Upload
supernutritivo
View
215
Download
3
Embed Size (px)
DESCRIPTION
Patologias Narcisicas
Citation preview
Patologias narcísicas e doenças auto-imunes: a questão da transferência[1]
Teresa Pinheiro[2]
Este trabalho é um desdobramento da nossa participação na pesquisa clínico-teórica,
Patologias narcísicas e doenças auto-imunes: estudo comparativo sob a ótica da
psicanálise que é realizada através do acordo entre o Programa de Pós-graduação em Teoria
Psicanalítica da UFRJ, o Instituto de Psiquiatria da Universidade do Brasil (IPUB/ UFRJ) e o
Hospital Universitário Clementino Fraga Filho (HUCFF – UFRJ). Esta pesquisa decorre das
interrogações que temos feito nos últimos anos sobre os impasses da clínica frente às
chamadas novas formas de sofrimento psíquico. Dados preliminares levaram-nos à hipótese de
que as pacientes lúpicas apresentavam importantes características em comum com o modelo
narcísico que vínhamos pesquisando anteriormente, cujo principal paradigma seria a
melancolia. Neste trabalho nosso objetivo é analisar a questão da transferência no
atendimento das pacientes da pesquisa.
O conceito de transferência em Freud
O termo transferência aparece no texto freudiano desde o início para designar
movimento, deslocamento, deslizamento, é assim que encontramos expressões como
transferência de pensamento ou transferência entre neurônios. Freud precisará de um tempo,
ou melhor de mais tempo no exercício da prática clínica para forjar o conceito de
transferência. O conceito certamente é tributário do trabalho com as histéricas com que se
depara. Como diz Pontalis (1991) ali encontramos“ transferência de objeto: ei-la (a histérica)
que se entusiasma por um e não por outro. Transferência de afeto: sabe-se lá o que a faz
chorar. Transferência dos lugares do corpo: o sintoma muda de lugar... A histérica está
sempre pronta a transferir, a migrar.” E é graças a Anna O. que Freud irá construir a noção
de transferência como um fenômeno típico da clinica psicanalítica. Irá mais longe, tratando a
transferência como sintoma dirá que existem as neuroses de transferência e as outras
patologias. A transferência seria, portanto, um divisor de águas. Visto que é sintoma seria uma
formação do inconsciente assim como o lapso e o sonho. As outras patologias – as psicoses e
as perversões – não seriam passíveis de fazer uma transferência. Freud afirma ainda que a
transferência é um fenômeno que não se restringe ao tratamento analítico. Acontece em outros
ambientes também. Mas é na clinica psicanalítica que ela é levada em conta e mais que isso a
transferência teria um papel paradoxal de ser a base de sustentação do processo analítico assim
como o de atuar como resistência a esse processo. O conceito seria, por conseguinte, a
expressão sintética de como o saber analítico se constituiu, é ao mesmo tempo algo que se dá
fora do processo analítico, um sintoma que se forja na pratica clínica e um instrumento
teórico-clínico da psicanálise. Assim como a fala das histéricas que Freud se debruça sobre
essa narrativa e constrói uma teoria sobre o aparelho psíquico e desenvolve uma técnica para a
pratica clínica.
Transferir o que para quem? Freud falará de transferência de afetos. Afetos do passado
que seriam trazidos para o presente e que teriam no modelo clínico da psicanálise a condição
ideal para ser presentificado. O analista seria portanto o suporte como preferiu Ferenczi (1909)
o catalisador desses afetos. O lugar que o analista ocupa no processo analítico seria, assim,
indissociável da concepção de transferência. Não é possível pensar um sem o outro. Temos
então a transferência como sendo transferência de afetos passados que se presentificam na
relação com o analista. Relação que Freud aponta como assimétrica.
Os pacientes de nossa pesquisa, em sua maioria, não se encaixam neste modo de
subjetivação histérico. Além da minoria de histéricos, há personalidades narcísicas,
falsos selves e casos limites, com o predomínio destas duas últimas configurações subjetivas.
