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1 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 161, ago. 2007. EDITORIAL “Il n’y a pas de formation du psychanaliste, il n’y a que des formations de l’inconscient” J. Lacan E ste número do Correio da APPOA é dedicado à publicação dos tra- balhos que foram apresentados na Jornada do Percurso de Escola, produzidos ao final da experiência de trabalho realizada por alguns daqueles que empreenderam esse percurso durante três anos de convívio e interlocução. A propósito de percurso como o exercício de certa passagem, lem- bremos W. Benjamin, grande apaixonado pela questão das passagens, no que ele propunha, quanto à abordagem da cidade: para conhecer uma cida- de é preciso nos deixarmos perder nela, assim como se nos perdessemos em uma floresta. Forma poética de lembrar o importante do deixar-se atra- vessar pela experiência. Essa é, dizendo em poucas palavras, a aposta do Percurso. Não se trata de uma passagem que signifique qualquer tipo de autorização, seja institucional ou autônoma, e sim a possibilidade de passa- gem pelo estudo dos textos sustentadores da psicanálise, no diálogo com aqueles para quem também é preciosa a questão da prática de uma ética, a da psicanálise, sempre fundada no não apagamento da separação entre sa- ber e verdade. A lembrança da cidade aqui não é casual: os trabalhos trazem ecos das interrogações que “encontraram a cada um que se deixou perder-atra- vessar” no exercício de abertura que implica a nossa prática. Questões que vem da escuta atravessada por diferentes contextos e discursos, movimento sempre indispensável para quem se ocupa com o vivo do corte em nosso tempo. Trabalhos em andamento, a coragem de propor as idéias, a fala e a escrita, efeitos.

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1C. da APPOA, Porto Alegre, n. 161, ago. 2007.

EDITORIAL

“Il n’y a pas de formation du psychanaliste,il n’y a que des formations de l’inconscient”

J. Lacan

Este número do Correio da APPOA é dedicado à publicação dos tra-balhos que foram apresentados na Jornada do Percurso de Escola,produzidos ao final da experiência de trabalho realizada por alguns

daqueles que empreenderam esse percurso durante três anos de convívio einterlocução.

A propósito de percurso como o exercício de certa passagem, lem-bremos W. Benjamin, grande apaixonado pela questão das passagens, noque ele propunha, quanto à abordagem da cidade: para conhecer uma cida-de é preciso nos deixarmos perder nela, assim como se nos perdessemosem uma floresta. Forma poética de lembrar o importante do deixar-se atra-vessar pela experiência. Essa é, dizendo em poucas palavras, a aposta doPercurso. Não se trata de uma passagem que signifique qualquer tipo deautorização, seja institucional ou autônoma, e sim a possibilidade de passa-gem pelo estudo dos textos sustentadores da psicanálise, no diálogo comaqueles para quem também é preciosa a questão da prática de uma ética, ada psicanálise, sempre fundada no não apagamento da separação entre sa-ber e verdade.

A lembrança da cidade aqui não é casual: os trabalhos trazem ecosdas interrogações que “encontraram a cada um que se deixou perder-atra-vessar” no exercício de abertura que implica a nossa prática. Questões quevem da escuta atravessada por diferentes contextos e discursos, movimentosempre indispensável para quem se ocupa com o vivo do corte em nossotempo. Trabalhos em andamento, a coragem de propor as idéias, a fala e aescrita, efeitos.

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SARGENTO PIMENTA FOREVER

No próximo dia 05 de setembro, a partir das 19h30min, o livro Sargen-to Pimenta Forever estará sendo lançado, no Studio-Clio. Organizado porRobson Pereira, com ajuda dos amigos, a publicação faz uma homenagemaos 40 anos do lançamento do disco Sgt. Pepper’s lonely Hearts

Club Band, dos Beatles, de 1967. Cada autor, pegou uma música doálbum e escreveu a partir dela. Uma maneira de deixar falar as relações coma música e a psicanálise. Forma de demonstrar em ato as articulações entreos psicanalistas e a cultura.

Autores: Alfredo Jerusalinsky, Ana Costa, Edson Luiz André de Sousa,Jaime Betts, Lucia Serrano Pereira, Luciano Elia, Marcus do Rio Teixeira,

SEMINÁRIO “O DIVÃ E A TELA”HOMENAGEM A MICHELANGELO ANTONIONI

COORD. ROBSON DE FREITAS PEREIRAE ENÉAS COSTA DE SOUZA

FILME: BLOW-UP – Depois daquele beijo

Filme emblemático dos anos 60, Blow-up intepretou e anunciou astransformações que estavam em curso no século XX. A hegemonia da ima-gem, o engano do olhar, os impasses da relação amorosa estão todos alísendo dirigidos com maestria por Antonioni.

Data: 12/09/07 – quarta-feiraHora: 19h30minLocal: Sede da APPOAENTRADA FRANCAInscrições prévias na Secretaria da APPOA. As vagas são limitadas

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NOTÍCIAS

Marieta Madeira Rodrigues, Nympha Amaral, Oscar Cesartto, Osvaldo Arri-bas, Otávio Augusto Winck Nunes, Ricardo Goldenberg, Roberto H. Amorinde Medeiros, Robson de Freitas Pereira (org.)

Data: 05 de setembro 2007Hora: a partir das 19h30min.Local: StudioClio – Rua José do Patrocínio, 698

JORNADAS CLÍNICASDA ASSOCIAÇÃO PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGRE

“ANGÚSTIA NA CLÍNICA PSICANALÍTICA”DATA: 20 E 21 OUTUBRO 2007

A psicanálise produziu um estatuto singular para a angústia, ao situá-la no centro da condução dos tratamentos, fazendo, assim, do manejo deseus desdobramentos um dos principais eixos do trabalho psicanalítico.

Discutir “o único afeto que não engana” é cada vez mais importante eatual, pois interroga tanto as neuroses de angústia clássicas (fobias, obses-sões), quanto as psicoses, e mesmo as chamadas “síndromes” e “déficits”dos mais variados matizes.

Este afeto, fundamental e constitutivo, é tema primordial do nossocotidiano, pois, como falantes, somos todos afetados pela linguagem.

PROGRAMA

SÁBADO 20 de outubro

9h30minAbertura

Lucia Serrano Pereira (Presidência da APPOA)

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10hAngústia na ficção brasileira

Coordenação: Lúcia Serrano PereiraMestre Graça: uma angústia nordestina? – Charles Elias Lang (APPOA,Maceió)A angústia de Luís da Silva e o laço de morte – Laura Rangel (APPOA, PortoAlegre)“Angústia” de Graciliano Ramos: algumas observações – Regina Sarmento(Colégio de Psicanálise da Bahia, Salvador)– Debate

14hConceito e práxis psicanalítica no tratamento da angústia

Coordenação: Lúcia MeesA radicalidade do ‘objeto a’, o conceito lacaniano – Carlos Henrique Kessler(APPOA, Porto Alegre)A angústia de Lacan, uma terceira teoria? – Sidnei Goldberg (APPOA, SãoPaulo)– Debate

15hCoordenação: Nilson Sibemberg

O pequeno incrível Hulk – Fernanda Breda (APPOA, Porto Alegre)Peter Pânico – Otávio Winck Nunes (APPOA, Porto Alegre)– Debate

17hTrabalho como lugar para angústiaCoordenação: Alfredo Jerusalinsky

Caminhos da angústia – Elaine Rosner Silveira (APPOA, Porto Alegre)O Outro Institucional: gozo e angústia nas relações de trabalho – RosanaCoelho (APPOA, Porto Alegre)– Debate

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DOMINGO 21 de outubro

10hIncerteza: angústia e o gozo da vida

Coordenação: Ana CostaA angústia que nasce com a vida – Maria Rosane Pereira Pinto (InstitutoJean-Bergès, Porto Alegre)A primeira impressão é a que fica... às vezes – Liz Nunes Ramos (APPOA,Porto Alegre)A angústia do morto – Luciane Loss Jardim (APPOA, Campinas)– Debate

14hAmor e desejo nos tempos do desamparo

Coordenação: Maria Ângela BrasilAngústia e desamparo nas relações amorosas – Marianne Stolzmann Men-des Ribeiro (APPOA, Porto Alegre)O que resta possível entre um homem e uma mulher? – Antônio Pinto deOliveira Neto (Laço Analítico Escola de Psicanálise, Varginha)– Debate

16hLinguagem, corpo e angústia

Coordenação: Robson de Freitas PereiraCorpo e angústia – Daniel Paola (Escuela Freudiana de Buenos Aires)Vergonha, olhar e angústia – José Araújo Filho (Laço Analítico Escola dePsicanálise, Florianópolis)Criação e angústia contemporânea – Jaime Betts (APPOA, Porto Alegre)– Debate

EncerramentoCarmen Backes, Ligia Gomes Victora, Robson de Freitas Pereira

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NOTÍCIAS

Local: Centro de Eventos Plaza São Rafael – Avenida Alberto Bins, 514Porto Alegre/RS

INSCRIÇÕES

Categorias Antecipadas até o dia 08/10/2007 Após ou no localAssociados R$ 90,00 R$ 120,00Estudantes R$ 100,00 R$ 130,00Profissional R$ 120,00 R$ 150,00

INFORMAÇÕES E INSCRIÇÕES:

– Sede da APPOA– Horário de funcionamento da Secretaria da APPOA: De segunda a quinta-feira, das 13h30min. às 21h30min. e as sextas-feiras, das 13h30min. às20h.– Inscrições mediante depósito bancário, para Banco Itaú, agência 0604,conta- corrente: 32910-2. Neste caso, enviar, por fax, o comprovante de pa-gamento devidamente preenchido, para a inscrição ser efetivada.– Estudantes de Graduação deverão apresentar comprovante de matrículaem curso superior.– Inscrições pelo site: www.appoa.com.br, após efetuar a inscrição pelo site,enviar por fax ou por e-mail o comprovante de pagamento devidamente preen-chido.– As vagas são limitadas.

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3ª FEIRA 4ª FEIRA

19h30min– Casos clínicos:Professores: Nilson Sibemberg Ester Trevisan

19h30min– Seminário contextual: Estética eLiteraturaProfessores: Jaime Betts Marieta Rodrigues

21h– Sintoma em FreudProfessores: Rossana Oliva Maria Beatriz Kallfelz

21h– Sintoma em LacanProfessores: Robson Pereira Maria Auxiliadora Sudbrack

2ª FEIRA 3ª FEIRA19h30min– Seminário contextual: LingüísticaProfessores: Valdir Flores Luiza Surreaux

19h30min– Édipo e Castração em FreudProfessores: Maria Lucia Stein Marianne Mendes Ribeiro

21h– Casos ClínicosProfessores: Siloé Rey Jaime Betts

21h– Édipo e Castração em Lacan:Professores: Roseli Cabistani Marta Pedó

PERCURSO DE ESCOLA

Iniciou nos dias 13 e 14 de agosto as atividades do Percurso de Esco-la IX e VIII. Neste semestre, as duas turmas do Percurso estarão trabalhan-do os eixos abaixo detalhados.

PERCURSO VIIIEIXO: SINTOMA

PERCURSO IXEIXO: ÉDIPO E CASTRAÇÃO

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NOTÍCIAS

CONGRESSO DE PARIS E A CONVERGENCIA

Nos dias 15, 16 e 17 de junho realizou-se, em Paris, o Terceiro Con-gresso da Convergência – movimento lacaniano para uma psicanálise feudiana.Foram três dias de trabalhos em dois turnos sob a égide do título: Testemu-nhar a experiência da análise. A APPOA participou com dois trabalhos ( videprograma anexo). O Congresso foi seguido de dois dias de reunião da CEG–Comissão Geral de Enlace; este encontro anual dos delegados de todas asinstituições convocantes da Convergencia que trata dos destinos do movi-mento.

Vamos fazer um breve relato em forma de carta; como uma missivadestinada aos colegas que não puderam estar presentes ao encontro.

Caro colega

Quanto a Convergencia em Paris (Congresso e reunião da CEG), voufazer apenas algumas observações parciais, para este início de discussão.

O Congresso foi na Salpetrière, sala Charcot, a mesma onde Freudassistiu as apresentações das histéricas quando de seus estudos em Paris.Em alguns momentos a sala estava cheia, mas para quem atravessou ooceano, a expectativa era de que mais gente comparecesse a um congressointernacional. Os trabalhos estavam muito bons, tanto no conteúdo quantona forma e discussões. Explico: a tradução simultânea, tão cara a todos nós(em diversos sentidos) funcionou bem melhor, talvez facilitada pelo fato dospalestrantes terem enviado ou levado em mãos seu texto traduzido nas qua-tro línguas oficiais do Congresso(português, espanhol, francês e inglês). Istoparece revelar um maior cuidado dos participantes com a transmissão deseu texto e/ou de sua fala o que ajudou a melhorar um pouco as discussões.Cada instituição dispunha de 45 minutos de tempo, cada uma podia organi-zar apresentação e posterior discussão como lhe conviesse. Mesmo assim,alguns ainda sentiram que precisavam de mais tempo. Ou seja, não há umafórmula que organize um congresso internacional. Ainda temos muito traba-

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lho pela frente se quisermos fazer com que uma troca de experiências possasuperar a barreira da língua e das formações em cada tempo e lugar.

Para não ficar apenas nas descrições organizativas posso dizer que adiversidade temática foi muito interessante; pois mostraram o momento deprodução individual e, um traço de elaboração institucional; uma vez quemuitos dos trabalhos apresentados foram fruto de uma discussão prévia en-tre os membros das associações (caso da APPOA, onde um cartel de traba-lho reuniu-se nos meses anteriores ao evento). Acrescente-se a isto queuma proposta que reúna falas oriundas de mais de quarenta instituiçõessempre possibilita um recorte relevante do movimento psicanalítico interna-cional e suas questões mais importantes.

Da Argentina, onde o movimento Convergencia toma maior força, ascontribuições foram as mais diversificadas possíveis, trazendo análises tan-to da prática em intensão quanto da extensão do campo psicanalítico. Origor conceitual pode nos auxiliar a tomar o discurso social não só como umsintoma a interpretar, mas fazer a função de um significante que nos ajuda apensar a própria psicanálise. Neste sentido, os colegas norte-americanosfizeram um relato sobre as atuais condições de exercício da psicanálise nosEUA, particularmente em Nova Yorque, partindo da atual situação política ede como um pensamento de desconfiança com relação ao estrangeiro entraem choque com a própria formação da subjetividade nacional; pois os Esta-dos Unidos forjaram sua potência acolhendo toda a sorte de imigrantes. Aelaboração deles, longe de ser pessimista, reafirmava a possibilidade efetivado discurso psicanalítico e dos psicanalistas produzirem atos.

Os colegas brasileiros de alguma maneira, mostraram o efeito destesanos de construção de um trabalho em conjunto (temos reuniões anuaisorganizativas e temáticas da CER-Brasil). Pois, muitas das contribuições,além de estarem referidas ao tema da convocatória específica para Paris,traziam a marca das questões que foram alvo de discussões nas reuniõesbrasileiras.

Com relação as associações francesas, uma hipótese foi discutida naCEG, produzida a partir das discussões locais (dos colegas de Paris): elas

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ainda lidam com os efeitos da dissolução da EFP, de Lacan, cuja morteinstituiu agrupamentos com maior ou menor número de membros que en-frentam vicissitudes quando buscam organizar encontros interinstitucionais.O que não parece acontecer quando uma instituição organiza seus própriosencontros e jornadas de trabalho. Inicialmente, poderíamos dizer que diversi-dade mostra a força do movimento psicanalítico, mesmo que ele não tenha amesma pujança dos anos 70/80 e na própria França isto seja sentido comoevidência. De qualquer forma, nesta altura dos acontecimentos e da história,não poderíamos querer o retorno da transferência unívoca. Seria como umsaudosismo do pai perdido. Hoje temos que nos haver com as dimensões doReal , do Simbólico e do Imaginário que perfazem o Nome do Pai. Ou seja,dispensar o pai a condição de passar por seus significantes. Em outraspalavras, nem sustentar pequenos mestres, nem ter a ilusão de que as rela-ções possam ser completamente horizontais. Esta é a premissa que norteiaos trabalhos entre instituições diferentes. A psicanálise nos ensina que oreconhecimento das diferenças é da ordem do necessário, a começar pelaprópria definição do que seja um significante. A pergunta que podemos nosfazer é se esta dificuldade, este efeito fica circunscrito apenas aos francesese parisienses em particular; ou se nos encontramos frente a um sintoma aoqual é preciso nomear e fazer atos que introduzam um corte necessáriopara seu desenlace e posterior (logicamente) novo enlace. Isto nos implicaa todos e não somente aos franceses. Talvez seja boa ocasião para umtrabalho conjunto. Me parece que nós brasileiros temos uma experiência notrato com estas dificuldades interinstitucionais. Nossa tolerância as diferen-ças consegue estar coerente com os princípios que norteiam Convergência.Por isto e por nossas dificuldades também, temos uma responsabilidadecom o Movimento. Você pode dizer; todos temos , desde o momento emque assinamos a convocatória. Mas a possibilidade de elaboração é dife-rente em cada tempo e lugar. Aqui no Brasil temos o desafio de consolidara aposta entre as oito instituições que já trabalham juntas, fazendo comque suas discussões avancem nas questões realmente cruciais para a psi-canálise. Além disto, ampliar o laço com outras associações que tem um

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trabalho reconhecido no campo psicanalítico e podem desejar trocar suaexperiência.

Na reunião da CEG, posterior ao Congresso que terminou domingo(trabalhamos na segunda e terça-feira intensamente) tomamos algumas de-cisões importantes. Uma delas, aprovação de uma moção de apoio e reco-nhecimento ao grupo que compõe a Comissão de Enlace Regional Francesaque organizou o Congresso enfrentando diversas dificuldades. Além disto,foram aceitas as propostas de entrada no movimento de três novas institui-ções, uma da América Latina, uma da Bélgica e outra da China.

O próximo Congresso ficou para 2009, em Buenos Aires, com tema aser definido até a próxima reunião da CEG. Foi o reconhecimento de que nãohá possibilidades de fazê-lo ainda em 2008 como havia sido previsto anterior-mente.

A FID – Função de Informação e Difusão – continua por mais um anona Argentina e passa para o Brasil no ano seguinte.

A próxima reunião da Comissão de Enlace Geral, reunindo todas asinstituições convocantes acontece em 2008, no Brasil, na cidade de PortoAlegre. Teremos dois dias de reunião de trabalho interno – onde o tema dopróximo congresso estará em pauta, e um dia de discussão aberta a comu-nidade psicanalítica. Uma pequena jornada com data e tema a ser divulgadamuito em breve para que os colegas do Brasil e do exterior possam organi-zar-se.

Enfim, caro colega, como afirmei inicialmente, ainda temos muito tra-balho pela frente. Sustentar um desejo não tem nada a ver com hedonismo.Saudações.

Robson de Freitas Pereira.

Anexo; programa do congresso de Paris.

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3º Congès de ConvergenciaTÉMOIGNER DE L’EXPERIENCE DE L’INCONSCIENT

Programa

Vendredi 15 juin09.30 hs. – 10.15 hs.APPOALucia Serrano Pereira e Robson de Freitas PereiraTransferência e transmissão da experiência

10.15 hs. – 11.00 hs.Círculo Psicoanalítico FreudianoGuillermo FerreiroLa lógica del inconsciente en lo preliminar de la cura.

11.30 hs. – 12.15 hs.Dimensions de la psychanalyseRené Lew & CoLes dimensions de la psychanalyse ne sont pas-tout, elles dependent del’espace culturel, juridique et politique de plongement où elles se déploient.

14.00 hs. – 14.45 hsEscola Lacaniana de PsicanáliseDr. José Nazar / A formação do PsicanalistaDra. Maria Teresa Palazzo Nazar / A Transmissão no dispositivo do passe

14.45 hs. – 15.30 hs.Après-Coups Psychoanalytics AssociationHelena Gibbs, Paola Mieli, Scott SavaianoTestimony in Three Acts

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16.00 hs. – 16.45 hs.Cartels Constituants de l’Analyse FreudienneLucia Ibáñez-Márques, Michelle Larnaud, Serge Vallon et Pierre EyguesierÉloge de la difference (sexuelle et associative)

16.45 hs. – 17.30 hs.Escuela Freudiana de la ArgentinaNorberto Ferreyra, Anabel Salafia y Noemí SirotaLa dimension en la transmisión del psicoanálisis

Samedi 16 Juin09.30 hs. – 10.15 hs.Intercecção Psicanalítica do BrasilArlete Mourão, Anicia Ewerton, Dóris Rinaldi, Izabel Pires CoelhoInventer dans l’analyse

10.15 hs. – 11.00 hs.Analyse FreudienneB. Brémond, C. Delarue, C. Dumézil, M.C. Estada, J.J. Leconte, R. Levy, P.SOrel, R. SoundaramourtyL’institution analytique comme dispositif de transmission: pratique, théorie,politíque

11.30 hs. – 12.15 hs.Escuela Freudiana de Buenos AiresLiliana Donzis, Daniel Paola, Isidoro VeghTrasferencia y lazo social

14.00 hs. – 14.45.00 hs.Mayéutica-Institución PsicoanalíticaEdgardo Feinsilber y Roberto harariLa designación de analistas y los artificios de la praxis en Mayéutica

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14.45 hs – 15.30 hs.Le Cercle FreudienCécile Cacoub, Francis Cohen, Annick GalbiatiDe ça reve, ça rate, ça rit, ça parle, à ça equivoque, Témoignant de l’Inconscient.

