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Ilusões do Poder

Ilusões do Poder - Divaldo Suruagy

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A Editora Nobel tem como objetivo publicar obras com qualidade editorial e gráfica,consistência de informações, confiabilidade de tradução, clareza de texto, impressão,acabamento e papel adequados.Para que você, nosso leitor, possa expressar suas sugestões, dúvidas, críticas e eventuaisreclamações, a Nobel mantém aberto um canal de comunicação.

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Legenda da capa:Foto da sede centenária da “Associação Commercial” de Maceió – Alagoas.

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Divaldo Suruagy

Ilusões do Poder

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

© 1999 Divaldo Suruagy

Direitos desta edição reservados àLivraria Nobel S.A.

Rua da Balsa, 559 – 02910-000 – São Paulo, SPFone: (011) 3931-2822 – Fax: (011) 3931-3988

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Coordenação editorial: Clemente Raphael MahlPreparação de texto: Regina E. I. Fernandes Couto

Revisão: Gisele Sylvestre MahlProdução gráfica: Mirian Cunha

Capa: Tiago AmaralComposição: FA Fábrica de Comunicação

Impressão: Paym Gráfica e Editora Ltda.

É PROIBIDA A REPRODUÇÃO

Nenhuma parte desta obra poderá ser reproduzida, copiada, transcrita ou mesmo transmitida por meioseletrônicos ou gravações sem a permissão, por escrito, do editor. Os infratores serão punidos pela Leinº 5.988, de 14 de dezembro de 1973, artigos 122-130.

Impresso no Brasil / Printed in Brazil

Suruagy, DivaldoIlusões do poder / Divaldo Suruagy. — São Paulo : Nobel, 1999.

ISBN 85-213-1096-X

1. Alagoas - Política e governo 2. Crônicas brasileiras 3. Poder (Ciênciassociais) 4. Suruagy, Divaldo I. Título.

99-2529 CDD-923.28135

Índices para catálogo sistemático:1. Alagoas : Políticos : Autobiografia 923.281352. Políticos alagoanos : Autobiografia 923.28135

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ILUSÕES DO PODER, SEM A PRESUNÇÃO de ser uma autobiografia, atépor permear ficção com realidade, é um livro que tem muito de mi-nha vida, vez que, nele, reuni, ao sabor das lembranças, embora semintencional rigorismo cronológico, diálogos e crônicas onde enfoqueipersonagens e acontecimentos que, de uma ou de outra maneira, influen-ciaram meus atos, quer como cidadão, quer como homem público.

Professor de História, ledor apaixonado e compulsivo dos rela-tos que marcaram os destinos da humanidade, descubro, na seqüên-cia dos acontecimentos que individualizam a caminhada dos seres ra-cionais, uma ilação, marcada pelo imponderável e assinalada sobretudo,pelo esforço e pelo livre-arbítrio de cada um.

A experiência adquirida através dos anos, somada aos sentimen-tos, às emoções e às conjecturas é o que faz único cada indivíduo naface da terra. Sem os momentos que vivi, sem os sonhos que aprendia sonhar, sem as pessoas com que dividi os meus encantos ou osdesencantos que a vida me ensinou a superar, eu não seria quem sou,e minha existência, certamente, inspirada em outras ilusões, teria tri-lhado diferentes rumos.

Divaldo Suruagy

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À Doutora Marlene Fernandes Lanverly que simbo-liza os inúmeros amigos encontrados no decorrer deminha vida pública e ao povo alagoano a quem devotodas as minhas vitórias.

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S u m á r i o

Alicerce 9

Vislumbre 41

Escalada 73

Afirmação 119

Ilusão 185

Estorvo 221

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A l i c e r c e

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CHORAVA. NÃO ENTENDIA POR QUE MINHA MÃE, tão meiga, tão protetora, meentregava a pessoas que nunca vira. A alegria da farda nova, a sacola com cader-nos, lápis coloridos, livros ilustrados, tudo desaparecera. Ficava, apenas, aincompreensão.

Minha mãe tenta ser enérgica, mas sua voz, trêmula, não esconde a emoção:– Meu filho, pare com isso. Dona Judite vai tomar conta de você.Aumenta a intensidade do choro, quando inopinadamente, com lágrimas

nos olhos, deixa-me na sala de entrada do Externato São José. Completaracinco anos. Foi a minha primeira sensação de abandono.

As professoras Judite, Laura e Benedita eram três irmãs. Judite, a maisvelha, diretora e disciplinadora do Externato. Laura, extrovertida, transmitiamais alegria e bondade do que conhecimento. Era muito estimada. Benedita,jovem e bela, foi a responsável maior por minha adaptação à escola. Ela ofere-ceu carinho, agasalhando-me em seus braços, confortando-me quando DonaJudite, impaciente com o meu choro, entregou-me aos seus cuidados.

O Externato São José marcou profundamente minha vida. Nele adquirios conhecimentos básicos que me permitiram a formação de um razoávelnível de cultura. Situava-se em uma pequena casa, na Rua Agerson Dantas, notrecho compreendido entre a Rua do Livramento e a Rua Nova. Vivíamos,embora a distância, os horrores da II Guerra Mundial. Durante o período emque ali estudei, no início da década de quarenta, era tempo de brumas e tor-mentas. Não fui um bom aluno. Também não fui medíocre. Fiquei eterna-

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mente grato à professora Benedita por haver-me incutido o feliz hábito daleitura. Os livros foram os meus melhores amigos; transmitiram-meensinamentos milenares. Ofereceram-me companhia. Em momentos de an-gústia, nas noites de insônia, estavam sempre presentes, ao alcance das mãos.Quando começava a descrer do ser humano, lia as biografias dos grandes ho-mens e mulheres que se tornaram modificadores de destinos e de épocas. Nofuturo, onde quer que me encontrasse, nas grandes capitais do mundo ou naspequenas cidades do interior de Alagoas, nunca me senti sozinho, pois estavasempre em companhia das melhores inteligências da humanidade.

CONVIVI COM CENTENAS DE CRIANÇAS, nos quatro anos em que estudei noExternato São José. No entanto, apenas guardo na memória, as lembranças doscolegas David Setton, Élio Lemos e Jairon Fernandes.

David Setton, além de ser o melhor aluno da turma, tinha a magia de ser“estrangeiro”, embora houvesse nascido em Maceió. Afirmavam que os seuspais eram judeus ou árabes. Na imaginação daquelas crianças, não existia amenor diferença entre os dois povos. Inconscientemente, promoviam a pazentre inimigos milenares. David era alto, magro e feio. Tímido e complexado,escondia-se num mutismo que somente era rompido para responder, acertada-mente, às perguntas feitas à classe pelas professoras. Eu era um dos poucoscom quem conversava. Ficamos amigos. Costumávamos estudar juntos, na salade jantar da sua residência. A frente era ocupada pela loja de tecidos da famíliado “gringo”. A palavra gringo ficou popularizada, em Maceió, pelo irmão maisvelho de David, o simpático boêmio Setton Neto, o “gringo do samba”. Settonera o oposto, no físico e no espírito, do caçula da família. Herdara a enormegordura do pai e possuía uma grande alegria de viver. David, ascético e fugidio,guardou para si a grandeza de sua imensa alma.

Élio Lemos, de estatura mediana, louro, bem apessoado, pertencia a umafamília da classe média alta alagoana. Seu pai, Elói Lemos de França, era odono, ou um dos donos, do Bar Cristal, um dos melhores da cidade, localizadono encontro da Rua do Livramento com a Rua do Comércio, a principal deMaceió, defronte do Relógio Oficial, ponto obrigatório de políticos, fazendei-ros, magistrados, funcionários públicos, usineiros e desocupados que procura-vam a simpatia da elite na busca de favores. O prestígio que Élio Lemos pos-suía junto a mim, era o de proporcionar-me, gratuitamente, sorvetes e lanchesquando os dois saíamos do Externato São José no fim das aulas, às dezessetehoras. Eu adorava cartola, preparada com banana frita, queijo assado, açúcar ecanela. Deleitava-me. Tinha nove anos. Descobria emoções novas. Encontra-va-me com o mundo encantado das revistas em quadrinhos. Capitão América,

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Super-Homem, Fantasma, Mandrake, Capitão Marvel, Jim das Selvas, Batmane Robin, transformaram-se em heróis inesquecíveis. Tarzã surgiria em minhavida, através da magia do cinema. Definiam-se, então, duas paixões que meacompanhariam para sempre: livros e filmes.

