observaes. Embora o pensamento
de Rawls seja considerado bastante relevante na histria da filosofia prtica inclusive
por seus crticos, como mencionado anteriormente, h controvrsia em relao
natureza das solues por ele propostas para o problema da justia. H quem interprete
essa controvrsia como dificuldade de coerncia, de plausibilidade e de validade56
e h
quem a interprete como resultado da atratividade da prpria teoria, no sentido de que
uma teoria que exerce atratividade normalmente suscita objees57
. Neste trabalho,
estudo a oposio de uma objeo de coerncia entre partes importantes do pensamento
desse autor. No obstante essa e outras as crticas que possam ser apropriadamente
dirigidas sua obra, deve-se observar que ela est entre as que estabelecem, na transio
do sculo vinte para o sculo vinte e um, as linhas em que passou a ser realizada a
56
Sebastiano Maffettone; Salvatore Veca, 2005, p. xi. 57
Roberto Gargarella, 2008, p. xix-xx.
27
discusso sobre liberdade e igualdade em termos sociais e econmicos. Estudar a
relao entre o direito a um mnimo social, o princpio da diferena e os direitos
fundamentais no pensamento de Rawls uma forma de aproximar os estudos sobre
liberdade e igualdade social e econmica dos estudos jurdicos. No se trata de
defender uma nica leitura sobre direitos fundamentais ou sobre constituio com base
em um autor. Trata-se de tentar contribuir para o avano da compreenso sobre direitos
sociais e econmicos por meio do estudo de um autor que est fortemente relacionado a
essas discusses fundamentais. Por meio deste estudo, talvez seja possvel conhecer
melhor suas propostas. Isso certamente permite ampliar as possibilidades de soluo de
questes poltico-jurdicas relacionadas a direitos sociais e econmicos fundamentais
tanto sob a ptica desse autor, quanto sob a ptica de outros autores envolvidos na
discusso. A delimitao da discusso em termos de princpio da diferena e uma parte
dos elementos constitucionais essenciais um meio possivelmente mais produtivo de
levar a discusso sobre direitos sociais e econmicos fundamentais adiante. A
aproximao dos estudos sobre liberdade e igualdade social e econmica do meio
jurdico mais uma razo, a terceira, que me conduz realizao deste trabalho.
Em tendo sido feitas essas consideraes, talvez seja possvel afirmar que a estrutura da
pesquisa est relativamente definida e justificada. Isso nos permite prosseguir em
direo proposta de soluo do problema. S nos resta agora, em conformidade com
os objetivos especficos, tratar da teoria da justia como equidade no primeiro captulo,
da constituio da justia como equidade no segundo captulo, da constituio do
liberalismo poltico descrito por Rawls no terceiro captulo, do princpio da diferena no
quarto captulo e do direito a um mnimo social no quinto captulo. Essas descries
possuem uma importante dimenso interpretativa e, em meio a elas, o teste da hiptese
certamente nos levar a uma concluso.
28
CAPTULO I
29
1. A concepo da justia como equidade
Uma das principais preocupaes da teoria da constituio saber o que torna
tipicamente constitucional uma norma jurdica. Essa preocupao se justifica, uma vez
que as normas constitucionais ocupam a posio principal ou superior em meio s
demais normas jurdicas. A afirmao da relevncia superlativa da constituio uma
elaborao histrica no linear associada a vrias concepes polticas58
. Uma das
principais concepes polticas associadas a essa afirmao o liberalismo poltico.
Desde seu surgimento, o liberalismo poltico interpretado por seus prprios tericos de
diversas maneiras. Entre elas, est a interpretao realizada por John Rawls. As
implicaes dessa interpretao para a teoria da constituio precisam ser mais bem
compreendidas.
Inicialmente, Rawls aborda a constituio na fase em que seus estudos se voltam para a
elaborao da teoria da justia como equidade. Poder-se-ia pensar que, nesse momento,
Rawls no discute o liberalismo poltico. Essa suposio tem razo de ser em parte.
verdade que Rawls faz distino entre a justia como equidade e o liberalismo
poltico59
. preciso observar, no entanto, que a justia como equidade uma
interpretao do liberalismo poltico. Para Rawls, portanto, h a justia com equidade
[justice as fairness], que uma interpretao do liberalismo poltico entre tantas outras
interpretaes, e h o liberalismo poltico propriamente dito [political liberalism].
Portanto, a constituio abordada inicialmente por Rawls em meio a uma interpretao
do liberalismo poltico, a interpretao fornecida pela teoria da justia como equidade.
