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1~enancio, enorme, na frente da mae. A nuncaimaginada possibilidade de enfrentamento eraagora quase de se pegar com a mao. Dezessete

anos. Agigantava-se em desassombro:

- Nao, mae. Esta a senhora nao vai dar a qualquer urnque passe. A senhora ja deu dois antes dela ...

- E 0 que e que tern? E eu nao posso dar, por que?! Elae minha. Eu dou a quem quero.

- B sua filha, mas tambem e minha irma. Ela fica.- E 0 dinheiro pra criar? Voce tambem vai dar?

- 6 mae ... A senhora nao tern cora<;:ao,nao? Tern horaque eu penso que a senhora achou ate bom 0 que aconte-ceu com os outros.

- Cale essa boca. Voce nao sabe 0 que esta dizendo,Va... bote a meruna na rede. Olha ai como chora ... Quemaguenta isso?

- Bote ela no peito, que ela se cala. Isso s6 pode serfome. ~

- Quem disse que eu tenho leite nos peitos? Ta tudoIll' o. B melhor dar a menina pra quem po de criar. AindaI> 'm que a outra ja nasceu morta.

- Quantos a senhora ja deu, mae? Quantos?- E nao foi melhor do que ver morrer?- Se a senhora cuidasse, eles nao morriam. Feito meu

irmaozinho ... 0 da rede ... gosto nem de me lembrar Se aH nhora tivesse armado aquela rede dentro de casa .

- Era a mesma coisa. 0 que tern de acontecer acontece, pronto ... Se nao tivesse sido a cobra que caiu dentro darede dele, ia ser a fome ... a mesma fome que matou 0 ou-1'1'0... Nao foi melhor assim? Deus sabe 0 que faz ... nao so-freu nem urn ana de vida ... 0 outro teve que aguentar dez .130mmesmo era que nascesse tudo morto, feito a menina .quando eu cai com aquele feixe de lenha na cabe<;:a...

- Ah, mae ... se, pelo menos, a senhora nao bebesse tanto!- E como e que voce quer que eu agiiente esta bosta de

vida? S6 bebendo, meu filho. S6 enchendo a cara .- Eu soube que 0 Pai esteve por aqui de novo .- B...Mas dessa vez, ele nao vai me deixar com 0 bucho

na boca de novo, nao ... Dessa vez, ele quebrou a cara ...Quando ele chegou, eu ja estava em dias de dar a luz essamenina ... Ele ja encontrou 0 servi<;:o pronto ... Feito poroutro ... E 0 safado ainda queria falar comigo! Mandou urnrecado, dizendo que tinham contado a ele, mas que queriaconversar ... Nao quero ... Nao quero mais ver aquele des-gra<;:ado! Quantos anos faz que foi embora pra esse tal deSao Paulo? Dizia que era pouco tempo, que vinha me bus-car logo ... Veio? Veio nada! Vinha quase todo ano, mas erapra me fazer um filho e ir embora. Toda vez que vinha,deixava uma barriga. Foram cinco! Eu ate imagino por queele nao me quer Ii Deve ter uma ruma de mulher atras

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dele. Toda vida, foi metido a bonirao. Toda vida, foi cobi-<;ado... Aquele coisa rwm ... Nunca mandou nada pra mim,pras crian<;as... Ai de nos se eu nao trabalhasse feito umacondenada, de sol a sol. ..

Silencio pes ado. Espesso de se cortar de faca. 0 olhoda mae ... perdido ... fixo num ponto qualquer do chao ... Pa-recia tao fraquinha ... Venancio espreitou no seu rosto a be-leza antiga ... a do<;ura que um dia "devera de ter havido ..."num tempo qualquer, quando ela ainda acreditava que seuhomem era seu ... e era para sempre ... Deu um suspiro dealivio quando ela voltou a falar:

- Esta semana mesmo, eu volto para 0 corte dacana ... Ja estao chamando gente na Usina Timbauba eem Caetes ...

