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III SEMINÁRIO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA DOS ALUNOS DA UFF 29, 30/novembro e 01/dezembro2016 Salas 307 e 308 – Bloco P Campus Gragoatá, em São Domingos, Niterói/ RJ. CADERNO DE RESUMOS COMISSÃO ORGANIZADORA: Bruno Jalles, Bruno Pacífico, Daniel Gilly, Fernanda Oliveira, Jessica Di Chiara, Joana Souto, José Fernandes, José Maurício de Castro, Leonardo Lacerda, Marina Cavalcanti, Victorine Liguiçano

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III SEMINÁRIO DE PÓS-GRADUAÇÃO

EM FILOSOFIA DOS ALUNOS DA UFF

29, 30/novembro e 01/dezembro2016

Salas 307 e 308 – Bloco P

Campus Gragoatá, em São Domingos, Niterói/ RJ.

CADERNO DE RESUMOS

COMISSÃO ORGANIZADORA:

Bruno Jalles, Bruno Pacífico, Daniel Gilly, Fernanda Oliveira, Jessica Di Chiara, Joana Souto, José Fernandes, José Maurício de Castro, Leonardo

Lacerda, Marina Cavalcanti, Victorine Liguiçano

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Ádamo da Veiga – Notas sobre o fazer filosófico no debate Foucault e

Derrida (Mesa 4)

RESUMO: Passado cerca de um ano do momento inaugural do projeto filosófico de

Michel Foucault, o lançamento de sua tese de doutoramento, A História da Loucura na

Idade Clássica, este se vê diante da severa crítica do futuro eminente Jacques Derrida.

A crítica se detém, em sua maior parte, sobre a interpretação de Foucault acerca das

Meditações de Descartes, presente em breves páginas do imenso volume. Contudo, na

parte inicial de Cogito e História da Loucura, Derrida oferece uma crítica mais direta ao

projeto do seu antigo professor; ao questionar a possibilidade de uma história própria da

loucura – definida por Foucault, como “ausência de obra”- este coloca uma

problemática sísmica extensível a toda sua obra. A resposta de Foucault, proferida mais

de uma década depois, é bastante incisiva quanto ao primeiro aspecto; entretanto, no

que tange ao segundo, ele parece se eximir de uma refutação direta. Assumindo o risco

de sermos por demais esquemáticos, acreditamos que tal debate pode ser analisado em

dois níveis.

Primeiramente, em um nível hermenêutico, no qual ambos discutem a forma correta de

se interpretar a rápida aparição da loucura na primeira Meditação de Descartes. Para

Foucault, Descartes a excluiria como pressuposto necessária do discurso,

desqualificando-a de antemão sem sequer submetê-la a prova da dúvida. -“eu, que

penso, não posso ser louco.” Segundo a ordem das meditações, a loucura teria um papel

diferente do sonho e da ilusão, que se seguem; se ambos ainda se relacionam com a

verdade, se ainda são acessíveis ao pensamento, o mesmo não se dá com a loucura, a

qual deve ser excluída a principio, pois é “é justamente a condição de impossibilidade

do pensamento.” Tal exclusão seria sintomática de um processo mais amplo no qual a

loucura seria constituída enquanto Outro da razão, processo correspondente ao

isolamento físico dos loucos nos Hospitais Gerais e demais instituições. Por sua vez,

para Derrida a loucura seria uma prova “insuficiente” , transitória, que seria substituída

em seguida pela prova do sonho e do Gênio Maligno. Descartes não a excluiria, muito

menos tomaria a sua exclusão como condição de possibilidade da Meditação.

Em um segundo nível, temos uma crítica metodológica, na qual Derrida questiona a

condição de possibilidade de um projeto tal como o da História da Loucura. Uma vez

que a loucura é o Outro da ratio ocidental, a ausência de obra, como seria possível dar a

ela uma voz sem que ela fale já no interior da Razão? Ao invés de dar a loucura a sua

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voz própria, permitindo que ela se liberte da Ordem, a obra de Foucault, ao se utilizar de

uma linguagem racional acadêmica para se referir ao seu fora, não estaria rompendo

com a tradição. Dando voz ao silêncio, ele o perderia enquanto silêncio.

Em um primeiro momento, resumiremos tal debate, organizando-o segundo estes dois

níveis. Em seguida, poderemos observar, exterior a fala de ambos, uma torsão que os

engloba, um disparate interno que não nos faz reconhecer neles, o personagem

conceitual ao qual costumamos ceder-lhes a imagem. Há uma incompatibilidade latente

entre os dois níveis, uma dissonância entre a hermenêutica lançada por cada um e as

suas respectivas propostas metodológicas. Não vemos Foucault e não vemos Derrida em

muitos momentos, ao passo que em outros, vemo-os nitidamente; sob a figura do

Scholar, Derrida ataca, e sob a autoridade do Mestre, Foucault responde. Tal

incompatibilidade será analisada na conclusão, e através dela, ofereceremos uma breve

interpretação da mesma sob o ponto de vista de um fazer filosófico.

Alan Buchard – Ética e estética do eu nos Ensaios de Montaigne (Mesa 2)

RESUMO: No trabalho que o leitor tem em mãos, nosso objetivo será, portanto,

apresentar a filosofia de Montaigne sob seu aspecto “moral”, ou seja, naquilo que dela é

voltada para o estudo da natureza humana, para questões propriamente morais como a

morte, a dor, a solidão, a alegria, o prazer, o corpo, a sabedoria. Sob essa perspectiva,

abordaremos os desdobramentos desse estudo para a composição dos ensaios: retrato do

exercício constante de um eu confrontado com a diversidade e a mutação do mundo e de

suas representações. Desejamos sustentar que Montaigne pertence à tradição filosófica

que remonta a Sócrates, para quem havia duas ocupações para o ser humano: “conhecer

a si mesmo” (gnoti seauton) e “aplicar-se sobre si mesmo” (epimeleia heautou), sobre

sua alma.

Nossa hipótese é de que o cerne da filosofia ensaísta está no exercício moral, isto é,

compor, constituir seu próprio ethos, sua própria postura como sujeito de ações morais.

A moral em Montaigne é aquela mesma moral verificada nas obras da Antiguidade

clássica e do pensamento greco-romano, e às quais Foucault chamava de “morais

orientadas para a ética” (FOUCAULT, 1998, p. 30). Acreditamos que a finalidade dos

Ensaios é a elaboração de uma “ética de si”, isto é, “fazer da própria existência, desse

material essencialmente mortal, o lugar da construção de uma ordem que se mantém por

sua coerência interna” (FOUCAULT, 2010, p. 480). A escrita e composição de um

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ensaio é aqui compreendida como uma estratégia de ordenamento, cuja finalidade é

terapêutica. Fazer da escrita o meio de autoconhecimento e de ordenamento ético. O

ensaio montaigniano assume e parte da experiência de si, tal como Foucault

compreende, na contemporaneidade, o ensaio: “(...) que é necessário entender como

experiência modificadora de si no jogo da verdade, (...) é o corpo vivo da filosofia, se,

pelo menos, ela for ainda hoje o que era outrora, ou seja, uma 'ascese', um exercício de

si, no pensamento" (FOUCAULT, 1998, p. 13).

O método ensaístico é um contínuo movimento, no qual o sujeito-autor pode arriscar-

se, deslocar-se, tatear, experimentar-se continuamente; dito de outro modo, o “ensaio” é

a consciência e experiência do espírito humano diante da inconstância de suas

representações e da lei inexorável do devir. Nesse sentido, o ensaio não é apenas um

gênero literário, mas um exercício para a “prática de si”, e um experiência

transformadora do êthos humano. Exatamente por integrar ética e estética, ou dito de

outro modo, por fazer de sua escrita o caminho para a modificação de sua existência,

que o estilo ensaístico é, como o afirmou Foucault, o “corpo vivo da filosofia”

(FOUCAULT, 1998, p. 13)

Para Montaigne o ideal de bem viver estava relacionado a uma noção de sabedoria não

metafísica, mas imanente – o eu. No cerne da filosofia moral de Montaigne habita uma

prática filosófica que pretende voltar os olhos do sujeito para sua própria interioridade,

para sua própria condição humana. Concentrar-se em si, “reconduzir-se” a si, “contrair-

se” em si são exercícios que visam transformar o discurso verdadeiro, a verdade em

êthos; isto é, transformar moralmente as ações e os pensamentos do sujeito. A finalidade

dessa áskesis filosófica é, portanto, a salvação individual, na medida em que ela não é

postulada em um mundo metafísico inteligível, mas no interior do indivíduo. A filosofia

ensaística é, dessa perspectiva, uma tentativa de reconstituir uma ética da imanência

mediante à adoção da vida particular como matéria-prima para a elaboração de uma

obra de arte [e de filosofia] estética: “Estudo a mim mais do que a outro assunto. Essa é

minha metafísica, essa é minha física. (...) Nossa grande e gloriosa obra-prima é viver

adequadamente” (III, 13, 1072, 1108/488 C).

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André Braga – O riso de Glauco em República VI (509c) e o da

multidão em República V (450b-474b) (Mesa 8)

RESUMO: No livro VI da República de Platão, quando o personagem Sócrates acabar

a sua narrativa sobre a Ideia de Bem (o Símile do Sol, 508b12-509b10), Glauco como

que explode em risos, acusando o dito de ser um “exagero extraordinário” (509c1-2). É

inegável que o riso para os gregos podia ter muitos sentidos. Muitas vezes a noção de

“risibilidade” estava ligada à de “absurdidade”, isto é, a de um ato ou palavra que “não

fazia sentido” no contexto ao qual estava relacionado. Já no próprio idioma helênico

vemos, por exemplo, o adjetivo géloios ter como primeiro significado “cômico”,

“risível”, e, como segundo, “absurdo”. Por seu turno, he geloiótes, o substantivo

abstrato, não significa outra coisa senão “absurdidade”. Essa correlação entre as duas

noções pode também ser verificada nos pareceres de alguns autores antigos sobre o

tema. Segundo Aristóteles, o riso costuma ser causado pela afirmação ou ocorrência de

“algo inesperado, não na direção da expectativa prévia” (parádoxon [...], mé [...] pròs

tèn émprosthen dóxan, Retórica III, 11, 1412a). Já o autor anônimo do Tratado

Coinsliano fornece uma informação ainda mais específica, dizendo que, um dos

melhores recursos para a Comédia antiga gerar o efeito de comicidade é o “exagero

através do absurdo” (he pleonázousa tôi geloíoi, apud JANKO, 1984), isto é, o exagero

que não faz sentido. Entretanto, se é possível identificar os tipos de “coisas risíveis”, é

fato que é possível também identificar diferentes “tipos de riso”. Nossa comunicação

procurará entender que tipo de riso que pode ser imputado ao personagem Glauco após

o Símile do Sol, a partir do texto da própria República. No livro V, Sócrates condenou

um tipo de riso que “o povo” (hoi polloí) manifestaria sobre as noções que ele expôs

naquele livro – as três famosas “ondas” “contrárias à opinião” (parádoxon, 472a) do

livro V. Segundo este personagem, o tipo de riso que seria manifestado por essas

pessoas teria dois traços principais e interligados:

a) estaria focado em objetos que seriam “ridículos” apenas sob o ponto de vista dos

“costumes” (452a) ou mesmo das “impressões visuais”, mas que não o eram segundo o

lógos (452d);

b) estaria conectado à própria ignorância dessas pessoas sobre o objeto de seu riso; seria

assim um riso que “nada sabe” (457b).

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O riso do personagem Glauco após o Símile do Sol, entretanto, parece ser um

riso de uma ordem completamente diferente. A esta conclusão é possível chegar se

alguns elementos do diálogo não forem menosprezados:

i) quando Sócrates, muito receoso, expuser as suas três ondas de “paradoxo” no livro V,

é extremamente notável que, a despeito da reação jocosa e violenta que é dito que o

“povo” teria, Glauco em momento algum acha qualquer coisa “engraçada” nas três

“ondas”;

ii) Glauco chega a alertar Sócrates de que ele precisaria se defender com argumentos

para evitar a violência da multidão como reação à terceira “onda”, que é a maior de

todas, porém ele próprio, Glauco, não esboça nenhuma violência, galhofa ou crítica em

relação a ela (473e-474a);

iii) se, por um lado, do riso da multidão é dito que “nada sabe” daquilo que ri, por outro

lado, o texto do final do livro V (476a-480a) dá indícios suficientes de que Glauco está

bastante familiarizado com o provável objeto de seu riso ao fim do Símile do Sol – a

saber, a dinâmica da causalidade no contexto das Ideias inteligíveis;

Assim, nosso objetivo será elucidar que tipo de riso seria aquele com que Glauco

encerra o Símile do Sol, a partir da interpretação dos pontos acima, bem como da

discussão com alguns importantes estudos sobre o tema (VEGETTI, 2000;

STATKIEWICZ, 2000; HALLIWELL, 2008).

Antonio Barros – Duas vontades estéticas a partir de uma distância

naturalista (Mesa 6)

RESUMO: Mais de quinze anos após a escrita de sua obra magna, O Mundo como

Vontade e Representação (1819), o filósofo alemão Arthur Schopenhauer (1788-1860)

publicou Sobre a Vontade na Natureza (1836). Tal obra nova resultava de intensos

estudos e pesquisas em variados campos científicos a fim de nestes encontrasse as

confirmações empíricas de sua doutrina da Vontade, fundada a partir de bases kantianas

e platônicas. Em linhas gerais, tratava-se de fazer visível e tangível a verdade de suas

elaborações filosóficas, contidas na obra anterior, através de variadas correspondências

encontradas nas diversas ciências naturais: fisiologia e patologia; anatomia comparada;

fisiologia vegetal; astronomia física; magnetismo animal e magia; sinologia; e

linguística. Desse último campo Schopenhauer faz um capítulo bem curto em que

dedica-se a indicar manifestações verbais e linguísticas, no texto de outros autores, que

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antecipariam ou ressoariam a sua própria doutrina. Assim, em particular, dentre as

autoridades antigas que o filósofo alemão cita e comenta encontra-se, não sem certo

descaso, o nome de Plínio, o Velho. Gramático e historiador romano do século I, Plínio

é autor da célebre História Natural (77 a.C.), também conhecida como a “enciclopédia

do mundo antigo” devido aos seus trinta e sete volumes sobre todo tipo de sabedoria

natural e técnica disponível à época: desde de cosmologia à história da arte, passando

por antropologia, zoologia, botânica, medicina, e mineralogia. Em outros textos do

filósofo alemão – como em trechos de sua obra final, Parerga e Paralipomena (1851) –

é possível perceber certo desprezo que ele alimentava por Plínio e sua voracidade

literária, no entanto, não escapou à sua pesquisa e análise um trecho de muito efeito que

por isso de certa forma encaminha o fechamento dos livros da História Natural. De

fato, justamente no Livro 37 Plínio conclui seus amplos estudos naturais com uma

afirmação que surpreende por sua força de sentença e como um eco ancestral da

doutrina schopenhaueriana: “Tampouco razão deve ser buscada em qualquer parte da

natureza, mas apenas a vontade”.

E como dissemos, todavia Schopenhauer o cita com explícito descaso, quase como que

compelido apenas pela vontade de sua erudição – além dos comentários depreciativos

em outros textos seus em relação ao historiador romano antigo. Interessa a essa

comunicação, portanto, um pensar da razão, ou antes da vontade desse descaso

interposto entre Schopenhauer e Plínio; um inusitado descaso apesar dos paralelismo de

seus respectivos trabalhos debruçados sobre o mundo natural e da importância que o

termo “vontade” assume para cada qual desses autores. Dessarte, considerando a

relevante acuidade da erudição do filósofo alemão, isto é, considerando que tal descaso

é menos uma implicância sem motivo e mais o resultado de um senso crítico e filosófico

apurado, cumpre investigar os conflitos estruturais que permeiam a distância formada

entre os próprios textos desses autores. Para tanto, nos interessa manifestar em seus

respectivos textos, de Plínio (História Natural) e de Schopenhauer (Sobre a Vontade na

Natureza), as bases filosóficas conflitantes entre a filiação estóica do romano e a estima

do platonismo por parte do alemão. Afinal, qual a distância entre o naturalismo que a

vontade de Schopenhauer exprime e a vontade expressa na natureza de Plínio? E quais

as consequências estéticas que essa diferença de vontade faz emergir?

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Bruno Alonso – A influência do estoicismo na concepção montaigniana

de consciência (Mesa 2)

RESUMO: A busca pela certeza e a atenção a si mesmo: esses princípios, provenientes

da filosofia moral estoica, dominaram a filosofia moderna e foram determinantes para a

elaboração de uma noção internalista de consciência. Esta pesquisa tem como finalidade

apurar a maneira pela qual o estoicismo exerceu influência sobre o pensamento de

Montaigne. Ele incorpora o ensinamento estoico de que lidamos tão somente com

nossas representações internas e não com as coisas mesmas. No entanto, essa busca pela

certeza – na esfera moral mediante à interioridade – acaba por se mostrar problemática

para Montaigne, que desconfia da razão humana e duvida que sejamos capazes de ter

plena autonomia sobre nossa consciência. Sendo também influenciado pelo ceticismo,

Montaigne reconhece que o “eu” é uma fonte perene e indefinida de incertezas.

Dificuldades que foram encaradas pelo filósofo francês nos Ensaios, onde os princípios

estoicos são postos a toda prova.

Ao propor a discussão sobre a influência do estoicismo na obra de Montaigne, torna-se

inevitável considerar a complexidade dessa questão. É difícil reduzir a filosofia

montaigniana à uma determinada doutrina, uma vez que vemos diversas influências nos

seus ensaios. Montaigne é um filósofo do século XVI, uma época importante do

Renascimento, circulavam novos textos, recentemente descobertos, que trouxeram uma

nova visão sobre a tradição filosófica. Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres de

Diógenes Laércio e as Hipotiposes Pirrônicas de Sexto Empírico, foram algumas das

obras que o filósofo francês teve contato. Em meio a esse momento de grande

efervescência intelectual, Montaigne imaginou uma nova forma de fazer e pensar a

filosofia. Seu estilo é mais poético e literário, despretensioso e sem nenhum rigor

sistemático. Num mesmo ensaio ele defende duas teorias contraditórias, argumentando

tanto em favor de uma quanto de outra, dando margens para diferentes interpretações.

Por isso, pensar sobre a influência do estoicismo, será um desafio, uma vez que é

imprescindível contextualizar com as diferentes perspectivas que o autor apresenta. O

ceticismo, por exemplo, é uma referência fundamental para a concepção montaigniana

de consciência e é uma doutrina que apresenta muitas dificuldades para os princípios

estoicos. Sendo então indispensável comparar e esclarecer como essas influências se

manifestam na filosofia de Montaigne.

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Conforme diz o pesquisador espanhol Jesus Navarro no artigo De las dudas de

Montaigne a la certeza de Descartes: Uma hipótesis sobre la función del estoicismo en

el origen del internalismo epistémico moderno, o ensaio De la vanité é um dos que mais

se vê a influência do estoicismo no pensamento do filósofo francês. Sendo então um dos

principais ensaios para esta pesquisa e junto com o texto de Jesus Navarro servirão

como ponto de partida.

A prescrição do oráculo de Delfos dizia que ao invés de se perder num desperdício com

as coisas do mundo exterior, deveríamos nos concentrar, olhar para dentro de si, de

forma que aquilo que vem de fora não pudesse prevalecer sobre a interioridade. Uma

das questões centrais do estoicismo, fortemente presente nas obras de Epíteto e Marco

Aurélio, é a crença de que a consciência não pode ser diretamente afetada pelo mundo

exterior. Os estoicos acreditavam nisso como um princípio filosófico fundamental,

nossos sofrimentos não são causados por aquilo que vem de fora, mas pela maneira

como lidamos e julgamos as nossas impressões. Para pensar sobre a questão da vaidade

Montaigne acaba por assumir uma “máscara estoica”, sem deixar de lado a sua

personalidade múltipla e versátil.

Bruno Jalles – Ensaio sobre o ensaio: Algumas considerações sobre a

forma ensaística a partir de Georg Lukács (Mesa 10)

RESUMO: Ainda que mais tarde, quando de sua conversão a um marxismo mais

dogmático, viesse a rejeita-lo, o texto de juventude “Sobre a forma e essência do ensaio:

Uma carta a Leo Proper”, de Georg Lukács, é o grande pioneiro do reavivamento que a

forma ensaística terá no pensamento contemporâneo. O seguinte trabalho propõe-se a

um breve mergulho nesse escrito, a fim de retrilhar os caminhos desbravados por

Lukács, para melhor entender algumas das questões mais interessantes postas pela

Teoria Crítica ao pensamento ocidental.

