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II Seminário Brasileiro Livro e História Editorial Jornalista e Mestre em Letras (PUC-Rio) Eliane Hatherly Paz 1 Doutoranda em Letras (PUC-Rio) Pesquisadora da Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio Resumo A história editorial brasileira vem aos poucos sendo (re)descoberta e (re)escrita, e os personagens que dela participaram emergem de suas páginas, deixando à vista sua grande contribuição à solidificação do mercado editorial nacional. Um desses personagens é Candido Portinari. Figura atuante no período áureo da ilustração de livros no Brasil, ao longo de 29 anos (1932-1961), ilustrou 42 títulos, trabalhando para as editoras mais expressivas, como a José Olympio e a Cem Bibliófilos do Brasil. Este artigo visa refletir, através da pesquisa nas fontes primárias do Projeto Portinari – os exemplares de Menino de engenho, de José Lins do Rego (30 ilustrações), Memórias póstumas de Brás Cubas e O alienista, de Machado de Assis (88 e 40 ilustrações), produzidos para os Cem Bibliófilos do Brasil, e sua correspondência relativa – sobre a prática da ilustração de livros “adultos”. À luz dos novos ‘estudos da visibilidade’ apresentados por Karl Erik Schøllhammer (2007), buscarei formular como se deu “a relação entre o que o texto ‘faz ver’ e o que a imagem ‘dá a entender’”, partindo do pressuposto de que essas ilustrações – que chamo de ‘pinturas literárias’ de Portinari – agregaram valor estético às narrativas. Palavras-chave leitura; linguagem; texto; narrativa visual; representação; história editorial. 1 Graduada em Comunicação Social e Mestre em Letras (PUC-Rio). Pós-graduada em Assessoria de Comunicação (UniverCidade) e em Docência do Ensino Superior (UNESA). Co-idealizadora e professora da pós-graduação lato sensu A produção do livro: do autor ao leitor (PUC-Rio/CCE). Doutoranda em Letras (PUC-Rio). Pesquisadora da Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio (www.catedra.puc-rio.br ). E-mail: [email protected]

II Seminário Brasileiro Livro e História Editorial requisitados para ilustrar obras de ficção e não-ficção. O trabalho com livros ilustrados se inicia em 1932, quando produz

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II Seminário Brasileiro Livro e História Editorial

Jornalista e Mestre em Letras (PUC-Rio) Eliane Hatherly Paz1 Doutoranda em Letras (PUC-Rio) Pesquisadora da Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio Resumo A história editorial brasileira vem aos poucos sendo (re)descoberta e (re)escrita, e os personagens que dela participaram emergem de suas páginas, deixando à vista sua grande contribuição à solidificação do mercado editorial nacional. Um desses personagens é Candido Portinari. Figura atuante no período áureo da ilustração de livros no Brasil, ao longo de 29 anos (1932-1961), ilustrou 42 títulos, trabalhando para as editoras mais expressivas, como a José Olympio e a Cem Bibliófilos do Brasil. Este artigo visa refletir, através da pesquisa nas fontes primárias do Projeto Portinari – os exemplares de Menino de

engenho, de José Lins do Rego (30 ilustrações), Memórias póstumas de Brás Cubas e O

alienista, de Machado de Assis (88 e 40 ilustrações), produzidos para os Cem Bibliófilos do Brasil, e sua correspondência relativa – sobre a prática da ilustração de livros “adultos”. À luz dos novos ‘estudos da visibilidade’ apresentados por Karl Erik Schøllhammer (2007), buscarei formular como se deu “a relação entre o que o texto ‘faz ver’ e o que a imagem ‘dá a entender’”, partindo do pressuposto de que essas ilustrações – que chamo de ‘pinturas literárias’ de Portinari – agregaram valor estético às narrativas. Palavras-chave

leitura; linguagem; texto; narrativa visual; representação; história editorial.

1 Graduada em Comunicação Social e Mestre em Letras (PUC-Rio). Pós-graduada em Assessoria de Comunicação (UniverCidade) e em Docência do Ensino Superior (UNESA). Co-idealizadora e professora da pós-graduação lato sensu A produção do livro: do autor ao leitor (PUC-Rio/CCE). Doutoranda em Letras (PUC-Rio). Pesquisadora da Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio (www.catedra.puc-rio.br). E-mail: [email protected]

Portinari entre livros O artista gráfico

Nascido a 30 de dezembro de 1903, em uma fazenda de café próxima à pequena

cidade de Brodósqui, no interior de São Paulo, Candido Portinari chega ao Rio de Janeiro

em 1919, determinado a se tornar pintor. Matricula-se na Escola Nacional de Belas Artes

(ENBA), onde recebe, ao longo de oito anos, uma formação acadêmica distante dos ventos

modernistas que chegavam da Europa.

