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Igreja real na cultura digital - IPB Rio Preto · 2020-03-05 · 1 Prefácio Estes estudos não são técnicos, nem acadêmicos. Foram ministrados em fevereiro de 2020, no acampamento

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Igreja real na cultura digital © 2020 Editora [aguardando aprovação].Todos os direitos são reservados.

1a edição 2020 — 3.000 exemplares

Conselho Editorial[Aguardando aprovação][Aguardando aprovação][Aguardando aprovação][Aguardando aprovação][Aguardando aprovação][Aguardando aprovação][Aguardando aprovação][Aguardando aprovação]

Produção EditorialRevisão[Nome revisor 1][Nome revisor 2]

Editoração e CapaMisael Batista do Nascimento

[Nº] Nascimento, Misael Batista do

Igreja real na cultura digital / Misael Batista do Nascimento. São Paulo: Cultura Cristã, 2020

[Pgs] p.: 16x23 cm

ISBN [Número]

1. Religião 2. Bíblia 3. Experiência cristã 4. Internet (rede de computadores) 5. Redes sociais 6. Ciência e tecnologia 7. Educação cristã I. Título

CDD [Número]

[Aguardando aprovação].

Logo EditoraEDITORA AGUARDANDO APROVAÇÃO

[Aguardando aprovação][Aguardando aprovação][Aguardando aprovação][Aguardando aprovação][Aguardando aprovação][Aguardando aprovação]

AGUAR

DANDO A

PROVA

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Dedico este estudo a Deus que, em Jesus Cristo e no poder de seu Espíri-to, providenciou a mais poderosa, segura e desejável conexão.

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Sumário

Prefácio 1

1. O que é a cultura digital 3

2. Mistério, recato e superexposição 9

3. Os carros e os cavalos da cultura digital 23

4. A cultura digital desafia a igreja 39

5. Cultura digital, ovelhas e lobos 45

Referências bibliográficas 61

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Prefácio

Estes estudos não são técnicos, nem acadêmicos. Foram ministrados em fevereiro de 2020, no acampamento da Igreja Presbiteriana de São José do Rio Preto. Apresentam a cultura digital para cristãos desejosos de informação bíblica sobre o assunto.

Me interesso por este tema desde 1996. Estou envolvido com o desenvolvimento de sites e sistemas de bancos de dados (FileMaker Pro) desde 1998. Escrevi e publiquei dois livros sobre sistemas operacionais do Mac, além de uma dissertação de mestrado sobre livros digitais. Mas minha preocupação é, antes de tudo, pastoral. A cultura digital não é neutra e modifica o homem e, por conseguinte, a igreja. Não é mera ferramenta. Altera a concepção que temos das coisas criadas, incluindo de nós mesmos. É reducionista. Em sua transparência, bate de frente com o mistério. Expõe e planifica tudo. Em sua tela plana, só contempla altura e largura, sem profundidade. Seu poder reside no suposto atendimento a seis necessidades humanas.

Será que ela cumpre o que promete? A cultura digital favorece ou dificulta o discipulado? Os cristãos devem fugir ou funcionar dentro dela? Como as verdades da Bíblia podem e devem ser apresentadas e distribuídas na cultura digital? Nestes estudos, eu proponho respostas a estas questões.

Rev. Misael Batista do Nascimento (D.Min).

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1. O que é a cultura digital

Também disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança; tenha ele domínio sobre os peixes do mar, so-bre as aves dos céus, sobre os animais domésticos, sobre toda a terra e sobre todos os répteis que rastejam pela terra (Gn 1.26).

Iniciamos nossa reflexão sobre igreja real na cultura digital.1 Neste estudo eu destaco duas afirmações. Em seguida, baseado nelas, eu apresento uma definição de cultura digital. Daí, concluo com algumas aplicações.

Comecemos com as afirmações:1. Quando mencionamos a cultura digital, nós apontamos

para os mandatos de Deus na criação.2. Quando mencionamos a cultura digital, nós assinalamos

necessidades e desejos muito antigos.Vamos entender a primeira afirmação.

1.1. Quando mencionamos a cultura digital, nós apontamos para os mandatos de Deus na criação

No texto que lemos (Gn 1.26), Deus capacitou o homem para dominar sobre a criação. Teólogos reformacionais2 insistem que o man-dato de domínio na criação pode ser designado de mandato cultural.

Deus capacitou o homem para criar cultura. Mesmo depois da queda, Deus concedeu ao homem um tipo de graça, chamada de gra-ça comum, que lhe permitiu (ao homem), mesmo descrente, continuar desenvolvendo cultura. E o desenvolvimento de cultura implica desen-

1 Nestes estudos, “real” quer dizer “tangível”; “coisa que existe de fato”; “material”; “que pode ser visto, tocado, experimentado”.

2 A Teologia Reformacional é um desdobramento da Teologia Reformada, capita-neada por Abraham Kuyper, Herman Dooyeweerd e outros pensadores holandeses.

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volvimento de tecnologia, como podemos conferir em Gênesis 4.17-22. Caim cumpre o mandato cultural ao estabelecer uma cidade, demons-trando capacidade de obtenção e gerência de recursos e planejamento, bem como desenvolvimento e uso de técnicas construtivas. Jabal cumpre o mandato cultural fabricando tendas e investindo em pecuária. Jubal faz o mesmo incrementando música e Tubalcaim, trabalhando com fundi-ção e metalurgia.

A palavra “tecnologia” vem de technē, que significa “técnica” ou “arte”. Por isso, o produto desta técnica é chamado de artefato (uma flauta, um arado ou uma vasilha), e que o produz é denominado “artí-fice” ou “artesão”. Nesses termos, tecnologia é “tratado sobre uma ar-te”3 — a aptidão para produzir artefatos que “possuem uma dimensão social”,4 sem confundir com a arte como “manifestações da atividade humana diante das quais nosso sentimento é admirativo”.5 Por esta ótica, tanto um serrote, quanto um smartphone são tecnológicos enquanto produtos de técnica.

É nesse sentido que, quando mencionamos a cultura digital, nós apontamos para os mandatos de Deus na criação. Seja o que for que dissermos a partir de agora sobre a cultura digital, não podemos deixar de admitir que ela só existe porque Deus deu ao homem a capacidade de empreendê-la.

Isso nos conduz à segunda afirmação.

1.2. Quando mencionamos a cultura digital, nós assinalamos necessidades e desejos muito antigos

A cultura digital parece fazer sentido para o homem porque tem relação com necessidades e desejos primordiais. Primeiro, nós já vimos que Deus deu ao homem a capacidade de criar cultura e tecnologia. Isso equivale a dizer que Deus configurou o homem para querer empreen-der e realizar. Isso não tem a ver apenas com instinto de sobrevivência, como sugerem os teóricos darwinistas. Trata-se do código da criação.

3 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Tecnologia. In: Novo Dicionário Eletrô-nico Aurélio. Curitiba: Positivo Informática Ltda., 2009. CD-ROM.

4 VERKERK, Maarten Johannes; HOOGLAND, Jan; VAN DER STOEP, Jan; DE VRIES, Marc. J. Filosofia da Tecnologia: Uma Introdução. Viçosa: Ultimato, 2018, p. 35.

5 COLI, Jorge. O Que é Arte. São Paulo: Brasiliense, 2017. (Primeiros passos). Edi-ção do Kindle, p. 40-41.

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O QUE É CULTURA DIGITAL 5

Deus programou isso no Homem 1.0 (antes da queda). E o código está presente, modificado, no Homem 1.1 (depois da queda).

Segundo, se antes da queda o homem dominava como vice-ge-rente do Criador, depois da queda, o homem domina usurpando a honra (o título e o status) do Criador. Ele, o próprio homem, deseja dominar. Decaído, o homem tentou erigir Babel (Gn 11.1-9). Se antes, o exer-cício do mandato do domínio era sob o Deus vivo que preenche todas as coisas, a queda confere ao homem um desejo de domínio que cor-responde a expansão do próprio homem para o alto e para os lados. Se Babel corresponde à autorrealização do homem distante de Deus e associado por uma única linguagem, depois do juízo sobre Babel, o homem con-tinua movido por um desejo pela supressão das distâncias e limitações de linguagem e por desenvolver algo que preencha tudo — altura e largura — e abarque todas as coisas.

Terceiro, se podemos falar da possibilidade de desenvolvimento econômico, dada ao homem antes da queda (pelo mandato cultural), depois da queda, o homem corre risco de considerar o dinheiro mais importante do que o próprio homem e mais importante do que Deus.

Quarto, antes da queda, o homem tinha acesso a conhecimento suficiente (Gn 2.16-17). Depois da queda, o homem deseja conhecimento exaustivo — o conhecimento sobre tudo.

Quinto, Deus Criador deu ao homem outro mandato, chamado mandato social, não apenas como incumbência, mas como dádiva de não viver só (cf. Gn 2.18), ou seja, o mandato social se desdobra em desejo por se conectar e compartilhar, mas a queda afeta este desejo, abrindo espaço para conexões narcisistas e perversas. Mais do que isso, a queda transforma o desejo de conexão e compartilhamento em exposição co-mercial e pornográfica.

Sexto, Deus Criador nos convida a conhecê-lo e amá-lo, no man-dato espiritual (Gn 1.26-28; 2.15-17). Nós precisamos de conexão com o Criador — com o ser transcendente Primeiro e Último, que é tanto nossa origem quanto nosso destino. É dele que vem nossa vida, nosso sustento, nosso descanso, nossa alegria e nossa segurança. Isso é revelado desde a primeira palavra criadora, até o plantio e provisões no Jardim (Gn 1.1—2.25). E é dele que provém nossa salvação; basta conferir Deus interagindo em amor e assegurando a redenção, logo depois da queda (Gn 3.1-24). O problema é que depois da queda queremos vida fora dele, sustento a despeito dele, descanso desligados dele, alegria sem ele,

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segurança e salvação providas e garantidas por nossa própria capacidade e força.

Eis, então, seis necessidades do homem:1. Desejo de empreender e realizar.2. Desejo de suprimir distância e limitações. E de criar algo

por sua conta, que abarque todas as coisas.3. Desejo de ter, adquirir, prosperar.4. Desejo de conhecer exaustivamente.5. Desejo de se conectar e compartilhar.6. Desejo de transcender em termos de vida, sustento, descan-

so, alegria e segurança.Seis tipos de desejos; número de homem.Trocando em miúdos, quando mencionamos a cultura digital, nós

não estamos falando de algo necessariamente novo. De fato, estamos as-sinalando necessidades e desejos muito antigos.

Mandatos criacionais|

Desejos e empreendimentos humanos|

Cultura digitalFigura 1: Dos mandatos criacionais à cultura digital.

Isso nos conduz ao conceito de cultura digital.

1.3. Conceito de cultura digital

A cultura digital resulta dos seis desejos mencionados acima. Nes-tes estudos, definimos cultura digital como a totalidade das interações e realizações humanas interconectadas e compartilhadas pelas tecnologias de rede.

Ela resulta do desejo humano de empreender e realizar. Ela ofere-ce tecnologias e dispositivos que suprimem distância e limitações (e tem por objetivo abranger todas as coisas). Como culminação da civilização pós-industrial, ela impõe um modelo de sociedade de consumo. Ela pro-põe oferecer informação e conhecimento exaustivo sobre tudo. Ela não apenas permite, mas insiste na conexão e compartilhamento de tudo. Por fim, ela propõe transcendência — a participação em algo maior e

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O QUE É CULTURA DIGITAL 7

mais poderoso do que nós, melhoria de vida, sustento, entretenimento e segurança.

Alguns olham para a cultura digital com assombro, listando suas características e potenciais preocupantes. Para estes, as novas tecnologias são más, até diabólicas e devem ser evitadas especialmente pelos cristãos. Outros acolhem a cultura digital com entusiasmo. Veem nela algo muito bom, que deve ser incitado e propagado.

E é claro, há aqueles que simplesmente fazem uso das novas tec-nologias sem qualquer reflexão. Alguns acham que se trata apenas de um novo modo de fazer dinheiro. Outros imaginam que as novas tec-nologias são meros recursos que, como ferramentas, podemos usar para o bem o para o mal, sem qualquer consequência adicional. Nesta cate-goria — dos que fazem uso das novas tecnologias sem reflexão crítica — estão incluídas a geração Z (centennials ou geração i, chamados por Twenge de iGen), nascidos entre 2000-2009 e a geração Alfa, nascidos a partir de 2010.6

Resumindo, o que é cultura digital? Cultura digital é a totalidade das interações e realizações humanas interconectadas e compartilhadas pelas tecnologias de rede. A cultura digital promete seis coisas, ligadas a seis desejos muito antigos do homem.

Entendamos que tudo o que existe de bom e útil neste mundo provém de Deus na criação. Por causa da queda, o desfrute correto de tudo o que existe neste mundo exige que conheçamos e sirvamos a Cristo.

Será que a cultura digital cumpre o que promete? A cultura digi-tal favorece ou dificulta o discipulado cristão? Os cristãos devem fugir da cultura digital ou funcionar dentro dela? E se a resposta à última pergun-ta for “sim”, como as verdades da Bíblia podem e devem ser apresentadas e distribuídas na cultura digital? Eu proponho respostas a estas questões nos próximos estudos.

6 TWENGE, Jean M. iGen: Porque as Crianças Superconectadas de Hoje Estão Cres-cendo Menos Rebeldes, Mais Tolerantes, Menos Felizes e Completamente Despreparadas Para a Idade Adulta. São Paulo: nVersos, 2018, p. 22. As críticas à cultura digital são ordinariamente elaboradas por autores pertencentes à geração baby boomer (nascidos entre 1945-1964), geração X (nascidos entre 1965-1984) e geração Y (millenials, nascidos entre 1985-1999).

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2. Mistério, recato e superexposição

Os céus proclamam a glória de Deus, e o firmamento anuncia as obras das suas mãos. Um dia discursa a outro dia, e uma noite revela conhecimento a outra noite. Não há linguagem, nem há palavras, e deles não se ouve nenhum som; no entanto, por toda a terra se faz ouvir a sua voz, e as suas palavras, até aos confins do mundo. Aí, pôs uma tenda para o sol, o qual, como noivo que sai dos seus aposen-tos, se regozija como herói, a percorrer o seu caminho. Principia numa extremidade dos céus, até à outra vai o seu percurso; e nada refoge ao seu calor.A lei do Senhor é perfeita e restaura a alma; o testemunho do Se-nhor é fiel e dá sabedoria aos símplices. Os preceitos do Senhor são retos e alegram o coração; o mandamento do Senhor é puro e ilumina os olhos. O temor do Senhor é límpido e permanece para sempre; os juízos do Senhor são verdadeiros e todos igualmente, justos. São mais desejáveis do que ouro, mais do que muito ouro depurado; e são mais doces do que o mel e o destilar dos favos. Além disso, por eles se admoesta o teu servo; em os guardar, há grande recompensa.Quem há que possa discernir as próprias faltas? Absolve-me das que me são ocultas. Também da soberba guarda o teu servo, que ela não me domine; então, serei irrepreensível e ficarei livre de gran-de transgressão. As palavras dos meus lábios e o meditar do meu coração sejam agradáveis na tua presença, Senhor, rocha minha e redentor meu! (Sl 19.1-14).