“Toda resenha filosófica deveria ser ao mesmo tempo filosofia das resenhas”.

-F.Schegel,

No posfácio de sua tradução da Teoria do Romance, José Marcos Mariani de

Macedo nos reconta uma interessante anedota quando da ocasião do pleito do jovem

Lukács a uma cátedra na universidade de Heildelberg. Isolado em 1911-1912 em

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Florença, o escritor húngaro dedica-se a elaboração de escritos ensaísticos que serviriam

como base para um futuro livro sistemático acerca do romance, intitulado Estética do

Romance. Era esperança do jovem escritor que esse livro lhe garantisse uma vaga na

prestigiada Universidade, mas uma série de fatores, que viriam a culminar com sua

convocação obrigatória para servir na Grande Guerra, o impediram de dar cabo dessa

tarefa, a despeito do encorajamento e do entusiasmo de seu mentor, o velho sociólogo

Max Weber para com o projeto. Finda a guerra, contrariando as expectativas de seu

patrono intelectual, Lukács demonstra hesitação em terminar o projeto como planejado,

dando mostras de desejar publica-lo, - como viria a fazer-, como um grande ensaio

acerca do romance, desistindo assim da elaboração de um sistema. Ao escrever para

Weber, informando de seus planos, e mesmo assim contando com a recomendação do

amigo para o cargo docente na universidade, recebe em resposta a seguinte carta:

“Tenho de ser honesto com você e relatar-lhe o que um amigo muito próximo –

Lask- disse de você: “ele nasceu um ensaísta e não persistirá no trabalho

sistemático (profissional); ele não deveria, portanto, candidatar-se a docência”.

[...] Com base no que você nos leu dos brilhantes capitulo introdutórios de sua

Estética, discordo veementemente dessa opinião. E como sua repentina inflexão

para Dostoievski pareceu dar respaldo a essa opinião (de Lask), odiei e

continuo a odiar essa obra. Se você realmente toma como um fardo e

uma frustração intoleráveis a necessidade de rematar uma obra sistemática

antes de começar outra, é com pesar que o aconselho a desistir de

qualquer pretensão à atividade docente.”1

O tom severo de admoestação da carta nos permite entrever, entre outras coisas,

o desprestigio que o ensaio tinha no ambiente intelectual germânico do inicio do século

XX. Ilustra bem, a despeito de uma ilustre linhagem de ensaístas em língua alemã, o

preconceito para com a forma ensaística a que Theodor W. Adorno faz menção em seu

manifesto a favor do ensaio.2 Na visão desse preconceito acadêmico, o ensaio seria

antiprofissional, por estar em oposição ao trabalho sistemático, objetivo a qual toda

1 LUKÁCS, Georg. Sobre a essência e forma do ensaio: uma carta a Leo Propper.

Tradução de Mario Luiz Frungillo. Tradução elaborada a partir da edição: LUKÁCS, Georg. Die

Seele und die Formen. Essays. Neuwied: Luchterhand, 1971, pp. 7-31. 2 ADORNO. Thedor W. Notas de Literatura I. Editora 34. 2003

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atividade intelectual séria deve, ou deveria almejar. “(...) a corporação acadêmica só

tolera como filosofia o que se veste com a dignidade do “originário”; só se preocupa

com alguma obra particular do espírito na medida em que esta possa ser utilizada para

exemplificar categorias universais, ou pelo menos tornar o particular transparente em

relação a elas”3,- diz Adorno. Ou seja, “a especulação sobre objetos específicos,

culturalmente pré-formados”, era encarado como uma tarefa menor pela intelligentia da

época, quando não mesmo visto como algo da ordem dum certo amadorismo. Ora, é

justamente contra essa corrente mainstream, que se posicionam os grandes expoentes da

Teoria Crítica, Lukács, Adorno, Benjamin, todos eles grandes ensaístas. Não à toa,

todos eles dedicaram um ou mais escritos em defesa da forma ensaística, justamente por

entender que essa forma guardaria potencialidades capazes de transgredir a reificação e

o engessamento do pensamento acadêmico vigente na época, e em certa medida, na

própria tradição filosófica ocidental. Quais seriam essas potencialidades? O que de

próprio a forma ensaística lhe permite tanto escapar ao “dogma positivista”, quanto as

fantasmagorias do irracionalismo? O seguinte trabalho se propõe a ser uma investigação

do texto seminal da teoria crítica acerca do ensaio, i.e, “Sobre a forma e a essência do

ensaio: uma carta a Leo Propper” de Georg Lukács. Ele é portanto em certa medida, um

ensaio sobre o ensaio.

Bruno Pacífico – A estética schopenhaueriana (Mesa 6)

RESUMO: O filósofo alvo desta comunicação será Arthur Schopenhauer e suas

análises filosóficas e especulativas sobre a arte. Em específico, nos aprofundaremos na

discussão sobre a música, presente no §52, de sua obra magna, a saber, O mundo como

vontade e como representação. Apesar de não pertencer precisamente ao círculo do

idealismo alemão, o filósofo de Frankfurt é considerado o último dos grandes filósofos

idealistas, cuja interpretação da arte, nas suas formas gerais (arquitetura, escultura,

pintura, poesia, música) influenciou escritores, compositores e outros grandes filósofos,

como é o caso de Nietzsche que se influenciara pelas reflexões schopenhauerianas para

escrever seus primeiros escritos.

Nesta breve introdução traçaremos os principais aspectos de sua filosofia para que se

obtenha melhor compreensão da proposta metafísica das análises sobre a música. Em

sua obra principal, Schopenhauer estabelece uma ruptura com o idealismo alemão para

3 Ibidem. Pg- 16

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lançar sua tese sobre a realidade do mundo e da vida, isto é, para mostrar que toda a

realidade encontra sua essência naquilo que ele chama de Vontade. Esta é uma força

metafísica que age de forma cega e irracional, não obedecendo, como supunham os

idealistas alemães, a qualquer imperativo racional (o espírito absoluto). A frase de

abertura de sua obra, “O mundo é a minha representação”, demonstra a intenção do

filósofo alemão em dizer sua tese de que o mundo, enquanto universo de fenômenos4, é

uma série de representações do sujeito, no entanto existe uma essência, portanto, é a

Vontade a origem primordial destas. Porém temos que compreender que estas

representações fenomênicas se organizam por graus de proximidade com a essência do

mundo, logo, entendemos que todos os fenômenos são, por sua vez, representações

desta Vontade.

Um dos aspectos mais interessantes da filosofia de Schopenhauer é o valor dado à arte

para encontrar as respostas para o conhecimento da verdade do mundo; é na arte que se

encontram as formas mais perfeitas e intuíveis para conhecer a Vontade, e isto parte da

contemplação em suas diversas formas. Portanto, é na contemplação estética que o

sujeito esquece sua própria individualidade para ser apenas um com a essência universal

do mundo.

Em Schopenhauer, funciona da seguinte maneira: no momento de ausência do princípio

de individuação o sujeito anula qualquer imposição de juízos racionais sobre a natureza

e arte, pois, por se encontrar sob a contemplação estética, é capaz de esquecer dos

sofrimentos causados pelos motivos que o levam as necessidades fúteis. Estes motivos

são impulsionados pela Vontade que, segundo Schopenhauer, tende a rumar o homem

para a satisfação de sua vontade de vida [Willen zum Leben]; segue-se daí que: satisfeito

um desejo, surge imediatamente um outro novo, que, se não satisfeito, leva o homem ao

sofrimento. Por isto Schopenhauer escreve (2005, p. 327): “Portanto, a vida oscila,

como um pêndulo, da direita para a esquerda, do sofrimento para o aborrecimento: estes

são os dois elementos de que ela é feita”.

A necessidade de explicar a natureza através de funcionamentos sistemáticos e racionais

apenas exprime, segundo Schopenhauer, uma necessidade humana de ver sua razão

refletida nas coisas, fechando os olhos e impossibilitando o conhecimento daquilo que a

Vontade realmente é: uma força cega e irracional que gera sofrimento. A única saída

para o sujeito consiste em negar a própria Vontade, ou seja, abandonar o círculo vicioso

4 Aqui se entende como o termo explicitado por Kant em sua primeira Crítica.

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da vontade de vida. Neste ponto não iremos nos aprofundar sobre a ligação existente

entre a estética e ética, pois apenas nos atentaremos para a satisfação que a música

proporciona para quem a ouve e contempla.

Carmel Ramos – Descartes e a medicina do porvir (Mesa 2)

RESUMO: Embora Adrien Baillet, primeiro biógrafo de Descartes, situe o início de seu

interesse pela Anatomia ou “estudo do homem” entre os anos de 1627 e 1628, os

primeiros registros do punho do autor que atestam a concepção de um projeto médico

robusto datam de 1630, em carta a Mersenne de janeiro daquele ano. Descartes suplica a

Mersenne para que cuide de sua saúde, ao menos enquanto não descubra se é possível

erguer uma Medicina a partir de bases infalíveis. Desde esta data até sua morte

prematura em fevereiro de 1650, seu programa médico inicial visivelmente se

transformou; e, segundo alguns, fracassou. Para Étienne Gilson (1925), Martial

Gueroult (1953) e Steven Shapin (2000), a partir de 1644, sobretudo após sua decisiva

correspondência com Elisabeth, Descartes reorientou seu projeto – de diretrizes

demonstrativas, científicas e mecânicas, descrito fundamentalmente nos parágrafos de

abertura da Sexta Parte do Discurso – para uma Medicina mais existencial, isto é,

psicossomática e naturalista. Esta Medicina de facto se reduziria a um conjunto de

técnicas terapêuticas que objetivariam a regulagem das paixões, já que a principal causa

das doenças residiria numa indisposição de ordem anímica. Assim, a Medicina dos

últimos anos de Descartes seria simplesmente um ramo de sua Moral. Em contrapartida,

autores como Claude Romano (2002) e Géraldine Caps (2009) optam por enfatizar a

diversidade deste projeto médico, que incluiria, de seu início ao fim, a coexistência de

um estudo anatômico, fisiológico e embriológico com uma Patologia e uma

Terapêutica. Descartes, portanto, não teria abandonado sua perspectiva médica inicial,

mas simplesmente reconduzido seu exame para aspectos complementares, notadamente

os dois últimos. O conteúdo exato deste projeto médico de seus primeiros anos bem

como o veredicto sobre seu fracasso ulterior não serão temas desta apresentação, pois

exigem mais uma descrição de seu desenvolvimento no curso do tempo do que

propriamente uma análise crítica. Antes, trataremos de expor quais são as condições de

possibilidade desta Medicina do porvir: particularmente, tentaremos elucidar

conceitualmente, através da apreciação de seus fragmentos médicos à luz de sua

Metafísica e Antropologia, qual seu sujeito e qual seu objeto. Tomando as sugestões

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metodológicas de Vincent Aucante, em seu comentário sobre a Medicina cartesiana

intitulado La philosophie médicale de Descartes (2006), trata-se de delimitar seu sujeito

próprio e seu campo de ação. Se efetivada, esta Medicina se ocuparia do corpo, da alma

ou de sua união? Qual seria o seu télos? Recorrer à Metafísica para explicar o estatuto

da Medicina não tem a ver com o fato de só encontrarmos esboços da última em

fragmentos de cartas e demais obras inacabadas e não publicadas – afinal, Descartes não

possui uma exposição sistemática de sua Medicina; e seu resumo ou compêndio

(abrégé), prometido a Huygens em 1638, jamais deixou de ser uma promessa –, mas

sim com o desafio de estabelecer uma ciência, a princípio, prática, no contexto de uma

cosmologia dualista. Metafísica e Física figuram intactas na árvore da filosofia: são,

respectivamente, suas raízes e seu tronco; correspondendo sem suspeitas ao corpo e à

alma considerados em si mesmos. Já os galhos desta árvore, que representam tanto a

Medicina quanto a Mecânica e a Moral, são ciências que, apesar de classificadas como

aquelas que contêm a utilidade vital do percurso filosófico, isto é, apesar de sugerirem

um campo científico próprio para a união da alma com o corpo, jamais têm seu sujeito e

seu objeto abordados frontalmente. Se, de um lado, seu dualismo expulsou as formas

substanciais dos escolásticos e permitiu uma compreensão verdadeira, segundo

Descartes, dos fenômenos naturais, de outro, produziu novos obstáculos para a

construção de uma filosofia da existência humana.

Caroline Ting – Reflexões sobre processo de intertextualidade

artístisca entre Artuad, Munch e Bruegel o Velho (Mesa 13)

RESUMO: Pieter Bruegel5, o Velho (Bree c.1525 – 1569 Bruxelas) e Antonin Artaud

(Marseille 1896 – 1948 Paris) são dois artistas afetados por guerras: no caso de Bruegel,

a guerra da República Unida dos Países Baixos contra a Espanha; no caso de Artaud, a

Segunda Guerra Mundial. Atravessando tempos e terrenos, um diálogo se opera entre

estes dois artistas. Artistas estes que se relacionam com a insanidade – como já notara

Foucault, em sua tese História da Loucura, mas também com o dualismo entre o

sagrado e o profano. Cada um, de maneira particular, convida o espectador a rever sua

compreensão do desvario; cada um distancia-se das tendências artísticas de sua época,

explorando metáforas bíblicas para condenar moralmente seus contemporâneos.

5 Mantivemos a ortografia "Bruegel" (sem “h”), adotada pelo pintor durante sua maioridade e também pela maior parte dos

historiadores.

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Apesar dos quatro séculos que os distanciam, uma relação íntima entre os trabalhos de

Bruegel e os de Artaud se estabelece. Por vezes, esta relação se expressa nos escritos

pessoais de Artaud, assim como nas similaridades entre seu desenho colorido O Teatro

da Crueldade (1946) e as composições da pintura de Bruegel O Triunfo da Morte (c.

1562). O propósito desta comunicação é o de traçar um estudo comparativo destas obras

a fim de tornar explícitas as analogias entre os quadros.

Como Antonin Artaud busca inspiração em Bruegel, bem como noutros pintores? Como

ressaltamos, a aproximação de Artaud à pintura é evidente. Ele mesmo, além de poeta,

dramaturgo e ator, também desenhava, e demonstrou, em outros escritos, apreciação

pelas artes de El Greco, Jerônimo Bosch, Lucas de Leyde e Goya. Em seus últimos anos

de vida, Artaud realiza muitos desenhos, sendo um dos mais conhecidos o seu auto-

retrato. Interessa-nos saber de que forma a execução de retratos estaria ligada a um

processo de identificação biográfica com outros artistas.

Na primeira parte de nossa comunicação, analisaremos os primeiros trabalhos de

Artaud, ainda sob a influência do pintor norueguês Edvard Munch (Løten, 1863 —1944

Ekely). Esta comparação nos servirá para a análise do processo de intertextualidade que

acompanha a obra de Artaud, quando este observa outros pintores, algo que se inicia

precocemente em sua vida. Munch e Artaud são dois artistas afetados por saúdes frágeis

e por crises nervosas. Ambos traduzem em pigmentos e em prosa suas reflexões sobre a

guerra, sobre a morte, sobre a melancolia e sobre a relação do homem com as forças da

natureza.

Em seguida, notaremos como Charles Baudelaire (Paris 1821 – 1867 Paris) – poeta ao

qual Artaud prestava grande admiração – refere-se a Pieter Bruegel, o Velho.

Finalmente, focaremos em detalhes do Triunfo da Morte, de Bruegel, que inspiram

Artaud na realização de seus desenhos e, posteriormente, também na de suas teorias de

teatro.

O trabalho propõe-se a constituir um espaço de debates e reflexões em torno da questão

da imagem e da cultura visual de Artaud nos seus variados aspectos teóricos,

considerando que tais imagens são dotadas de uma historicidade particular. Privilegiar

as imagens como fonte ou objeto de investigação histórica significa utilizar esse tipo de

registro como instrumento cognitivo. Assim sendo, justapomos obras que articulam

questões relacionadas aos seus contextos de produção, padrões e sistemas visuais.

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Daniel Gilly – O luto e o trágico na expressão linguística: Verdade

como apresentação em Walter Benjamin (Mesa 13)

RESUMO: O trabalho parte das reflexões feitas por Walter Benjamin sobre as

representações do luto e da melancolia no teatro barroco, presentes no seu livro Origem

do drama trágico alemão. Na seção em que discute a relação entre a tragédia antiga e o

drama trágico moderno, o autor dedica um capítulo ao tema da melancolia, que ele

considera fundamental para realizar uma verdadeira distinção de princípio entre essas

duas formas estéticas. O final desse capítulo é dedicado a Hamlet, e a peça de

Shakespeare aparece como o ponto culminante da representação dramática da

melancolia (e do luto) na era moderna. Partindo então da análise benjaminiana da peça e

das características mais fundamentais dos dramas desse período, o trabalho busca uma

interpretação da obra que a enxergue enquanto a representação de uma atitude situada

historicamente, uma reação ao mundo moderno; e portanto não como representação de

um conflito metafísico a-histórico existente desde o teatro grego, como pretende toda a

tradição da filosofia do trágico que sempre classificou Hamlet como uma tragédia nos

moldes clássicos.

Em Benjamin, a disposição lutuosa característica das peças barrocas não deve

ser vista apenas como um momento de disposição subjetiva. Nesta sua exposição, o luto

não é apenas um estado anímico temporário e privado, uma consciência subjetiva, que

poderia assim ser enquadrada dentro de um sistema amplo de sentimentos universais

previstos pela tragicidade do mundo. O que importa aqui é muito menos uma variação

das "visões de mundo" através do tempo do que uma irrupção singular, no processo

histórico, inerente ao objeto mesmo dessa visão, da qual o luto emerge como sua

manifestação sensível. Aquilo que determina historicamente a diferença entre tragédia

antiga e drama moderno não é, portanto, somente uma distinta disposição subjetiva

frente ao mundo objetivo essencialmente inalterado. Para Benjamin, por mais vago e

subjetivo que um sentimento possa parecer, ele é ainda assim um sintoma, uma reação a

determinadas estruturas objetivas de um mundo, e assim expressão própria desse mundo

e de seu modo próprio de se autorevelar no sentimento; sua origem não remonta a uma

estrutura subjetiva previamente existente na consciência daquele que sente, mas deve

ser dissociada de qualquer sujeito empírico.

O trabalho propõe então uma investigação do luto em Benjamin a partir das

diretrizes metodológicas expostas pelo autor no prefácio de seu livro, em que diz que a

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tarefa da filosofia é muito mais a de apresentar a verdade do que a de se apoderar de um

objeto por meio de sua inserção na forma preestabelecida do sistema. Assim, no caso

estudado, o próprio mundo objetivo deve saltar do olhar da melancolia e do luto para se

autoapresentar e é também somente como apresentação que algo nele se revela; e isso é

bem diferente de considerar o luto simplesmente como um sentimento moderno que,

embora historicamente circunscrito, deve mesmo assim responder a um conteúdo

trágico de pretensa validade universal. O capítulo de Benjamin dedicado à melancolia é

uma tentativa de apresentar e resgatar este mundo através do seu modo de se

autoapresentar diante do poeta enlutado. Ele se opõe à classificação e ajuntamento das

peças modernas sob o conceito de "trágico", pensando um modo diferente de

investigação estética que, muito antes de tentar se apropriar do seu objeto, pretende

fazer justiça ao modo próprio de autoapresentação deste, e assim se esforça muito mais

no esboço de sua descrição fragmentária e singular do que na sua antecipação num

sistema.