16.00 hs. – 16.45 hs.Institución Psicoanalítica de Buenos AiresNestor Bolomo, Adelfa Josami y Hugo RudaActo analítico. Su ética en la extension

16.45 hs. -17.30 hs.Praxis LacanianaGracinda Peccini / A castração entre corpo e gozoAntonia Portela Magalhães / O mal-estar X politicas da felicidadeIaci Torres Pádua / O que se transmite é o desejo do analista

Dimanche 17 Juin09.30 hs. – 10.15 hsEscuela de Psicoanálisis Sigmund Freud – RosarioPura Cancina, Guillermina Díaz y Dora GómezExperiencias en torno al pase

10.15 hs. – 11.00 hs.Fundación Psicoanalítica / Madrid 1987Ricardo Saiegh y Javier FrèreLa repetición, entre el tiempo y la estructura

11.30 hs. – 12.15 hs.Psychanalyse ActuelleBárbara Didier, Nabile Farès, Jean-Jacques MoscovitzL’amour parlons-en

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NOTÍCIAS

14.00 hs. – 14.45 hs.Maiéutica FlorianópolisCarlos Augusto Remo / O saber fazer e a InstituiçãoInezinha Brandão Lied / O saber fazer do psicanalista e a transmissão

14.45 hs. – 15.30 hs.Nodi FreudianiValeria MeddaLe destin

16.00 hs. – 16.45 hs.Corpo Freudiano Escola de PsicanaliseSonia Leite / Formação e transmissão: o que nos ensinam os escritores e ospoetas?Tania Rivera / O Outro do Outro: transfererência e transmissãoTeresinha Costa / Lacan e a psicanálise com crianças

16.45 hs. – 17.30 hs.INVITADO: L’Acte psychanalytiquePeter Dyck, Michel Elias, Lê Ta-Van, Pierre SmetSuspicion, dritte person, singularité, structure

NOVO ENDEREÇO

Luciane Loss Jardim informa seu novo endereço e e-mail: Rua João Simões daFonseca, 362 – Barão do Café – Ditrito de Barão Geraldo – Campinas/SP Cep:13085-050. E-mail: [email protected]

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SEÇÃO TEMÁTICA

UM LUGAR....”NENHUM” – UM PERCURSO DE ESCOLA

Sônia Maria Jardim Godinho

Otexto a seguir traz uma reflexão sobre meu “percurso de escola”.Vai focar um determinado ponto desse percurso, pois na medidaem que novos conhecimentos foram sendo adquiridos, fui me dis-

tanciando do ponto de partida.Quando iniciei o Percurso de Escola na APPOA em 2003, lembro

que, num dos primeiros encontros, uma das psicanalistas responsáveis pelatransmissão da psicanálise falava de um lugar que todos nós ocupávamosnaquele momento, e que, caso desejássemos escolher a psicanálise noexercício de nossa profissão, passaríamos por um processo de luto, pois umnovo caminho se mostraria. Aquela frase ficou pulsando no meu ouvido porum longo tempo.

Sabemos que o processo de ensino-aprendizagem vai se desenhandocomo um processo duplo de construção e desconstrução; portanto, paradarmos passagem a algo novo temos que abandonar os velhos símbolos eas velhas imagens, os velhos fazeres que nos sustentam num determinado“lugar”. Desta forma, podemos pensar que em um processo de “formação”,à dificuldade da teoria pode somar-se a dor do texto e à angústia que elepode provocar no leitor. Portanto, penso que na escolha pela psicanálise,inevitavelmente passaremos por um trajeto, onde perdas significativas vãoocorrer.

No que concerne ao luto, Freud nos diz tratar-se da reação a umaperda ou graves afastamentos de uma situação normal de vida. Para Násio(1996), um luto, concebido como um trabalho, nos dá a liberdade de pensarque não perdemos alguém quando esse alguém morre, mas apenas o perde-mos depois de um longo tempo de elaboração. Já para Lacan, o luto tratamenos de ausência e mais de presença; em vez de perda, ele fala sobre oencontro com o real do objeto de desejo.(Lacan, 3/7/1963).O desejo, dizFreud, é inconsciente, infantil, perverso, polimorfo, insatisfeito, ultrapassa o

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eu e até desconcerta. Lacan considera que o desejo é uma maneira que osujeito tem de se identificar com a perda que vai desencadear um processode tensão, podendo gerar uma inadaptação. Na Psicanálise esse processopsíquico é denominado de pulsão. Freud denomina pulsão de morte, comoalém do principio do prazer.

Reportando-me ao texto de Freud sobre distúrbio de memória naAcrópole, podemos pensar no desamparo e estranheza que Freud foi toma-do diante da majestosa e exuberante Acrópole. Uma estranheza e umdesprazer, que se relacionava à idéia de haver realizado mais do que o pai. Aculpa o levou a um sentimento de desrealização, não conseguindo acreditarque lá estava e de se permitir a realização de um sonho de estudante. Paraele, naquele momento a Acrópole se mostrava silenciosa e uma Atenasindiferente, pois um processo de luto era anunciado.

Sentia, quanto mais avançávamos com a teoria psicanalítica, que aangústia aumentava, até que na metade do percurso, aquela frase que seouvira no início, tornou-se insuportável, provocando a nítida sensação de umencontro com uma nudez, um assombramento com algo muito estranho nomais profundo do eu.

Mas estávamos no meio do caminho. E agora o que fazer? Exatamen-te esse ponto, o meio do caminho causou-me um grande desconforto, an-gústia e ansiedade.

Nesse momento, parei para prestar mais atenção no que estava ocor-rendo ao meu redor. A sensação foi de começar a perder o chão, pois come-cei a questionar o meu fazer psi até aquele momento. Sentia-me completa-mente perdida e, retomando Lacan, a angústia pode indicar um encontrocom o real. Se o real é indizível, então, onde ficam nossas certezas, aquelelugar do conhecimento? Será que poderíamos pensar que houve um deslo-camento? Será que a certeza transformou-se em angústia?

Sabemos que diante do real, as certezas egóicas se perdem, dandolugar ao sem sentido do significante e ao fora de sentido do objeto (Lacan,1958). O sujeito se descobre só, e o silêncio se impõe com angústia. Aexperiência do real pode ser da ordem de um golpe fulminante, e é, a partir

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daí, que algo pode se transmitir, pois alguém fulminado pelo real já não podemais deixar de se governar pela heterogeneidade de todas as coisas.

Naquele momento havia uma única certeza: possuía um título queme nomeava e autorizava ser psicóloga. Entretanto, não me reconhecia maisnaquele lugar, olhava para trás e lá já não estava, mas também não estava“em lugar nenhum”..... Estava a uma distância imensa de vir a ser uma psi-canalista, então não havia um lugar onde pudesse me reconhecer.

O texto de Freud sobre transitoriedade (1915/16) nos diz que não é oatestado de durabilidade de algo que vai garantir a legitimidade e a beleza,mas seu caráter transitório, justamente por ser de “passagem”, é que preci-samos aproveitar o máximo.

Nesta caminhada de reflexões também localizei alguns autores doscampos da antropologia e da filosofia que me ajudaram a pensar a questãodo que eu chamei de “Um lugar nenhum”. O antropólogo francês Marc Augé,no livro “Não-Lugares” (1994), afirma que um lugar pode se definir comoidentitário, relacional e histórico, e um espaço que assim não se define, seráum não-lugar. Mas ele aponta que é no anonimato do não-lugar que umaforma de tensão solitária e melancólica se configura, pois não cria nem iden-tidade singular nem relacional, mas sim solidão e similitude.

Também o filósofo Benjamin, no livro “Passagens” (2006), vai nos di-zer que o ser passado, o não ser mais, é o que trabalha com mais paixãonas coisas. Benjamim está se referindo ao historiador, mas essa é uma idéiaque me parece interessante para pensar esse lugar, de passagem, que ve-nho me interrogando. Prender-se a essa força, reconhecer as coisas nomomento do “não mais ser”, e no entanto prosseguir, parece ser também odesafio nas passagens em Psicanálise.

Nessa perspectiva o filósofo Bhabha (1998) vai nos lembrar que omovimento temporal e as passagens evitam que as identidades, a cada ex-tremidade se estabeleçam em polaridades primordiais, ou numa identidadefixa. O autor nos remete a pensar na passagem intersticial entre identifica-ções fixas, como exemplo, a formação em Psicologia, Psicanálise, ou ou-tras designações simbólicas. É nessa passagem intersticial aonde irão se

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abrir à possibilidade de um hibridismo cultural, ou seja, um acolhimento dadiferença que cada formação poderá nos remeter.

Bhabha nos diz que “Além” significa distância espacial, marca umprogresso, promete o futuro; no entanto, nossas sugestões para ultrapassara barreira ou o limite, o próprio ato de ir além, são incognoscíveis,irrepresentáveis. Diante dessa questão me coloco a pensar sobre o próprioestudo da Psicanálise, que é o ato de sempre ir além.

Ir além também pode nos remeter a temporalidade. Silva (2000), notexto “Tempo Realidade e Símbolo”, vai falar um pouco sobre o fluxo do tem-po. Ele vai nos dizer que o presente está entre o que já foi e o que será, e noscoloca diante de um fluxo temporal incontrolável e impossível de ser explica-do. Se não houvesse a mediação de instrumentos cognitivos e lógicos, nãoconseguiríamos compreender o mundo e reorganizar nossas experiênciasvividas no fluxo do tempo.

Retomando o título do trabalho, esse lugar que eu chamo de “UmLugar ...... Nenhum” foi um momento de sofrimento e angústia no meu “per-curso de escola”. Estudar psicanálise e me apropriar da teoria foi algo deuma ordem completamente assustadora, ou seja, suportar o indizível foi ocerne dessa experiência. Dar um outro sentido, para mim, só foi possívelatravés da análise pessoal, supervisão e estudo em grupo, pois sem elesnão teria sido possível manter esse lugar de passagem.

A partir desse ponto, podemos pensar que ao longo de um percursode buscas e perdas, em que algo se mostra e algo se esconde, algumacoisa que não está no jogo se mostra. Esta alguma coisa pode ser nossoobjeto a, e a delimitação da cena em que ele será circunscrito é justamenteo que terá que ser (re)construído em uma análise.

Para concluir, gostaria de retomar a questão primeira, a do luto. Per-cebemos que nele, o objeto perdido vai-se esvaziando progressivamente delibido, mas sabemos que novos laços se refazem permanentemente. Porisso, falamos em trabalho do luto. Um luto do que já se sabe se faz neces-sário para que possa advir o que ainda não se sabe, ou seja, uma nova fala.E nesse movimento de imagens que vão se reconstruindo é onde teremos

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uma hipótese de um passado e uma possibilidade de um futuro.A perda, por mais dolorosa que possa ser, pode ter um fim. Quando

conseguimos renunciar ao que foi perdido, e aceitamos esse desprazer comoalgo natural, nossa libido ficará mais uma vez livre para substituir os objetosperdidos por novos, ou ainda, por outros mais “preciosos”. Para mim, noentanto, fica uma certeza dentro desse contexto: A Psicanálise é algo deum apaixonamento indizível.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

AUGÉ, Marc. Não-lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade.São Paulo: Papirus, 1994.

BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 1998.FREUD, S. A transitoriedade. 1915/16, Vol XIV._______ Luto e Melancolia. 1916/1917, Vol. XIV._______ Um Distúrbio de Memória na Acrópole. 1936, Vol. XII.LYOTARD, Jean-François. O Inumano: considerações sobre o tempo. Lisboa:

Editorial Estampa, 1990.KAUFMANN, Pierre. Dicionário Enciclopédico da Psicanálise: legado de Freud a

Lacan. Rio de Janeiro: Ed. Zahar, 1996.LACAN, J. (2005). O Simbólico, o Imaginário e o Real (1953): em Nomes-do-Pai.

Rio de Janeiro: Jorge Zahar.MRECH, Leny. Psicanálise e Educação: novos operadores de leitura. São Paulo:

Pioneira,1999.NÁSIO, J.D. O Livro da dor e do Amor. Ed Jorge Zahar. RJ: 1997.SILVA, Franklin Leopoldo e. Tempo: realidade e símbolo. In: Revista Sexta Feira,

nº 05. São Paulo: Editora Hedra, 2000.BENJAMIN, Walter. Passagens. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2006.

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UM ESTRANHO SENTIMENTO CHAMADO ANGÚSTIA

Fabíola Dutra Malaguez

Gostaria, inicialmente, de situar a origem do título deste trabalho: háalguns meses atrás, coincidentemente, eu estava em férias no Riode Janeiro, no momento em que ocorreu a trágica história que oca-

sionou a morte do menino João Hélio.Aquela notícia me encheu de angústia. Por eu estar na mesma cidade

onde tudo ocorreu e, ao mesmo tempo, sentir-me uma estrangeira, me pergun-tei o que se passava naquele “país” chamado Rio de Janeiro. Imediatamente,“caí na real” e passei a dar um destino ao meu sentimento de estranheza, formu-lando uma interrogação: porque me deparei inicialmente com a angústia emrelação a um fato tão familiar à cena brasileira e que, ao mesmo tempo, meremeteu ao lugar de estrangeira? Assim, na tentativa de iniciar uma discus-são, procuro articular neste trabalho o tema do Estranho com o da Angústia.

Freud, em 1919, em seu artigo intitulado “O Estranho”, nos colocaque este tema relaciona-se com o que é assustador, o que provoca medo ehorror. Sendo ainda mais preciso em seu conceito, define: “O Estranho éaquela categoria do assustador que remete ao que é conhecido, de velho, ehá muito familiar”(pág 238).

Ao desdobrarmos os significados possíveis da palavra estranho emalemão, teremos outro sentido; estranho (unheimlich) é o oposto de heimlich,que significa doméstico (familiar). O negativo “un” traz um novo significado:de misterioso e sobrenatural, que provoca medo. Então, ao mesmo tempo,esta palavra heimlich pertence a dois conjuntos de idéias: o que é familiar,agradável e, acrescida do negativo “un”, significa o que está oculto, o quedeveria ter permanecido secreto e veio à tona.

Assim, estranho é uma subespécie de familiar com duplo sentido,tendo em mente a palavra no alemão, obviamente por ser a língua a qualFreud escreve seus textos. No Grego, estranho significa estrangeiro; noEspanhol, sinistro; em árabe e hebreu, demoníaco, horrível.

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A partir destas discussões filológicas, Freud irá exemplificar estefenomêno através do conto de Hofmann, “O homem da areia”, na tentativa deexplicar porque determinadas situações conseguem despertar em nós umsentimento de estranheza. Essa história tem como personagem principalNataniel, que, na sua infância, era advertido por sua mãe de que o Homemda Areia iria levá-lo, justificando o fato de que ele deveria ir cedo para a cama.De fato, Nataniel escuta todas as noites a conversa de seu pai com umvisitante, que ele conclui ser o Homem da Areia. Esta figura, na verdade, é oadvogado de seu pai, chamado Copélio. A babá de Nataniel também confir-ma o tão temido personagem que a própria mãe do menino sempre afirmouque existisse, contando que este homem joga punhados de areia nos olhosdas crianças que não querem dormir, fazendo-os saltar das órbitas para quepossa levá-los para alimentar seus filhos.

Com o passar dos anos, Nataniel não conseguiu livrar-se destas re-cordações, ainda mais depois da morte do pai, que falece vítima de umaexplosão em seu escritório onde estava presente o advogado Copélio. Maistarde, conhece um oculista itinerante e reconhecendo nele o seu fantasmada infância, compra um binóculo deste homem. Com a luneta ele passa,então, a olhar, da sua casa, a vizinha Olímpia, filha do professor Spalanzani,e logo fica apaixonado por ela.

O que Nataniel não percebe é o fato desta suposta moça ser umaboneca construída por Spalanzani e o oculista itinerante, que também, paraNataniel, é o Homem da Areia. O personagem enlouquece, apaixonado pelaboneca Olímpia. Em seus delírios, enxerga olhos que saltam do rosto comobolas de fogo (que tem relação com a morte de seu pai em uma explosão) eacaba suicidando-se exatamente no momento que irá se casar com Clara,irmã de seu melhor amigo.

O que está em questão a partir desta história, para Freud, não serelaciona exatamente com o fato de Olímpia ser uma boneca ou não, massim com este reencontro que vem marcando a história de vida de Nataniel, asaber, o sentimento de estranheza estar ligado ao Homem da Areia e asuposição de que ele possa arrancar os olhos das crianças.

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Na experiência psicanalítica, Freud nos ensina, através dos estudosdos sonhos e das fantasias, que o temor das crianças de ferirem seus olhos,e até mesmo de ficarem cegas, muitas vezes está relacionado ao temor deserem castradas, o que é constitutivo psiquicamente. Esta história estámarcada pela projeção de algo próprio, no outro – no caso, o Homem deAreia representado na figura de Copélio, o que o torna figura tão persecutóriapara Nataniel – e nos revela as crenças e os temores da infância que, provo-cando sentimentos de estranheza, estão referidos ao fenômeno do duplo.

Este ocorre quando uma pessoa identifica-se com outra de maneiratão intensa que não consegue produzir uma separação, e sim uma duplica-ção, trocando seu eu pelo de um estranho, como o efeito do reflexo em umespelho. Otto Rank, citado por Freud, estudou o tema do duplo, afirmandotratar-se de uma segurança contra o possível desaparecimento do eu parase proteger da idéia de morte, através do estudo com espíritos e sua relaçãocom a alma.

Esta função de defesa psíquica que o duplo exerce, segundo Rank,pode ser expressa nos sonhos onde aparece a castração duplicada ou mul-tiplicada por um símbolo genital.

O duplo origina-se inicialmente do narcisismo primário. Quando su-perada esta etapa, o duplo desloca-se do lugar da imortalidade para repre-sentante da morte, assim recebendo novos significados. Entre eles, as fun-ções de observação e crítica do eu, designadas por Freud como atividadesespeciais do ego, exercendo censura. O fato de que existe a possibilidadedo ego projetar para fora algo estranho a si mesmo irá considerar o duplocomo criação que data de um estádio mental primitivo já superado, tornando-se um objeto de terror acompanhado da sensação de desamparo, o que noscausa o sentimento de estranheza.

Como exemplo, temos a superstição, relacionada com o pensamentomágico, o que se caracteriza como “onipotência de pensamento”. Trazendo-nos a idéia da concepção animista do universo, supervalorizando os proces-sos mentais do sujeito e atribuindo a fatores externos poderes mágicos,com intuito de desviar as proibições da realidade. Cada um de nós atraves-

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sou esta fase de desenvolvimento, que corresponde a esse estádio animistados homens primitivos. Permanecendo resíduos que se manifestam em tudoaquilo que consideramos estranho, dando expressão a esta fase mais primi-tiva do desenvolvimento.

Estes resíduos, restos de outros momentos constitutivos, tem suaforça expressa através da angústia, como efeito do recalcado que retornasob a forma de algo assustador e, ao mesmo tempo, familiar ao inconsciente.

Voltando ao exemplo inicial do texto: a cena marcada pela angústiaque logo encontra uma via possível de expressão. O próprio sentimento deestranheza como forma de dar conta da angústia, o que ao mesmo temporemete ao lugar do estrangeiro que encarna a função do duplo, produzindoum não reconhecimento do eu e sim uma duplicação, não identificando acena como familiar, e sim atemorizante. Temor de permanecermos na condi-ção de estrangeiros em nosso próprio país, o que nos causa mal-estar.

Na atualidade, a angústia é entendida como sinal de funcionamentodeficitário em nosso comportamento e ela deve ser erradicada. São muitasas tentativas de dar conta da angústia, ou seja, eliminar qualquer possibilida-de de que ela possa mostrar a falha do recalcamento, negando a existênciado inconsciente.

A angústia surge para mostrar a estruturação do sujeito na própriaambivalência constitutiva de desejo e falta, e o que antecede o aparecimen-to desta falta no sujeito é justamente uma das angústias primordiais, aangústia de castração. O entendimento mostrado pela cultura refere-se sem-pre a não deixar a angústia falar, o que ocorre muitas vezes pela viafarmacológica, por um direcionamento muito mais orgânico do que subjeti-vo. Desta forma, a não existência de um espaço para a escuta – tão neces-sária pelo desamparo que este afeto é capaz de provocar –, pode levar osujeito a manifestar comportamentos de um gozo sem limites, como alter-nativa ao mesmo.

A psicanálise vem se ocupando destes questionamentos, para que adiferença volte a estar em primeiro plano em nossa cultura, e o estrangeiroseja o diferente e não o grande temor da atualidade.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FREUD, Sigmund. O Estranho. In: FREUD, Sigmund. Obras Completas. Rio deJaneiro: Imago, 1980.

PEREIRA, Lúcia Serrano. O Estranho. Correio da APPOA. Associação Psicanalí-tica de Porto Alegre, n. 157, maio 2007.

COSTA, Ana. O Duplo e a Interpelação Sexuada. Correio da APPOA. AssociaçãoPsicanalítica de Porto Alegre, n. 157, maio 2007.

PEREIRA, Robson de Freitas. Angústia ou Além da Máscara que o Outro Vê.Correio da APPOA. Associação Psicanalítica de Porto Alegre, n. 155, março2007.

ARRIBAS, Osvaldo. A Segurança da Angústia Existência e Sexuação. Correio daAPPOA. Associação Psicanalítica de Porto Alegre, n. 155, março 2007.

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HIPÓTESES EM TORNO DO ABANDONO

Iranice Carvalho da Silva

Pode-se tomar o abandono, em estudo, sob vários pontos de vista:sociológico, psicológico, jurídico. Os estudos sobre o tema não sãorecentes, havendo iniciado por volta dos anos 40 com Renè Spitz.

Este autor trabalhou com crianças institucionalizadas por razões diversas,principalmente devido ao desaparecimento dos pais durante a Segunda GuerraMundial. Os trabalhos de Spitz, e posteriormente os de J. Bowlby, consisti-am na observação e descrição das conseqüências subjetivas que a ausên-cia real dos pais produzia nas crianças. Tais estudos mostraram que essetipo de afastamento em idade precoce pode produzir resultados muito trau-máticos para a criança, uma vez que esta se encontra num momento emque seus recursos subjetivos ainda são precários. Mais fragilizada ficaráainda se um outro, neste caso um adulto, não vier ao seu encontro parasocorrê-la desse estado de desamparo. As conseqüências, como observa-ram os autores citados, podem ser várias, inclusive a morte.