Neste captulo, a questo que se coloca a de saber como Rawls descreve a justia
como equidade. Uma das primeiras questes a resolver, por conseguinte, sobre o que
a teoria da justia como equidade. Procurarei fazer isso de forma introdutria e
mantendo em mente o objetivo de elucidar a relao entre ela e a questo constitucional.
Uma forma inicial de resolver a questo sobre o que a teoria da justia como equidade
elucidando a denominao da teoria: justia como equidade.
58
Mauro Capelletti, 1992. Maurizio Fioravanti, 1999. 59
John Rawls, 2005, p. xviii, p. xxix, p. 7.
30
1.1 Elucidando a denominao da teoria
A denominao da teoria veicula uma de suas principais caractersticas: a de que ela
uma teoria da justia que emprega o mtodo contratualista. A teoria da justia elaborada
por Rawls , como ele mesmo diz60
, uma concepo de justia cujas bases esto na
teoria do contrato social tal como ela encontrada em autores como Locke, Rousseau e
Kant61
. H, no entanto, distines no contrato social proposto por Rawls. Entre elas est
o fato de que ele no concebe o contrato social como o contrato que estabelece uma
forma de governo especfica ou uma sociedade especfica. O objeto do contrato no
nem um nem outro. Rawls concebe um acordo original que estabelece princpios da
justia para a estrutura bsica da sociedade [the basic structure of society] 62
. Os
princpios de justia, esses so os objetos ou, metonimicamente, o objeto do contrato
social ou do acordo original. O objeto do contrato so princpios da justia de que
devem resultar todos os demais acordos sociais. Rawls eleva, assim, a conhecida teoria
do contrato social a um nvel mais alto de abstrao63
, j que ela trata no desta ou
daquela forma de governo ou desta ou daquele tipo de cooperao social, mas de
princpios de justia para qualquer forma de governo ou para qualquer forma de
cooperao social.
Outra distino est na caracterizao do que ele chama de posio original [original
position]. A posio original corresponde ao estado de natureza da tradicional teoria do
contrato social. Essa uma situao puramente hipottica e no , evidentemente, vista
como uma situao histrica real e muito menos, diz Rawls, como uma condio
primitiva da cultura64
. Tambm Kant concebia o acordo original como puramente
60
John Rawls, 1971, p. 11; id., 1999a, p. 10. 61
Rawls observa que o contratualismo em questo est em John Locke, Segundo tratado do governo
[Second treatise of government] [1689]; em Jean-Jacques Rousseau, Do contrato social ou princpios do
direito poltico [Du contract social ou principes du droit politique] [1762]; e em Immanuel Kant,
comenando por Fundamentao metafsica dos costumes [Grundlegung zur Metaphysik der Sitten]
[1785]. A respeito de Leviat ou o problema, a forma e o poder de uma comunidade eclesistica e civil
[Leviathan or the matter, form, and power of a commonwealth ecclesiastical and civil] de Thomas
Hobbes [1651], Rawls afirma que, por toda sua grandiosidade, essa obra levanta problemas especiais.
Cf. John Rawls, 1971, p. 11; id., 1999a, p. 11; nota 4. 62
John Rawls, 1971, p. 11; id., 1999a, p. 10. 63
John Rawls, 1971, p. 11; id., 1999a, p. 10. 64
John Rawls, 1971, p. 12, p. 120; id., 1999a, p. 11, p. 104.
31
hipottico e, nisso, sua teoria converge com a clssica teoria do contrato social65
. Uma
caracterstica distintiva da posio original est no modo como as partes so pensadas.
As partes so pensadas como racionais e mutuamente desinteressadas66
. Rawls observa
que isso no significa que as partes sejam egostas, isto , indivduos com apenas
certos tipos de interesses, digamos em riqueza, prestgio e dominao 67
. No entanto,
observa Rawls, elas so concebidas como no tendo interesse nos interesses uns dos
outros, de sorte que mesmo as finalidades espirituais das partes podem ser opostas, isto
, mesmo as finalidades daqueles com diferentes religies podem ser contrrias entre
si68
. Ainda quanto s partes, Rawls assume que elas so pessoas morais, isto , so
pessoas racionais capazes de um senso de justia69
.