- Mas a senhora nao esta de resguardo?- Agora eu tou vendo coisa! Ta ficando esquecido

ou ti se fazendo de doido? Quando foi que eu guardeiresguardo? Que luxo e esse agora?! Tenho que arranjardinheiro pra comprar comida e resolver a situa<;ao do ter-reno desta casa. 0 dono da fazenda ti loteando tudo ...Quero ver se compro um lote. Se eu nao conseguir, 0

dono me bota na rua.- Olhe, mae ... eu trouxe um dinheiro que da pra senhora

ir se virando por um bom tempo. Vou deixar leite compra-do pra menina. Nao de ela a ninguem, nao. Eu quero ela.Eu vou criar. Tenho que resolver umas coisas la na Zonada Mata ... mas eu volto. Eu ja soube que 0 fazendeiro estaloteando as terras. Esse dinheiro da pra senhora comprarum lote e levantar uma casinha. Fa<;a tambem uma feira eaproveite pra descansar um pouquinho ...

- E...ta certo ... eu fico com a menina mais uns dias ... mas,se voce demorar, eu dou ao primeiro que vier buscar.

No olhar de Venancio para a mae, nenhuma censura.So dor. Nas lembran<;as de Venancio, nenhuma imagem damae sobria. So vergonha. 6 vida brutal De vez em quando- ele menino ainda -, alguem vinha chama-lo: "Tua maeta la, caida no chao, toda esculhambada ... vai buscar". Erapreciso mesmo que ela estivesse caida, sem for<;a para queele pudesse ajudar ... porque, enquanto Ihe restasse algumavitalidade, nao havia no mundo homem que pudesse comela. Enfrentava qualquer um. As vezes, os irmaos dela sejuntavam para leva-la para cas a a for<;a. Chegavam a amar-ra-la como a um boi brabo. Venancio cresceu e a vergonhavirou pena. Uma pena inflamada ... doendo, doendo ... e elenao sabia dar nome a ela.

A sua volta, 0 frio se espalhava. Estava em Mata Gran-de, alto Sertao do Semi-arido, redondezas de Palmeira dosIndios. Terra montanhosa, agua escorrendo por toda par-te ... Era tudo tao bonito fora das pessoasl A mae? Apenasmais uma das centenas de viuvas de maridos vivos, que mi-gravam para 0 corte da cana. Imaginava como teria sido elaem outros tempos. ''Acho que ja nasceu valente, decidida.Nao foi ela que abandonou um namorado que tinha desdemenina, pra fugir com meu pai? E so tinha dezessete anos!Eita mulher danada! Nao e de estranhar que ela tenha feitoo que fez depois: vingou-se do Pai com aquele tal namo-rado ... 0 mesmo que ela tinha abandonado ... Foi assim queela botou Eunice no mundo ... no rastro de uma vingan<;a ...Agora queria dar a bichinha ao primeiro que passasse ... ajudia<;aot"

E...mas, agora, Venancio podia viajar tranqiiilo para re-solver suas pendencias na usina. Venderia algumas coisasque tinha por la e voltaria para cuidar da familia. Viajou.Passou pouco mais de uma semana. Voltou. Encontrou

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a casa vazia. "0 que aconteceu? Onde esta minha mae?Meus irmaos?". Dos vizinhos a compaixao na voz: "Ah,Venancio ... ta tudo arranchado debaixo da mangueira gran-de, la em cima da serra. E de fazer do!".

A mae nao comprara 0 lote. Gastara todo 0 dinheirocom pouca comida e muita bebida. Acabou sendo expulsada fazenda.

Naquela vastidao de terra, nao era dificil construiruma casinha de taipa. Juntava-se a madeira, entran<;ava-seo cipa, tapavam-se os buracos com barro, cobria-se tudocom palha, ou mesmo com telhas ... Os vizinhos semprese chegavam em mutirao de solidariedade. Foi junto comeles que Venancio construiu urn abrigo para a familia.Resolveu ficar, mesmo sabendo que era muito mais dificilprocurar sustento sem migrar. Era a unica forma de teralguem na vida. E ele precisava de uma familia. Ah, meuDeus ... sem familia, a gente e cao sem dono ... Se a maedesse todos os irmaos, 0 que seria do futuro? 0 que seriadele?