Contudo, mesmo reconhecendo a importância e a validade dessesestudos, venho me perguntando sobre outro tipo de experiência de abandonoque ultrapassa esse registro de ‘acontecimento factual’, cuja origem nãoestá necessariamente ligada a fatos da realidade familiar ou social de umsujeito, mas que igualmente produz muito sofrimento psíquico.

Para pensar nesse outro tipo, ou nessa outra face do abandono, en-tendo ser necessário recortá-lo do cotidiano, do acontecimento da realidadefactual, e deslocá-lo para o campo da experiência subjetiva, do vivido dopsíquico. Isso porque a palavra abandono encontra-se já carregada de signi-ficados bastante estabelecidos em nossa cultura. Pensá-la no campo psica-nalítico implica, pois, ressignificá-la, ressituá-la em seu valor significante. M.C. Polli (2005) denomina esse processo de “restauração do valor significante”1.

1 Maria Cristina Poli utiliza, no artigo “Alienação na psicanálise: a pré-história de um conceito”.Revista Psychê, da Universidade de São Marcos. São Paulo, ano XI, n°16, jul-dez/2005.

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A autora destaca que tal processo se torna necessário em situações em quea aplicação excessiva de uma palavra transforma-a em uma “palavra vazia”,cujo excesso de significado é indício da ausência de sujeito. É o caso dapalavra abandono, de uso comum no cotidiano como referência a situaçõesda realidade factual. Pensá-la desde a perspectiva psicanalítica requer essemovimento de deslocamento do sentido cotidiano para poder pensá-la en-quanto experiência psíquica.

Esse é, pois, um primeiro ponto para situar o lugar desde o qual venhopensando o abandono: enquanto experiência psíquica, que não está neces-sariamente ligada a acontecimentos factuais, concretos, mas que igualmen-te produz sofrimento.

O ABANDONO NA CLÍNICAEsse tema vem me acompanhando há algum tempo em diversas situ-

ações, mas somente nos últimos anos que tenho reunido as condições parauma apreensão do abandono enquanto pesquisa na clínica. Digo ‘certa apre-ensão’, porque se trata de uma pesquisa em andamento, de hipóteses emconstrução, não concluídas.

Para ilustrar que configuração de abandono estou tentando compre-ender, destaquei alguns fragmentos de situações de tratamento de dois pa-cientes que recebi há alguns anos e que me parecem significativos.

O primeiro é de uma adolescente que chamarei de Aline. Na épocaAline tinha 13 anos e veio encaminhada em função de queixas escolares. Osprofessores afirmavam que ela se recusava fazer as atividades escolares.Aline se justificava afirmando que tais atividades eram muito chatas, que nãopercebia sentido em fazê-las. Com o andar do tratamento, fui percebendoque ela fazia um esforço, mas, ao se deparar com dificuldades, do tipo faltade material em casa, de livros, computador, impressora, acabava desistindo.Os pais de Aline não a acompanhavam em tais atividades. De início, acha-vam, inclusive, que era desnecessário, dada a sua idade. Pouco a pouco, fui-lhes dizendo que, mesmo já sendo uma adolescente, ‘uma moça’, nas pala-vras deles, ainda se fazia necessário acompanhá-la, pois não era uma adulta

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capaz de se responsabilizar por suas tarefas. Com isso, eles passaram afazer um esforço para acompanhar a filha nas atividades escolares. Foram-se revelando, contudo, as dificuldades dos pais, principalmente as da mãede Aline, de manter, de sustentar esses acompanhamentos.

Aline era filha única da mãe e do pai. Estes se conheceram durante afaculdade, namoraram alguns anos, casaram-se e a tiveram dois anos apóso casamento. Separaram-se quando ela tinha 2 anos e meio de idade. Amãe retornou à casa materna. Aline era a primeira neta e primeira sobrinha.Moravam na casa, além dos avós, três tios e uma tia-avó, que se tornou asua segunda mãe, conforme suas próprias palavras. Aline tornou-se o xodóda família, vivia de colo em colo, afirmava a mãe. Com o segundo casamento,a mãe mudou-se para esta cidade com a filha, na época com 6 anos. Nas fériasde verão, Aline passava um mês com o pai. Nas entrevistas iniciais, a mãedizia não entender o que se passava com a filha: as razões das queixas esco-lares, de haver se tornado tão agressiva na escola e reativa às relações sociais.

Aline dizia não gostar de Porto Alegre e freqüentemente falava de seudesejo de voltar para sua cidade natal. Tudo aqui lhe parecia absolutamenteruim. Lá, sim, era bom: a cidade, os avós, os tios, a antiga escola. Falousobre essa mudança por um bom tempo. A cada vez me impressionava aênfase como falava. Em um desses momentos, disse: “Toda a minha famíliaestá lá!”. Então perguntei: “Toda?! A tua mãe não está aqui?”. Ela pareceu sesurpreender com o que acabara de falar e respondeu em tom mais baixo:“Mas... é só a mãe!”. “E o teu padrasto?”, continuei. “Ele viaja muito a traba-lho, não tem tempo nem para os filhos dele”, respondeu.

Em outro momento, quando falava de sua rotina, da alimentação, dasrefeições, disse-me que ela mesma as fazia: “Miojo”, comida congelada...Perguntei se seus pais não costumavam vir almoçar em casa, já que traba-lhavam relativamente perto. Disse-me que às vezes sim, mas poucas vezes;depois ficou pensativa, fez um pequeno silêncio e continuou: “Meus pais são99% trabalho e só 1% para a casa, a família, os filhos!”. Perguntei-lhe: “Ecomo te viras com 1%?”. Ela respirou fundo, encolheu os ombros e faloubaixinho: “Nem sei!”.

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Aline já sabia se deslocar relativamente bem pela cidade. Iniciou, vin-do aos atendimentos sozinha, a pé, já que o consultório ficava no bairrovizinho.Um tempo depois passou a não querer mais vir. Disse-me que eramuito longe de onde morava, era perigoso, tinha medo de ladrões... Entãoentendi que ela solicitava a participação dos pais mais que 1%. Converseicom os mesmos para que a levassem e a buscassem. Essa combinaçãoteve de ser retomada muitas vezes, pois, com o passar do tempo, eles iam‘se esquecendo’.

Um período depois, passou a fazer diversos ‘cálculos’ de porcenta-gem. A cada sessão, trazia-me dados como: 1% do Congresso Nacionalnão votou tal lei; 1% da população brasileira tem Internet; 1% dos estudan-tes da escola pública passa no vestibular da UFRGS; etc., etc. Sua posiçãoinicial era de que 1% era muito pouco, que não era nada. Eu reconheciacom ela que 1% era realmente muito pouco, mas em muitas situações faziadiferença. Nessa mesma época pensou que no futuro faria vestibular paraEconomia, quando terminasse o ensino médio. Passou um tempo inves-tigando essa profissão: os cursos, as faculdades, o mercado de traba-lho.

A segunda situação é a de um menino: Renato, 10 anos, filho únicode um jovem casal. Renato chegou ao tratamento porque se mostrava ‘des-ligado’ na escola: esquecia de anotar as atividades e temas, deixava seuspertences na escola ou esquecia de levá-los de casa. “Vivia em Marte”, brin-cavam alguns professores.

A mãe de Renato não trabalhava. Em alguns momentos do dia ia àempresa de sua mãe, a avó de Renato, para ajudá-la. Ainda assim, dizia nãoconseguir acompanhar o filho nas atividades escolares. De início, Renatonão formulava queixas em relação aos pais – levou alguns anos para fazerisso –, mas me relatava seus sonhos. Contou-me algumas vezes um sonhoque, segundo ele, se repetia: sonhava que caía da cama, ia rolando até cairpara fora da casa e – detalhe – ninguém via isto. Eu perguntava com quemestava na casa, onde estavam as pessoas que não o viam. Dizia-me que nãosabia, não lembrava; achava que estava só.

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Em outro momento, contou um sonho em que corria atrás dos pais enão os alcançava, e estes não o viam; acordou angustiado. Ao pensar sobreaquele sonho, lembrou que era véspera de entrega dos boletins. Ele jásabia que havia ido mal em algumas disciplinas; por outro lado, tambémsabia que havia ido bem em outras, em matemática, inclusive. Isto, noentanto, ele achava que seus pais certamente não considerariam, poisesperavam que fosse bem em todas as matérias; algo que lhe parecia difícilalcançar!

Dizia que não gostava de ser filho único. Ficou falando durante umbom tempo de seu desejo de ter um irmão. Quando a mãe engravidou dosegundo filho, Renato estava com 12 para 13 anos. Ele ficou radiante, disseque desejava isso desde os 5 anos. Perguntei-lhe por que queria tanto umirmão. “Para me fazer companhia!”, respondeu. “Companhia?”, interroguei.“Sim, quase sempre me sentia muito sozinho. Queria um irmão para brincar,para ficar em casa, para jogar vídeo-game.” “E hoje?”, acrescentei. Renatoencolheu os ombros em sinal de não saber.

O casal morou na residência dos avós maternos até os 5 anos deRenato. Após esse período, a casa que estavam construindo ficou pronta eentão se mudaram. É nessa mesma idade que Renato situa seu desejo deter um irmão que lhe fizesse companhia. Falava muito da saudade da casados avós, de como era bom ir lá aos fins de semana. Alguns anos depois,comentou o endereço dos mesmos: uma quadra depois da sua!!! Surpreendi-me: eu sabia que os avós moravam na mesma cidade, em outro bairro. Ima-ginava ser geograficamente perto, mas não tanto.

Essas situações que fui escutando me levaram a pensar que um tipoparticular de abandono se colocava na vida desses adolescentes. Algo para-doxal, já que ambos eram filhos únicos, de famílias constituídas, desejados,planejados por seus pais, netos únicos. Não se poderia negar que eramfilhos bem cuidados. Mesmo assim, parecia-me que nas falas de Aline eRenato estava subentendido algo de um sutil abandono. Passei a me per-guntar, então, como essa experiência poderia ser formulada a sujeitos queefetivamente não viveram uma experiência objetiva de abandono.

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Na tentativa de entender esse paradoxo, venho procurando na literatu-ra psicanalítica estudos que possam dizer dessa experiência psíquica.Nessaprocura, descobri que o abandono foi um tema discutido no universo psica-nalítico francês nos anos 50, com, inclusive, uma publicação intitulada “ANeurose de Abandono”2, por Germaine Guex. O livro foi conseqüência deuma pesquisa orientada por Daniel Lagache, nos anos 40, na Sorbonne.

Nesse livro, a autora formula argumentos em torno da idéia do aban-dono enquanto uma neurose específica, oriunda das primeiras relações dacriança com a mãe. Uma neurose ‘pré-edipiana’, ressalta. Guex trabalhaalguns casos clínicos para ilustrar sua hipótese de existência de um estadopsíquico em que predomina o que ela denomina de “angústia de abandono”.Utiliza a expressão abandonnique,3 justificando que

“Abandonnnique designará o neurótico que vê tudo e todos, acomeçar por si próprio, do ponto de vista do abandono vivido outemido. O termo “abandonado” tem o inconveniente de dar aoabandono uma realidade por demais objetiva. Na verdade, aexperiência nos mostra que as repercussões psíquicas são idên-ticas, quer o indivíduo tenha sido frustrado na realidade, doscuidados, atenções e amor dos pais, quer tenha acreditado sê-lo. Além disto, todos os seres realmente abandonados não setransformaram obrigatoriamente em neuróticos, muito pelo con-trário, e felizmente! O termo abandonnique parece-me, portan-to, mais apropriado para designar o neurótico do qual nos ocu-pamos, ao despertar a idéia de um estado psíquico dominadopela angústia do abandono, e não a de um fato familiar e socialque tenha, obrigatoriamente, uma realidade objetiva” (p.23).

2 GUEX, Germaine. La névrose d’abandon. Presses Universitaires de France. Paris, 1950.3 O termo ‘abandonnique’ não tem um correspondente exato em português; o tradutorsugere a expressão ‘pessoa com sentimento de abandono’.

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SEÇÃO TEMÁTICA

Esse estudo parece ter alcançado certo destaque no contexto fran-cês da época, tanto que foi apresentado por Juliette Favez-Boutonier e dis-cutido por Lacan, Françoise Doltto e outros psicanalistas em uma reunião daSociedade Francesa de Psicanálise em 1957.

Lacan, que estava presente nesta reunião4, não concordou com o es-tudo de Guex no que se refere à idéia do abandono enquanto um tipo especí-fico de neurose, mas sublinhou que se trata de algo da base da constituiçãopsíquica, da relação primitiva mãe-bebê, e sugeriu que a noção de relação deobjeto fosse a noção psicanalítica tomada para a análise desse fenômeno.

O meu interessante no estudo de Guex é menos a hipótese de umtipo específico de neurose e mais o reconhecimento de um sofrimento psí-quico doloroso, que passa despercebido por não ser tão evidente. A escutados pacientes citados me faz pensar que o estudo de Guex procede emalguma medida.

Localizei também outros estudos em torno do tema do abandono: umdeles, realizado por Michel Zlotowicz (1976)5, também na França. Trata-sede um estudo sobre os medos infantis, no qual o autor inclui o ‘medo doabandono’. Para Zlotowicz, esse tipo de medo associa-se ao medo relativo àangústia que antecede a experiência de separação e se atualiza em situa-ções em que a criança levanta dúvidas quanto ao poder de proteção dospais, ao reconhecimento da fragilidade e insuficiência dos mesmos, na suaqualidade de protetores.

Maud Mannoni, no livro “Amor, ódio, separação” (1995)6, também fazpequenas anotações sobre o abandono: afirma que as angústias arcaicasgiram em torno do medo do abandono e que a situação traumática remeteessencialmente a uma angústia de abandono que invade o sujeito.

4 O texto em francês encontra-se disponível no site www.ecole-lacanienne.net.documents/1957-05-07.doc5 ZLOTOWICZ, Michel. Os medos infantis. Rio de Janeiro: Zahar, 1976.6 MANNONI, Maud. Amor, ódio, separação: o reencontro com a linguagem esquecida dainfância. Rio de Janeiro: Zahar, 1995.

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Christiane Lacôte7, ao discutir a fobia do pequeno Hans, no livro “Afobia” (1994), ressalta que há ali um tipo de abandono simbólico em questãopor parte do pai do menino. Ela formula essa questão nos seguintes termos:

“A apreensão desse tipo de abandono não é imediata nem ordi-nária. É preciso então saber o que entendemos por abandonoem nível simbólico: se pode perfeitamente ser abandonadomesmo sendo impecavelmente cuidado” (p.138).

Lacôte (op. cit.) acrescenta que o terror da queda, seja o terror de vercair o cavalo, como no pequeno Hans, seja em outras fobias – o terror de cairda sacada, de um parapeito, de estar embarcado em um elevador em queda–, é diretamente ligado a um abandono primitivo. Essa formulação de Lacôteme remeteu aos sonhos de queda da cama de Renato.

Tais estudos que fui encontrando me parecem convergir em uma dire-ção: os processos primários que marcam a fundação do sujeito humanoenquanto sujeito de desejo. O abandono, enquanto experiência psíquica, meparece remeter a esse primeiro tempo de constituição.

Nessa perspectiva, penso que podemos tomar as noções psicanalíti-cas de desamparo e Fort-Da para a análise da experiência psíquica do aban-dono. A escolha da noção de desamparo se justifica por ser este a basemesma sobre a qual se funda o psiquismo humano. Freud [1895]8 já afirmavaque “o desamparo inicial dos seres humanos é fonte primordial de todos osmotivos morais” (p.370). Mario Eduardo C. Pereira (1999) afirma que “a no-ção de desamparo é a noção metapsicológica capital que se situa no cerneda teoria da angústia e das hipóteses sobre o traumatismo psíquico” (p.36).A angústia, segundo esse autor, funda-se sobre o estado de desamparo.

7 LACÔTE, Christiane. Observações sobre o espaço fóbico. In: A fobia: Rio de Janeiro:Revinter, 1994.8 FREUD, S. Projeto para uma psicologia científica [1895]. Rio de Janeiro: Imago, 1970.

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Desse modo entende-se que a experiência psíquica do abandono remetenecessariamente à noção de desamparo, uma vez que se trata de uma ex-periência de sofrimento e, portanto, de angústia. Parece-me que um quantumde desamparo está inevitavelmente presente nas experiências de abandono.

Já no jogo do Fort-Da, observado por Freud, a pequena criança colocaem cena a dialética presença-ausência que a constitui enquanto ser falante.Barthes (1990)9 afirma que esta é a melhor fábula que ilustra o nascimentoda linguagem. A experiência psíquica do abandono parece-me em estreitarelação com essa dialética da presença-ausência que constitui a vivência deseparação entre a mãe e o bebê, nesse primeiro tempo de fundação dopsíquico. O modus como essa experiência é vivida na infância precoce vaidar o tom das possibilidades da “simbolização da ausência” 10 que um sujei-to disporá em suas situações de vida posteriores. Esse “capital simbólico”,parece-me, é o que possibilita que as experiências psíquicas dolorosas pos-sam ser simbolizadas.

CONSIDERAÇÕES FINAISPara finalizar, penso que, ao longo da vida, se vivem diversos tipos de

abandonos, em maior ou menor proporção: há, portanto, abandonos e aban-donos! Alguns se fazem necessários: o abandono que implica o bebê e amãe, a entrada da criança pequena na escola, a passagem da infância paraa adolescência, o final de uma análise. Há, enfim, um lado positivo nessasexperiências, especialmente quando o sujeito encontra possibilidades desimbolização. Em todos os abandonos está implicada uma mudança delugar e, acredito, tais sentimentos reeditam o modus vivendi da primeiraexperiência de separação.

O que me parece problemático é quando essas experiências, neces-sárias, se transformam em desmedida, a dizer, quando chegam a um trans-

9 BARTHES, R. O óbvio e o obtuso: ensaios críticos III. Rio de Janeiro: Nova fronteira, 1990.10 Expressão utilizada por Mario Eduardo Costa Pereira no livro “Pânico e desamparo: umestudo psicanalítico”, São Paulo: Escuta, 1999.

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bordamento que ultrapassa as condições de o sujeito dar conta delas. Esseexcesso no vivido do abandono me parece fazer virar a questão do necessá-rio/fundamental para o demasiado.

Observa-se, contudo, que esse processo psíquico, essa experiênciade abandono, mesmo sendo fonte de muito sofrimento, demonstra ser muitosutil, quase imperceptível, justamente porque ultrapassa os fatos de realida-de e se inscreve no registro do simbólico. As possibilidades de aproximaçãoa esse tipo sutil de abandono só se faz possível, portanto, pela via da escutado sujeito.

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SEÇÃO TEMÁTICA

REFLEXÕES SOBRE A JUSTIÇA E O TRABALHO COMADOLESCENTES AUTORES DE ATOS INFRACIONAIS

Analice Brusius1

Neste trabalho de conclusão do Percurso pretendo abordar a justiça àluz de conceitos de autores que foram estudados e tentar relacioná-los ao trabalho com os adolescentes que acompanho quando estão

cumprindo Medida Sócio-Educativa de internação na FASE (Fundação deAtendimento Sócio-Educativo).

Estes adolescentes são encaminhados para a FASE através de umadeterminação judicial que recebem quando se envolvem em atos infracionais.A FASE é um órgão do estado que se ocupa com a execução das medidassócio-educativas de internação e, segundo o Estatuto da Criança e do Ado-lescente, é a medida sócio-educativa de maior rigor, pois trata-se de privaçãode liberdade e deve ser aplicada somente em casos de delitos graves, ouseja, roubos com uso de arma e violência contra as vítimas e atos que aten-tem contra a vida como homicídios tentados e consumados.

Para o “Estatuto da Criança e do Adolescente”, os adolescentes sãopessoas em condição peculiar de desenvolvimento e por este motivo podemter razões particulares para envolverem-se em atos infracionais. Por isso oEstatuto garante que os adolescentes com idade inferior a 18 anos autoresde delitos cumpram uma medida sócio-educativa e não uma pena como osadultos. Apesar da discussão sobre a institucionalização dos jovens sercomplexa e polêmica, a execução da medida sócio-educativa deve buscarque o adolescente e sua família reflitam sobre os motivos que o levaram apraticar o delito bem como possibilitar uma reintegração a sua comunidadede forma que não se utilize mais de atos infracionais e da violência em seuconvívio.

1 Psicóloga da Fundação de Atendimento Sócio-Educativo(FASE) e membro do núcleo deJustiça Restaurativa da FASE.

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O desejo de explorar o conceito de justiça surgiu a partir de minhaparticipação no projeto “justiça para o século XXI” que é coordenado pela 3ª.Vara da Infância e Juventude de Porto Alegre e que se apresenta como umanova forma de intervenção e enfrentamento às situações de violênciasvivenciadas por jovens na cidade. A partir deste projeto está sendoimplementada a justiça restaurativa através de práticas as quais pretendoilustrar e apontar pontos de intersecção com a teoria psicanalítica.

Para um melhor entendimento do âmbito do projeto, temos que pen-sar o conceito de justiça como um valor humano, como algo que está entreas pessoas em suas ações cotidianas, com sua família, em seu trabalho,com seus amigos e vizinhos, ou seja, em todo tipo de relação humana ajustiça está presente.

O projeto estimula os sujeitos envolvidos a lançar um olhar diferencia-do para fatos que até então somente eram concebidos de uma maneira,como se até este momento existisse apenas uma única versão para eles, eesta fosse tomada como verdadeira.

Tradicionalmente, nossa cultura tenta solucionar os problemas de in-fração de leis e de prática de atos de violência através de métodos de exclu-são, coerção ou punitivos, visando reprimir as condutas inadequadas. Estassão ações que têm por objetivo a retaliação utilizando-se de um empregolegitimado da força. A punição, além de, na maioria dos casos, não conse-guir ocasionar uma mudança nos envolvidos, pode gerar um aumento dadivergência que surgiu originalmente. Na melhor das hipóteses, o sujeito quepraticou a infração não irá repeti-la por medo, mas dificilmente terá elaboradouma aprendizagem em relação ao que aconteceu.