Nós somos modificados pela superexposição digital. É por isso que te-mos de olhar para Salmos 19 pelo ângulo do desvelamento de mistérios. Com base neste Salmo, afirmo três coisas:

1. O universo contém mistério.2. Existe mistério em nós.3. A cultura digital é contrária a mistérios.

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IGREJA REAL NA CULTURA DIGITAL10

Como assim? Vamos tentar compreender isso prestando atenção na primeira declaração.

2.1. O universo contém mistério

O universo contém um mistério da glória e das obras das mãos de Deus. Começamos a ver isso em Salmos 19.1-6. Os v. 1-6 mencionam uma revelação na criação, que alguns chamam de revelação geral. Além disso, nos v. 7-11, nós lemos sobre outro tipo de revelação, a revelação da “lei” de Deus, das Escrituras (especial).

Tais revelações de Deus são sempre suficientes, mas não exausti-vas. Enquanto estamos deste lado da vida, nós conhecemos somente “em parte” (1Co 13.12). Isso deve nos fazer pensar que o universo contém um mistério da glória e das obras de Deus, graciosamente revelado pelo próprio Criador.

E isso significa, também, que o universo não é transparente; o universo é opaco; ele precisa ser opaco para resguardar o mistério. E que aquilo que concerne a Deus, relembremos, chega até nós, suficien-temente revelado, na Palavra de Deus, o que quer dizer que Deus e suas verdades não são transparentes; Deus e suas verdades são opacos; preci-sam ser opacos para resguardar o mistério, mostrar-se gradativamente, na dinâmica do desfrute de sua graça e comunhão, assim como aconteceu entre Jesus e os discípulos.

Isso é reforçado pela palavra do profeta: “Invoca-me, e te respon-derei; anunciar-te-ei coisas grandes e ocultas, que não sabes” (Jr 33.3). E ainda por Paulo, quando menciona “Cristo, em quem todos os tesouros da sabedoria e do conhecimento estão ocultos” (Cl 2.3; grifo nosso). Em Deus, há tanto desvelamento quanto ocultamento. Na caminhada cristã, nós crescemos na graça enquanto conhecemos mais ao nosso Senhor (2Pe 3.18; cf. Os 6.3).

Simples assim; o universo contém mistério — mistério da glória e das obras de Deus, revelado por graça e de modo suficiente, jamais exaustivo. Isso nos conduz ao segundo ponto.

2.2. Existe mistério em nós

Podemos conferir isso no v. 12: “Quem há que possa discernir as próprias faltas? Absolve-me das que me são ocultas”. Há coisas ocultas

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MISTÉRIO, RECATO E SUPEREXPOSIÇÃO 11

em nós, que nem mesmo nós conseguimos cavar, ler, interpretar ou en-tender. Davi usa um substantivo (sathar) — que transmite a ideia de algo “escondido”, “velado”, “coberto”, “secreto” e “não detectado”.7

Precisamos entender isso: nós não somos transparentes; nós tam-bém somos opacos; precisamos ser opacos para resguardar nosso misté-rio. Sendo assim, aquele que diz que se conhece plenamente, mente. Davi não se conhecia assim, só Deus nos conhece.

Eu não estou falando apenas sobre privacidade. Opacidade cor-responde a interioridade. Existe interioridade nas pessoas e coisas. E as coisas — de fato, toda a realidade — possuem positividade e negativi-dade, aquilo que delas conhecemos e o que não conhecemos, parte e contraparte.

Isso torna plausíveis algumas afirmações.Primeira afirmação: Há um sentido em que aquilo que Deus criou

não pode ser cem por cento objetivado (reduzido a teorias e conceitos), muito menos contado (reduzido a número) nem precificado (reduzido a valor monetário). Se a interioridade torna o objeto complexo, a com-plexidade torna o objeto inestimável ou incalculável. É por isso que a alma, na qual reside o pecado oculto de Davi, não tem preço; seu valor não pode ser estimado, como ensina o próprio Senhor Jesus Cristo nas parábolas das coisas e pessoas “perdidas”, de Lucas 15 (ovelha perdida, v. 3-7; dracma perdida, v. 8-10 e filhos perdidos, v. 11-32). Para Jesus, nem todas as riquezas do mundo são suficientes para somar o equivalente ao valor de uma alma (Mt 26.16). E João informa que “Babilônia” — a cultura oposta a Deus — favorece um mercado que precifica e monetiza tudo, inclusive “almas humanas” (Ap 18.11-13).

Segunda afirmação O resguardo do mistério é o pudor, cuja con-traparte é a nudez. Em Gênesis 2.25, “um e outro, o homem e sua mulher, estavam nus e não se envergonhavam”, mas o oposto disso é registrado em Gênesis 3.7: “Abriram-se, então, os olhos de ambos; e, percebendo que estavam nus, coseram folhas de figueira e fizeram cintas para si”. Não é sem razão que a Bíblia vincula a redenção com o vestir — com cobrir a nudez; e.g., em Gênesis 3.21: “Fez o Senhor Deus vestimenta de peles para Adão e sua mulher e os vestiu”. E ainda, uma palavra im-portante relacionada à redenção (ksh) tem o sentido tanto de perdoar

7 THOMAS, Robert L. New American Standard Hebrew-Aramaic and Greek Dic-tionaries: Updated Edition. Anaheim: Foundation Publications, Inc., 1998. Logos Software.

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quanto de cobrir ou ocultar: “Bem-aventurado aquele cuja iniquidade é perdoada, cujo pecado é coberto” (Sl 32.1).

Bonhoeffer fala sobre isso em seu trabalho não finalizado, Ética:

Em vez de ver Deus, o homem se vê. “Os olhos deles foram aber-tos” (Gn 3.7). O homem percebe a si mesmo em sua desunião com Deus e com os homens. Ele percebe que está nu. Sem a proteção, a cobertura que Deus e o próximo lhe proporcionavam, ele se vê nu. Daí surge a vergonha.8

Bonhoeffer prossegue:

Nasce o pudor. É a indestrutível lembrança do ser humano da sua separação da origem, é a dor decorrente desta separação e o desejo impotente de desfazê-lo. O ser humano se envergonha porque per-deu algo que faz parte de sua essência e de sua integridade.9

Terceira afirmação: Se admitir o mistério é fundamental na rela-ção com Deus, também o é na relação uns com os outros. Não apenas Deus cobre nossa nudez (ou vergonha), mas nós somos estimulados pela Escritura a cobrir a nudez de nossos irmãos, como consta em Gêne-sis 9.20-23. Enquanto Cam compartilhou e publicou a nudez de seu pai, Sem e Jafé a cobriram, preservando a pessoa do pai. Despertado do vinho, Noé amaldiçoou Cam, ao passo que abençoou Sem e Jafé (Gn 9.24-27). O mesmo princípio aparece novamente em Provérbios 11.13, onde lemos que “o mexeriqueiro descobre o segredo, mas o fiel de es-pírito o encobre”.

Ronald Wallace diz que João Calvino entendia que cada pessoa possui o seu próprio “véu de mistério”. O trato humano deve ser sem manipulação, reconhecendo e respeitando a singularidade e “véu de mis-tério” de cada ser.10 E prossegue:

O véu de mistério que cerca a vida de cada ser humano diante de Deus e que, de maneira especial cobre a vida do cristão em Cristo, não pode ser penetrado por outros. Sob nenhum pretexto, nin-

8 BONHOEFFER, Dietrich. Ethics. New York: Touchstone, 1995, p. 24. Tradu-ção nossa.

9 BONHOEFFER, Dietrich. Ética. 7. ed. São Leopoldo: Sinodal, 2005, p. 17.10 WALLACE, Ronald. Calvino, Genebra e a Reforma. São Paulo: Cultura Cristã,

2003, p. 141-142.

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MISTÉRIO, RECATO E SUPEREXPOSIÇÃO 13

guém deve procurar violar esse santuário escondido da pessoa pelo exercício de pressão social deliberada.11

A Reforma de Lutero e Calvino desdobrou este entendimento extinguindo a confissão auricular e sublinhando a liberdade de cons-ciência.12 E Bonhoeffer se mostra consistente com este entendimento. Ele diz que o pudor como tal deve ser respeitado, uma vez que “debaixo de tal máscara continua vivo o desejo pelo restabelecimento da unidade perdida”.13 Todas as máscaras pudicas serão removidas na consumação e Deus — somente ele — irá retirá-las (Mt 12.36-37; Rm 2.16; 1Co 4.5). Enquanto na dimensão atual, a verdade de Deus em Cristo exige o rela-cionamento humano conforme o espírito de Cristo, com consideração, humildade e amor (Fp 2.1-10). Uma ética cristã segundo a verdade de Deus em Cristo exige que, em determinados contextos, o homem não publique sua interioridade ou mistério. A exposição despudorada do mistério pode atender às demandas da cultura digital, mas não corres-ponde à moderação recomendada na Escritura (2Tm 1.7).

Para Byung-Chul Han, a opacidade da alma é fundamental para sua vitalidade. Sob total transparência, a alma é carbonizada e perde es-pontaneidade e vitalidade:

A alma humana necessita naturalmente de esferas onde possa estar junto de si mesma, sem o olhar do outro. Uma total “iluminação” iria carbonizar a alma e provocar nela uma espécie de burnout psíquico. Só a máquina é transparente; a espontaneidade — capacidade de fazer acontecer — e a liberdade, que perfazem como tal a vida, não admitem transparência.14

Em suma, a criação de Deus possui mistério, é opaca. Coisas e pessoas são opacas, não transparentes. E elas são complexas. Tão comple-xas que Davi pede a Deus que o perdoe de pecados que nem mesmo ele sabe que cometeu. Há opacidade e complexidade na alma que requerem cobertura e tratamento da graça de Deus. Isso quer dizer que a proposta de transparência total e de compartilhamento de tudo não é bíblica. A

11 WALLACE, op. cit. p. 142.12 Ibid., p. 141.13 BONHOEFFER, 2005, p. 17.14 HAN, Byung-Chul. Sociedade da Transparência. Petrópolis: Vozes, 2017, p. 23. Grifos

do autor.

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IGREJA REAL NA CULTURA DIGITAL14

saúde da alma exige manutenção da opacidade; pudor, espaço íntimo, velado e protegido; recato (cautela, prudência, resguardo).

Isso nos empurra para a última declaração.

2.3. A cultura digital é contrária a mistérios

A superexposição é um desnudamento público em favor da trans-parência. Na superexposição ocorre a primeira mudança no indivíduo, qual seja, o indivíduo não apenas publica suas ideias, produtos e serviços, mas ele — o próprio indivíduo — se torna projeto e produto.

Sócrates alertou para o perigo de uma nova tecnologia — a escrita — mudar o homem. Ele entendeu que a escrita modificaria a mente hu-mana. Tornaria a memória desnecessária e as pessoas pretensiosas, achan-do que sabiam de coisas que, na verdade, não tinham mais asseguradas na mente.15 Outros teóricos também argumentaram que as novas tecno-logias conduziriam o homem a uma mutação não apenas operacional, mas essencial.16

Tanto a rede, quanto o uso que se faz dela, passaram por altera-ções significativas.17 Em seus primórdios, a chamada web 1.0 era cons-tituída de páginas estáticas, focada em troca de arquivos. O uso militar das primeiras décadas cedeu espaço, até a metade dos anos 90, para o uso por acadêmicos e fãs de tecnologia. Do fim da década de 90 até início do séc. 21, a web 2.0 disponibilizou páginas dinâmicas e aplica-tivos on-line, possibilitando as redes sociais.18 Naquela época a rede foi

15 No Fedro, mencionando a fala de Tamos a Theuth, Sócrates lamentou a chegada das “artes da escrita”. Na opinião de Tamos, a escrita promete auxiliar a memória, mas, pelo contrário, resulta em desserviço à memória (pois os homens a usam menos, confiando no registro escrito) e no afastamento da verdade em si, encon-trada na interação pessoal entre o mestre e seu discípulo, em favor de uma: “apa-rente e não verdadeira sabedoria. Pois […] vão ouvir falar de muita coisa que não aprenderam e serão aparentemente sabidos em tudo, quando ignoram a maior parte — e ainda de convívio difícil —, feitos sábios em aparências e não em sa-beres” (PLATÃO. Fedro. São Paulo: Penguin Classics; Companhia das Letras, 2016, 275a-275b, p. 137).

16 É o caso de Marshall McLuhan e Jacques Ellul, mencionados neste estudo.17 O que consta aqui é adaptado de IDEAL MARKETING. Web 4.0: Quais São as

Expectativas Para o Futuro da Rede? Disponível em: <https://www.idealmarketing.com.br/blog/web-4-0/#linha-do-tempo>. Acesso em: 23 fev. 2020.

18 Foi o tempo do amadurecimento das linguagens de marcação (HTML e XHT-ML), apresentação (CSS) e automatização (e.g. JavaScript).

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MISTÉRIO, RECATO E SUPEREXPOSIÇÃO 15

celebrada como plataforma de autopublicação, de modo que Elizabeth Castro declarou que “a World Wide Web é a prensa de Gutenberg de nosso tempo”.19 Isso deu lugar à web 3.0, focada em semântica (orga-nização e uso inteligente de informação e ferramentas), e que resultou em meios cada vez mais interativos. A autopublicação foi otimizada por banda larga, os downloads e uploads ficaram mais rápidos, o streaming de áudio e vídeo se tornou finalmente operacional e os smartphones e aplicativos de mensagens se fizeram populares. Diferentes iniciativas convergiram para o entendimento de que não apenas é possível, mas necessário, efetuar a transição da World Wide Web (rede mundial) para uma World Wide Database (uma base de dados mundial), em que uma infinidade de documentos é convertida em uma infinidade de dados. Isso nos coloca no limiar da web 4.0, um sistema operacional que não apenas contém tudo, mas para opera a partir de aprendizado de máqui-na e inteligência artificial.

A web 4.0, segundo Seth Godin e alguns outros estudiosos, será como um gigantesco sistema operacional inteligente e dinâmico. Esse sistema será capaz de suportar as interações dos indivíduos, uti-lizando dados disponíveis, instantâneos ou históricos, para propor ou suportar a tomada de decisão. [...] Portanto, a principal diferença entre os outros estágios já mencionados aqui e a web 4.0, é que esta última fará a maior parte do trabalho de forma automática, basean-do-se num complexo sistema de inteligência artificial.20

Notemos que, nos primeiros momentos da rede, o indivíduo pu-blicava ideias, produtos e serviços. Han entende que, no momento atual, o sujeito se assume e publica como projeto e produto. Como empresário de si mesmo, ele é agora vergado pela exigência de desempenho.21 O resultado final desta empreitada, como sugere Han, é trágico e sinistro.