David Velanes – A crítica de Gaston Bachelard ao cartesianismo

(Mesa 12)

RESUMO: Neste trabalho se tem a proposta de explicitar a crítica de Gaston Bachelard

acerca da epistemologia cartesiana. Em sua obra Le Nouvel Esprit Scientifique (1934),

Bachelard apresenta a concepção de uma epistemologia não-cartesiana como um

conjunto complexo de teorias e métodos experimentais instituídos pela Física e pela

Química contemporâneas. No capítulo intitulado de “L'épistémologie non-cartésienne”,

o autor procurar expor a infecundidade das regras metodológicas cartesianas diante das

descobertas científicas no início do século XX que provocaram uma comoção nas bases

e princípios do pensamento científico até então estabelecidos. Tornou-se, portanto,

necessária uma reflexão sobre o método, uma vez que os métodos das novas ciências

estabeleceram uma ruptura com a metodologia científica instaurada historicamente na

ciência pelo cartesianismo. Conforme Bachelard, as regras do método cartesiano

perderam fecundidade de aplicação, permanecendo apenas seu “encanto histórico”. Seus

princípios, a saber, da evidência, da natureza simples e da análise já não são profícuos

no espírito científico contemporâneo. Isso equivale a dizer que o método cartesiano se

tornou, no período contemporâneo, óbvio e comum, além de não atender às novas

exigências experimentais da física e da química, uma vez que estas ciências mostraram

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efetivamente que o objeto científico é mutável e não absoluto. Bachelard enfatiza que o

método cartesiano é redutivo e não indutivo. Por ser redutivo, ele ignora a

complexidade. Em outras palavras, o método de Descartes é demasiado simples, ele

dispensa a complexidade dos fenômenos. O método cartesiano mesmo que acerte bem

em explicar o mundo, não consegue a complicar a experiência científica em um novo

modo de fazer ciência em que função primordial da pesquisa objetiva é olhar a

experiência em sua complexidade. A metodologia cartesiana age inversamente, procura

encontrar o simples no complexo. Contudo, as ciências contemporâneas contrariam a

ideia de uma natureza simples e absoluta do pensamento cartesiano. É possível dizer

que o que Bachelard põe em jogo é fundamentalmente a ideia de simplicidade através

do método de Descartes, que parece surgir como problemática no contexto científico do

século XX, pois investigar o elemento é partir de seu aspecto complexo. As ideias

simples são hipóteses de trabalho, conceitos de trabalho que deverão ser revisadas para

receber seu justo papel epistemológico. Conforme a epistemologia bachelardiana, o

pensamento científico contemporâneo segue o sentido inverso do cartesianismo. Busca

o simples somente depois da análise discursiva sobre os fenômenos em sua

complexidade. Rompe-se, desta maneira, com a experiência imediata que estabelecia de

modo apressado a identidade sobre a pluralidade dos fenômenos. Bachelard nega

totalmente o caráter de simplicidade dos fenômenos, da natureza, das substâncias e das

ideias. Tudo parece ser enquadrado na visão de uma realidade que é complexa. As

regras do método cartesiano que se aplicam bem ao espírito de ordem e classificação

apresentam-se infecundas nas novas abordagens dos problemas oferecidos pela física e

a química contemporâneas que estão permeadas de complexidades. O autor afirma que

todo método de pesquisa perde sua fecundidade primeira. Sempre surge o momento em

que a pesquisa científica deixa de pesquisar o atual pela ótica do antigo. Por isso, pode-

se dizer que o progresso das ciências está correlacionado com a criação de novos

métodos. Até mesmo os métodos e conceitos científicos possuem a capacidade de

perder universalidade.

Davison de Paula – “Torna-te o que tu és”: A subjetivação no

horizonte do niilismo em Nietzsche. (Mesa 9)

RESUMO: O dictum das Odes Píticas de Píndaro, “Torna-te o que tu és”, aparece

reiteradamente no corpus nietzschiano. O recorte deste trabalho consiste na análise de

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três momentos distintos da filosofia de Nietzsche nos quais esta fórmula é reescrita com

algumas variações: a sua aparição na III Consideração Extemporânea – Schopenhauer

como educador (1874); depois nos parágrafos 270 e 335 de A Gaia Ciência (1882); e

por fim, em Assim Falou Zaratustra (1883-1885), em O convalescente e A oferenda do

mel.

O subtítulo de Ecce Homo (1888) retoma os dizeres de Píndaro, e, no parágrafo

9 Por que sou tão inteligente, Nietzsche desenvolve uma explicação para a frase que

deve ser lida no contexto da sua narrativa autobiográfica e de cunho retrospectivo

acerca do seu vir a ser. Assim, a questão que se apresenta na hermenêutica do dictum do

poeta é como alguém pode chegar a ser o que é.

O processo de subjetivação em Nietzsche dá-se por meio da afirmação da

existência contra qualquer interpretação moral, sobretudo a cristã. O tornar-se si mesmo

opõe-se radicalmente aos dizeres délficos, “Conhece-te a ti mesmo”, uma vez que não

há um “eu” essencial, e ao Sapere Aude kantiano, chave da ideia de emancipação. A

existência deve tornar-se, construir-se, esculpir-se, justificar-se como fenômeno

estético. Em Nietzsche, a subjetivação e construção da singularidade de cada homem

acontecem no horizonte devastador da morte de Deus. Diante deste vazio axiológico, o

homem deve tornar-se aquilo que é.

Contra a interpretação moral da existência, Nietzsche apresenta a sua visão trágica.

Diante da vida, o homem experimenta o absurdo da existência, a falta de sentido, de

fundamento, de finalidade. Confrontando-se com o não pronunciado pelo niilismo, o

homem sente-se angustiado. Entrevendo-se confusamente e experimentando o drama do

seu vir a ser, o homem compreende a ambigüidade do niilismo, onde há sinais de

declínio, ele vê possibilidade de força, onde tudo cai, empobrece-se, onde domina o

estado gregário, ele pressente novamente a sua vontade de poder, e na sua escuta ele

quer novamente impor-se, dar sentido, criar valores e criar-se, criar nova possibilidade

de vida.

Daí resulta o fato da positividade do niilismo na filosofia de Nietzsche, a sua

ambigüidade. Por um lado ele é este processo continuo de predominância de uma

interpretação da existência, por outro lado, ele é a radicalização, o esgotamento de

força, o sinal de declínio dessa interpretação. É de dentro do niilismo que o homem

pode impor uma nova interpretação da vida. Enquanto o “conhece-te a ti mesmo” é o

início do fim, o sintoma da queda e da doença, os dizeres de Píndaro tornam-se o mote

para a visão afirmativa: “Torna-te o que tu és”. Do ponto de vista da lógica, a frase não

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faz o menor sentido, pois como alguém pode se tornar aquilo que já é? O tornar-se

introduz a ideia de mudança, e quando se muda, passa-se de um estado para outro,

assim, toda mudança pressupõe simultaneamente um caráter de identidade e de

diferença. Aquilo que se é será abandonado, apropriado, diferenciado de si mesmo no

momento da mudança.

Se o “conhece-te a ti mesmo” busca uma interiorização racional, em busca de

uma identidade substancial, o “torna-te o que tu és” apresenta-se como uma subversão

da lógica, ao possibilitar a predominância do encontro não de um “eu fixo” e essencial,

mas do devir originário da existência. A vida é luta constante. Não foi à toa que ela foi

definida como vontade de poder, crescimento, afirmação, e, portanto, devir.

Fernanda Lopes Oliveira – É possível uma "Filosofia como modo de

vida" hoje? (Mesa 1)

RESUMO: Contemporaneamente, ainda que possamos identificar diferentes escolas

filosóficas – fenomenológica, existencialista, estruturalista, por exemplo –, um

estudioso que se interesse por uma delas assumirá, no máximo, uma posição teórica a

respeito de certos temas ou doutrinas. Não se espera de um estudioso da Filosofia,

especialmente no meio acadêmico, que essa posição teórica afete as decisões que ele

toma ou o modo como ele vive. Ou ainda, sua vida não é critério para julgar a qualidade

da sua atividade filosófica.

Ao contrário, desde a obra de Pierre Hadot, se tornou lugar-comum pensar a Filosofia

Antiga, e especialmente a Filosofia Helenística, como um trabalho sobre si, uma prática

de si. Trata-se de pensar que as elucubrações filosóficas, por vezes tão abstratas, têm, no

seu fundo, o objetivo de transformar para melhor a vida daquele que filosofa, para que

ela seja uma boa vida. Desse modo, a Filosofia não é apenas um conjunto de postulados

teóricos, mas uma arte de viver, um determinado estilo de vida, que engloba toda a

existência, visando ao aperfeiçoamento do indivíduo.

A referência primeira e principal quando se trata do conceito de Filosofia como forma

de vida é Sócrates e sua dialética: encontrar-se com Sócrates e dialogar com ele era

sempre uma forma de se ver pressionado a pensar sobre o modo como cada um leva sua

vida. Mais que isso, a imagem de Sócrates enfrentando com coragem e otimismo sua

morte iminente, relatada por Platão no diálogo Fédon, se tornou paradigmática para

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demonstrar a força de transformação que a Filosofia pode ter na vida dos homens:

podemos chegar a nos curar do medo da morte se nos dedicarmos fielmente a ela.

Considerando-se herdeiros da filosofia socrática, os estoicos adotam a concepção de

“Filosofia como forma de vida” conforme percebemos na leitura das obras de um dos

discípulos de Epicteto, Arriano Flávio (Manual e Diatribes). Nelas é possível perceber

que a Filosofia era compreendida como um modo de vida que tinha como objetivo

alcançar a liberdade (eleuthería), a imperturbabilidade da alma (ataraxía) e a felicidade

(eudaimonía) por meio da transformação pessoal daqueles que filosofavam. Essa

transformação, de acordo com Epicteto, se daria pela prática de exercícios espirituais

que disciplinariam as três áreas (tópoi) da Filosofia que correspondem a três atividades

da alma humana sobre as quais podemos ter controle: juízos, impulsos e

desejos/repulsas. Tais exercícios se assentam sob o princípio estoico da distinção entre

aquilo que depende ou não de nós: apenas o nosso estado interno (composto pelos

juízos, impulsos, desejos e repulsas) está sob nosso encargo. Todas as demais coisas (o

corpo, os bens, a posição social, a fama) não estão sob nosso encargo, porque

dependem, em última análise, de outros. Por isso, tudo aquilo que não depende de nós é

indiferente e, consequentemente, não tem valor moral.

A partir da exposição dos principais tópicos da filosofia estoica e da análise da nossa

própria conjuntura contemporânea, cabe questionar: é possível uma “Filosofia como

forma de vida” hoje? Para iniciar uma resposta a essa questão, pretendo, num primeiro

momento, fazer uma introdução breve, porém compreensiva, à Filosofia Estoica,

fornecendo os subsídios conceituais necessários à compreensão dos exercícios

espirituais encontrados na filosofia epictetiana. Em seguida, problematizaremos

questões antigas e atuais tais como o medo da morte e o consumismo, mostrando

possíveis soluções estoicas, a partir da obra de Epicteto (Manual e Diatribes) e Marco

Aurélio (Meditações).

Filipe Monteiro Morgado – O cogito controverso e o método cartesiano

(Mesa 2)

RESUMO: Há, nas Regulae, a exposição de quatro faculdades do homem: os sentidos,

a memória, a imaginação e o entendimento. Na “Quarta Meditação”, acrescenta-se a

elas uma quinta faculdade, a da vontade. Porém, atenhamo-nos ao entendimento,

apenas. Descartes expõe-nos, na “Regra III” das Regulae, dois atos do entendimento

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humano, a saber: a intuição e a dedução. A intuição inaugura a cadeia de certezas e é

dela que são inferidas as demais certezas, através das deduções. A título de ilustração,

imaginemos um encadeamento de cinco elos, um sucedendo o outro. O primeiro é a

intuição e, do segundo ao quinto, temos deduções. Como podemos bem observar na

“Regra VI”, das Regulae, na qual se define o que é absoluto e o que é relativo, termos

sumários para entendermos a problemática neste trabalho proposta, temos como

absoluto tudo aquilo que é causa, independente, simples, etc. e, como relativo, tudo

aquilo que é efeito, dependente, composto, etc.. Aquela certeza que inicia uma série,

isto é, a certeza intuitiva, é sempre absoluta, pois não há nenhuma outra que a anteceda,

ao passo que as seguintes, ou seja, as deduções, são ora relativas, se as observamos do

ponto de vista do elo que a antecede, ora absolutas, se as fitamos a partir das suas

consequentes. Se notarmos o terceiro elo de uma série, do ponto de vista da segunda

certeza, ela é relativa; mas se a olhamos a partir da quarta certeza, ela é absoluta. Em

suma, podemos identificar a intuição com o absoluto; portanto, temos de compreendê-la

como causa, independente, simples, etc.; e temos de considerar as deduções como coisas

relativas, como sendo efeitos, dependentes, compostas, etc..

Durante a história da Filosofia, a certeza do cogito foi tomada como uma certeza

intuitiva; ela parece, de fato, sê-lo. Dentre outras razões pelas quais podemos tomar o

cogito por intuição, é o fato de Descartes, na “Regra III”, ao definir intuição, dar-nos

exemplos dela, como o caso de dois mais dois ser igual a quatro, que a esfera é uma

figura geométrica cuja superfície é somente uma, que a menor distância entre dois

pontos é uma reta, que é certo que penso (isto é, tenho certeza do cogito, do

pensamento), que existo etc.. Todavia, observemos que, embora tenhamos, nas Regulae,

o cogito como uma intuição, nas Meditações, o cogito é efeito, não causa, o que faz dele

relativo e, logo, ele não pode ser intuição. Contudo, podem objetar que é ele, o cogito,

que inaugura as certezas nas Meditações e em outras obras cartesianas, como no

Discurso e nos Princípios. Porém, fiquemos apenas com as Meditações, embora me

pareça ocorrer o mesmo nessas outras obras. Vejamos que, com o que temos agora, por

um lado, o cogito, nas Meditações, é intuição, pois teria inaugurado a série de certezas e

porque, nas Regulae, ele é um exemplo dela; por outro, ele não pode ser intuição, pois

não é absoluto, porque não é causa e nem independente. Estamos encurralados numa

contradição. É como se estivéssemos num labirinto. Conforme entende Descartes, o

método é como o fio de Teseu para quem anseia adentrar ao labirinto. Desejo que o

método ajude-nos a sair desse dédalo. Leio o método cartesiano frisando a análise, a

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heurística, não a síntese, a axiomática. Dessa maneira, saliento o que Descartes frisou, o

método analítico, tanto em sua matemática quanto em sua metafísica, e, assim também,

parece-me, vamos em direção de um escape dessa contradição. Na minha apresentação,

desejo expor-lhes, de modo abreviado, além do já dito acima (aquilo que considero

controverso no cogito), a minha leitura de método cartesiano.

Filipi Grandim – Subversão e criação em Albert Camus (Mesa 5)

RESUMO: Esta comunicação visa compreender qual é o sentido atribuído à Arte a

partir da filosofia existencial entabulada por Albert Camus. Segundo seu pensamento, a

Arte é entendida como perfeita medida subversiva da consciência, que tem por

conteúdo a intolerância aos postulados cristãos que advogam a existência absoluta e

necessária de Deus. Seu esforço filosófico é promover uma revolta metafísica

colocando em debate a supremacia criadora de Deus contrabalanceando-a com outra,

que seria a da criação artística. Imerso em um mundo absurdo, cuja natureza imoral,

independente, hostil e estrangeira o oprime, o homem está destituído de um mundo

alinhavado por algum sentido, fim ou unidade. Resta o vazio para criar um mundo para

si, transformando-o radicalmente através da anarquia que é a criação artística. Na

afirmação do mundo presentificado em sua carne, louvando o acaso em sua

multiplicidade de formas, Camus reconheceu na arte o mais elevado fenômeno absurdo,

adotando-o como instrumento de revolta em relação ao sentimento diante da finitude e

da opressão; isto é, à dura constatação de que a existência de Deus é uma blasfêmia

contra a vida; e que esta, por sua vez, é aberta à livre incisão de novas e perigosas

diretrizes, dadas por aqueles cuja vontade recusa a redenção por meio da religião. Se o

homem revoltado já não tolera o despotismo e o terrorismo teísta; que ele, agora, em

estado de criação artística, possa imprimir um mundo carregado de sua marca,

modelando uma constelação de signos próprios.

Flávio de Brito – Considerações sobre o vínculo entre pensamento e

linguagem em Aristóteles (Mesa 3)

RESUMO: A comunicação examinará um artigo de E. Benveniste intitulado

“Categorias de pensamento e categorias de língua” com o objetivo de avaliar os

pressupostos da abordagem nele apresentada da teoria aristotélica das categorias e

decidir sobre sua conformidade ou desconformidade com as condições fundamentais da

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reflexão de Aristóteles sobre a linguagem. Neste escrito, o linguísta francês destaca duas

características que perpassam os usos infinitamente variados que fazemos da língua,

vale dizer, que (a) a “realidade da língua” permanece inconsciente, exceto no caso dos

“estudos propriamente linguísticos”, e que (b) todas as atividades do pensamento podem

receber uma expressão na língua. Dessas duas características derivaria a crença,

segundo ele muito difundida, de que pensar e falar seriam atividades "distintas por

essência", cada qual "com seu domínio e possibilidades independentes”. Ora, a fim de

problematizar essa mesma crença, o linguísta afirma que o pensamento sem a língua,

reduzido a praticamente nada, não somente não poderia ser transmitido, mas nem sequer

seria realizado. Para determinar, então, como se dá a dependência do pensamento em

relação à língua, ele recorre à noção de categoria, em suas aplicações ao pensamento,

por um lado, e à língua, por outro, para com isso esclarecer suas respectivas naturezas,

que, em sua opinião, são dependentes, mas assimétricas.

Frederico Martucci – Da soberania à bio-política - poder e resistência

em Michel Foucault (Mesa 4)

RESUMO: Para Foucault, é na virada do século XIX para o século XX, o momento que

surge uma nova racionalidade governamental que marcará a ascensão do liberalismo

como prática dominante na gestão política dos estados europeus. Neste momento, as

questões políticas se voltam de modo radical para as questões de mercado, sua

manutenção e funcionamento buscam como meta constante a possibilidade de sempre

aumentar o controle e a eficácia do próprio sistema.

O que melhor caracteriza essa nova racionalidade governamental são seus processos

maciços (ao modo do “mercado”) de gestão de populações, o investimento na bio-

política e suas consequências na subjetivação das pessoas e nos arranjos e espaços

politico/sociais. Em outras palavras: neste novo cenário liberal, a economia surge como

tema central da política, o mercado se torna o lugar de “veridicção” das práticas de

governo, transformando a economia no novo paradigma de eficiência e resultado a ser

aplicado em larga escala à todos os aspectos da vida humana.

São novos arranjos de poder, pois são novos os objetivos pretendidos; a esses novos

arranjos corresponderá, por sua vez, novas formas de resistência, outras formas de

subjetividades resistentes ao poder. Fazendo a análise da noção de poder na obra de

Michel Foucault, desde o conceito de soberania até o de bio-política, poderemos

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observar também as transformações das formas de resistências ao poder político

correspondente, promovendo uma reflexão que nos ajude a pensar as relações de poder

características do mundo atual.

O objetivo dessa pesquisa se conecta com aquilo que, para Michel Foucault, deveria

constituir o objetivo da filosofia em geral, ou seja, impor-se a tarefa de diagnosticar o

presente, tornando mais visível, aquilo mesmo que já está visível e diante de nós. Um

estudo que leve em conta os efeitos práticos do poder, bem como das lutas e resistências

que correspondem ao seu exercício – em certa medida, a questão da própria liberdade

(de resistir), pois é somente através do embate entre poder e resistência que se

constituem as (novas) possibilidades de subjetivação, formação e atuação dos

indivíduos na esfera política da vida social –, é a pretensão geral de nossa pesquisa.

Para Foucault, o principal problema ético e político da contemporaneidade, consiste em

promover novas formas de individualidades, diferentes das que se impõem através do

poder estabelecido tradicionalmente em nossas sociedades. É só produzindo uma

individualidade “resistente” e livre, que poderemos fazer frente às relações de poder

que, por sua vez, tem por objetivos finais, a construção de uma subjetividade

determinada.

A identidade pessoal, dessa maneira, pode ser e é, em boa parte e para a maioria das

pessoas, o resultado de uma ação institucional e estatal bem-sucedida (para o ponto de

vista dos dispositivos de poder, é claro); trata-se, nesse caso, de uma subjetividade

assujeitada, normalizada, controlada pelas técnicas de poder. Contrapondo-se a esses

processos individualizantes, através dos quais são internalizados certos padrões

socialmente desejáveis de vida subjetiva, Foucault toma para si a palavra de ordem da

recusa das formas de subjetivação impostas a todos nós durante os últimos séculos.

Uma recusa que se desdobra numa elaboração de espaços de liberdade posteriormente

tornados efetivos. Cabe a nós mesmos deliberar, criar, experimentar novas formas de

subjetivação. (CASTELO BRANCO, G. 2015, p. 38, 39)

O plano de trabalho para o desenvolvimento desta pesquisa de mestrado buscará

analisar, em etapas distintas, o modo como Foucault compreende as relações de poder

desde o registro da soberania (séculos XV e XVI) até o surgimento da biopolítica e seu

amadurecimento (séculos XIX e XX), mapeando as mudanças de táticas e objetivos

estratégicos das relações de poder na sociedade ocidental, bem como seus efeitos

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pretendidos e objetivos calculados; mas também as formas de resistências, os contra-

poderes que lhe fazem frente, como possibilidade de constituição de novas

subjetividades.