Na nova abordagem proposta pelo projeto “justiça para o século XXI”,os sujeitos envolvidos em um conflito não devem ser destituídos de seu sa-ber sobre ele, e é fundamental o reconhecimento de que são eles os queapresentam as melhores possibilidades para criar alternativas que propiciemsua elaboração e ressignificação. O que se propõe visa romper com a estra-tégia social contemporânea de fornecer resultados imediatos, muitas vezesilusórios, sobre os conflitos emergentes. No caso da violência, é comum a

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demanda por instauração de processos, prisão, presença da polícia, advoga-dos, entre outros procedimentos que oportunizam que se projete neles umaexpectativa de cessação da dor e da desorganização emergente. Entretan-to, na nossa prática cotidiana, nos deparamos com a insuficiência da utiliza-ção destes procedimentos para entendermos como ocorreu o ato, qual a suamotivação e o que ele provocou, questões que ficam reverberando quandoocorre um ato de violência, e cujas respostas, ou tentativas de respostas,podem oportunizar o começo de um processo de cicatrização das feridasabertas. Enquanto respondem a um processo ou estão submetidos a umjulgamento, tanto o agressor, quanto a vítima não têm a oportunidade de falarespontaneamente sobre o que lhes ocorreu, podendo somente se manifestarquando são interrogados ou através de advogados.

O sistema de julgamento proporciona que os sujeitos sintam-sedesvinculados das questões da justiça, de pensar o justo e o injusto e deimplicarem-se nos seus atos. Assim, não se interrogam sobre a significaçãodos mesmos, e não se empenham para poder lidar de outra forma com elesou com o que os causou.

O filósofo Platão, em “A República”, chamou de justiça a prática de“restituir a cada um o que lhe convém¨ (p.17) ou seja, inicialmente ele queriadizer que devemos fazer bem aos amigos de verdade e mal aos inimigos.Esta passagem da obra de Platão explicita a função da Justiça enquantoforma de punição, de retaliação vingativa. Além disso, como nos dias atuais,a justiça seria realizada para promover a expiação da culpa.

Mais adiante em sua obra, ocorre uma argumentação entre Sócratese Polemarco e surge um questionamento sobre a possibilidade de um ho-mem se tornar melhor ou pior caso façam mal a ele, e Polemarco concluique este homem se tornaria pior. Na tentativa de validar sua reflexão, Sócratescontextualiza novamente a sua questão e pergunta sobre os animais e, maisprecisamente, em relação aos cavalos e aos cães: será que eles se tornari-am piores ou melhores caso façam mal a eles? Polemarco responde que setornariam piores. “Mais adiante concluem que a justiça está relacionada coma perfeição humana e que fazer o mal não é ação de um homem justo, quer

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seja a um amigo, quer a qualquer outra pessoa, mas, ao contrário, é a açãode um homem injusto” (p.21).

Freud, em seu texto “Totem e Tabu” (1913), baseado em uma extensapesquisa antropológica, conta uma história mítica sobre a fundação da civili-zação. Este mito supõe que inicialmente os homens primitivos viviam embandos, como irmãos. Eram dominados por um pai, tirano e autoritário. Ha-via uma submissão absoluta a este pai que gozava de todos os privilégios,inclusive da posse de todas as mulheres do bando. Além disso, na medidaem que os filhos cresciam, eles eram expulsos do grupo. Em um certo dia,os filhos retornam e unem-se para matar e devorar o pai, colocando um fim àhorda patriarcal. Por tratar-se de canibais selvagens, quando devoravam opai, realizavam a identificação com ele, podendo cada um simbolicamenteadquirir parte de sua força.

A partir do assassinato, perceberam que poderia ocorrer a algum dosfilhos ter a vontade de ocupar o lugar do pai novamente, mas sabiam queeste pagaria o preço de poder ser morto e devorado caso conseguisse gozardeste privilégio. A partir disso criam um pacto de constituírem-se apenascomo um grupo de irmãos, tendo os mesmos direitos e as mesmas interdi-ções, assim proteger-se-iam mutuamente contra o retorno de um pai tirano.Na origem deste pacto, está uma noção de responsabilidade coletiva pelanova lei instaurada, e, com isso, como nos mostra Maria Rita Kehl em seulivro “Sobre Ética e Psicanálise”, “há uma passagem da condição de filho àde irmão ou da condição de súdito à de cidadão” (p. 44). É nesta construçãoconjunta de limites e possibilidades ou de deveres e direitos que pode estarvinculada à justiça.

Em outra passagem da obra de Freud, no texto “Psicologia de grupoe análise do ego”, a justiça está relacionada com uma exigência do instintogregário humano. Ele nos fala que um irmão mais velho certamente age comciúmes de seu irmão mais novo e gostaria de lhe colocar de lado e mantê-loafastado dos pais. Quando percebe que a criança mais nova é amada pelospais tanto quanto ele próprio, vê-se forçado a se identificar com o irmão, atépara não perder o amor dos pais. “Assim, no grupo de crianças se desenvol-

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ve um sentimento comunal ou de grupo, que é ainda mais desenvolvido naescola. A primeira exigência feita por esta formação reativa é de justiça, detratamento igual para todos.” ( p. 152)

Com relação ao problema de violência da juventude e nas periferias,podemos constatar que existem vários tipos de adolescentes que são trata-dos de forma significativamente diferente.

Os jovens que cumprem medida sócio-educativa na FASE, quase emsua unanimidade, são provenientes de famílias em situação de pobreza ma-terial, nas quais, via de regra, há a ausência da figura paterna e o envolvimentode familiares com a drogadição ou em delitos. Vivem em locais da periferiadas cidades nos quais o acesso aos seus direitos de cidadão ficam prejudi-cados. Em geral estes locais são controlados por grupos de traficantes queimpõem suas regras aos moradores. Os atos violentos e ilícitos são banali-zados e se constituem como parte da rotina cotidiana dos moradores. Oassassinato de jovens entre diferentes gangues de tráfico é freqüente. Pode-ríamos pensar que estão inseridos em uma estrutura social semelhante à dahorda primitiva proposta por Freud, que era dominada pelo pai tirano e pelalei do mais forte. Mas, ao contrário dos irmãos da horda que realizam umpacto para a sobrevivência de todos, neste caso, toda vez que o pai é morto,assume outro em seu lugar, que mais cedo ou mais tarde também seráassassinado.

Neste contexto, no qual impera o ódio e o medo entre os irmãos, ajustiça dá lugar às injustiças e aumenta o sentimento de exclusão e insegu-rança. Os frágeis laços familiares e comunitários dos adolescentes não con-seguem sustentar formas de identificação que não estejam permeadas porestas vivências próximas da violência.

O ser humano, desde seu nascimento, constitui sua subjetividadeestabelecendo relações sociais e afetivas essenciais para o seu desenvolvi-mento. Na adolescência, ocorre um luto pelo corpo infantil e uma procura poridentidade adulta, é um momento de instabilidade. Entre os adolescentesque cumprem a medida sócio-educativa de internação é comum referiremem sua fala enunciados como “eu sou 121” ou “eu sou 157”, que são os

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artigos do código penal utilizados para aqueles que são sentenciados por terpraticado um homicídio ou um assalto. Utilizam o verbo “ser” para falar dosdelitos que cometeram. Esta forma de expressão demonstra qual o significa-do que o delito adquire para suas vidas. A espontaneidade com que as enun-ciam evidencia que este artigo do código penal ou este delito faz parte desuas vidas, como alguém que relata sua profissão ou sua nacionalidade.

Antes de ser nada, de não ser ninguém, existe a opção de ser 121 ou157. Parece que estes jovens, através do ato, reivindicam o que deveria serseu de direito, o reconhecimento enquanto sujeito. Um reconhecimento queé seu e, como já dizia Platão, devemos dar a cada um o que lhe convém.

Embora alguns jovens tentem “mudar de vida” – que significa para elessair da “vida do crime”-, constatamos que este se torna um trabalho árduo equase inviável quando buscado solitariamente pelo adolescente. Sabemosque as comunidades e as famílias da periferia não estão indiferentes emrelação a esta propagação da violência, porém sentem-se extremamenteimpotentes e vulneráveis para enfrentá-las pois já vivenciaram inúmeras situ-ações de desamparo sem receber auxílio. A questão também não seria a deeximir os jovens e a sua comunidade de responsabilidades e compromissose considerá-los apenas enquanto vítimas de desigualdades sociais ou deseu meio. Desta forma, estaríamos negando novamente seu reconhecimen-to enquanto sujeito e sua capacidade de alterar a realidade. Por outro lado, aresponsabilidade pela violência que sucede no nosso cotidiano e particular-mente com estes adolescentes deve ser compartilhada por todos.

As práticas usuais de justiça têm realizado um efeito contrário, elasdestituem a responsabilidade de todos: comunidade, família e adolescente.A responsabilidade é considerada como pertencente ao Estado, que é algoabstrato tanto para os que praticam estes atos quanto para as vítimas. Noâmbito do projeto “justiça para o século XXI” tentamos enfatizar a diferençaentre a culpabilização e a responsabilização dos jovens infratores pelo queocorreu. A culpa é algo que, ou o sujeito se assume culpado ou não, a culpanão pressupõe que o autor do ato pense em sua implicação nele. Já a res-ponsabilidade por um ato pode ser dividida entre mais de uma pessoa, é um

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processo que concebe a importância de uma rede de relacionamentos nodesencadeamento dos acontecimentos. A responsabilização ocorre na me-dida em que os sujeitos possam se implicar no ato, podendo efetivamentefalar sobre os fatos e suas conseqüências.

Assim, uma das estratégias principais para promover aresponsabilização tem sido oportunizar um espaço no qual as pessoas en-volvidas em um conflito tenham a oportunidade de falar sobre como estão emrelação ao ocorrido, entender o que se passou e pensar juntos no que sepode fazer em relação às pessoas que estão sofrendo em função do ato deviolência. São chamadas para tomarem parte no processo as pessoas dasrelações do adolescente, tais como, familiares, amigos, vizinhos, professo-res, funcionários da FASE, e da comunidade (como membros de religiões,empregadores ou líderes comunitários) e em alguns casos, as próprias víti-mas do delito e seus familiares.

Além de promover a responsabilização, este processo permite que osenvolvidos possam simbolizar esta experiência e contribuir para o fortaleci-mento de redes de sociabilidade, possibilitando que as pessoas que sofre-ram a violência já não se sintam tão impotentes.

Quando não há esta oportunidade, a repulsão, o medo, o preconceitoaumenta entre os envolvidos, favorecendo a repetição do quadro que levou oadolescente a praticar a infração. A justiça se dá quando há um reconhecimen-to de si e do outro, de suas histórias e seus desejos, ou seja, de sua alteridade.

Neste sentido, tentamos resgatar a função da justiça enquanto valore, assim, enquanto necessidade vital do ser humano, mostrando que a justi-ça não se limita ao campo institucional das atividades judiciais, mas perpas-sa todas as instâncias de relacionamentos sociais. No livro “Pequeno trata-do das grandes virtudes”, André Comte-Sponville considera que “A justiçanão existe, a justiça pertence à ordem das coisas que se devem fazer justa-mente porque não existem. A justiça existirá se a fizermos. Eis o problemahumano.” (p.69)

Estas práticas de justiça não têm a intenção de substituir os siste-mas tradicionais, essencialmente legalistas, mas, sim, de se somarem a

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eles, oportunizando o exercício do direito juntamente com a possibilidade deuma maior implicação do sujeito em relação ao seu ato, através dos espa-ços de fala que lhe serão fornecidos. A violência emerge quando a pessoaque fala não é reconhecida enquanto sujeito, sendo inviabilizado o processode simbolização do que lhe ocorreu. Podemos dizer, então, que a justiça éum direito à palavra2, uma palavra que, na medida em que é escutada, possaser colocada no lugar daquilo que o adolescente buscava através do atoinfracional. Da mesma forma, é essencial que ele consiga deparar-se com oque causou para as outras pessoas que de uma forma ou de outra foramafetadas por seu ato.

Finalizo este texto com uma passagem do livro “Cabeça de Porco” doantropólogo Luís Eduardo Soares e do rapper MV Bill e de Celso Athayde:

“O grande desafio está em humanizar o sujeito que comete ocrime, sem subtrair-lhe a responsabilidade; responsabilizar o“sistema”, sem eximi-lo de responsabilidade de distribuir res-ponsabilidades e aplicar penas, segundo as leis, humanizando-as; humanizar o “sistema”, transformando-o, criando condiçõespara que prosperem a solidariedade e a verdadeira Justiça. Comofazê-lo? Mesmo sendo difícil encontrar a saída o método estáescolhido: a esperança.”(p.125)

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

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2 Conceito de Levinas que retirei da dissertação de Mestrado defendida em dezembro de2006, por Afonso Armando Konzen no Mestrado em Ciências Criminais da PUC-RS, sob oTítulo Sócioeducação, Restauratividade e Tempo Ético: desvelando sentidos no itinerário daalteridade.

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PROJETO JUSTIÇA PARA O SÉCULO XXI. Instituindo Práticas Restaurativas.Apostila de Iniciação em Justiça Restaurativa. Subsídios de PráticasRestaurativas para Transformação de Conflitos.

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CONHECENDO JOVENS, AUTORES DE ATOSINFRACIONAIS, NA FASE¹

Miriam G. Burger²

Max Weber observou que uma das instituições constitutivas da orga-nização social que denominamos Estado é o monopólio do exercí-cio da força física. No Brasil, em áreas urbanas importantes, onde

habitam populações de baixa renda, este monopólio não é expressivo a pon-to de garantir o exercício do Estado de Direito. Nas regiões onde há tráficode drogas e atividades ilegais, impera a lei do silêncio e da discrição. OEstado tem dificuldade de responder às demandas sociais, não apenas noque se refere à segurança pública. Uma grande parte da população é exclu-ída do bem-estar social e Estado de Direito, compreendido como o regimede bem comum.

O exercício da cidadania, visto por Carmem de Oliveira³ como recipro-cidade entre o sujeito e o Estado, é limitado e restrito, dando lugar a açõesilegais, tanto na obtenção de bens como nas resoluções de conflitos.

Na FASE trabalhamos com a população jovem e adolescente origina-da principalmente nas regiões caracterizadas acima. Observamos as parti-cularidades de cada sujeito, fazendo relação com uma perspectiva de maiorou menor disposição para a assunção de responsabilidades e comprometi-mento social. Trata-se de examinar a significação da internação/prisão paracada um dos adolescentes. O que significou a prisão para cada um deles?

O significado de estar “fechado” revela, antes das particularidades decada um, a ruptura com aquilo que vinha sendo a vida lá fora. Há uma quebrade cotidiano, de planos, de relacionamentos, uma espécie de parada no

1 Fundação de Atendimento Sócio – Educativo (antiga FEBEM)2 Psicóloga da Fundação de Atendimento Sócio – Educativo (FASE) e membro do núcleo deJustiça Restaurativa da FASE.3 Oliveira, Carmen Silveira de. Sobrevivendo no inferno. Porto Alegre:Sulina, 2001

BURGER, M. G. Conhecendo jovens...

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tempo propícia à reflexão. Se anteriormente a relação mais prolongada destejovem com instituições se dava através da Escola (onde ele entrava e saíasem envolver-se com professores) agora ele vê-se obrigado a permanecer, acontrolar-se, a escutar (vale observar que essa população geralmente nãodispõe de outros recursos públicos além da Escola, tais como centros cultu-rais, clubes etc). A internação/prisão repercute sobre estes sujeitos na for-ma de “parada para pensar”.

Retomando a significação da prisão na particularidade de cada um,vemos expressarem-se significados reveladores de suas visões e posturasno mundo.

Para alguns o significado da internação vem acompanhado de umsentimento de normalidade como se a prisão fizesse parte de sua vida. Paraeles haverá menos dificuldade de permanecerem em prisão, no cumprimentoda medida sócio-educativa. Dificilmente apresentarão intercorrências disci-plinares. Tais jovens justificam a necessidade do uso de arma como impres-cindível à sua própria defesa e sobrevivência. Estão longe de se referenda-rem nos valores de solidariedade ou de justiça legal. Não demonstram sensi-bilidade no reconhecimento subjetivo do outro.

Para outro grupo de adolescentes, no entanto, vemos que a prisãorepresenta vergonha, arrependimento e preocupação com os seus. Perten-cem em sua maior parte a famílias compostas de pessoas habituadas aotrabalho, geralmente sem antecedentes criminais, e cujo filho passa agoraa reconhecer-lhes valor e importância. Trata-se de um reconhecimento sub-jetivo que facilitará todo o processo de reposicionamento frente às açõesdelitivas.

Analisamos manifestações que indicam maior ou menor distanciamentocom a vida do crime. Representam ao mesmo tempo níveis gradativos dedistanciamento e descompromisso com o estabelecido na lei do Estado deDireito. Tais manifestações dificilmente enquadram-se em um perfil exclusi-vo de interno. Porém são tendências que podem apontar mais para o lado docomprometimento social ou mais para o lado inverso. Estamos traduzindomanifestações, mais do que definindo contornos.

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Jerusalinsky no artigo sobre Adolescência e Contemporaneidade co-loca: “(...) O problema de todo sujeito, sem exceção – a única exceção quepodemos fazer é no campo da patologia grave, ou gravíssima, como na de-mência, nas esquizofrenias mais graves ou em casos de autismo -, é comose representar no discurso social, ou seja, o que valem seus atos e o quevalem as suas palavras no discurso social. O que valem quer dizer o quesimbolizam.”

Neste sentido nos perguntamos o que simboliza para a juventude po-bre pegar em arma? Qual a razão de se tornar tão frágil a barreira pessoal esubjetiva que impediria o uso de arma?

Que reconhecimento social sobra ao jovem diante da imagem de umapaternidade não assumida? Ou de um pai alcoolista? Ou de um pai semtrabalho fixo? As mães em sua maioria trabalham como diaristas (em faxi-nas) ou como empregadas domésticas. Seus salários comprarão dificilmen-te dois tênis de marca.

Elas farão proezas na administração do salário e chegarão para avisita do filho na FASE, com um tênis de marca. O reconhecimento dosinternos pela figura materna se expressa no dia das mães que é comemora-do expressivamente por eles.

Entre os raros internos que assumem seus delitos, temos aquelescujo envolvimento infracional está associado à imagem narcísica do heróidestemido, aquele que não teme morrer, que sente prazer em descarregaradrenalina. A maioria dos jovens não assume seus atos. Diz que a culpa édo outro, que ele foi levado, ou que não teve escolha.

Há os que se dão a conhecer, e os que não se dão a conhecer. Dependeda transferência e da atitude do técnico para que haja facilitação neste sentido.

Conforme Jorge Broide: “(...) é muito difícil a compreensão do sujeito ede sua subjetividade sem uma análise das relações sociais nas quais eleestá imerso e é emergente e porta voz. Diante deste quadro o trabalho psica-nalítico perde consistência quando não aborda um mundo concreto construídopor relações de produção constituintes do inconsciente e da subjetividade,na medida em que formam a vida humana.”

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Procuramos ver as particularidades de cada sujeito, inseridas na lógi-ca daquela família, comunidade, e contexto social. Nesta dinâmica de traba-lho, percebemos a disposição genuína dos sujeitos para o atendimento ediálogo. Sobretudo testemunhamos a possibilidade de incidência da inscri-ção subjetiva nos termos “não matarás, não violarás”. Desta forma ao exami-narmos o adolescente procuramos não ignorar o delito, porém não vê-lo so-mente através dele. A experiência nos tem mostrado que a imagem quefazemos de um sujeito pela leitura do Prontuário se torna absolutamenterelativizavel e distorcida quando enxergamos o que há de vivo por detrás doProntuário.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BROIDE, Jorge. A Psicanálise nas Situações Sociais Criticas: uma abordagemgrupal a violência que se abate a juventude das periferias. Tese de Doutoradoem Psicologia Social . PUC de São Paulo-2006.

OLIVEIRA, Carmen Silveira de. Sobrevivendo no Inferno – a violência juvenil nacontemporaneidade. Porto Alegre: Sulina , 2001.

POLI, Maria Cristina. Clínica da Exclusão. São Paulo: Casa do Psicólogo. 2005.CONSELHO REGIONAL DE PSICOLOGIA-7A REGIÃO. Conversando sobre Ado-

lescência e Contemporaneidade. Porto Alegre : Libretos, 2004.REVISTA DA ASSOCIAÇÃO PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGRE n° 23, 2002 .

Porto Alegre: APPOA, 1995.NASIO, J.D. Lições Sobre os Sete Conceitos Cruciais da Psicanálise. Rio de

Janeiro: Zahar, 1988.

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1 LACAN, Jacques. [1961-62] O Seminário, livro 9: A identificação. Inédito.

ALGO SOBRE NÓS

Marilia Chagas

“– Como o Sr. não refere suas imagens à embriologia?– Podem crer que elas nunca estão longe da embriologia” 1

Quando pela primeira vez vi a forma do cross-cap em um dos encon-tros do Percurso, me chamou a atenção aquela forma sem forma,sem direito ou avesso, sem verso ou reverso – um tecido que se

penetra, se permeia, se invagina. Somente algum tempo depois foi que con-segui fazer a associação; pois já tinha visto esta forma, e ela faz parte decada um de nós há muito tempo.