Os dois amigos tomaram rumos diferentes. Élio Lemos faria exame deadmissão, no Colégio Guido de Fontgalland, que dividia com o ColégioDiocesano Marista a preferência dos filhos de pais ricos (as filhas estudavamnos Colégios Santíssimo Sacramento e São José). Fiz exame de admissão noColégio Batista, destinado aos alunos de classe média. Além de ter sido o pri-meiro estabelecimento de ensino evangélico em Alagoas, foi pioneiro na im-plantação do estilo norte-americano de escolas mistas. Embora nos encontrás-semos raramente, Élio e eu permanecemos amigos. Superávamos uma rivalidadeque existia entre os colégios. Os alunos do Batista costumavam ser chamados,preconceituosamente, de “bodes”, o que era motivo de brigas.

É bom enfatizar que os melhores professores estavam na escola pública,no Liceu Estadual e no Instituto de Educação.

O ingresso no magistério oficial alagoano era feito através de defesa detese, com provas escrita e oral. Organizavam-se verdadeiras torcidas entre oscandidatos. O ensino buscava qualidade e não quantidade. Élio Lemos brilhouno Colégio Guido. Era, naturalmente, um líder; organizou grêmios estudantis epontificou como bom aluno. Senti muito sua trágica morte, em plena mocida-de, na Cachoeira de Paulo Afonso. Permaneceu impetuoso até o fim. Está imor-talizado como nome de uma das maiores escolas de Maceió.

Jairon Maia Fernandes conquistou o respeito e a admiração de todos osque faziam o Externato São José, pela impressão de força física que irradiava.Muito jovem, garoto ainda, já apresentava um bloco monolítico de músculos esolidez moral. Era a natureza em sua forma mais simples, e portanto, pura. Eleé o que é. Não tem segredos a esconder. A minha surpresa, confesso, foi vê-loenveredar pelo campo jurídico onde se fez altamente conceituado. Sempre en-xerguei nele, não sei bem por que, o coronel, o general até, nunca o jurista. Foiuma surpresa agradável. Anos depois, soube que o militar fora o seu irmãomais velho. Certa feita, assistia, na praia da Avenida, defronte do Clube Fênix,a uma luta livre entre o Jairon e o campeão da modalidade, um verdadeirogigante. Uma pequena multidão juntou-se em torno dos lutadores. Torcia, na-turalmente, pelo meu amigo, mas temia que fosse massacrado. Qual não foiminha alegria quando o Jairon conseguiu imobilizar o adversário com umachave de perna! A alegria transforma-se em angústia. O campeão desmaiara. Ador fora insuportável. Jairon está preocupado. Alguém telefona para o Hospitalde Pronto Socorro. A ambulância chega, em questão de minutos. Jairon acom-

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panha o rapaz. Soubemos que ele estava salvo. Maia, como também é conheci-do, abandona as lutas de uma vez por todas. Juiz, desembargador, presidiu oTribunal de Justiça de Alagoas com muita dignidade.

DONA JUDITE ERA A MAIS PREPARADA DAS TRÊS irmãs para o exercício do ma-gistério. No entanto, enquanto as outras eram tratadas por professoras, ela, queeu saiba, sempre foi tratada por Dona. Na verdade, era, de fato e de direito, adona do Externato. Excelente professora de gramática portuguesa, tinha umbom embasamento em latim e era bastante instruída. Admiradora de Machadode Assis, considerava-o o melhor escritor do idioma português nos dois ladosdo Oceano Atlântico. Autoritária, por temperamento e necessidade, não eramuito estimada por seus alunos. Rosto severo, suas palavras, curtas e secas,escondiam, contudo, um enorme coração. Fundadora nos anos trinta, da únicaescola com professoras exclusivamente negras em Alagoas, conquistou o res-peito de uma sociedade conservadora e preconceituosa.

Devo, pelo fato de ali ter estudado no período em que estava formandominha personalidade, ao Externato São José, – onde aprendi que cultura e sa-ber não são privilégios de qualquer raça – e ao Colégio Batista – onde convivi,harmoniosamente, com os princípios da religião evangélica, sem traumas ouconflitos com os ensinamentos e dogmas do catolicismo, tão profundamentevivenciados no lar, por influência de mamãe – o privilégio de não haver sidocontaminado por dois males que, ao longo de milênios, vêm denegrindo eenlutando a história da humanidade: os preconceitos racial e religioso.

2A LUTA PELA TRANSFORMAÇÃO DOS ENGENHOS de bangüê em usinas modifica-ria a paisagem econômica de Alagoas. Os senhores de engenho que possuíammaior extensão de terra e que eram financeiramente mais sólidos e empreende-dores implantaram grandes fábricas de açúcar; os demais se transformaram emplantadores de cana. As modificações deixariam seqüelas e o conflito de inte-resses provocaria antagonismos que somente o tempo amenizaria. A “balança”passou a ser um instrumento de poder e um símbolo de odiosidade.

Vivia-se a década de trinta. O usineiro Climério Sarmento convida o guar-da-livros Pedro Marinho Suruagy para ser o chefe do escritório da Usina Con-ceição do Peixe. Em alguns meses, graças a sua grande capacidade de trabalhoe a uma personalidade marcante, assumiria a gerência. A amizade entre os doishomens se solidificaria nas adversidades que enfrentaram juntos. Problemas detoda natureza foram superados. A usina consolida-se.

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Nasci nesta época. Março de 1937. Madrinha Zefinha Sarmento levaramamãe para a Casa Grande logo que ela começou a sentir as primeiras dores doparto. Cheguei ao mundo, às onze horas, no dia cinco. Mas, somente dez anosdepois, é que conheceria o encanto da vida do campo. Cuidados com a saúdelevaram papai a morar em Maceió. Com apenas alguns meses de idade, não tivenoção da mudança. Formei uma idéia do que era a Usina Peixe através doencanto que Madrinha Cândido, ou Dinha, como eu e meus irmãos a chamáva-mos, emprestava às estórias que nos contava quando vinha passar alguns diasem nossa casa. Ao lado da narrativa de contos de fadas, da vida de reis e rai-nhas, aprendi que a Usina, geograficamente falando, ficava no distrito deFlexeiras, pertencente ao município de São Luís do Quitunde.

O primeiro encontro com a Usina Peixe foi à noite. Viajara oito horas emcima de um caminhão. Foi uma verdadeira odisséia. As chuvas de junho deixa-ram a estrada um mar de lama. Logo depois de Curralinho (hoje Messias), omotorista amarrou correntes aos pneus para melhor poder enfrentar o lamaçal.O veículo atolou várias vezes. Foi a minha primeira grande aventura, uma via-gem inesquecível.

Hospedado na Casa Grande, alvo das atenções bondosas de DéboraSarmento, preferia, no entanto, a residência humilde de Madrinha Cândido,atraído pelo dom maravilhoso, que ela possuía, de contar estórias, enriquecidaspor sua fértil imaginação. Devo-lhe a minha paixão pela ficção.

O banho diário no rio Jitituba, o caldo da doce cana caiana, os passeios decarro de boi com Gilberto, Pierre e Divanni, as variadas frutas do pomar, ocirco Oriente, acampado em Flexeiras, fizeram o encanto das minhas fériasjuninas. Conheci os maiores circos do mundo, os europeus, os norte-america-nos, os de Moscou; porém, o mágico mais hábil, o trapezista mais veloz, opalhaço mais engraçado permaneceriam sendo, em minhas lembranças, os doCirco Oriente, que circulava sua pobreza pelo interior do Nordeste.