O sujeito de desempenho pós-moderno não está submisso a nin-guém. [..] Ele se positiva, liberta-se para um projeto. A mudança de sujeito para projeto, porém, não suprime as coações. [...] O projeto

19 CASTRO, Elizabeth. HTML for The World Wide Web. 5. ed. Berkeley, CA: Peachpit Press, 2003, p. 13. (Visual Quickstart Guide). Tradução nossa.

20 IDEAL MARKETING, op. cit. loc. cit.21 HAN, Byung-Chul. Sociedade do Cansaço. 2. ed. ampliada. Petrópolis: Vozes,

2017, p. 23.

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IGREJA REAL NA CULTURA DIGITAL16

se mostra como um projétil, que o sujeito de desempenho direcio-na contra si mesmo.22

A superexposição é condicionada pela rede. Jaron Lanier diz que “você está recebendo o equivalente a petiscos e choques elétricos quan-do usa as redes sociais”23 e explica que “quando recebem uma resposta lisonjeira a alguma publicação nas redes sociais, as pessoas adquirem o hábito de postar mais”.24 E não se trata apenas de motivação psicológica, mas também financeira, pois o ganho de um influenciador digital de-pende da quantidade de acessos a seu canal e de curtidas de suas publi-cações. Para as pessoas retornarem ao canal e também para atrair novos assinantes, é preciso publicar o máximo possível, no menor intervalo de tempo. O indivíduo se expõe em demasia na rede, a fim de obter mais volume de tráfego e curtidas.

Sim, hoje nós nos fazemos importantes nas redes sociais [...]. Nós produzimos informações e aceleramos a comunicação, na medida em que nos “produzimos”, nos fazemos importantes. Nós ganha-mos visibilidade, expomo-nos como mercadorias.25

É possível organizar o que vimos até aqui em uma tabela.

Cultura bíblica Cultura digital

Demanda por respeito aos mistérios (opacidade, essência e interioridade de

Deus e da criação)

Demanda por extinção dos mistérios (transparência)

Cobertura da nudez; decoro, recato Exposição da nudez; superexposição

O humano como ser que não pode ser objetivado nem precificado

O humano como projeto e produto (a rede objetiva e precifica tudo)

Tabela 1: Cultura bíblica versus cultura digital.

A cultura bíblica demanda por respeito aos mistérios (opacidade, essência e interioridade de Deus e da criação), cobertura da nudez (de-coro, recato) e entende o humano como ser que não pode ser objetivado

22 HAN, Sociedade do Cansaço, p. 101.23 LANIER, Jaron. Dez Argumentos Para Você Deletar Agora Suas Redes Sociais. Rio de

Janeiro: Intrínseca, 2018, p. 21.24 LANIER, op. cit., p. 22.25 HAN, Sociedade do Cansaço, p. 126.

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MISTÉRIO, RECATO E SUPEREXPOSIÇÃO 17

nem precificado. A cultura digital demanda por extinção dos mistérios (transparência), exposição da nudez (superexposição) e trato do humano como projeto e produto (precificação).

No Antigo Testamento, havia a nuvem da glória de Deus, que se resguardava em mistério (Êx 13.21-22; Is 45.15). Na cultura digital, há uma nuvem computacional constituída de dados coligidos, processados e interpretados por algoritmos, que promete presença e ajuda aos seus usuários. Esta nuvem é alimentada com cada vez mais dados, perscrutan-do e armazenando aquilo que, até então, residia apenas no recôndito da alma humana. Exige-se transparência total. Na nova nuvem, estão sendo guardados todos os nossos segredos.

Esse empuxo por transparência total e desvelamento (publica-ção) do mistério aparece no séc. 18, em um contexto de desconfiança do Estado e da Igreja.26 Consolida-se ali, a ideia de que o ser humano só é honesto quando assume transparência absoluta.27 Jean-Jacques Rou-sseau escreveu uma obra intitulada Confissões, onde consta o seguinte:

Seu coração, transparente como um cristal, não pode esconder nada do que nele se passa [...]. [...] todos os sentimentos, todos os pensamentos se tornam comuns, de tal modo que cada um, na medida em que assim se sente, como ele deve ser, se mostra a todos como ele é.28

Para Han, Rousseau instituiu a “ditadura do coração”.29 Isso con-duz a uma mudança no esquema apresentado no estudo anterior. A cul-tura digital não é apenas uma proposta de realização dos desejos huma-nos, mas uma iniciativa de abandono da cultura bíblica — que sublinha o mistério — em favor de um desvelamento (a negação da interioridade das coisas em favor de uma proposta equivocada de transparência). É por isso, que, como dissemos, a cultura digital é contrária a mistérios.

26 HAN, Byung-Chul. Sociedade da Transparência, p. 96. 27 Ralph Keyes explica como, nos diferentes sistemas éticos tribais, a ideia de verda-

de não correspondia ao conceito contemporâneo de transparência total, cf. KE-YES, Ralph. A Era da Pós-Verdade: Desonestidade e Enganação na Vida Contemporâ-nea. Petrópolis: Vozes, 2018, p. 26-40. Mesmo sem concordar com os pressupostos evolutivos de Keyes, suas ponderações são úteis.

28 HAN, Sociedade da Transparência, loc. cit.29 Ibid., loc. cit.

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IGREJA REAL NA CULTURA DIGITAL18

Mandatos criacionais|

Desejos|

DesvelamentoFigura 2: Dos mandatos criacionais à cultura de desvelamento.

Retornemos à pergunta do estudo 1: Será que a cultura digital cumpre o que promete? Com relação à quinta necessidade, de se conec-tar e compartilhar, a resposta é sim e não. Sim, porque, de algum modo, nós fomos aproximados uns dos outros pelas tecnologias de rede. Minha irmã em Mato Grosso tem mais de 70 anos, nunca usou um computador de mesa, mas ganhou um smartphone e conectou a família em um grupo. Isso me colocou em contato com parentes que eu não via faz duas décadas. Agora eu falo muito mais com minhas irmãs, tios, primas e sobrinhos de Mato Grosso, do Rio de Janeiro e de Brasília. Eu encontrei e também fui encontrado por amigos de infância, colegas de trabalho e amigos da igreja (dos tempos de mocidade), via Facebook. Por meio do WhatsApp, nós atendemos a uma necessidade antiga da igreja, de divulgar notícias e pedidos de oração urgentes a todos os membros. O WhatsApp tem sido usado para reuniões rápidas entre líderes de departamentos, ou equipe de pastores, ou entre pastores e a Secretaria da igreja. Idosos, enfermos e pessoas que estão viajando podem assistir à distância os cultos domi-nicais, bem como acessar os sermões (ouvir ou ler os PDFs) no site da igreja ou na Nuvem de Som. Outras igrejas conhecem e fazem uso dos conteúdos publicados em nossos sites (da igreja e do Centro de Trei-namento Presbiteriano). Pessoas que buscam igrejas em Rio Preto nos localizam e se aproximam a partir do site e de nossa página no Facebook. Sim. A tecnologia de rede abre um espaço para a prática do mandato social. Atende, de certo modo, a demanda humana por conexão e com-partilhamento.

Ao mesmo tempo, a resposta é não, porque a aproximação propicia-da pela rede não é, ainda, a experiência real de comunhão mostrada e exigida na Escritura. A amizade e comunhão bíblicas demandam presença física, não apenas contatos à distância. Deus não permaneceu como Deus na nuvem por muito tempo. Ele se tornou carne em Jesus Cristo, e veio ha-bitar entre nós (Jo 1.14). Jesus não apenas falou conosco, mas olhou em nossos olhos, e nos tocou (Mt 19.26; Mc 10.21; Mt 8.3; 9.29), bem como

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MISTÉRIO, RECATO E SUPEREXPOSIÇÃO 19

se deixou tocar (Jo 20.27; 1Jo 1.1). Dito de outro modo, o ambiente de rede tem sua utilidade para interações rápidas e superficiais, mas não substitui o encontro pessoal, demorado e profundo.

Conseguir se comunicar usando os protocolos da internet, não substitui ter comunhão olho no olho, seguindo os antigos protocolos da vida social. Para avançar para a comunhão verdadeira (confiança e intimidade), a ação recíproca entre pessoas requer o olhar nos olhos. Mas na rede não olhamos diretamente nos olhos das pessoas, e sim para um dispositivo — para a câmera de nosso computador ou smartphone.

A comunicação digital é uma comunicação pobre de olhar. [...] Isso porque não é possível, no Skype, olhar um ao outro. Quando se vê nos olhos o rosto na tela, o outro crê que se olha levemente para baixo, pois a câmera está instalada na extremidade superior do computador.30

O digital não substitui a conversa e o conhecimento face a face, como bem explica Han: “Na era do Facebook e do Photoshop, o ‘sem-blante humano’ se transformou em face, que se esgota totalmente em seu valor expositivo. A face é o rosto exposto sem qualquer ‘áurea da visão’. É a forma de mercadoria do ‘semblante humano’”.31

Repetindo, há importância na comunhão física. Aliás, o próprio Senhor Jesus Cristo instituiu uma cerimônia em que temos comunhão com ele e uns com os outros enquanto comemos e bebemos (atos fí-sicos). Há importância no compartilhar não apenas um conteúdo pela rede, mas também um lugar, a adoração, a Palavra, o pão e o vinho. Faz diferença se sentar ao lado de uma pessoa, e conhecê-la sem filtros nem edições. E conhecer famílias. E se sentar em torno de mesas. E construir um acervo de lembranças comuns. Ademais o amor e a amizade confor-me a Bíblia não anulam a opacidade da alma. Nós caminhamos uns com os outros respeitando o “véu de mistério” de cada pessoa.

Finalmente, a superexposição e precificação do indivíduo nas re-des é antibíblica e danosa, de diferentes maneiras. Ao se expor em dema-sia na rede, o indivíduo corre risco de deixar de lado o pudor, o decoro e o recato que resguardam o mistério. A superexposição inclina para o abandono da “modéstia e bom senso” recomendadas em 1Timóteo 2.9.

30 HAN, Byung-Chul. No Enxame: Perspectivas do Digital. Petrópolis: Vozes, 2018, p. 46.31 HAN, Sociedade da Transparência, p. 29.

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IGREJA REAL NA CULTURA DIGITAL20

O afã por superexposição pode confundir; o indivíduo deixa de se ver como criatura de Deus que possui interioridade (uma alma) que não tem preço, e passa a se ver como projeto e produto. A partir deste ponto, ele se esforça para se vender; revisa constantemente a si, como projeto, estabelece novas metas, com vistas a quebrar as anteriores — vender mais e melhor a si mesmo —, para assegurar fidelização e expansão de si mes-mo como marca. Isso é fatal para a interioridade. A alma morre ao ser precificada e exposta como item de mercado. Han denuncia isso como uma das causas das doenças neuronais:

Visto a partir da perspectiva patológica, o começo do séc. 21 não é definido como bacteriológico nem viral, mas neuronal. Doenças neuronais como a depressão, transtorno de déficit de atenção com síndrome de hiperatividade (Tdah), Transtorno de personalidade limítrofe (TPL) ou a Síndrome de Burnout (SB) determinam a pai-sagem patológica do começo do século 21. Não são infecções, mas enfartos, provocados não pela negatividade de algo imunologica-mente diverso, mas pelo excesso de positividade.32

Eu não sei se você prestou atenção nas palavras de Han. A cul-tura digital lançou o homem em uma nova sociedade. E o homem foi modificado no modo como compreende o trabalho, como enxerga a si mesmo, como se publica e se conecta ao mundo. Esse homem da cultura digital se estabelece como seu próprio capataz. Oprime a si mesmo. Su-jeita a si mesmo a um esforço extenuante para aparecer mais, se vender mais. E continuar se esforçando assim, queimando assim. Até apagar por completo. Burnout. A cultura digital sugere o ser como imagem.33 O ser como projeto e produto. Força a superexposição e precificação de tudo e todos. Cam expôs a nudez de seu pai a seus irmãos. Rousseau sugeriu um padrão de exposição absoluta, de um coração transparente como cristal. As tecnologias de rede permitem tanto uma quanto outra coisa.

A cultura digital modifica o homem. Não é mera ferramenta. Não é neutra. Altera a concepção que temos das coisas criadas, incluin-do de nós mesmos. É reducionista. Em sua transparência, bate de frente com o mistério. Expõe e planifica tudo. Em sua tela plana, só contem-pla altura e largura, sem profundidade. Deus, por sua vez, se oculta e se

32 HAN, Sociedade do Cansaço, p. 7-8.33 Cf. HAN, Sociedade da Transparência, p. 35: “O problemático não é o aumento das

imagens em si, mas a coação icônica para tornar-se imagem”; grifos do autor.

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revela na comunhão com ele, no discipulado. E o que recebemos dele é sempre suficiente, nunca exaustivo. Até entre humanos, amizade e intimidade demandam ocultamento e revelação. De fato, há mistério em nós, no cosmos e em Deus. É por isso que Davi conclui Salmos 19 assim (v. 12-14):

Quem há que possa discernir as próprias faltas? Absolve-me das que me são ocultas. Também da soberba guarda o teu servo, que ela não me domine; então, serei irrepreensível e ficarei livre de gran-de transgressão. As palavras dos meus lábios e o meditar do meu coração sejam agradáveis na tua presença, Senhor, rocha minha e redentor meu!

Ele não consegue desvendar o mistério do universo. Nem do Senhor do universo. Nem dele próprio. Ele só pode esperar na revelação, na Palavra de Deus. E isso com humildade, “não permita que eu seja soberbo” (v. 13). Desejando permanecer inteiro, “serei irrepreensível” (v. 13). Enquanto viver, Davi deseja falar e meditar — sobre a criação, sobre Deus e as Escrituras e sobre si mesmo — de modo agradável a Deus (v. 14). De fato, mesmo sem compreender tudo sobre todas as coisas, Davi tem plena confiança em uma coisa: o Senhor é o Deus dele. Rocha dele. Redentor dele!

Caminhemos na cultura digital como Davi, encomendando nos-so coração, nossa meditação e nosso modo de expressão aos cuidados e à graça de Deus!

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3. Os carros e os cavalos da cultura digital

Uns confiam em carros, outros, em cavalos; nós, porém, nos gloria-remos em o nome do Senhor, nosso Deus (Sl 20.7).

Estamos retomando nosso estudo sobre o tema igreja real na cultura di-gital. Nesta ocasião, nós faremos duas coisas. Primeiro, olharemos nova-mente para a lista dos seis desejos ou necessidades que o homem tem desde sempre (mencionadas no estudo 1). Em seguida, passaremos por cada ponto daquela lista, aplicando a cada um a seguinte pergunta: “De que modo cultura digital propõe atender a esta necessidade?”

Eis a lista de necessidades do homem:1. Desejo de empreender e realizar.2. Desejo de dominar.3. Desejo de adquirir (economia).4. Desejo de conhecer.5. Desejo de se conectar e compartilhar.6. Desejo de transcender (se ligar a algo maior e mais pode-

roso do que ele, sua origem e destino; desfrutar de vida; sustento; descanso; alegria; segurança e salvação).