Foi sob a prote<;ao meio desajeitada, mas amorosa doirmao, que Eunice foi crescendo. As imagens da infanciaformam urn bloco monolitico: a casa deserta de adultos 0,fogo sempre apagado, 0 frio, a fome, 0 mourao em que sesentava e do qual via a mae chegando aos tombos, semprebebada para se jogar em urn canto qualquer e ficar la dei-tada ate acordar de novo para mais uma vez se embriagar.Nenhuma lembran<;a de lucidez materna.

Havia urnas viagens para Maceia. A mae se arrumava.Vestia-se de preto e ia. Nenhuma palavra de despedida,nenhum carinho, nenhuma satisfa<;ao. la. Apenas ia. Paradormir, Eunice pegava um vestido dela. Usado. Precisavasentir 0 cheiro. 0 cheiro do suor da mae.

Pelo menos, a fome ja nao gritava tanto. 0 irmao estavasempre trazendo alguma coisa. Quando 0 dinheiro faltava,ele saia a procurar frutas. Era born 0 gosto das bananascompridas que de arranjava sabe Deus onde. Havia certaregularidade na rotina. Havia seguran<;a. A presen<;a de Ve-nancio assegurava a existencia. Os dias se enfileiravam, Eu-nice crescia, crian<;ava, brincando urn pouco ... Ate que ...

Venancio apaixonou-se. Quis uma casa. Uma mulhere filhos. Nao ... nao podia ... Como podia ser a vida semele? Vendo 0 medo nos olhos da irma, Venancio tentoutranquiliza-la: "Nao tenha medo. Nao yOU deixar voce.You fazer uma casa aqui bem pertinho ...". Ah ... Nao era a

mesma COlsa.Foi ai que uma Irma da mae falou nas promessas de Sao

Paulo. La, nao faltava trabalho. Bem que ela podia tentar ...La se foi Eunice com a Irma mais ve1ha e a mae. Urn mun-do diferente ... Pela primeira vez, sentiu um gosto born ...morno ... limpo ... macio ... Era 0 colo da tia, 0 carinho, 0 cui-dado ... Alguem Ihe falava com ternura, alguem Ihe acaricia-va a cabe<;a... Queria nunca mais precisar sair dali... Queriamorrer perto da tia, mas ... nao estavam ali para morar nacasa dela. A mae dizia que nao podiam pesar pra ninguem.Entao houve urn emprego. Uma casa estranha. A mae ...domestica. Ela ia junto ... 0 que poderia a mae saber de ser-viqos em uma casa como aque1a? Aprendeu depressa. Eraum bicho para trabalhar, diziam. Inteligente. Mas andavaindacil. Sentia falta da cana, das serras, da cacha<;a... Aquinao podia beber ... E a boca ardia de vontade.

E havia 0' patrao. 0 patrao da mae. Nojo. Caricias pe-gajosas, maos asperas... Boca asquerosa a enlamear osseis allOSde Eunice. Eunice ge1ada... urn gosto travoso llaboca ... 0 oposto do gosto que tinha 0 abra<;o da tia.

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A irma mais velha casou com um operario. A vida emSao Paulo era falta de ar, de verde, de espac;:o.A mae cis-mou. Juntou 0 dinheirinho que tinha e comprou a passa-gem de volta. Agora eram s6 as duas. Ela procurou umcantinho e ergueu uma nova casa. Sozinha, valia por mui-tos homens.

A casa levantada, coberta, a mae caiu doente. Nin-guem sabia 0 que era. Mandou rezar. Fez promessa ao"Padim Cic;:o": "Pas so sete anos seguidos indo ao Jua-zeiro em romaria se 0 senhor me conceder a cura dessadesgrac;:a". 0 "Padim" deve ter ouvido, deve ter se agra-dado dela, deve ter decidido angariar mais uma para amultidao dos seus romeiros, e atendeu ao pedido. Elaficou curada.