Sentia-me importante e estimado por ser filho de Pedro Suruagy e deDona Luizinha. Papai havia adquirido uma imagem de valente, justo e trabalha-dor. E mamãe a de ser “a bondade em pessoa”. Os antigos moradores recorda-vam-se bem deles e transferiam a afeição para os filhos. Contavam feitos incrí-veis da habilidade que papai possuía em atirar com revólver ou rifle. Diziam que,a uma distância de dez metros, com um tiro de revólver ele cortava um cigarro naboca de um amigo, ou arrancava, das mãos da esposa, uma moeda de cruzado.Narravam como afugentara um bando de pistoleiros que tentara invadir sua casa,em São Luís do Quitunde, a mando de um inimigo político. Sozinho, entrincheiradonum quarto, enfrentou quatro criminosos. A esposa municiando as armas, e eleatirando com a precisão que lhe dera fama. Ouvindo aquelas estórias, inebrio-me

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de orgulho e de surpresa, porque jamais imaginara que, por trás da docilidade demamãe, existisse uma coragem suicida. Anos depois, foi que compreendi ser aforça do amor a responsável por aquela mutação.

Climério Sarmento era um cavalheiro, no vestir e no proceder. Alto, magro,atencioso e distante, elegante, gostava de ternos de linho irlandês branco. Foisempre, para o afilhado, a imagem física do milionário. Lendo as biografias dosmagnatas internacionais, sempre os configurei como o velho Climério. Faleceucom noventa e dois anos de honradez e dignidade. Josefa Sarmento, ou DonaZefinha, era uma mulher que aliava doçura com força de vontade. Adorada pelosfilhos, enteados, genros, noras e netos, foi uma espécie de mãe para os moradoresda Usina. Tomava-os sob sua proteção feminina e defendia-os do egoísmo capi-talista. Ela, verdadeiramente, me fascinou. Essas matriarcas foram as responsá-veis maiores pela amenização dos conflitos sociais na região canavieira alagoana.

Madrinha Helena era a jovem princesa dos meus livros de contos de fadas.Porém, na minha memória infantil a impressão mais forte da família Sarmento,é a de Juca. A fama de homem valente e de grande conquistador de mulheres,acrescida do fato de ser piloto de avião e de pagar as minhas entradas do circomambembe, fez dele um dos meus heróis.

Governador de Alagoas, tive oportunidade de homenagear PadrinhoClimério, concedendo seu nome à rodovia asfaltada entre São Luís e Flexeirase a um conjunto residencial construído em Maceió. Mas, em verdade, ele estáimortalizado pelo fato de haver sido um dos construtores do nosso progresso.

3A CONCEPÇÃO FÍSICA DA PALAVRA MEIGUICE sempre me foi oferecida pela ima-gem de mamãe. A primeira vez, adolescente ainda, que aprendi o profundosignificado do termo, associei-o, imediatamente, a ela. Transformava suasirritações em mágoas; nunca, em cólera. As poucas vezes em que, tentandopunir alguma indisciplina infantil dos filhos, numa época em que a palmatóriaera um instrumento acessório de educação e de boas maneiras, inclusive nasescolas, nos dava uns “bolos”, que pareciam mais carícias do que punição.

Nasceu em Patos, no sertão da Paraíba. Loura, esguia, olhos azuis, rostooval e delicado, provocou, aos quinze anos, uma paixão avassaladora num aven-tureiro pernambucano, que chegara à cidade em busca do trabalho fácil que oprograma de obras contra a seca, do Presidente Epitácio Pessoa, ensejava nosemi-árido paraibano. Embora se sentisse atraída pela figura máscula e insinu-ante que lhe despertava emoções estranhas, sua timidez e a fama de valentão eexímio atirador, que o jovem forasteiro começava a criar, afastavam-na dele. As

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famílias tradicionais jamais permitiriam que uma de suas filhas se casasse comum homem sem raízes na terra, do qual se contavam várias estórias de lutasarmadas e, o pior, dizia-se que, quase todas as noites, freqüentava o “cabaré”,onde recebia atenções especiais de Madame Creusa, como era chamada a belacearense que, sabendo da presença de milhares de trabalhadores e das verbasfabulosas para a construção de grandes açudes, montara casa na calorenta e, atéentão, monótona Patos.

Conquistá-la, entretanto, passa a ser questão de honra para Pedro Mari-nho Suruagy. As dificuldades o estimulam. Inicia o cortejo: cartas, às escondi-das, rosas e juras de amor, procura amigos comuns para denunciar aos pais suavontade de esposá-la. A família não aceita e o desejo transforma-se em obses-são. Persevera. Conquista o coração da menina-moça, mas não consegue a apro-vação familiar. Fogem e casam-se.

Enfrentou, ao lado do marido, as tempestades da vida. Foi a companheiradedicada e eternamente apaixonada. Compreensiva, perdoou sempre as fragili-dades humanas do esposo e, como mãe exemplar, se perpetuou na lembrançados filhos e amigos como paradigma de amor, renúncia e coragem, transfor-mando-se em um porto seguro onde, ainda hoje, as preocupações se transmudamem esperanças de novas vitórias.

4A GRATIDÃO E A AMIZADE FORAM OS sentimentos que Pedro Marinho Suruagymais cultuou. Uma gentileza recebida transformava-se numa dívida perene. Sacri-ficava tudo que possuía, expunha a própria vida em defesa de um amigo. Lem-bro-me de uma tarde em que reuniu seus filhos e sua esposa para nos informarque existiam comentários, na cidade, de que a residência de um amigo seria inva-dida, à noite, naquele dia, por pistoleiros, e que ele ia ajudá-lo a defender a família.Comprou a briga e nos legou um magnífico exemplo de honradez.

Nasceu em Belo Jardim e criou-se em Lajedo, cidades do agrestepernambucano. Dotado de uma coragem pessoal suicida, viu-se, aos dezenoveanos, envolvido em conflitos que o obrigaram a viajar para o interior da Paraíba.Vivia-se o início da década de vinte. O Presidente Epitácio Pessoa lançara oprograma de obras contra a seca. Dezenas de açudes estavam sendo construídosem todo o Nordeste. Frentes de trabalho eram abertas e milhares de pessoasforam convocadas. O anseio pela aventura o conduz a Patos, município encravadono alto sertão paraibano. Em pouco tempo, era uma figura muito estimada. Suasimpatia pessoal era contagiante; conquistava as pessoas com relativa facilida-de. Entretanto, agora, é o conquistado. Apaixona-se por uma linda adolescente

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de quinze anos. Loura, esguia, seus olhos azuis refletem uma pureza e umabondade que, incongruentemente, o atraem e o excitam. Esposá-la passa a sera sua razão única. A vontade supera obstáculos. Casam-se e, para ela, foi casar-se com a aventura, o desconhecido, lutas, tiroteios, Revolução de 1930, perigosmil, tudo foi enfrentado. O amor faz milagres. A moça ingênua e tímida rompesuas raízes e cria o seu mundo. Nove filhos surgiram num caminhar entre aParaíba, Pernambuco e Alagoas. Seis morreram. Não suportaram as dificulda-des. Sua alma ficaria marcada pelo sofrimento. No entanto, jamais perdeu suabondade. Certa feita, discursando num acontecimento muito importante paramim, destacando as influências que formaram o meu eu, afirmei que ela seesforçou tanto para ser boa que se tornou santa. E, realmente, entre as pessoascom quem convivi, nenhuma se aproxima tanto da conceituação de santa quan-to mamãe.

Pedro Suruagy foi uma espécie de cavaleiro andante. Sentia uma atraçãotoda especial pelo perigo. Somente a sabedoria que a idade traz domaria seutemperamento.

Pai afetuoso, preocupava-se em nos oferecer o melhor. Vivemos juntostrinta e dois anos e milhares de acontecimentos. Ele foi amplo em defeitos evirtudes. Guardo belas recordações das viagens que fizemos e dos diálogos quetivemos.

Faleceu em fins de julho de 1969. Deixou um legado de dignidade. Seuexemplo permanece em minhas emoções. Para se ter um bom amigo é funda-mental que se seja um grande amigo.

5VOLVENDO À INFÂNCIA, UMA PESSOA OCUPA espaço imenso dentro de minhasrecordações. A imagem nítida que guardo dela não combina com a conceituaçãoclássica, da meiga figura da avó, sentada numa cadeira de balanço a fazer crochêe contar estórias e contos da carochinha. Essa imagem está totalmente preen-chida pelas feições bondosas de mamãe.

