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Inventário da Língua Guarani Mbya
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I Encontro sobrE o InvEntárIo da Língua guaranI Mbya
I Encontro sobrE o InvEntárIo da Língua guaranI Mbya
Os Guarani têm discutido sua vida com os brancos e no Estado brasilei-
ro de várias formas; têm atuado para uma política da terra, da saúde,
da educação, mostrando seus valores, e buscado os vários níveis de
reconhecimento necessários para se viver bem e com dignidade. Ago-
ra, surge a oportunidade para a discussão de um dos mais altos valores
da cultura Guarani: a língua.
Esta é a função primeira do Inventário da Língua Guarani Mbyá (ILG)
e da publicação que o apresenta: possibilitar que os Guarani discutam
a sua língua e os mecanismos para o seu reconhecimento, por parte
do Estado, que lhes possam interessar. O Estado tem agora elementos
para considerá-la como Patrimônio Cultural Imaterial da Nação. Não ap-
enas da nação Guarani, mas da própria nação brasileira, constituída ela
mesma de várias outras nações que se relacionam, complementam-se,
interpenetram-se e se enriquecem mutuamente.
Talvez possamos dizer que o momento fundador do Inventário Nacion-
al da Diversidade Linguística, em que este livro sobre a Língua Guarani
Mbyá se inscreve, tenha sido o Seminário Legislativo sobre a Criação
do Livro de Registro das Línguas, realizado na Câmara de Deputados,
em Brasília, em 13 de dezembro de 2007, pela Comissão de Educação e
Cultura (CEC), pelo Departamento de Patrimônio Imaterial
APRESENTAÇÃOGilvan Müller de Oliveira *
do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) e
pelo Instituto de Investigação e Desenvolvimento em Política Linguíti-
ca (IPOL), e que nasceu das conversações que esta última Instituição
conduziu com o então presidente da CEC, Dep. Carlos Abicalil. Ali os
deputados e alguns senadores ouviram, em seis línguas brasileiras, a
explicação de como é ser brasileiro, em outra língua que não o Portu-
guês: em Guarani Mbyá, em Nheengatu, em Hunsrückisch, em Talian,
em Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS) e em Gira da Tabatinga.
Todos nós nos sensibilizamos com as demandas das comunidades lin-
guísticas brasileiras para com o uso e a manutenção das suas línguas,
constitutivas da nossaformação nacional, a despeito das políticas de
repressão e de apagamento que tenham sido conduzidas pelo Estado,
e o Dep. Abicalil deu encaminhamento ao processo que culminou com
o ILG.
Com a publicação deste livro, presenciamos a outra ponta do processo.
Donascimento da ideia até sua materialização no primeiro insumo de
planificação – o diagnóstico, expresso neste livro – passaram-se cinco
anos. O IPOL teve o privilégio de estar presente em todos os passos
da gestação desta nova política linguística do Estado brasileiro, partici-
pando das negociações, em todos os níveis, necessárias para que o In-
ventário se tornasse realidade, e das definições técnicas que instruem
os procedimentos de registro. Esta publicação fecha uma fase, a da
aplicação, testagem e desenvolvimento da metodologia para cada uma
das diferentes categorias de línguas em questão, e inaugura outra: a da
visibilização das línguas brasileiras por meio de iniciativas variadas de
inventário que estarão em marcha, processo que ajudará no seu recon-
hecimento e na sua legitimação, conduzindo a um encontro do País
consigo mesmo, com suas múltiplas faces, e à superação da política do
Português como língua
O livro é um observatório de vários movimentos da Língua Guarani
Mbyá e da sua comunidade falante no espaço brasileiro, conforme
explicados na Introdução, e os resultados permitem a interação com
uma série de outras políticas na área de cultura e, especialmente, de
educação, possibilitando verificar em que medida as escolas indígenas
bilíngues e interculturais realizam seu papel de promotores da cultura
indígena e da respectiva língua em meio aos movimentos realizados
pela comunidade, e como poderiam atuar para atender as expectativas
da comunidade. A língua, no entanto, é dos Guarani e continuará a ser
dos Guarani que, através do seu uso, das suas lideranças, das suas as-
sembleias, fixarão o futuro da língua no contexto do plurilinguismo bra-
sileiro. O IPOL se orgulha de trazer a público este trabalho, de metodo-
logia inovadora e participativa, e se orgulha mais ainda de ser parceiro
do povo Guarani nesta caminhada em direção ao futuro.
* Atual Diretor executivo do Instituto Internacional da Língua Portuguesa (IILP)
com sede em Cabo Verde, África
A atual diretora do IPOL, Rosângelo Morello, e Gilvan Müller de Oliveira, diretor executivo do IILP
Capa e contracapa do Inventário da Língua Guarani Mbya realizado pelo Instituto de Investigação e Desenvolvimento em Política Linguística
10
OBJETIVO
JUSTIFICATIVA
Este projeto buscou inventariar, a partir da metodologia proposta para o In-
ventário Nacional da Diversidade Linguística (INDL), a língua indígena Guarani
Mbya, falada em seis estados brasileiros: Rio Grande do Sul, Santa Catarina,
Paraná, São Paulo, Rio de Janeiro e Espírito Santo. É coordenado pelo IPOL –
Instituto de Investigação e Desenvolvimento em Política Linguística e tem o
apoio do Ministério da Justiça, através do Conselho Federal Gestor do Fundo
de Direitos Difusos – CFDD
A língua Guarani Mbya possui grande expressão e representatividade no Brasil,
estando presente em mais de 60 (sessenta) municípios em vários estados. Esti-
ma-se que, atualmente, haja cerca de 50.000 (cinqüenta mil) indígenas Guarani,
divididos em diferentes grupos e falando diferentes variedades do Guarani. O
grupo Guarani Mbya conta com cerca de 7.000 (sete mil) indivíduos e constitui
referência cultural pela sua presença geográfica e histórica no Brasil e países
do MERCOSUL, já que é falada por extensa população na Argentina e Paraguai.
Além disso, e mais importante, a língua Guarani Mbya possui alta relevância para
a memória e identidade do grupo a que diz respeito, atuando na organização dos
seus traços identitários mais estáveis e conhecidos.O presente inventário fará
com que a língua Guarani Mbya seja visualizada em suas diferentes dinâmicas
históricas, sociais e políticas, ampliando o efeito das políticas públicas, através
de ações coordenadas de largo alcance. Promoverá desde sua realização, uma
participação agentiva dos falantes, que atuarão na execução do trabalho e
definição dos materiais a serem disponibilizados, bem como seus usos.
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OJEUPITY AGU
ONHEMOMBE’U ANHETENGA
Kova’e ojejapo va’e kue ma onhemombe’u, ha’egui oĩ aguã ojejapo rive
va’e kue ayvu re omba’eapo va’e gui pavẽ mbya guarani ijayua kova’e
yvy re peteĩ pó peteĩ oja’ao re (6 estados brasileiros) ; Rio Grande do Sul,
Santa Catarina, Paraná, São Paulo, Rio de Janeiro, ha’egui Espírito San-
to re ave. Onhemopena va’e ma (IPOL- Instituto de Investigação e De-
senvolvimento em Política lingüística) have oĩ pavẽ ayvu re omba’eapo
oipytyvõ va’e (Ministério da Justiça) ha’egui (Conselho Federal Gestor
do Fundo de Direitos Difusos- CFDD) reve.
Mbya Guarani hayu ma ojeporu raxa kova’e Yvy re, ikuai ma agỹ reve (60
município) py oparupi. Ha’egui agỹ ma (50.000) rupi rive’i ma nhande
kuai Mbya Guarani kuery, amboae kuery revê joo ramie’ỹ e’ỹ nhandeayu
va’e revê mbya kuery teĩ. Kova’e Yvy re manje nhande Mbya Guarani ete’i
nhande kuai (7.000) rupi rive’i. Mbya Guarani hayu ma oexauka tekoete’i
kova’e Yvy re ikuai va’e ave oiporu avi. Ha’egui oiporu avi ayvu Argen-
tina re ha’egui Paraguai re ave. há’e rami vy ma há’eveve va’e ma Mbya
Guarani hayu ae ma ojeporu água onhemombe’u va’e rã ikuai va’e kuery
nombojeroviaai rã, oikoa py ojexauka haguã amboae kuery oikuaa aguã.
Agỹ gua ojejapo va’e kua Mbya Guarani hayu ma ojekuaa rã joo ramie’ỹ
rã, kaxo voi onhemboeta vê rã. Onhemombe’u bem’u vê rã vi ijayu va’e
kuery voi ombojekuaa rã mba’eapo reko oexauka aguã guembiapo oje-
poru aguã.