Em 1928, após duas tentativas, finalmente ganha, com o retrato do poeta Olegário

Mariano, o concorridíssimo ‘Prêmio de Viagem’, concurso que a ENBA promovia em seus

salões anuais e que dava ao vencedor uma viagem de estudos à Europa. Manuel Bandeira2,

em artigo publicado no jornal pernambucano A Província, lamenta apenas que o prêmio

tenha sido ganho pelas “concessões ao espírito dominante na Escola” que Portinari precisou

fazer, já que fora “sempre prejudicado pelas tendências modernizantes de sua técnica”.

Em janeiro de 1931, Portinari regressa ao Brasil, já casado com Maria Victoria

Martinelli, jovem uruguaia que conhecera em Paris. Os tempos são outros: a Revolução de

30, ocorrida em outubro, havia instalado o Governo Provisório, presidido por Getúlio

Vargas. O novo governo iniciara, também, uma renovação nas instituições artísticas e

culturais jamais vista no país. Com a indicação de Lúcio Costa para a direção da ENBA,

Portinari é convidado a integrar a Comissão Organizadora do Salão, que abole o júri de

seleção e os prêmios, abrindo espaço para as mais diversas tendências artísticas do período.

Portinari exibe 17 obras na 38ª Exposição Geral de Belas Artes, que ficou conhecida por

Salão Lúcio Costa. Nessa ocasião, Portinari é apresentado ao escritor Mário de Andrade, e

os dois se tornam amigos.

No ano seguinte, o artista faz a primeira exposição individual após seu retorno da

Europa, onde apresenta, em suas telas, uma inédita temática nacional, exaltadas pelo

escritor Henrique Pongetti3 como “o começo de alguma coisa séria e definitiva na pintura

brasileira”. A pintura de Portinari finalmente vai ao encontro das preocupações que passam

a ocupar os artistas modernistas, capitaneados por Mário de Andrade: a arte social

descobrindo o homem social brasileiro.

2 Projeto Portinari. Cronobiografia de Candido Portinari, p. 4. Disponível em www.portinari.org.br 3 Idem, ibidem, p. 7.

Cercado por escritores, poetas e intelectuais, o pintor aos poucos se aproxima do

mercado editorial, onde se torna figura atuante no período áureo da ilustração de livros no

Brasil. O casamento entre literatura e artes plásticas faz de Portinari um dos artistas mais

requisitados para ilustrar obras de ficção e não-ficção.

O trabalho com livros ilustrados se inicia em 1932, quando produz quatro desenhos

para No paiz dos quadratins, de Carlos Lébeis, publicado pela editora Schmidt. Portinari

ilustra, nos anos seguintes, Poemas concêntricos, de Walter Benevides, Meditações, de

Manoel de Abreu, e A Mulher ausente, de Adalgisa Nery, os dois últimos publicados por

Jose Olympio.

Com Mário de Andrade e Aníbal Machado funda, em 1941, “um pequeno clube do

livro de poesia, que se iniciou com edições de Metamorfoses, do poeta Murilo Mendes

(com ilustrações de Portinari), de Girassol da madrugada, de Domingos Carvalho da Silva,

e do Cancioneiro do ausente, de Ribeiro Couto, todos em tiragens de 350 exemplares”4.

Ao longo de 1943, trabalha nas ilustrações do primeiro título da coleção da

Sociedade dos Cem Bibliófilos do Brasil, presidida por Raymundo Ottoni de Castro Maya.

Sociedade dos Cem Bibliófilos do Brasil

A amizade entre Portinari e Castro Maya tem início com esse convite. Grande

incentivador das artes, fundador e primeiro presidente do Museu de Arte Moderna do Rio

de Janeiro, e ainda presidente da Associação de Amigos do Museu Nacional de Belas Artes

e membro do Conselho Federal de Cultura, Castro Maya foi também criador da Sociedade

dos Cem Bibliófilos do Brasil e da Sociedade dos Amigos da Gravura.