Gabriel Moraes Dias – Breves apontamentos sobre dados sensórios e

cognoscitivos em De Anima II, de Aristóteles (Mesa 1)

RESUMO: Em meio a inúmeras questões relevantes existentes no Corpus

Aristotelicum, sobressai esta: o modo como se dá a passagem da sensibilidade ao

pensamento. Tal processo parece estar diretamente associado à teoria das Faculdades da

alma – nutritiva, sensitiva, intelectica, motora –, que, com o presente trabalho,

abordamos em sintonia com a problemática da noção de phantasía (φαντασία). Dessa

maneira, lidamos com recursos conceituais de estética, epistemologia e linguagem, os

quais, apesar de tradicional e filosoficamente utilizados ao longo dos tempos, ainda

podem indicar novas perspectivas para a configuração de mundo, conforme o que

sentimos, pensamos e dizemos dele.

O que pretendemos, portanto, é apontar, sobretudo, a possibilidade da existência de um

eixo articulatório sintético e harmônico entre corpo-alma-intelecto, que se acomode sob

os variados graus de atividade e passividade, de movimento e alteração. Para falarmos

disso, no entanto, não poderemos ir para além das possibilidades de linguagem verbal.

Não. Precisaremos do oposto a isso: precisaremos extrair dela própria múltiplas

possibilidades e significados, cujas ações revelem o pensamento capaz de transitar entre

exteriorização e introspecção; entre projeção e configuração de sensações, de imagens

que revelem as funcionalidades do pensar, do entender e do percepcionar. Nesse

sentido, são apontados percursos de estudos sobre sensibilidade e pensamento, os

mesmos que podem renovar dados sobre aquisição de saberes e conhecimento de

mundo.

Sendo assim, a delimitação de adequados recursos conceituais de estudo, encontrados

em tratados aristotélicos, como De Anima, Metafísica e Física, vem a ser de

fundamental importância para que possamos fazer certos apontamentos acerca de

questões anímicas e corpóreas com maiores fundamentações. Por isso, no momento em

que recorrermos, ao longo do trabalho, a esses textos, tentaremos minimizar com isso

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eventuais lacunas deixadas pela tradicional história dos fatos traduzidos, já que nessas

obras existem caracteres indicativos de elo entre processos físicos e anímicos, os quais

nos mostram que corpo, alma e natureza vital se auxiliam reciprocamente.

Precisamos, por fim, destacar que o trabalho em questão procura, sobretudo, trazer à

tona sérios apontamentos sobre nexos relacionais entre dados sensórios e cognoscitivos,

especificamente a partir da teoria das Faculdades da alma lançada no passo 413b do

tratado aristotélico ΠΕΡΙ ΨΥΧΗΣ, ou De Anima. Nesse sentido, são abordados

determinados aspectos relativos ao modo como se dá a passagem do campo de ação da

sensibilidade ao da cognição. Em outros termos, o objetivo primeiro é apontar a

problemática dos graus de interseção entre alma, corpo e natureza vital, mediante

múltiplas dimensões da vida orgânica, as quais parecem se estender para além dos raios

de ação e recepção do sentir e do inteligir, isto é, da sensação (= αἴσθησις > aísthesis >

faculdade anímica estética) e do intelecto (= νοῦς > noûs > faculdade anímica noética).

Decerto a tarefa principal de nossa comunicação é destacar que o pensamento

provavelmente seja capaz de transitar não só entre exteriorização e introspecção, mas

sobretudo entre prefiguração, configuração e projeção de sensações, de imagens

(imaginação/phantasía) que revelem as funcionalidades do pensar, do sentir e do

percepcionar. Dessa maneira, nosso trabalho é, antes de tudo, resultado provisório

conceitual de iniciais pesquisas que se propõem a apontar percursos de estudo sobre

sensibilidade e pensamento a partir do tratado De Anima. Mais: de iniciais pesquisas

que se propõem a destacar que esses mesmos estudos podem renovar dados sobre

aquisição de conhecimento humano e conhecimento de mundo.

Guilherme Schettini – O ficcionalismo na filosofia da matemática

contemporânea (Mesa 3)

RESUMO: Pode-se dizer que a filosofia da matemática contemporânea, enquanto ramo

da filosofia analítica da linguagem, está basicamente interessada em determinar o

significado das sentenças e a natureza dos elementos referidos em um dado discurso: o

discurso matemático. Consideremos a afirmação “2 é um número par”, por exemplo.

Como devemos interpretar tal sentença? A que tipo de objeto (se é que a algum) se

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refere o sujeito (gramatical e lógico) “2”? Estas são questões pertinentes à filosofia da

matemática.

Dentre as posições já estabelecidas neste debate, o ficcionalismo é aquela que, à

primeira questão (sobre qual é o conteúdo do discurso matemático), responde que as

sentenças matemáticas fazem referência a determinados objetos, atribuindo a estes

objetos certas propriedades (à semelhança do que fazem as sentenças ordinárias sobre o

mundo físico, como “o copo está sobre a mesa”), e, à segunda (sobre o caráter

ontológico dos elementos matemáticos), que tais objetos referidos são presumivelmente

abstratos (i.e., estão fora do espaço e do tempo, não possuem causa e são independentes

da nossa mente), e que, como tal, não existem.

O corolário da posição ficcionalista é, pois, que todas as sentenças matemáticas

são falsas, pois todas fazem referência a objetos que, factualmente, não existem.

É pretensão deste trabalho apresentar os principais argumentos a favor e

contrários ao ficcionalismo na filosofia da matemática, bem como os das principais

posições concorrentes.

Jessica Di Chiara – O ensaio como exercício de uma escrita desejante

(Mesa 14)

RESUMO: Em seu último livro publicado, “Limiar, aura e rememoração”, Jeanne

Marie Gagnebin se interroga no prólogo “escrita, morte e transmissão” sobre o

repetitivo e constante relato de pessoas que não “conseguem” escrever, ou melhor, que

só o conseguem ao custo de um sofrimento físico e psíquico. Esta provocação,

endereçada a muitos de nós, estudantes de filosofia que somos, apontaria questões sobre

a relação tanto do homem com a escrita como da filosofia com a escrita. Contudo,

partindo de uma dupla prática (a de escrever – e gostar de escrever – e a de “orientar”

trabalhos escritos) e de suas experiências pessoais na academia, como que nos faz uma

confissão: que escrever com felicidade, no duplo sentido de "contentamento" e de

"sucesso", certamente tem a ver com a competência ou com o saber do autor – mas, no

fundo, muito menos do que se diz e se quer acreditar. Um dos modos de acesso a essa

relação que a escrita estabelece com o desejo na filosofia pode ser pensado nos termos

da discussão sobre o ensaio como forma – tanto de apresentação da filosofia (em

Benjamin) quanto como de resistência no pensamento (em Adorno). Este trabalho

pretende, ao esboçar uma breve história da reflexão da forma do ensaio no século XX a

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partir de Lukács, Benjamin e Adorno, apresentar como o ensaio, ao reabilitar as

dimensões estética e histórica do pensamento na filosofia sugere uma nova relação com

o "filosofar"; relação esta de transformação (Umbildung) advinda de uma nova

reorganização do conhecimento com a linguagem.

Joana Souto – Mística, espelho e Marguerite Porete (Mesa 5)

RESUMO: A intenção dessa apresentação é expor aos ouvintes algumas considerações

sobre a mística cristã, mais precisamente, a mística difundida nos séculos XII/XIII e,

também, apresentar a obra O Espelho das almas simples e aniquiladas de Marguerite

Porete, sentenciada à fogueira da inquisição em 1° de junho de 1310. Sua obra expressa

aspectos da teologia mística que, fundamentalmente, constitui também a experiência da

autora. A experiência mística está intrinsecamente relacionada às experiências do

sujeito, ou seja, a uma relação sujeito-objeto. No ambiente místico, esse objeto pode ser

designado por vários nomes: o Absoluto, o Sagrado, o Todo, o Divino, o Espirito, Deus

etc. A mística trata de uma experiência que transcende os limites das faculdades

humanas e atravessa o sentido de negação e ascensão de todas elas. A conjuntura

acadêmica que temos hoje, a mística ainda é um tema considerado marginal, talvez por

ela ter por base de sua essência a experiência. No entanto, isso não nos priva de

fazermos uma investigação e usarmos o discurso filosófico para explicarmos tais

experiências. A mística tem como sua intencionalidade buscar e entender o Sagrado, ela

nos traz a possibilidade de dialogar e fundamentar questões sobre a fé, a liberdade, a

ação, a contemplação, a razão, a aniquilação, o nada, dentre outras, de ordem,

sobretudo, morais. O discurso místico nos é dado através de uma abertura para o

sensível das experiências, estas que são de libertação e de busca para uma elevação da

condição humana6, neste sentido, uma espécie de diálogo com aquele que seria

incomunicável. Marguerite nos coloca diante de um ser humano que pode vir a se tornar

reflexo de Deus. Ela parece nos apontar um caminho para não apenas lançarmos um

olhar sobre as concretudes do divino, mas para um desvelamento do homem como ser

existente, que ama, sofre, deseja... É mostrada a possibilidade de experienciar o

absoluto. Porém, como um ser humano cheio de limitações pode se enxergar no

absoluto? Marguerite nos aponta essa possibilidade através da metáfora do espelho.

6 Hegel afirma (Cf. 1989, p.366) que filosofia e religião (podemos dizer também filosofia e mística) se aproximam por se darem como objeto, não o terreno, nem o mundano, mas o infinito.

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João Vitor de Melo – Platão, Parmênides e o Terceiro Homem (Mesa 8)

RESUMO: Há séculos a doutrina das Formas tem sido um grande foco de discussão

dentro da filosofia Platônica, apesar de todas as controvérsias a ela relacionadas. Uma

dessas controvérsias envolve o pensamento de Platão como um todo e surge diretamente

relacionada a sua metafísica: como conciliar os vários diálogos, se quando tomados

individualmente eles apresentam uma série de incongruências? Essas inconstâncias

evidenciariam um aspecto extremamente relevante para a História da Filosofia Antiga: a

organização clássica dos diálogos parecia não levar em conta a ordem cronológica de

sua composição.

No final do século passado, com o auxílio dos métodos estilométricos de análise textual,

alguns consensos em relação à cronologia dos diálogos foram alcançados, estabelecendo

um forte contraste em relação à organização clássica da Obra de Platão. Essa nova

organização, entretanto, reitera o nosso problema: diante das evidências textuais, seria

ainda possível compreender a filosofia Platônica como uma unidade; ou seria necessário

ler cada período como uma fase do desenvolvimento do pensamento de Platão, e nesse

caso estabelecer os últimos diálogos como aqueles em que definitivamente se encontra a

sua Filosofia?

Partindo desse questionamento, os comentadores adeptos à tese do desenvolvimento do

pensamento platônico, dividiram a vasta Obra Platônica em três momentos distintos: (i)

juventude, período composto pelos diálogos ditos “socráticos”, onde a doutrina das

Formas ainda estaria ausente, como por exemplo, a Apologia, o Críton, e o Eutífron; (ii)

maturidade, fase que seria composta pelos diálogos onde a doutrina é apresentada

explicitamente, como a República e o Fédon; e (iii) velhice, obras que, seguindo-se ao

Parmênides, apresentariam modificações na doutrina das Formas encontrada nos

diálogos da maturidade.

Um dos pontos mais críticos apresentados pela leitura “revisionista” ou

“desenvolvimentista” do pensamento platônico encontra-se em um dos últimos diálogos

da maturidade. O diálogo Parmênides apresenta uma série de críticas a doutrina das

Formas, ao representar uma discussão entre dois gigantes da filosofia grega antiga. No

diálogo, Parmênides, já idoso, discute a teoria exposta pelo jovem Sócrates, cujo

objetivo era refutar a conclusão dos argumentos de Zenão acerca da realidade sensível.

Entre as críticas de Parmênides, encontram-se dois argumentos em especial que derivam

da doutrina das Formas regressos ao infinito — ou como eram conhecidos já na Grécia

Antiga, “Argumentos do Terceiro Homem”. Nosso problema se torna, então, ainda mais

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grave: seria possível sustentar a doutrina das Formas após as críticas do Parmênides?

Tal questão envolve duas investigações: 1) como funciona o Terceiro Homem no

Parmênides?; e 2) de que modo ele afeta a doutrina das Formas exposta nos diálogos da

maturidade — especialmente no Fédon, que parece expor a doutrina em termos muito

semelhantes ao Parmênides?

Os dois argumentos do Terceiro Homem encontram-se nas passagens 132a~b, e

132c~133a. O primeiro deriva o regresso a partir da Forma de Grandeza; o segundo, que

expõe uma das leituras mais conhecidas da doutrina das Formas — a noção de que a

relação de participação é aquela existente entre um “modelo” ou “paradigma” e sua

cópia — derivaria o regresso a partir da Forma de Semelhança. Compreendendo a

importância de tal problemática para a doutrina Platônica, essa apresentação pretende

analisar os argumentos do Terceiro Homem presentes no Parmênides a fim de melhor

compreendê-lo, entendendo que, evidenciar a sua relação com a Teoria das Formas é

também aprofundar nossa compreensão da doutrina Platônica. Assim, nossa

investigação leva em conta as passagens relevantes do diálogo, assim como

interpretações contemporâneas distintas dos Argumentos do Parmênides, em especial,

as leituras de Gregory Vlastos (1954) e Richard Sharvy (1986).

João Wilson Santos - Vontade de Poder, Atividade e Conservação sob

as perspectivas de cultivo e instinto materno (Mesa 9)

RESUMO: A tese nietzschiana da vontade de poder desloca o eixo motor e

configurador da vida das instâncias metafísicas para o nível dos impulsos e das relações

entre eles. Ela é intrinsecamente orientada por um princípio de atividade caracterizado

como acumulação, dominação, entre outros nomes, que também serve de critério para a

análise psicofisiológica de identificação das tipologias cujos valores estão associados ou

à promoção e ao crescimento da vida e do homem em geral, ou a sua obstrução, mera

conservação e degeneração. Tal estrutura corre um duplo risco metafísico não

negligenciado por Nietzsche: incorrer na dicotomia senhor-escravo ou forte-fraco e em

certo “princípio teleológico” – o de “dar vazão à força”. A proposta desta comunicação

é primeiramente compreender a ênfase dada à noção de atividade no discurso

nietzschiano contrário às teorias científicas da origem e evolução das espécies de

Darwin, Spencer e outros, nas quais captou um valor de escassez que quer reproduzir na

natureza a moral do tipo fraco, a que valora por negação/inversão. Porém, se se

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interpreta a mesma natureza como “imposição tiranicamente impiedosa e inexorável de

reivindicações de poder”, pura expansão, não se tratará de operar nova inversão a favor

do tipo forte, mas que sua moral, mais elevada, deverá pairar por sobre aquelas

instâncias metafísicas, sintetizadas na expressão “bem e mal”, certa de que “cada poder

tira, a cada instante, suas últimas consequências”. Neste sentido, os conceitos de

“cultivo” e “instinto materno” serão perpassados como fios condutores capazes de

apresentar uma tese da vontade de poder mais cromática, na qual o princípio de

atividade deve ser matizado por medidas de conservação, com vistas ao poder. A ideia

de cultivo congrega tanto a formação de uma cultura superior quanto a formação de si e

integra a concepção de uma evolução histórica (genealógica) conjugando conservação e

elevação, na qual os próprios percursos humanos que resultaram na dominância da

moral do rebanho são encarados como “instrumentos” necessários de cultivo para que

um tipo de homem elevado a ultrapasse: “uma superior espiritualidade existe apenas

como rebento final de qualidades morais”. Já o conceito de instinto materno aparece

textualmente na Terceira Dissertação da Genealogia da Moral e ilustra fenômeno

similar a uma gravidez em que a força dominante instintivamente concede sua

submissão momentânea a um tipo estabelecido para “poder existir” e finalmente

alcançar o poder. Tais conceitos apresentam uma conservação proativa e aberta,

inclusive suscetível à dissolução, diversa da conservação reativa e fechada, que resiste à

sua dissolução apenas para sustentar uma vida empobrecida – luta pela vida (a todo

custo) divorciada da luta pelo poder. Cultivo e instinto materno parecem conceitos

irmanados porque igualmente permeados pela vontade de poder, conquanto esta não

seja entendida apenas como obstinada descarga de força, mas caminho para o maior

poder sutilmente trilhado pela inteligência dos instintos que sabe, “acima de toda

razão”, os momentos de dosar a elevação com conservação, integrar a luta pela vida na

luta pelo poder. Nisso, a noção de atividade é enriquecida com a de pathos, denotando

que cultivo e instinto materno designam processos que se dão na abertura ao jogo

agonístico do real.

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Jonathan Almeida – O conceito de harmonía entre o mito, a filosofia e

a música na Antiguidade grega: um projeto em curso (Mesa 6)

RESUMO: Importante na origem da filosofia e na origem da teoria musical dentre os

antigos gregos, o conceito de harmonía tornou-se, no decorrer do tempo, fundamental

para a construção de um pensamento musical. Entretanto, desde Homero e Hesíodo já se

observa a presença deste termo como uma deusa e, uma vez que a relação dos deuses

com os homens era, naquele tempo, estabelecida como fenômenos físicos, há,

necessariamente, uma relação empírica desta divindade com a cultura. Portanto, a

presente comunicação visa apresentar à comunidade acadêmica o projeto de mestrado

que será desdobrado durante o curso. Para tal fim, debruçar-nos-emos sobre o termo em

questão na obra dos primeiros poetas e filósofos gregos, investigando em seus escritos a

expressão do conceito historicamente construído, e buscaremos, também, ver na música

o seu terceiro emprego. Buscamos construir, então, uma relação ternária: mito-filosofia-

música.

Há, nos estudos que visam relacionar temas filosóficos com as artes musicais e suas

ciências, um distanciamento crítico no que diz respeito à riqueza legada pela crítica

filosófica e à absorção dos conceitos teóricos musicais. Nos mais diversos

desdobramentos da história da teoria musical e do pensamento filosófico, o que se

observa predominantemente nos livros de teoria musical na atualidade é um afastamento

do legado reflexivo proporcionado pela elaboração de conceitos centrais para a música.

Deste modo, passamos a desconhecer o potencial reflexivo de cada conceito quando

aplicado na prática da composição, interpretação musical, análises musicológicas e no

ensinamento destas teorias. Apesar dos trabalhos de Egert Pöhlmann e Martin Litchfield

West (Documents of Ancient Greek Music, 2001), Thomas Christensen (The Cambridge

History of Western Music Theory, 2002) e Enrico Fubini (La estética musical desde la

Antigüedad hasta el siglo XX, 2005), o que podemos observar é que falta um

entrelaçamento e até uma interdisciplinaridade entre o patrimônio da crítica filosófica e

sua presença na teoria da música, tanto nos manuais de teoria musical quanto nas obras

especializadas da musicologia.

Portanto, o projeto ficou assim estruturado: (1) no primeiro momento da pesquisa,

realizar uma perscrutação na Ilíada e na Odisseia de Homero e na Teogonia de Hesíodo,

numa busca que pretende compreender a semântica de seu uso; (2) em seguida, observar

como este conceito se tornou expressivo na filosofia de Heráclito de Éfeso. A partir

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deste momento, buscaremos compreender e, assim, interpretar o conceito de harmonía

na filosofia heraclítica para então entender o que há nesta semântica que possibilitou a

sua incorporação no campo da teoria musical e como este ressignificou e/ou

transformou tal conceito; (3) e finalmente, apreciar o uso deste termo na expressão

musical no Tratado de Harmonia de Aristóxeno.

Dito de outro modo, busca-se entender de que maneira uma palavra presente na épica

grega se tornou significativa na filosofia antiga e, posteriormente, central para toda

história da teoria da música. Para a compreensão deste último desdobramento do

conceito aqui delimitado, veremos os usos e aplicações no sistema teórico musical

desenvolvido por Aristóxeno e, a partir daí, decantaremos como a teoria musical

transportou e significou para sua área tal conceito. Em resumo, este estudo destina-se a

compreender a semântica do conceito de harmonía: o que desde sua origem permaneceu

e o que foi removido e alterado na filosofia e na música. Portanto, partindo da literatura

disponível, observaremos os usos deste conceito com a finalidade de pensar se haveria

ou não uma proximidade entre a filosofia daquele tempo e a teoria da música

desenvolvida por Aristóxeno e, consequentemente, apresentar uma decomposição desta

relação.

José Maurício de Castro – Walter Benjamin como narrador (Mesa 13)

RESUMO: Podemos pensar uma parte da experiência filosófica de Walter Benjamin

como uma investigação da potência de cada gênero artístico para expressar a linguagem

do homem, a capacidade de cada gênero em expressar a experiência de seu tempo. O

que pode o romance? O que pode o drama trágico? O que pode o cinema?