Não me recordo de seu nome de batismo e nunca fiz nenhum esforçopara sabê-lo, pois prefiro lembrá-la como todos a chamavam – Dona Sinhá, ouMãe Sinhá –, dependendo do grau de amizade e parentesco. Era a alegria empessoa. Bem-humorada, para os seus netos, parecia mais uma companheira debrincadeiras do que a mãe de nosso pai. Compleição franzina, possuía enormeforça interior. Amparou seus filhos em todas as vicissitudes que enfrentaram.Quando um deles foi assassinado, apesar de não os haver estimulado, compre-endeu a vingança dos outros dois. Considerava o matar ou morrer como uma

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luta natural pela sobrevivência. Pensava: “se alguém viveu bem, que importacomo morre?”.

A imensa coragem de papai e de seu irmão, tio Anacleto, deve-se em muito,à herança que ela lhes transmitiu. Morando na cidade de Lajedo, em Pernambuco,costumava passar longas temporadas conosco. O meu prestígio aumentou consi-deravelmente, e o dela atingiu as raias do inatingível, junto à minha turma do Altoda Conceição, quando, em tom de pilhéria, mas com muita seriedade, reiterou àgarotada que era uma índia e havia sido aprisionada a “dente de cachorro”, repe-tindo a incrível e inocente mentira que costumávamos contar, apoiados na ori-gem indígena do sobrenome da família Suruagy. Morreu próximo dos oitentaanos, ofertando aos descendentes um legado da alegria do viver com intensaplenitude.

Joaquina Vieira Oliveira, minha avó materna, era uma sertaneja que seenquadrava maravilhosamente bem na assertiva feliz, porque verdadeira, deque “o sertanejo é, antes de tudo, um forte”. Alta, magra, seu corpo irradiavaenergia. Costumava acordar pela madrugada. Às cinco horas, já estava traba-lhando em seus afazeres domésticos. Extremamente responsável, buscava aperfeição em todas as suas atitudes. Quando a conheci, ultrapassara, em muito,os setenta anos, mas seu rosto longilíneo ainda guardava traços marcantes debeleza. Olhos azul-esverdeados iluminavam seu semblante. Divanni e eu, comquinze ou dezesseis anos, viajamos de ônibus por Maceió, Recife, CampinaGrande e Patos para visitá-la. Nossa convivência foi de apenas uma semana. Ointenso calor da cidade paraibana, conhecida nacionalmente como a mais quentedo país, não encorajava uma longa permanência. Guardo, entretanto, lembran-ças inesquecíveis daquele período. Fisionomia de aparência severa, escondiaum coração que era um verdadeiro bálsamo. Prestativa, atendia a todos que aprocuravam com uma carranca que não enganava a ninguém. Sua bondade eraespontânea. Não tinha exageros.

Essas duas matriarcas tiveram uma profunda influência em minha com-posição genética. Encontro vários traços de suas personalidades na formaçãodo meu caráter.

6ESCREVO, NÃO, RABISCO A CARTA COM MUITA dificuldade. É o primeiro docu-mento que redijo na minha vida. O destinatário não podia ser mais importante.Dirijo-me à lenda, ao mito do Papai Noel. Tenho seis anos de idade. É bom sercriança e acreditar no Natal. Vivíamos o ano de 1943. O mundo está envolvidoem guerra. Milhões de pessoas estão morrendo nos campos de batalha, na

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insensatez dos conflitos raciais e ideológicos, na luta pelo poder. E eu, na mi-nha infantil ingenuidade, a acreditar que a humanidade é boa e solidária. Gos-taria de haver permanecido com a crença da infância. Embora tenha enfrenta-do inúmeros combates e sofrido vários desenganos, continuo imaginando, oudesejando, que o bem sempre predomine sobre o mal.

Dobrei aquela folha de papel de caderno “Avante” e coloquei-a dentro dosapato. Foi o ritual que me ensinaram. Tento evitar o sono na doce esperança deconstatar a visita do famoso velhinho que, em seu trenó, atravessa continentes,levando alegria, em forma de presentes, a tantas e tantas crianças. Fracasso. Osono me domina. Acordo ansioso. A expectativa é enorme. Será que Papai Noelatendeu ao meu pedido? Busco com ansiedade. A satisfação de encontrar a pe-quena caixa de lápis de cor embaixo da cama é inenarrável. Os olhos marejamlágrimas. Inconscientemente, apreendo o forte sentimento de posse. Sentimentoque tem levado o ser humano a gestos de extrema selvageria ou fidalguia. A ânsiado possuir e a eterna procura do mais trouxeram flagelos como escravidão, guer-ras e morticínios, gerando, entretanto, progresso e provocando desenvolvimento.

Os lápis de cor serviram para melhor desenhar as minhas inquietações ecolorir os meus sonhos.

7O NOME PELO QUAL TODOS A CONHECIAM NA USINA PEIXE, era o de Maria Cân-dido. Maria, o de batismo, como homenagem à Santa Maria Mãe de Deus; Cândi-do, o que adquiriu quando casou com o carreiro Manuel Cândido, o melhorcondutor de carros de boi da usina. Ele pouco usava a vara de ferrão. Os enormestouros atendiam naturalmente ao seu chamamento. O canto melancólico do aboioficava mais bonito na harmonia de sua voz. Dinha, assim a chamávamos eu eDivanni, pois jamais aceitei que fosse madrinha apenas de meu irmão mais moço.Fazia questão de participar desse privilégio. Ela cuidara de Divanni, nos seusprimeiros dias de vida, e mamãe, agradecida, a convidara para comadre.

Magra, estatura média, feições indígenas, cabelos encaracolados, seus olhosnegros irradiavam autoridade e suavidade. Temperamento organizado, em suahumilde casa, tudo era bem conservado e limpo. Sabia, de cor, todas as rezascapazes de curar espinhela caída, quebranto e mau olhado. Católica devota,possuía uma coleção de quadros dos santos mais populares no Nordeste brasi-leiro. A gravura que eu mais admirava era a de São Jorge, montado em um belocavalo branco e empunhando sua lança para matar o dragão, que, ainda nãovencido, lançava fogo pelas ventas. Dinha contou-me que ele morava na lua.Quantas noites, em minha infância, olhei para o céu, procurando, com ansieda-

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de, enxergar o Santo Guerreiro! Muitos anos depois, visitando Eisenach, terrade Johann Sebastian Bach, nas planícies centrais da Alemanha, o Prefeito MattiasDaht leva-me à Catedral de São Jorge, padroeiro da cidade. Admirando a belezados afrescos de pintores famosos, enxergo a imagem do santo que conhecerana pequena sala da casa de um morador de usina. As recordações da infânciasão profundas e marcantes. Permanecem em nosso subconsciente.

Nasci na casa grande da usina. Papai era o gerente-geral. Madrinha Zefinha,a segunda esposa do usineiro Climério Sarmento, era, realmente, uma criaturamaravilhosa. O poder, que o dinheiro empresta às pessoas, jamais mudou a suamaneira de ser e proceder. As vezes em que passei férias na Usina Peixe, ela metomava sob a sua proteção. Embora cativado por sua amabilidade, buscava acompanhia de Dinha. Excelente contadora de estórias de fadas, reis e rainhas,permanecia horas narrando os feitos de cavaleiros andantes que enfrentavam esempre venciam o mal. Primária, lendo e escrevendo com dificuldade, possuía,no entanto, uma imaginação prodigiosa. Criava enredos fantásticos, concluin-do, inapelavelmente, com a vitória do bem.

Morreria de velhice. Era triste visitá-la. Transformara-se em uma pálidacaricatura da mulher extraordinária do passado. Sua memória se decompusera.Não reconhecia as pessoas, nem recordava os acontecimentos. Parecia umasonâmbula. Recuso-me, entretanto, a recordá-la esclerosada. Permanece a boafada que, com sua varinha de condão, transportava-me às aventuras inenarráveisdo mundo da fantasia.