A cultura digital transfunde34 o homem em seu modo de pensar, escrever, interagir e proceder no mundo. Modelos mentais e de identi-dade são alterados. Ela faz isso prometendo atender a estes seis desejos ou necessidades humanas.

34 O verbo “transfundir” corresponde a “transformar, transferir conteúdo (por exemplo, sangue; transfusão), converter” (HOUAISS, Antonio; VILLAR, Mauro de Sales. (Ed.). Transfundir. In: Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa. Versão 1.0.5a. Editora Objetivo Ltda., 2002. CD-ROM).

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3.1. A cultura digital parece atender ao desejo humano de empreender e realizar livremente, mas conduz a novas coações

A cultura digital consegue, em certa medida, atender ao desejo humano de empreender e realizar. Como dissemos, ela faz isso discor-dando dos termos originais do mandato cultural, de modo que a glória pelos empreendimentos e realizações deixa de ser dada a Deus e é trans-ferida para o homem. O empreendedor e realizador da cultura digital mergulha em sua proposta imaginando-se livre, sem perceber que esta o enreda em novos tipos de coação.

Marshall McLuhan previu que as novas tecnologias produziriam uma coação por participação. De acordo como ele, “[a tecnologia] obriga ao compromisso e à participação, independentemente de qualquer ‘pon-to de vista’”.35

Os que participam de redes sociais e grupos de mensagens sabem do que eu estou falando. Você inicia um blog, um canal ou uma conta em uma rede social. Para que este meio continue sendo bem visitado, você, como autor de conteúdo é forçado a publicar a maior quantidade de coisas novas no menor tempo possível. Existe uma coação por novas publicações e atualizações.

Quando uma pessoa envia uma mensagem, ordinariamente ela deseja que você responda imediatamente. Há uma coação por respostas instantâneas.

Para alguns, parece impensável ou impossível viver, trabalhar, se divertir ou mesmo exercer um ministério cristão sem utilizar tecnolo-gias digitais e redes sociais.

No campo da educação, caminha-se para a aprovação de projetos de lei cuja aplicação demandará o uso de dispositivos e novas tecnologias digitais nas escolas públicas.

No campo profissional, a proficiência no uso de recursos digitais agrega valor ao candidato a uma vaga de emprego, ou a uma promoção. Surgem novas atividades e profissões, focadas nestas novas tecnologias. Isso não é novidade, pois novas tecnologias sempre fizeram surgir novas profissões e, ao mesmo tempo, desaparecer (ou declinar) outras. Assim como a Revolução Industrial forçou a ida do homem do campo para as cidades, a cultura digital exige uma nova mudança, extinguindo profis-

35 MCLUHAN, Marshall. Os Meios de Comunicação Como Extensões do Homem. São Paulo: Cultrix, 1996, p. 19. Grifo do autor.

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OS CARROS E OS CAVALOS DA CULTURA DIGITAL 25

sões e gerando novas que demandam outras competências, adequadas à civilização tecnológica ou pós-industrial. Queira ou não, para conseguir uma posição no mercado do trabalho, o indivíduo tem de se ajustar aos ditames da cultura digital.

Parece que McLuhan acertou, ao apontar para o surgimento de uma nova coação premida pela tecnologia.36

3.2. O modo como a cultura digital elimina distâncias e limitações, bem como estabelece um sistema operacional

único, pode não beneficiar o homem

A cultura digital parece mesmo eliminar distâncias e limitações. Além disso, ela semelha estar próxima de estabelecer um sistema ope-racional único, capaz de processar todas as informações existentes sobre tudo, sem ingerência humana direta. Mas não há garantia de que isso traga benefício de longo prazo ao homem. Teóricos apontam para a per-da de respeito e estabelecimento de uma sociedade do espetáculo e do escândalo; para o ataque à privacidade e para o empobrecimento das experiências analógicas, engendrados pela cultura digital.

Han entende que com a eliminação da distância se esvai o respei-to, e se estabelece em seu lugar a sociedade do escândalo.

No trato respeitoso com os outros, controlamos o nosso observar [Hinsehen] curioso. O respeito pressupõe um olhar distanciado, um pathos de distância. Hoje, ele dá lugar a um ver sem distância, carac-terístico do espetáculo. O verbo latino spectare, ao qual espetáculo remonta, é um olhar voyeurístico, ao qual falta a consideração dis-tanciada, o respeito (respectare). A distância distingue o respectare do spectare. Uma sociedade sem respeito, sem o pathos da distância, leva à sociedade do escândalo.37

Yuvall Noah Harari explica a “internet de todas as coisas” não como dispositivos domésticos integrados em rede, mas como tudo sendo trazido para dentro da inteligência artificial.

Meu corpo, é claro, mas também os carros na rua, as geladeiras na cozinha, as galinhas em suas gaiolas e as árvores na floresta — tudo

36 McLuhan não usava a palavra “digital”; ele se referia às tecnologias “elétricas”.37 HAN, 2018, p. 11.

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deveria se conectar à internet de todas as coisas. [...] Não podemos deixar nenhuma parte do Universo desconectada da grande rede da vida. Inversamente, o maior dos pecados é bloquear o fluxo de dados. […] O dataísmo é o primeiro movimento desde 1789 a criar um valor realmente inovador: o da liberdade de informação.38

A ideia de liberdade de informação parece auspiciosa, mas bate de frente com o direito à privacidade, como esclarece Harari:

Esse novo valor choca-se com a tradicional liberdade de expressão, ao privilegiar o direito da informação de circular livremente em detrimento do direito dos humanos de manterem seus dados para si e impedirem sua movimentação.39

Por fim, a coação por publicação e compartilhamento modifica o modo como processamos as experiências.

Experiências não têm valor se não forem compartilhadas e [...] não precisamos — na verdade não podemos — encontrar significado em nosso interior. […] Se você for à Índia e deparar com um elefante, você não vai olhar para o animal e se perguntar “O que estou sentindo?” — você estará ocupado demais pegando seu smar-tphone, tirando uma foto do elefante, postando-a no Facebook, e depois conferindo sua conta a cada dois minutos para ver quantas curtidas obteve.40

No romance O Círculo, a protagonista é repreendida porque foi a uma festa, mas não postou nenhum conteúdo sobre a festa. Não é im-portante apenas viver uma experiência, e sim compartilhar na rede que você a viveu.41

3.3. Os horizontes de ganho abertos pela cultura digital demandam superexposição, precificação e autoexploração

O sucesso na mídia digital requer superexposição, precificação

38 HARARI, Yuvall Noah. Homo Deus: Uma Breve História do Amanhã. São Paulo: Companhia das Letras, 2016, p. 384-385.

39 HARARI, op. cit., p. 385.40 Ibid., p. 389.41 EGGERS, Dave. O Círculo. São Paulo: Companhia das Letras, 2014, p. 193.

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e autoexploração. Os verbos-chave desta cultura são publicar/compar-tilhar, monetizar e produzir. A tecnologia de rede tende a suprimir a perspectiva particular em favor da superexposição do ser.42 Isso equivale a considerar a si mesmo como um projeto-produto, ou seja, se vender.

Sob este prisma, tudo se reduz a mercadoria. De acordo com Han, “as coisas, agora transformadas em mercadorias, têm de ser expostas para ser, seu valor cultual desaparece em favor de seu valor expositivo”.43

Refletindo sobre superexposição, ele afirma que:

Na sociedade expositiva cada sujeito é seu próprio objeto-propa-ganda; tudo se mensura em seu valor expositivo. A sociedade expos-ta é uma sociedade pornográfica; tudo está voltado para fora, desve-lado, despido, desnudo, exposto. O excesso de exposição transforma tudo em mercadoria que “está à mercê da corrosão imediata, sem qualquer mistério”.44

Esta ”vida voltada para o lucro, não é livre”.45 Na Escritura, a prá-tica de se vender vincula-se a corrupção, ao ato de se tornar escravo ou se prostituir (Sl 26.9-10; 105.17; Gn 38.15-18). E como vimos no estudo anterior, a autoexploração pode conduzir ao burnout.

3.4. A cultura digital propõe atender o desejo por conhecer, mas mais informação não implica mais conhecimento

A proposta da cultura digital é de substituir as fontes analógicas de conhecimento por uma interface de pesquisa capaz de responder a qualquer questão, sobre qualquer coisa, em qualquer lugar ou tempo.

Não há dúvida da relevância dos recursos digitais para pesquisa, mas maior volume de informação não equivale a mais conhecimento. Grande quantidade de informação não fomenta mais inteligência: “Uma montanha de fatos pode […] servir de obstáculo ao entendimento. Há uma sensação, hoje em dia, de que temos acesso a muitos fatos, mas 42 HAN, 2017, p. 19-20.43 HAN, Sociedade da Transparência, p. 26, grifos do autor, remete à aura das obras de

arte, preconizada por Walter Benjamim; cf. BENJAMIM, Walter. A Obra de Arte da Época de Sua Reprodutibilidade Técnica. 2. reimp. 2014. Porto Alegre: Zouk, 2012, p. 23-25.

44 HAN, Sociedade da Transparência, p. 31-32. Han cita BAUDRILLARD, Jean. Die Fatalen Strategien. Munique: Matthes & Seitz Verlag, 1992, p. 71.

45 HAN, Sociedade do Cansaço, p. 119.

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não necessariamente ao entendimento desses fatos”.46 O conhecimento das coisas pode até ser prejudicado pelo fato de, na cultura digital, o pensamento sistêmico ceder espaço para o fragmentado e a emoção se sobrepor à razão (tudo chama à expressão dos sentimentos e decisão intempestiva; clique aqui!). As novas tecnologias privilegiam o rápido e o instantâneo, ao invés do contemplativo e o lento; e o disperso e frag-mentado, em lugar do focado e sistêmico.

Na experiência digital, a mente cada vez mais se parece com um quadro de anotações curtas. A vida intelectual a partir das redes sociais é constituída de pedaços diminutos de informação. Isso pode decorrer do uso pouco esclarecido47 de quatro recursos: textos multimodais; links; playlists e buscas por frase ou palavra-chave.

Os textos multimodais são aqueles quadros contendo figuras ao fundo e saudações ou frases curtas, algumas atribuídas a determinado autor, e.g., uma figura com uma suposta citação de Martinho Lutero. Os textos multimodais são úteis para transmitir mensagens atrativas. O pro-blema é que o usuário corre risco de visualizar, curtir e compartilhar este tipo de conteúdo sem conferir se realmente Lutero disse ou escreveu o que consta na figura. A mente deixa de ser desafiada em seu discerni-mento e capacidades de processamento de conteúdo amplo e complexo, tornando-se mero repositório de lembretes.

Um link (ou hiperlink) é uma ligação entre partes diferentes de uma página, entre páginas diferentes de um site ou entre páginas de sites diferentes. Hiperlinks são identificados normalmente por texto azul sub-linhado ou botões. Ao passar o mouse sobre eles há uma modificação do cursor, que na maioria dos sites se transforma em uma pequena mão. Os links dão acesso imediato a outros endereços na rede e, uma vez clicados, enviam o usuário para aquela nova direção.48 Não creio que seja exagero dizer que links são a razão inicial do sucesso da internet. Para quem lia textos no computador nas décadas de 70 e 80, era incrível ir de uma parte a outra de um documento clicando nos links. O perigo que eles oferecem é o de desviarem o foco imediato para outra direção. O usuá-

46 ADLER, Mortimer J.; VAN DOREN, Charles. Como Ler Livros: O Guia Clássico da Leitura Inteligente. São Paulo: Realizações Editora Ltda., 2011, p. 25. (Coleção Educação Clássica).

47 Ao dizer “pouco esclarecido”, eu afirmo que não sou contra tais recursos (eu os considero úteis quando bem utilizados). O problema está no mal-uso deles.

48 É possível ainda usar links de e-mail, que permitem aos visitantes encaminharem mensagens de correio eletrônico a quem possa interessar.

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rio acessa um novo conteúdo sem processar adequadamente o anterior.Uma playlist é, grosso modo, uma lista de músicas ou áudios. Na

era analógica, adquiria-se um disco de vinil, que, pelo menos na pri-meira vez em que era tocado, era ouvido por inteiro (depois as faixas prediletas eram mais acessadas). Em uma playlist, “o que ouvimos pode ser programado em qualquer sequência”.49 Essa possibilidade de acessar conteúdos em qualquer sequência, aumentada exponencialmente pelas tecnologias digitais, abre espaço para uma dessedimentação intelectual. Uma matéria cujo entendimento devido exija o estudo prévio de outra, pode ser acessada aleatoriamente. Se antes a construção do conhecimento re-queria que o conteúdo “C” seguisse o conteúdo “B”, e este construto, “B”, seguisse o construto “A”, agora, o conteúdo “C” pode ser acessado antes do conteúdo “A”. Os pastores lidam com esse problema cada vez mais frequente, de pessoas confusas quanto à doutrina da predestinação, porque mergulharam em leituras na internet sobre esta doutrina antes de compreender adequadamente as doutrinas da Trindade, da Criação, da Providência e dos Decretos de Deus.

A possibilidade de fazer buscas rápidas, indo direto para aquilo que queremos facilita a vida do pesquisador, mas abre espaço para uma alteração de comportamento e para um procedimento errático: [a] o usuário pode ficar cada vez mais impaciente com atividades mentais que exijam lentidão e esforço; [b] é possível localizar um parágrafo ou citação sem prestar atenção ao seu contexto; o construto deixa de ser lido ou conhecido em sua totalidade e com profundidade.

A linguagem e a agenda também sofrem mudanças. Emoticons e emojis substituem palavras. Dispositivos registram e controlam a vida, do acordar ao adormecer. Este estado de coisas (em que tudo é registrado, publicado, curtido e compartilhado) é exaustivo: “Notificações [...] exi-gem verificação e resposta quase imediata — e isso ininterruptamen-te”.50 Para Daniel Levitin, “só a tentativa de manter organizados os nos-sos arquivos eletrônicos e de mídia pode ser agonizante”.51

Esse excesso de demandas prejudica a profundidade: “nós con-

49 SENNETT, Richard. A Cultura do Novo Capitalismo. Rio de Janeiro: Record, 2006, p. 49.

50 SCHWERTLY, Scott. How to Win Your Audience’s Heart In 7 Minutes. Disponível em: <https://blog.slideshare.net/2015/03/11/how-to-win-your-audiences-hear-t-in-7-minutes/>. Acesso em: 11 mar. 2015.

51 LEVITIN, Daniel J. A Mente Organizada: Como Pensar Com Clareza Na Era da Sobrecarga de Informação. Rio de Janeiro: Objetiva, 2015, p. 31.