É nessa perspectiva que a nossa investigação se ocupará de um determinado

objeto: a narrativa através da literatura. Através da análise do ensaio de Walter

Benjamin “O narrador” (1936), buscaremos entender as reflexões do filósofo sobre o

romance, gênero narrativo que se consolidou na modernidade. Em que medida o

romance se encontra com a experiência de seus leitores? Qual é o seu grau de incidência

na vida do homem moderno? Ou, perguntando de uma outra maneira, como podem as

histórias escritas ainda orientar, educar, ensinar, aqueles que se encontram com elas? A

nossa questão é a relevância das narrativas para a formação do homem e, de forma mais

atenta, o seu papel na compreensão da sua própria experiência de mundo. Como o ato

de contar e de ouvir histórias auxiliam o homem a adquirir um tipo de saber?

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A questão para a qual se olha no ensaio “O narrador” é o deslocamento da forma

do narrar na modernidade que afasta algumas características da narrativa tradicional

fundada na oralidade da épica. Nesse sentido, buscaremos elementos na obra de

Benjamin que apontam para as características do narrador de romance em contraste com

o narrador tradicional. Até que ponto o romance se configura como oposição ao modo

de narrar da épica? Até onde podemos separar o modo de narrar moderno do modo

tradicional?

Com o intuito de fazermos uma estética aplicada da teoria da narração que

emerge desse ensaio temos que colocar a teoria em diálogo com a própria arte de narrar.

A nossa aposta - não para uma maior aplicabilidade da teoria, mas para torná-la mais

visível apenas - estará em olharmos para a própria obra de Walter Benjamin. Já nos é

conhecido o cunho literário que ganha o seu escrito filosófico. Já nos é conhecida a sua

crítica literária a autores que transgridem a lei da narrativa escrita como gênero

romanesco insular, como por exemplo, Leskov ou Doblin. Mas não é nesse sentido que

abordaremos a obra, para encontrarmos na sua bela escrita ou na bela crítica, elementos

que corroboram com a sua teoria da narração. Olharemos para o lugar onde Benjamin

realmente produziu literatura: olharemos para os seus contos. Em que medida a obra

ficcional do próprio autor dialoga com o seu olhar de crítico literário? Ao escrever em

forma de conto estaria Benjamin apontando alternativas para a sua teoria literária?

Numa obra multifacetada como a dele, que se detém também em analisar várias obras,

cada uma a sua maneira tentando escapar dos impasses da narrativa moderna, como

Proust e Kafka, por exemplo, qual é o lugar dos seus próprios contos dentro da sua

estética?

Apesar de curta a sua ficção, existem alguns contos que perfazem explicitamente

os mesmos problemas que o filósofo aborda no ensaio “O narrador”. Selecionaremos

um conto da obra de Walter Benjamin, “O lenço”, que dialoga com os problemas que

envolvem o narrar moderno.

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Juliana Moraes - As sutilezas da falha: quando Freud encontra

Duchamp (Mesa 13)

RESUMO: A preocupação com o modo como o inconsciente irrompe na cena do

cotidiano foi uma constante na obra de Sigmund Freud. Desse modo, um dos temas

mais caros para o criador da psicanálise foi a questão do ato falho. No que diz respeito a

esse conceito, nos reportaremos a alguns textos no qual ele aparece de forma central,

como em “Os atos falhos”, uma das conferências introdutórias de psicanálise proferidas

entre 1915, 1916 e 1917 e no texto “ As sutilezas de um ato falho”, escrito de 1935.

Sendo assim, busco entender como, embora o ato falho carregue uma aparente

conotação negativa, a partir do campo semântico no qual a noção de falha se inscreve,

ele é, ao contrário, um elemento positivo na medida em que dá notícias da vida psíquica

do indivíduo, permitindo que a partir do momento do lapso se propicie um maior

entendimento sobre a articulação do inconsciente.

Tomando por base essa consideração, a intenção deste artigo é estabelecer uma

conexão entre psicanálise e arte contemporânea no que concerne ao modo como as

obras de arte começaram a se constituir a partir do século XX: não como criações bem

sucedidas por parte de um artista, mas sim como algo que engendra conceitos como

fracasso, falha, perda ou abandono.

Assim, Duchamp é o primeiro a lançar mão desses aspectos negativos revirando-

os e fazendo deles o motor da sua práxis artística. A partir do artista francês, veremos

como em torno da arte contemporânea orbita um campo da negatividade que, através da

prática psicanalítica, pode ser, na verdade, pensado enquanto positividade. Tomarei

como ponto de partida nesta investigação o readymade Armadilha ( Trébuchet, 1917),

que consiste em um porta-casaco pregado no chão do ateliê do artista. O que nos

interessa aqui não é a materialidade da obra, mas o fato de Duchamp, ao se ver

tropeçando seguidas vezes no objeto que estava disposto sob o assoalho, ter resolvido

pregá-lo definitivamente no local, alçando-o, com esse único gesto, à condição de obra

de arte e o denominando-o enquanto readymade. Não por acaso, o tropeço do artista

evoca a ideia de repetição em psicanálise.

Desse modo, o presente texto traz essa obra como referência fundamental e

cruza o pensamento de Freud com o do filósofo italiano Giorgio Agamben, propondo

entender a arte contemporânea como um meio que assume a possibilidade da derrota ou

do malogro, inscrevendo-os no cerne dos processos artísticos.

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Em um mundo que submete os indivíduos a darem provas de sucesso e

produtividade a todo tempo, refletir sobre como a falha é estrutural para forjar nosso

estatuto de sujeito pode ser uma promessa de encontrarmos uma via reconciliadora com

nossa própria existência, um solo no qual a arte sempre teve um papel basilar.

Juliane Leão - O problema do sujeito na arqueologia de Michel

Foucault: tensões e convergências com o estruturalismo. (Mesa 4)

RESUMO: Na França da segunda metade do século XX, uma espécie de movimento

tomou conta de áreas ligadas às ciências humanas tão diferentes como etnologia e

psicanálise. Esse movimento ficou conhecido como estruturalismo. Longe de ser uma

escola coerente e fechada com mestres e discípulos, o estruturalismo é mais

precisamente descrito como um método ou uma atividade, ou ainda como um encontro

de vozes dissonantes. Dentre alguns traços em comum entre os autores identificados

com o movimento, é possível destacar o descentramento ou a destituição do sujeito.

Pelo estudo das relações de parentesco na antropologia de Lévi-Strauss e por

trabalhos acerca do funcionamento do inconsciente na psicanálise lacaniana - para citar

dois dos exemplos mais icônicos - a ideia de um sujeito soberano foi substituída por um

sujeito como produto de certas estruturas sociais. Essa subversão de um tema tão caro à

filosofia levou o estruturalismo a ganhar adversários de peso como Jean Paul Sartre.

Um procedimento parecido com esse descentramento do sujeito pode ser identificado no

trabalho de Michel Foucault (1926-1984) dos anos 60, principalmente em seu livro As

palavras e as coisas (1966). Nele, Foucault declara o caráter recente da ideia de Homem

e anuncia a seu fim próximo - afirmação que ficou conhecida como "a morte do

homem". O descentramento do sujeito é um tema subjacente à chamada fase

arqueológica do trabalho de Foucault; a subjetividade aparece enquanto efeito

discursivo. Não mais um sujeito que é protagonista na história através da própria

tomada de consciência, mas um sujeito que é produzido de acordo com condições de

possibilidade historicamente dadas.

Apesar dessa aparente convergência, Foucault teve uma relação peculiar com o

estruturalismo: ao mesmo tempo que seu trabalho se aproxima de temáticas

estruturalistas num primeiro momento, o filósofo francês não se alistou explicitamente

em suas fileiras e alguns anos mais tarde chegou a afirmar nunca ter se aproximado do

método estrutural - mesmo que se saiba que o subtítulo de "As palavras e as coisas" por

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pouco não foi "uma arquelogia do estruturalismo". No Ditos e escritos encontram-se

declarações conflitantes de Foucault. Ele afirma por exemplo que o estruturalismo é

uma ótima forma de diagnosticar o presente; poucos anos mais tarde nega

explicitamente de ter tido qualquer ligação com a moda estrutural que tomou a

intelectualidade francesa. Essas afirmações contraditórias fazem aparecer uma tensão e

não é claro se se trata de uma rejeição à etiqueta "estruturalista" ou a procedimentos

próprios do método estrutural e suas consequências.

O objetivo do presente trabalho é fazer uma comparação entre como o problema

do sujeito aparece em textos selecionados que são explicitamente ligados ao

estruturalismo e como esse mesmo problema aparece no trabalho de Michel Foucault

até 1969. Não pretende-se chegar a um veredito sobre um suposto Foucault

estruturalista, mas explorar tensões e convergências do problema do sujeito na

arqueologia foucaultiana em relação ao estruturalismo. Em entrevistas textos escritos na

década de 80 - época em que a discussão sobre os modos de subjetivação aparece de

forma mais evidente em seu trabalho - Foucault afirma que o problema do sujeito e suas

relações com o poder sempre foi o objeto de seu trabalho. De certa forma, o presente

trabalho testa essa hipótese.

Júlio Amorim Júnior - Consideração sobre a escrita no âmbito de uma

filosofia da duração (Mesa 10)

RESUMO: Nossa comunicação versará sobre um dos desafios que uma filosofia da

duração impõe ao filósofo. Interessa-nos aqui o problema da escrita. Segundo Bergson,

os conceitos decorrentes da análise generalizam e se afastam do real. As definições, por

sua vez, se aplicam somente a uma realidade feita. Isso posto, como proceder frente a

uma realidade que se faz continuamente, uma realidade que dura? Adotando o próprio

devir, responde Bergson. Contudo, trabalhar com a ideia de uma realidade móvel impõe

ao filósofo o desafio de lidar com uma realidade inatingível. Inatingível no sentido de

que ela não alcança a plena realização, tampouco se mantém na irrealizada em uma

incompletude estática. O tempo atravessa toda realidade, imprime mudanças pelo

simples fato de passar, o “ser” é “devir”, o existir se faz por meio de um processo

dinâmico através do qual movimento e a mudança são condições e toda realidade.

Quanto à incansável busca dos filósofos por apreender a totalidade do real, Bergson

sugere que devemos antes reconhecer que a inteligência se volta para o passado das

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coisas, congelando-as, fixando-as em um estado cada vez mais distante do dinamismo

que as constitui. Assim sendo, a duração exige um método de conhecimento apropriado:

a intuição. Enquanto a inteligência se volta para a imobilidade, a intuição se apresenta

como uma imersão no plano móvel da existência. Consequentemente, a ideia de uma

apreensão total do ser de um objeto qualquer perde sentido. Enquanto dura, o ser da

coisa é seu devir. Abandonando a ideia de uma apreensão total, Bergson pensará em

termos de aproximações e adotará a “imagem” como forma expressiva da intuição. O

trabalho do filósofo se assemelhará, então, à atividade do artista, particularmente, com o

escritor. Sobre a arte da escrita afirma Bergson, ela consiste em nos fazer esquecer que

o autor emprega palavras. Daí a inutilidade e impossibilidade de uma definição prévia.

A filosofia pressupõe a possibilidade de um “fazer” em tempo real. A reflexão

filosófica, para Bergson, se constitui no tempo, irredutível, indivisível e imprevisível;

significando, assim, que não há pensamento determinado ou definido na duração, ela é

sempre equívoca. É esta mesma equivocidade que cria as condições de uma expressão

possível da intuição. A verdade é que, acima da palavra e da frase, há algo bem mais

simples que uma frase e mesmo que uma palavra: o sentido, que é menos uma coisa

pensada do que um movimento de pensamento, menos um movimento do que uma

direção. Mas se a elaboração de um texto filosófico, sob a perspectiva da duração, exige

uma verdadeira arte de composição, sua leitura reivindica um profundo envolvimento

com o texto, isto é, uma experiência de pensamento que não pode ser adiada ou

suprimida. É justamente em razão desta exigência que, ao participar das discussões que

ocorrem na academia francesa (a partir dos anos 1900) sobre a publicação de um

vocabulário técnico, Bergson se mostra pouco otimista quanto às possibilidades de uma

leitura fragmentada. Isso porque, na perspectiva bergsoniana, a leitura adequada de um

texto filosófico demanda envolvimento e simpatia. O sentido profundo de um texto não

poderia, sob esta perspectiva, ser atingido em suas partes, mas somente no curso de

gradações qualitativas de uma experiência única.

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Larissa Rezino - O conceito de outrem em uma perspectiva de

apropriação filosófica-literária (Mesa 7)

RESUMO: Elucidar o que é pensar/o pensamento é uma questão central da filosofia

deleuziana, sendo que o pensamento não é prioridade única da Filosofia. Deleuze

observa que é o ato de criação o ponto de partida para buscar a gênese do pensar, não na

identidade e na representação, e sim no estudo dos procedimentos de outras áreas como

a literatura e as artes. Desta maneira este autor recorreu à ciência, à tradição filosófica e

as artes para dar consistência a seu pensamento, realizando conexões entre sua proposta

filosófica com a criação dos outros saberes, que em muitas vezes, apropriou-se de uma

ressonância já dada em que a subverteu e re-criou a partir dela. E entre as expressões

artísticas, encontrou na Literatura um terreno fértil para a produção de sua filosofia, em

que também dedicou estudos para literatos como Kafka, Proust, Miller, entre outros.

Estes escritores, ao escreverem seus romances, se assemelham aos filósofos, pois ambos

se afirmam no processo de criação – cada qual com a sua maneira de pensar e criar -,

mas suas criações finais ressoam uma na outra, elas se conversam e se intensificam.

Este trabalho tem como objetivo demonstrar a apropriação e criação de conceito

realizada por Deleuze, a partir do romance de Michel Tournier em que o filósofo

apodera-se do personagem de Outrem e realiza uma conceituação filosófica em cima

dessa proposta literária. Este novo conceito seguirá o movimento de pensamento de

Deleuze desde seus textos mais juvenis até os textos de sua maturidade.

Leonardo Lacerda – O estatuto da obra de arte na

contemporaneidade: uma reflexão em Benjamin e Agamben (Mesa 14)

RESUMO: Este trabalho pretende pensar em que medida é possível, a partir do ensaio

“Notas sobre o gesto”, presente no livro Meios sem fim: notas sobre política, do filósofo

italiano Giogio Agamben, estabelecer uma relação entre os gestos poéticos e os gestos

mais cotidianos, como a caminhada – considerando-os como elementos ou dados de

cultura de tempos históricos específicos, portanto submetidos à dinâmica da linguagem-

, e um conceito fundamental na obra do filósofo alemão Walter Benjamin, a saber:

Erfahrung ou perda de experiência.

Se para Agamben, como está explícito no título do primeiro capítulo de seu ensaio, “No

fim do século XIX, a burguesia ocidental já havia definitivamente perdido seus gestos”,

não é forçoso pensar que a perda considerada por Agamben se insere em um contexto

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de crise muito mais abrangente e que se articula com conceito benjaminiano de

Erfahrung e sua crítica da modernidade.

A palavra gesto vem do latim gestus, particípio passado de gerere, usado para descrever

movimento, atitude, ação, obtenção, gesticulação e que origina verbo gerare, portar

sobre si, assumir uma obrigação. Nas palavras de Agamben: “O que caracteriza o gesto

é que nele nada se produz, mas se assume e suporta. Ou seja, o gesto abre a esfera do

ethos como esfera mais peculiar do homem”.

Se o estatuto do gesto é o de suporte esse estatuto se aproxima ao estatuto da obra de

arte que suportava, antes da modernidade, antes da “decadência da aura” - noção

presente da obra de Benjamin -, a autoridade e as garantias que derivavam da sua

inserção em uma tradição onde sua transmissibilidade estava assegurada.

É possível, então, considerar que a obra de arte tinha, antes da modernidade, esse caráter

de suporte – como os gestos - de um ethos, e que com as transformações aprofundadas

no ocidente a partir do século XVII essa evidente mudança de estatuto da obra de arte

pode ser considerada como aventos que ocorreram de modo tão sutil que nos faz supor

que um acontecimento como o surgimento da síndrome de la Tourrete, tomado como

referência no ensaio de Agamben, possa ter o mesmo estatuto dessa modificação.

Finalmente, pretende-se pensar em que medida podemos considerar o estatuto do gesto

equivalente ao estatuto da obra de arte e das narrativas consideradas por Benjamin no

sentido em que revelam, quando se produzem na linguagem, o caráter ético do homem

no seu tempo histórico. Pensar como a chamada morte da arte se aproxima, como dado

de uma cultura em declínio, dessa perda dos gestos que acomete a burguesia do século

XIX, momento onde essa ausência de referências coletivas se torna mais explícita. Ou

ainda pensar em como, na linguagem, sendo os gestos uma de suas dimensões, assim

como o ato de narrar e o ato poético, o que permanece é a sua potência como puro meio

e, nesse sentido, pensar em como a arte, justamente por ter um estatuto de gesto, ou seja

de suporte, pode ser preenchida, sobretudo a partir da modernidade, de muitos modos,

com outros conteúdos, diferentes dos conteúdos da tradição, a partir do trabalho da

Crítica.

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Lucyane de Moares - Arte e tecnologia no contexto da informação

digital (Mesa 11)

RESUMO: O trabalho que ora se apresenta objetiva sistematizar parte das

contribuições teórica dos pensadores da chamada Teoria Crítica da Sociedade na

tentativa de compreender os processos de produção, distribuição e recepção da arte, via

aparatos tecnológicos, conectados com o desenvolvimento dos mass media. A tarefa de

discussão do tema é orientada pela idéia de arte em um sentido historicamente

configurado, considerando que cada momento histórico origina novas concepções

relacionais sobre a obra de arte. Procurando integrar a filosofia a outras diferentes áreas

do conhecimento humano, intenta-se a partir do pensamento crítico sobre a

especialização dos saberes instrumentalizados e burocráticos e das relações intrínsecas

entre teoria e práxis nas sociedades modernas problematizar as questões de nosso

tempo, refletindo ainda sobre a incapacidade de esses saberes, desvinculados da práxis,

transformarem a sociedade vista a impossibilidade de uma inter-relação entre ambos.

Com a finalidade de dimensionar a influência que novas formas de experiência estética

vêm exercendo sobre o pensamento no mundo atual, necessário se faz a apreensão das

novas realidades surgidas com o desenvolvimento dos processos industriais avançados,

bem como das questões éticas subjacentes à análise crítica dos fenômenos sociais que

servem como ferramenta para o entendimento da arte e da cultura no mundo atual. Não

coincidentemente, no mundo contemporâneo se criou uma ideia de democracia baseada

na possibilidade do acesso a uma totalidade de bens de consumo através da produção

em massa, sendo esta ideia supostamente capaz de construir uma sociedade igualitária.

Essa suposta possibilidade se viabiliza por meio de procedimentos igualmente massivos

de comunicação e propaganda que abarcam tudo o que respeita também à subjetividade

humana, incluindo as artes, através de intricados mecanismos pelos quais a publicidade,

como elemento propulsor de um processo que se estabelece pela criação de

necessidades, constrói uma concepção de realidade estetizada. O que resulta disso para

as artes é aquilo que Theodor Adorno determina como a autônoma exterioridade estética

substituída por algo somente de natureza aparente, um exato fragmento de realidade

destinado às relações de troca. Soma-se a isso a grande velocidade com que mudanças

culturais são implementadas, o que dificulta ainda mais a compreensão das relações

entre arte e sociedade. Considerando que os mass media, enquanto universo simbólico-

ideológico cria forçosamente uma ideia de realidade camuflando os efeitos do mundo

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mercadológico, entende-se que os mesmos monopolizam também a esfera pública

através da hegemonia dos meios de comunicação. São estes os responsáveis pela

legitimação da cultura de mercado, inclusive regulando regimes políticos e atuando no

âmbito da formação social em detrimento da realização da autonomia e da alteridade

dos indivíduos. Em outras palavras, os media modernos, o racionalismo e o

cientificismo estão sob a égide da construção de um universo simbólico que se coloca

como centro de formação entre a subjetividade e a sociabilidade impedindo o sujeito,

em sua singularidade, de qualquer tipo de experiência desatrelada de seus esquemas

imperativos. Tendo em vista que a hegemonia do universo tecnológico-digital determina

modos diversos de apreensão da realidade, obrigatório se faz uma reflexão de sentido

social acerca da relação entre este universo e a cultura, entendendo que o

desenvolvimento da tecnologia, enquanto um meio, não dá conta por si só de elaborar

novas formas de relação entre sujeito e objeto e que somente o pensamento crítico pode

contribuir para o processo de emancipação dos indivíduos em uma perspectiva mais

realista e social.