Inspirado pelas publicações da Société des Les Cent Bibliophiles e dos Les Amis

Bibliophiles, às quais era associado, Castro Maya decide criar, no Brasil, uma associação

nestes mesmos moldes.

Anualmente ocorria, no Jockey Club do Rio de Janeiro, o jantar de lançamento do livro do ano, tal e qual faziam as congêneres francesas. Tudo era minuciosamente cuidado por Castro Maya, do convite ao cardápio (ilustrado pelo artista do ano). Durante os jantares iam a leilão os originais das ilustrações, a fim de financiar a produção do próximo ano. Neste dia, o livro era entregue em folhas soltas, sem encadernação, para que cada associado pudesse encadernar seu exemplar de acordo com o próprio gosto.5

4 HALLEWELL, Laurence. O livro no Brasil: sua história, p. 498. 5 MONTEIRO, Gisela C. P. A identidade visual da Coleção dos Cem Bibliófilos do Brasil, 1943/1969, p. 140.

Texto sobre a fundação da SCBB.

Fonte: MONTEIRO, Gisela.

Ao fundar a Sociedade dos Cem Bibliófilos do Brasil, institui entre nós a produção

de “livros de artista”. Em resumo, até a década de 1930, o livro nacional era em tudo

inferior aos de origem européia. As transformações gráficas, em geral inspiradas em obras

francesas, “que dariam aos livros nacionais capas mais sofisticadas, ilustrações e leveza”6,

foram promovidas pelo editor José Olympio e Tomás Santa Rosa, os responsáveis por essa

revolução estética. Paralelamente às editoras comerciais, a SCBB promove a criação desses

luxuosos exemplares com tiragens limitadas, destinadas a seus sócios e a instituições

criteriosamente escolhidas.

Para eles, foram escolhidos ilustradores de “primeiro time”, ao mesmo nível dos autores dos textos que ilustram. Dessa forma, podemos dizer que a Coleção possui dois discursos, autônomos e paralelos. Em outras palavras, cada um dos livros ultrapassa em muito a condição de objeto que tem a função a ser lido, ganhando um status de verdadeira obra de arte.7

A SCBB existiu de 1942 a 1969, ano em que falece Raymundo Ottoni de Castro

Maya. Produziu uma coleção com 23 títulos, dentre os quais dois ilustrados por Portinari –

Memórias póstumas de Brás Cubas e Menino de engenho. Ainda em 1944, em um projeto

paralelo, Castro Maya decide editar O alienista, para o qual também escolhe Portinari como

ilustrador. O livro sai em 1948, com 400 exemplares.

6 PAIXÃO, Fernando. Momentos do livro no Brasil, p. 118. 7 MONTEIRO, Gisela C. P. Op. cit., p. 101.

PR-645.1: Uma nova sociedade de bibliófilos. Diário Carioca, Rio de Janeiro, RJ, 27 dez. 1942. Arquivo Projeto Portinari

Noticia a fundação da Sociedade dos Cem Bibliófilos do Brasil, cujo objetivo é publicar edições de luxo, com tiragens limitadas, de títulos nacionais ou estrangeiros, considerados de alto valor literário. A primeira publicação será Memórias

póstumas de Braz Cubas, de Machado de Assis, com ilustrações de Portinari.

Fonte: www.portinari.org.br

Os livros Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis (1943)

Título com o qual a editora Cem Bibliófilos do Brasil – fundada em dezembro de

1942 por Raymundo de Castro Maia para imprimir livros luxuosos exclusivamente para

seus membros – estreou no mercado, a edição de 119 exemplares, com 316 páginas, teve 88

imagens produzidas por Portinari, sendo sete entregues aos sócios em “águas-fortes

encartadas (fora da numeração do livro), tiradas pelo próprio artista com o auxílio de Loy

Portinari e 80 desenhos a nanquim reproduzidos em clichês”8.

A correspondência entre Portinari e Castro Maya começa antes mesmo da fundação

da Sociedade. Em carta de 22 de setembro de 1942, o empresário confirma o convite feito a

Portinari para ilustrar o livro e informa que serão produzidos 115 exemplares, e que os

originais das ilustrações ficarão em poder da Sociedade9.