8CONFESSO, COM TRISTEZA, NÃO ME RECORDAR dos detalhes do seu rosto. O

curioso, entretanto, é que em minha imaginação ela permanece linda. Sua pas-sagem pela minha vida está enraizada nas mais profundas e longínquas emo-ções. Deveria possuir entre oito e dez anos. Lembro-me de que, todo orgulho-so, tentando impressioná-la, declamei o poema de Casimiro de Abreu, exaltandoo encanto e a pureza da idade de oito anos. Fora passar as férias escolares emSão Luís do Quitunde, na residência do comerciante João Baptista, compadrede meu pai. Dolores era sua filha única. Moça feita, na expressão familiar, to-mou-me sob os seus cuidados. Levava-me a passear pela cidade. Mostrando-me, na Igreja Matriz, as gravuras da Via Sacra, contou o drama da Paixão deCristo. A partir daquele instante, passei a desprezar todo traidor, por enxergarnele a figura repelente de Judas Iscariotes. Presenteava-me com chocolates em-brulhados em papel dourado. Ensinou-me natação no rio Jitituba, que banhavao quintal de sua casa, cheio de mangueiras e cajueiros. Ela era toda doçura.

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Contraí sarampo. A doença veio acompanhada de febre alta e tremor defrio intenso. Dolores torna-se enfermeira. Aconselhada não sei por quem, aplica-me um suadouro como o melhor remédio. Cobre-me com dois cobertores gros-sos. Observando que continuo trêmulo, oferece, num gesto inesperado, o calordo seu corpo. Vestia apenas uma leve camisola de seda. Pela primeira vez, tenhouma nítida consciência das doces implicações do contato com o corpo feminino.

Conheci o angustiante sentimento do ciúme. Aconteceu na Praça RodolfoLins. Dolores conversava animadamente com alguém de sua idade, filho, con-forme me informaram, de um senhor de engenho do distrito de Flexeiras. Erauma dor estranha; machucava a alma.

Percorremos caminhos diversos. Concluído o Curso Normal, tornou-seprofessora primária. Soube que, muitos anos depois, enfrentou preconceitos naeterna procura da felicidade. Casou com um soldado da Polícia Militar. Esperotenha casado por amor, e o homem escolhido haja concretizado os seus sonhosde mulher.

9A MAIS FORTE IMPRESSÃO QUE GUARDO DE uma liderança nata não vem deChefes de Governo, nem de Ministros de Estado, nem de Comandantes Milita-res que conheci ao longo da minha vida política, mas, sim, de um homemextraordinário em sua simplicidade. Aos meus olhos de criança, ele era umverdadeiro gigante. Já adolescente, vim saber sua dimensão física. Possuía ummetro e oitenta e dois centímetros de altura. Sua dimensão moral não tinhalimites. Papai, que na minha opinião era o mais valente, o mais leal e o maisinteligente dos homens, possuía enorme respeito e admiração por JoaquimOliveira. Em fase difícil, na juventude de Pedro Suruagy, ele foi o grande apoio.Juntos, enfrentaram e venceram borrascas. Compadres, no conceito profundodo termo, foram amigos no sentido mais amplo e nobre da palavra.

Joaquim Oliveira nasceu em fins do século passado em Patos, no altosertão da Paraíba. Menino de fazenda, cedo aprendeu a domar potros bravose a ferrar novilhos. Criado entre os vaqueiros, precocemente adulto, de tem-peramento forte e aventureiro, viajava constantemente levando boiadas pelointerior de Pernambuco, Rio Grande do Norte e Ceará. Viveu inúmeras estó-rias. Maravilhava minha imaginação com suas aventuras. Sempre associei osheróis dos filmes sobre o faroeste norte-americano à figura do tio Joaquim.Ele era meu tio-avô.

Cinqüentão, fixou-se em Alagoas, na década de quarenta. Juntou suaseconomias e comprou uma propriedade no povoado de Sebastião Gomes, vizi-

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nho à Usina Peixe, no distrito de Flexeiras, município de São Luís do Quitunde.O desejo de oferecer educação melhor às suas filhas levou-o a estabelecer-seem Maceió, na rua Comendador Palmeira, como comerciante.

Gostava de vê-lo nos fins de tarde, sentado em uma cadeira de balanço,defronte da casa comercial, cercado de desembargadores, médicos, engenhei-ros, advogados, professores universitários que, atraídos pelo seu magnetismopessoal, buscavam sua prosa agradável, a sabedoria popular sempre expressaem frases definidoras. O curioso é que ele não bajulava seus interlocutores.Pelo contrário, algumas vezes parecia ríspido em sua autenticidade.

Guardo belas recordações de nosso convívio. Os melhores presentesque recebi, nos aniversários da minha infância, foram as notas de vinte cru-zeiros que ele costumava me oferecer, para desagrado de minha mãe. Gastavao dinheiro todo em guloseimas, no Alto da Conceição, na bodega de DonaJoana, uma preta velha que possuía o encanto de ter sido escrava de engenhode bangüê. As férias que passei ao seu lado permanecem vivas em minhasemoções. Estimulava os meus sonhos. Fazia-me acreditar no futuro. Incenti-vava minhas potencialidades. Vaticinou que eu governaria Alagoas. As vitóri-as que conquistei, devo-as, em grande parte, às suas palavras de encorajamento.Ele acreditou em mim. Esforcei-me para não decepcioná-lo. Seguindo seuexemplo, procuro sempre transmitir aos jovens que estudo, trabalho e forçade vontade, aliados à probidade moral, são os instrumentos fundamentais dosucesso.

10A PRAÇA FLORIANO PEIXOTO – MAIS conhecida pelo nome de Praça dos Mar-tírios, por causa do patrono da Igreja do Senhor dos Martírios, ali localizada –,era o ponto de encontro de toda a rapaziada que morava nas Ruas do Sol,Comércio, Boa Vista, Apolo, Cambona e Alto da Saudade, ruas que confluempara esse logradouro, constantemente palco de grandes concentrações popula-res, pois fica em frente ao Palácio Marechal Floriano, sede do Governo deAlagoas.

Assistíamos a retretas da Banda da Polícia Militar, jogávamos futebolcom bolas de meia, brincávamos de artistas de cinema, comíamos amêndoas eos oitis das árvores generosas, dançávamos o frevo do carnaval, namorávamose brigávamos na praça. Era um mundo cheio de aventuras, colorido eapaixonante.

A fauna humana era variada e rica. Os irmãos Cristiano, Nilo e Chapupossuíam um certo prestígio por serem amazonenses; Lavoisier, Bossuet e

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Clemenceau, porque o pai era francês; Célio Mousinho, filho do diretor da Peni-tenciária, sob certos aspectos, simbolizava a força do poder; os filhos do “seu”Edésio, nossos vizinhos na rua João Pessoa, eram os mais ligados a mim, prin-cipalmente Rubens Peixoto e Zeca Pára-quedista, uma das melhores pessoas quejá conheci; José Mauro projetava a imagem da riqueza, graças aos enormes carrosamericanos em que seu pai, o Cabeção, desfilava em Maceió. A família, entre-tanto, mais famosa, era a do “seu” Manoel Miranda, dono dos bares Porta daChuva, Porta do Sol e Ponto Estratégico. Eram oito homens e duas mulheres:Haroldo, o mais velho, trabalhava no serviço de alto-falante, precursor daradiofonia na capital alagoana; Jaime, jornalista da “Voz do Povo”, dirigente doPartido Comunista, suave, atencioso e gentil, possuía, aos nossos olhos de jo-vens, uma coragem suicida porque, sozinho, enfrentara cinco, seis soldados daPolícia – inclusive, certa feita, numa dessas lutas, em Fernão Velho, fora ferido,no peito, por um sabre; Nilson, começava a seguir os passos políticos do irmãoque ele idolatrava. Hélio, já apresentava a habilidade em jogar futebol que olevaria a titular do CRB, da Seleção Alagoana, do Esporte Clube do Recife e doBangu do Rio de Janeiro. A personalidade de Jaime era tão forte que, à época,embora apenas dois membros da família fossem comunistas, a imagem dopartidão, durante muitos anos, em nossa terra, foi a da família Miranda. Oeconomista Ignácio Rangel, numa das visitas que fez a Maceió, captando essesentimento, afirmou: “A sociedade alagoana é tão estratificada que até o Parti-do Comunista, que se caracteriza pela sua universalidade, em Alagoas, pertencea uma só família”.