Retornei às noções de embriologia, e a forma referida por Lacan esta-va lá, se não igual, muito parecida. A certeza de que a semelhança da formanão era mera coincidência, mas estava expressa por Lacan em seu seminá-rio “A Identificação” (1961-62), trouxe novas interrogações. Por que Lacannão utilizou esta analogia? A resposta ele mesmo dá: “Se fossem tomadascomo metabolismo, uma metamorfose guiada por elementos de estruturacuja presença e homogeneidade com o plano no qual nos deslocamos noconteúdo do significante são termo de um isolamento de alguma maneira pré– vital da pegada de algo que poderia talvez nos levar a formalizações quemesmo no plano da organização da experiência biológica poderiam se mostrarfecundas.“

É, ao mesmo tempo, surpreendente e intrigante que a forma eleita porLacan, para que possamos visualizar a formação e o desenvolvimento doinconsciente, seja semelhante à forma que o embrião adota em sua forma-ção e desenvolvimento. Importante que esta semelhança não seja despreza-da, talvez ela nos guie para uma percepção diferente, para outra possibilida-

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de de ver um sujeito. Esta possibilidade me seduziu, as formas semelhantesficavam cada vez mais próximas, enquanto procurava tecer as conexõesentre a Embriologia, a Topologia e a Psicanálise.

O desenvolvimento embriológico é um processo de multiplicação cons-tante, uma associação de células indiferenciadas que acontece durante astrês primeiras semanas após a fecundação. A partir de 24 horas contadasapós a fertilização, o zigoto começa a sofrer sucessivas divisões mitóticas,originando células filhas denominadas Blastômeros. No vigésimo primeirodia, acontece a gastrulação: as pregas neurais da região média do embriãose fundem em direção à região cefálica e caudal, formando o tubo neural.Conforme as pregas laterais migram no sentido ventral, ao mesmo tempocom as pregas cefálicas e caudal do dobramento longitudinal, o saco amnióticoexpande-se progressivamente e aumenta consideravelmente a sua área atéenvolver todo o embrião.

Quando os dobramentos embrionários cessam, o embrião está reves-tido pelo ectoderma que formará a epiderme e as mucosas que revestemtodas as cavidades do corpo. O ectoderma dá origem: (1) – à epiderme e àscélulas de revestimento das glândulas que se abrem nela, e aos apêndicesda pele, os pelos e as unhas; (2) – e praticamente todo o sistema nervoso,incluindo os gânglios cranianos e espinhais, os gânglios simpáticos, o loboposterior da hipófise e o corpo pineal.

Para a fisiologia, a pele é um órgão-fronteira, ela nos envolve. De to-dos os órgãos dos sentidos é o mais vital: pode-se viver cego, surdo, mudo,privado do olfato e do paladar, mas sem a integridade da maior parte da pelenão se sobrevive.

A epiderme, em suas camadas mais profundas, constitui uma zona-barreira que regula a passagem de substâncias químicas e agentes infecci-osos. Ela representa um verdadeiro sistema cinético, no qual a célula sedivide, emigra, se diferencia e morre. Calcula-se que o tempo de troca daepiderme no ser humano é de aproximadamente trinta dias.

A derme é um tecido de sustentação, eminentemente fibroso. De-sempenha uma função protetora. A hipoderme tem estrutura de esponja e

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desempenha várias funções: isolante, amortecedora e armazenadora.Esta descrição rápida e resumida é apenas para que fique mais claro

e compreensível as várias funções deste órgão que nos envolve e que é semsombra de dúvida o maior órgão do corpo humano. A pele é permeável eimpermeável. Além de tudo ela transmite ao cérebro as informações proveni-entes do mundo exterior, inclusive mensagens impalpáveis, não esquecendoque sua função principal é justamente o tato.

Em Freud encontramos dois grupos de idéias relacionadas com apele: o primeiro de 1905 que a considera como superfície de contato; outroem 1920 que a considera uma barreira limitante.

O sistema nervoso central desenvolve-se como a porção da superfíciegeral do corpo embriônico que se vira para dentro. Portanto, o SNC é umaparte escondida da pele ou, ao contrário, a pele pode ser considerada comoa porção exposta do sistema nervoso – ambos têm a mesma origem embri-onária. O estímulo que afeta a pele afeta também o sistema nervoso, comose eles fizessem parte de um mesmo tecido que se interpenetra, se toca, seroça, se acaricia, em que precisemos tomar consciência destes fatos.

Freud e algumas gerações de seus seguidores se ocupavam de neu-roses caracterizadas como histéricas, obsessivas, fóbicas ou mistas. Hojepodemos considerar que a maior parte da clientela psicanalítica é constituí-da pelo que chamamos de estados-limites. Na verdade, estes doentes so-frem de uma falta de limites: incertezas sobre as fronteiras entre o Eu psíqui-co e o Eu corporal, entre o Eu realidade e o Eu ideal, bruscas flutuaçõesdestas fronteiras, acompanhadas de depressão, indiferenciação das zonaserógenas, confusão das experiências agradáveis e dolorosas, não distinçãopulsional que faz sentir a emergência de uma pulsão como violência e nãocomo desejo, vulnerabilidade à ferida narcísica devido à fraqueza ou às fa-lhas do envelope psíquico, sensação difusa de mal – estar, sentimento denão habitar a sua vida, de ver de fora funcionar o seu corpo e seu pensamen-to, de ser o espectador de alguma coisa que é e que não é sua própriaexistência.

Convivo diariamente com demandas estéticas e terapêuticas, e o que

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chama a atenção é que a circunscrição destas demandas vai muito além docorpo. Apesar do discurso aparentemente estar restrito ao corporal, logo sepercebe que algumas críticas e sentimentos estão condicionados ao olhardo outro, ao mesmo tempo em que ouvimos relatos de dores, contrações edesconfortos que perturbam a rotina. Durante a anamnese, escutamos críti-cas ao estômago que não obedece; às pernas inquietas que não deixamdormir; à respiração que fica trancada; ao intestino que não funciona adequa-damente; às costas que doem; fala-se do corpo como se ele fosse um enteexterno, como se não estivéssemos investidos dele, ou como se ele nãofosse EU.

A expressão “é uma questão de pele”, para se referir à sensibilidadede alguém frente a outras pessoas, traduz na sabedoria popular a função deaceitar o semelhante e rejeitar o estranho. Parece importante destacar que afunção cumprida pela representação mental da pele no esquema corporal,como contribuição ao sentimento de identidade, coincide com alguns estu-dos no campo da biologia. Segundo estas pesquisas, a pele cumpre funçãoimunológica (Panconesi et allii, 1984). O sistema imunológico, cuja missãoé vigiar a identidade do organismo, exerce a função de reconhecer o familiare diferenciá-lo do estranho.

Como se no fenômeno psicossomático houvesse uma falha, uma in-terrupção no processo de separação, que J.D. Nasio chamou de “ausênciade afânise“. O que explicaria o enigma da holofrasinação entre S1 e S2.

No desenvolvimento “normal” de uma neurose, S1 fica recalcado juntocom a pulsão primordial, e S2 vem tentar suprimir a falta, dando inicio àcadeia de significantes, que começa a se organizar a partir desta falha inau-gural. Já os fenômenos psicossomáticos escapam às construções neuróti-cas. Ficaria algo em aberto, congelado, gelificado, que nada tem a ver comas conversões histéricas. Desta forma, não seriam sintomas no sentido ana-lítico do termo. Eles se situariam “na fronteira do real e do imaginário, nonível do gozo do Outro”. Haveria como uma abertura no campo do Outro, e alieles entrariam.

O que chama atenção na imagem que Lacan usa para explicar as

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formações do inconsciente é que elas reproduzem a formação do embrião.Será que isto é apenas uma coincidência? Encontrado no real do corpo estaforma essencial, inerente à nossa sobrevivência como espécie e como sujei-to, talvez nos leve a novas reflexões e a mais algumas pegadas. Reveladopor meio de imagens e idéias; semelhanças e analogias, chegamos à cum-plicidade necessária existente entre o inconsciente e o corpo. O que aconte-ce com um, repercute no outro. Eu sou o que me acontece, e meu aconteci-mento está impregnado no órgão mais superficial e abrangente do corpohumano, a pele.

O que não foi dito se torna táctil, visível, fica à flor da pele, podemostocá-lo, acariciá-lo. Sentimos na ponta dos dedos a tensão que se cristalizaem dor, nos contorcendo, nos segurando, nos obrigando muitas vezes aassumir atitudes inadequadas, ao que reconhecemos como humano, com-prometendo nosso equilíbrio, tão frágil! A pele, os músculos, o corpo segu-ram estas informações, ocultam sentimentos e afetos, ansiedades e angús-tias, supostos fracassos e idealizados sucessos.

O que não foi dito provoca aderência das fáscias musculares, forman-do o que poderíamos, com alguma audácia, chamar de “Ponto de BastaCorporal”. Lacan no Seminário “As Psicoses”, lição de 6 de junho de 1956,se refere ao Ponto de Basta de forma bastante clara e que nos permitemetaforizá-lo, trazendo-o para o imaginário do corpo. “Essa concepção ma-ciça da realidade redunda numa explicação bem misteriosa sustentada pe-los analistas, segundo a qual uma recusa em perceber, provoca um buraco,e que surge, então, na realidade uma pulsão rejeitada pelo sujeito. Mas, porque aparecerá neste buraco alguma coisa de tão complexo e arquitetadoquanto a fala ? É o que não se diz. “O que não se diz fica marcado no corpo,tornando o inconsciente visível e táctil, ao invés de buraco, uma contratura,uma aderência, um nó. Nó que, cristalizado, evidencia o desejo que nãopode ser realizado.

O desejo está além e se transforma em fetiche, uma tara, um tabu,um esconderijo. Falha que fala de amarrações. O nó que atamos e desata-mos; que prende e liberta; que sustentamos no corpo. E, quantas vezes

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dizemos que: “ficamos com um nó na garganta?”; “Querem tirar o meu couro; “Fiquei em carne viva “; “ Estou com os nervos à flor da pele “; “É umaquestão de pele “; “Ele é um casca grossa “; “entrar na pele de alguém “. Sãoexpressões idiomáticas ou nossos próprios demônios, que revelam a impor-tância deste receptáculo, chamado CORPO.

Roland Barthes, em Fragmentos de um Discurso Amoroso, interroga:“Como repelir demônios (velho problema)? Os demônios, sobretudo se sãode linguagem (e poderiam ser de outra coisa?) são combatidos pela lingua-gem”. Barthes, diz que: “a linguagem é uma pele; esfrego minha linguagemno outro. É como se, em vez de pele, tivéssemos palavras, ou tivéssemosdedos na ponta das palavras.”

Para ilustrar meu trabalho, vou me valer de uma história acontecida hápoucos dias. Fui surpreendida por uma cliente que acompanho há quasecinco anos. É médica, tem 58 anos. É hipertensa e tem uma história familiarpreocupante. A mãe morreu por causa de um câncer de mama. Duas irmãsjá tiveram câncer de mama, e a filha retirou dois cistos mamários benignos.Ela faz ginástica três vezes por semana; sendo assim; temos nos encontra-do seguidamente durante esses quase cinco anos, já existe alguma dose deintimidade. Fiquei atônita quando ela me perguntou: “– Já te contei do câncerde mama que tive à semana passada?” Por motivo de trabalho estava emoutra cidade, em outra casa, sozinha. Logo depois do jantar sentou para verTV e começou a achar que uma mama estava maior que a outra. Com olharde médica palpou as duas mamas, e a dúvida persistiu. Ficou muito angus-tiada sentindo um mal-estar generalizado. Conseguiu se controlar e resol-veu tomar um banho onde poderia fazer um auto-exame mais minucioso.Durante o banho, teve a certeza que uma mama estava maior do que a outrae que, assim, estava decretado um câncer. Passou mal a noite. Teve umprurido generalizado, deixando no corpo marcas que se chamam dermografis-mos. No outro dia realizou uma mamografia. Somente após a comparaçãocom as anteriores foi que o câncer de mama se desfez. Ela terminou seu relatocom a seguinte questão: “Por que eu não? Estou a salvo ou sou a excluída ?”Pergunta sem resposta, ou “objeto a” dando sustentação ao discurso.

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Difícil admitir que somos UM. Difícil entender que mental e físico nãoexistem separadamente. Um não é apenas representação do outro. Nestarelação não existe hierarquia. Qual é o mais importante? Qual tem maior oumenor significado? Como definir estas fronteiras? Quais são seus limites?Estas são algumas das questões que me trouxeram ao Percurso.

A tentativa de responder a estas questões me levou a pensar naTopologia da Cinta de Moebius.

Quando Lacan recortou o cross-cap no Seminário “A Identificação”,pelo corte do oito interior, resultou em uma estrutura moebiana, que seriarepresentante do sujeito barrado, e separou-se um outro pedaço, de formaembriológica, retorcida, que ele chamou de orelha de asno, porém com umaborda, onde ele representou o objeto a. Seria uma forma de representar ofantasma ( $ <> a), S barrado punção de a.

Freud nos mostrou que a pulsão não era somente uma película teóri-ca, que une e separa o corpo da mente, e sim o processo pelo qual a memó-ria dos atos físicos influencia os futuros atos físicos e mentais a eles associ-ados. Para ele, a pulsão seria como o resultado de uma espécie de “tradu-ção simultânea”, de quantidades em qualidades. Proust já tinha dito que: “ocorpo tem memórias...”

Não seria o cross-cap de Lacan a representação dessas “memóriasembrionárias?” Como que uma versão dos sinais mais primitivos do corpo?

O que quero acentuar é que a Topologia, a Embriologia e a Psicanáli-se nos levam a pensar que existe uma outra forma possível de compreendero sujeito, facilitando o desligamento de certos hábitos de nosso pensamentochamado lógico. Voltemos ao embrião: o folículo embrionário mais superfici-al, ectoderma, forma por sua vez a pele e o cérebro. O cérebro, superfíciesensível protegido pela caixa craniana, está em contato permanente com aepiderme. O cérebro e a pele são órgãos e superfície, a superfície interna oucórtex estando em relação com o mundo exterior pela mediação de umasuperfície externa, ou pele.

Lacan no Seminário 11. “Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psi-canálise”, capítulo II, “O inconsciente freudiano e o nosso”, diz: “Muito bem,

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o inconsciente freudiano se situa no ponto em que, entre a causa e o que eleafeta, há sempre claudicação. Nessa hiância, alguma coisa acontece. Nosonho, no ato falho, no chiste, o que chama atenção primeiro é o modo detropeço pelo qual eles aparecem. Tropeço, desfalecimento, rachadura. Adescontinuidade, esta então a forma essencial com que nos aparece desaída o inconsciente como fenômeno – a descontinuidade, na qual algumacoisa se manifesta como vacilação. Só que a neurose se torna outra coisa,às vezes simples enfermidade, cicatriz, como diz Freud – não cicatriz daneurose, mas do inconsciente.

Eu acrescentaria neste parágrafo de Lacan, além do sonho, do chiste edo ato falho, o SILÊNCIO. Além do tropeço, desfalecimento, rachadura, O NÓ.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:ÁVILA, Lazlo Antonio. A. O eu e o corpo. São Paulo: Escuta, 2004.ANZIEU, Didier. O eu-pele. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1989.BARTHES, Roland. Fragmentos de um discurso amoroso. Ed Martins Fontes,

1977CHIOZZA, Luiz. Os afetos ocultos In: COSTA, Jurandir. O vestígio e a aura – corpo

e consumismo na moral do espetáculo. Rio de Janeiro: Garamond, 2004.GUIR, Jean. A psicossomática na clínica lacaniana. Rio de Janeiro: Jorge Zahar

Editor,1988.LACAN, Jacques. [1961-62] O Seminário, livro 9: A identificação. Inédito._____. O seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise.

Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1979._____. O seminário livro 5: as formações do inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge

Zahar., 1999.MONTAGU ,Ashley. Tocar: o significado humano da pele .Ed Summus, 1988.NASIO, Juan D. As Formações do objeto a psicossomática. Rio de Janeiro: Jorge

Zahar Ed, 1993.OBERMAYER, Maxmilian. Psychocutaneous medicine. Springfield, IL: Charles C

Thomas, 1955SIVADON, Paul; FERNANDEZ – ZOILA, Adolfo. Corpo e terapêutica: uma

psicopatologia do corpo. Campinas, SP: Papirus, 1988.

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ESTRUTURAÇÃO PSÍQUICANA OBESIDADE E O CORTE NO ÓRGÃO

Sandra Meurer Romanini

Pensar como a estruturação psíquica se dá, em termos de constitui-ção do sujeito, é um dos questionamentos necessários para enten-dermos os efeitos das técnicas que estão à disposição no âmbito

dos tratamentos de saúde – a nível medicamentoso ou cirúrgico – para o quejá se transformou em epidemia na contemporaneidade: a obesidade.

Lacan1, comentando acerca do sujeito e da constituição da estrutura,aponta para considerarmos “a questão de suas relações como alguém quefala, havendo o grande Outro, que é constitutivo da posição deste sujeito”.Laznik2, a partir de suas observações clínicas, desvela que desde os primei-ros meses o bebezinho vai tendo “através do olhar do Outro a instauração daimagem do corpo e conseqüentemente do espaço imaginário”. Questõesque revelaram a importância da alienação da criança ao olhar, à voz dos pais,que engatando a pulsão do bebê, abrem a possibilidade da representação.Operação de fundação do corpo da criança e primórdios do processo deconstituição do sujeito, quando a alienação ao outro materno instaura e es-trutura a entrada ao estágio do espelho.

Percebemos que na história de obesos, desde a infância, a alienaçãofica instaurada, como ilustra Marcos que aos 6 anos de idade, pesando 74quilos, diz com um brilho inebriante no olhar e uma fala por vezes incompre-ensível, “Eu coomo muuito”. Ao ser questionado se havia mais alguém emsua família que comia como ele, este diz com satisfação: “meeu pai”. Mes-mo que se reconheça similar ao pai, através do sintoma, é no corpo da mãe

1 LACAN, Jacques. O Seminário, livro 5: as formações do inconsciente. Rio de Janeiro:Jorge Zahar Ed., 1999.2 LAZNIK, Marie-Christine. A voz da sereia: o autismo e os impasses na constituição dosujeito. Salvador: Ágalma, 2004.

ROMANINI, S. M. Estruturação psíquica...

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que o acesso continua irrestrito. Quando utiliza a expressão “mamá na teta”,é com um olhar furtivo que o faz, dizendo ter o acesso ao seio possibilitadopela mãe. As expressões que Marcos recorrentemente ouve da mãe são “elenão vive longe de mim”, “eu é que faço tudo por ele,...”, “O pai? ... Ah, sai demanhã e volta de noite”. O pai, colocado numa inconsistência de presençano discurso da mãe, fica com acesso disponibilizado pelo sintoma – um paide 150 quilos.

Especificamente, na questão da obesidade, ocorre algo recorrente,como aqui ilustrado pela história de Marcos – um “desmame insatisfatório”,“havendo uma extensão demasiada do tempo de aleitamento e um excessona introdução de alimentos pastosos e sólidos”. Quando “percebemos umintervalo não demarcado entre a demanda da mãe e a demanda da criança,ou seja, uma não suposição da mãe de que haja um desejo autônomo nacriança”3. Algo instalado de modo exacerbado da experiência em si de satis-fação do oral, marcado por uma voracidade. Enquanto que o acionamento dainterdição ao corpo materno fica deficitário.

Outro recorte de história desvela como ocorre a saída da infância paraa pré-adolescência de Pedro, que aos quase 10 anos pesava 80 quilos, perí-odo em que seu cotidiano incluía o convívio com a mãe, com um irmãoadolescente e com o pai que retornava à noite devido ao trabalho em umacidade vizinha. Ao longo do ano em que completara 10 anos – período emque dormia, na maior parte das vezes, no quarto dos pais, fato justificado pormedos noturnos – o pai passou a dormir em apartamento na cidade vizinha,por considerarem muito desgastante retornar todas as noites. A rotina daespera ao pai era articulada pela mãe, que o aguardava sempre com o jantarpronto, fosse o horário em que fosse retornar e se retornasse. E, foi duranteeste ano, que coube à Pedro desvendar, tanto o enigma que leva à sexuação,

3I Jornada Municipal sobre Infância e Adolescência. Meurer Romanini, Sandra, DesmameInsatisfatório como marca na desnutrição e na obesidade: histórias e possibilidades dereflexão. Novo Hamburgo. Prefeitura Municipal, 2006.

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natural na re-edição edípica, quanto um segredo velado da intimidade dospais que estes calavam, algo que deixaram ao encargo de quem primeira-mente o revelasse. Assim, em uma das visitas ao pai no apartamento, Pedropassou a perceber no banheiro duas escovas de dentes. A montagem doenigma passou a se dar, porém acompanhado do desvendar de algo acimade seus recursos de representação. E, na festa de final de ano, vê o pai comuma namorada na confraternização da empresa em que este trabalhava. Aovê-los, indispôs-se e pediu para voltar para a casa de sua mãe, quando o paiaciona um motorista da empresa para levá-lo para a mãe, sem dizer palavra.Pedro revela para a mãe aquilo que já estava posto, mas que não havia sidoassumido ou discutido entre o casal. Período em que desvenda algo do de-sejo do pai por uma mulher, enquanto a mãe inicia uma transformação dereconexão com seu desejo, emagrecendo 40 quilos. O casal reorganiza-seem relação aos seus desejos. Porém, o resultado para Pedro, que tinha naépoca 10 anos e sete meses, foi o aumento de exatos 40 quilos – exatamen-te o peso perdido pela mãe no mesmo período – passando a 120 quilos.Demonstrando o quanto Pedro não está suficientemente individuadosimbólicamente e o quanto ele está sem representação individuada destamãe – não houve suficiente exercício subjetivo de inscrição do sujeito. Pedrovê-se na mãe, mas não sendo castrado suficientemente, frustrado suficien-temente num distanciamento das questões deste casal, utiliza o recursomais estimulado para dar conta das emoções, “comer/comida”. E, diferente-mente da mãe, não tem recursos subjetivos neste momento para sair destaposição a qual fica colocado.