PELA DIVERSIDADE LINGUÍSTICA16
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30
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POVOS INDÍGENAS OU POVOS ORIGINÁRIOS
A LÍNGUA GUARANI MBYA
O GUARANI MBYA NO QUADRO DO INDL
O SENTIDO DE INVENTARIAR A DIVERSIDADE LINGUÍSTICA
O INDL COMO INSTRUMENTO POLÍTICO
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52
56
66
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A TRADUÇÃO DO GUARANI
BREVE DISCUSSÃO DA POPULAÇÃO MBYA
A VOZ MBYA: DEPOIMENTOS DAS LIDERANÇAS
ENTREVISTA: ROSÂNGELA MORELLO
DOCUMENTO FINAL
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PELA DIVERSIDADE LINGUÍSTICA
Das 215 línguas faladas em território nacional, aproximadamente
180 são línguas indígenas. Integrado a esses idiomas ameríndios,
figura uma infinidade de conhecimentos ancestrais, transmitidos
por séculos através da oralidade e dos costumes. Só mais
recentemente que alguns estudiosos vem potencializando
os esforço de fixação dessas línguas por meio da escrita.
A diversidade linguística brasileira - violentamente ampu-
tada pelos espólios da colonização – busca, nesse sentido,
restituir-se com novo fôlego diante da nova política de sal-
vaguarda do patrimônio imaterial brasileiro. A política fede-
ral do Inventário Nacional da Diversidade Lingüística (INDL)
tenta fixar-se como uma estratégia para o reconhecimento e
para a perpetração das matrizes linguísticas da nossa cultura.
16 17
Por longa data, os índios foram reprimidos em suas manifestações-
culturais, religiosas ou mesmo cosmológicas. As invasões quinhen-
tistas, a catequização, os sermões proferidos por Padre Vieira em
Guarani, tudo - em sua abrangência simbólica - constitui-se como
esforços no sentido de não legitimar as culturas ligadas ao cristianis-
mo. De acordo com os dados da obra do respeitado historiador José
Honório Rodrigues, um contingente aproximado de 1.078 línguas in-
dígenas habitava o Brasil pré-colonial. A política lusitana afirmou-se
de tal maneira que 85% dessa variedade linguística sucumbiu à impo-
sição da pátria monolíngue. De acordo com a o obra do antropólogo
Darcy Ribeiro, 67 línguas desapareceu somente no século XX. Em
discurso proferido ao senado brasileiro, Darcy Ribeiro expôs com
tristeza os resquícios da política coloninal brasileira: “só me cabe
dizer, agora,lamentando sentidamente que esta nossa nação brasi-
leira não precisa mais de índio nenhum para existir. Mas não existirá
jamais, em dignidade e vergonha, se deixar morrerem – morrerem
até de suicídio – os poucos índios que sobreviveram à invasão qui-
nhentista”. Como bem colocou o antropólogo, os direitos culturais
e linguísticos só foram concedidos aos índios na Constituição Fede-
ral de 1988. Tudo em detrimento de um preconceito que se esten-
deu por centenas de anos no imaginário do povo brasileiro.
Para se ter uma idéia, o Brasil é o 9º país em diversidade linguística
em todo o mundo. A despeito disso, as políticas do Estado sempre
foram repressivas às demais línguas diferentes do português. Se-
gundo Gilvan Müller de Oliveira – diretor executivo do Instituto In-
ternacional da Língua Portuguesa (IILP) -, as medidas políticas que
do Estado até recentemente foram políticas colonialistas. A expan-
são européia lançou-se ao mundo destruindo as línguas, como gafa-
nhotos que se espalham por uma plantação.
A somar-se a isso, o Estado Novo - através de um processo conheci-
do com “nacionalização do ensino” - impôs o português aos falantes
de outras línguas, sobretudo aos imigrantes que vieram depois de
Rainer Enrique Hamel - pesquisador da Universidade Autónoma Metropolitana, Unidad Iztapalapa, México, esteve acompanhando os dois dias do I Encontro sobre o Inventário da Língua Guarani Mbya
19
1850. Houve, para tanto, uma forte retaliação a línguas como o ja-
ponês, polonês, o ucraniano, o pomerano, o hunsrückisch, o talian
e idiomas ciganos, fortemente falados no Brasil, embora pouco se
diga a respeito.
Diante deste quadro calamitoso, o Inventário Nacional da Diversi-
dade Linguística (INDL) se compôs como um instrumento para fixar
uma política de resgate, respeito e promoção às línguas brasileiras.
Vindo a debate público em 2006, em um Seminário Legislativo, a
proposta de criação do INDL foi amplamente discutida por uma co-
missão interministerial e interinstitucional – o Grupo de Trabalho de
Diversidade Lingüística (GTDL) – coordenada pelo IPHAN que em
2007 publicou um relatório dando as diretrizes para o programa,
conduzindo à sua consolidação pela assinatura de um decreto de
2010.
A propostas visam ampliar o espectro de atuação dentro da imensa
diversidade nacional. Hoje existem no Brasil dezenas de línguas mal
catalogadas com comunidade pequenas de falantes. Isso aponta para
uma necessidade urgente de reestruturação das políticas de salva-
guarda do patrimônio imaterial. Além disso, a globalização aponta
cada vez mais para a manutenção dos quadros multilíngues. Não há
como sustentar mais a política tacanha de imposição de um só idioma.
Articulados por blocos econômicos, os países acabam por necessitar
de uma manejo bem mais incisivo dos seus quadros multiculturais.
20
O chileno Rainer Enrique Hamel – reconhecido pesquisador da situ-
ação linguística mexicana – endossa a necessidade de se repensar
a gestão das línguas no contexto da globalização. “Estamos ven-
do em muitos campos a importância dos conhecimentos indígenas
para a gestão dos Estados”, pontua o pesquisador da Universidade
Autónoma Metropolitana, Unidad Iztapalapa – México. “Vamos ter
um futuro onde os sistemas nacionais de educação não conseguirão
permanecer como sistemas monolíngües”, defende,
Nesse sentido, a gestão das políticas linguísticas precisa se colocar
como um ponto forte das estratégias de gestão dos Estados Nacio-
nais. O que antes foi reprimido pelo exercício de uma mentalidade
retrógrada deve agora ser estimulado pelas políticas públicas. Não
raro, pode-se ver pessoas afirmarem ser o Brasil dentetor de uma
só língua.
Foram realiazdos grupos de trabalho durante o encontro para discutir as questões a serem levantadas. O critério foi uma importante estratégia para organizar as demandas e encaminhamentos a serem enviadas para os orgãos públicos
20 21
O INDL COMO INSTRUMENTO POLÍTICO
O INDL foi instituído através da assinatura do decreto 7.387 pelo
então presidente Luiz Inácio Lula da Silva em nove de dezembro
de 2010. Depois disso, foram selecionados oito projetos-piloto
para dar início a uma nova política de salvaguarda do patrimônio
brasileiro. Os projetos apovados foram: (1) Inventário da Língua
Guarani Mbya, (2) Levantamento Sócio-Linguístico e documenta-
ção da língua e das Tradições Culturais das Comunidades Indígenas
Nahukwa e Matipu do Alto Xingu; (3) Inventário da Língua Ayuru;
(4) Língua Asurini do Tocantins; (5) Libras no Nordeste; (6) Inven-
tário da Língua Juruna; (7) Inventário da Diversidade Cultural da
Imigração italiana: o Talian e a culinária e (8) levantamento Etno-
linguístico de Comunidades Afro-brasileiras: Minas Gerais e Pará.
22
Buscando sempre atender um dos seis eixos de atuação, os proje-
tos tiveram como intuito referenciar o INDL, ou seja, criar uma base
palpável para identificação das questões comuns de feitura dos In-
ventários. Os trabalhos abordam comunidades indígenas de poucos
falantes, comunidades indígenas de muitos falantes, língua de co-
munidades afro-brasileiras, língua de sinais e línguas de imigração.
Fabíola Nogueira Cardoso, técnica em antropologia do Departa-
mento do Patrimônio Imaterial do Instituto do Patrimônio His-
tórico e Artístico Nacional (IPHAN), explicita que a partir do re-
sultado dos oito inventários pretende-se conseguir consolidar
A antropóloga Fabiola Nogueira, representante do IPHAN, ponderou sobre a nova política federal de inventariação das línguas brasileiras. O desafio é lidar com tamanha diversidade
22 23
uma metodologia que possa abarcar da maneira mais adequada
essas várias situações linguísticas existentes no país. Para ela, é
precisamos atender dois artigos do decreto: instituir uma comis-
são para poder avaliar e acompanhar as futuras demandas para
inventários de língua, e, a segunda medida seria regulamentar
o decreto para estabelecer os procedimentos para implanta-
ção do inventário, ou seja, metodologia, orçamento, constitui-
ção de equipe, instituições capacitadas e instituições parceiras.