O Velho Miranda, como o chamávamos às escondidas, era, no entanto,o sustentáculo do clã. Sua autoridade moral era indiscutível. Mais baixo do quealto, de aparência taciturna, sério, raramente sorria, pronunciando poucas pala-vras; trabalhador infatigável, fiel a compromissos assumidos, conquistava o res-peito de todos aqueles que o conheciam. Quantas vezes ouvi papai apontá-locomo “um homem de bem”, traduzindo, na frase, a sua admiração pelo caráterdo amigo.

Adquiriu, em meados da década de cinqüenta, um casarão na Avenidada Paz e transformou-o no Hotel Atlântico. Os filhos multiplicaram-se emnetos e bisnetos. Foi sempre o porto seguro nas tempestades da vida. Elespodiam encontrar-se em São Paulo, Recife, Moscou, Paris, Havana, na legalida-de ou na clandestinidade, nas prisões, na alegria e na tristeza, mas sabiam quepodiam contar com o apoio e a solidariedade do Velho Miranda. Imagino que,na melancolia do inverno russo, trinta graus abaixo de zero, o Hotel Atlânticodevia ser lembrado como um sonho e uma bússola.

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Brindou-me com sua amizade e confiança, através do voto, quando fuicandidato a prefeito de Maceió. Foi, no sentido mais amplo do termo, umverdadeiro homem.

11OS PRENÚNCIOS DE 1937 ERAM inquietantes. Hitler ameaçava a humanidadecom as teses fascistas do nacional-socialismo e com a eficiência da máquinamilitar alemã. No Brasil, Getúlio Vargas aproveitava o temor provocado pelaIntentona Comunista (1935) e o ataque dos integralistas ao Palácio da Guanabarapara implantar a ditadura do Estado Novo.

Pedro Marinho Suruagy acompanhava, através do rádio, esses aconteci-mentos que modificariam a História do Mundo. Nasci nesse período. Admira-dor da coragem de Luís Carlos Prestes, consagrada na epopéia da Coluna que otornara famoso, papai odiava os nazistas. Transmitiu esse sentimento para seusfilhos. Aos oito anos de idade, ele me apresentaria, no jornal “A Voz do Povo”,sede do Partido Comunista Brasileiro, em Maceió, à figura mítica do “Cavaleiroda Esperança”. Durante muito tempo olhei com orgulho para minha mão di-reita, que o havia cumprimentado. Muitos anos depois, aprendi a desconfiardos heróis. Eles são seres humanos comuns, com virtudes e defeitos. Não acre-dito em homens que se julgam deuses.

O primeiro comício a que assisti e de que de certa forma participei foi ode Carlos Prestes, na noite daquele dia tão longínquo e tão presente em minhasemoções. Ele aconteceu no largo da Rua Comendador Palmeira, interligado aoParque Gonçalves Ledo pela Ladeira do Brito. A multidão, aos meus olhos decriança, era imensa. Jamais vira tantas pessoas juntas. Sem que eu soubesse,havia uma perspectiva de conflito e violência. Prestes pregava a utopia de ummundo cheio de felicidade plena, onde todos eram iguais, sem preconceitos ebarreiras sociais, enfim, o “paraíso do trabalhador”. A massa dos deserdados,após inúmeras desilusões, enxergava nele o intermediário para mil esperanças.Os donos do poder enxergavam nele uma ameaça à manutenção dos seus pri-vilégios.

O comício havia iniciado. Oradores se faziam ouvir, quando o ronco domotor de um velho caminhão, no esforço final para conquistar o topo da ladei-ra, é interpretado por alguém como uma saraivada de tiros. Implanta-se o pâni-co. Tenho uma visão privilegiada dos acontecimentos. Papai levara-me para opalanque. No início do tumulto, ele me colocara às suas costas e segurara orevólver para proteger Luís Carlos Prestes que permanece tranqüilo pedindocalma à multidão. A coragem expressada por Pedro Suruagy e Carlos Prestes

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teve forte influência na formação do meu caráter. Aprendi que a altivez, nosmomentos difíceis, é imprescindível à dignidade humana.

12O SÍTIO, CHEIO DE MANGUEIRAS, CAJUEIROS, pitangueiras, pés de fruta-pão,jaqueiras, sapotizeiros e laranjeiras, pareceu ao garoto de dez anos um verdadei-ro paraíso.

Insisti com papai para que nos mudássemos para o Alto da Conceição.Claro que a decisão dele já estava tomada. As árvores lembravam, na minhaimaginação, as selvas dos filmes de Tarzã, oferecendo, portanto, um sabor deaventuras.

Morávamos na Rua do Sol, no centro de Maceió. Era o sair de uma peque-na casa para a imensidão da liberdade.

Vivia a fase biológica da transformação de criança em adolescente. Asemoções eram várias e apaixonantes. Um mundo novo surgia diante de mim,tanto no sentido espacial, quanto no da interioridade. As primeiras namoradasa distância. A emoção da conquista do campeonato alagoano de futebol de1947 pelo Alexandria, que provocou o fato, até então inusitado, de lágrimas desatisfação. O choro de tristeza pela perda da copa do mundo de 1950. O des-pertar do sexo. O primeiro e último cigarro. A preocupação de ganhar dinheiro,vendendo mangas na calçada da Igreja de Bomparto. A satisfação de receberuma bicicleta de presente. As fogueiras das festas juninas. A paixão dominadorae sempre crescente pelos livros.

O Alto da Conceição compreendia as Ruas Marquês de Herval, PortoAlegre e trechos das artérias José de Alencar e Luís Mascarenhas, no bairro doFarol. A comunidade, embora pequena, englobava em seus habitantes a univer-salidade da alma. Encontrávamos todos os tipos humanos. Alguns permane-cem no fundo de minha memória.

José Rosas, um dos gerentes da Fábrica Alexandria, era muito estimadopor sua bondade. Seus filhos são grandes amigos.

Artur Agostinho da Silva provocava uma enorme admiração em mim quan-do trafegava, em alta velocidade, na sua possante motocicleta. Tendo lindasfilhas, sua residência era muito freqüentada.

Antônio Lopes, homem empreendedor, possuía uma auréola especial. Ca-rioca, contava-me mil estórias de sua vida boêmia no Rio de Janeiro. Fabricavabrinquedos e era dono da cacimba de oitenta metros de profundidade que abas-tecia a população. Quantos carros de mão conduzi com latas d’água, diariamen-te, para encher os tanques de casa? Impossível enumerá-los. A cacimba tinha

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mistério a cercá-la: é que um homem morrera nela, de uma queda.Dona Joana era uma preta velha que, na nossa opinião, contava com mais

de oitenta anos. Imaginávamos que fosse africana e que havia sido vendidacomo escrava a um senhor de engenho e libertada pela Princesa Isabel. Propri-etária de uma pequena quitanda, vendia “aguardente de pau” aos adultos eguloseimas às crianças. A beleza de seu coração era bem maior do que a feiúrado seu rosto. Foi uma das melhores pessoas que conheci.

A maior tragédia da minha juventude foi a morte, por atropelamento deautomóvel, do cachorro Dorly, que papai nos havia presenteado. Enorme, bran-co, com manchas pretas, era lindo e valente. Divanni e eu tínhamos verdadeiraadoração por ele. Senti ganas de matar o motorista que se desculpava. Os nos-sos colegas compareceram ao funeral. O corpo repousou perto de um cajueirotodo florido. Naquele momento, jurei e cumpri, decidi que jamais criaria outroanimal.

A Praça de Esportes da garotada era a da Vila Operária da FábricaAlexandria, conhecida como campo do “cavalo morto”. Quase todas as tardes,fugíamos dos deveres escolares para ali jogarmos futebol. Compensavámosestudando à noite. Fui atleta, no conceito de que atleta é aquele que pratica enão o que joga bem.