Alm dessas caractersticas das partes, a distino certamente mais marcante da posio
original est no que Rawls chama de vu da ignorncia [veil of ignorance]. As partes
escolhem os princpios da justia sob o vu da ignorncia. Isso significa que, embora
todas sejam capazes de um senso de justia, na posio original, ningum conhece suas
circunstncias sociais, ningum conhece suas circunstncias naturais, ningum sabe
sequer quais so suas concepes do bem, isto , quais so as finalidades pessoais que
elas pretendem atingir na vida ou mesmo quais so suas propenses psicolgicas
especiais70
. O vu da ignorncia garante que ningum seja favorecido ou desfavorecido
na escolha dos princpios da justia em razo quer de circunstncias sociais, quer de
circunstncias naturais. Ele garante que os princpios da justia possam ser escolhidos
como resultado do equilbrio entre as partes e de uma situao de imparcialidade.
H pouco, eu disse que a constituio abordada por Rawls inicialmente em meio a
uma interpretao do liberalismo poltico, a interpretao da teoria da justia como
equidade, e que uma das primeiras questes a resolver, portanto, era sobre que teoria
essa. Como ela composta de vrias partes, o que requer sua explicao gradual, eu
acabei optando por comear por sua denominao. Com efeito, a denominao da teoria
65
John Rawls, 1971, p. 12; id., 1999a, p. 11. 66
John Rawls, 1971, p. 13; id., 1999a, p. 12. 67
John Rawls, 1971, p. 13; id., 1999a, p. 12. This does not mean that the parties are egoists, that is,
individuals with only certain kinds of interest, say wealth, prestige, and domination. 68
John Rawls, 1971, p. 14; id., 1999a, p. 12. But they are conceived as not taking an interest in one
anothers interests. 69
John Rawls, 1971, p. 11; id., 1999a, p. 12. 70
John Rawls, 1971, p. 12; id., 1999a, p. 11.
32
da justia de Rawls veicula uma de suas principais caractersticas, a de que ela uma
teoria contratualista. Toda teoria contratualista se compe de pelo menos duas partes.
Uma descreve uma situao inicial da qual surge o contrato: isso envolve o problema da
escolha que se coloca ali. A outra descreve o acordo a que se chegou: os princpios
resultantes. O acordo, evidentemente, decorre da situao inicial. Como vimos, a
situao inicial do contratualismo de Rawls, a posio original, interpretada de modo a
permitir que princpios de justia aplicveis a qualquer sociedade ou a qualquer forma
de governo sejam elaborados de forma racional, consensual, mutuamente desinteressada
e sob o vu da ignorncia. Os princpios de justia escolhidos dessa forma,
especialmente em razo do vu da ignorncia, so resultantes de uma deciso entre
partes imparciais em suas convices, simtricas nas relaes recprocas e nas relaes
do todos com cada um, no propriamente porque elas se dizem ser assim, mas porque a
situao em que elas se encontram as torna assim. Os princpios da justia escolhidos
dessa maneira resultam, portanto, de uma situao equitativa71
: a teoria da justia como
equidade [justice as fairness] a teoria que descreve princpios de justia resultantes de
uma deciso consensual tomada numa situao de deciso idealmente equitativa [fair].
Na frmula justia como equidade, justia [justice] so os princpios de justia, a
concepo de justia, ao passo que equidade [fairness] a forma equitativa de escolha
desses princpios, o tipo de procedimento de escolha. Feita essa distino, torna-se
evidente que Rawls no realiza uma equivalncia entre os termos justia [justice] e
equidade [fairness]. Afinal, o nome [da teoria] no significa que os conceitos de
justia e equidade sejam os mesmos, no mais do que a frase poesia como metfora
signifique que os conceitos de poesia e metfora sejam os mesmos 72
. Nas palavras de
Rawls, essa maneira de ver os princpios da justia, eu chamarei justia como
equidade 73
.
1.2 A constituio como parte da estrutura bsica da sociedade
71
John Rawls, 1971, p. 12; id., 1999a, p. 11. 72
John Rawls, 1971, p. 12-13; id., 1999a, p. 11. The name does not mean that the concepts of justice and
fairness are the same, any more than the phrase poetry as metaphor means that the concepts of poetry
and metaphor are the same. 73
John Rawls, 1971, p. 11; id., 1999a, p. 10. This way of regarding the principles of justice I shall call
justice as fairness.
33
Estando resolvida a questo da denominao da teoria e estando apresentada a justia
como equidade, ainda que de modo muito incipiente, temos condies de vislumbrar os
primeiros lineamentos da relao entre ela e a constituio.