Entretanto, sem a pesquisa estabelecida pelo Grupo de Tra-
balho de Diversidade Lingüística (GTDL), publicada em 2007,
o INDL não teria o arcabouço necessário à sua consolidação.
Vários estudiosos, especialistas e membros do Governo se
reuniram para constituir as bases de atuação nas quais o de-
creto pretende se firmar. Para tanto, foi produzido um rela-
tório específico que abordou desde o histórico das políticas
linguísticas do Estado brasileiro até as propostas metodoló-
gicas para efetivação da medida de salvaguarda patrimonial.
Participaram do GTDL representantes do Ministério da Edu-
cação, do IPHAN, do Ministério da Cultura (MinC), Museu do
Índio, do Museu Emílio Goeldi, da UNESCO, da Universidade
de Brasília, da Comissão de Educação e Cultura da Câmara dos
Deputados, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísti-
ca (IBGE), da Fundação Cultural Palmares e do Instituto de In-
vestigação e Desenvolvimento em Política Lingüística (IPOL).
24
Parece consenso junto aos linguístas, antropólogos e estudio-
sos o quão urgente se faz preservar a riqueza retida nas mani-
festações da língua. Diante da globalização, o mundo se articu-
la em blocos econômicos que tem na intercomunicação a pedra
angular da troca de bens, serviços e pessoas. As línguas, de um
modo geral, são os principais canais que possibilitam esse trân-
sito cultural. Além disso, faz-se eminente para o Estado bra-
sileiro uma nova percepção dos fluxos das línguas e da pre-
servação da própria identidade da matriz brasileira. O INDL
pretende atuar na esteira desse raciocínio como um banco de
dados que poderá a médio-longo prazo compilar nossa riquíssi-
ma diversidade, imprimindo, assim, uma gestão mais responsável
da multiculturalidade que transborda da nossa matriz linguística.
O Inventário da Língua Guarani Mbya só se consolidou depois de ter sido debatido junto aos próprios indígenas. Para o IPOL, o próprio ato de inventariar uma língua já configura a necessidade fundamental de compartilhar os resultados com a comunidade de falantes
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Cenas do material audiovisual coletado durante a pesquisa. A base de dados foi um elemento crucial no decurso da investigação. Para tanto, foi coletada uma ampla gama de imagens e fotografias. Nestas páginas, algumas dos frames dos curta-metragens produzidos pelo IPOL. Os filmes contaram com uma tradução bilingue (guarani/português).
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POVOS INDÍGENAS E POVOS ORIGINÁRIOS: O PRECONCEITO PELA VIA DA GENERALIZAÇÃO
Quando Leonardo Werá Tupã - um dos líderes Guarani Mbya da
aldeia Araçai, no Estado do Paraná - defende a substituição
da terminologia “indígena” por “povos originários”. Ele lança
mão do equívoco histórico que determinou muito a forma com
que os diversos povos que habitavam o Brasil antes da chega-
da dos portugueses foram submetidos no decurso da história.
Índias - como argumenta Werá Tupã - era o local que as naus portu-
guesas esperavam encontrar quando aportarem na costa atlântica
do Brasil. Partindo desta incompreensão, cunharam um termo que se
28
estendeu por mais de cinco séculos na literatura, nos hábitos nacio-
nalistas e na constituição do direito. Infelizmente, o termo foi e ain-
da é recoberto de uma acepção muito pejorativa, sendo recorrente-
mente mal interpretado por uma considerável camada da população.
Um exemplo acintoso pode ser percebido na série educativa Índios
no Brasil. O primeiro episódio ocupa-se em entrevistar diversas
pessoas, das mais diferentes situações geográficas e sociolinguís-
ticas, na tentativa de apreender uma acepção geral do que consti-
tui o imaginário do índio no Brasil. Na maioria esmagadora dos ca-
sos, as respostas são reforços enfáticos do estereótipo romântico
do índio, como aquele reproduzido pela obra O Guarani, de José de
Alencar. Poucas pessoas entendem a real dimensão do indigenis-
mo brasileiro, e mais do que isso, por não entenderem, acabam por
exercerem um forçoso preconceito contras as próprias origens.
Segundo Werá Tupã - que também assume atualmente o cargo de
coordenador da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) da região de
Palhoça, em Santa Catarina - a história sempre foi contada pelo
olhar do colonizador. Isso ajudou a perpetrar essa mentalidade ta-
canha do povo brasileiro, embora ele não atribua à culpa ao cida-
dão, e sim àqueles que construíram a moral exótica na qual o índio
é enquadrado. “A informação que chega para a população é erra-
da, por isso que a sociedade não tem culpa disso. A discriminação
existe de várias formas. O próprio título indígena é uma forma de
28
discriminar. Mas o Brasil está tão acostumado com isso, que até
mesmo nós nos chamamos de povos indígenas”, explica Werá Tupã.
O professor Gilvan Müller de Oliveira ainda completa que o ter-
mo “índios” não passa de uma abstração. Ele explica que o afas-
tamento linguístico do povo Kaingang comparado ao povo Gua-
rani, por exemplo, poderia, por analogia, ser comparado ao
afastamento do português em relação ao japonês. Constituem-
-se como línguas de troncos completamente distintos. Acredi-
tar, por associação, que todos os índios partilham da intercom-
preensão mútua - na ótica do diretor do IILP – é o mesmo que
afirmar que os europeus constituem um único povo. Essa gene-
ralização, muito habitual no julgamento dos povos indígenas,
aponta para um desconhecimento que fortalece o preconceito.
Gilvan Müller de Oliveira, Diretor executivo do Instituto Internacional da Língua Portuguesa (IILP)
30
A LÍNGUA GUARANI MBYA: UM TITÃ EM MEIO À ARIDEZ DA IMPOSIÇÃO MONOLÍNGUE
Os Guarani Mbya são uma das populações indígenas mais nume-
rosas do Brasil. Estima-se, grosso modo, aproximadamente 7 mil
falantes em todo território nacional, desse modo, como se con-
figuram como um povo disperso entre vários Estados, e até mes-
mo países, fica difícil delimitar precisamente as proporções po-
pulacionais: constitui-se como um povo em permanente trânsito.
Hoje, de acordo com a pesquisa do inventário, pode-se falar numa
taxa de transferência da língua superior a 98%. Várias aldeias sus-
tentam quadros de ensino bilíngue (guarani-poruguês/castelha-
30
no-guarani). Além do mais, o Paraguai, através da lei federal nú-
mero 4251 da constituição de 1992, oficializou o Guarani ao lado
do castelhano. Apesar de o guarani paraguaio possuir diferenças
quando comparado com as demais variações, qualifica-se por ter
uma base semântica e léxica aproximada. Segundo estatísticas
apresentadas pelo professor Lino Trinidad Sanabria - especialista
em Guarani da Universidade Nacional de Assunção (UNA) – dos
quase seis milhões de falantes do guarani no Paraguai, aproxi-
madamente 37% são monolíngues. Isso indica, inadvertidamen-
te, para a proporção histórica da língua, suas raízes e os rumos
que tomou no curso da colonização. É evidentemente um titã
em meio à aridez da imposição das línguas européias. Diz-se da
morte das línguas quando as crianças já não conseguem falar. O
Guarani, a partir dessa lógica, encontra-se em franca expansão.
Dividem-se, no Brasil, entre Mbya, Ñandeva e Kaiowá. No todo,
contabilizam algo na ordem de 35 mil falantes. Quando da che-
gada dos portugueses a costa brasileira, já constituíam um gru-
po coeso e bem estabelecido, com a transmissão perene dos
conhecimentos da língua de um povo que existe há pelo menos
dois mil anos. Partindo de projeções estatísticas, pode-se infe-
rir que no ritmo de crescimento populacional que atingiram, em
breve, reconstituirão a mesma proporção do princípio da colo-
nização. A população aumenta 5% ao ano, ou seja, o dobro da
média nacional. Alguns povos indígenas, a despeito do que se
32
possa imaginar, estão fortemente estabelecidos em seus res-
pectivos territórios. Possuem orientação política definida e um
sistema de reprodução dos seus valores em permanente ma-
nutenção. Para se ter uma idéia, a língua Guarani foi co-oficia-
lizada em Tacuru, no Mato Grosso do Sul, através da estratégia
do Estado brasileiro de permitir a co-oficialização de línguas
em nível municipal. Os povos pioneiros foram os Baniwa, Tuka-
no e Nhengatu, em São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas, no
ano de 2002, apesar da lei só ter sido regulamenta no ano de
2006. Já foi adotada como língua de trabalhos no MERCOSUL,
oficializada na Bolívia e na província de Missiones, na Argentina.