Marina Cavalcanti - Genealogia: crítica à “história dos historiadores”

(Mesa 4)

RESUMO: No presente trabalho, focaremos na relação crítica entre genealogia e

história segundo as reflexões desenvolvidas por Foucault sobre a vertente histórico-

crítica do pensamento de Nietzsche. Nos pautaremos, portanto, para dar sequência às

análises pretendidas, nos seguintes textos: a Genealogia da moral e II Consideração

Intempestiva sobre a utilidade e os inconvenientes da História para a vida, de autoria

de Nietzsche, e Nietzsche, a genealogia e a história, de autoria de Foucault.

Sustentaremos, com Foucault, que a crítica de Nietzsche ao conceito de história na

modernidade se fundamenta em dois elementos: em primeiro lugar, na demonstração da

inconsistência filosófica de todo projeto teleológico sustentado por um ponto de vista

idealista; e em segundo lugar, na incoerência de toda historiografia que se ampara no

pressuposto tácito do objetivismo.

A crítica de Nietzsche à compreensão tradicional da história, tal como Foucault a

entende, questiona precisamente o caráter “a-histórico” do pensamento dos historiadores

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modernos7, produto de suas reivindicações de objetividade e causalidade em nome de

uma suposta legitimidade epistêmica do conhecimento histórico. No entanto, se o ponto

de partida da teoria do conhecimento é a “pressuposição de que, no fundo das coisas,

tudo se passa de tal modo moralmente”8 a crítica de Nietzsche aos historiadores

modernos aponta para o elemento moral9 sempre dissimulado no projeto de revelação

daquela verdade primeira que se supõe inerente aos fatos históricos. O pressuposto de

que o conhecimento deva ser “sem consideração da questão do útil e do prejudicial”10,

uma pura interpretação sistemática dos fatos, consiste, portanto, e segundo Nietzsche,

no grande equivoco dos historiadores modernos. Portanto, nas análises de Foucault, o

projeto genealógico do autor se torna o fundamento de uma crítica à história dos

historiadores ao romper com a compreensão de que a investigação da origem tem por

princípio a revelação de uma verdade objetivamente dada, imutável e a-temporal. A

noção de origem (Ursprung) que será continuamente contestada por Foucault na

interlocução com os textos de Nietzsche é aquela que a localiza fora do sentido histórico

e, deste modo, se estabelece como verdade metafísica ou fundamento moral no centro

da reflexão histórica.

Com base na interpretação de Foucault, analisaremos as noções de proveniência

(Herkuft11) e emergência (Entstehung12), pensadas por Foucault a partir de seu sentido

genealógico em oposição à noção de à pesquisa de origem (Ursprung13), e

procuraremos identificar as principais suposições que permitem ao autor uma

caracterização da genealogia de Nietzsche enquanto disputa entre as perspectivas.

7 No início de sua Genealogia da moral Nietzsche faz menção a obra de Paul Reé: “A origem das impressões morais” no intuito de descartar a interpretação genealógica aí desenvolvida observando que em suas análises parte-se de um “modo de valorar altruísta”, que conformaria o tipo de perspectiva que se auto-intitula “desinteressada”, que na sequência se tornará o alvo primeiro da crítica genealógica. Mas não apenas Reé é criticado, na sequência Nietzsche desclassifica todos “genealogistas da moral ingleses” de maneira equivalente. Ver NIETZSCHE, F. Genealogia da Moral – Uma polêmica, p.09. 8 NIETZSCHE, Friedrich. A vontade de poder. Trad. Marcos Sinésio Pereira Fernandes, Francisco José

Dias de Morais. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008, p.256. 9 Ibidem, p. 218.

10 Ibidem, p.273.

11 FOUCAULT, Michel. “Nietzsche, a genealogia e a história, parte II” . In: MACHADO. Roberto (Org.).

Microfísica do poder. São Paulo: Graal, 2012. 12

Ibidem. 13

Ibidem.

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Mauro Araújo - A terapia do Jardim - o modelo de vida proposto por

Epicuro (Mesa 1)

RESUMO: O período helenístico, época que se inicia após a morte de Alexandre, o

Grande, foi marcado por inúmeras alterações políticas no mundo antigo que,

inevitavelmente, influenciaram nos movimentos filosóficos. Contudo, segundo

Farrington, as filosofias desse período não se limitaram a dar conta dos problemas

criados a partir dessa agitação política, já que também tomaram parte nas discussões

iniciadas por Platão e Aristóteles. Sendo assim, apesar do domínio macedônio ter

contribuído para diminuição da autonomia das poleis gregas, os movimentos filosóficos

que surgiram nesse período deram prosseguimento ao legado das grandes correntes da

época clássica. Neste contexto, se encontra a filosofia epicurista.

Através de um discurso que “convidava” seus ouvintes a buscarem uma vida

mais próxima ao natural, despojada de pretensões para além do que a natureza já

oferece a cada um, o epicurismo rapidamente ganhou adeptos e admiradores por todo o

Mediterrâneo. Segundo Farrington, em um cenário cultural permeado por guerras,

instabilidade política e supertições, o Jardim de Epicuro conseguiu atrair tanto a atenção

da elite local quanto a do povo, apresentando um discurso baseado na valorização da

amizade e na busca por uma vida imperturbável. De maneira geral, é possível dizer que

Epicuro e seus discípulos desenvolveram um projeto filosófico com aspirações a dar

conta do que seria o télos da vida humana, o bem viver. Nada muito destoante das outras

filosofias do período clássico, como apresenta Warren em um dos capítulos da obra Lire

Épicure et les épicuriens, organizada por Gigandet e Morel. Ora, levando-se em

consideração a influência exercida por Platão e Aristóteles nos debates filosóficos na

Hélade nesse período, é natural que Epicuro apresente críticas a Academia e ao Liceu,

contudo, seu objetivo principal é apresentar novas interpretações aos mesmos problemas

já levantados por esses dois pilares do Ocidente.

Brun demonstra um dos pontos de discordância entre o Jardim e a Academia.

Enquanto as três grandes obras platônicas sobre a ética (a República, o Político e as

Leis) apresentam a necessidade do filósofo envolver-se na gerência dos negócios da

pólis, uma vez que o bom funcionamento da coisa pública reflete diretamente em seu

bem viver; as obras de Epicuro retratam uma vida em uma comunidade de amigos

distanciada da multidão insensata, longe das glórias e honrarias socialmente valorizadas.

Em relação a Aristóteles, basta trazer a mente um dos excertos mais famosos do filósofo

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de Estagira: “o homem é por natureza um animal político”. Em oposição, Epicuro dirá

que o sábio não deve se ocupar com a política, pois o homem não é sociável por

natureza, nem possuidor de bons costumes. Viver isolado das questões políticas e em

busca do prazer.

O epicurismo, em linhas gerais, tem como objetivo apresentar o modelo de vida

proposto por Epicuro. Ora, como qualquer pensamento, o sistema epicurista dialoga

tanto com os problemas apresentados por seus interlocutores como também com os

traços políticos e sociais de um determinado povo e período histórico. Contudo,

enquanto filosofia hedonista, a ética do Jardim tem por finalidade encaminhar o homem

para seu estado natural de prazer, hedoné, através de exercícios filosóficos semelhantes

às terapias médicas antigas. Sendo assim, objetivo principal da presente comunicação é

apresentar elementos da filosofia de Epicuro que a fundamentam como uma terapêutica,

isto é, um conjunto de exercícios para se alcançar o bem viver, a vida feliz. Para dar

cabo de nossa proposta, apresentaremos seus conceitos principais; eustathéia, autárkeia,

logismós, phrónesis e philía; além de analisar as quatro sentenças que sintetizam a

proposta epicurista, tetraphármakon.

Michele Bobsin - Considerações sobre as Três ecologias, de Félix

Guattari (Mesa 7)

RESUMO: A obra As Três Ecologias, de Félix Guattari, inicia com um tom de

denúncia referente à atual crise que vivemos. A crise política, a crise ambiental e a crise

do indivíduo em meio a tudo isso correspondem, segundo Guattari, a uma crise da

“relação da subjetividade com sua exterioridade – seja ela social, vegetal, cósmica”

(GUATTARI 2012, pg. 8). Em acordo com o que aponta o autor, temos que repensar as

condições de produção da subjetividade humana em um contexto histórico no qual os

antigos modelos não dão mais conta da complexidade do mundo atual.

Guattari propõe uma articulação ético-política, a qual ele denomina de ecosofia, entre

três registros ecológicos, respectivamente, das relações sociais, da subjetividade humana

e do meio ambiente, como tentativa de lançar alguma luz sobre as questões

contemporâneas. A ecologia social diz respeito à reinvenção dos modos de ser em

sociedade; a ecologia mental ou da subjetividade humana trata de reinventar a relação

do indivíduo com o corpo e sua existência; e a ecologia ambiental das relações do

homem com o ambiente.

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Pensar a articulação entre os três registros ecológicos propostos pelo autor nos leva a

perguntar sobre em que nível estas relações se dão e como acontecem. Em A revolução

molecular, Guattari nos diz que, antes se serem estruturados em uma forma de

linguagem, todos os conteúdos que nos são comunicados passam por estruturações que

envolvem uma multiplicidade de níveis micro políticos. Desta maneira, de acordo com

Guattari, há sempre uma específica ordem política e social que “modela” os conteúdos

comunicáveis. O pensamento de Guattari aparece como alternativa para refletir sobre

como o sistema se apropria da expressão dos indivíduos e também sobre formas de

resistência no contexto contemporâneo. Para o autor, a crise ecológica que estamos

vivendo somente será combatida com uma revolução política, social e cultural que

reoriente os objetivos de produção, tanto material como imaterial afim de que

“trabalhem para a humanidade e não para um simples reequilíbrio permanente do

Universo das semióticas capitalísticas” (GUATTARI, 2012, pg. 35). Temos que

repensar as condições de produção de subjetividade humana, o que não quer dizer, de

acordo com Guattari, fazer funcionar uma ideologia de modo homogêneo, mas sim

procurar dispositivos que propiciem um ressingularização dos indivíduos e da

coletividade em nosso novo contexto histórico. No entanto, o autor ressalta que a

referência ecosófica pode indicar “linhas de recomposição da práxis humana” nos três

registros ecológicos, assim como, definir blocos de causas objetivas ou “objetivos

unificadores”, por exemplo, a causa indígena e a reforma agrária. Pois, “os diversos

níveis de prática não só não tem de ser homogeneizados, ajustados uns aos outros sob

uma tutela transcendente, mas, ao contrário, convém engajá-los em processos de

heterogênese” (GUATTARI, 2012, 35).

Desta maneira, a eco-lógica não pretende resolver os contrários e sim proporcionar

condições para que objetivos comuns sejam estabelecidos em consonância com a

atividade criadora por parte do indivíduo. Ao invés do paradigma cientificista, a eco-

lógica se propõe a forjar novos paradigmas de inspiração ético-estética que visem

campos de “virtualidade futurista” e “construtivista” que propiciem ao inconsciente se

projetar no futuro.

Osmilto Silva – O corpo em Nietzsche: um estudo interpretativo (Mesa 9)

RESUMO: Este texto trata-se de uma pesquisa em andamento, no Programa de

Mestrado em Filosofia, do Instituto de Ciências Humanas e Sociais, da Universidade

Federal de Mato Grosso, na linha de Filosofia Social. O objetivo principal desta

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pesquisa, de natureza bibliográfica, consiste em problematizar a temática do corpo

como fio condutor, sobretudo, em suas obras e, consequentemente, os fragmentos

póstumos, no intuito de confrontar-se “com, contra e para além” da tradição filosófica

de pensamento ocidental. Reconhecendo a importância da genealogia e filologia como

métodos de investigação filosófica. Na proposta filosófica de Nietzsche (“como

filosofar com o martelo”), a problemática do corpo é orientada pelo intento de se

desconstruir a filosofia metafísica clássica da alma, a partir do paradigma do corpo,

mais especificamente numa filosofia afirmadora da vida que é reconhecedora do corpo.

Assim, justificamos interpretar o itinerário filosófico de Nietzsche segundo o paradigma

do corpo. Seguiremos por este viés: procuraremos realizar uma análise nietzschiana do

corpo, como indissociável de uma reflexão crítica, sobre a doutrina idealista e a

concepção materialista presente na história da filosofia. Decerto, a compreensão da

filosofia em Nietzsche é perspectiva de uma ruptura com a tradição metafísica

socrático-platônico de pensamento ocidental e a cultura judaico-cristã, o que exige um

constante processo afirmação da vida, ou seja, do corpo, em sua máxima expressividade

artística. Para efeitos metodológicos, dividiremos nossa investigação conceitual em

quatro críticas nietzschiana a tradição milenar ocidental: em um primeiro momento,

debruçar-nos-emos sobre a crítica ao pensamento socrático-platônico, ao descrever o

corpo como cárcere da alma, a partir do idealismo dualista de Sócrates e Platão. Em um

segundo momento, o enfoque crítico ao pensamento judaico-cristão, sobre o desprezo

ao corpo, presente no cristianismo de Paulo de Tarso. Num terceiro momento,

apresentaremos a crítica o funcionamento de um corpo-máquina, segundo a ótica do

mecanicismo de René Descartes. Em um quarto momento, abordaremos o corpo

segundo o pensamento de Nietzsche. Em Síntese, a crítica nietzschiana contrapõe o

paradigma clássico do idealismo e do materialismo e apresenta-se uma nova concepção

do corpo fundada no monismo. Dado o exposto, a hipótese inicial é que a filosofia do

corpo de Nietzsche pode delinear possíveis estudos interdisciplinares no campo da

filosofia. A partir da análise dos textos do filósofo, definimos que nossa pesquisa

buscará investigar minuciosamente, a concepção defendida pelo autor acerca do corpo,

na possibilidade interpretativa de que, partindo deste principal termo, possamos dialogar

com todos os outros de seu pensamento.

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Pablo Harduim - Hedonismo Eudemônico: Justiça e Prazer em A

República de Platão. (Mesa 8)

RESUMO: A defesa da justiça dramatizada em A República dá-se em função de um

problema ético fundamental: o que é melhor para a vida humana em termos de

felicidade, a justiça ou a injustiça? O problema, posto por Gláucon no Livro II, é

resolvido por Sócrates no Livro IX mediante três provas de que a vida justa é melhor

que a injusta. Em 583b, Sócrates concede a prova decisiva: a vida justa é melhor que a

injusta por ser mais prazerosa. A prova consiste em uma teoria do prazer cuja função é

demonstrar que a vida justa é a mais feliz por ser a única capaz de gerar prazer

verdadeiro, enquanto à injusta resta um prazer deficiente - nos termos de Sócrates: um

fantasma do prazer verdadeiro (586b). Deste modo, a defesa da justiça se resolveria em

termos hedônicos. Contudo, essa relação entre justiça e prazer é objeto de controvérsia

entre os intérpretes do diálogo.

Apesar da diversidade das interpretações, a maioria dos intérpretes concorda que a

prova hedônica em 583b não desempenha papel relevante na defesa da justiça - a

despeito da própria evidência textual que a instaura como decisiva. O cerne da disputa

interpretativa concentra-se em como devemos compreender a relação das três provas

com a discussão da justiça. Aceitar a prova hedônica como decisiva implicaria na

admissão de um tipo de hedonismo dentro do contexto filosófico de A República, o que

instauraria uma inconsistência com outras teses do diálogo - tal como a negação de

Sócrates de que o prazer fosse o Bem, em 509a. Outro problema com a prova hedônica é

a descontinuidade que o Livro II marcaria em relação a ela. Quando no Livro II Gláucon

dispõe para Sócrates as diretrizes da discussão, exigindo que ele diga o que é a justiça e

quais são suas consequências na alma de quem a possui, Gláucon não inclui na

exigência que se considere a aprazibilidade das vidas justa e injusta - a ausência dessa

exigência seria suficiente para considerar a teoria do prazer no Livro IX como uma

estranha anomalia argumentativa. De todo modo, a ênfase de Sócrates no aspecto

decisivo da prova hedônica é explícita, de modo que o atestado de irrelevância torna-se

supérfluo. Pois, o atestado de irrelevância que os intérpretes dão à prova acentua o fato

de que há sobre ela uma ênfase ainda não explicitada, fazendo com que sua

desconsideração como um argumento válido prejudique a interpretação total do texto e

impossibilite a compreensão de seu argumento geral, uma vez a prova hedônica estar

localizada no momento mais importante do argumento - quando Sócrates finalmente

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concede uma resposta explícita ao problema ético posto no Livro II. Destarte, é

necessário analisar a passagem a fim de compreender como a teoria do prazer em 583b

funciona no contexto filosófico geral da obra.

Afinal de contas, como devemos compreender o lugar do prazer na ética desenvolvida

em A República? A fim de esboçar os contornos de uma resposta a essa questão, nos

propomos a atingir dois objetivos fundamentais: a) explicitar o problema interpretativo

instaurado pela relação entre justiça e prazer e b) defender a plausibilidade da hipótese

de que a prova hedônica funcione como resposta definitiva ao problema ético posto no

Livro II. Se corretos, a ética desenvolvida em A República reserva para o prazer um

lugar fundamental na vida humana, no qual o prazer é um elemento indissociável da

eudaimonia.

Priscila Céspede Cupello – Debate acerca das categorias enquanto

invenções histórico-sociais em Michel Foucault (Mesa 3)

RESUMO: Este trabalho debaterá sobre o posicionamento filosófico encabeçado por

Michel Foucault em seu livro “As palavras e as Coisas”, no qual ele argumenta que as

categorias não são entidades universais e atemporais, mas produtos de contingentes

históricos, fruto das relações de poder que constroem verdades sobre as coisas no

mundo. Para tanto, analisaremos os debates de gênero, enquanto categorias históricas,

os conceitos de “normal”, “anormal” e “patológico”, para enfim, analisar uma fonte

histórica do Brasil republicano e perceber como essas relações de saber e poder

constroem sujeitos e produzem verdades sobre os corpos.

Inicialmente, podemos destacar três diferentes visões filosóficas a respeito das

categorias. A primeira a ser destacada é a visão filosófica realista, na qual se acredita

que “existe um entendimento realístico de categorias, se por realismo alguém entende

que uma categoria é alguma coisa no mundo independente da maneira como os

humanos podem pensar” (Gracia, 2001, p. 8, tradução minha). Nessa linha de

pensamento podemos destacar como representes: Aristóteles e Tomás de Aquino.

Já a visão nominalista defende que as categorias são entidades linguísticas. “Isto

significa que a palavra ‘gato’ é nada mais que a palavra ‘gato’” (Gracia, 2001, p. 9,

tradução minha). Nesse sentido, podemos dizer que o mundo é aquilo que conseguimos

criar predicados para falar a respeito, ou seja, as categorias se restringem ao campo da

linguagem. Já a terceira visão filosófica, a qual nós deter-nos-emos neste artigo é a

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defendida por Michel Foucault, no prefácio das “Palavras e as Coisas”, que as

categorias seriam entidades inventadas e determinadas por aspectos históricos e

temporais.

No artigo intitulado “Are categories invented or discovered?”, Jorge Gracia (2001)

defende que nem todas as categorias são inventadas e nem todas são descobertas. Há um

misto. Portanto, para o autor, categorias podem ser as vezes uma palavra

(nominalismo), as vezes conceitos (construtivismo) e as vezes propriedade das coisas

(realismo).

Neste trabalho, não deter-nos-emos em resolver o dilema do que são as categorias, mas

discutir como podemos pensá-las pelo viés construcionista foucaultiano, através da

análise do discurso das fontes históricas médico-mentais do Brasil republicano da

década de 1930.

Rafael Rocha - Nietzsche e o domínio cínico (Mesa 9)

RESUMO: Foucault, em sua obra A coragem da verdade, aborda a questão da parresía

e encontra no cinismo seu exemplo mais radical. O filósofo francês cita um dos

principais episódios a respeito de Diógenes, o Cínico, o conselho dado a ele pelo

oráculo de Delfos, que o orientou a alterar o valor da moeda. Tal lição ganha força

devido a duas versões biográficas sobre Diógenes: ele era filho de um banqueiro ou

cambista, alguém que trabalhava com compra, venda e troca de dinheiro cunhado; um

ou outro foi acusado de falsificação dos valores monetários, sendo expulso de Sinope,

local onde vivia.