Ns vimos anteriormente que as partes, na posio original, discutem quais so os
princpios de justia para a estrutura bsica. Elas discutem a justia social. Nos termos
de Rawls, a justia social consiste em princpios de justia, isto , uma concepo de
justia, para a estrutura bsica da sociedade. Rawls fala em princpios da justia para a
estrutura bsica da sociedade e no em princpios de justia para a sociedade. A
estrutura bsica da sociedade a maneira pela qual as instituies sociais mais
importantes realizam duas coisas: distribuem direitos e deveres fundamentais e
determinam a diviso das vantagens advindas da cooperao social74
. A estrutura bsica
precisamente a maneira pela qual elas se encaixam num sistema e como elas
distribuem os direitos e deveres fundamentais e como elas moldam as vantagens que
emergem por meio da cooperao social75
. Isso significa que a constituio poltica e os
principais arranjos econmicos e sociais pertencem estrutura bsica76
. So exemplos
de instituies sociais mais importantes dados por Rawls: a proteo jurdica da
liberdade de pensamento e da liberdade de conscincia; os mercados competitivos e a
organizao da economia em geral; a propriedade privada dos meios de produo e
todas as formas juridicamente protegidas da propriedade; a famlia monogmica e assim
por diante77
. Em suma, a estrutura bsica da sociedade a maneira pela qual a
constituio poltica e os principais arranjos econmicos e sociais distribuem direitos e
deveres e repartem as vantagens resultantes da cooperao social.
Na teoria da justia como equidade, a constituio no aparece como objeto do acordo
inicial. O objeto desse acordo uma concepo de justia social: os princpios da justia
para a estrutura bsica da sociedade. A constituio aparece como um dos objetos da
justia. Ela o objeto da justia que apresenta um modo de distribuio de direitos e
deveres fundamentais. A constituio aparece ao lado do modo como os principais
arranjos econmicos e sociais distribuem as vantagens resultantes da cooperao social.
74
John Rawls, 1971, p. 7; id., 1999a, p. 6. 75
John Rawls, 1977, p. 159. 76
John Rawls, 1971, p. 7; id., 1999a, p. 6. 77
John Rawls, 1971, p. 7; id., 1999a, p. 6; id., 1977, p. 159; id., 2001, p. 162-168.
34
A justia como equidade distingue, portanto, entre o objeto do acordo inicial (a justia)
e o objeto da justia (a estrutura bsica) e interpreta a constituio como a instituio
social qual est associada a distribuio dos direitos e deveres fundamentais.
A constituio no responsvel pela diviso das vantagens advindas da cooperao
social. A repartio das vantagens advindas cooperao social resultado dos arranjos
econmicos e sociais e, tendo isso em mente, os arranjos econmicos e sociais no so a
constituio. Essa uma observao importante a respeito da justia como equidade. H
uma diviso de funes entre a constituio em os arranjos econmicos e sociais. A
diviso de funes entre a constituio e os arranjos econmicos e sociais na justia
como equidade est fora do curso de vrias anlises crticas a respeito da estrutura
bsica78
. Essa diviso tambm est fora da anlise realizada por Rawls em artigo
especfico79
, mas, no caso dele, as consideraes esto presentes em seu principal
escrito80
. O problema da fatorao da estrutura bsica ser retomado com mais detalhe
adiante. Por ora, vale observar que a estrutura bsica da sociedade repartida, na justia
como equidade, entre o modo como a constituio poltica distribui os direitos e deveres
fundamentais, a primeira parte da estrutura bsica, e o modo como as principais
instituies econmicas e sociais distribuem os frutos da cooperao social, a segunda
parte da estrutura bsica. A constituio faz parte, portanto, da primeira parte da
estrutura bsica. Sua caracterizao como primeira parte da estrutura bsica se justifica,
pois [] a constituio a fundao da estrutura social, o sistema da mais alta ordem
de regras que regulam e controlam outras instituies [] 81
.
A observao atenta do modo como Rawls descreve a estrutura bsica da sociedade
somada observao atenta do modo como Rawls descreve o objeto da justia na teoria
da justia como equidade nos mostra outra coisa muito importante. No contexto da
justia como equidade, posso dizer que a justia social ter tantos objetos identificveis
quantas forem as partes isolveis, no obstante sempre interligadas, da estrutura bsica.
Isso significa que a justia social tem como objeto parcial a constituio e como demais
78
Gerald Allan Cohen, 2000, p. 122-124; id., ibid., p. 134-142; Iris Marion Young, 2006, p. 91-97; Nancy
Fraser, 1996, p. 13-14. 79
John Rawls, 1977, p. 159-165. 80
John Rawls, 1971, p. 546; id., 1999a, p. 478. 81
John Rawls, 1971, p. 227; id., 1999a, p. 200. [] the constitution is the foundation of the social
structure, the highest-order system of rules that regulates and controls other institutions [].
35
objetos parciais as princi