Aprendi, aos treze, quatorze anos de idade, uma lição de vida que guardoaté hoje, sempre tentando exercitá-la apesar das minhas limitações.

Papai possuía muitos compadres. Um deles arranjou um nova companheira.Mamãe, a família toda reunida no jantar, critica-o e elogia a comadre dizendo queela era uma santa. Dias depois, ocorre uma discussão pública com troca de pala-vrões entre as duas mulheres. Foi um escândalo no Alto da Conceição. Mamãevolta a comentar o assunto, afirmando que as duas eram iguais. A comadre dei-xou de ser considerada uma santa para ser chamada de prostituta pela vizinhança,porque se igualou à sua adversária. Jamais nos devemos rebaixar ao nível dosnossos inimigos. Devemos nos defender das calúnias com a verdade e usandouma linguagem elevada. A maior afronta que podemos fazer àqueles que noscombatem com infâmias é permanecermos superiores, porque acentuamos a fra-gilidade do seu caráter. O mal por si se destrói. O bem sempre predominará.

13SEGUINDO ORIENTAÇÃO DE PAPAI, seu irmão mais velho, titio Anacleto, veio dePernambuco para Alagoas, ingressando na Polícia Militar como soldado raso.Galgou todos os postos até o coronelato, quando assumiu o Comando Geral,no Governo Muniz Falcão. Destemido, era muito respeitado pela sua coragem,

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numa época em que promoções, segundo comentários, deviam-se muito aosatos de “bravura” que o policial tivesse praticado. Ele era o valente sem ser odesordeiro. Não se conhece, em sua longa folha de serviço, nenhum ato deinsubordinação à disciplina militar. As prisões que sofreu foram todas de natu-reza política.

Tio Anacleto foi uma espécie de segundo pai para nós, seus sobrinhos. Afamília Suruagy, em Maceió, era composta apenas dos dois irmãos e seus filhos.Daí, eu e meus primos havermos sido criados praticamente juntos.

Tornei-me torcedor do Clube de Regatas Brasil (CRB) e do Botafogo, doRio de Janeiro, por sua influência. Levava-nos aos campos de futebol. Esdras,seu filho mais velho, jogou pelo CRB e era nosso ídolo. Hermann, possuidorde uma inteligência privilegiada, era o mais brilhante. Diva, Sônia e Selma con-fundiam-se em nossa estima. Jarbas e Divanni eram companheiros permanen-tes. Roberto, o caçula, nasceu no período em que a família vivia a melhor fasefinanceira. Tia Zefinha, ou Finha como a chamávamos, era uma extensão denossa mãe.

Roberto, mais conhecido como Suruca, ao longo do tempo, foi o queesteve mais próximo de mim. Herdou de titio sua imensa coragem. Capaz degestos de extrema dedicação, fica revoltado quando não é correspondido coma mesma intensidade de afeto. Possui mente analítica interpretando, combrilhantismo, os fenômenos sociais. Enfurecido, fica bastante perigoso sendocapaz de gestos de insensatez. É o mais dedicado dos parentes que possuo.

Titio Anacleto, com mais de oitenta anos de idade, vive sua velhice commuita honradez. Amou e foi amado por várias mulheres. Enfrentou perigos,combateu e foi combatido. Amigo das horas difíceis, retilíneo em suas atitudes,permanece um exemplo para filhos e netos.

14FORA PASSAR AS FÉRIAS JUNINAS NA USINA PEIXE. Fiquei hospedado na CasaGrande. Nascera ali, há nove anos. Papai, à época, gerenciava a Usina. Eu aindanão conhecia o encanto da vida rural.

Em minha lembrança, elas se mesclam à figura de Climério Sarmento.Espírito empreendedor, com capacidade de trabalho invulgar e uma vontadeférrea, esse senhor de engenho transformar-se-ia em usineiro. A luta foi titânica.Ausência de crédito, instabilidade de mercado, carência de máquinas, mão-de-obra despreparada eram os grandes desafios. Pedro Suruagy esteve ao seu ladonesse período de dificuldades e de incertezas. Enfrentou pistoleiros, arriscou avida e comprometeu a saúde. Padrinho Climério jamais esqueceu o amigo das

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horas difíceis. Muitos anos depois, quando papai morreu, ele nos procura. Di-rige-se à minha mãe:

— Comadre, sei que a senhora e os meninos, graças a Deus, não precisam,mas gostaria de prestar minha última homenagem ao compadre. Antes de ouvirqualquer resposta, conclui:

— Pagarei o enterro dele.A prosperidade da Usina trouxe o progresso. Flexeiras desmembra-se

de São Luís do Quitunde. Deixa de ser vila, torna-se município. O destino meconduz ao Governo de Alagoas. Autorizei a pavimentação asfáltica da rodo-via que atravessa a região. Denominei-a “Climério Sarmento”. Em algunsmeses, a obra foi concluída. Levei-o no automóvel que primeiro a percorreu.Esse anjo de bondade, que foi madrinha Zefinha, estava conosco. Fizemos,em minutos, uma viagem que levava horas. Percorrendo o canavial ao longoda estrada o tempo desfilava diante de seus olhos. Os velhos engenhos debangüê reviveram o esplendor de outrora. Intimamente, talvez, arrependia-sede ter sido um dos instrumentos da transformação sócio-econômica da área.Entretanto, logo superou esse sentimento. Era um forte, um condutor dehomens, um transformador de estruturas, um agente das forças doimponderável. Viveu plenamente.

15ESTOU ASSUSTADO. ERA O MEU PRIMEIRO CONTATO com um grande estabeleci-mento de ensino. Milhares de alunos circulavam pelo pátio. A campainha toca.Sou conduzido à sala onde me submeteria às provas do exame de admissão.Era janeiro, faria onze anos em março. Estudara bastante, mas temia ser repro-vado. Lendo as questões, tranqüilizo-me. Sabia as respostas. Obtive notas sufi-cientes para o ingresso no curso de ginásio. Começaria um dos períodos maisbelos de minha vida.

O Colégio Batista Alagoano vive o ano de 1948. Era dirigido pelo Profes-sor Corintho Ferreira da Paz. Encontram-se em seu corpo docente os melho-res professores de Maceió.

O Diretor, um verdadeiro gigante para os padrões brasileiros, possui qua-se um metro e noventa de altura. Mais gordo do que magro, voz tonitruante,oferece uma imagem de vigor físico. Ensinava História Geral. Sinto-me atraídopor sua personalidade exuberante. Entretanto, um incidente afetaria minha ad-miração. Possuindo apenas uma farda, que era a vestimenta obrigatória, tinhadificuldades em atender à exigência do colégio. Mamãe lavava a camisa todatarde e passava a ferro, à noite, para que, no dia seguinte, pudesse ir ao colégio

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de farda. As chuvas de maio não permitiram que a camisa enxugasse e fuiobrigado a comparecer às aulas, com uma outra de tecido da FábricaAlexandria. Estou cercado de colegas, quando ouvi os gritos do Diretor queme manda para casa, afirmando que estava vestido como indigente. Não en-tendi o significado da palavra, mas a fúria do Professor Corintho dava a im-pressão de que estava sendo insultado por um enorme palavrão. Jamais meesqueci. Muito tempo depois, volto a gostar do Mestre, porém, a humilhaçãopermanece, e, com ela, um comportamento de inferioridade. Tendo inúme-ras camisas, continuo comprando as mais caras que encontro, e, a cada com-pra, é como se estivesse provando que venci. Tirei, inconscientemente, umalição do fato. Não se deve nunca humilhar as pessoas. Ninguém esquece quefoi humilhado.

O professor que mais teve influência na minha vida de ginasiano foiPetrônio Viana, que ensinava Matemática. Não gostava de estudar ciênciasexatas. Gostava de História, Geografia e Literatura. Mas, para conquistar orespeito e a amizade do Petrônio, transformei-me em tão bom aluno que, noCurso Colegial, já ganhava dinheiro dando aulas particulares de Matemática.Inclusive, fui professor durante vários anos no cursinho pré-vestibular daFaculdade de Ciências Econômicas.

Aprendi quanto uma pessoa dotada de carisma pode modificar, para obem ou para o mal, o destino de um jovem.