O IPOL constatou em um dos seus levantamentos que existem 82
municípios brasileiros onde a maioria não é falante do português
enquanto língua materna. Assim, todos esses municípios guardam
imenso potencial para a implementação da co-oficialização. Isso,
como no caso do Guarani no Paraguai e no município de Tucuru, inci-
de diretamente sobre o sentimento de pertencimento, de harmo-
nização das relações sociais e de livre-arbítrio no trato com o sen-
tido gerado por cada língua. O Guarani, como relata seus falantes,
é uma língua muito subjetiva, bastante sentimental, com todo um
repertório cosmológico próprio. Co-oficializar significa exercer a
diferença e a multi-culturalidade. Inventariar, outro passo para o
registro e a criação de um acervo comum da diversidade brasileira.
32 33
O Inventário da Lingua Guarani Mbya foi distribuido para todas as lideranças presentes no encontro. A discussão dos resultados foi uma das prioridades adotadas pelo IPOL, afinal, a língua pertence antes de tudo aos falantes.
34
O GUARANI MBYA NO QUADRO DO INDL
De acordo com o dicionário Priberam da Língua Portuguesa, a pala-
vra inventário tem origem no latim medieval, inventarium, e pode
significar relação de bens, móveis e imóveis, de alguém; descrição
minuciosa; menção ou enumeração das coisas ou descrição de bens
ativos e passivos de uma empresa ou sociedade comercial. No senti-
do jurídico, encaixa-se em bastante conformidade à nova estratégia
do Governo Federal de fazer um registro detalhado da línguas brasi-
leiras. Agora, para os Guarani Mbya, esta palavra sequer existe.
Numa lógica de aproximação, existiria o termo nhenbaeapo nhande
reko arandu. Isso significa, na representação deles, “trabalho onde
34 35
se junta várias informações sobre o conhecimento Guarani”. Leo-
nardo Werá Tupã atribui à língua a motricidade de todas as relações
culturais, sociais, religiosas e existenciais. “A língua, em primeiro
lugar é a própria cultura”, considera. “Sem língua muitas coisas se
perdem. Através dela, se preserva muitas coisas do conhecimento,
do cotidiano, do passado”, concluí.
Nesse sentido, o especialista Rainer Enrique Hamel coloca perti-
nentemente que o livro ainda é o mecanismo hegemônico de distri-
buição e fixação do conhecimento. Através do registro das línguas,
muita da sua articulação e de sua importância fica retida num supor-
te favorável à preservação. “É Importante tornar as línguas visíveis
num contexto de cultura dominante: a escrita, o livro, as fotogra-
fias. Muitas pessoas acreditam que as línguas indígenas não devem
ser escritas. Eu acredito que elas têm muita vitalidade linguística e
cultural e não vejo qualquer impedimento em registrá-las”, comple-
ta o estudioso nas questões ameríndias mexicanas.
Justo nesse contexto, de importância e de registro, é que nasce o
INDL. Coordenado pelo IPHAN, o recém assinado decreto prescre-
veu a criação de projetos a partir dos seus seis eixos de atuação. O
Guarani Mbya - como figura enquanto uma língua com ampla comu-
nidade de falantes - enquadrou-se na categoria de língua indígena
de grande população e extensão territorial. O IPOL - Instituto de
Investigação e Desenvolvimento em Política Lingüística – encarre-
36
gou-se de realizar o projeto que já vinha sendo pesquisado há mais
de três anos. Para tanto, foram visitadas 69 aldeias, contabilizando
o equivalente a 928 questionários respondidos por 596 indivíduos,
269 chefes de núcleo familiar e 64 líderes ou caciques das comuni-
dades. Recorreu-se também a diversos arquivos de base de dados,
marcação de pontos geográficos pelo GPS, relatórios de pesquisa
de campo, registro de imagens fotográficas, registro de lista de pa-
lavras, depoimentos audiovisuais e coleta de materiais relevantes
para a pesquisa.
Uma extensa variedade de referências sobre os Guarani Mbya foi
identificada e usada como ponto de articulação do processo de fei-
tura do inventário. Também foram confeccionados mapas sobre a
configuração atual da língua no cenário geopolítico brasileiro. Para
tanto, foram considerados os Estados do Espírito Santo (ES), Rio de
Janeiro (RJ), São Paulo (SP), Paraná (PR), Santa Catarina (SC) e Rio
Grande do Sul (RS). Os Estados do Tocantins (TO) e do Pará (PA),
embora também possuam populações Mbya, não foram pesquisa-
dos em decorrência de vala geográfica que se interpôs entre os fa-
lantes. Uma opção metodológica.
De acordo com o relatório interno da equipe executora do Inventá-
rio da Língua Guarani Mbya, “em uma tradição monolínguista, como
a brasileira, em que a única língua legitimada pelas aparelhagens do
Estado foi a língua portuguesa, pouco se estruturou como campo
36
de conhecimento sobre e nas demais línguas praticadas no país. São
praticamente ausentes informações sistematizadas sobre estas lín-
guas. De modo geral, está disponível apenas o número de indígenas
pertencentes à determinada etnia, informação a partir da qual se
pressupõe a língua por eles falada. no caso das línguas faladas por
índios, por exemplo, mesmo quando há dados linguísticos por etnia
ou território indígena, não estão disponíveis dados sobre a situação
sociolingüística das demais possíveis línguas faladas nessas comuni-
dades”.
Segundo Hyral Moreira, cacique da aldeia Biguaçu, a importância da
elaboração do inventário é um primeiro passo para se informar o
que esta acontecendo nas aldeias, quais problemáticas estão se su-
O cacique Hyral Moreira articulou em favor de uma maior atenção para as comunidades indígenas. O Inventário, de acordo com ele, representa um passo positivo em direção de uma política linguística mais adequada à preservação da diversidade do país
38
cedendo. “A nossa preocupação com língua sempre existiu. O que
não existia era a forma de se preservá-la. Até hoje nós consegui-
mos mantê-la. Mas nossa preocupação também vai daqui pra frente.
Como será com nossos filhos, nossos netos? Se não houver umcui-
dado público, não sei se conseguiremos preservar nossa língua mi-
lenar”, adverte o líder da aldeia de Santa Catarina, preocupado com
manutenção do seu maior patrimônio.
A atual diretora do IPOL, Rosângela Morello, explica que durante
as pesquisas de campo, tomou-se um especial cuidado nas entre-
vistas tanto dos jovens quanto dos mais velhos. “Entrevistamos vá-
rias faixas etárias para saber se, por exemplo, os jovens já estavam
esquecendo algumas palavras que os mais velhos não esqueciam”,
explica. Outra grande questão envolvendo o Inventário da Língua
Guarani Mbya diz respeito à interpretação desses depoimentos,
que, inevitavelmente, exigiram um grau de complexidade muito ele-
vado para serem feitos.
Joana Epará, professora bilíngue guarani-português da comunida-
de de Morro dos Cavalos, envolveu-se durante todo o processo do
Inventário da Língua Guarani Mbya. Falante fluente do português,
do espanhol e do Guarani, Joana compreende todas as três varia-
ções da língua no Brasil e ainda compreende o Guarani paraguaio.
Ela foi fundamental para estabelecer o contato inicial com as al-
deias inventariadas. Ademais, como mesmo pontua a professora, o
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Guarani é uma comunidade única: “Somos todos irmãos”, pontua.
“Nós estudamos uma história da educação indígena completamen-
te equivocada. E hoje as coisas representam outra realidade. O Es-
tado, apesar de bem lentamente, tem dado mais atenção para nós,
indígenas”. Joana acaba de ingressar num mestrado em educação
escolar indígena na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
Suas motivações partem sempre do sentimento expressado pela lín-
gua: “A língua Guarani sou eu. O guarani é um só”.