Nasio4 nos traz a possibilidade de pensar a “lesão de órgão”, queutilizo aqui como norteador para pensar como o sintoma na obesidade (arepetição do comer/comida) como levando a saídas sem saída.. ConformeNasio, uma lesão se instalaria através de “apelos e retornos”, caracterizando

4 NASIO, J.D. Psicossomática: as formações do objeto a. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,1993.

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um retorno sob forma de um “apelo fantasístico” que estaria caracterizadopor três coisas: ser um “apelo maciço” – que se faria sob a forma de sons eimagens; um “apelo antecipador” – aquele que ultrapassa a capacidade deacolhimento do sujeito e este “apelo ser fascinante”. Neste sentido algo deum apelo que é feito à criança pelo Outro (nesta situação seus pais) ao qualela não tem condições psíquicas e estruturais de responder. A repetição do“comer/comida”, introduzido pelo Outro como elaboração e saída de confli-tos, com carência de inscrição de palavras suficientemente sustentadoras,não relança para saídas de representação, de compreensão.

Um “comer/comida” em que o alimento passa a marcar uma presençareal que o outro não assume, visto que o pai não se faz suficientementepresente, não sustentando uma interdição. Desta forma, o alimento acabapor assumir a função das palavras, porém o “comer/comida” não faliciza, e oalimento depositado no corpo acaba por sobrecarregar os órgãos.

Por que pensar numa “lesão de órgão” na obesidade? Ora, é atravésda silenciosa instalação no corpo de um peso subjetivo – ao exceder quasesempre o dobro do que é estipulado como normalidade5 – que falha a estru-tura e algo escapa de uma sustentação simbólica, e vai se instalando aolongo de anos nos corpos. Tal funcionamento altera, dilata tecidos, sobrecar-rega órgãos – quando diabetes, hipertensão, problemas cardíacos, úlceras,gastrites, artrites, entre outros, acabam por marcar os corpos dos obesos.Assim como Pedro com a pulsão demasiado demarcada nesta ingesta, comuma aglomeração da libido na boca, que não se constitui como zona erógenapela precariedade de recursos de representação – interdições não aciona-das, palavras não significadas – encontra no prenúncio da puberdade oreacionamento impactante daquilo que mais foi inscrito a nível subjetivo paraauxiliar em momento de conflitiva de re-edição edípica. Ou seja, se foram oalimento e a boca buscados para resolução daquilo que não haviam palavras

5 Dados do Ministério da Saúde – Instrumentos utilizados: curvas de crescimento peso/idadepara crianças como no Cartão da Criança ou o Índice de Massa Corporal (IMC).

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e um Outro que representasse, será este o recurso mais buscado para darconta deste período de transformações. A busca de uma elaboração subjeti-va fica atada, encrustada aà uma necessidade fisiológica.

Em termos de estruturação psíquica, lanço a hipótese de que na obe-sidade o gozo fálico ficou atado, encrustado a um gozo no corpo, exatamen-te pela precariedade de suposição de sujeito, paralela à precariedade deentrada do pai. Tanto pelo desejo da mãe não ficar demarcado para além dobebê, que fica marcado como continuidade do falo desta mãe, estacionárioao corpo desta propriamente dito, quanto pela comida como representante,artefato de sedução. Assim, uma necessidade orgânica muito associada àfunção do desejo, como no caso do jantar preparado recorrentemente pelamãe para esperar o pai de Pedro, mas que era comido por Pedro antes dedormir com ela, justificado pelo medo. Posição, como aponta Nasio, “‘fasci-nante, fantasiada’, com apelo irresistível e ‘antecipador’” desta mãe que nãosustenta um lugar próprio ao filho, protegido destes apelos.

Nasio trabalha o caso psicossomático relembrando Lacan, que assi-nala um “‘emassamento’6 do par significante S1 e S2, com ausência derecalcamento primordial”. Ou seja, um significante necessário para que arealidade se mantenha – um significante fora – não estaria lá. Nas duashistórias apresentadas, há algo que a figura do pai parece só manter comuma presença e representação física, sem uma consistência sustentada poruma inscrição simbólica. Uma circulação da criança e do pré-adolescentepor uma dimensão tida como conjugal – mamando aos 6 anos de idade, oudormindo com a mãe na ausência ou presença do pai aos 10 anos.

Nasio situa a “lesão de órgão” como não havendo significante externo,não havendo Nome-do-Pai. Algo buscado e sustentado na comida na cenafamiliar, integradora de emoções para os obesos.

6 Prise em masse no original, onde os tradutores adotaram o neologismo derivado do verboemassar no sentido de “converter em massa”.

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Situo o sintoma da ingesta da comida, como representante de ummovimento crepuscular incessante, representado pelo beliscar inconseqüente,onde o obeso busca o encontro com um outro que o suponha sujeito dedesejo próprio. Comida apresentada sempre como contendo “força para cres-cer”, garantindo algo de separação, um marco visível ao olho, buscado narealidade7 visto não estar representado subjetivamente na estrutura. Garan-tindo o retorno ao sujeito, porém através da ingesta e do inchaço deste cor-po, que é frágil em sua representação de imagem, de eu. Obesos não têmum encontro fácil com o espelho, objeto plano, e trazem no discurso o termo“a gente” para falarem de si, ao invés da utilização do pronome “eu”, emmuitos dos casos escutados. Nasio também refere “‘formações de objeto a’como produções psíquicas onde não há referência significante”. Uma inscri-ção de sujeito inacabada, aqui entendida enquanto fenômeno psicossomáticopor alterar de maneira tão abrupta as dimensões dos corpos, enquanto que odesejo fica pobremente demarcado nas cenas familiares destes casos.

Trago também a experiência de Flávio, que aos 48 anos de idade,após acessadas e assumidas todas as promessas de diminuição de seus140 quilos – desde receitas miraculosas, medicação, até a cirurgia bariátricade redução do estômago – percebe que continua aumentando seu peso.Apresenta em sua história também a particularidade de ser filho de uma mãeque apresentava o pai como insuficiente e tomava-o, na infância, como con-fidente das relações extra-conjugais dela. O período em que houve maioraumento de peso corpóreo de Flávio foi na adolescência. Flávio considerahoje que “a tristeza pela percepção de não ser amado gera ansiedade gene-ralizada, bem como a ingestão descontrolada de comida”8. Compulsão que

7 Na obesidade algo falha na instalação completa do narcisismo por não haver um outro quesustente suficientemente S2 – significante do Nome-do-pai, a mãe pouco simbólica e o paique remete o filho de volta para a mãe. Quando o alimento fica apresentado como “ficarforte”, “fazer crescer” e passa a ser buscado como um marco de realidade, porém umafalsa inscrição do pai.8 Depoimento de paciente durante dinâmica de grupo terapêutico acerca de quais sentimen-tos e sensações lhe ocorrem diante da obesidade e da busca de tratamento através decirurgia bariátrica de redução do estômago.

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sustenta um controle, mas em forma de uma defesa psíquica diante da de-manda do desejo materno – ainda operando a nível inconsciente, fazendopermanecer em zona de gozo, sem lugar próprio e perpetuando um evitamentoà castração até os dias atuais. Mas, diferentemente de buscar apenas arte-fatos de resolução, busca hoje uma escuta advinda da análise, operaçãosustentada na transferência, onde passa a escutar a si mesmo naquilo quesuas palavras, seus atos ou atos falhos, acabam por revelar.

Três recortes de histórias de vida distintas, mas que se assemelhampelo aumento do peso corpóreo acentuado, enquanto que o alimento ficapresente silenciosamente sustentando elaborações de outra ordem – evitaçãoà limites, às castrações, redundando sempre em culpa pela ingesta. O silen-cioso da pulsão que, mesmo que não trazendo à tona suas manifestaçõessimbólicas, não deixa de se fazer presente através de um estado de desor-ganização do esquema corporal, enquanto instala prejuízos graves à saúdetanto orgânica, quanto psíquica.

Percebe-se uma constituição de estrutura psíquica inacabada. E omenino, o adolescente e o adulto, apresentados minimamente em suas his-tórias, ficam enredados numa região incestuosa, a mercê de ser o represen-tante do falo materno, mas sem deslizamento do narcisismo para uma pas-sagem edípica adequada. Quando mantém, através do alimento, uma prótese,um eixo ordenador de resolução dos conflitos. Uma proto-sustentação neu-rótica ao Nome-do-Pai, metáfora constitutiva de uma estrutura em que o falopassa a existir. Porém, neste jogo que o falo produz na vida do sujeito, emse falando de obesidade, no lugar da mãe, inscrição que deveria levar aopai; mas inscrito de forma deficitária, está sempre associado ao “comer/comida” prá ficar forte, pra ser homem. Não deixando de ser falo da mãe,possibilidade de passagem ao segundo tempo do édipo para perceber o falono pai, a lei no pai; pois o obeso continua a sustentar inconscientemente,através da compulsão alimentar, o desejo do desejo da mãe – primeiro tem-po do Édipo.

Composição que desvela um materno em que a comida é o véu defantasias sexuais desta, que para ser mulher há de seduzir através do cozi-

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nhar para seu homem, “pegá-lo pela boca, pegá-lo pelo estômago”. Freud9

nos traz que “as zonas erógenas podem atuar como substitutos dos órgãosgenitais e se comportarem analogamente a eles“. A mãe,,por negar a castra-ção, enreda o filho desde a matriz primordial neste jogo onde o desejo delafica enlaçado em uma necessidade alimentar. Como percebemos o preparare “comer/comida” fica velando fantasias de sedução da mãe e a criança,adolescente e adulto, aqui apresentados, buscam neste “comer/comida”desvendar e fazer cair o objeto, a mãe que de outra forma não mostra seudesejo. Lúcia Mees10 nos aponta que “a sedução tenta dar conta de um mitodo surgimento do sujeito do desejo”, e na obesidade, o “comer/comida” estáentão também como sustentador da “fundação do sujeito desejante”. Crian-ça e adolescente que, para atravessar o édipo ou reeditá-lo, porém comprecariedade da instalação do narcisismo secundário, utilizam a seduçãoembutida no alimento. Porém, conforme Lacan11, para a evolução do Édipo éo plano da privação da mãe que é necessário, quando “coloca-se para osujeito a questão de aceitar, de registrar, de simbolizar, ele mesmo, de darvalor de significação a essa privação da qual a mãe revela-se o objeto”. Quando“essa privação, o sujeito infantil a assume ou não, aceita ou recusa”.

Desta forma, no tratamento da obesidade, há interdições a seremmarcadas para o advir do sujeito em sua relação à castração.

A cura da obesidade ofertada pela medicina através da medicação edo corte no órgão:

As questões de estruturação psíquica e constituição do sujeito sedesdobram num encontro complexo, porém necessário, para questionar as

9 FREUD, Sigmund. Obras Psicológicas Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1996, Vol. XIV.10 MEES, Lúcia Alves. Abuso sexual – trauma infantil e fantasias femininas. Porto Alegre:Artes e Ofícios, 2001.11 LACAN, Jacques. O Seminário, livro 5: as formulações do inconsciente. Rio de Janeiro:Jorge Zahar Ed., 1999.

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formas atuais de tratamento à obesidade e a possibilidade de considerar acompulsão alimentar como algo para além de simplesmente uma ingestaexcessiva.. Considerando a precariedade da passagem, em termos de ope-ração psíquica, que leva um sujeito a ser castrado, analisada anteriormentenos casos de obesos – trago a repetição da compulsão alimentar enquantouma proto-sustentação, uma ancoragem da estruturação neurótica em si.Ponto importante que fica negado, desconsiderado, na maior parte dos trata-mentos à obesidade adulta, no campo médico – o mais procurado pelosobesos – que direciona o tratamento para a urgência, através da mensuraçãoe quantificação dos dados orgânicos com exames de ponta quando se falaem tecnologia. Porém, pacientes e médicos, colocam em risco as técnicasde intervenção no corpo por desconsiderar a condição da estruturação psí-quica dos sujeitos.

Através da noção, divulgada aos pacientes nos tratamentos médicos,de que um “diagnóstico exibido de forma funcional e sintomático, traz em simesmo, a conotação de ser curável por meio de psicofármacos”12. Facilida-des oferecidas através de pílulas mágicas ou cirurgias bariátricas, que ga-rantem um afastamento da falta, à qual o sujeito, se desejar questionar suaspróprias escolhas, há de se deparar. Os textos das bulas de medicamentose o termo de conscientização para a cirurgia não costumam mentir, prevendoriscos extremos.

Obesos que não são bem preparados, para assumirem sua imagem,que se modificará, tem na opção por um procedimento cirúrgico a repetiçãoda busca que faziam à comida, ou à algum medicamento. Ou seja, estacio-nários ao desejo de um Outro que deseje por eles, que lhes resolvam osconflitos apresentando artefatos resolutivos. E, considerando que ter umaescuta norteadora do sujeito, tem relação a ter interditado o acesso ao dese-jo do desejo do Outro, os obesos acabam por encontrar nos médicos cirurgi-

12 RIOS MAGALHÃES, Maria Cristina (org). Psicofármacos e Psicanálise. São Paulo: Escu-ta, 2001.

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ões de orientação biologicista, alguém que pode propor resolver o problemado paciente através de sua técnica que leva ao emagrecimento em um perí-odo de doze meses. Proposta esta que pode seduzir obesos que buscamresoluções, sem investirem na maioria das vezes em escutar a si mesmosno porquê de anos de posicionarem-se comendo tudo. Mas, em contraposiçãoaos achados aqui apresentados, acerca do quê o comer/comida, acaba porsustentar, há uma precipitação da técnica cirúrgica em relação ao tempo deelaboração psíquica e operação da re-edição edípica.

Interessa pensar através desta análise, também, como hoje as avalia-ções multidisciplinares13, que estão à disposição no mercado, encaram acompulsão alimentar. Pois, Freud14 afirma que “o principal para reprimir acompulsão do paciente à repetição e transformá-la num motivo para recor-dar, reside no manejo da transferência”. Uma “catexia libidinal que se achapronta por antecipação e é dirigida para a figura do médico”. Assim, o suces-so no atendimento de casos crônicos de obesidade se dá com uma estrutu-ra interdisciplinar de equipe, com escuta das questões inconscientes paraque a compulsão que se repete, por falta de encontro com um outro queescute, se transforme em degustação do alimento e da palavra, nesta opera-ção subjetiva que vai para além da operação do estômago.

As equipes, em geral multidisciplinares, ou profissionais que realizamavaliações isoladas seguem parâmetros da Sociedade Brasileira de CirurgiaBariátrica que preconiza apenas o diagnóstico psiquiátrico de psicose comoentrave para a execução da cirurgia. Visto que o “comer/comida” está sus-tentando algo da ordem de uma proto-sustentação, uma ancoragem da es-trutura neurótica, quando analisada pela escuta do inconsciente, com o au-xílio da teoria psicanalítica; não é sem danos psíquicos para os obesos boaparte das liberações multidisciplinares para o procedimento cirúrgico, sem o

13 Equipes formadas em sua maioria de médicos cirurgiões, clínicos, endocrinologistas,psiquiatras, psicólogos, nutricionistas.14 FREUD, Sigmund. Obras Psicológicas Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1996, Vol.XII.

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preparo para esta outra operação da ordem psíquica. Testemunhamos hojeoutras patologias psíquicas que se instalam, ou o aumento de peso depoisde um período de mais de um ano do procedimento cirúrgico.

Outro ponto preocupante que vale ser abordado diz respeito à neces-sidade de reeducação alimentar, não apenas com prescrição de quantida-des, tipos de alimentos necessários para amenizar os níveis desabsortivosda técnica cirúrgica ou instrução de como terá de ser a mastigação. Mas,uma reeducação alimentar que acesse aquilo que está inscrito em cadaalimento – rancores, amores e dissabores. Sem que esqueçamos outra ques-tão, a cirurgia bariátrica é desabsortiva, ou seja, o estômago passa a ficarisolado, pois o corte no órgão se dá na área em que havia maior capacidadede absorção dos alimentos. Questão que leva à uma suplementação ou viaalimentos ou via medicamentosa da vitamina B12, atuante também no pro-cesso de mielinização, quando a não adoção adequada de uma ingesta equi-librada e variada em qualidade de nutrientes leva à amortizações no corpocomo consequência. E uma vez que a cobertura dos neurônios também ésustentada por esta vitamina, auxiliando no reconhecimento das sensações,das percepções junto ao sistema nervoso central, esta deficiência vitamínicaestá presente na sintomatologia de “quadros de ausência de memória”15,como o Mal de Alzheimer.

A alienação destes pacientes, a falta de percepção – uma memórianão exercitada, visto a labilidade do exercício de sujeito, que lhes foi incutidodurante seu desenvolvimento – continua sendo estimulada e reproduzidaquando da entrada em serviços de saúde. Pois acabam encontrando umaengrenagem que busca resolver o problema do corpo, sem interesse pelas

15 Transtornos que podem produzir demência devido a deficiência de vitamina B12, sãotranstornos nutricionais. E, a deficiência desta vitamina também consta nos manuais depsiquiatria (DSM IV e KAPLAN ) associada ao Mal de Alzheimer.DSM IV – Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais. Porto Alegre: ArtesMédicas, 1995.KAPLAN, Harold. Compêndio de Psiquiatria: Ciências do Comportamento e Psiquiatria Clíni-ca. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997.

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“questões da alma”, do insconsciente. Situado no real, sem a simbolizaçãode uma imagem ressignificada – na transferência com um profissional queescute – este corpo retornará ao esquema anterior. Pois, o corte no órgão,mesmo que propagado como resolução de todos os problemas dos obesos,principalmente através de uma visão cientificista, não alcança aquilo que éda ordem do simbólico.

Interessa trazer a questão de que o índice de alienação dos pacien-tes no momento em que recorrem à uma solução para sua angústia buscan-do uma cirurgia, aliado aos efeitos no corpo ao submeterem-se à umadesabsorção contínua (correndo riscos não menos preocupantes de debili-dade de memória à revelia desta recondução onde o orgânico fica alteradoem sua natureza) traz a urgência para equipes e para profissionais de reveras bases de suas decisões. Visto que as liberações para tais procedimen-tos são pautadas, na maior parte das vezes, em uma urgência de outraordem – resultados rápidos para pacientes que estão impregnados de doen-ças associadas à obesidade e que determinam seu índice de morbidade.Decisões difíceis que, se permanecerem sem discussões de cunhointerdisciplinar que considerem a posição inconsciente dos sujeitos emquestão, estarão colocando em risco a qualidade de vida futura destas pes-soas, tão propagada como aquilo que encontrarão após este procedimento.

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DOR – CORPO E ALMA – AS TRAMAS DO EU

Lucia Helena Reus

Articular dois conceitos que, aparentemente, não fazem parte do mes-mo alicerce nosológico, não é tarefa fácil. Os trabalhos relacionadosà dor estão, em sua maioria, no campo da pesquisa somática e, a

psicanálise, por sua vez, aborda o campo do psíquico. Esta, ancorada emsuas raízes revolucionárias, se aventura em campos diversos e até desco-nhecidos. Já o estudo da dor, no campo das ciências médicas, apresentacaminhos cada vez mais distantes do psíquico. Para trabalhar estas ques-tões, faz-se necessário uma breve abordagem de alguns conceitos funda-mentais da psicanálise, cunhados por Freud e Lacan que, penso, são es-senciais para uma interface entre as duas teorias.

Tão revolucionária no passado, a psicanálise é hoje considerada pormuitos uma ciência ultrapassada. Os avanços tecnológicos, principalmentena área de medicamentos e a urgência na resolução de problemas psicológi-cos de qualquer natureza, condenaram a “ciência da fala” a ser entendidacomo um recurso complicado, penoso e lento. O homem, além de sua estru-tura biológica, é produzido pela sua história, pelo seu meio ambiente e porseu psiquismo, não existindo apenas um determinante na origem de suasestruturas. Tratar a natureza humana envolve uma grande complexidade deelementos, mesmo que o cientificismo atual procure simplificar tudo.

Freud, inventor da técnica psicanalítica, tratava pacientes histéricasque apresentavam sintomas diversos, como paralisias de partes do corpo,dores que não cediam aos tratamentos analgésicos e outros sintomas, apa-rentemente infundados. Para isto, criou um método de investigação que con-siste em evidenciar o significado inconsciente das palavras, ações e produ-ções imaginárias de um sujeito.

Tentando explicar os fenômenos psíquicos, Freud articulou aquilo quechamou de primeira tópica: o inconsciente, o pré-consciente, o consciente,com dois princípios que regem a vida psíquica, o princípio de prazer e o

REUS, L. H. Dor - Corpo e alma...

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princípio de realidade. Mais tarde, elaborou, na segunda tópica, os conceitosde isso, eu e supereu. O eu engloba o consciente, o pré-consciente e, emparte, também o inconsciente. No isso, reina o princípio de prazer, no qualas proibições do mundo exterior (supereu) provocam o recalcamento, o quetorna possível o acesso ao princípio de realidade e a relação com outraspessoas. Segundo Chemama, o eu é o elemento que “gerencia” estes confli-tos, o que exerce uma espécie de proteção ao sujeito das agressões domundo externo e das excitações pulsionais vindas do inconsciente. É o quese poderia chamar de razão e de bom-senso, em oposição ao isso, que tempor conteúdo as paixões.

O eu é responsável pelo acesso do homem ao seu corpo. A criançapequena antecipa, imaginariamente, por identificação a um outro, a forma deseu corpo, instalando assim, o primeiro esboço do eu. Mas é o olhar da mãeque funda a imagem definitiva que a criança tem de seu corpo, com o conse-qüente reconhecimento de sua imagem no espelho, inaugurando, assim, onarcisismo.