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centramos nossa capacidade cognitiva e perceptiva em uma conversa, em uma ideia fascinante ou em uma tarefa, excluindo todas as outras. É aí que começa a profundidade”.52 O cansaço (decorrente da sobre-carga de informação e interações) imbrica em desatenção. Em 1996 o psicólogo britânico David Lewis cunhou o conceito de SFI (Síndrome da Fadiga de Informação).53 Han esclarece que: “os afligidos reclamam do estupor crescente das capacidades analíticas, de déficit de atenção, de inquietude generalizada ou de incapacidade de tomar responsabi-lidades”.54 Os incrementos da velocidade de processamento tornam os usuários impacientes. Olha-se para tudo. Rapidamente. Corre-se risco de responder, concordando ou discordando, sem compreender o que foi anteriormente postado.

3.5. A conexão digital não atende ao requerido pelo mandato social e favorece o isolamento e o narcisismo

Como vimos, a conexão on-line não substitui a contento a cone-xão pessoal, física. Pelo contrário, o espaço das redes fomenta o narcisis-mo. “O narcisista não está afeito a experiência, ele quer vivenciar — em tudo com que se encontra ele quer vivenciar a si mesmo. [...] Bebe-se no si mesmo”.55 Han argumenta que existe diferença entre o amor--próprio (saudável) e o narcisismo. O narcisismo promove um tipo de derramamento do eu: “No amor-próprio, o limite para com o outro é claramente contornado. No narcisismo, ao contrário, ele se funde. O eu difunde-se e torna-se difuso”.56

Se no mito grego Narciso se deleitava vendo a si mesmo espelha-do na fonte, atualmente, o smartphone é o espelho: “O smartphone fun-ciona como um espelho digital para a nova versão pós-infantil do estágio do espelho. Ele abre um espaço narcísico, uma esfera do imaginário na qual eu me tranco. Por meio do smartphone o outro não fala”.57 Andrew Keen sublinha o narcisismo incitado pela cultura digital, descrevendo-a

52 POWERS, William. O Blackberry de Hamlet: Filosofia Prática Para Viver Bem Na Era Digital. São Paulo: Alaúde Editorial, 2012, p. 25.

53 HAN, 2018, p. 105.54 Ibid., p. 104.55 SENNET, Richard. Verfall und Ende des öffentlichen Lebens — Die Tyrannei

der Intimität. Berlim, 2008, p. 563, apud HAN, Sociedade do Cansaço, p. 84.56 HAN, op. cit., loc. cit.57 HAN, 2018, p. 45.

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como “uma mistura de ignorância com egoísmo, mau gosto e ditadura das massas. […] Com anabolizantes”.58 Acerca do YouTube ele diz:

O slogan do YouTube é “Transmita-se a si mesmo”. E transmitir a nós mesmos é o que fazemos, com toda a autoadmiração desaver-gonhada do Narciso mítico. À medida que a mídia convencional tradicional é substituída por uma imprensa personalizada, a internet torna-se um espelho de nós mesmos. Em vez de usá-la para buscar notícias, informação ou cultura, nós a usamos para SERMOS de fato a notícia, a informação, a cultura.59

E mencionando os sites de relacionamento, ele prossegue:

Como santuários para o culto da autotransmissão, esses sites torna-ram-se repositórios de nossos desejos e identidades individuais. Eles se dizem devotados à interação social, mas na realidade existem para que possamos fazer propaganda de nós mesmos.60

Por fim, o foco no desempenho da cultura digital dificulta ao indivíduo firmar ligações intensas. “O sujeito do desempenho pós-mo-derno, que dispõe de uma quantidade exagerada de opções, não é capaz de estabelecer ligações intensas”.61

3.6. A cultura digital não supre a necessidade humana de transcender, decorrente do mandato espiritual

A cultura digital propõe a conexão com uma coisa toda-abran-gente e maior do que nós (a Grande Nuvem de Dados). Ela suposta-mente oferece aos que a buscam: vida melhor do que a vida; sustento e suporte para tudo; descanso e alegria e segurança e salvação.

A cultura digital sugere uma vida — na rede — melhor do que a vida fora da rede. A vida na rede é editada e filtrada. O indivíduo-pro-duto-projeto se projeta, se torna uma projeção ou imagem editada mais vivaz e perfeita do que o indivíduo não editado e real. Pastores, conse-

58 KEEN, Andrew. O Culto do Amador: Como Blogs, Myspace, Youtube e a Pirataria Di-gital Estão Destruindo Nossa Economia, Cultura e Valores. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009, p. 7.

59 KEEN, op. cit., p. 12.60 Ibid., loc. cit.61 HAN, Sociedade do Cansaço, p. 92.

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lheiros e igrejas on-line são editados e aparentemente melhores do que os pastores e ministérios locais. Pastores são tidos como influenciadores digitais.

A cultura digital oferece sustento e suporte para tudo. Há apli-cativos e dispositivos que monitoram nossa casa e nosso corpo. Estão disponíveis dicas e soluções para virtualmente tudo, bastando acessar a próxima live, post ou tutorial. Com os dispositivos vestíveis (óculos, re-lógios etc.), o usuário é diuturnamente monitorado e recebe relatórios sobre suas atividades físicas, qualidade de sono, batimentos cardíacos e pressão sanguínea, ao mesmo tempo em que ouve músicas e confere podcasts, redes sociais e e-mails. O resultado disso é mais confiança na tecnologia; menor necessidade sentida de insuficiência e dependência de ajuda externa ao sistema.

Quanto ao descanso e alegria, a rede oferece coisas para relaxar e se entreter em quantidade virtualmente inesgotável. Filmes, documen-tários, animações, séries, música, vídeos e games — tudo isso pode ser consumido, gratuitamente ou por custos acessíveis. É só escolher o en-tretenimento, navegar por uma interface, clicar em um link e, preten-samente, relaxar. Mas o indivíduo da cultura digital, como máquina de desempenho, não relaxa.62 Não descansa de fato. Faz uso do entreteni-mento atento às notificações que exigem providências e retornos ime-diatos. Ele não se desliga do sistema, apenas abre espaço para intervalos, disposto a retomar as atividades, sempre que solicitado por demandas externas ou movido pelo próprio impulso de fornecer retornos, publicar e compartilhar. O tipo de descanso proposto pela cultura digital termina produzindo uma forma específica de cansaço que individualiza e isola. Como afirma Han, “o cansaço da sociedade de desempenho é um cansa-ço solitário, que atua individualizando e isolando”.63 Tal cansaço, por fim, cala e consome a alma.64 O entretenimento da cultura digital, ainda que abundante, tende a ser desfrutado como recreação individualista, isolada e que não contribui para edificar a alma.

Quanto às supostas segurança e salvação; a cultura digital insiste na ideia de que, sob o olhar e cuidados da Grande Nuvem, nós estaremos monitorados e protegidos. Quanto à segurança, a rede se coloca como meio para prover subsídios para as decisões importantes da vida. Harari

62 Ibid., p. 70.63 Ibid., p. 71.64 Ibid., loc. cit.

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explica que, na Babilônia antiga, as pessoas buscavam orientação para as decisões mais importantes da vida no céu, acreditando que seu destino dependia das estrelas. Em seguida, no Judaísmo e Cristianismo, as pessoas buscavam orientação nos rabinos, padres e pastores, que aconselhavam com base nas Sagradas Escrituras. O humanismo rompeu com a religião, insistindo que as decisões importantes da vida são tomadas pelo indiví-duo, ancorado em sua razão ou coração. Na cultura digital, decisões cru-ciais, e.g., sobre com quem vamos nos casar, são tomadas e recomendadas pelos algoritmos.65

Babilônia antiga: o céu|

Judaísmo e cristianismo: a Bíblia|

Humanismo: o eu (a voz interior)|

Cultura digital: os algoritmosFigura 3: Onde buscamos ajuda: dos tempos antigos à cultura digital.

De acordo com Harari:

Os algoritmos do Google e do Facebook sabem não apenas como você se sente, como sabem 1 milhão de outras coisas a seu respeito das quais você mal suspeita. Consequentemente, você deveria parar de ouvir seus sentimentos e começar a ouvir esses algoritmos ex-ternos [...]. O humanismo ordenava: “Ouçam seus sentimentos!”; o dataísmo agora ordena: “Ouçam os algoritmos! Eles sabem como você se sente”.66

Quanto à salvação, a cultura digital propõe escatologias, algumas otimistas, outras nem tanto. Alguns acreditam que a Grande Nuvem en-

65 HARARI, op. cit., p. 392-393. Um algoritmo é um “conjunto das regras de operação (conjunto de raciocínios) cuja aplicação permite resolver um problema enunciado por meio de um número finito de operações; pode ser traduzido em um programa executado por um computador, detectável nos mecanismos grama-ticais de uma língua ou no sistema de procedimentos racionais finito, utilizado em outras ciências, para resolução de problemas semelhantes” (MICHAELIS, Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa. Disponível em: <http://michaelis.uol.com.br/palavra/4lD9/algoritmo/>. Acesso em: 22 Fev. 2020).

66 HARARI, op. cit., p. 394. O estado emocional do usuário é alimentado com, dentre outros dados, os cliques em emoticons que indicam como este está se sentindo.

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gendrará um mundo de bem-estar, assegurado pela Tecnologia usada para fins excelentes. Outros são pessimistas quanto ao mundo governado por inteligência artificial. Para Jacques Ellul,67 a sociedade tecnológica im-brica no homem-máquina, na dissociação ou fragmentação do homem e no estado apocalíptico que ele denomina Integração Total.68 Marshall McLuhan diz que as tecnologias fragmentárias implodirão o mundo69 e prevê um futuro dúbio para o planeta interconectado.

Durante as idades mecânicas projetamos nossos corpos no espaço. Hoje, depois de mais de um século de tecnologia elétrica, projeta-mos nosso próprio sistema nervoso central num abraço global, abo-lindo tempo e espaço […]. Estamos nos aproximando rapidamente da fase final das extensões do homem: a simulação tecnológica da consciência, pela qual o processo criativo do conhecimento se es-tenderá coletiva e corporativamente a toda a sociedade humana, tal como já se fez com nossos sentidos e nossos nervos através dos diversos meios e veículos. Se a projeção da consciência — já antiga aspiração dos anunciantes para produtos específicos — será ou não uma “boa coisa”, é uma questão aberta às mais variadas soluções.70

Harari cria a palavra “dataísmo”, para explicar um sistema que “[interpreta] toda a espécie humana como um sistema único de proces-samento de dados, no qual indivíduos humanos servem como chips. Se é assim também podemos compreender toda a história como um pro-cesso de melhora desse sistema”.71 Ele acredita que, no dataísmo, os seres humanos desenvolverão “um sistema de processamento de dados ainda mais eficiente, chamado internet de todas as coisas. Uma vez cumprida essa missão, o Homo sapiens desaparecerá”.72 Após constatar e criticar o dataísmo como um novo sistema religioso, Harari conclui seu texto com três perguntas:

Será que os organismos são apenas algoritmos, e a vida apenas pro-cessamento de dados? O que é mais valioso — a inteligência ou a

67 ELLUL, Jacques. The Technological Society. Vancouver, WA: Vintage Books, 1964, p. 79-148.

68 Ibid., p. 387-432.69 MCLUHAN, op. cit., p. 17.70 MCLUHAN, op. cit., loc. cit.71 HARARI, op. cit., p. 380.72 Ibid., p. 383.

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consciência? O que vai acontecer à sociedade, aos políticos e à vida cotidiana quando algoritmos não conscientes, mas altamente inte-ligentes, nos conhecerem melhor do que nós nos conhecemos?73

É digno de nota que Lanier, o pai da tecnologia da realidade vir-tual, tenta demover seus leitores das redes sociais. Para ele, pelo menos em sua configuração atual, as redes sociais (1) retiram do homem sua capacidade de fazer escolhas;74 (2) tornam os usuários reféns da “insani-dade dos nossos tempos”;75 (3) mudam o caráter dos usuários para pior;76 (4) “minam a verdade”;77 (5) “transformam o que você diz em algo sem sentido”;78 (6) “destroem sua capacidade de empatia”;79 (7) “deixam você infeliz”;80 (8) “não querem que você tenha dignidade econômica”;81 (9) “tornam a política impossível”82 e, por fim, (10) “odeiam sua alma”.83

Do ponto de vista religioso, a Grande Nuvem se torna nossa conexão mais significativa e frequente, quase onipresente e onisciente, dotada de grande poder. Ao afirmar que a cultura digital existe por causa do mandato cultural, reconhecendo que as novas tecnologias são notá-veis, nós não perdemos de vista que a cultura digital, no fim das contas, não passa de realização do homem. Como os ídolos do Antigo Testa-mento, trata-se de um artefato ou, como Babel, de uma superestrutura feita por mãos humanas. Sendo assim, é sábio interagir com ela atentos ao alerta de Isaías:

Quem formaria um deus ou fundiria uma imagem de escultura, que é de nenhum préstimo? Eis que todos os seus seguidores fica-riam confundidos, pois os mesmos artífices não passam de homens; ajuntem-se todos e se apresentem, espantem-se e sejam, à uma, envergonhados.

73 Ibid., p. 399.74 LANIER, op. cit., p. 13-38.75 Ibid., p. 39-56.76 Ibid., p. 57-74.77 Ibid., p. 75-86; cf. KAKUTANI, Michiko. A Morte da Verdade. Rio de Janeiro:

Intrínseca, 2018, passim.78 Ibid., p. 87-97.79 Ibid., p. 98-108.80 Ibid., p. 109-124.81 Ibid., p. 125-140.82 Ibid., p. 141-162.83 Ibid. p. 163-188. Nos pontos 6, 7, 9 e 10, Lanier aborda questões analisadas deti-

damente por HAN, Sociedade do Cansaço e HAN, 2018.

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O ferreiro faz o machado, trabalha nas brasas, forma um ídolo a martelo e forja-o com a força do seu braço; ele tem fome, e a sua força falta, não bebe água e desfalece. O artífice em madeira esten-de o cordel e, com o lápis, esboça uma imagem; alisa-a com plaina, marca com o compasso e faz à semelhança e beleza de um homem, que possa morar em uma casa. Um homem corta para si cedros, toma um cipreste ou um carvalho, fazendo escolha entre as árvores do bosque; planta um pinheiro, e a chuva o faz crescer.Tais árvores servem ao homem para queimar; com parte de sua madeira se aquenta e coze o pão; e também faz um deus e se prostra diante dele, esculpe uma imagem e se ajoelha diante dela. Metade queima no fogo e com ela coze a carne para comer; assa-a e farta--se; também se aquenta e diz: Ah! Já me aquento, contemplo a luz. Então, do resto faz um deus, uma imagem de escultura; ajoelha-se diante dela, prostra-se e lhe dirige a sua oração, dizendo: Livra-me, porque tu és o meu deus. Nada sabem, nem entendem; porque se lhes grudaram os olhos, para que não vejam, e o seu coração já não pode entender. Nenhum deles cai em si, já não há conhecimento nem compreensão para dizer: Metade queimei e cozi pão sobre as suas brasas, assei sobre elas carne e a comi; e faria eu do resto uma abominação? Ajoelhar-me-ia eu diante de um pedaço de árvore? (Is 44.10-19).

