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II Fórum Construindo Vidas Despatologizadas Despatologizar a poltica educacional, a escola, os processos educativos, a clínica Do higienismo à atenção psicossocial: como despatologizar? Rossano Cabral Lima Psiquiatra de crianças e adolescentes Doutor em Saúde Coletiva Professor do Instituto de Medicina Social da UERJ

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II Fórum Construindo Vidas Despatologizadas

Despatologizar a politica educacional, a escola, os processos educativos, a clínica

Do higienismo à atenção psicossocial: como

despatologizar?

Rossano Cabral Lima Psiquiatra de crianças e adolescentes

Doutor em Saúde Coletiva Professor do Instituto de Medicina Social da UERJ

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Psiquiatria e infância

• Início do século XIX: idiotia ou idiotismo na fundação da (pré) psiquiatria infantil e da “educação especial”

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Psiquiatria e infância

• Na segunda metade do século XIX, o monstro, o pequeno masturbador e a criança incorrigível ou indócil são as figuras fundamentais da psiquiatrização da infância e, a partir dela, de toda conduta desviante do adulto.

• “(...) a infância foi, na psiquiatria como em outros domínios, a armadilha de pegar adultos” (Foucault, 2002 [1974-1975])

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Psiquiatria infantil no Brasil

• Pavilhão-Escola Bourneville para crianças anormais (Hospício Nacional de Alienados, 1904)

• Método “médico-pedagógico”: do mais simples ao mais complexo (educação dos sentidos, desenvolvimento da locomoção e aquisição de hábitos de vida diária, ensino primário e/ou profissionalizante).

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Psiquiatria infantil no Brasil

• Categorias diagnósticas: idiotia, paralisia, epilepsia, imbecilidade e degeneração.

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Psiquiatria infantil no Brasil

• Juquery (SP): Pavilhão de Menores Anormais (1922), que se transforma, em 1929, na Escola Pacheco e Silva.

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Psiquiatria infantil no Brasil

•No Juquery ,as crianças eram divididas em pavilhões: •“(...) o dos ineducáveis, idiotas e imbecis profundos, epilépticos em estado demencial, perversos post-encefalíticos, e o dos educáveis, isto é, daqueles cuja deficiência mental não era muito pronunciada e cujas desordens dos sentimentos éticos permitem a convivência com outros companheiros sem maior inconveniente” (Silva, 1931)

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Higienismo e infância

• Liga Brasileira de Higiene Mental: fundada por Gustavo Riedel em 1923.

• Arquivos Brasileiros de Higiene Mental (1925)

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Higienismo e infância

• No programa de higiene da criança, caberia ao serviço de Higiene Mental:

• “Prover a fiscalização sistemática do desenvolvimento mental, procurar guiar os pais nos princípios educativos, utilizar enfermeiras e professoras, em visitas aos lares, para auxílio e conselhos aos pais, multiplicar e aperfeiçoar os jardins de infância, organizar a educação dos pais e mães para suas funções futuras, e organizar o descobrimento e educação dos deficientes mentais” (J. P. Fontelene, 1925)

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LBHM: Exortação às mães

• “Estás certa de que teu filho não possui nenhuma predisposição nervosa? A criança normal é geralmente alegre, sorridente, ativa, chora pouco e gosta de brincar. Se o teu filho é tristonho e apático, ou excessivamente excitado e brigão, se chora muito e tem ataques de raiva, cuidado com a predisposição nervosa que o pode transformar, no futuro, em uma criança doente e infeliz (...). Teu filho é tímido, ciumento, desconfiado? É teimoso, pugnaz, exaltado? Cuidado com esses prenúncios de constituição nervosa.

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LBHM: Exortação às mães

• Teu filho tem defeitos na linguagem, é gago? Manda-o examinar para saber sua verdadeira causa. Teu filho tem vícios de natureza sexual? Leva-o ao especialista para que te ensine a corrigi-lo. Teu filho é mentiroso ou tem o vício de furtar? Trata-o sem demora, se não quiseres possuir um descendente que te envergonha. Teu filho tem muitos tiques ou cacoetes? É um hipermotivo. Procure evitar a desgraça futura do teu filho, que poderá ser candidato ao suicídio. Teu filho pouco progride nos estudos? Antes de culpar o professor, submete-o a um exame psicológico.

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LBHM: Exortação às mães

• Conhecerás então, o seu nível mental, o seu equilíbrio emotivo, e terás, assim, elementos para melhor o encaminhar na vida. Lê e reflete. A felicidade do teu filho está em grande parte nas tuas próprias mãos. Não esperes, portanto, que o teu filho fique nervoso, ou atinja as raias da alienação mental; submete-o quanto antes, a um exame especializado, a fim de que, amanhã, não te doa, nem de leve, a consciência. É esta a exortação que te faz a Liga Brasileira de Higiene Mental, que somente deseja ver felizes todas as mães, para que felizes sejam também todos os filhos deste querido Brasil.”