Rosângela Morello, diretora do IPOL, defende um processo do inventário que consiga lidar com a diversidade linguística brasileira. Tanto as pequenas comunidades de falantes quanto as grandes comunidades devem ser registradas
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42
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O SENTIDO DE INVENTARIAR A DIVERSIDADE LINGUÍSTICA
Para o IPOL não faria sentido desenvolver um trabalho acerca
de um língua que não promovesse uma discussão com os falan-
tes. Afinal, tanto a língua quanto a gestão pertence aos próprios
Guarani. Rosângela Morello enfatiza que se deve tomar bastante
cuidado com o correr das investigações, caso contrário, correm
grande risco de estagnarem em uma biblioteca acadêmica sem
uma efetiva aplicação prática. O Inventário, dessa maneira, só se
justifica enquanto um propulsor de políticas públicas que benefi-
ciem toda a comunidade Guarani Mbya. Para tanto, o IPOL orga-
nizou em Florianópolis – cidade sede do instituto – um encontro
com diversas lideranças Guarani Mbya no sentido de discutir os
resultados da pesquisa e propor novos rumos para a língua den-
tro da sua atual conjuntura. Mais de 30 lideranças dos seis Es-
tados inventariados compareceram às discussões realizadas nos
dias 26 e 27 de julho de 2011. Foram realizados grupos de trabalho,
apontamentos e formulações de propostas para o encaminha-
mento formal aos órgãos públicos. Estiveram presentes repre-
sentantes do IPHAN, do MEC, do MinC e da FUNAI, justo no sen-
tido de encaminhar os levantamentos de maneira eficaz e direta.
João Maurício Farias - Assistente técnico da regional da Funai do
litoral sul – acredita que medidas como estas acabam por dar mais
João Maurício “essas medidas acabam por reconhecer e fortalecer a etnicidade das populações indígenas”.
45
visibilidade às comunidades indígenas, ajudando sobremaneira
noutras questões políticas, como por exemplo, a homologação
de terras. “Eu acho esse inventário fundamental para consolidar-
mos o reconhecimento dessas etnias aqui no Brasil, até mesmo
no sentido de garantir mais direitos. Esse trabalho certamente
traz para o cenário da formação do Estado brasileiro o multicultu-
ralismo. Assim é possível mostrar para a sociedade brasileira que
o Guarani é uma língua viva, em crescimento”, argumenta. “Na
medida em que as pessoas começarem a entender quem são es-
Joana Arari: “O encontro com as lideraças pode colaborar para a construção de novas políticas linguísticas”.
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ses índios, quais os direitos que eles têm, isso acaba por facilitar
até mesmo a restituição dos seus direitos fundiários”, finaliza.
Joana Arari, representante da coordenação geral de culturas po-
pulares e tradicionais do Ministério da Cultura (MinC), acredita que
as políticas participativas são o modelo essencial para as políticas
indigenistas. “Nós trabalhamos sempre escutando o que as comu-
nidades têm a dizer, portanto, acho que este tipo de encontro é
valioso. É um desdobramento do próprio Inventário da língua”. A
idéia, segundo a representante do Ministério da Cultura, é sempre
fortalecer ao máximo os caracteres da transmissão e dos usos co-
tidianos, fundamentais para a sobrevivência de qualquer idioma.
As lideranças ocuparam-se em discutir os rumos da língua guarani nos dois dias de encontro. Para eles, expressar-se em Mbya consiste num exercício de preservação e respeito às próprias raizes.
46 47
A TRADUÇÃO DO GUARANI MBYA: AS BARREIAS ENTRE O COSMOLÓGICO E O PRAGMÁTICO
O ofício da tradução - como salienta Wanderley Cardoso - é um
trabalho que requer técnica e empenho, sobretudo no caso de
uma língua indígena como o Guarani Mbya, repleto de um conteú-
do cosmológico próprio, muitas vezes dispare diante da semânti-
ca do português. “Na maioria das vezes a palavra em Guarani não
existe em português. Existe mais é o sentimento. A maneira com
que você vai traduzindo é a soma do pensamento de várias pesso-
as que nós tentamos colocar na transcrição”, explica o jovem tra-
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dutor que se envolve com o ofício há aproximadamente sete anos.
Wanderley - em conjunto com Joana Epará e Myrian Lucia Cardo-
so – foram os responsáveis por todas as traduções tanto do gua-
rani para o português quanto do português para o guarani no pro-
cesso de feitura do Inventário. Além disso, traduziram todos os
curtas-metragens realizados pelo IPOL nas aldeias visitadas. Joana
explica que - apesar de se envolver constantemente com o ofício
de tradução – sua maior dificuldade reside na transcrição do guara-
ni para o português. A professora bilíngue compreende espanhol,
português, guarani ñandeva, kaiowa e mbya, além de compreen-
der também a variação da língua oficial no Paraguai. Entretan-
to, transitar por uma língua que se legitimou pela transmissão oral
e por outra bastante livresca interpõe-se como uma dificuldade.
Myrian acredita na existência de dois modelos de tradução: um ao pé
da letra, embora neste se perca completamente o contexto da trans-
crição, e o outro, mais adequado, em que se deve conhecer profunda-
mente a cultura no sentido de manter a maior fidelidade dos aspectos
subjetivos. Nesse sentido, ela advoga em favor do ensino bilíngue. Para
ela, na medida em que os jovens puderem transitar com facilidade en-
tre os dois idiomas, torna-se mais fácil a obtenção dos direitos e do re-
conhecimento da cultura guarani de um modo geral. “Ajuda os jovens,
ajuda as lideranças a pensar o que fazer com a língua. Queremos ter
certeza que estamos cultivando nossa língua, nossa cultura”, defende.
O trabalho de campo do Inventário da língua Guarani Mbya demons-
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trou através dos seus questionários os caracteres da transmissão da
língua. De acordo com os questionários respondidos, tanto os filhos
quanto os netos nos círculos familiares Mbya aprendem a língua numa
taxa de transmissão intergeracional superior a 98%. Segundo o relató-
rio do IPOL: “o ensino da Língua Guarani Mbya e a intenção de ensiná-la
às gerações focalizadas são fatos afirmados pela quase totalidade dos
chefes de família entrevistados”, comprovando, portanto, um alto grau
de valorização da língua pelos falantes. A vontade e a necessidade de
perpetuar as tradições e a cultura são os principais motivos relatados.
Logo, transitar entre línguas - para os guarani - consiste
num exercício valioso para trazer aos demais povos um pou-
co da cultura e da espiritualidade milenar dos povos guarani.
Como mesmo afirmou Wanderley ao periódico catarinense Notícias do Dia - na ocasião em que a jornalista pediu-lhe para formular uma frase em ambos os idiomas – “pende kuery Juruá kuery peikua’a ore kuery reko”. Ou seja, “que vocês não indígenas possam entender os nossos costu-mes através do conhecimento indígena”.
O Mbya Aldo usa seu tablet durante o encontro entre as lideranças
52
BREVE DESCRIÇÃO DA POPULAÇÃO GUARANI MBYA
As fronteiras geográficas dos Estados Nacionais não correspondem às
fronteiras dos povos indígenas. As relações de proximidade por vezes
extrapolam territórios nacionais, causando um estranhamento ligado às
relações de nacionalismo e de identidade. Os Mbya se encontram con-
centrados em sua maioria na Argentina, no Paraguai, na Bolívia e no Bra-
sil, e, apesar de em alguns casos guardarem distinções dialetais, são um
povo que se agrupa um torno da mesma unidade. Há, portanto, uma inco-
erência nos modos de articulação dos povos indígenas e dos Estados Na-
cionais; e essa questão se estende inclusive a delicada questão fundiária.
Os Guarani Mbya pertencem à família linguística do Tupi-Guarani,
no entanto, a língua originou-se do tronco maior, o Tupi. No Bra-
52 53
sil, as variações são entre o Mbya, o Nhandeva ou Xiripá ou Ava
Guarani e o Kaiowa. Contudo, de acordo as autoridades científicas
no assunto, não existem limites claros entre as variedades. Elas
podem receber dos falantes outras designações que não essas.
Como mesmo aponta o estudo realizado pelo IPOL, o Guarani -
em conjunto com o Aimara e o Garifuna – é das poucas línguas
latino americanas faladas representativamente em quatro pa-
íses. Para se ter uma idéia, a primeira gramática da escrita pelo
padre Montoya data a primeira metade do século XVII. Isso mos-
tra a importância do estudo da língua nos primórdios da coloni-
zação da América Latina, embora ainda existam poucos trabalhos
sistematizados sobre o Mbya, o Nhandeva e o Kaiowa. São um
povo de forte unidade estendido por toda América latina. As es-
timativas feitas pela Assembléia Continental, realizada na cidade
de Porto Alegre – em abril de 2007 – apontam para um número
equivalente a 255 mil Guarani vivendo no continente americano.
Os dados do Centro de Trabalho Indigenista (CTI) enumeram apro-
ximadamente 85 mil Guarani nos Brasil, Paraguai e Argentina.
A FUNASA, de acordo com as estatísticas de atendimento à saú-
de, contabilizou 21.557 Guarani brasileiros. Os Mbya, dentro des-
sa lógica, somariam algo torno de cinco a sete mil, embora todos
esses cálculos levem em conta bases demasiado especulativos.