Devemos nos ajoelhar diante da cultura digital? A Bíblia alerta para o perigo de colocar nossa confiança em pessoas e recursos finitos, ao invés de em Deus.

É o Senhor quem edifica a casa e guarda a cidade:

Se o Senhor não edificar a casa, em vão trabalham os que a edi-ficam; se o Senhor não guardar a cidade, em vão vigia a sentinela (Sl 127.1).

Em Isaías 31.1, nós lemos:

Ai dos que descem ao Egito em busca de socorro e se estribam em cavalos; que confiam em carros, porque são muitos, e em cavaleiros, porque são mui fortes, mas não atentam para o Santo de Israel, nem buscam ao Senhor!

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E ainda, em Salmos 20:

Uns confiam em carros, outros, em cavalos; nós, porém, nos gloria-remos em o nome do Senhor, nosso Deus (Sl 20.7).

Que Deus nos ajude a interatuar com a cultura digital sem nos esquecer desta verdade: nós nos gloriamos apenas no nome do Senhor!

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4. A cultura digital desafia a igreja

Davi, porém, disse ao filisteu: Tu vens contra mim com espada, e com lança, e com escudo; eu, porém, vou contra ti em nome do Senhor dos Exércitos, o Deus dos exércitos de Israel, a quem tens afrontado (1Sm 17.45).

Neste penúltimo estudo, meu objetivo é falar sobre alguns desafios da cultura digital para a igreja cristã. Faremos esta reflexão enquadrados por este verso 45 de 1Samuel. A ideia não é fazer uma exposição teológica precisa do texto, como num sermão. Me parece plausível dizer que a situação de Davi, enfrentando Golias, é análoga à da igreja, diante da cultura digital.

Sendo assim, sugiro três paralelos entre o problema enfrentado por Davi e o problema enfrentado pela igreja hoje, diante da cultura digital:

1. Davi enfrentou um oponente impressionante.2. Davi assumiu sua responsabilidade como agente pactual de

Deus.3. Davi percebeu, em seu oponente, um desprezo profundo

por Deus.Consideremos a primeira afirmação.

4.1. Davi enfrentou um oponente impressionante

Davi, porém, disse ao filisteu: Tu vens contra mim com espada, e com lança, e com escudo [...].

A cultura digital impressiona e as novas tecnologias seduzem. So-mos atraídos pelo ideário de conexão irrestrita. Pelas possibilidades de usos para o bem. Pelas portas que se abrem para crescimento profissional

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e financeiro. Pela sensação de estar integrados a algo importante e maior do que nós. Pela simples necessidade de não ficarmos obsoletos — de sermos contemporâneos, atuais. Estas e outras coisas são peças vistosas da “armadura de Golias”. Elas chamam atenção e convocam para adesão pouco ponderada e irrestrita a tudo o que é proposto pela cultura digital.

Diante da cultura digital, a igreja é desafiada a três coisas:1. Orar, suplicando a Deus que a preserve da tentação e do

mal oriundos da cultura digital.2. Discernir, ou seja, compreender que a cultura digital impli-

ca desafio filosófico e teológico amplo.3. Configurar o pastoreio e prática da missão levando em

conta o impacto da cultura digital nas gerações.A igreja deve inserir o assunto em listas regulares de oração. É im-

perioso mover a igreja a orar por sua postura e desempenho na cultura.Quanto ao desafio filosófico e teológico, faz-se mister realizar

estudos amplos e profundos sobre a cultura digital, pois parece que nem todos (nas igrejas protestantes e evangélicas) pararam para prestar aten-ção na extensão e gravidade dos tópicos relacionados a ela. Há poucos livros sobre o assunto escritos por autores evangélicos de perfil conser-vador, em língua portuguesa. Ademais, precisamos de eventos cristãos, organizados apenas por cristãos reformados, que abordem a cultura di-gital pelo ângulo da doutrina sadia. É necessário pensar, compreender e criticar biblicamente a cultura digital.

William Powers parece razoável quando diz:

Estamos, com efeito, embora inconscientemente, nos deixando guiar por uma filosofia. Filosofia que defende que (1) conectar-se através de telas é bom e (2) quanto mais conectado, melhor. Eu a chamo de maximalismo digital, porque a meta é passar o máximo de tempo diante da tela. Poucos pararam para avaliar se é de fato sábia essa abordagem da vida, mas, sejamos francos, é assim que vivemos.84

A cultura digital deve ser avaliada biblicamente nas igrejas locais, como estamos fazendo agora. Temos de ajudar uns aos outros, para que entendamos que, cada vez que usamos o smartphone ou qualquer outro dispositivo, nós estamos enviando nossos dados — nossas informações pessoais — para a Grande Nuvem. De acordo com Lanier:84 POWERS, op. cit., p. 17.

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A CULTURA DIGITAL DESAFIA A IGREJA 41

Agora somos todos animais de laboratório. Os algoritmos se em-panturram de dados sobre você a cada segundo. Em que tipo de link você clica? Quais são os vídeos que vê até o fim? Com que rapidez pula de uma coisa a outra? Onde você está quando faz es-sas coisas? Com quem está se conectando pessoalmente e on-line? Quais são as suas expressões faciais? Como o tom da sua pele muda em diferentes situações? O que você estava fazendo pouco antes de decidir comprar ou não alguma coisa? Você vota ou se abstém? Todas essas informações e muitas outras têm sido comparadas a lei-turas semelhantes sobre a vida de milhões por meio de uma espio-nagem maciça. Os algoritmos correlacionam o que você faz com o que quase todas as outras pessoas têm feito.85

Considerando a grandeza do desafio, a cultura digital deveria es-tar sendo objeto de estudo e discussão nos seminários teológicos — na academia cristã. Carecemos de mais pesquisa, dissertações de mestrado e projetos de doutorado em Teologia, analisando a cultura digital. Nós discutimos sobre muitos temas excelentes, mas as pesquisas sobre cris-tianismo e cultura digital podem e devem ser ampliadas e aprofundadas.

Também são úteis e necessários estudos sobre o impacto da cultura digital nas diversas gerações. Um estudo do Grupo Barna in-forma sobre como os millenials lidam com as tecnologias digitais:86 70% deles lê a Bíblia em smartphones ou computadores; 56% visita sites de igrejas; 54% assiste vídeos sobre espiritualidade e fé; 59% busca na internet por temas relacionados à espiritualidade; 39% contribui com instituições cristãs pela internet, uma vez por mês; 20% contribui com instituições não governamentais, usando a internet. Ademais, a tecno-logia está mudando o jeito como os millenials ouvem mensagens: 38% dos millenials ouve seus líderes pela internet e pelo menos 41% deles se envolve em conversas sobre a fé, nas redes sociais. Estudos com esse podem ajudar a igreja a refletir e encontrar caminhos sábios, para lidar com as questões relacionadas ao uso das novas tecnologias em seu mi-nistério e cultos. E temos de levar em conta que os da geração Y ou Z utilizam linguagens e aparatos digitais com razoável desenvoltura.

85 LANIER, op. cit., p. 13-14.86 BARNA GROUP. How Technology is Changing Millennial Faith: Research Releases

in Millennials & Generations. Disponível em: <https://www.barna.com/research/how-technology-is-changing-millennial-faith/#.U94J2lZWZpC>. Acesso em: 24 fev. 2020. Como dissemos no estudo 1, trata-se da geração Y (millenials, nasci-dos entre 1985-1999).

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Alguém com menos de dezoito anos provavelmente nunca conhe-ceu um mundo que não tivesse internet. E em cada vez mais partes do mundo a maioria das crianças com menos de dez anos nunca vivenciou uma época em que não houvesse um dispositivo portátil que pudessem sintonizar — para ficar sintonizadas com as pessoas em volta delas.87

Outro detalhe a ser anotado é que a igreja evangélica brasileira tem seus “influenciadores digitais”. Praticamente em todas as regiões de nosso país há crentes que se tornaram membros de diferentes denomi-nações depois de assistir, ouvir ou ler pregações, estudos, artigos e outros conteúdos publicados por tais “influenciadores”.

Resumindo, não apenas o opositor enfrentado por Davi, mas a cultura digital, que desafia a igreja, é também impressionante.

4.2. Davi assumiu sua responsabilidade como agente pactual de Deus

[...] eu, porém, vou contra ti em nome do Senhor dos Exércitos, o Deus dos exércitos de Israel [...].

Mesmo sendo de pequeno porte, Davi entendeu que alguém ti-nha de tomar posição quanto ao oponente impressionante. Em cada geração, surgem opositores do evangelho. Em cada geração, cristãos pre-cisam assumir suas responsabilidades bíblicas, a fim de cumprir os man-datos espiritual, social e espiritual, para glória de Deus.

Ampliando um pouco mais a questão do enfrentamento teoló-gico, a reflexão sobre a cultura digital tem de acontecer em escala tanto nacional quanto global. Deus levantou Daniel para fazer uma leitura crítica do Império Babilônico. Deus levantou Pedro e João para ler criticamente o Império Romano. Nós temos de orar para que Deus le-vante servos fiéis e com projeção teológica (nacional e internacional), para responder questões relativas à cultura digital. Em nossa oração, va-

87 GOLEMAN, Daniel; SENGE, Peter. O Foco Triplo: Uma Nova Abordagem Para a Educação. Rio de Janeiro: Objetiva, 2015, p. 7. Ao usar o verbo “sintonizar”, Go-leman e Senge revelam ter nascido antes das gerações Y e Z (eles nasceram, res-pectivamente, em 1946 e 1947). Os verbos da geração Z (iGen) são “conectar” e “compartilhar”.

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A CULTURA DIGITAL DESAFIA A IGREJA 43

mos pedir a Deus por “trabalhadores” para esta “seara” (Mt 9.38). Isso é especialmente necessário por causa do terceiro desafio.

4.3. Davi percebeu, em seu oponente, um desprezo profundo por Deus

[...] a quem tens afrontado.

Existe oposição a Deus na cultura digital. Ela é humanista no pior sentido da palavra, considerando o homem (por meio das novas tecno-logias) como salvador do próprio homem. Ela é darwinista, entendendo a Grande Nuvem de Dados como resultado de uma evolução gradativa. Ela é religiosa, propondo atender uma necessidade por transcendência. Destarte, ela se configura como ídolo feito pelo homem, diante do qual o mesmo homem que o fez, agora se prostra. Usando a terminologia de Pedro e João, a cultura digital é, a seu modo, Babilônia.

Os cristãos devem conseguir discernir elementos de oposição a Deus, na cultura digital. A partir de então, devidamente precavidos, eles devem suplicar a Deus por graça e sabedoria, a fim de saber como agir diante (e dentro) dela.

Isso significa que devemos fugir da cultura digital? Acredito que não. Os discípulos de Jesus Cristo não podem se evadir da cultura digital. Como cristãos, eles estão no mundo sem pertencer a ele: “Não peço que os tires do mundo, e sim que os guardes do mal. Eles não são do mundo, como também eu não sou”(Jo 17.15-16). Os crentes devem funcionar dentro da cultura digital pelo simples fato de se tratar de uma cultura — eles já estão envolvidos por ela. Sendo assim, é difícil pensar na igreja deixando de se comu-nicar com as diferentes gerações sem fazer uso das tecnologias digitais.

A questão não é se a igreja deve fazer uso das tecnologias digitais, e sim, como fazer isso. Este é o tema de nosso último estudo.

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5. Cultura digital, ovelhas e lobos

Eis que eu vos envio como ovelhas para o meio de lobos; sede, portanto, prudentes como as serpentes e símplices como as pombas (Mt 10.16).

Chegou a hora de concluir nossos estudos sobre igreja real na cultura digital. Neste último encontro, defenderei a ideia de que é possível ser igreja real na cultura digital. Farei sete propostas para a vida e minis-tério da igreja, a fim de que esta caminhe com o Senhor e cumpra fielmente sua missão evangelizadora e discipuladora, enquanto transita na cultura digital.

As sete propostas são as seguintes:1. A igreja deve andar com Deus na cultura digital, com ora-

ção e boa teologia.2. A igreja tem de ajudar seus membros a exercitar concentra-

ção, pensamento sistêmico e descanso da alma, aplicando-se ao cultivo do silêncio, meditação nas Escrituras e oração calmas.

3. A igreja não pode deixar de reafirmar a sublimidade do Deus misterioso (em seu ministério, liturgia e arquitetura).

4. A igreja precisa reafirmar o mistério humano enquanto ministra às pessoas.

5. A igreja deve praticar uma comunhão viva, que privilegia proximidade e pessoalidade.

6. A igreja deve atualizar sua doutrina de mordomia da mente e do corpo.

7. A igreja deve ser vigilante e usar as tecnologias, dependen-do de Deus e com sabedoria.

Vamos nos deter em cada proposta, rapidamente.

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5.1. A igreja deve andar com Deus na cultura digital, com oração e boa teologia

Eu falei sobre isso no encontro anterior, mas não é demais rati-ficar que precisamos orar a Deus, suplicando a ele que nos preserve da tentação e do mal oriundos da cultura digital. Esse motivo de oração deve ser incluído nas listas e reuniões de oração das igrejas. Carecemos da bênção divina para que tenhamos uma postura e desempenho agra-dáveis a ele, enquanto transitamos na cultura digital.

Lanier acerta quando diz que “ter consciência é o primeiro passo para a liberdade”.88 Como eu afirmei antes, parece que nem todos nas igrejas evangélicas estão atentando para a extensão e gravidade das ques-tões referentes à cultura digital. É preciso uma iniciativa para discernir, ou seja, ler e criticar a cultura digital filosófica e teologicamente. Em cada igreja local, os crentes devem ser esclarecidos e advertidos sobre esse assunto. E isso deveria ocorrer no âmbito da academia cristã, em nossos seminários. E precisamos de teólogos reformados com projeção nacional e global, para empreender uma reflexão sobre a cultura digital que seja glocal (tanto global quanto local). Essa demanda — filosófica e teológi-ca — nos remete de volta à oração; temos de pedir por “trabalhadores” para esta “seara” (Lc 10.2)89 de enfrentamento bíblico da cultura digital.

5.2. A igreja tem de ajudar seus membros a exercitar concentração, pensamento sistêmico e descanso da alma

O barulho das novas tecnologias roubam da alma sua capacidade de se concentrar, de pensar sistematicamente e de descansar. O resultado da falta de concentração é o transtorno de déficit de atenção com sín-drome de hiperatividade (Tdah).90 Como dissemos (cf. estudo 3), deixar de pensar calma, profunda e sistematicamente, remete a uma dessedi-mentação intelectual.

O autor de Salmos 42 ansiava por momentos em que poderia se

88 LANIER, op. cit., p. 19.89 Chama a atenção de, em Lucas 10.2, Jesus orientar seus discípulos a orar assim

antes de lhes dizer que estão sendo enviados para cumprir a missão em uma cul-tura ameaçadora — “como cordeiros para o meio de lobos” (Lc 10.3).

90 O contato com as tecnologias digitais produz mudança nos neurônios. Interessa-dos neste assunto podem consultar WOLF, Maryanne. O Cérebro no Mundo Digital: Os Desafios da Leitura na Nossa Era. São Paulo: Contexto, 2019.