Duas vezes foi ape, um balaio na cabec;:ae a filha es-canchada pelas estradas afora, com uma multidao formadapor companheiros de fe. Dona Lipu ... ah velha ruim ... im-plicava 0 tempo todo com Eunice: "Bota essa menina nochao ... ela ja pode andar ...".

Uma dor fina nas perninhas magras? Era Dona Lipucom um talo fino de capim, num jeito estranho e cruel dequerer mostrar que podia faze-la andar mais depressa.

Quando voltavam do Juazeiro, procuravam se abrigarperto dos pequenos aglomerados de casas que encontra-Yam. Despertavam curiosidade, respeito e simpatia. Sem-pre se arranjava algum caneco de cafe, alguma comida maisquente. Em um desses acampamentos, a dona de uma fa-zenda viu Eunice. Gostou dela. Achou que era muito es-perta. Gtima aquisic;:aopara 0 servic;:oda casa. Conversoucom a mae dela:

- Gostei dessa menina ... Nao quer deixar ela comigonao?

- E eu yOU dar minha filha assim, sem mais nem me-nos ... a troco de nada, e? Dou nao, senhora. Pode deixarela comigo.

- Olhe ... eu tenho uma bezerra ... muito bonita ... A se-nhora pode ir levando por ai, pode ate servir pra levar suascoisas. Quando chegar na sua terra, pode vender ou criar ...Vai Ihe dar um lucro bom ...

Pensando bem ... aquela Eunice estava mesmo dandomuito trabalho na viagem. Em cas a, era um problema.Nao tinha com quem deixar quando ia trabalhar. Estavasempre com fome, com frio, com sede ... Nao reclamavade nada, mas ficava com aquele olho de pedir em cimadela 0 tempo todo. Era um olho que a alcanc;:avalonge.o diabo da menina ficava Ii em cima sentada num mou-do. Quando ela apontava na estrada, 0 olhar estava la.Estendido a sua frente. Atravessado na disblncia. Umfacho de dor. Quem sabe ... Olhou com mais interessea mulher que falava ... Era limpa, simpatica, educada ...Talvez fosse um bom neg6cio para a menina ... E tinhamais ... Uma bezerra nao era oferta de se jogar fora ... E...Podia ser ... E:

- Amanha de madrugada, a gente vai pegar a estrada ... asenhora traz a bezerra, que eu Ihe entrego a menina ...

o silencio em volta era uma gelatin a grossa e gelada.Os olhares dos romeiros cairam sobre ela com 0 peso dareprovac;:ao. As mulheres eram rudes, sofridas ... A maio-ria, abandonada ... Eram as viuvas dos maridos vivos quepartiam. Elas sabiam 0 que era ficar com as crias para ali-mentar sabe Deus como ... mas nao concebiam a ideia dese entregar um filho a um estranho. A voz de Dona Lipufot<;:oucaminho naquele silencio gosmento ... Nao era elaque falava... era a consciencia coletiva:

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- Voce ta doida, laii? 0 que e que tu vai dizer ao teufilho quando chegar Ii? Ele e doido por essa menina ... Ve-nancio nao deixou voce fazer isso quando ela era novinha,imagine agora! E voce deixar a menina e ele vir atras, tra-zendo a bezerra de volta ... Isso se voce nao cismar de tro-car a bezerra por cacha<;:ano caminho daqui pra Ii.

A mulher queria a menina, mas nao queria a confusao.Tambem nao se agradou da ideia de que depois podia ficarsem a menina e sem a bezerra.

Eunice escutava tudo. A raiva que sentia de Dona Lipuagora era um sentimento de gratidao. As cipoadas naspernas nem pareciam ter doido tanto. Aquilo nem eramesmo ruindade de dona Lipu ... Depois desse dia, nun-ca mais pegou vestido usado da mae para ficar cheiran-do quando ia dormir sozinha. Dai pra frente, seu olharnao seria mais um pedido de presen<;:a, de aten<;:ao,de umafago qualquer ... Seria um olhar de 6dio concentrado, deamor desavessado a for<;:a.