Quase não associam ou produzem lapsos, atos falhos, tampouco lembram ou contam seus
sonhos. O modo de fantasiar é bastante peculiar e distinto do histérico. Estes são motivos pelos
quais o trabalho analítico não respeita estritamente a seqüência repetir-recordar-elaborar
sugerida por Freud. A opção será tomar muito mais freqüentemente a construção, dispensando
o recurso a qualquer passado a ser desvelado.
Se é que há repetição, não se trata de uma repetição concernente ao inconsciente que
se quer fazer ouvir. Sendo assim, também não está em pauta a repetição que engendra o laço
com o analista por meio da identificação de traços dele com traços de outros objetos. A
repetição que leva o paciente a repetir, na relação com o analista, vínculos do passado, não
está presente, ou seja, o arranjo sintomático da transferência, que levou Freud a denominá-la
neurose de transferência, não se monta. Talvez se possa pensar numa repetição proveniente de
um mais além, da pulsão de morte que irrompe causando um sofrimento traumático e
intraduzível em palavras. Apenas essa face mortificadora da repetição é percebida nestes
casos, principalmente pela forma como movem seus corpos, usam suas vozes, dirigem seus
olhares e organizam suas narrativas. Se a repetição que se entrevê não é referente ao
inconsciente, e a transferência que se observa não se ordena como sintoma, igualmente não faz
sentido falar de uma resistência transferencial.
Quando Freud propõe que a transferência é uma resistência, ele está se apoiando sobre
sua observação de que a neurose de transferência vem à tona tomando a frente de outras
formações do inconsciente que forneceriam indicações mais claras a respeito da organização
subjetiva do paciente. Ao adiantar-se, a transferência fortalece a resistência na medida em que
adia, ou mesmo impede, a lembrança e a elaboração do dito material inconsciente.
Ainda segundo a explicação freudiana, a transferência figura, no tratamento da
neurose, como o palco do processo analítico, no qual se enfrentam as forças da transferência –
entendida aqui como motor do tratamento – e as forças da resistência. Este combate representa
a conflitualidade entre duas formas de existir: uma permitida e consciente e outra proibida e
inconsciente. Nos casos por nós pesquisados, a transferência é o palco de um processo
analítico muito distinto: aquele de uma invenção da existência. O sujeito ainda não dispõe de
uma forma de existir consistente, de modo que não faz sentido pensar o seu sofrimento como
derivado de um conflito entre duas formas incompatíveis de vida. Antes, é preciso criar uma
primeira forma de estar no mundo, ou ainda, uma primeira forma possível de estar no mundo,
já que a saída até então encontrada foi experimentada com muita dor, pois é a saída para uma
existência falsa, no sentido do falso self winnicottiano.
As diferenças entre esses modos de subjetivação são tantas, que nos levaram à
questão: será ainda possível denominar transferência esse vínculo entre o analista e estes
pacientes? Temos duas opções: ou restringimos o termo à neurose e ao fenômeno sobre o qual
Freud discorreu, ou ampliamos o alcance da noção, redefinindo o que estamos chamando de
transferência nos casos aqui abordados. Levando em conta a notável assiduidade destes
sujeitos, o enorme investimento que fazem e o ganho considerável que obtém com os
atendimentos, decidimos pela segunda alternativa.
Os pacientes da pesquisa
Quem são esses pacientes? Falso self, histéricos, casos limites, personalidade
narcísicas? Falar que a pesquisa constatou a presença de todos esses quadros, mas que os casos
de falso self e casos limites são mais numerosos.
São pacientes que apresentam muitas semelhanças com as pacientes melancólicas pela
apatia, ausência de expressividade, pela relação com o tempo como um eterno presente pois do
passado geralmente nada se lembram e o futuro não é tematizado. Não sonham nem fazem
lapsos, mantem com o corpo uma relaçnao peculiar como se fosse um outro um estranho, uma
carcaça sobre a qual falam muito mas nunca como sendo eles mesmos. São pacientes que se
ocupam dos outros, podem ser verdadeiros assistentes psiquiátricos ou mesmo auxiliares de
enfermagem. Possuem uma forma discursiva imagética que remeter o interlocutor para uma
cena descrita nos mínimos detalhes.