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apresentar calmamente diante da face de Deus (Sl 42.1-2). Em silêncio, meditar nas Escrituras com vagar; orar calmamente, sem pressa. Isso or-dena a mente, imbricando em devoção e profundidade cristãs.

Ainda que argumentemos que a falta de tempo nos impede disso, “um estudo mundial de 60.500 usuários de internet disse que o mille-nial urbano médio, com idades entre 16 e 30 anos, passa 2,8 horas por dia em seus dispositivos móveis. Isso equivale a quase 20 horas por semana, ou 42,5 dias por ano”.91 O profeta Daniel cavava tempo para suas de-voções (Dn 6.10) e não é impossível imaginar no quão benéfico para a alma seria investir 20 horas por semana em leitura bíblica, contemplação e oração.

Talvez pareça demasiado investir 20 horas semanais em devoção, mas lembremos que não é incomum um indivíduo dedicar de 8 a 10 horas seguidas, em um mesmo dia (ou passando a noite sem dormir), para assistir uma temporada inteira de uma série que lhe interessa. Cris-tãos desta cultura correm risco de dedicar mais tempo aos dispositivos digitais (incluindo as Smart TVs) do que ao cultivo da quietude e ins-trução da alma com leitura bíblica e oração. É preciso reverter isso, nos aplicando mais às Escrituras e textos edificantes, seguidos de meditação e oração calmas.

5.3. A igreja não pode deixar de reafirmar a sublimidade do Deus misterioso (em seu ministério, liturgia e arquitetura)

A cultura digital é da leveza, do ligeiro e da transparência.92 Sendo assim, há quem considere que, para ser relevante, a igreja precisa respon-der à cultura leve com leveza, à cultura ligeira com ligeireza e à cultura transparente com transparência. Pelo contrário, a igreja e, por conseguin-te, seu culto, possuem peso, se subordinam a um tempo litúrgico e são opacos. Em cada geração, a igreja é testemunha e guardiã do mistério (cf. estudo 2). Por isso mesmo, a igreja não pode deixar de reafirmar a subli-midade do Deus misterioso (em seu ministério, liturgia e arquitetura).

Uma vez que isso é assim, um primeiro serviço que a igreja pode

91 ROBLES, Pablo. Why Your Smartphone is Causing You ‘Text Neck’ Syndrome. In: South China Morning Post. Disponível em: <https://multimedia.scmp.com/lifestyle/article/2183329/text-neck/index.html>. Acesso em: 25 fev. 2020.

92 Cf. LIPOVETSKY, Gilles. Da Leveza: Para Uma Civilização do Ligeiro. Lisboa: Edições 70, 2016, edição do Kindle.

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prestar à geração digital é funcionar como igreja bíblica pregando um evangelho fiel, convocando para o discipulado de Jesus Cristo e demons-trando compaixão verdadeira. Ela deve fazer isso insistindo no peso das coisas: o evangelho contém chamado ao arrependimento; o discipulado requer autonegação e implica em sofrimento e o serviço produz des-gastes temporais. Ademais, a igreja deve ministrar preparando os crentes para fazer frente aos aspectos danosos da cultura digital, notadamente as mudanças que ela sugere e que contrariam as verdades e padrões da Palavra de Deus.

Um segundo serviço que a igreja pode prestar à geração digital é cultuar a Deus insistindo na opacidade e peso da liturgia. Adorar com ordem e reverência. Sublinhar tanto a imanência divina (Deus é presente e se revela a nós) quanto sua transcendência (Deus está acima de nós e pode se fazer misterioso). Chamar para calar. Privilegiar o antigo, não apenas o novo. Praticar os ritos ordenados. Pronunciar confissões e cre-dos. Conduzir gente de Deus em uma experiência de adoração, não uma plateia em um evento de entretenimento. Pregar com solenidade e para a glória de Deus, não para divertir. Cantar hinos e cânticos com verdade teológica, peso e majestade.

Um terceiro serviço que a igreja pode prestar à geração digital é se assumir como igreja. Opaca. Arquitetonicamente parecida com igreja, não com armazém, prédio industrial ou shopping. Em seu layout interno, não remeter a teatro ou auditório, mas a santuário. No mobiliário, co-municar opacidade e não transparência. Retomar o púlpito que esconde, ao invés de desvelar; sublinhar o mistério.

5.4. A igreja precisa reafirmar o mistério humano enquanto ministra às pessoas

A igreja reafirma o mistério humano enquanto discipula sem ma-nipular. Ao evitar violar o “véu de mistério” (a interioridade e liberdade de consciência) de cada pessoa.

5.5. A igreja deve praticar uma comunhão viva, que privilegia proximidade e pessoalidade

Exemplos deste tipo de comunhão são a relação entre Jesus Cris-to e seus discípulos e o convívio dos cristãos em Jerusalém, logo depois

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do Pentecostes (Jo 13.1, 34-35; Ef 5.1-2; At 2.42-47). Chama também a atenção a relação entre Paulo e os crentes mencionados em suas car-tas. O apóstolo anexa observações aos nomes, indicando conhecimento pessoal, preocupação e elevada consideração (e.g., Rm 16.1-16, 21-24; Cl 4.10-17).

5.6. A igreja deve atualizar sua doutrina de mordomia da mente e do corpo

A mordomia (cuidado ou boa gestão) da mente e do corpo é exigência do evangelho (Rm 12.1-2; 1Co 6.19-20). Até então, a igreja ensinava sobre isso sem mencionar os perigos para a saúde advindos da cultura digital.

A cultura digital abre espaço para novos vícios, bem como pro-picia agravamento de vícios já existentes. Podemos nos tornar viciados em smartphones, como segue: nós publicamos um conteúdo na rede e alguém curte ou faz um comentário positivo sobre o que postamos. Em resposta, nosso cérebro recebe dopamina. Daí nós nos sentimos felizes. Então o nível de dopamina diminui. Por causa disso surge o desejo de publicar mais, ou de conferir a postagem várias vezes, para receber mais dopamina.93

Prestemos atenção no alerta de Christina Gough:

A mídia móvel está levando nossas vidas pela tempestade. O tempo diário gasto pelos usuários de celulares usando seus dispositivos cresceu de 152 minutos em 2014 para 215 minutos em 2018 e deve crescer para 234 minutos até 2021. [...] De fato, metade do tempo gasto pelos usuários on-line em 2019 foi em dispositivos móveis, um aumento significativo em relação aos 27% do tempo gasto em 2013.94

Para Lanier, um dos danos deste uso aumentado é o vício.

O viciado vai perdendo gradualmente o contato com o mundo e as pessoas reais. [...]. O vício é um processo neurológico que não entendemos completamente. A dopamina é um neurotransmissor

93 ROBLES, op. cit., loc. cit.94 GOUGH, Christina. Mobile Gaming — Statistics & Facts. Disponível em: <https://

www.statista.com/topics/1906/mobile-gaming/>. Acesso em: 25 fev. 2020.

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que age no prazer e é considerado crucial para mudanças compor-tamentais em resposta à obtenção de recompensas. [...]. A modifica-ção de comportamento, em especial a implementada por aparelhos como smartphones na modernidade, é um efeito estatístico, o que significa que é real, mas não completamente confiável; sobre a po-pulação, o efeito é mais ou menos previsível, mas para cada indiví-duo é impossível dizer. Até certo ponto, você é um animal na gaiola experimental do behaviorista. Mas o fato de algo ser indistinto ou aproxima não o torna irreal.95

Outro perigo é o do vício em games, tanto para jovens e adultos, quanto para crianças. De acordo com o Instituto de Apoio e Desenvol-vimento (ITAD):

Estes são alguns dos potenciais sinais de alarme em crianças e jovens com uso patológico da internet e dos games:1. Perdem a noção do tempo enquanto estão on-line.2. Tornam-se agitados ou agressivos quando os games on-line são

interrompidos.3. Apresentam sintomas de abstinência quando os games são

retirados das suas atividades diárias (ex. irritabilidade).4. Perdem interesse em participar noutro tipo de atividades, que

não estejam relacionadas com os games on-line, nomeadamen-te com a família ou amigos.

5. Evitam com frequência compromissos, para continuar a jogar.6. Desobedecem aos limites que foram estabelecidos para a uti-

lização da internet.7. Mentem ou omitem a membros da família o tempo despen-

dido on-line.8. Criam relacionamentos com pessoas que apenas conhecem

on-line.9. Recorrem aos games on-line como forma de anular e/ou ali-

viar estados de humor negativos.10. Não se deitam à hora que seria esperada e de manhã parecem

exaustos.11. Falham na tentativa de abdicar de jogar; e12. Os comportamentos de dependência interferem significativa-

mente no seu desempenho escolar e nos seus relacionamen-tos sociais.96

95 LANIER, op. cit., p. 20; grifo do autor.96 INSTITUTO DE APOIO E DESENVOLVIMENTO (ITAD). Dependência da

Internet e de Videojogos em Crianças e Jovens. Disponível em: <http://www.itad.pt/tratamento-de-psicologia/dependencia-da-internet-videojogos-criancas-jovens/>.

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Tais comportamentos conduzem a algumas consequências:

Consequências sociais: Visto que as crianças e jovens com manifes-tações comportamentais de dependência da internet e de games passam muito tempo on-line, despendem menos tempo interagindo com os outros, o que pode gerar sentimentos de isolamento e de solidão, e a perda de amigos e relacionamentos.Consequências acadêmicas: Frequentemente, estas crianças e jovens exibem um decréscimo no seu desempenho acadêmico e nas suas notas escolares. Tal se deve ao fato [...] de estudar para as provas se tornar cada vez menos importante e prioritário. Em adultos depen-dentes da internet e dos games, os efeitos no desempenho laboral são semelhantes.Consequências financeiras: Adolescentes e adultos despendem grandes quantidades de dinheiro em novos games e upgrades informáticos.Consequências familiares: A dependência da internet e games con-duz frequentemente à deterioração das relações familiares. Tensão e conflitos entre os membros da família aumentam à medida que os pedidos para reduzir ou eliminar o acesso à internet e aos games são ignorados. As crianças e jovens poderão negar que o problema existe, tentar esconder quanto tempo passam on-line e acusar os pais de se intrometer na sua vida. Os próprios pais podem discordar so-bre como lidar com o problema, o que pode conduzir a frequentes discussões e conflitos.Consequências para a saúde: A dependência da internet e de games pode conduzir à negligência dos cuidados com higiene pessoal, hábitos de sono pouco saudáveis, alimentação inadequada que pri-vilegia refeições rápidas e de simples preparação e diminuição da prática de atividade física. Algumas das consequências físicas podem incluir cefaleias, dores nas costas ou no pescoço, insônia e dificulda-de em dormir, síndrome do túnel cárpico e/ou convulsões.Consequências emocionais e psicológicas: Crianças e adolescentes com manifestações comportamentais de dependência da internet e ga-mes podem experimentar um humor deprimido, baixa autoestima, ansiedade social, baixa tolerância à frustração, raiva e sentimentos de culpa e vergonha por não conseguirem controlar os seus com-portamentos de dependência.97

Acesso em: 25 fev. 2020. Nas citações do ITAD, substituímos o vocábulo “videojo-gos”, de uso em Portugal, por “games”, mais usado no Brasil.

97 ITAD, op. cit., loc. cit.

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A mesma fonte sugere dicas para os pais, quanto aos jogos on-line dos filhos:

1. Mantenha computadores, [...] ou outros aparelhos seme-lhantes fora do quarto do seu filho, de preferência numa área comum para que se possa supervisionar a sua utilização.

2. Institua o acesso à internet e aos games como uma recompen-sa, e não como um direito.

3. Certifique-se de que os games on-line não são a principal ati-vidade de lazer do seu filho.

4. Defina limites diários para a utilização da internet e de games, e certifique-se de que esses limites não sejam excedidos.

5. Apenas permita o acesso à internet e aos games após as crian-ças e adolescentes realizarem as suas responsabilidades (e.g. trabalhos de casa).

6. Tenha sempre a palavra final na compra de games para o seu filho.

7. Conheça os nomes de login e senhas do seu filho, especial-mente em redes sociais como o Facebook.

8. Verifique o histórico do computador do seu filho, para mini-mizar os riscos associados à utilização da internet.

9. Encoraje o seu filho a realizar outras atividades e a estabele-cer relacionamentos com os pares.

10. Se possível, tenha um computador apenas para o trabalho acadêmico (sem jogos instalados, e em que as redes sociais ou páginas de games on-line estão bloqueadas) e o outro para os games.98

A internet favorece o vício em pornografia. Além de consequências semelhantes aos dos viciados em games, o vício em pornografia abre espaço para outros problemas.

As principais consequências relatadas por pessoas viciadas em por-nografia são perda de interesse pela parceira, compulsão sexual, disfunção erétil, ansiedade social, confusão mental, procrastinação e incapacidade de concluir metas, sentimentos constantes de ver-gonha e culpa, ejaculação retardada, crises de abstinência, HOCD,

98 Ibid., loc. cit. Cf. o estudo de ABREU, Cristiano Nabuco de; KARAM, Rafael Gomes; GOES, Dora Sampaio; SPRITZER, Daniel Tornaim. Dependência de Internet e de Jogos Eletrônicos: Uma Revisão. In: REVISTA BRASILEIRA DE PSIQUIATRIA. São Paulo: Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da FMUSP. 2008; 30(2):156-67.

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objetivação do sexo oposto, ejaculação precoce, gostos sexuais di-vergentes da sua orientação sexual, entre outras.99

Não nos esqueçamos das doenças neuronais, mencionadas no es-tudos anteriores: depressão, transtorno de déficit de atenção com sín-drome de hiperatividade (Tdah), transtorno de personalidade limítrofe (TPL) e síndrome de burnout (SB).100

Por fim, o uso de dispositivos eletrônicos pode produzir lesões físicas, dentre as quais destacamos a síndrome de pescoço inclinado (ou pescoço de texto — text neck syndrome) e os acidentes de trânsito. Robles informa que:

Normalmente, as pessoas inclinam o pescoço para a frente 45º ao enviar mensagens de texto. Isso coloca um peso extra de quase 22 kg na coluna, ligamentos cervicais e outros músculos — cinco vezes a pressão considerada normal, de acordo com um estudo da Surgical Technology International. Ao longo de um ano, isso equivale de 1000 a 1400 horas adicionais de pressão na coluna vertebral do usuário médio de smartphone.101

99 ROSSI, Rafael. Vício em Pornografia: Como Parar: Guia Introdutório. Disponível em: <https://vicioempornografiacomoparar.com>. Acesso em: 25 fev. 2020. Cf. YOUR BRAIN ON PORN. O que é o HOCD (Transtorno Homosse-xual-Compulsivo)? Disponível em: <https://www.yourbrainonporn.com/pt/rebooting-porn-use-faqs/im-straight-but-attracted-to-transgender-or-gay-por-n-or-gay-attracted-to-straight-porn-whats-up/what-is-hocd-homosexual-com-pulsive-disorder-by-ocd-today/>. Acesso em: 25 fev. 2020: “O HOCD, também conhecido como Transtorno Obsessivo-Compulsivo Homossexual, é uma forma de TOC que uma pessoa tem quando tem medo de pensamentos indesejáveis, de forma que pode ser atraída para o mesmo sexo. Pessoas que têm esses pensamen-tos muitas vezes sentem que estão perdendo o controle ou sentem que estão ten-do algum tipo de paranoia”. O Dr. Rossi reporta ainda “ejaculação precoce, perda de memória, hipofrontalidade, depressão, pensamentos suicidas, baixa autoestima, princípio de desenvolvimento de psicopatias sexuais, voz fraca e falta de energia, desenvolvimento de sintomas agudos de abstinência, tendência de envolver-se em relacionamentos doentios e perda de atratividade sexual” (ROSSI, Rafael. Os 24 Sintomas Mais Comuns Do Vício Em Pornografia. Disponível em: <https://vicioem-pornografiacomoparar.com/as-consequencias-do-vicio-em-pornografia1/>. Acesso em: 25 fev. 2020).