Acompanhava a mae, porque ainda nao sabia dizer "naoquero, nao vou". Perdeu as contas de quantas vezes elavendeu todo 0 pouco que tinha para ir a Sao Paulo. Li, elatrabalhava ate conseguir 0 dinheiro da volta. Quando vol-tava, alugava um quarto qualquer pra morar, mas sempreera despejada por causa das brigas, dos escandalos ...

Venancio acabou construindo um quartinho petto dacasa \lele para abrigar a mae e a irma quando elas voltavamde Sao Paulo sem ter onde morar. Foi ai que Eunice ficouquando a mae resolveu que passaria a viajar sozinha. Foi aique ela quase morreu com uma infec<;:aointestinal... febre,dor, medo ... S6 0 irmao tinha coragem de limpar aquelafedentina e levar chi, caldo e carinho ... um carinho calado,sisudo, mas solidirio, amigo ...

Quando a mae voltou, veio com um neto. A filhaem Sao Paulo nao podia cuidar do menino. Precisavatrabalhar.

Eunice agora vivia seus oito anos entre fraldas, mama-deiras, tosse, asma, queda, choro ... 0 sobrinho nao Ihedava sossego: nao dormia, nao deixava dormir, queria pe-gar tudo 0 que via, sobretudo 0 que nao podia, como asbrasas que ardiam sob a panela de barro. Estava cansada decorrer atras dele. Um dia, eu deixo esse danado se queimar.Deixou. Viu quando 0 menino se dirigiu para 0 fogo. Naosaiu do canto. Quer pegar? Pegue! Nao vou mais correratras de voce. Ouviu 0 chiado da carne na brasa e 0 gritode dor. 0 6dio que sentia pela mae se estendia ao menino.Mas sentiu pena e tambem chorou pela dor da ferida.

Tinha nove anos quando 0 irmao falou em escola. Es-peran<;:a.Esperan<;:ade se livrar do menino, da mae, das bri-gas, do trabalho sem fim, pelo menos durante as tardes.

Entre a rudeza e os sopapos da professora, aprendeua ler e a escrever. Nem come<;:oua fazer a segunda serie.Outra viagem a Sao Paulo. Por que a mae fazia isso? Porque a levava para aquela favela-pesadelo? Seu mundo eraduro, mas era verde. Esse outro mundo, que nao era 0 seu,era cinzento, feio, imundo. Os barracos se emendavam unsnos outros em vielas apertadas, cheias de lama e de ratos.Ainda bem que a irma lembrou-se de uma escola. Ficavabem perto do lixao, mas pelo menos conseguia escapar dapaisagem deprimente. A professora levava umas gravurasbonitaspara motivar a escrita. Essa era uma professora di-ferente: nao dava pancadas, nao gritava, nao fazia cara feiae gostava dela.

Quando a escola ji era um lugar de prazer, a mae anun-ciou mais uma viagem. No 6nibus, a cabecinha de Eunice

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tumultuava. Tinha feito a grande descoberta: ler era umaforma de ocupar os espa<;:os vazios que sentia. E haviamuitos. Descobriu que quanto mais aprendia mais sobravaespa<;:o.Decidiu: esta e a ultima viagem. E a ultima vez queembarco na loucura "dela". De posse das palavras, apren-deu a organizar 0 de dentro. Tudo come<;:ava a ter nomes.Tudo se tornou mais claro. Nem por isso mais bonito. Ti-nha doze anos. Cansa<;:o.Da mae, do sobrinho, da ro<;:a,detudo. Em Palmeira dos Indios, haveria de encontrar umlugar onde pudesse trabalhar.

Encontrou. Era para cuidar de crian<;:a,lavar, passar, cui-dar. Tudo igual ao que sempre fizera. S6 que agora ganhavaalgum dinheiro para fazer. Muito pouco. Mas era seu. Dequanto tempo foi a tregua? Quem sabe? Era carnaval. Apatroa mandou comprar alguma coisa. Ela sentiu medo desair e a conversa foi muito breve:

- Vou nao.- Como e?! Ta bom. Nem vai fazer 0 que mandei, nem

fica aqui. Va pra sua casa.-Vou.A vida rebobinada. A ro<;:a,a raiva, a lenha, a raiva, 0

fogo, a raiva, 0 sobrinho, a raiva, a mae, a bebida, as bri-gas, 0 6dio. Agora nao ficava calada. Revidava. As palavraseram facas de dois gumes. Feriam dos dois lados. 0 irmaosocorria. Sempre 0 irmao. Foi de que a salvou de muitassurras, do veneno na comida, do fado que a mae empu-nhou para ataca-Ia ...