Não raro, encontram-se muitos Guarani radicados em bases
54
trilíngues ou mesmo quadrilíngues. Além das taxas de trans-
ferência da língua materna ser altíssima, por se tratar tam-
bém de um povo fronteiriço, as aptidões para falar várias lín-
guas verificam-se em várias aldeias. Isso mostra o quão forte
é o arcabouço cultural desse povo, extremamente voltado
para a percepção de um mundo cosmológico, espiritualiza-
do e repleto de um rigor favorável a luta pelos seus direitos.
54 55
VOZ MBYADEPOIMENTOS DAS LIDERANÇAS
Tenho orgulho de ser guarani, sobretudo quando comecei a me en-
volver com a liderança. Antigamente, quando era mais novo, eu sen-
tia um pouco de vergonha de ser índio. Nós éramos muitos discrimi-
nados pela sociedade. Depois que eu fui entendendo como era o
mecanismo das coisas. Passei, então, a ter orgulho de ser guarani.
Hoje sabemos que a cultura vai se difundindo com outras. Uma das nossas
principais bandeiras é manter a nossa identidade. Por isso é importante lutar-
mos pelos nossos direitos, pela demarcação das nossas terras. Dessa forma,
podemos nos organizar melhor, valorizar mais o trabalho coletivo, as con-
versas coletivas, a vivência. Podemos, assim, passar todas as informações
de antigamente para os mais novos. Os mais velhos sentam num lugar, ao
redor da fogueira, e começam a contar as histórias de como eram as coi-
sas antes. E agente vai guardando isso. E depois agente já vai ficando mais
velho e já vai passando isso para as crianças. Por isso que é importante para
nós a cultura, a língua, a crença, entrar na casa de reza, chegar à casa das
pessoas, conversar. Isso é importante, pois agente vê que na sociedade
não indígena já não existe isso. Cada um vive no seu próprio mundo, indi-
vidualista. Eu mesmo, quando mais novo, falava só em português. Parece
que era mais bonito falar em português. Com o passar do tempo - com os
mais velhos falando que nós temos que valorizar nossa cultura, nossa lín-
gua – eu percebi, se nós, as lideranças, não falarmos para as pessoas que
temos que valorizar tanto nossa identidade, nós mesmos vamos nos perder.
VOZ MBYA CACIQUE MARCO ANTÔNIO OLIVEIRA DA SILVAALDEIA MASSIAMBU, SANTA CATARINA
A elaboração do inventário pra mim é só um primeiro passo para se
informar o que está acontecendo nas aldeias. E quais problemáti-
cas estão atingindo essas aldeias. É importante que essa proposta
de inventariar a língua possa elaborar uma medida que sirva como
política pública. Nós, ao contrário do que se pensa, sempre nos preo-
cupamos com a preservação da língua. O que não existe é uma ma-
neira adequada de fazê-lo. Até o momento nós conseguimos preser-
var ela. Mas a preocupação vem daqui para frente. Como será daqui
ha 50 anos? Se não existir uma política pública em defesa da lín-
gua Guarani, não vamos conseguir manter esse idioma que é mile-
nar, que, apesar de todas as adversidades, ainda se mantêm vivo.
Acredito que a população indígena tem se esforçado muito nesse senti-
do. Nós, como se sabe, só tivemos acesso aos nossos direitos a partir da
constituição de 1988. Antes era inclusive proibida a prática. Muitas cul-
turas se extinguiram por essa razão. Esse inventário é, em minha opinião,
o primeiro passo. Foi importante fazer esse levantamento para ter sub-
sídios para questionar outras questões. Mas ainda há muito que fazer.
CACIQUE HYRAL MOREIRAALDEIA BIGUAÇU, SANTA CATARINA ALDEIA MASSIAMBU, SANTA CATARINA
Estamos no momento em uma situação de vitória, mas ao mesmo tempo com
várias dificuldades e vários pontos que estamos enfrentando, a nossa luta de sem-
pre. Agente sempre manteve o nosso costume - não gosto de dizer cultura – por
que quando nos referimos a cultura no contexto do Brasil já vem com uma coisa
definida, de como a cultura é. Gosto de pensar em costumes originários, vindos
dos nossos ancestrais. Hoje estamos tentando nos incluir na sociedade brasilei-
ra, mas não de uma forma brasileira, mas com os direitos originários. Temos de
reivindicar pelos nossos sistemas e as nossas visões. Por que tudo o que se sepa-
ra na sociedade ocidental por quadros – educação, saúde – nós não separamos.
Estamos, nesse sentido, procurando uma política pública adequada para nós.
A minha educação não vem a partir de uma escrita ou de uma visão política.
Envolve toda uma cosmologia guarani, o canto, a palavra, a imagem. Nos-
sa base principal são os velhos, eu diria que eles são dicionários em pessoa.
Precisamos sempre procurar vivenciar outros costumes. Tentamos viver a di-
versidade. É importante que as pessoas não indígenas vejam o nosso lado.
É preciso criar uma política a partir do entendimento do nosso povo, intima-
mente ligado a natureza. A sociedade ocidental fala de água como fonte da
vida, mas será que somente água? Não a natureza como um todo? É impossível
alguém que não é índio ser índio. Mas é preciso entrar no nosso mundo para
ver melhor como nós vemos as coisas. Precisamos dialogar, nos compreender
melhor. As formas de convivência tem que ser positivas para as duas partes.
CACIQUE MARCO ANTÔNIO OLIVEIRA DA SILVAALDEIA MASSIAMBU, SANTA CATARINA
60
Qual foi a principal motivação do IPOL em inventariar a língua Guarani
Mbya? A predileção por uma das línguas indígenas mais faladas do Brasil se
deveu a que?
Rosângela: O IPOL teve o privilégio de atuar na instituição da política do
Inventário Nacional da Diversidade Linguística do Brasil/INDL desde sua
concepção, tendo defendido uma participação agentiva das comunidades
linguísticas no processo.
Realizar o Inventário da língua Guarani Mbya em seis estados – Espírito
Santo, Rio de Janeiro, São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do
Sul - foi uma consequência dessa posição de trabalho. Este Inventário aliou
o diálogo histórico do IPOL com as comunidades indígenas, em especial, as
ENTREVISTAROSÂNGELA MORELLO, DIRETORA DO IPOL
60 61
lideranças Guarani – vale lembrar que Leonardo Wera, de Santa Catarina,
participou em 2006, por indicação do IPOL, do Seminário Legislativo que
culminou com o decreto do INDL, em 2010 - e o propósito de executar o
projeto piloto para instruir metodologicamente os novos inventários de
línguas indígenas de grande população e extensão territorial. Como an-
tes nunca se tinha inventariado línguas no Brasil, vivemos intensamente
o desafio de construir o próprio sentido de inventário de uma língua, além
de toda a logística para realizar o trabalho. O fato do IPOL ter acumulado
muita experiência na área de políticas lingüísticas para a educação bi e
plurilíngüe, inicialmente em contexto indígena, mas que logo se ampliou
para as línguas de imigração e regiões de fronteira, propiciou a base para
esta complexa tarefa. Foram três anos de muitas aprendizagens, de muito
diálogo com lideranças Guarani, indigenistas e instituições parceiras, de
formação de equipes especializadas e pesquisas em arquivos, trabalhos de
campo, registros em áudio e vídeo, enfim, de construção de uma trajetória
de trabalho e de instrumentalização da Língua Guarani que ficam agora à
disposição do povo Guarani para que continue sua luta por melhores con-
dições de vida.
O resultado do Inventário da Língua Guarani Mbya vai - na ótica do IPOL
- aportar novas conclusões para o estudo das línguas indígenas no Brasil?
Rosângela: Pela primeira vez uma língua indígena de grande expressão
política e territorial foi inventariada. Isso significou, basicamente, a con-
strução de uma ótica de trabalho que foi a de inventariar línguas, algo
62
distinto da descrição de línguas. Sustentando uma metodologia especí-
fica, conforme se pode ler no livro Inventário da Língua Guarani Mbya,
o inventário focaliza informações que abarcam os modos de se nomear a
língua, os âmbitos de sua circulação, seu status, sua taxa de transmissão,
sua história e os valores sociais e políticos a ela agregados. Sistematizamos
assim, dados sociolingüísticos, históricos e políticos fundamentais para o
adequado planejamento de ações que conduzam a uma política linguística
voltada à valorização e fortalecimento da língua. Logicamente, todas as in-
formações ali reunidas podem ser objetos de investigações aprofundadas,
em trabalhos futuros.
Quais foram as principais dificuldades encontradas no processo de inventar-
iar a língua Mbya?