É a partir dessa anedota que Foucault desenvolve suas hipóteses sobre a verdadeira vida

cínica, tendo como ponto de partida o imperativo de transfigurar o valor da moeda. Essa

prescrição seria um fundamento primordial do cinismo. Este preceito instiga o indivíduo

a lidar com o teor plástico da existência, moldando sua própria vida. Tal máxima impele

a uma tomada de posição radical em relação à forma como se vive, colocando em xeque

as atitudes padronizadas por determinado valor coletivo. Nessa tarefa, é crucial a

relação que o autor estabelece entre moeda, valores e normas, posto que o cinismo

efetivamente assume determinada posição contra as convenções, diametralmente avessa

aos hábitos e aos costumes sociais. Haveria no cinismo um impulso destruidor de

convencionalismos, das tradições civis e das rotas culturais dominantes estabelecidas

para e pela coletividade. Assim, a verdadeira vida cínica exprimiria um modo de viver,

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transfigurando os valores e estilos de vida convencionais. Portanto, creio que haja uma

fértil proximidade entre essas concepções e a filosofia nietzschiana, com sua crítica à

cultura e a afirmação de uma transvaloração dos valores. E a Zaratustra expressaria um

desdobramento desse ascetismo cínico. Ao constatar o niilismo que se abateu sobre seu

tempo, Nietzsche postulou a superação da cultura e dos valores que nortearam o viver

dos homens. Estes deveriam assumir uma postura ativa em relação aos preceitos que

regravam seu agir e avaliar seu efeito positivo ou negativo à vida. Essa tarefa se daria

através da contradoutrina de Zaratustra, semelhante à ascese cínica. Em ambos os casos

o indivíduo almeja a liberdade, a autonomia e a autenticidade, e assim se tornaria capaz

de estetizar sua existência e fazer de si uma obra de arte.

Por meio da adoção de um estilo de vida radicalmente oposto à maneira como vivem os

outros homens, o cínico colocaria em xeque a forma como esses indivíduos conduziriam

sua existência. Tal postura seria cara a Zaratustra, que rompeu radicalmente com o

convívio social e passou dez anos isolado nas montanhas. Creio que essa seja uma das

principais característica de seu pensamento. Ao final desse período, ele retornou à

civilização a fim de propagar sua contradoutrina. Assim inicia o livro que leva seu

nome: “Aos trinta anos de idade, Zaratustra deixou sua pátria e o lago de sua pátria e foi

para as montanhas. Ali gozou do seu espírito e da sua solidão, e durante dez anos não se

cansou. Mas enfim seu coração mudou...”

Rafael Zacca - O “poetificado” – forma interna e todos os poemas que

talvez tivessem sido escritos – em Walter Benjamin (Mesa 14)

RESUMO: Conhecemos a história inacabada em Walter Benjamin. Aqueles que

poderíamos ter encontrado, as irmãs que talvez tivéssemos, os povos que teriam

vingado – e que aguardam, ainda, vingar. Os fragmentos “Sobre o conceito de história”

podem ser compreendidos não apenas como triste testemunho dos pesados escombros

do passado opressor, como um voto de confiança na força revolucionária redentora. O

futuro do pretérito figura na obra de Benjamin como um fantasma que nos assombra a

vida em pleno “meio dia da história”, cujo descanso só pode ser encontrado por uma

práxis que ponha fim na história humana da dominação. O fim do sofrimento, não

apenas no presente, como no passado, faz parte de um conceito de história que não a

toma como pronta e acabada, mas como um adensamento infinito de descontinuidades

que aguardam a retomada. Segundo Benjamin, “em outras palavras, na representação da

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felicidade vibra conjuntamente, inalienável, a da redenção.” O tema da possibilidade

que emerge contra o pensamento acabado da determinação atravessa toda a obra de

Benjamin. O conceito de “poetificado”, ainda pouco explorado em sua obra, coloca a

presença daquele tempo verbal ao qual nos referimos no centro do debate da crítica

literária. Diz respeito a uma esfera interna de cada poema singular, que desvenda uma

espécie de “tarefa” à qual o poema supostamente responderia, constituindo ele, o

poema, apenas uma das infinitas soluções para tal. Modernamente, a relação entre a

palavra poética e o teor dos poemas foi colocada no centro do tribunal da forma versus o

conteúdo (de onde emergem, grosso modo, tradições formalistas, de um lado, e

conteudistas ou historicistas, de outro, segundo a avaliação de pensadorxs tão distintxs

quanto Judith Butler e Tzvetan Todorov); entre os ataques a tal dicotomia pode-se

destacar um ensaio de Benjamin, do início do século XX, em que aquilo que o filósofo

chama “forma interna” é valorizado como uma força que tensiona os elementos

manifestos do poema em relação às suas densidades de potência, isto é, de vida. Afirma

o filósofo que “o poetificado é uma esfera da relação entre obra de arte e vida, cujas

unidades não são inteiramente apreensíveis.” Na presente exposição, o ensaio sobre

“Dois poemas de Friedrich Hölderlin” serve de guia para compreender de que maneira

cada palavra em um poema responde a uma tarefa infinita. “[A tarefa poética] há de ser

entendida também como condição da poesia, como a estrutura intelectual-intuitiva

daquele mundo de que o poema dá testemunho.” Se o poema conserva as relações vitais,

e se a crítica é capaz de distender as relações estabelecidas para mostrar as relações

possíveis, veremos como em Benjamin a obra acaba por se constituir como um

condensado de possibilidades da própria vida, que na experiência empírica encontra

determinações fechadas e acabadas. Como nos fragmentos sobre a História, talvez

também essa maneira de lidar com o poema tenha alguma relação com aquela “imagem

da felicidade que cultivamos” e que “está inteiramente tingida pelo tempo a que, uma

vez por todas, nos remeteu o decurso de nossa existência.”

Ráfaga Mello - O Positivismo de H.L.A. Hart e a textura aberta da

linguagem (Mesa 3)

RESUMO: No presente trabalho, será esclarecida a concepção de Direito utilizada pelo

jusfilósofo H. L. A. Hart e suas implicações ao conceito de textura aberta da linguagem.

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Ao admitir a necessidade da discricionariedade, o jusfilósofo Hart constrói um

modelo de positivismo mais difícil de se refutar; um modelo que adota uma via

intermediária entre o formalismo radical, de acordo com o qual as regras existentes no

sistema jurídico seriam totalmente claras e capazes de dar conta da realidade jurídica

como um todo, e o ceticismo em relação a capacidade das regras de oferecerem uma

determinação legal. Hart defende a posição intermediária dizendo que no âmbito do

direito surgem casos simples que podem ser resolvidos por regras claras e os hard cases

que devem ser resolvidos por critérios que estão além das regras válidas que compõem o

direito.

Assim, o que torna possível essa postura de Hart é o conceito de textura aberta

da linguagem (cunhado por Friedrich Waismann, derivado dos jogos de linguagem de

Wittgenstein e aplicado ao direito por Hart), que evidencia a existência de uma região

de significado onde não conseguimos determinar se a palavra se aplica ou não. Pois,

conceitos empíricos em geral não apresentam uma definição exaustiva, ou seja, raros

são os conceitos que se encontram delimitados de forma que não surjam espaços para

dúvida sobre o seu significado.

A consequência da textura aberta da linguagem para o direito é que as regras

jurídicas apresentam instâncias em que as suas aplicações são claras, a possibilidade da

existência de casos fronteiriços nos quais não sabemos se as regras devem ser aplicadas

ou não, instâncias nas quais claramente não devem ser aplicadas e as regras que estão na

região de penumbra. De acordo com Hart, o direito funciona porque a maioria dos casos

a serem decididos pelos tribunais podem ser facilmente enquadrados dentro do núcleo

de significado dos termos gerais que compõem as regras.14

Assim, temos que a deliberação acerca da aplicação da regra num caso concreto

muitas vezes incide na questão sobre o significado ou na amplitude de um termo geral

inserido na regra. O exemplo clássico utilizado por Hart é a norma: “É proibida a

entrada de veículos no parque”. A aplicação dessa regra vai depender sobre a

possibilidade de classificar o objeto como sendo ou não um veículo. E mais, se um

determinado ambiente é ou não um parque. 15

Concordamos que tal regra foi criada pretendendo barrar a entrada de certos

veículos no parque. Porém, quando o juiz se depara com um caso concreto no qual a

14 STRUCHINER, Noel. Direito e Linguagem: Uma Análise da Textura Aberta da Linguagem e sua Aplicação ao Direito. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 115. 15

Ibidem.p.69.

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discussão gira em torno da perspectiva de um skate, bicicleta, avião, patins, carro

elétrico de brinquedo serem ou não veículos, o juiz estará diante de alguns impasses.

Como o legislador não antecipou esse caso no momento da criação da regra, cabe ao

juiz decidir se o caso em questão é suficientemente semelhante, em todos os aspectos

relevantes, aos casos paradigmaticos para receber o mesmo tratamento.16

Por fim, é importante destacar que se existe essa possibilidade de interpretação por

causa da textura aberta do direito, e se estamos sujeitos a escolher algum dos lados da

lide, utilizaremos um meio de persuasão a nosso favor. E são exatamente nesses casos

que transcendem o núcleo de certeza dos juristas que a Retórica provocará o seu efeito

de uma forma visível e imprescindível, ainda que dentro dos limites da ordem jurídica.

Roberto Torviso Neto - Cosmópolis: o paradoxo da cidade no cinismo

(Mesa 1)

RESUMO: Ainda que o foco das atribuições de um espírito cosmopolita no epicurismo

e no estoicismo durante o período helenístico da filosofia, o termo kosmopolites teve

seu emprego mais antigo até então associado ao cinismo Diógenes de Sinope (412-323

a.C.). Tal caso encontra-se relatado a posteriori na doxografia relatada por Diógenes

Laércio na obra Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres: "Interrogado sobre sua pátria

ele respondeu: 'sou um cidadão do mundo'" (D.L., VI, 63).

A filosofia dos “cães”, tal como eram conhecidos os cínicos, é famosa por seu desapego

de bens materiais, seus discursos mordazes e aversão às convenções sociais, desde os

valores e costumes até a própria instituição política. As principais influências na

formação dos fundamentos de sua filosofia são Antístenes, quem fora um conhecido

sofista, aluno do próprio Górgias, antes de tornar-se discípulo de Sócrates, estando junto

ao mesmo no momento derradeiro (Cf. Fédon) e posteriormente estabelecendo os

princípios filosóficos cínicos durante seu tempo de ensino no Cinosargo (kynosarges); e

o sofista Hípias, defensor e possível formulador da ideia de “lei natural” (ex:

Protágoras de Platão, 337c-d) que também foi interlocutor de Sócrates nos diálogos

considerados aporéticos ou “da juventude”.

Quanto ao cosmopolitismo, esta forma de ver encarar a vida em comunidade é

demasiado contrária às teorias de Platão e Aristóteles para quem, cada qual a seu modo,

a vida em comunidade era exclusivamente benéfica. Inclusive, a identidade de um

16 Ibidem. p.70,

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sujeito naquele tempo estava diretamente ligada antes de qualquer coisa ao vínculo a

uma pólis, aspecto facilmente notado ao nos referirmos, por exemplo, a Tales de Mileto

ou Heráclito de Éfeso. Eis aqui, porém, uma contradição. Certamente que os cínicos

objetivavam levar a vida o mais adequado à phýsis quanto possível e eram contrários à

vida urbana tal com ela se realiza em uma comunidade com normas artificiais (nomos).

Deste modo, a solução mais coerente parece ser o autoexílio, uma vez que a insatisfação

com as Leis, ao menos em Atenas, “não impede quem quer que o deseje de partir para

uma colônia; de ir se estabelecer como meteco para o estrangeiro; de partir para onde

quiser levando seus bens”, como declara Sócrates no diálogo Críton; embora complete

que, se decide residir na pólis ateniense, então obriga-se a obedecê-las.

Então os problemas se revelam de duas naturezas distintas. Primeiro, o problema se

apresenta de caráter teórico na medida em que, ao afirmar ser cosmopolita, Diógenes se

posiciona contrário ao vínculo tradicional entre indivíduo e comunidade de modo que

até umas décadas atrás era visto como uma postura negativa quando, na verdade parece

bastante positiva no ponto em que ele não rejeita a pólis, mas expande sua concepção.

Por consequência, o segundo problema é de caráter prático, pois, uma vez que Diógenes

critica a pólis, suas instituições artificiais e as convenções sociais de seus cidadãos, é

intrigante que haja uma insistência do filósofo cínico em permanecer no meio urbano

que soa tão abominável para sua postura filosófica. Então a pergunta que surge é: qual

seria relação existente e/ou ideal entre cínicos e póleis?

A resposta parece sugerida por Platão quando este referiu a Diógenes como “um

Sócrates demente” (D.L., VI, 54). Tal como o maiêutico, Diógenes não nos legou

nenhum registro escrito de sua filosofia para além do que a doxografia nos conta,

embora sejam atribuídas ao mesmo algumas obras, incluindo sete tragédias, mas não

chegaram até nós. Além disso, o ponto em comum entre Sócrates e os cínicos reside na

ênfase de uma filosofia mais prática do que teórica e, trazendo à pauta o papel

pedagógico do filósofo na Alegoria da Caverna, não soa tão estranho uma pedagogia

cínica.

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Sérgio Moreira - Bergson e o conceito de duração no contexto da obra

Ensaio sobre os dados imediatos da consciência (Mesa 10)

RESUMO: A comunicação a ser apresentada visa fazer uma exposição sobre o conceito

de “duração” no pensamento do filósofo francês Henri Bergson (1859-1941) e

relacionar os papéis que os conceitos de “multiplicidade” e de “diferença” possuem para

a duração da vida interior consciente no contexto da obra Ensaio sobre os dados

imediatos da consciência, de 1889, fruto de sua tese de doutoramento.

Com o seu Ensaio sobre os dados imediatos da consciência, Bergson posicionou-se

como um crítico do discurso da psicologia experimental da sua época. Contra esse

discurso, dominado pelo cientificismo e pelo positivismo, é que Bergson pretendeu

formular uma resposta à psicologia experimental do século XIX através de sua primeira

obra filosófica, que é a norteadora da comunicação que será apresentada. O filósofo

francês demonstrará que o equívoco da psicologia científica do seu tempo foi tentar

reduzir estados interiores à consciência a fatos passíveis de quantificação, mensuração e

análise, confundindo o tempo cronológico com o tempo vivido como duração.

Bergson não aceita as pretensões da psicofísica e da psicofisiologia de tratar as

ocorrências da vida psíquica em correlação com elementos fisiológicos. E o

posicionamento crítico do filósofo se dá em virtude de que, para ele, há um grande

equívoco na ciência ao querer tratar de momentos que se desenrolam no tempo como

fatos que se justapõem no espaço. Para Bergson, o erro capital da psicologia

experimental foi o de querer tomar os fenômenos que se dão na vida consciente como

fenômenos passíveis de mensuração e contagem; fato que a levou a operar “uma

tradução ilegítima do inextenso em extenso”17 e naturalizar o pensamento. O filósofo

será levado a assumir, inicialmente, uma posição de cunho ontológico quanto à questão

da distinção dos domínios do corpo e do espírito (posição que ele tomará no Ensaio),

mas sem abrir mão de pensar posteriormente em Matéria e Memória – sua segunda

obra, publicada em 1896 – “o problema da relação do espírito com o corpo”18, isto é, o

estatuto da relação entre ambos. Nesse sentido, é preciso que o filósofo não só tome de

saída uma posição sobre o problema metafísico entre corpo e espírito para que ele

salvaguarde a metafísica, redefinindo-a sob novas bases, mas também introduza, de

forma muito original, a ideia de “duração” em sua filosofia.

17 Cf. Bergson, H. Essai, prefácio. 18 Cf. Bergson, H. Matière et mémoire, p.3.

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No Ensaio, Bergson adotará uma estratégia para apresentar seu conceito de duração,

chave para a compreensão do conjunto de suas obras filosóficas. Ele procurará mostrar,

de início, como os conceitos de “multiplicidade” e de “diferença” podem se reportar

tanto ao espaço como à duração, caso tomemos a multiplicidade e a diferença em seu

sentido “quantitativo” ou “qualitativo”. Bergson acrescenta que o próprio verbo

“distinguir” possui dois sentidos, um “quantitativo” e outro “qualitativo”; “(...) estes

dois sentidos foram confundidos, acreditamos nós, por todos aqueles que trataram das

relações com o espaço”19.

O tema da duração tem repercussões atuais tanto no campo da ciência como no da

própria filosofia. O último quarto do século XIX – em cujo contexto se encontra o

pensamento inaugural de Bergson – representa para a história da filosofia o início de um

“corte”, sendo certo que seus desdobramentos se fazem sentir até os dias atuais.

Simã Catarina de Lima Pinto – A política deliberativa como

alternativa para a legitimidade democrática (Mesa 11)

RESUMO: A teoria discursiva proposta por Jürgen Habermas apresenta uma

alternativa política para o Estado Moderno. Para apresentá-la, Habermas diferencia duas

concepções normativas de Democracia, ambas caracterizadas por uma política que se

centraliza no Estado; trata-se da concepção liberal e da concepção republicana de

democracia, as quais se contrapõem essencialmente, embora a centralidade das decisões

permaneça na figura do Estado. A partir disso, pretende-se, com o presente trabalho,

demonstrar como uma terceira alternativa política pode contribuir para o

aperfeiçoamento democrático nas sociedades contemporâneas: a política deliberativa.

Nela é possível vislumbrar a legitimidade democrática por meio de um conceito mais

forte de autonomia, uma vez que a política deliberativa se caracteriza pela conjugação

das duas concepções normativas de democracia, retirando delas os elementos que,

juntos, podem fortalecer o caráter participativo da democracia, de forma que a soberania

popular se disperse na sociedade e não se caracterize pela centralização no Estado. Com

isso, pode-se verificar a formação de uma autonomia mais legítima, já que composta

tanto pelo caráter público quanto pelo caráter privado, o que se dá em razão de os

indivíduos serem ao mesmo tempo autores e destinatários das normas, isto é, a política

deliberativa viabiliza espaços públicos não institucionais a fim de que as normas

19 Cf. Bergson, H. Essai, p.56.

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possam ser discutidas diretamente por aqueles que elas atingirão. A legitimidade

democrática, com base no Autor, diz respeito à observação de dois tipos de autonomia

jurídica: aquela composta de um caráter público, enquanto os cidadãos são autores das

normas jurídicas; e outra que se distingue por um caráter privado, pelo qual os cidadãos

são os destinatários das normas jurídicas. Este último é relativo à obrigatoriedade do

Direito de remontar a processos administrativos e jurisdicionais. A junção do exercício

de ambas as autonomias, a pública e a privada, contribui para que haja legitimidade

democrática. A autonomia do sujeito de direitos pressupõe que tanto a liberdade

individual do sujeito privado quanto à liberdade pública do cidadão sejam possíveis

reciprocamente, razões pelas quais a autonomia política do cidadão compreende os

sujeitos e cidadãos como co-autores dos direitos aos quais eles mesmos devem prestar

obediência. Assim, se por um lado, o republicanismo dá primazia à autonomia pública a

qual alude à soberania popular e ao reconhecimento dos direitos à participação; por

outro lado, o liberalismo dá primazia aos direitos humanos. No republicanismo, a

autonomia ganha corpo na auto-organização de uma comunidade que decide as leis as

quais vai se submeter, o que a caracteriza como uma autonomia pública, já que a própria

comunidade, por meio de seus cidadãos, é quem decide quais serão as leis a que vão se

submeter. Por sua vez, a autonomia privada advém dessas mesmas leis, por se referir

aos destinatários privados das normas. Trata-se, portanto, de uma autonomia vinculada

à ideia democrática de autolegislação. Nesse sentido, a autonomia privada dos cidadãos,

de acordo com Habermas, é assegurada pelos direitos fundamentais, o que permite que

haja o “médium” para a institucionalização jurídica das condições sob as quais os

sujeitos de direito podem fazer uso da autonomia pública ao desempenharem seu papel

de cidadãos.

Uriel Nascimento - Narrativa e experiência como conceitos

fundamentais à obra hegeliana (Mesa 10)

RESUMO: Muita se fala, nos estudos hegelianos, sobre os conceitos por ele cunhados

ou utilizados. Assim dialética, Espírito Absoluto, negação determinada e outros ocupam

uma série de trabalhos dos comentadores, tendo suas minúcias expostas, suas

necessidades e seus encaixes muito bem determinados. Muito também se fala, no

mesmo passo, sobre o conteúdo efetivo colocado em suas narrativas históricas. Desde

uma crítica pós colonial que tenta abstrair da filosofia da história de Hegel seu contexto

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histórico e seus problemas centrais até uma crítica das sobre o conteúdo das Lições

hegelianas sobre estética, todos os momentos nos quais alguma tentativa de organização

de conteúdo efetivo feita por Hegel foi empreendida já recebeu algum tipo de crítica.

Gostaria de argumentar que tais críticas, se não podem ser provadas como falsas porque

de fato elucidam um limite da filosofia hegeliana – é o sentido kantiano de crítica –

perdem o ponto da obra de Hegel. Não se trata, para ler sua obra, de pensar apenas nos

limites dos conteúdos efetivos por ele oferecidos, mas sim de pensar na maneira pela

qual o autor organiza os conteúdos para conferir-lhes inteligibilidade. Dito de outro

modo, para se ler a dimensão histórica intrínseca à filosofia de Hegel, deve-se pensar na

exposição desta em termos metodológicos e não apenas em termos de conteúdo efetivo.