100 HAN, Sociedade do Cansaço, p. 7-8. Sobre esta questão, vale a pena conhecer a página do pacto de pureza na internet da IPB Rio Preto, disponível em: <http://www.ipbriopreto.org.br/conheca-nos/pacto-de-pureza/>. Acesso em: 25 fev. 2020.

101 ROBLES, op. cit., loc. cit.

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Figura 4: Peso adicional sobre a coluna, quando usamos o smartphone.

Quando inclinamos o pescoço para usar o smartphone, adiciona-mos peso sobre a coluna. Um ângulo de 30º aumenta o peso da cabeça em quatro vezes, cerca de 18 kg. Um ângulo de 45º aumenta o peso da cabeça em cinco vezes, cerca de 22 kg. Um ângulo de 60º aumenta o peso da cabeça em seis vezes, cerca de 27 kg.

O resultado disso para a saúde é o seguinte (considerando curva-tura de 45º):

Figura 5: Consequências do peso adicional sobre a coluna, quando usamos o smartphone.

• Dores de cabeça crônicas.• Dificuldade em virar a cabeça.

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• Estresse na coluna cervical. • Danificação dos nervos (coluna). • Músculos tensos e fracos. • Visão borrada (luz azul; problemas de visão são reportados

em diferentes artigos). Perda de 30% de volume pulmonar.102

O mesmo artigo informa sobre o risco de acidentes ou atropela-mentos, causados por pedestres que atravessam ruas usando o smartpho-ne.103 E há acidentes causados por motoristas usando celulares.

Esses são apenas exemplos. Há outros problemas de saúde rela-cionados aos hábitos e estilo de vida impostos pela cultura digital. Assim como, ao longo de sua história, a igreja sempre alertou para os perigos de hábitos e comportamentos que prejudicam a saúde da mente e do corpo, devem ser incluídos nestes alertas os novos riscos advindos do uso dos aparatos digitais.

5.7. A igreja deve ser vigilante e usar as novas tecnologias com sabedoria

Ao enviar seus discípulos, Jesus os alertou com as seguintes pa-lavras: “Eis que eu vos envio como ovelhas para o meio de lobos; sede, portanto, prudentes como as serpentes e símplices como as pombas” (Mt 10.16). O cristão deve caminhar neste mundo mantendo a inocência (sendo “símplice”) e, ao mesmo tempo, não sendo ingênuo. Para não ser abocanhada pelos “lobos”, a “ovelha” do rebanho de Jesus Cristo pre-cisa ser “prudente”, quer dizer, “astuta” (Nova Versão Internacional) ou “perspicaz” (tradução de Frederico Lourenço).104 Nosso Redentor está dizendo que, para sobreviver neste mundo, nós temos de ser vigilantes e sábios.

Em outro lugar, Jesus informa que nossos olhos são importantes. Se nosso olhar for cooptado pelo mal, nós arriscamos ser tomados por trevas (Mt 6.22-23).

Se temos de lidar com tecnologias digitais (a maioria delas de-mandando nosso olhar), prestemos atenção em algumas orientações.

102 Ibid., loc. cit.103 Ibidem.104 LOURENÇO, Frederico. Bíblia, Volume 1: Novo Testamento: Os Quatro Evangelhos:

Tradução do Grego, Apresentação e Notas Por Frederico Lourenço. São Paulo: Compa-nhia das Letras, 2017, p. 93.

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Dicas de especialistas (gerais):• Nunca publique informação sensível.• Conheça e compreenda as políticas de privacidade.• Saiba que a informação postada na rede é permanente (mes-

mo quando você apaga um conteúdo, ele continua acessível por memória cache).

• Confira os seus contatos.• Tome cuidado com a configuração de segurança de seu perfil.• Exponha-se menos.• Tenha cuidado com aplicativos (programas) desenvolvidos

por terceiros.• Seja sociável, mas seja seguro.105

Dicas da Kaspersky (uma empresa especialista em segurança), para se manter mais seguro no ambiente de jogos on-line:

• Instale todas as atualizações do equipamento e do jogo tão rápido quanto possível.

• Utilize senhas robustas e únicas para cada conta de jogo ou endereço de e-mail.

• Preste atenção aos e-mails de phishing e às tentativas de roubo das credenciais de acesso.

• Bloqueie imediatamente qualquer usuário que faça ameaças ou ofensas. Não jogue nem fale por chat com estas pessoas e avise os editores do jogo.

• Nunca revele sua verdadeira identidade, nem informação pessoal a outros jogadores.

• Não aceite ofertas suspeitas de desconhecidos.• Se perceber que outro jogador avança muito rápido no jogo,

informe o serviço de suporte. A maior parte dos jogos on-line têm regras muito estritas e expulsam imediatamente os tra-paceiros.

• Digite manualmente o endereço da página web antes de en-trar na conta do jogo.

• Utilize uma ferramenta de proteção on-line que impeça a abertura de páginas web falsas.106

105 Fonte: ZANDAWALA, Jeet; ZHEN, Liu; MEREL, Jennifer; SUN, Lu. Social Me-dia Privacy. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=c9pFMSKPX-Sk>. Acesso em: 15 mai. 2015.

106 THR SOLUÇÕES. Conheça as 5 Principais Ameaças aos Usuários de Jogos on-line.

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Dicas bíblicas:• Entregue sua vida a Deus em oração (Mt 6.13).• Não faça nada (nas redes) que não possa ser conhecido pelos

familiares ou irmãos na fé (Sl 101.3; cf. 69.6).• Evite expor sua opinião desrespeitando terceiros ou sendo

ofensivo a grupos.• Ao constatar que uma pessoa que você conhece publicou

algo inadequado ou que exige intervenção bíblica, não abor-de o assunto on-line. O melhor é tratar da questão pessoal-mente (ou utilizando o recurso de conversa privada).

• Inclua as interações nas redes sociais nas conversas do dia (um padrão santo e sincero de conversação; Ef 4.25). O ideal é incluir as interações nas redes sociais nas conversas do dia sem deixar que as conversas do dia se resumam ao que você vê nas redes sociais.

• Não deixe que as interações se resumam às redes sociais. Cul-tive diálogos pessoais, profundos, e invista em outras ativida-des e diversão edificante.

• Limite o tempo e estabeleça horários para uso das redes so-ciais (Ec 3.1; cf. Sl 90.12; Ef 5.15-16).

• Invista em discipulado da família (Gn 18.19; Js 24.15).• Use as redes sociais para conexão íntegra, testemunho, disci-

pulado e agrado de Deus (1Co 9.19-23; 10.31).Como dissemos antes, nenhuma tecnologia é neutra. Daí a atua-

lidade do dito de Comenius:

Se alguém me disser que o abuso não deve ser imputado às coisas, mas às pessoas, [...] respondo com as palavras do apóstolo: “Que essa liberdade não seja de alguma maneira escândalo para os fracos” (1Co 8.4, 7, 9).107

Disponível em: <https://www.thrsoftwares.com.br/ultimas-noticias/posts/co-nheca-as-5-principais-ameacas-aos-usuarios-de-jogos-online>. Acesso em: 25 fev. 2020. Phishing é uma maneira desonesta que cibercriminosos usam para enganar você a revelar informações pessoais, como senhas ou cartão de crédito, CPF e número de contas bancárias. Eles fazem isso enviando e-mails falsos ou direcio-nando você a websites falsos (Fonte: AVAST. O Que é Phishing. Disponível em: <https://www.avast.com/pt-br/c-phishing>. Acesso em: 25 fev. 2020).

107 COMENIUS. Didática Magna. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 297.

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Trocando em miúdos, a tecnologia digital pode trazer prejuízo ou conduzir a abusos.

As gerações que viveram antes de nós também foram fascinadas por novas tecnologias, e estas não substituíram (e nunca substituirão) o que nos torna fundamentalmente humanos — a intimidade pactual ín-tegra e o cultivo de uma vida interior significativa.108 Como diz o autor do Eclesiastes, podemos correr atrás de novidades sem obter qualquer ganho (Ec 1.1-11).

É preciso utilizar tais recursos à “luz da natureza [...] [e] prudên-cia cristã, segundo as regras da Palavra, que sempre devem ser observa-das”.109 Ainda que existam tecnologias e saberes novos, a demanda ainda é antiga, qual seja, fazer discípulos ensinando-os a guardar todas as coisas que Jesus ordenou. As novas habilidades são acréscimos e não substitui-ções. A ideia central continua a mesma: pessoas precisam da graça de Deus ministrada em um contexto de cuidado cristão.

Resumindo, somos desafiados a utilizar quaisquer tecnologias como subsídios conectivos, com discernimento e sabedoria, sem perder o foco da humanidade e pessoalidade.

A partir daqui, podemos concluir com sugestões de respostas às perguntas iniciais.

Pergunta 1: Será que a cultura digital cumpre o que promete? Cumpre parcialmente, pois nada substitui a interação verdadeira pessoal e humana.

Pergunta 2: A cultura digital favorece ou dificulta o discipulado cristão? Por um lado, a cultura digital reforça a oposição a Deus no co-ração (ao propor superexposição e precificação, ao abrir espaço para o narcisismo e para a aquisição ou revitalização de vícios e hábitos danosos à saúde da mente e do corpo). Por outro lado, a cultura digital disponibi-liza recursos de publicação e conexão que, bem usados, podem ajudar a responder perguntas, organizar atividades e ajudar na aproximação, evan-gelização e discipulado cristão.

Pergunta 3: Os cristãos devem fugir da cultura digital ou funcio-nar dentro dela? Esta questão já foi respondida no final do estudo ante-rior. Os discípulos de Jesus Cristo não devem se evadir da cultura digital

108 POWERS, op. cit., passim.109 ASSEMBLEIA DE WESTMINSTER. A Confissão de Fé de Westminster, I.VI.

In: BÍBLIA DE ESTUDO DE GENEBRA. 2. ed. revisada e ampliada. Barueri; São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil; Cultura Cristã, 2009, p. 1787.

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e precisam servir ao Redentor como aqueles que estão no mundo, sem pertencer a ele.

Pergunta 4: Como as verdades da Bíblia podem e devem ser apresentadas e distribuídas na cultura digital? As mídias digitais são rá-pidas e rasas, próprias para apresentação, não doutrinação; divulgação, não debate. Ideias mais densas podem ser publicadas e debatidas em um blog, mas não há como haver discussões verdadeiramente provei-tosas no Facebook, Twitter, Instagram ou WhatsApp. O recomendável é usar estas redes como apontamentos para os construtos mais densos dos blogs e fóruns. A banda larga e os recursos de streaming permitem produzir programas de rádio, podcasts, animações e vídeos de qualidade, abrindo espaço para boa divulgação da fé cristã e do ministério da igreja. Cristãos individuais e igrejas podem fazer uso dos recursos da rede para publicar treinamentos, apostilas, livros digitais e outros recursos. Obrei-ros e igrejas isoladas ou com poucos recursos podem fazer uso de tais soluções para evangelização e edificação local. Tudo isso porém, sem subscrever o credo de superexposição, precificação e autoexploração; sem mergulhar na rede a ponto de desconsiderar, empobrecer ou distorcer as responsabilidades, relações e atividades humanas cotidianas e necessárias no mundo de Deus. Tudo isso sem alterar a noção de quem somos em Cristo — discípulos e discipuladores reais e não meros “influenciadores digitais”. Um influenciador cria tendências e manipula comportamen-tos, enquanto um evangelista e discipulador, na dependência e poder do Espírito Santo, ensina a Palavra de Deus que pode mudar corações e, por conseguinte, destinos eternos.

Talvez as tecnologias digitais tenham de ser usadas até o ponto da ruptura aguardada escatologicamente, pois não é insano prever, como resultado de sua imbricação, o estado de coisas apontado em Apocalip-se 13.17 — uma sociedade monitorada por um sistema único, em que ninguém consegue “comprar ou vender, senão aquele que tem a marca, o nome da besta ou o número do seu nome”. Se isso será assim ou não, teremos de esperar para ver, ou, retornando ao dito de McLuhan:

Se a projeção da consciência — já antiga aspiração dos anunciantes para produtos específicos — será ou não uma “boa coisa”, é uma questão aberta às mais variadas soluções.110

110 MCLUHAN, op. cit., p. 17.

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Nesse ínterim — entre o agora e a consumação do século — a igreja pode prosseguir demonstrando autenticidade de fé e amor, apre-sentando uma realidade consistente com os mandatos bíblicos.

De certo modo abalado pelo “cansaço” fomentado pela cultura digital, Han evoca uma transformação, como segue:

No mundo de hoje, [...] tudo se transformou numa grande e única loja comercial. A assim chamada economia sharing está transfor-mando a cada um de nós em vendedor, sempre espreitando na busca de clientes. [...] Essa loja de mercadorias não se distingue muito de um manicômio. Aparentemente, temos tudo; só nos falta o essencial, a saber, o mundo. O mundo perdeu sua alma e sua fala, se tornou desprovido de qualquer som. O alarido da comunicação sufoca o silêncio. [...] Esse universo-mercadoria não é mais apro-priado para se morar. Ele perdeu toda relação para com o divino, para com o sagrado, com o mistério, com infinito, com o supremo, com o elevado. Perdemos toda capacidade de admiração. Vivemos numa loja mercantil transparente, onde nós próprios, enquanto clientes transparentes, somos supervisionados e governados. [...] Já é hora de transformar essa casa mercantil novamente numa moradia, numa casa de festas, onde valha mesmo a pena viver.111

Eis a oportunidade para o testemunho cristão! Pelo discipulado, informamos sobre Deus que, somente pela graça, nos reconcilia com ele por meio de Jesus Cristo, no poder do Espírito Santo. Ligados a Deus, podemos não apenas desfrutar, mas trabalhar para fazer do mundo um lugar habitável, vivendo como igreja real na cultura digital.

111 HAN, Sociedade do Cansaço, p. 127-128.

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