Quatro meses após a fundação da SCBB, ficamos sabendo por carta datilografada

pelo artista que este ‘se demite’ do projeto: “Rio de Janeiro, 10 de abril de 943. Prezado

amigo Castro Maya, a presente tem por fim comunicar-lhe a minha desistência em fazer o

Braz Cubas”10.

Passadas as desavenças iniciais – cuja elucidação não está registrada na

correspondência consultada, mas é comunicada a Mario de Andrade em julho: “Já comecei

a fazer o Braz Cubas.”11 –, teremos notícias do andamento do livro pela seqüência de cartas

de Castro Maya, onde trata de detalhes da produção dos desenhos e demais aspectos do

livro:

Em 20 de setembro de 194312, o empresário pede a Portinari que envie seu irmão,

Loy Portinari, ao campo de aviação de Ribeirão Preto para receber dele “o texto do Braz

Cubas” acompanhado da “lista dos teus desenhos a fim de indicar a página onde devem ser

colocados”. Também o consulta sobre alguns detalhes de finalização, como qual a melhor

maneira de identificar os personagens retratados:

8 MONTEIRO, Gisela C. P. Op.cit., p. 58. 9 CO-145.1. Arquivo Projeto Portinari. 10 CO-4386.1. Arquivo Projeto Portinari. 11 CO-5797.1 Arquivo Projeto Portinari. 12 CO-3253.1. Arquivo Projeto Portinari.

Com referência as personagens, lembramos também que talvez fosse melhor identificá-los com o nome, pois a simples colocação em alguns casos é capaz de trazer confusão. Eu penso que tenhamos falado em por o nome no índice, mas estas paginas em clichê não levam número!! Qual tua opinião? Se formos colocar o nome com que tipo de letra? Penso que com letra de forma não ficaria bem só em manuscrito, mas isto deveria ser com sua letra...

O contato é retomado em 24 de setembro através de notas escritas no avião que

Castro Maya envia a Portinari com dúvidas sobre como melhor solucionar a colocação dos

desenhos no livro de forma a torná-lo mais “harmonioso”. O processo de produção é lento –

“Candinho, talvez não tenha tempo para trocar idéia contigo a respeito das provas do livro

que só hoje me foram entregues: 117 capítulos, faltam ainda quarenta e tantos...”13 – e o

prazo para a entrega do primeiro título – conforme estipulado no convite de inscrição: “O

primeiro livro a ser publicado em 1943 será Memórias póstumas de Braz Cubas, de

Machado de Assis, ilustrado e gravado por Candido Portinari.”14 – se expira rapidamente.

O mês de outubro transcorre e cinco cartas são destinadas a Portinari ainda tratando

de assuntos relativos às ilustrações do livro.

Contrariando o cronograma, Memórias póstumas de Brás Cubas só é lançado em

julho de 1944. Em 19/08, Portinari recebe os comentários de seu amigo Mario de

Andrade15:

(...) Também o que você fez pro Brás Cubas é estupendo. Mas me refiro ao que você fez, e não aos outros. A edição é linda, toda ela, não há dúvida, mas chega a ser infame que numa edição desse luxo tenham botado o último caderno da impressão em papel diferente. É o cúmulo. Você sabe me informar se faltou papel pra todos os exemplares e em todos existe o mesmo defeito ou só em alguns? Não puseram nenhum aviso em folha ou volante, não deram nenhuma satisfação na justificação da tiragem, nada. Preciso saber disso e o que a Sociedade pretende fazer, si pretende substituir essa folha, quando puder importar papel etc. Tudo isso é muito grave, Portinari, porque é arte, mas é questão financeira também, de que você não tem culpa nenhuma, eu sei, mas que muitos não sabem. E envolve fatalmente o nome de você e a sua honorabilidade artística. E si eu não escrevi um artigo esculhambando a Sociedade, acredite, foi exclusivamente porque isso envolve o nome de você, que não tem culpa nenhuma. Mas a Sociedade precisa substituir esse caderno, quando a guerra acabar e se puder importar papel. E o Alienista como vai?

Em resposta, Portinari informa que os Cem Bibliófilos vão reeditar Memórias

póstumas de Braz Cubas, que saiu com muitos erros. E que já começou o Alienista.

13 CO-3257.1. Arquivo Projeto Portinari. 14 MONTEIRO, Gisela C. P. Op.cit. Arquivo p100_doc12_f1de1. Acervo virtual em CD. 15 FABRIS, Annateresa (org.). Portinari, amico mio, pp. 139-140.