Nesse sentido, então, quaisquer críticas aos conteúdos efetivos da obra hegeliana, se

podem afetar a recepção da obra hegeliana de um ponto de vista político raso, perdem

precisamente o coração do que é a metodologia de Hegel, a saber, sua exposição

narrativa.

Defendo, então, que quaisquer leituras da filosofia da história de Hegel precisam

se haver antes com a dimensão profundamente narrativa de todos os seus escritos posto

ser esse o método hegeliano de exposição da história. Trata-se, portanto, de pensar a

forma de escrita filosófica adotada por Hegel para expor a estrutura do real como

pensamento, isto é, como dialética e de mostrar como essa estrutura racional se desvela

na história. De maneira mais simples, no momento mesmo em que não se trata mais de

expor a estrutura da realidade sem quaisquer determinações efetivas – trabalho

empreendido por Hegel na grande Lógica e em menor escala de complexidade na

pequena também -, ou seja, no momento em que se trata de mostrar o Espirito Absoluto

em seu processo de rememoração dos eventos ocorridas na história, Hegel dependerá da

narrativa como metodologia de exposição. Isso se deve à natureza mesma do ato

rememorativo, ato que deve conferir inteligibilidade racional (lembrando que racional,

em Hegel, é sempre também dialética) a uma série de eventos que, à primeira vista,

parecem disjuntos.

O presente trabalho visa expor, então, de que maneira a exposição da história por parte

de Hegel passa, necessariamente, pelo conceitos de narrativa como método de

exposição, e tem na experiência da consciência que lê – posto que a consciência lendo a

obra de Hegel é, também, o Absoluto se conhecendo – o seu contraponto tenso e,

portanto, dialético. Assim sendo, narrativa e experiência serão apresentados como

conceitos centrais à compreensão da filosofia da história de Hegel e tal exposição

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demonstrará a futilidade das críticas aos conteúdos efetivos, posto serem estas críticas

demasiado simples.

Verena Costa – “É o homem!”: subjetividade e esclarecimento em

Adorno e Horkheimer (Mesa 11)

RESUMO: Este trabalho busca lançar luz sobre as relações entre a gênese do sujeito o

conceito de Esclarecimento no pensamento de Theodor Adorno e Max Horkheimer na

obra “Dialética do Esclarecimento” (1947), especialmente no prefácio e nos “excursos”

I e II. Ele faz parte da pesquisa desenvolvida por mim no mestrado em Ciência Política

entre 2013 e 2016 sobre a filosofia de Walter Benjamin e sua concepção de destino. O

objetivo deste trabalho é mostrar como no pensamento de Adorno e Horkheimer houve

uma crítica bastante dura não ao Iluminismo como fato histórico, mas às consequências

epistemológicas, éticas e políticas que essa estrutura de pensamento legou ao ocidente

de forma geral. O que Adorno e Horkheimer buscam provar é que, contrariamente a um

certo discurso que define o Esclarecimento como um marco epistemológico que dividiu

a história do ocidente entre um passado mítico e mágico e um presente e futuro nos

quais esse pensamento já estaria superado, o fenômeno do Iluminismo, chamado por

eles de Esclarecimento, é uma continuidade da lógica mítica que supostamente busca

superar. Seu argumento principal é o de que as ideias concebidas no Iluminismo se

tornaram paradigm áticas na epistemê ocidental e que, apesar de seu discurso de

afastamento das concepções míticas/religiosas anteriores a ele, são na verdade uma

reencarnação do pensamento mítico sem que o elemento mítico esteja explicitamente

exposto (Adorno e Horkheimer, 1985).

Na esteira de Kant, eles se referem ao Escla recimento ( Aufklärung) como um processo

de auto-emancipação intelectual em relação à tradição e aos costumes, obedecidos antes

sem reflexão (Kant, 2016). Nas palavras de Kant, o Esclarecimento é a superação pelo

ser humano do estado de minoridade, definido como “a incapacidade de se servir do seu

próprio entendimento sem a tutela de outro” (Kant, 2016: 1). Neste sentido, o

Esclarecimento deve ser compreendido como o processo de autonomia que, tornando o

homem senhor de seus próprios pensamentos, o permite tornar-se senhor da natureza do

mundo que o cerca (Adorno e Horkheimer, 1985; Kant, 2016). O entendimento racional

é aquele que, graças a sua própria coerência, produz operações que apresentam um tipo

de afinidade sistemática, ou seja, formam uma unidade coletiva. A produção dessa

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unidade é a tarefa do método científico; mais que isso, esta deve ser a verdadeira tarefa

da razão e do pensamento como um todo. O pensamento, no Esclarecimento kantiano,

funciona a partir de um esquema que os autores dizem marcado pela “inteligibilidade da

percepção”, ou seja, a ideia de um sujeito que imprime características aos objetos para

que, dessa forma, eles sejam percebidos pelo sujeito. Nesse sentido, a resposta de Édipo

à Esfinge “É o homem!” seria a informação esteriotipada a qual reiteradamente o

pensamento esclarecido remete.

Uma das consequências desta operação de interiorização da verdade é a adoção da

unidade como medida da epistemologia esclarecida. A unidade se torna necessária por

seus efeitos: com ela, é possível equacionar todos os elementos do mundo em uma

ordenação lógica. Não é como se a unidade fizesse parte da natureza; por si própria, a

ausência de unidade e ordenamento na natureza é uma fonte de angústia para a mente

esclarecida. A unidade é uma ferramenta do pensamento para organizar a natureza e

permitir sua melhor dominação. E a primeira unidade, a unidade universal, aquela da

qual todas as outras derivam, não poderia ser outra senão a unidade do próprio

pensamento, a unidade do sujeito. É a partir dessa unidade que o homem pode perceber

as outras unidades, criá-las, manipulá-las, utilizá-las para produzir novas unidades,

intercambiá-las, etc. O conhecimento esclarecido se dá no âmbito do que Michel

Foucault chamou de mathesis, da mensurabilidade, do cálculo e da contabilidade

(Foucault, 2000).

Vitória da Silva – A dupla crítica de Husserl em Prolegômenos e sua

importância para o surgimento da fenomenologia nas origens da

filosofia contemporânea (Mesa 12)

RESUMO: O presente trabalho tem como intuito abordar, a propósito do debate sobre a

fundamentação da lógica no final do sec. XIX, a dupla crítica anunciada por Edmund

Husserl, em Prolegômenos à Lógica Pura (volume propedêutico às Investigações

Lógicas, publicado em 1900). Mais precisamente, as referidas críticas incidem sobre os

dois modos de conceber a fundamentação da lógica em voga naquele período,

representados, respectivamente, pela posição dita “psicologista” e pelos adeptos da

concepção da lógica formal como disciplina normativa. Busca-se avaliar a importância

de tais críticas para a abertura de uma terceira via de investigação nas origens da

filosofia contemporânea, por meio da qual se tornou possível o surgimento da própria

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fenomenologia. Em linhas gerais, o psicologismo sustenta a tese de acordo com a qual a

lógica seria reduzida a um subcampo da psicologia, cujo propósito seria o de investigar

as operações causais (psicofisiológicas), determinantes do ato de julgar. Nesta

concepção, o ato e o seu conteúdo são colapsados, isto é, confunde-se a vivência do ato

de pensar com o conteúdo ideal do pensamento. Para Husserl, tal confusão leva-nos,

inevitavelmente, a um ceticismo que se autocontradiz, pois, ao tomar o conteúdo ideal

do pensamento por sua vivência empírica, a natureza empírica e contingente da vivência

psicológica é estendida, invariavelmente, ao seu conteúdo. Esse fato implica, por sua

vez, no comprometimento da própria noção de “verdade” (entendida em termos

lógicos), visto que essa estaria condicionada pelas circunstâncias empíricas do ato de

pensar e perderia o seu status do que é necessário e universal. Por outro lado, em

relação aos lógicos ditos “normativos”, ou seja, aqueles para os quais a lógica é,

primeiramente, uma disciplina formal cuja finalidade seria a de prescrever as normas

segundo as quais opera o pensar (normas que, supostamente, seriam válidas e extensivas

a todos os entes racionais), Husserl reconhece o mérito dos adeptos de tal posição, uma

que os mesmos não incorrem, tal como os psicologistas, no equívoco de confundir os

domínios do real (ato/vivência do pensar) e do ideal (conteúdo do ato). No entanto, o

autor alerta-nos para o fato de que, ao definir a lógica enquanto uma disciplina

meramente prescritiva, os lógicos normativos não se deram conta de que as leis lógicas

enquanto tais não são essencialmente normativas, mas possuem, em razão do seu caráter

puramente teorético, o que seria apenas uma “vocação” para se normatizar. Tais lógicos

não se apercebem, com isso, que os princípios lógicos não prescrevem, em sua origem,

quaisquer preceitos normativos. Além disso, ao distinguirem os domínios do real e do

ideal, os lógicos normativos o fizeram de modo unilateral, isto é, reduziram a lógica a

um domínio meramente formal, desvinculado da vivência psicológica. Nos termos de

Husserl, tal posição formalista revela “incorreções” no pensamento dos lógicos

normativos, dado que, em tom kantiano: dizer que a apreensão intelectiva do conteúdo

lógico do pensamento comece com uma vivência psicológica do pensar não nos autoriza

a dizer que tal conteúdo lógico derive, sob o modo de uma inferência indutiva, de tal

vivência psicológica. Grosso modo, não basta afirmar a distinção entre tais domínios;

antes sim, é necessário que se discuta o estatuto da relação entre os mesmos. Husserl

transmite-nos, assim, importantes lições em Prolegômenos: a primeira delas seria a de

que a probabilidade não pode se impor à verdade (isto é, não podemos extraí-la dos

fatos, pois dos mesmos somente inferimos generalizações vagas da experiência); já a

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segunda lição ensina-nos que há uma vivência de apreensão da verdade, ou seja, a

verdade não se dá algures no vazio (o que, por si só, nos obriga a não perder de vista o

importante problema da relação entre o real e o ideal).

Viviana Ferreira – Para pensar a filosofia política de Deleuze:

literatura menor (Mesa 7)

RESUMO: Em Deleuze, Os Movimentos Aberrantes, David Lapoujade escreve o

seguinte acerca do problema político das minorias e da linguagem: “Uma das

características das minorias é precisamente a de serem desprovidas de direitos e de

não disporem de nenhuma linguagem preexistente para estabelecê-los. O que podem

pretender? Qual língua, para aqueles que não falam, que não conseguem falar, mesmo

em sua língua? Qual expressão para o analfabeto, o idiota, o gago, o mal visto e o mal

dito à la Beckett, conforme tentam fazer jus às minorias que os povoam? Qual

existência para o pensamento que não dispõe de nenhum meio de expressão

preexistente para se dizer, se escrever se figurar? “[...] como chegar a falar sem dar

ordens, sem pretender representar algo ou alguém, como conseguir fazer falar aqueles

que não tem esse direito, a devolver aos sons seu valor de luta contra o poder?” Isso

quer dizer que se “Escreve-se em função de um povo por vir e que ainda não tem

linguagem”

A todo momento, encontramos na obra do filósofo Gilles Deleuze o problema político

da criação artística e filosófica voltado para invocação de um povo por vir. Em O que é

a filosofia? Deleuze cita Artaud para dizer que devemos escrever para os analfabetos,

falar para os afásicos, pensar para os acéfalos. De acordo com o pensamento filosófico

de Deleuze, este “falar para” não significa, de forma alguma, no lugar de, nem em nome

de, nem representando alguém, mas sim, falar para quem não tem voz, não tem língua,

não tem terra. Para um povo que resiste, que está por vir e está por criar uma nova terra,

ensejando novas maneiras de viver. Em entrevista publicada em 1988, Deleuze disse a

frase citada por Lapoujade: “Escreve-se em função de um povo por vir e que ainda não

tem linguagem”. E ainda mais: “Criar não é comunicar, mas resistir”.

A criação artística para Deleuze é indissociável da resistência e da criação política. Para

pensar sobre esses problemas, especialmente, em relação a literatura, proponho como

tema da comunicação o conceito de literatura menor e buscarei destrinchar as três

características fundamentais deste conceito, tal como apresentado por Deleuze e

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Guattari em Kafka – Por uma literatura menor, a saber: que a literatura menor promove

uma a desterritorialização da língua; que se expressa em uma ramificação do individual

no imediato-político; e realiza um agenciamento coletivo de enunciação.

Pretendo também apresentar como o conceito de literatura menor possibilita Deleuze

pensar a política, pois se trata de um conceito estritamente ligado ao problema das

minorias, dos imigrantes e seus filhos: como falar, ou melhor, como desviar a fala, em

um sistema de linguagem hegemônica? Como fugir e fazer fugir – variar e desviar – os

modos de vida do sistema dominante hegemônico? É um problema das minorias, mas é

um problema de todos nós. Não por acaso, Guillaume Sibertin-Blanc escreveu que as

minorias são o coração do pensamento político de Deleuze. Isto posto, compreender o

conceito de literatura menor é imprescindível para compreender toda esta problemática.

Yasmin Jucksch - Dores e prazeres como óbice à filosofia: notas ao

Fédon e ao Filebo de Platão (Mesa 8)

RESUMO: Se no Fédon de Platão certos prazeres, emoções ou esperanças são descritos

como graves entraves à sabedoria, no Filebo estas diversas categorias de fenômenos

somáticos e psicológicos são analisadas muito mais detidamente de forma a mostrar por

que e sob que aspecto elas podem ser, em grande parte, ilusórias e danosas à alma.

Buscaremos compreender, portanto, como é possível a Platão afirmar que um prazer ou

dor podem ser falsos, já que isso é evidentemente contraditado pela experiência: pois

como seria possível atribuir um predicado epistemológico a um estado plenamente

afetivo? Visamos, com a resposta a essa questão, argumentar que os prazeres a serem

evitados no Filebo são exatamente os mesmos evitados pelo filósofo no exercício de

morte do Fédon. Considerando toda a escala ilimitada do prazer, Sócrates a divide, no

Filebo, em inumeráveis prazeres binários (formados necessariamente por prazer e dor),

de um lado, e prazeres puros, em menor número: “(...) das coisas agradáveis [ou seja, de

toda a escala], poucas são boas e muitas ruins” (Filebo, 13b). Mas o que significa

identificar prazeres binários com a falsidade ou o mal e certos prazeres puros com a

verdade ou o bem? Essa tese forte leva Sócrates a enfrentar a visão comum de que todo

prazer é bom, da qual Filebo e Protarco são partidários. Sócrates começa o

enfrentamento expondo diretamente a questão principal: “(...) nenhum argumento

contesta o fato de que coisas prazerosas são prazerosas. Sustentamos, sim, que, embora

a maioria das coisas prazerosas seja má, há coisas prazerosas boas; e, no entanto, tu

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chamas a todas elas de boas, mas se alguém te pressionar com argumentos acabarás

concordando que são dessemelhantes. O que há, exatamente, de mesmo nos maus, assim

como nos bons prazeres, para que seja possível chamares todos os prazeres de bons?”

(13a-b). Buscaremos acompanhar a objeção platônica a tal proposição tomando como

referência o artigo de Neil Cooper, Pleasure and Goodness in Plato´s Philebus (1968),

para compreendermos como se estrutura o argumento platônico que nega

peremptoriamente que o prazer possa ser sempre e sob qualquer condição identificado

com o bem, e da mesma forma, que a dor seja sempre vista como um mal. A partir

disso, visamos encontrar elementos que subsidiem a obscura proposição, encontrada no

Fédon, de que a afetação excessiva pelo prazer está relacionada ao maior de todos os

males humanos.

Yasmin Nigri - Os Princípios Fundamentais da Teoria Crítica no

Pensamento de Max Horkheimer (Mesa 11)

RESUMO: Fundado em 1924, o Instituto para a Pesquisa Social (Institut für

Sozialforshung) é orientado por um marxismo não filiado aos partidos comunistas; suas

investigações científico-filosóficas têm por objetivo ampliar os horizontes teóricos do

marxismo. Não se trata de repetir Karl Marx (1818-1883), mas de continuar com a sua

obra rompendo com as previsões e não com os princípios críticos por ele estabelecidos.

Ao assumir a direção do Institut, em 24 de janeiro de 1931, Max Horkheimer (1895-

1973) propõe a “interpenetração progressiva entre a filosofia e as ciências particulares”;

para tanto, seria necessário a “reformulação dos fundamentos das ciências sociais e da

cooperação entre os especialistas visando a uma síntese filosófico-sociológica

superior”20

Em sentido amplo, a Teoria Crítica visa superar a distância entre teoria e prática e

apresenta pela primeira vez a tese de que mostrar como as coisas realmente são – que é

o objetivo de toda teoria no sentido tradicional – só é possível a partir da perspectiva de

como elas deveriam ser. O mundo como ele é hoje abrange, ainda que em germe, o

mundo como ele deveria ser.

Em seus escritos da década de 1930, Horkheimer afirma que produz TC aquele que quer

continuar a obra de Karl Marx, ou seja, o conceito de teoria crítica designa um campo

20

DUARTE, Rodrigo. Eventos preliminares da crítica à indústria cultural: contexto de surgimento da

teoria crítica. Primeira reimpressão. IN:Teoria Crítica da Indústria Cultural. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007. p. 16.

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teórico anterior à obra de Marx. A TC, em sentido amplo, distingue as teorias de Marx

das demais teorias, o que implica dizer que na perspectiva da TC a verdade é temporal e

histórica.

Para Marx, o capitalismo, em contraste com qualquer forma histórica anterior, é o

sistema que organiza a vida social em torno do mercado, portanto, para entender a

sociedade é necessário entender o mercado.

Pelas análises do filósofo, o mercado é um poderoso mecanismo de manutenção das

desigualdades que já existiam, congelando essas desigualdades de partida e,

subsequentemente, aprofundando-as. Por um lado, a crescente acumulação de riquezas,

por outro, a crescente pobreza.

O que Marx faz é, a partir das análises dos fenômenos e suas conexões no mundo em

sua época, oferecer estratégias para romper com o bloqueio das promessas ilusórias,

intrínsecas ao sistema capitalista. Para tanto, Marx aponta que as promessas de

liberdade e igualdade só irão se realizar com a abolição do capital por meio da

revolução. O estado de consciência da sua própria posição é que faria o proletariado se

rebelar; de acordo com Marx e Engels, à medida que o proletariado se tornasse mais

consciente de sua opressão, ele se voltaria contra o sistema que criou essa opressão, mas

nunca houve uma consciência de classe para a qual o proletariado europeu ou americano

pudesse acordar.

Por que a classe trabalhadora não se rebelou contra os donos do capital, as grandes

corporações ou os partidos políticos que alimentavam as desigualdades? Por que as

massas não se rebelaram contra a opressão do nazismo e do fascismo? O que fez com

que as massas cooperassem com a opressão e o controle e perpetuassem práticas que os

tornavam seres menos humanos, livres e capazes? Quando a opressão se torna cada vez

mais visível, o que motiva as massas a assumirem o lugar de agentes participativos em

sua própria opressão e dominação?

Este trabalho apresentará as influências freudo-marxistas na fundamentação da TC de

Horkheimer, assim como atualização dos diagnósticos e previsões feitos por Marx pelo

filósofo, com foco na persistência da dominação, apesar das possibilidades de

libertação.

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MINICURSOS

Estoicismo e Consumismo: sala 307

Prof. Fernanda Oliveira

O curso propõe um diálogo entre as análises de Bauman sobre a problemática do

consumismo contemporâneo e as possíveis respostas da Filosofia Estoica de Epicteto e

Marco Aurélio.

Sobre a escrita do ensaio: sala 308

Profs. Bruno Jalles, Daniel Gilly e Jessica Di Chiara

A reflexão sobre a materialidade da escrita é um problema central a ser enfrentado por

toda a filosofia contemporânea, e deixa cada vez mais urgente a necessidade de uma

discussão sobre o estilo próprio da escrita filosófica, enquanto uma forma literária. O

objetivo do minicurso é debater a proximidade entre arte, filosofia e ciência no exercício

da escrita filosófica, de onde se destaca a forma do ensaio como expressão mais livre e

de maior potencial crítico.

Partindo do texto "O ensaio como forma", de Theodor W. Adorno, e passando por

autores como Walter Benjamin e Georg Lukács, pretendemos debater sobre as

principais características dessa forma, assim como o seu fundamento como uma escrita

desejante, uma escrita do particular, contraposta à objetificação e alienação no mundo

administrado do capitalismo; e por isso mesmo também uma escrita de resistência, de

contestação da ideologia.