Mais do que uma técnica, a psicanálise tornou-se um grande sistemade pensamento contemporâneo. Lacan foi o autor que levou as teorias deFreud a dialogar com a lingüística, matemática e filosofia, criando um siste-ma complexo para entendimento da alma humana, ancorado, sobretudo, naética das relações. Lacan concebeu o inconsciente como uma linguagem ea usou como material a ser desvendado. Tarefa que não se revelou eficazpela maneira mais evidente do deciframento desta linguagem. Valeu-se, en-tão, da técnica freudiana de associação livre, onde as falas, aparentementesem sentido e recheadas de afeto do paciente, ou ainda, seus atos falhos esonhos, podem ser captados e trabalhados na relação transferencial e trazi-dos à instância do consciente. Ao longo deste tratamento, o sujeito teceuma rede de “fatos” ou cenas significantes (que significam só a ele, mas lheé desconhecido), o que possibilita ao analista “escutar a voz do desejo” etorná-lo concernente ao sujeito, desvelando o sintoma. Lacan, em sua aulade 16 de dezembro de 1959, defende a prática da psicologia como o únicomodo de acesso aos processos do pensamento: “É a partir do momento em

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que falamos de nossa vontade, ou de nosso entendimento, como de faculda-des distintas, que temos uma pré-consciência, e que somos capazes, comefeito, de articular num discurso, algo desse palavrório pelo qual nos articu-lamos em nós mesmos, justificamo-nos, racionalizamos para nós mesmos,o encaminhamento do nosso desejo”. Mais do que racionalização, a cons-trução, pelo sujeito, de um enredo concernente a ele, é fundamental na con-solidação desta busca. Para Maria Rita Kehl, a finalidade de uma análiselacaniana não é a de que o sujeito saiba explicar as razões de seu sofrimen-to e sim que, “menos zeloso da integridade narcísica do eu, menos temero-so das manifestações do inconsciente, possa levar menos a sério suas pre-tensões e deixar de se torturar por seus tropeços”.

Lacan recorre aos filósofos, como Sócrates, para trabalhar o conceitode eu através do discurso: “o eu devia exercer para eles uma função análogaàquela que ele ocupa em nossas reflexões teóricas, assim como na apreen-são espontânea que temos de nossos pensamentos, de nossas tendências,de nossos desejos...” Mas, para ele, engana-se o sujeito que acredita em si,acredita que ele é ele. A verdade do sujeito lhe é roubada, escondida, preci-sa ser desvelada. O inconsciente é o lugar onde o desejo adquire voz e énecessário que o sujeito a reconheça como sua. Trabalho realizado pelapsicanálise.

O eu se refere ao registro imaginário. É o registro da imagem, doengodo e da identificação. Para Lacan, o imaginário só pode ser pensado emsuas relações com o real e o simbólico. O simbólico se refere à linguagem,a inserção do homem no social através da palavra, organizando as formaspredominantes do imaginário. O real é definido como o impossível, o que nãopode ser acessado pela linguagem e, por isso, não cessa de não se inscre-ver. Estas três instâncias conceituais trabalhadas por Lacan são ferramen-tas essenciais que auxiliam o psicanalista na direção do tratamento.

A PSICANÁLISE É A CIÊNCIA QUE TRATA A “DOR DA ALMA”Quando tomamos um paciente em tratamento, ele nos fala de sua

dor, de seu sofrimento. Não há busca de auxílio sem sofrimento. De que dor

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o paciente nos fala? Muitas vezes, a dor aparece, no discurso, como física.Dói a alma, dói o corpo.

“Estou com uma dor de cabeça horrível que me impede de pensar”.Com esta frase, inicia-se o atendimento de Diná, encaminhada para atendi-mento por dificuldades em elaborar o luto do marido, falecido há quatro anos.Apresenta também crises de ansiedade, diagnosticada e medicada pela redepública de atendimento psiquiátrico como síndrome do pânico. Cefaléias edores difusas no corpo também são freqüentes. Os sinais de pânico ocorremprincipalmente quando está no ônibus, deslocando-se para o trabalho. Épedagoga e exerce suas atividades em uma escola de educação infantil.Para garantir uma boa viagem, consegue distrair-se com leitura. No trabalhode escuta (escutar-se) percebe que o longo trajeto que faz de sua casa até otrabalho, passa pela casa onde vivia com o marido. As cefaléias são freqüen-tes ao final da tarde, quando já está de volta do trabalho. Ao discorrer sobrea dor, lembra das palavras da mãe que a acusava de ser “fraca para a dor”.Quando adolescente, ao menstruar, sentia cólicas terríveis, ficando longotempo recolhida em casa, até o final do período. As palavras da mãe conge-laram em um mandato que ecoa até hoje: “se tu ficas assim por nada, ima-gine quando chegar a hora do parto, que parece que estão te rasgando pordentro”. Diná, apesar de um casamento feliz, optou por não ter filhos. Assuas palavras esclarecem a situação: “o medo da dor foi maior que tudo”.

Sendo tão “covarde” para a dor, como enfrentar o parto, o luto? Amaternidade evitada, hoje bate em sua porta em forma de profissão e “semdor”, já que trabalha com crianças. Usa o espaço das sessões para trazersuas dúvidas a respeito da decisão, tomada precocemente e seguida à ris-ca, de não ter filhos. O luto, também negado, insiste em apresentar-se comsintomatologia diversa. Durante estes quatro anos, não conseguiu visitar otúmulo do marido e evita pensar em qualquer coisa relacionada a ele. Osparentes, diante de sua depressão, também evitam tocar no assunto. Dizque não pode passar em frente ao cemitério, pois a imagem dele no caixãodesperta nela uma angústia incontrolável. “Como ele estará lá, agora?” Apergunta não se refere ao estado do corpo, mas, ao que seu marido estaria

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fazendo se ainda estivesse vivo. “Pensar que não morreu dói menos”, acabaconfessando. A dor rejeitada da perda acaba invadindo e obliterando asimbolização necessária para a elaboração do luto.

Dor física ou psíquica? Para os dois tipos há uma opção medicamen-tosa. Para a dor psíquica, há o recurso terapêutico da análise. Este recursotambém pode ser usado para a dor física? E um paciente hospitalizado, comdores crônicas, que resiste à medicação rotineiramente prescrita, pode sertratado com “escuta”? Para muitos profissionais, isto seria uma espécie debrincadeira. Mas, partindo desta provocação, podemos pensar que a dor,psíquica ou física, é sempre verdadeira, e que desestabiliza o equilíbrio psí-quico montado pelo “eu”, jogando o sujeito em uma situação de desvanta-gem entre as lutas pulsionais do Princípio de Prazer e do Princípio de Rea-lidade.

DOR FÍSICA E DOR PSÍQUICA:UMA ARTICULAÇÃO PSICANALÍTICA

Nasio coloca que pouco importa esta distinção entre as duas corren-tes teóricas sobre dor. Sempre será um fenômeno de limite (entre o corpo ea psique, entre o eu e o outro, entre o bom e mau funcionamento do psiquismo).Sendo assim, a dor é um fenômeno misto que surge e segue seu ritmosempre nesta fina linha que separa ou liga os dois conceitos.

Freud, em 1895, elaborou “O projeto de psicologia”, uma teoria paradar conta dos fenômenos psíquicos em termos fisiológicos, esclarecendo omecanismo do sofrimento corporal e que, mais tarde também se reveloucapaz de elucidar o campo da dor psíquica. Neste trabalho, Freud apresentaum sistema de funcionamento nervoso similar ao do computador: ambos sãoaparatos destinados à recepção, armazenamento, processamento e entregade informações.

A percepção de uma excitação dolorosa localizada na periferia (umapicada de agulha ou queimadura), imprime imediatamente no eu a imagemdo local lesado do corpo. A sensação dolorosa é assim reavivada pelo nasci-mento da representação mental da chaga. O sujeito sente uma dor e, simul-

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taneamente, visualiza uma imagem difusa do braço em carne viva. A percep-ção da chaga age como um estilete que fixa na consciência a representaçãomental da região lesada. Sem lesão não haveria dor, mas a dor não está nachaga, está no eu, condensada em uma imagem interior ao eu, na imagemdo local lesado. Está no cérebro quanto à sensação dolorosa, e nos alicer-ces do eu – no isso – quanto à emoção dolorosa. Como acontece isto?

Na época do “Projeto”, Freud imagina que o eu é composto de doiselementos essenciais: uma energia que circula tendendo para a descarga, eneurônios que a veiculam. Uma parte da energia provem do exterior e outrase propaga no interior, no espaço intra e interneuronal. Quanto aos neurônios,estes se dividem em três grupos: um, na periferia do eu, percebe asestimulações do mundo exterior; o segundo, situado no centro do eu, cha-mados neurônios da lembrança, conservam os vestígios dos acontecimen-tos marcantes. Este é o antepassado conceitual da noção freudiana de re-presentação inconsciente. Além do conteúdo de imagem mnemônica de umacontecimento passado, o neurônio da lembrança também retém seu inves-timento afetivo. O tipo neuronal opera na percepção do mundo interior, cap-tando as flutuações de energia interna e repercutindo-as na consciência, soba forma de afetos agradáveis, desagradáveis ou dolorosos. Agradáveis, quandoo ritmo do fluxo é sincrônico; desagradáveis, quando ele é acelerado ouassincrônico; e, dolorosos, quando o ritmo é enlouquecido ou rompido.

O eu guardará na memória a “foto” de um detalhe da agressão associ-ada à experiência dolorosa. Entretanto, o neurônio que conserva esta ima-gem fica sensibilizado, pronto a reagir a uma eventual excitação de menorintensidade e que poderão ser externas ou internas. Freud usou o termo“trilhamento” para designar esta sensibilização dos neurônios da lembrança.Assim, logo que a imagem mnemônica da agressão é reativada por umaexcitação desapercebida, pode aparecer uma nova dor, menos violenta que aprimeira e situada em um ponto diferente do corpo. O sujeito experimentaráuma sensação dolorosa inexplicada e sem causa orgânica. Ele sofrerá semsaber que sua dor presente é a lembrança de uma dor passada. A antiga dortambém pode reaparecer transfigurada em um outro afeto como o sentimen-

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to de culpa, lesão psicossomática ou atos impulsivos. Tudo depende doconteúdo representativo da imagem mnêmica inscrita no neurônio reativado.

Este funcionamento não difere do conceito fundamental da psicanáli-se apresentado por Freud, de que não existe afeto novo, o afeto é semprefruto de uma repetição. Toda vez que uma dor nos aflige, venha ela do corpoou do espírito, ela se mistura à mais antiga dor que revive em nós. Ela traz oselo do mais íntimo do meu passado. A dor inconsciente é o nome quedamos à memória inconsciente da dor.

A dor é vivenciada pelo eu e este reage, realizando um intenso esfor-ço, ou seja, dirigindo uma enorme energia para o local afetado. Tenta fechara brecha e deter o fluxo maciço de excitações, o que é chamado por Freudde “contrainvestimento” do eu. Para Nasio, esse movimento defensivo nãoage no próprio ferimento, mas em sua representação psíquica. O resultadorevela-se desastroso: a dor não se atenua com este curativo simbólico; pelocontrário, ela se intensifica. Com toda a energia concentrada em um únicoponto, resulta em um desequilíbrio enorme do sistema. O ferimento ficasaturado de energia e as outras representações estruturantes do sujeito pas-sam a sofrer uma carência de investimento. O eu consegue, enfim, conter acomoção da dor, mas à custa de gerar um monstro de afeto traduzido emdor.

A dor também pode ser pensada nos registros lacaniano de real, sim-bólico e imaginário. Segundo Foguel, dizer que a dor deve ser consideradasempre real, nos remete também a esta idéia. Para ela, “a dor é uma afecçãoque invade desde a dimensão do real e se estabelece fora do corpo simbóli-co da linguagem”. Não se subordinando à cadeia significante, a dor provocao grito, o gemido, a palavra não tem efeito. Foguel também aponta que ofenômeno doloroso se organiza no circuito da pulsão de morte, implicandouma busca de satisfação mais além do princípio de prazer. “A dor invade ocorpo como ‘gozo Outro’”. Adesão ao mórbido, e relutância em aderir aotratamento, explicação ao fenômeno da dor como ganho secundário.

Podemos ver que a dor não pode ser considerada somente expressãoda carne, do choque. Para trabalhá-la na psicanálise, temos que atribuir um

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valor simbólico, uma significância psíquica, transformar o estranho em algosuportável. O psicanalista é um intermediário que acolhe a dor inassimiláveldo paciente e a transforma em uma dor simbolizada. Nas palavras de Nasio,“Dar um sentido à dor do outro significa, para o psicanalista, afinar-se com ador, tentar vibrar com ela e, nesse estado de ressonância, esperar que otempo e as palavras se gastem. Como o paciente transformado nesta dor, oanalista age como um bailarino que, diante do tropeço de sua parceira, asegura, evita que ela caia e, sem perder o passo, leva o casal a reencontraro ritmo inicial”.

Em psicanálise, não podemos falar em cura, apesar de resultadosmuito próximos a isso. Como podemos então tratar a dor sem a intenção decurá-la? A dor, como uma sintoma médico, não pode ser tratada como tal.Para Foguel, a crença de que a dor física representa algo, poderá desenca-minhar a análise para a busca de um sentido, fixando o trabalho no sintomamédico. “A direção do tratamento deve levar do sintoma médico para a neu-rose de transferência”. Não se pode sugerir que o paciente não possa falarde sua dor, uma vez que ele está ali por isso. Mas que ela seja inserida emum outro discurso, no discurso do sujeito. Escuta da estrutura desejante.Que ela não seja excluída pela inconsistência do real, mas, uma vez perce-bida como discurso neste registro, seja inserida na cadeia significante dosujeito e abordada fora do discurso médico. Enfim, a dor pode ser pensada etratada como qualquer outro sintoma psicanalítico, desde que se constituauma demanda de tratamento.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

FREUD, Sigmund. Proyecto de Psicología. IN: FREUD, Sigmund. Obras Comple-tas. Buenos Aires: Amorrortu Editores, 1992.

CHEMAMA, Roland. Dicionário de psicanálise Larousse. Porto Alegre: Artes Médi-cas, 1995.

NASIO, J.-D. O livro da dor e do amor. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997.KEHL, Maria Rita. Ética e Técnica. Viver – Mente e Cérebro – Memória da psica-

nálise nº 4- Lacan.

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FOGUEL, Elaine Starosta. Algumas considerações sobre psicanálise e dor. Jor-nada do Campo Lacaniano de Salvador. Outubro, 2006.

LACAN, Jacques. O seminário- Livro 2: o eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985.

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DIALÉTICA DA PULSÃO

André Oliveira Costa

Otítulo deste trabalho faz referência a dois pensadores: Freud e Hegel,os quais puderam se encontrar através de um terceiro, JacquesLacan. Este trabalho tem como objetivo maior tentar realizar possí-

veis aproximações desses dois pensadores através do conceito de pulsão(Trieb).

1. DIALÉTICA: A dialética de Hegel pode compreender três etapas:(1) conceitos ou categorias são considerados fixos e definidos, diferencian-do-se um dos outros, (2) a partir da reflexão sobre tais conceitos ou catego-rias surgem contradições neles e (3) resulta uma nova categoria ou conceito,superior à anterior, que “engloba as categorias anteriores e resolve as contra-dições nelas”. Assim, essa dialética não se coloca apenas como um méto-do no qual o filósofo procede sobre o objeto de estudo, mas como a “estrutu-ra e o desenvolvimento intrínseco do próprio objeto”. Nas palavras de Hegel,“o dialético, em geral, é o princípio de todo o movimento, de toda a vida, e detoda a atividade na efetividade.”1

2. NEGAÇÕES: Se tomarmos a dialética a partir do ponto de vista daLógica, podemos formular esses três momentos com as seguintes caracte-rísticas: (1) a primeira etapa como Afirmação (Bejahung) determinante doconceito ou do objeto, (2) a segunda etapa como Negação (Verneinung)sobre a primeira afirmação e (3) a terceira etapa como a Negação da nega-ção, ou seja, não se trata de uma volta ao ponto de partida, mas numa novaafirmação, diferente da primeira, originalmente negada.2 A negação da nega-

1 HEGEL, G.W.F. (1830) Enciclopédia das Ciências Filosóficas em compêndio. Volume I – ACiência da Lógica. São Paulo: Edições Loyola, 1995, adendo do §81, pg. 163.2 De acordo com a lógica formal clássica, a sentença “a rosa é vermelha” equivale logicamenteà negação da negação desta sentença, “a rosa é não vermelha”, ou seja, “a rosa é verme-lha” equivale a “a rosa é não não vermelha”. Entretanto, segundo a dialética hegeliana, anegação da negação forma outra afirmação diferente daquela primeira pela qual se partiu.

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ção, então, mostra o infinito do processo de desenvolvimento e constituiçãode um conceito ou objeto, ou seja, o que era afirmação foi duplamente nega-do, tornando-se outra afirmação, que virá a ser duplamente negada. ParaHegel, cada momento desta lógica complexifica-se, passando da “imediatez”do conceito e do objeto, para, a “reflexão” e “mediação” no ser-para-si, eencerrando no “ser-retornado sobre si mesmo”, ou, em sua linguagem, ser“em-si e para-si”.3

A negação, na filosofia de Hegel, é compreendida como a força condutorada atividade espiritual de cisão e reconciliação, encontradas, respectivamen-te, na primeira negação e na segunda negação. O processo da negação, des-sa forma, ocorre através do movimento de auto-negação, auto-contradição eauto-reconciliação, voltando a si mesmo. Trata-se, portanto, de fases “lógica enão temporalmente ordenadas, de um processo eterno, e que cada uma de-las, tomada isoladamente, é uma abstração carente de significado.”4,5

3. SUSPENSÃO: A essência do movimento dialético aparece, emmuitos momentos, na forma lógica triádica e nas lógicas das negações pri-meira e segunda. Para explicar essa força do espírito que se aliena e retornanovamente a si mesmo, Hegel toma como base um conceito: Suspensão(Aufhebung)6. O uso deste termo, na língua alemã, traz consigo três senti-

3 HEGEL, 1830/1995, §83, pg. 169.4 MURE, G.R.G. (1965). La filosofia de Hegel. Madrid: Cátedra, 1998, 3ª edição.5 “O botão desaparece no desabrochar da flor, e poderia dizer-se que a flor o refuta; domesmo modo que o fruto faz a flor parecer um falso ser-aí da planta, pondo-se como suaverdade em lugar da flor: essas formas não só se distinguem, mas também se repelem comoincompatíveis entre si. Porém, ao mesmo tempo, sua natureza fluida faz delas momentos daunidade orgânica, na qual, longe de se contradizerem, todos são igualmente necessários.”(HEGEL, 1807/2003, §2, pg. 26)6 A tradução do conceito Aufhebung por Paulo Meneses na tradução da “Fenomenologia doEspírito” (1807) e da “Enciclopédia das Ciências Filosóficas” (1830) é “suprassunção”. Paraa discussão da tradução deste conceito ver “Para ler a Fenomenologia do Espírito – Roteiro”,de Paulo Meneses, editora Loyola, e a tese de doutorado de José Pinheiro Pertille, “Faculda-de do Espírito e Riqueza Material: face e verso do conceito “Vermögen na filosofia de Hegel”,pela UFRGS, em 2005. Nesta ultima, o autor propõe traduzir o conceito de Aufhebung por“suspensão” – e seu verbo Aufheben por “suspender” –, visto que esta tradução para oportuguês mantém os três sentidos do termo em alemão: negar, conservar e elevar. Segui-mos neste trabalho a tradução de Aufhebung por suspender.

COSTA, A. O. Dialética da pulsão.

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dos: (1) levantar, sustentar e erguer; (2) anular, abolir, destruir, cancelar esuspender; e (3) conservar, poupar e preservar7. Segundo Inwood8, “Hegelusa regularmente Aufhebung em todos os três sentidos”, além de afirmarque “Aufhebung é semelhante à Negação determinada que tem um resulta-do positivo”. Trata-se, também, de um termo que se refere aos conceitos eàs coisas, por exemplo, na Lógica, os conceitos de ‘ser’ e ‘nada’ são sus-pendidos (segundo os sentidos 1, 2 e 3) em ‘determinações’ para o ‘devir’,assim como, na fenomenologia da consciência, os estágios iniciais são sus-pendidos (segundo os sentidos 1, 2 e 3) para estágios superiores.

4. EXPERIÊNCIAS: Hegel, na “Fenomenologia do Espírito”, apresentao percurso da consciência em seu desenvolvimento da Certeza Sensível,estágio mais primitivo da consciência no qual a essência está colocada noobjeto, até o Saber Absoluto, no qual mundo externo e mundo interno, sub-jetividade e objetividade, conceito e objeto, não são mais totalmente distin-tos. Para chegar ao Saber Absoluto, a consciência passa por diversas expe-riências, buscando superar cada uma delas através do movimento dialéticoda Aufhebung. As experiências pelas quais passa a consciência formam asucessão de figuras – etapas do desenvolvimento fenomenológico da cons-ciência – apresentadas na “Fenomenologia do Espírito”. Em cada figura, queé um representante singular da totalidade, a consciência deve parar e perma-necer, indo até os Fundamentos deste momento, atingindo um impasse quesó é resolvido pela dissolução dos termos que se contrapõem, resultando,assim, em uma nova figura que surge da superação da anterior.9

7 “Por Aufhebung entendemos primeiro a mesma coisa que ‘hinwegräumen’ [ab-rogar],‘negieren’ [negar], e por conseguinte dizemos, por exemplo, que uma lei, um dispositivo são‘aufgehoben’ [ab-rogados]. Mas além disso significa também o mesmo que aufbewahren[conservar], e nesse sentido dizemos que uma coisa está ‘wohl aufgehoben’ [bem conser-vada].” (HEGEL, 1830/1996, §96, adendo, pg.194)8 INWOOD, 1992, pg. 303.9 “A impaciência exige o impossível, ou seja, a obtenção do fim sem os meios. De um lado, háque suportar as longas distâncias desse caminho, porque cada momento é necessário. Deoutro lado, há que ”demorar-se” em cada momento, pois cada um deles é uma figura indivi-dual completa, e assim cada momento só é considerado absolutamente enquanto suadeterminidade for vista como todo ou concreto, ou o todo [for visto] na peculiaridade dessadeterminação.” (HEGEL, 1807/2003, §29, pg. 42)

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5. NEGAÇÃO DA NEGAÇÃO: Para Hegel, uma consciência só podevir-a-ser autoconsciência se houver a mediação de outra consciência, querdizer, ela só vai ter consciência de si como autônoma e que conhece ascoisas do mundo, apenas se outra consciência a reconhecer como tal.10

Dessa forma, o outro é condição de possibilidade para que uma consciênciaseja conhecedora e, ao mesmo tempo, reconhecedora. Para Hegel, portan-to, o processo de conhecimento do homem sobre o mundo é, também, umprocesso de reconhecimento que se constitui nas relações intersubjetivas.