Informa sobre jantar, no Jockey Clube, comemorativo da 1ª edição promovida pela Sociedade dos Cem Bibliófilos do Brasil. Noticia que este primeiro livro será Memórias

póstumas de Braz Cubas, de Machado de Assis, com ilustrações de Portinari.

Fonte: www.portinari.org.br

PR-798.1: Serão os livros mais raros do Brasil. O Globo, Rio de Janeiro, RJ, 18 jul. 1944.

O alienista, de Machado de Assis (1944-1948)

As negociações para O alienista começaram em fevereiro de 43. Foi um projeto

paralelo às edições da SCBB, apesar de ocupar a mesma equipe que produziu o Brás Cubas.

Devido talvez aos vários percalços na edição deste e à continuidade de publicações daquela,

ocupando o editor Castro Maya, O alienista demorou muito mais para ser produzido, tendo

Portinari começado seus trabalhos em agosto de 44 e o livro ser publicado apenas em 48.

A publicação de O alienista, de Machado de Assis, ilustrado por Candido Portinari, se relacionava com os desdobramentos da guerra (...). Os originais de Portinari datam de 1944, mas a edição iniciada em 1945 se finalizou somente em 1948. As quatro águas-fortes e reproduções em offset de 36 desenhos a nanquim foram impressas pela gráfica da Imprensa Nacional. Pela iniciativa e direção de Raymundo Ottoni de Castro Maya, a tiragem dos 400 exemplares destinou-se à beneficência. E seu exemplar no 1 receberia a encadernação de René Aussourd. É interessante considerar a proximidade entre o início desta edição, em 1944, e o começo das atividades da Sociedade dos Cem Bibliófilos do Brasil, em 1943.16

É interessante notar que tendo publicado um primeiro título de Machado de Assis,

somente com O alienista Castro Maya se refere ao “Jackson”, provavelmente a W. M.

Jackson Company, detentora da obra de Machado de Assis desde 1937, com quem ainda

negocia a liberação do texto para a tiragem dos 400 exemplares para venda. Em 5 de

outubro de 1943, escreve a Portinari: “Quanto ao ‘Alienista’, junto cópia da carta do

Jackson; a sua pretensão me parece razoável. Que acha?”17.

Carta de 24 de setembro de 1943.

16 Anaildo Bernardo Baraçal, “Dedicatória”, in Castro Maya, bibliófio, p. 63. 17 CO-3254-2. Arquivo Projeto Portinari.

Menino de engenho, de José Lins do Rego (1959) Décimo terceiro título da coleção dos

Cem Bibliófilos do Brasil, com tiragem

de 120 exemplares. Para esse livro

Portinari preparou 30 gravuras a água-

forte, e trabalhou sob a supervisão de

Poty Lazarotto.

Existem apenas duas correspondências relativas a esse

trabalho no Projeto Portinari. A primeira, de ordem

pessoal, de 6 de março de 1959, é do artista a seu filho,

comunicando-lhe o término das ilustrações. A segunda,

comercial, enviada pelo diretor da SCBB, Cypriano

Amoroso Costa em 3 de

novembro do mesmo ano,

lhe informa o dia da

distribuição do livro e o

horário do leilão dos

originais das ilustrações.

Detalhe da Ata de Reunião de 09/12/58. Fonte: MONTEIRO, Gisela.

Carta de Portinari ao filho. 6 de março de 1959.

Carta de Cypriano Costa a Portinari. 3 de novembro de 1959.

As ilustrações

No que se refere às ilustrações criadas por Portinari para os três títulos analisados,

qual a relação entre os textos literários e as ilustrações: linguagens complementares ou

suplementares? Em “Regimes representativos da modernidade”18, Karl Eric Schøllhammer

aborda a tradição das “artes irmãs” retomada por Horácio n’A arte poética, para quem,

através da irmandade entre poesia e imagem, “abriu-se a discussão que persiste até hoje não

apenas sobre a relação da poesia com a imagem, mas sobre os elementos ‘pitorescos’,

‘descritivos’ e ‘expositivos’ da literatura, e os elementos ‘poéticos’, ‘retóricos’ ou

‘narrativos’ da pintura”. Ao ilustrar romances, como também livros de poesia e de literatura

infantil, Portinari, inserido no movimento modernista – que nas artes plásticas buscava uma

redefinição da linguagem artística – teve a oportunidade de explorar as múltiplas

peculiaridades expressivas entre literatura e pintura, criando ‘pinturas literárias’ que

agregaram valor estético às obras.

Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis

O conjunto de 88 ilustrações que o artista preparou

para o primeiro título da coleção dos Cem Bibliófilos do

Brasil divide-se em sete gravuras a água-forte e 81 desenhos a

nanquim bico-de-pena.

Na capa do livro, está o primeiro verme que roeu as carnes de Brás Cubas e ao qual ele dedicou suas memórias. Constitui uma representação metafórica do verme, que aparece enorme e possui uma dentuça de onça. Está feito desse modo para mostrar sua fantástica capacidade devoradora. É um carnívoro igual ao leão, ao tigre ou à piranha. (...) Aquele verme seria capaz de estraçalhar rapidamente todas as carnes. Daí seus caninos inesperados.19

18 Revista Alceu, p. 29. 19 BENTO, Antonio. p. 239.

Lagarta Ilustração para a capa do livro Memórias posthumas de Braz Cubas, de Machado de Assis. Acervo Projeto Portinari

O alienista, de Machado de Assis Das 40 ilustrações produzidas pelo artista, quatro foram

gravuras a água-forte, três foram desenhos a guache e

nanquim bico-de-pena, uma desenho a aquarela e nanquim

bico-de-pena e 32 desenho a nanquim bico-de-pena.

Diferente de Brás Cubas, O alienista não possui vinhetas.

O diálogo do artista com um escritor tão “pouco

visual” como Machado de Assis possibilitou a Portinari a

liberdade de experimentar, como relata a Mario de Andrade

em carta de julho de 1943, se referindo às ilustrações dos

personagens: “Fiz o retrato de cada personagem; ainda faltam alguns. (...) estou procurando

dar um jeitão de gente que existiu mesmo.”

Menino de engenho, de José Lins do Rego Em Menino de engenho, Portinari trabalhou apenas com

gravuras a água-forte. Todas elas ilustrações de página

inteira.

Em seu traço, percebe-se nitidamente a

identificação do artista plástico com a obra literária, em se

tratando de temas que Portinari fartamente registrou em

seus quadros: o sertão, as plantações, os camponeses, a

infância.

Outras ilustrações de Portinari que podem ser apresentadas como modelares são as do Menino de engenho, de José Lins do Rego, igualmente editado pela Sociedade dos Cem Bibliófilos. Possuem maior unidade nos traços. São todas expressionistas, embora algumas, com mais freqüência, utilizem-se de recursos de claro-escuro. Começam descrevendo a tragédia do assassínio da mãe do escritor pelo próprio marido. Foi contada com notável sobriedade por José Lins do Rego, que tinha na época cinco anos de idade. A cena está bem representada pelo desenhista.20

20 BENTO, Antonio. Op. cit., p. 240.

Composição com Rosto Ilustração para a capa do livro O alienista, de M. de Assis. Acervo Projeto Portinari

Menino Ilustração no 1 para o livro Menino de engenho, de José Lins do Rego. Acervo Projeto Portinari

Referências bibliográficas BENTO, Antonio. Portinari. Rio de Janeiro: Léo Christiano Editorial Ltda., 2003. FABRIS, Annateresa (org.). Portinari, amico mio. Campinas, SP: Mercado de Letras – Autores Associados / Projeto Portinari, 1995. HALLEWELL, Laurence. O livro no Brasil: sua história. São Paulo: Edusp, 2005. MONTEIRO, Gisela C. P. A identidade visual da Coleção dos Cem Bibliófilos do Brasil,

1943/1969. Dissertação (mestrado) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Escola Superior de Desenho Industrial. Rio de Janeiro, 2008. MUSEUS CASTRO MAYA. Castro Maya, bibliófio. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002. PAIXÃO, Fernando. Momentos do livro no Brasil. São Paulo: Editora Ática, 1998. Revista Alceu – Revista de Comunicação, Cultura e Política. Publicação Semestral do Departamento de Comunicação da PUC-Rio. v.1 n.2 - jan./jun. 2001, p. 29. Disponível em: http://publique.rdc.puc-rio.br/revistaalceu/