Na escola, s6 se falava agora em primeira comunhao,em crisma, em aulas de catecismo. Quis saber como era.Foi a uma reuniao com algumas colegas. Ah ... Irma Leono-ra ... os olhos verdes e doces de Irma Leonora. Sinal verdepara 0 encontro, para 0 coletivo, para a boa vontade. En-

cantou-se. Nao faltava a nenhuma aula. Tinha muito queaprender e fazer na igreja. Era bom encher a cabe<;:a.Den-tro dela, sempre havia ~uito espa<;:o,esperando ocupa<;:ao.Logo, logo, era ela quem dava as aulas. Primeiro a crian<;:as.Era pouco ... Come<;:ou entao, ainda aos treze anos, a orga-nizar grupos de jovens para a leitura do evangdho e parareflexao sobre as form as de intervir na realidade social dascomunidades. Era essa a igreja de Dom Helder. Era essaa orienta<;:ao dada por de. Era esse 0 convite que de faziaaos que sempre foram proibidos de deixar os limites dascozinhas alheias: ocupar um lugar de honra em sala de vi-sita. Era esse 0 caminho da liberta<;:ao dos oprimidos. 0caminho de Eunice.

o teatro trouxe 0 contato com jovens de outras re-ligioes. Dois seminaristas orientavam a montagem dape<;:a"0 novi<;:o". 0 mundo se alargava. Em cada comu-nidade, ajudou a organizar grupos e pas sou a visiti-lossistematicamente. Fez todos os cursos e capacita<;:oesque apareceram.

Na sapataria em que trabalhava, a confusao feita:- Seu Paulo, vou fazer um curso no Recife.- 0 que?! E eu como e que fico? Nao ja basta voce s6

trabalhar ate a manha da sexta?- Ah ... 0 que eu vendo quando estou na loja cobre 0

que deixo de vender quando saio ... Eu sei que 0 senhornunca conseguiu vender em uma semana 0 que eu vendoem um dial 0 senhor nao quer nem que eu va almo<;:aremcasa, pra nao perder tempo. Ora, se 0 senhor paga meualmo<;:o,e porque eu the dou lucro ... nao e porque e bon-zinho, nao ...

- Eu sei, Eunice. E por isso que eu agiiento seusabusos ...

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- Nao SaG abusos nao Eu preciso trabalhar com osgrupos que eu organizei Nao posso abandonar os me-nmos .

- E mas todo dia voce inventa mais coisa pra fazer...- Sobra muito espac;:ona minha cabec;:a, seu Paulo ... So-

bra muito espac;:o...- Eu soube que voce agora esti metida em sindicato ...- So soube a verdade. E por is so que quero viajar. 0

CENAP esti promovendo urn curso de formac;:ao sindi-cal... Nao yOU perder ... Ji comprei passagem pra mim epara outros jovens. Eles precisam aprender para fortale-cerem os grupos. Precis am contribuir com 0 trabalho doSindicato dos Trabalhadores Rurais, ampliar 0 espac;:o paraa formac;:ao politica da juventude. E a saida, seu Paulo ... Ea saida ...

As lutas ... Agora, as lutas de Eunice eram de outra espe-cie ... Eram daquelas que obrigam a sair do mundo de den-tro, do mundo individual. As brigas com a mae pareciamagora brincadeiras de crianc;:a,comparadas as que ela tinhaque enfrentar nos movimentos sindicais. A dor coletiva ebem maior que a de um so.