Rosângela: A perspectiva e a metodologia do Inventário requerem uma
sistematização de informações sobre a situação social, política e linguís-
tica da comunidade em estudo. Como se sabe, a consolidação do Estado
brasileiro como monolíngue em Português apagou ou silenciou as mais de
180 línguas indígenas e outras dezenas de línguas de imigração, além das
línguas crioulas, afro-brasileiras e de sinais. As condições atuais de muitas
destas línguas são muitas vezes desconhecidas, ou, quando muito, são
parte de estudos descritivos. Há uma enorme dispersão das informações.
No caso da língua Guarani Mbya, essa situação dificultou tanto o plane-
jamento prévio adequado do trabalho quanto sua execução, uma vez que
não pudemos contar previamente, no campo da gestão das políticas pub-
62 63
64
licas do Estado, com mecanismos administrativos e financeiros ajustados
para atender as especificidades de um trabalho dessa envergadura. Fomos
construindo ao longo do percurso, com erros e acertos e muita conversa,
as possibilidades para o trabalho se consolidar.
O IPOL - enquanto instituto de políticas linguísticas - pretende dar continui-
dade ao processo de estudo e preservação da diversidade brasileira fomen-
tado pelo Inventário Nacional de Diversidade Linguística (INDL)? Assumida-
mente, existe a pretensão de se inventariar uma outra língua?
Rosângela: A realização de novos inventários é parte da política de regula-
mentação do Decreto ... que por hora tramita no IPHAN. Temos todos envi-
dado esforços para avançarmos nessa direção, consolidando as categorias
de línguas, os modos de inventariá-las e os recursos mínimos necessários
para a realização de novos inventários. É preciso que se estebeleça essa
regulamentação para que as demandas se consolidem.
Temos, de todo modo, colocado à disposição de nossos parceiros nossa
qualificação técnica e política para este trabalho. O IPOL se apresenta,
atualmente, como um Instituto com larga experiência na formulação de
bases digitais de dados sobre línguas brasileiras visando a sua gestão nos
mais variados contextos, respeitando sempre a interlocução com as co-
munidades lingüísticas e suas demandas históricas e políticas. Os diagnós-
ticos sociolingüísticos para a implantação de escolas bilíngües e intercul-
turais, o senso linguístico do município de Santa Maria de Jetibá e agora
o inventário da língua Guarani Mbya, uma língua de grande população e
64 65
extensão territorial, portanto, com grande volume de informações, exem-
plificam essa atuação. E nossos parceiros sabem que podem contar esta
nossa experiência.
Qual foi a principal motivação de produzir um encontro com as lideranças
Mbya para discussão dos resultados do estudo?
Rosângela: A política do Inventário Nacional da Diversidade Linguística
– INDL, na qual se inscreve o Inventário da Língua Guarani Mbya, almeja
mobilizar uma nova forma de atuação do Estado Brasileiro em defesa dos
direitos lingüísticos, e para tanto, é fundamental que as comunidades lin-
guísticas sejam agentes em todo o processo. Afinal, trata-se se salvaguard-
ar e promover a língua, um bem que estrutura política, simbólica e his-
toricamente a comunidade que a fala.
O trabalho de inventariar exige visitas às comunidades, diálogo sobre o
que entra ou não no documento final, formas de interagir e descrever cada
aspecto dos usos da língua. É um trabalho de muitas delicadezas e forte
potencial mobilizador das identidades. O Encontro foi um momento de so-
cialização dos resultados do trabalho realizado, um momento de reflexão
e encaminhamentos com a participação também de representantes do
governo que conduziu a um documento final, disponibilizado em www.
ipol.org.br Foi também um momento de comemoração pelo fato do in-
ventário proporcionar à Língua Guarani Mbya seu reconhecimento como
patrimônio cultural imaterial da nação brasileira.
66
ENCONTRO SOBRE O INVENTÁRIO DA LINGUA GUARANI MBYA
DOCUMENTO FINAL
26 e 27 de julho de 2011.
Florianópolis, Santa Catarina, Brasil.
66 67
Nos dias 26 e 27 de julho aconteceu o ENCONTRO SOBRE O INVENTÁRIO
DA LINGUA GUARANI MBYA, em Florianópolis, reunindo lideranças
Guarani dos seis estados inventariados – Rio Grande do Sul, Santa Catarina,
Paraná, São Paulo, Rio de Janeiro e Espírito Santo –, representantes de insti-
tuições do Governo e especialistas com o objetivo de discutir os resultados
do Inventário da Língua Guarani Mbya (ILG), e seus desdobramentos para a
promoção desta língua. O Encontro foi promovido pelo IPOL - Instituto de
Investigação e Desenvolvimento em Política Linguística, instituição respon-
sável por executar o referido Inventário que se iniciou em 2008, com o apoio
do Conselho Federal Gestor do Fundo de Defesa de Direitos Difusos (CFDD)
da Secretaria de Direito Econômico do Ministério da Justiça.
O ILG foi concebido como um projeto piloto para, juntamente com outros
sete projetos contemplando línguas de imigração, de sinais, indígenas de
poucos falantes e afrobrasileira, consolidar a proposta de criação do Inven-
tário Nacional da Diversidade Lingüística (INDL), instruída pelo relatório do
Grupo de Trabalho da Diversidade Lingüística (GTDL), publicado em 2007.
Destinado a reunir informações variadas sobre a língua e seus usos sociais,
o inventário abrangeu 69 aldeias de seis Estados brasileiros (ES, SP, RJ, PR,
SC, RS), somando um total de 928 questionários respondidos. O trabalho
de pesquisa contemplou ainda a busca de informações sobre a língua Gua-
rani em arquivo e base de dados, marcação de pontos das aldeias por GPS,
relatórios das idas a campo e registro audiovisual de depoimentos e de listas
de palavras. O resultado de todo o trabalho foi compilado em um relatório
26 e 27 de julho de 2011.
Florianópolis, Santa Catarina, Brasil.
68
detalhado entregue ao IPHAN/MinC para o reconhecimento da
Língua Guarani Mbya como patrimônio cultural imaterial da nação
brasileira. Pontos fundamentais do relatório foram reunidos em
um livro - Inventário da Língua Guarani Mbya –, o qual forneceu a
base para os debates durante o Encontro
Após exposição do trabalho realizado e da socialização de dados
inventariados, os participantes se reuniram em cinco grupos, ten-
do por foco avaliar e sugerir encaminhamentos sobre a relação da
língua Guarani Mbya com 1) Educação; 2) Sistemas de Saúde; 3)
Mídia; 4) Produção de conhecimentos e 5) Atividades artísticas.
SÍNTESE DAS DISCUSSÕES E DOS ENCAMINHAMENTOS DADOS
EM CADA GRUPO
1. A Língua e a Educação
Avaliação
-Nem todas as escolas têm currículo reconhecido. Muitas Secre-
tarias de Educação não reconhecem a escola diferenciada.
-O ensino da língua Guarani não está equiparado com o portu-
guês.
-A sequencialidade da aprendizagem em Guarani é prejudicada
a partir do 5º ano, quando se começa o ensino disciplinar com
vários professores.
68 69
-É necessário apoio à produção de materiais didáticos.
-O objetivo da escola deve ser discutido e exige uma atuação da
comunidade. Muitas vezes os professores não sabem qual camin-
ho seguir: se falam e ensinam em Guarani ou em Português.
-Um modelo possível é o de Boa Esperança/ES., implementado
após discussão com a comunidade. Consiste em:
- Alfabetização até 3º ano: só em Guarani.
- 4º e 5º anos: só em Português.
- 6º ao 9º anos: uma matéria falada e escrita em Guarani.
- Outro modelo possível é o implementado na Aldeia Bracuí em
que o ensino do 6º ao 9º anos de idade só acontece em Guarani
ENCAMINHAMENTOS
-As lideranças propõem-se a realizar intercâmbios de material
didático produzido nas aldeias.
- São necessárias formações para produzir material para o ensi-
no. O Estado do Paraná tem implementado cursos com este fim,
mas não o de Santa Catarina.
- A representação do MEC esclarece a vantagem de se implemen-
tar políticas de ensino (formação docente, produção de materiais,
etc.) via Territórios Etnoeducacionais. As lideranças solicitam que
seja agendada uma reunião para discussão sobre o Território Et-
noeducacional Guarani. Após consulta ao MEC, esta reunião ficou
agendada para 26 a 28 de outubro de 2011, em São Paulo.
70
2. A Língua e os Sistemas de Saúde
Avaliação
-Em muitas aldeias, não se fala o Guarani nos postos de saúde e em outras o
atendimento é somente em português.
-Quando precisam ir a hospitais, não conseguem saber qual é a doença. Há
dificuldade para o atendimento, para os exames. As mulheres não estão ha-
bituadas a exames. Os homens também não. Às vezes as índias fazem ce-
sariana sem necessidade. Seria importante ter um acompanhante bilíngue.