A partir da lógica na qual Hegel utiliza para compreender o movimentodialético, tanto dos conceitos quanto das coisas, podemos fazer algumasconsiderações em relação à psicanálise, e em específico ao conceito depulsão.

1. INSISTÊNCIA: Na lição VI do Seminário 2, “Freud, Hegel e a máqui-na”, Lacan faz a seguinte pergunta: “Por que será que o sistema recalcadose manifesta com isto que da última vez chamei de insistência?”11 Esta per-gunta nos dirige diretamente ao inconsciente [o sistema recalcado] e à suadinâmica [ser insistente]. Sabemos que Freud operou uma “revoluçãocoperniciana” ao desfazer a autonomia da consciência, atribuindo ao incons-ciente a verdadeira essência do sujeito. Então, “o que interessa a Freud ésaber por que fios a marionete é conduzida. É disto que fala ao falar deinstinto de morte ou de instinto de vida.”12 Essa pergunta nos conduz, juntocom Lacan, diretamente à relação de Freud e Hegel. O que há entre Freud eHegel?

2. PULSÃO: A resposta de Lacan para esta pergunta é direta: “Háalgo de que se fala, em Freud, e de que não se fala em Hegel, é a energia”13.É justamente o surgimento da máquina, da energia a vapor, que permite

10 “A consciência-de-si é em si e para si quando e por que é em si e para si para uma Outra;quer dizer, só é como algo reconhecido”. (HEGEL, 1807/2003, §178, pg. 142)11 LACAN, Jacques. (1954) Seminário 2. O eu na teoria de Freud e na técnica da psicaná-lise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985, pg. 87.12 LACAN, 1955/1985, pg. 90.13 LACAN, 1955/1985, pg. 99.

COSTA, A. O. Dialética da pulsão.

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conjugarmos Freud e Hegel. Não que a energia tenha sido criada ex-nihilo,mas a concepção energética se faz necessária pela invenção das máquinas.A máquina freudiana é precisamente aquilo pelo qual denominamos aparelhopsíquico. Composta de lugares que se determinam, essa máquina psíquicatem como energia fundamental a libido. A pulsão e o seu representante libidinalsão os responsáveis pelo movimento desta máquina e do seu modo de rela-ção com o mundo e com os diversos tipos de objetos.

3. A NEGATIVIDADE DA PULSÃO: No texto “Pulsão e destinos daPulsão”, de 1915, Freud coloca quatro características essenciais da pulsão,a saber, a Pressão (Drang), a Fonte (Quelle), o Objeto (Objekt) e o Alvo(Ziel). Tomemos o primeiro elemento. Segundo Freud, “por pressão (Drang)de uma pulsão compreendemos seu fator motor, a quantidade de força ou amedida da exigência de trabalho que ela representa. A característica deexercer pressão é comum a todas as pulsões; é, de fato, sua própria essên-cia.”14 Para Freud, a pressão da pulsão não se assemelha à da necessidade,da fome ou da sede, que é negada logo no momento em que é satisfeita. Oque quer dizer, então, uma satisfação da pulsão? E podemos realmente falarem satisfação da pulsão? Segundo Lacan, falar em satisfação da pulsão é,no mínimo, paradoxal, pois “entra em jogo algo de novo – a categoria doimpossível.”15 Esta forma negativa da satisfação da pulsão, porém, não deveser compreendida sem reflexão. Retomamos Lacan antes de seguirmos nossopensamento: “Eu quereria simplesmente sugerir-lhes que a melhor maneirade abordar essas noções não é tomá-las pela negação. Este método noslevaria aqui à questão sobre o possível, e o impossível não é forçosamente ocontrário do possível, ou bem ainda, porque o oposto do possível é segura-mente o real, seremos levados a definir o real como o impossível.”16

14 FREUD, Sigmund. (1915). Os instintos e suas vicissitudes. Em: Edição Standard Brasileiradas Obras Completas de Sigmund Freud. Volume XIV. Rio de Janeiro: Imago, 1991, pg. 142.(tradução modificada).15 LACAN, Jacques. (1964). Seminário 11. Os quatro conceitos fundamentais da psicaná-lise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985, pg. 158.16 LACAN, 1964/1985, pg. 159.

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4. NEGAÇÃO DA NEGAÇÃO: Se o movimento da pulsão e a suasatisfação não podem ser tratados na ordem da oposição entre possível eimpossível, o que levaria a uma lógica binária com apenas dois valores deverdade, o verdadeiro e o falso, ou o possível e o impossível, então, devemoscolocá-la segundo a ordem trinaria. Se apenas afirmamos a possibilidade desua satisfação, corremos o risco de igualá-la à necessidade; se apenasnegamos esta primeira afirmação, colocamos sua satisfação na ordem doimpossível, recusando suas características essenciais: pressão, fonte, obje-to e finalidade. Esta última é assim definida por Freud: “A finalidade (Ziel) deuma pulsão é sempre a satisfação, que só pode ser obtida eliminando-se oestado de estimulação na fonte da pulsão.”17 Chegamos, então, à hipótesede que a dinâmica da pulsão não se dá conforme a negação, mas sim con-forme a negação da negação, ou seja, segundo a dialética da negação danegação. Se voltarmos às afirmações referentes à lógica hegeliana da dialética,verificamos que a negação da negação mostra o infinito do processo dedesenvolvimento. Neste caso, a dinâmica pulsional não se coloca na ordemdo impossível, mas na do processo infinito. A negação da negação, então,explica a força constante que existe na exigência pulsional pela busca desatisfação. Trata-se, portanto, de uma explicação lógica sobre a caracterís-tica imanente da pulsão de eterno movimento.

5. CIRCUITO DA PULSÃO: O objeto da pulsão é caracterizado porFreud do seguinte modo: “O objeto (Objekt) de uma pulsão é a coisa emrelação à qual ou através da qual a pulsão é capaz de atingir sua finalidade.É o que há de mais variável numa pulsão e, originalmente, não está ligado aela, só lhe sendo destinado por ser peculiarmente adequado a tornar possí-vel a satisfação.”18 Desse modo, a apreensão da pulsão sobre o objeto nãosignifica sua satisfação, pois não é no objeto que ela vai satisfazer-se. Essacaracterística já distingue a pulsão da necessidade, cuja satisfação podeocorrer por um objeto determinado. Quando Freud afirma que o objeto da

17 FREUD, 1915/1991, pg. 142. (tradução modificada).18 FREUD, 1915/1991, pg. 143. (tradução modificada).

COSTA, A. O. Dialética da pulsão.

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SEÇÃO TEMÁTICA

pulsão é o que há de mais variável, é justamente porque a determinaçãodeste objeto não tem importância. A esse objeto da pulsão, causa do dese-jo, Lacan nomeia de objeto a. A ele, diz Lacan, “devemos dar uma função talque pudéssemos dizer seu lugar na satisfação da pulsão. A melhor fórmulanos parece ser esta – que a pulsão o contorna.”19 Apresenta-se, assim,aquilo que ficou conhecido como o “circuito da pulsão”.

Lacan denomina este movimento da pulsão como uma “dialética doarco”20. Este movimento de saída e retorno ou de vaivém, acompanhando oterceiro movimento da dialética hegeliana, de reflexão ou retorno a si mes-mo, mostra três momentos pulsionais, a saber, o ativo, o passivo e o reflexi-vo. Ver, ser visto e ver-se, por exemplo, são momentos circulares da pulsão.Encontramos, então, mesmo no par sadismo-masoquismo, três termos dapulsão. Citamos Lacan:

“É preciso bem distinguir a volta em circuito de uma pulsão doque aparece – mas também por não aparecer, – num terceirotempo. Isto é, o aparecimento de ein neues Subjekt que é pre-ciso entender assim – não que ali já houvesse um, a saber, osujeito da pulsão, mas que é novo ver aparecer um sujeito.Esse sujeito, que é propriamente o outro, aparece no que apulsão pôde fechar seu curso circular. É somente na apariçãodo nível do outro que pode ser realizado o que é da função dapulsão.”21

Trataremos agora sobre esse novo sujeito que advém deste circuitopulsional.

6. O VIR-A-SER DO SUJEITO: A psicanálise nos mostra que as idéi-as de finito e infinito estão presentes na sua concepção de sujeito. Ao tratar

19 LACAN, 1964/1985, pg. 160.20 LACAN, 1964/1985, pg. 168.21 LACAN, 1964/1985, pg. 169.

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sobre o aspecto econômico, este tema nos leva diretamente a pensar sobrea dinâmica do sujeito do inconsciente, daquela máquina-marionete que vivesob as exigências de princípios. Lacan nos mostra que “a máquina se man-tém, ela desenha uma certa curva, uma certa persistência.”22 É esta corren-te, essa insistência, que nos leva a compreender o Eu como sendo o sujeitodo inconsciente. Mas porque é necessário esse eterno retorno? É certo queFreud nos mostrou que o Eu é resultado sólido da soma de identificações.Mas também foi ele quem colocou que o Eu do inconsciente se apresenta na“outra cena”, alhures, para além do sujeito, ou melhor, na intersecção dasrepresentações.

Assim, se o ser fosse apenas o que é, não se poderia falar dele en-quanto sujeito do inconsciente. O ser, então, se põe a existir em função dafalta, mas de que falta se fala? Creio que a falta é justamente a da determina-ção do ser. Lacan aponta que “nesta falta de ser, ele se dá conta de que o serlhe falta, e que o ser está ai, em todas as coisas que não sabem que são.”23

Não se trata, portanto, apenas da falta no ser, mas da falta de ser, de deter-minação estática que leve o Eu a dizer o que ele realmente é, assim comofez Descartes com o “Eu pensante”, ou Kant com o “Eu transcendental”. Osujeito da psicanálise, o sujeito do- inconsciente, então só pode ser encon-trado no seu devir.

7. EXPERIÊNCIAS DA PULSÃO: Ao falarmos sobre a noção de expe-riência na filosofia de Hegel, colocamos que a consciência, agindo com umfim (telos) deve passar por um percurso, realizado através da dinâmica da“suspensão”. Também encontramos uma meta no percurso da pulsão. Estefim pulsional, como o da consciência (o Saber Absoluto), é um retorno aoinício. O alvo (Ziel) da pulsão, no diz Lacan, “não é outra coisa senão esseretorno em circuito.”24 Só que, para ela alcançar esse fim, deve suspender(conservar, negar e elevar) as fases anteriores. A “imediatez” do narcisismo

22 LACAN, 1955/1985, pg. 108.23 LACAN, 1955/1985, pg. 281.24 LACAN, 1964/1985, pg. 170.

COSTA, A. O. Dialética da pulsão.

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SEÇÃO TEMÁTICA

deve ser suspensa pela formação de um objeto, presença de um vazio e deum furo, perdido. Já percebemos, então, uma simples “mediação”, e umaconseqüente “reflexão auto-erótica”, ou, para Hegel, num simples ser-para-si. Este, por sua vez, é suspenso ao Ser-retornado, terceiro tempo da pulsão,onde se dá a construção do sujeito do inconsciente que já alcançou a dimen-são do Outro. Podemos, inclusive, situar o autismo, como uma falha nestaprimeira negação (da imediatez para a mediação simples), no qual o proces-so de alienação (Entfremdung) não fora bem fundamentado, enquanto que aparanóia pode ser resultada da falha na segunda negação – terceiro momen-to do circuito da pulsão –, no qual é a separação (Äusserung) que não forafundamentada.

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NÃO EXISTE A BOSSA NOVA

Ricardo Silvestrin1

Foi o que disseram que João Gilberto disse. Isso no documentário“Coisa Mais Linda - História e Casos da Bossa Nova”. Para JoãoGilberto, tudo o que ele faz é samba. Não é bossa nova. Num dos

encontros do Sarau Elétrico, o músico e professor Carlo Pianta mostrou noviolão qual foi a invenção do cantor e instrumentista baiano que fundou ogênero chamado de bossa nova. É o seguinte: em vez de marcar o tempoforte do samba na corda grave, no bordão, que dá aquele peso da percussão,a mesma marcação que o surdo faz, João marca nas cordas agudas, aque-las três lá de baixo. O resultado é que o samba fica suave. E com a voz dele,então, fica melodioso, leve. Mas João Gilberto está correto quando diz queisso, meus amigos, é samba. Só que tocado um pouco diferente. É como opsicanalista francês Jacques Lacan. Ele falou que não era lacaniano. Nemsabe o que é isso. Embora muitos sejam. Lacan disse que é freudiano. Oque ele formulou é uma visão do que descobriu Freud.

Fui ver o Paulinho da Viola no Teatro do Sesi. No meio do show, en-quanto ouvia Paulinho falar de seu pai, instrumentista de choro, e de seufilho, que integra a banda e arrasa no violão, pensei no nome Paulinho daViola. Ou melhor, pensei no sobrenome: da Viola. Ele é filho da viola. Assimcomo seu pai. E seu filho. A filiação é à música brasileira, ao choro, aosamba. Paulinho compõe e toca os dois gêneros. Sempre com arranjos dosmais chiques. A leveza que João, para alcançar, precisou mudar de lugar abatida, Paulinho tem sem mexer em nada. Suas letras, muitas vezes, falamde uma certa melancolia. Como bem cantou Vinicius: “Fazer samba não éfazer piada / quem faz samba assim não é de nada / o samba é uma formade oração / porque o samba é a tristeza que balança / e a tristeza temsempre uma esperança / de um dia não ser mais triste não”.

1 Escritor.

SEÇÃO DEBATES

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SEÇÃO DEBATES

E já que estou falando de letrista e de poeta, Paulinho abriu o showcom uma parceria dele com o poeta Ferreira Gullar em que diz que a vida nãoé uma equação; portanto, não é para ser resolvida. A vida não tem solução.Essa sabedoria de vida percorre grande parte do trabalho do Paulinho daViola. Por exemplo: “Faça como o velho marinheiro / que durante o nevoeiro/ leva o barco devagar”. Ou: “Meu pai sempre me dizia / meu filho, tomecuidado, quando penso no futuro / não esqueço meu passado”. Mas não é sóisso. Ele também tem um refinamento de texto, de imagens, de seleção ecombinação de palavras: “Solidão é lava / que cobre tudo / amargura emminha boca / sorri seus dentes de chumbo / solidão palavra / cavada nocoração / resignado e mudo / no compasso da desilusão”. Close na sonori-dade de lava-palavra-cavada, que desliza por entre o texto-melodia. O cora-ção que bate no compasso da desilusão. E também nas belas imagens dalava e dos dentes de chumbo. Tudo isso num samba. Paulinho não precisamais do que o samba para fazer a sua grande arte. Assim como João Gilber-to também não. Assim como Lacan não precisa mais do que Freud.

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RESENHA

FRAGMENTOS DE UMA EXISTÊNCIAMACHADO, Rovani. Fragmentos de uma existência. 2007(edição independente).

Meu sonho era ser um escritor/das mil euma estórias/nunca imaginei que aoinvés de estória o momento/já que/tudo

na vida são momentos...”. Assim começa o livrode Rovani Machado, participante da Oficina deEscrita do Hospital Psiquiátrico São Pedro1, noqual estão reunidos 49 poemas escritos entre2002 e 2007. Sua poesia versa não apenas so-bre a loucura e o sofrimento psíquico, mas falatambém de miudezas que engrandecem e enri-quecem o cotidiano e de questões que tocam a todos, como os laços fami-liares, o desamparo da condição humana, o amor e a morte.

Se nos versos de Rovani faltam métrica e rima, sobram sentidos quese fazem e desfazem nas quebras inesperadas de linha: “Como levar o pen-samento/para o sensato nunca/buscando sensatez...” Também têm força asimagens criadas pelas palavras, que suscitam no leitor algo da estranheza eda angústia vividas pelo autor em seus momentos de “conflito cerebral”: sejao “decalco com a figura de macaco” que lhe é entregue por uma dama miste-riosa ou a “espera angustiante na sala de espera”, na qual sente a dor e adesesperança de seus órgãos a falir, à espera de um “laudo final”.

Sabedor que é “que numa esquina qualquer da vida, ali está a essên-cia do existir”, Rovani envereda, “sem medo de tropeçar”, pelas questõesque o tocam. Fala do medo demasiado humano de sentir, desde o nasci-mento, “o medo de morrer”. Conta dos “pequenos pedaços soltos no ar” que

1A oficina do Hospital Psiquiátrico São Pedro é um espaço onde se reúnem semanalmentepessoas com gosto pela escrita para produzir e compartilhar textos.

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RESENHA

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compõem a ilusão do presente e da “busca do meu eu perdido”, que marca a“caminhada do viver”.

Mas não são só os rincões mais profundos da experiência humanaque são plasmados por Rovani em seus escritos, que ora dão “forma aopensamento”, ora parecem “não ter nexo”. O leitor encontra ali também aque-les grandes pequenos detalhes que dão novas cores ao cotidiano, como osabiá que parece acompanhar seu escrever na oficina, aquele toque carinho-so que, por um momento, o recompensa pela visão deficiente, ou o sofá que,mudo, suporta as agruras e desabafos de todos que o usam.

“Fragmentos de uma existência” mostra, em versos, a relação daPsicanálise com a Literatura, relação esta que confunde-se com a própriahistória do saber psicanalítico. A produção de subjetividade que as letraspermitem ao sujeito, que endereça a um outro algo de sua experiência, com-partilhando-a pelo código da escrita, fundamenta o trabalho da Oficina doSão Pedro. Ao ler as palavras de Rovani, o leitor participa como outro/Outroa quem elas se dirigem, encontrando nelas, sem dúvida, também algo seu.

Paulo Gleich

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AGENDA

SETEMBRO – 2007

PRÓXIMO NÚMERO

Reunião da Comissão de EventosDia Hora Local Atividade

Reunião da Comissão de Aperiódicos

Sede da APPOA

Reunião da Comissão da Revista

JORNADA CLÍNICA

Reunião da Comissão do Correio 19h30min

15h30min

Sede da APPOA

Sede da APPOA

Reunião da Mesa DiretivaSede da APPOA21h8h30min

20h30min06

13 e 2710 e 24

14 e 2814 e 28 Sede da APPOA

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EXPEDIENTEÓrgão informativo da APPOA - Associação Psicanalítica de Porto Alegre

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e-mail: [email protected] - home-page: www.appoa.com.brJornalista responsável: Jussara Porto - Reg. n0 3956

Impressão: Metrópole Indústria Gráfica Ltda.Av. Eng. Ludolfo Boehl, 729 CEP 91720-150 Porto Alegre - RS - Tel: (51) 3318 6355

Comissão do CorreioCoordenação: Gerson Smiech Pinho e Marcia Helena de Menezes Ribeiro

Integrantes: Ana Laura Giongo, Ana Paula Stahlschmidt,Fernanda Breda, Márcio Mariath Belloc, Maria Cristina Poli,

Marta Pedó, Norton Cezar Dal Follo da Rosa Júnior, Robson de Freitas Pereira e Tatiana Guimarães Jacques

ASSOCIAÇÃO PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGREGESTÃO 2007/2008

Presidência: Lucia Serrano Pereira1a Vice-Presidência: Lúcia Alves Mees2a Vice-Presidência: Nilson Sibemberg

1a Secretária: Lucy Linhares da Fontoura2a Secretária: Maria Elisabeth Tubino

1a Tesoureira: Ester Trevisan2a Tesoureira: Maria Beatriz de Alencastro Kallfelz

MESA DIRETIVAAlfredo Néstor Jerusalinsky, Ana Laura Giongo, Ana Maria Medeiros da Costa

Ângela Lângaro Becker, Beatriz Kauri dos Reis, Carmen Backes,Emília Estivalet Broide, Fernanda Breda, Ieda Prates da Silva, Maria Ângela Bulhões,

Maria Ângela Cardaci Brasil, Maria Cristina Poli, Maria Lucia M. Stein,Otávio Augusto Winck Nunes, Robson de Freitas Pereira, Siloé Rey e Simone Kasper

Capa: Manuscrito de Freud (The Diary of Sigmund Freud 1929-1939. A chronicle of events in the last decade. London, Hogarth, 1992.)Criação da capa: Flávio Wild - Macchina

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S U M Á R I O

EDITORIAL 1NOTÍCIAS 2SEÇÃO TEMÁTICA 16UM LUGAR... “NENHUM” UMPERCURSO DE ESCOLASônia Maria Jardim Godinho 16UM ESTRANHO SENTIMENTOCHAMADO ANGÚSTIAFabíola Dutra Malaguez 21HIPÓTESES EM TORNO DO ABANDONOIranice Carvalho da Silva 26REFLEXÕES SOBRE A JUSTIÇA E OTRABALHO COM ADOLESCENTESAUTORES DE ATOS INFRACIONAISAnalise Brusius 36CONHECENDO JOVENS, AUTORESDE ATOS INFRACIONAIS, NA FASEMiriam G. Burger 45ALGO SOBRE NÓSMarilia Chagas 49ESTRUTURAÇÃO PSÍQUICA NAOBESIDADE E O CORTE NO ORGÃOSandra Meurer Romanini 57DOR – CORPO E ALMA – ASTRAMAS DO EULucia Helena Reus 69DIALÉTICA DA PULSÃOAndré Oliveira Costa 78

SEÇÃO DEBATES 87NÃO EXISTE A BOSSA NOVARicardo Silvestrin 87

RESENHA 89FRAGMENTOS DE UMA EXISTÊNCIA 89

AGENDA 91

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JORNADA DO PERCURSO VII

N° 161 – ANO XIV SETEMBRO – 2007