Muita gente comec;:aa cobic;:ar a gestao dos grupos ji or-ganizados. "Nao compreendo como eles disputam tanto ...Nao yOU ajudar a fazer esse jogo, nao quero favorecer ne-nhum grupo ... Os merunos estao crescendo ... Por que elestem que ser de alguem? Eles SaGe deles mesmos. Quantascoisas ji conseguimos juntos? A instalac;:ao do Conselhode Direitos no Municipio de Palmeira dos Indios, a demar-cac;:aodas terras indfgenas dos xucurus-cariris, 0 Conselhode Saude, a participac;:ao ativa dos jovens e das mulheresorganizadas em passeatas para cobrar educac;:ao sexual, adisponibilizac;:ao de camisinhas ... Ah ... quando os meninos

estao prontos, todo mundo quer ... Eli vaG embora os me-Ihores quadros ... Que covardia!"

Eunice aprendeu a se multiplicar.Tambem se multiplicaram as siglas em sua vida:

AAGRA - Associac;:ao de Agricultores Alternativos -,a presidencia exigindo reuni6es mac;:antes e sofridas.Cada participante com interesses proprios a defender,sem qualquer cuidado em ouvir 0 outro. Ac;:6es desen-volvidas em vinte e dois municipios. RESAB - Rededo Semi-irido Brasileiro -, atuac;:ao mais longe: criac;:aode sindicatos onde eles ainda nao existiam, formac;:aode grupos de mulheres, promoc;:ao do Primeiro Encon-tro das Mulheres da Zona Rural, ASA - Articulac;:ao noSemi-Arido -, apoiada pelo UNICEF. Outros gruposorganizados, outras redes de educac;:ao. Controle daconstruc;:ao de cisternas. Brigas.

Eunice atuando. Eunice guerreira ... Como no episodioem que uma das colaboradoras de cidade vizinha Ihe disseque 0 prefeito da cidade tinha "cortado" um pedreiro dostrabalhos de construc;:ao:

- Pois e... Ii na construc;:ao ele nao fica mais ...- Quem disse que ele nao fica?- 0 prefeito ...- Como e?! E por que?- 0 prefeito descobriu que ele vota com 0 outro lado ...- E dai? Ele fez 0 curso de construc;:ao de cisterna, ele

foi aprovado, portanto ele vai trabalhar na construc;:ao dascisternas ... Nao sou uma das "negas" do prefeito, nuncame deitei com ele, nunca me sentei com ele pra tomar cer-veja que ele pagou ... Ele nao vai dar ordem nas coisas quea gente faz ... Se de se meter, pira tudo e a prefeitura quefa<raPOt sua conta ... Se a ASA fica, 0 pedreiro fica.

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Eunice transtornada: Sabe 0 que e difkil? Difkil mes-mo? Fazer as pessoas se darem conta de que nao mandamno mundo, de que nao governam sozinhas. Tem que serna porrada. 0 municipio se interessa em participar dasreunioes com 0 UNICEF. A gente marca. 0 povo vemde longe, la do Recife. A gente convoca a sociedade orga-nizada. No dia ta todo mundo. 0 prefeito chega sozinho.Ai a gente pergunta: "cade seus auxiliares?". Ele diz: "naoprecisa. Eu estou aqui". Ai eu digo: "Mas 0 senhor naotrabalha sozinho. Os seus auxiliares precisam estar aqui.Eles precisam se comprometer. Chame". Mas ele e teimo-so: "Depois eu digo a cada um 0 que precisa ser feito". Euaperto: "Nao senhor. Isso aqui nao e uma ditadura. E umtrabalho conjunto. Todos precisam saber de tudo. Nao himonop6lio de informa<;ao. Va chamar seus secretarios oua reuniao nao acontece!". Quando nao e isso, e 0 povo: "0que e que a gente vai ganhar? Quanto a gente vai ganhar?".Eu nunc a aliso, nunca engano: "Nao vai ganhar nada. Vaiconquistar. A gente se organiza, faz os projetos, capta osrecursos e realiza 0 que for aprovado. Tem que aprendera pensar, a estabelecer prioridades, tem que saber 0 que eimportante para a comunidade".