ENCAMINHAMENTOS
-Promover uma capacitação especifica para o agente de saúde. É fundamen-
tal que a capacitação aconteça dentro da comunidade e que os formadores
tomem em conta a realidade da aldeia.
-É preciso que as lideranças e agentes de saúde promovam a escrita em Gua-
rani dentro do posto para facilitar o acesso ao atendimento.
- A população indígena tem acesso à saúde integral, regulamentada pela
Constituição. Liderança guarani esclareceu que houve avanço neste sentido,
com incentivo aos hospitais para atendimento diferenciado. A lei regulamen-
tou o atendimento na aldeia. No entanto, não há um entendimento da situ-
ação de indígenas que moram fora das aldeias.
-Levar o pajé ao hospital é uma tendência. Faz parte do atendimento difer-
enciado.
-Em Santa Catarina, tem acontecido do médico ter contato com o líder espir-
itual guarani, articulando a medicina tradicional e a de laboratório.
70 71
- Há o programa Hospital Amigo do Índio. Foi sugerido de se buscar a lei e ver
estratégia para implementá-la.
3. A Língua e a Imprensa
Avaliação
- Há muita comparação com a língua Guarani do Paraguai, que não é indí-
gena. A imprensa divulga notícias que prejudicam os Guarani.
- Há pouca divulgação sobre os Guarani e quando há, é negativa.
- Hoje, tudo o que é língua guarani parece ser a mesma coisa. No entanto, há
muitas diferenças.
ENCAMINHAMENTOS
- Em vez de língua indígena, chamar o Guarani de língua originária do povo
Guarani. Lingua originária para todas as línguas indígenas. O Canadá recon-
hece os povos como povos originários. No Brasil ainda são denominados de
índios. Por isso seria importante trazer a debate a verdadeira história Gua-
rani.
- Desenvolver conjuntamente estratégias de promoção e divulgação da lín-
gua: publicação de jornal, produção de vídeos, material instrutivo (como
está fazendo o Ministério do Desenvolvimento Social: vai publicar um livro
sobre bolsa família em 33 línguas indígenas).
- As instituições e lideranças podem buscar contratos com Museu do Índio
para que os documentos oficiais sejam redigidos nas línguas, trabalhando
assim o seu prestígio.
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- A produção de documentos (tais como relatórios das reuniões) em língua
Guarani é uma estratégia de promoção da língua. O presente encontro, pela
primeira vez, produziu simultaneamente relatórios nas duas línguas – Portu-
guês e Guarani – ambos disponibilizados pelo IPOL.
-Encaminhar ao IBC e TV Brasil uma solicitação para cota de exibição da cultu-
ra indígena na televisão. Poderia ser duas ou três vezes por semana para exi-
bir programas. Esta proposta será enviada para as Organizações indígenas
para deliberarem sobre essa participação. Foi sugerido ainda um encontro
conjunto – lideranças indígenas, MEC, MinC, IPOL para formatar a proposta.
- Foi sugerido um encontro para discussão da história Guarani, para a escrita
dessa história.
- Ficou indicada a necessidade de se criar um mecanismo de financiamento
no MEC, FUNAI e IPHAN para o audiovisual.
- Ficou indicada a necessidade de se criar um mecanismo de disponibilização
e gestão de recursos para produção de séries de documentários, envolven-
do todas as línguas brasileiras.
- Considerou-se fundamental que as instituições e lideranças presentes se
empenhem em estabelecer, em especial, um plano de trabalho de promoção
e divulgação para as línguas reconhecidas, entre elas, o Guarani Mbya.
4. A Língua e a Produção de Conhecimento
Avaliação
- A produção de conhecimentos acontece majoritariamente em Português.
Ou então há uma tradução do que está disponível em Português. Uma
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produção em língua Guarani deve levar em consideração a tradição guarani,
o modo do guarani de falar. A produção dos materias – livros, cds, etc. – deve
ter claros os objetivos. A produção somente na língua Guarani deve ser in-
centivada. Há pouca produção nesta língua, inclusive a escola produz pouco
em língua Guarani. Fazer um desenho de casa de reza é fácil. Mas fazer a
casa de reza é um conhecimento que a escola não dá. É um conhecimento
transmitido em Guarani com muitas sutilidades dessa cultura.
- O conhecimento não pode ser a representação, mas o fazer. E a avaliação
deve ser de tudo, e não só do que está no livro. Nao é so o material final que
deve ser considerado. O material de conhecimento produzido deve ser ele
mesmo objeto de conhecimento.
- Sobre falar Espanhol nas aldeias: as lideranças esclareceram que os que
vieram da Argentina falam fluentemente e outros aprenderam a falar com
eles. Demonstraram a preocupação de que a língua Guarani Mbya possa ser
considerada como originária de outro país, pois quando um entrevistado in-
dígena diz que ele sabe falar o espanhol a mídia pode achar que ele não é
brasileiro.
ENCAMINHAMENTOS
-É preciso mais parceria com o MEC para mais materiais para/em Guarani.
-A produção de material exige pesquisa com os mais velhos. Considerou im-
portante pensar em estratégias para esse tipo de pesquisa.
- Houve um esclarecimento, por parte do diretor do IILP, de que o risco de
falar o Espanhol é produzido pela ideologia do monolinguismo. No atual mo-
mento, faz parte da política do governo brasileiro e do Mercosul, criar uma
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mentalidade positiva sobre falar outra língua, que não ameace a idéia de ser
brasileiro.
- Foi recomendado que o INDL devesse produzir uma campanha nacional de
valorização das línguas e do plurilinguismo, para modificar esse imaginário.
5. A Língua e as Atividades Culturais
Avaliação
- O ILG mostra as atividades dentro da aldeia. Muitas delas não são atividades
da cultura guarani, e sim da rotina da comunidade (aniversário, festas, etc.).
É preciso separar estes tipos de eventos na hora de se promover políticas de
valorização da cultura guarani.
- O ILG mostra 12 Aldeias sem Opy no RS. As lideranças esclareceram que
são na verdade acampamentos. Alguns têm mais de 20 anos, e têm área já
demarcada, mas que não é reconhecida. Dentro de um ano pode ser que a
situação mude e já há um projeto próprio de construção de Opy.
- Coral Tenonde Porã é exemplo de sucesso. O Coral foi criado em SP em
1996, no encontro do campeonato indígena. Quatro aldeias se uniram, fiz-
eram e lançaram o CD, hoje muito vendido.
ENCAMINHAMENTOS DO IPOL
Após o Encontro, e tendo analisado as demandas e encaminhamentos regis-
trados, o IPOL, como instituição executora do ILG, solicita que as instituições
e lideranças presentes se empenhem na consecução das políticas propostas
no evento, consideradas fundamentais para a ampliação da diversidade lin-
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guística no Brasil, de modo geral, e para a promoção da língua Guarani Mbya,
de modo específico.
Na qualidade de Instituição que historicamente defende e promove políticas
em prol dos direitos das comunidades linguísticas minorizadas, solicita es-
pecial atenção dos presentes para que façam chegar às instâncias governa-
mentais dos Municípios e Estados inventariados pelo ILG as demandas aqui
sistematizadas. Muitas das solicitações exigem uma participação efetiva e
articulada dos Ministérios da Educação, Saúde, Cultura, Ciência e Tecnologia,
das Secretarias de Educação, Saúde e Cultura dos Estados do Rio Grande do
Sul, Santa Catarina, Paraná, Rio de janeiro, São Paulo e Espírito Santo.
Em vista dessa articulação necessária, o IPOL recomenda a realização de
uma conferência nacional sobre políticas linguísticas, que contemple as de-
mandas não somente da comunidade linguística Guarani Mbya, mas de to-
das as que formam a sociedade brasileira, contemplando as instituições que
as represente.
O IPOL considera que uma conferência desta natureza qualifica a política
do Inventário Nacional da Diversidade Linguística – INDL, possibilitando que
ela concretize seus objetivos principais, a saber, o de promover pela língua,
equidade social e exercício pleno da cidadania por todos nós brasileiros.
Por: IPOL – Instituto de Investigação e Desenvolvimento em Política Linguística
Florianópolis, 30 de setembro de 2011.
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Todos os participantes do I Encontro sobre o Inventário da Língua Guarani Mbya. Poder público, especialistas e os próprios guarani discutiram durante dois dias osrumos da língua diante das políticas públicas
Equipe do IPOL responsável pela feitura do Inventário. Todos contribuiram significantemente para todos as fases do processo, desde a pesquisa à realização do encontro entre as lideranças
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