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Higienismo e infância

• 1º Congresso Nacional de Saúde Escolar (1941, São Paulo): • “...o mecanismo genuíno da educação, o psicológico, só

encontrará colaboração plenamente eficaz na medicina psiquiátrica. Só ela substituirá o velho conceito de indisciplina pelo de perturbações funcionais do psiquismo em seu ajustamento social e a anacrônica mas subsistente noção de castigo pela renovadora e luminosa concepção de cura da indisciplina. Só ela, pelo conhecimento da etiologia psico-social das neuroses desvendará o mecanismo encoberto de formação dos desajustados, das crianças e adolescentes de difícil escolaridade e fornecerá ao professor a compreensão de cada caso, colocando-o em condições de cooperar com o médico especialista no objetivo comum e até certo ponto indistinto de educar e curar” (Raul Bittencourt, 1941)

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Brasil, século XX

• ATÉ O FINAL DO SÉCULO XX: • Crianças e adolescentes com formas graves de sofrimento

estavam majoritariamente fora do sistema formal de saúde mental.

• Serviços filantrópicos e educacionais: abordagem mista terapêutico-pedagógica.

• Tendência ao abrigamento de “portadores de deficiência” (filantropia ou assistência social).

• Serviços de saúde mental restritos a poucos ambulatórios (dificuldades de aprendizagem e problemas de conduta) e ‘serviços-ilha’ em hospitais ou universidades (orientação e prescrição medicamentosa).

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Atlas (OMS)

• OMS: Atlas - child and adolescent mental health resources (2005), aponta:

o Defasagem de serviços de saúde mental para crianças e adolescentes em todos os países membros da OMS.

o Dispersão da assistência por diferentes setores, a existência de serviços-ilhas e a necessidade de formulação de uma política, formação de recursos humanos e oferta de serviços em todas as regiões do mundo.

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Atlas (OMS)

• Para a OMS, 10-20% da população de crianças e adolescentes sofrem de algum transtorno mental. Desse total, cerca de 3-4 % necessitam de tratamento intensivo.

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Acesso x medicalização

• Como superar a lacuna assistencial sem ampliar a medicalização de problemas infantis e juvenis?

• Como enfrentar o tema da medicalização, entendendo que no Brasil encontramos lado a dado o excesso de diagnósticos/psicofármacos e a falta de acesso a quaisquer formas de tratamento?

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Atenção Psicossocial

• III Conferência Nacional de Saúde Mental (2001):

• Proposta de “rede de atenção integral” territorial com enfoque multiprofissional que deveria garantir acessibilidade a todos e prioridade aos casos de maior gravidade, tendo nos CAPSi o principal dispositivo.

• Ênfase na intersetorialidade (educação, conselhos municipais de saúde, conselhos de defesa dos direitos da criança e adolescente, juizados, promotorias, conselhos tutelares e assistência social).

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Saúde mental em dados 12 (MS, 2015) Ano CAPSi Total de CAPS

2002 32 424

2003 37 500

2004 44 605

2005 56 738

2006 75 1010

2007 84 1155

2008 101 1326

2009 112 1467

2010 128 1620

2011 149 1742

2012 174 1937

2013 187 2062

2014 201 2209

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Atenção Psicossocial

• Na lógica da atenção psicossocial, os diversos serviços e estratégias (CAPSi, ESF, etc.) não se organizam a partir das patologias, mas do nível de complexidade da situação de sofrimento apresentada pela criança e sua família, os impactos no laço social, sua singularidade e idiossincrasias, dando origem ao Projeto Terapêutico Individual.

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Atenção Psicossocial

• O diagnóstico psiquiátrico é uma das variáveis a serem consideradas, mas os serviços e ações não devem se estruturar em torno de categorias do DSM ou da CID

• Na construção do PTI, a elaboração do diagnóstico psicopatológico deve ser feita e refeita no decorrer da avaliação e do tratamento, articulado ao diagnóstico situacional cujo foco está na criança e sua singularidade, sua história, sua família, suas relações, sua vida cotidiana.

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Para finalizar

• A pergunta que se deve sempre fazer é: qual é o ganho em descrever o comportamento de uma criança como uma patologia psiquiátrica, ao invés de utilizar alguma outro ponto de vista?

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Para finalizar

• Os transtornos não são “coisas” das quais a criança é “portadora”, são modos de descrever a experiência de mal-estar subjetivo ou problemas de comportamento que têm impacto na vida da criança ou adolescente, reduzindo ou abolindo sua normatividade.

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Para finalizar

• O uso dos diagnósticos não implica localizar toda a “patologia” na criança e esquecer do ambiente familiar e comunitário, da escola, das suas relações significativas e da história da criança e de quem dela cuida.

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