Eunice na coordena<;ao de educadores de um projetoapoiado pelo UNICEF. Mais de duzentas e oitenta crian-<;as.Ninguem as queria. Nao tinham registros. Nao tinhampais. Filhos das mulheres no baixo meretrkio. A sociedadenao as quis. Uma multidao de crian<;asrejeitadas pelo siste-ma. Nao havia vagas nas escolas regulares. Nunca havia.

Eunice engole 0 mundo circundante. Ha sempre umespa<;o sobrante na cabe<;a,na alma, na vida. Duas, tres ho-ras de sono por dia. Cometa passante, mudando destinos.Ha espa<;o ainda no seu lado de dentro. Eunice precisa dar

mais nomes as coisas que sente, que ve, que observa, queanalisa. Onde aprende-los? Lugar de aprender muito e naFaculdade. Que curso? Qual mais? "Preciso de aprenderfilosofia. Quero ir attas da quintessencia das coisas." EraEunice rosaneando nos misterios. Tateando nos escurosdo mundo.

Na Faculdade, s6 um professor conseguiu the mostrar 0

novo. 0 resto ... baboseira repetitiva, leituras do ja escrito,do ja lido, do ja sabido ... nenhuma discussao ... autoritaris-mo indecente. Onde a disciplina e a paciencia para aglien-tar 0 xarope de aulas morti<;as quando a vida la fora corriaacelerada e urgente?

Aula de Estetica. 0 professor:- A estetica e 0 que determina 0 carater do belo ...Eunice estranha:- 0 carater do belo nao e cada um que determina?- Nao ... nao! Existem padroes! Existe uma teoria do

belo ... Vamos estuda-la.Bem que Eunice se esfor<;ou para compreender a tal

teoria. Mas 0 conceito do belo pelos padroes dos livrosnao fazia eco no seu mundo: "Ah ... professor ... belo everuma fotografia bem tirada de um grupo que se organiza.A fotografia traz 0 belo porque deixa a gente ver a for<;aque ainda resiste no rosto de cada um. 0 meu mundo naoteve estetica nenhuma, professor. Nenhuma. Seus padroesSaGde outro mundo, de outro povo, de outta hist6ria. Ehist6ria nao se transplanta. A nossa e feita do que aconteceaqui!".

Foi reprovada na disciplina. Tambem foi reprovada emMetafisica e em Etica. "Nao tem problema. Eu nao passei.Eles tamb6n nao passaram em mim." E fez questao deolha-los nos olhos, quando se levantou em plena sala de

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aula e sentenciou a cada um daqueles 'professores: "Voceme reprovou, mas voce tambem esta reprovado. Eu tra-balho agregando pessoas, criando ligac,:6es afetivas e res-ponsaveis entre elas, eu vivo para criar motivac,:6es.Eu vimaqui buscar fundamentos para uma pdtica de vida, masa letra que voces querem ensinar e morta. Nao me serve.Eu vivo para 0 maior e voces querem que eu me centre nomenor. Nao quero. Vou fazer essas disciplinas com outrosprofessores. Voces nao passaram de ano!".

Os professores ouviam perplexos e nao conseguiam ar-ticular uma palavra sequer. Eunice enorme diante deles,falando com uma autoridade serena, digna. Seria essa indiaque logo mais estaria sentada em encontros internacionais,diante de presidentes, de ministros, lutando pelos gruposque organizava. Seria ela a encantar 0 estrangeiro que vieravisitar um afilhado e que fizera questao de convida-la paraconhecer 0 Canada.

Ele tinha passado duas semanas e Eunice ja estava can-sada da sua "lingua enrolada". Nao tinha muita pacienciacom estrangeiros: "Eles tem um jeito arrogante, trazemsempre um ar de colonizador ... gosto nao ...". Mas 0 estran-geiro gostou dela, embora isso de nada adiantasse. Muitosja gostaram. Mas nenhum consegue domesticar-lhe a vida.Muitos se encantam, mas nenhum suporta a grandeza deEunice. Eunice s6. Eunice linda. Eunice milhares de guer-reiras condensadas em uma. Eunice, espac,:osobrante, cres-cente, em permanente expansao.