Acreditamos que Ferenczi, um autor que trabalhou a questão no seu
artigo Transferência e introjeção, possa acrescentar elementos para a nossa análise. Neste
texto, ele concebe o analista como “catalisador de afetos”. Essa expressão cunhada por
Ferenczi se refere ao movimento que surge na transferência. Essa concepção é extremamente
pertinente para pensarmos essas pacientes em que o analista tem uma função de catalisador
dos sentidos que o objeto é portador. Ele seria, na concepção de Ferenczi, um possibilitador da
introjeção. O analista “catalisa” a força do sentido absoluto referido ao objeto, ampliando os
muitos sentidos possíveis. A função do analista nestes casos é abrir para o paciente a
possibilidade polissêmica, apontando para a parcialidade, visando re-escrever sua história. O
“catalisador” não é propriamente uma função transferencial, mas uma função do analista. É
um possibilitador da introjeção, que tem como suporte o movimento transferencial.
Na neurose, a transferência é o que sustenta o ato analítico da interpretação e a
interpretação do catalisador de afetos tem a função de apontar para novos sentidos. Nas
patologias narcísicas, a transferência é o que sustenta o ato analítico da construção subjetiva,
da catalisação dos sentidos absolutos e aponta para a possibilidade de ser, para o paciente, o
lócus da invenção de si. Não se trata nesses casos de um re-escrever a própria historia, mas
quase de um ato inaugural de escrever uma historia de si em que se espera que muitas outras
versões possam ser re-escritas mais tarde. Uma escrita em que o catalisador de afetos opera
como questionador dos sentidos absolutos, propondo novas formas de narrativas menos
aprisionantes. Ademais, o analista funciona nesses casos como testemunha do advento da
criação de si, abstendo-se de ser o criador, mas garantindo o espaço para que o sujeito possa se
inventar.
Como já mencionado, adotamos a melancolia como organização subjetiva
paradigmática para compreender o modo de funcionamento destes sujeitos, e extraímos dela
também um modelo metapsicológico. Lambotte, ao tematizar a constituição subjetiva do
melancólico, alega que no início de sua vida, a triangulação mãe-bebê-olhar própria à fase do
espelho falhou, levando este sujeito a se constituir enquanto uma unidade desprovida de
atributos. O melancólico, segundo ela, escapa do despedaçamento psicótico, identificando-se
com o ponto perdido para o qual o olhar da mãe se volta. Como ele não chega a localizar esse
ponto perdido com o qual a mãe se preocupa tanto a ponto de não conseguir voltar seu desejo
para o próprio filho, sua assunção subjetiva se dá por meio de uma identificação com o nada,
que lhe garante uma unidade corporal, mas lhe priva de colecionar atributos subjetivos.
Quando chegam à análise, o propósito principal é a composição subjetiva a partir do
preenchimento da unidade subjetiva por atributos. O artifício técnico pensado por Lambotte é
o objeto estético, um objeto do espaço analítico que o paciente elege e que deve ser o local de
encontro dos olhares do analista e do paciente. Juntos, o par transferencial inicia a
caracterização deste objeto, que se dá pari passu com a atribuição de características ao próprio
sujeito. Sendo assim, o analista funciona como testemunha desta invenção de si do paciente.
Todavia, além de testemunhar – e de participar, por meio de construções – deste
processo analítico de invenção de si, o analista é posto pelo paciente a testemunhar uma série
de imagens que este lhe exibe em sua narrativa. Ocorre que muitos dos pacientes que
atendemos assumem uma postura de observador frente ao mundo e parecem querer fazer com
que seus analistas possam ver também algo que eles viram.
A composição da subjetividade por atributos é permeada pela crença desses pacientes
de que são transparentes, como se bastasse um rápido olhar para que o analista percebesse o
que são, ou como se fosse suficiente que eles fizessem um bom uso do vocabulário para que o
analista entendesse completamente do que falam.
[1] Trabalho da mesa redonda Algumas questões na clínica atual coordenada por Jô
Gondar [2] Psicanalista, Professora do Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica
da UFRJ, Pesquisadora do CNPq e coordenadora do NEPECC.