Petrônio Viana, sem ter essa intenção, foi o meu primeiro líder. Assistia,embevecido, às complexas aulas de álgebra, de logaritmo e de geometria analí-tica. Petrônio foi um boêmio em sua juventude; adorava a noite e uma boabriga. Seus feitos de valentão eram aumentados pela admiração que provocavaem seus alunos. Era uma espécie de espadachim. Completei meus conhecimen-tos de Matemática com dois outros grandes Mestres: Benedito Morais eEdmilson Pontes. Foram, porém, modelos diferentes. Petrônio, além de ser oexcelente professor, era a aventura.

Estudei seis anos no Colégio Batista. O meu caráter, a minha maneira deser devem muito ao que aprendi e, principalmente, ao que senti naquele perío-do de transformação de menino em rapaz. Os conceitos de ética, o culto aoesporte, o amor aos livros foram normas e hábitos de vida adquiridos parasempre.

Papai lutava, à época, com dificuldades financeiras para educar os filhosem escola particular. Tento ajudá-lo diminuindo as suas despesas com meusestudos. Busco emprego. Nomeado extranumerário-diarista da Prefeitura deMaceió, aos dezesseis anos de idade, trabalho de dia e passo a estudar, à noite,no Colégio Guido de Fontgalland.

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16MACEIÓ, 9 DE AGOSTO DE 1951. Encontra dificuldade em conciliar o sono.As fortes emoções do dia permanecem em sua mente. A recepção afetuosa quecentenas de irmãos em Cristo lhe ofereceram no Aeroporto dos Palmares foigratificante à sua alma. Recebera a missão de ampliar o trabalho de evangelizaçãono Nordeste brasileiro. Alagoas foi a região escolhida. Sabia pouco sobre arealidade alagoana. As informações que possuía eram de que a economia doEstado se apoiava na produção de açúcar, na indústria têxtil, na cultura desubsistência e que o litoral era um dos mais belos do Brasil.

A mudança fora radical. Texano, saíra dos Estados Unidos, com conheci-mentos rudimentares de português, para o apaixonante desafio do ministériode Deus em uma área tão carente de justiça social. É verdade que, em algunsinstantes da longa viagem, o medo do desconhecido invadira o seu espírito,mas, a confiança em Deus, a certeza de que Ele o protegia, lhe concede umaenorme força interior.

Levanta-se e vai para a janela do quarto, no sobrado que servia de resi-dência ao missionário americano. A madrugada chegava. Através da fraca ilu-minação da Rua Aristeu de Andrade, divisa o Colégio Batista. Consciente daimportância da educação bem dirigida na formação moral da juventude, decideemprestar o melhor dos seus esforços no fortalecimento e na ampliação doestabelecimento de ensino. Louva Jesus Cristo por tudo que recebeu e voltapara o leito com o cuidado de não acordar Dona Irma Edna, a companheira detantos acontecimentos e a querida mãe de suas filhas.

Alagoas, no início da década de cinqüenta, tinha pouco mais de um mi-lhão de habitantes e apenas doze Igrejas Batistas, que na sua maioria, estavaminstaladas em pequenas casas alugadas, com problemas para se manterem. OPastor O’Neal, nos seus trinta e sete anos de ministério, enfrentando todas asespécies de dificuldades, conseguiu ajudar seus irmãos a construírem quarentae nove igrejas com templos próprios, algumas com casa pastoral e, todas, ofere-cendo sustento ao seu Pastor.

Recebo o convite para o culto especial de despedida dos missionáriosBoyd e Irma O’Neal, na Primeira Igreja Evangélica Batista de Maceió, no do-mingo 8 de maio de 1988. Viajo de Brasília especialmente para abraçar os esti-mados amigos. A Igreja vive uma noite de festas. Está completamente lotada.Cânticos de belos hinos religiosos se fazem ouvir pelo Coral Minh’alma canta aTi, Senhor: Grandioso és Tu, Grandioso és Tu . O Pastor Nazareno Cerqueira emo-ciona com sua pregação, exaltando a grandeza humana do missionário, que sebaseia na disposição do servir, na sua postura moral, na simplicidade dos seusgestos, em sua capacidade de renúncia e em sua lealdade a Cristo.

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Assistindo ao culto, começo a recordar os meus encontros com o PastorBoyd O’Neal. Quando ele chegou a Maceió, em 1951, estudava no ColégioBatista. Foi apresentado solenemente aos alunos do CBA. Sorriso meigo, olhardócil, suave no falar, alegre e afetuoso, conquistou a simpatia dos estudantes. Oexotismo de pertencer a outros mundos, de haver nascido nos Estados Unidos,também contribuiu para sua boa acolhida. Prefeito da Capital e Governador deAlagoas, sempre encontrei nele um grande ponto de apoio. Era um dos meusconselheiros. Jamais me esqueceu em suas orações. Através dele, ajudei a causado Evangelho.

Lendo versos do hino “Teu Plano Meu”, encontro o traçado maravilhosodo destino do pastor Boyd O’Neal:

“Deus tem um plano em cada criatura,Aos astros, Ele dá o Céu,

A cada rio, Ele dá um leito,E um caminho para mim traçou.A minha vida eu entrego a Deus,Pois o seu filho entregou por mim.

Não importa aonde for, seguirei meu Senhor,Sobre a terra ou mar: onde Deus mandar, irei”.

Nestes dias escorregadios de decadência moral, nestes dias de cegueira eperdição, precisamos exumar essas vidas edificantes como espelho tutelar.

Servir, fazer o bem, é o único rastro deixado sobre a terra que nunca sedesfaz, aprofunda-se nas almas e transmite-se, como uma herança sagrada.

17CURSAVA A SEGUNDA SÉRIE DO CURSO GINASIAL no Colégio Batista. O professorde português entra na sala de aula. Sua figura é imponente. Quase um metro enoventa centímetros de altura. Embora bastante magro, não transmite umaimagem de fragilidade. Pelo contrário, parece que uma força interior impregnasua personalidade. Dominou facilmente aquele grupo de estudantes. Profundoconhecedor do latim, era íntimo das origens do nosso idioma. Esse foi o meuprimeiro encontro com o Pastor José Tavares de Souza. Nossas vidas voltariama encontrar-se em várias oportunidades.

Comecei a trabalhar, aos dezesseis anos de idade, na Prefeitura de Maceió.O professor Tavares exercia a Direção Geral de Administração. Foi um grandeapoio em minha carreira profissional. Anos depois, seria substituído nos car-gos de Diretor de Administração e Secretário-Geral da Prefeitura.

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Pastor da Primeira Igreja Batista de Maceió durante mais de cinqüentaanos, o professor José Tavares, além dos ensinamentos da Bíblia, realizou umtrabalho social altamente meritório, através do lar do Bom Samaritano.

Milhares de pessoas receberam o chamamento de Deus e modificaramseus destinos graças à sua ação pastoral. Ele foi um bom exemplo da assertivade Querer é poder. O sucesso, uma vida útil e plena apóiam-se na prática dopensamento positivo (orações), vontade forte, objetivo definido e trabalho cons-tante. Aqueles que seguem esses ensinamentos, apesar dos percalços, serão vi-toriosos.

Aprendi com ele que devemos sempre fazer o bem. Fazer o bem semesperar retribuição. Se alguém que recebeu uma gentileza nossa, for reconheci-do, ótimo. Caso não seja, o problema não é nosso, é dele. O ingrato, por si édestruído.

Apoiado nessas lições, passei a compreender a fragilidade humana. Pes-soas a quem concedi posições de tal destaque que, nem nos seus mais carossonhos imaginaram exercer, inventam os motivos mais falsos e fúteis para jus-tificarem suas ingratidões. Na verdade, são dignas apenas de piedade ou, nomáximo, de desprezo.

Governador de Alagoas, convidei o professor José Tavares para comporalguns Conselhos do Estado. Ele dignificou esses Colegiados.

Posso sintetizar as lições do estimado Pastor, quando me encontro diantede um problema, na atitude de rezar, pensar, estudar, crer e prosseguir. Suaamizade foi realmente uma dádiva.

18ADQUIRI A CONSCIÊNCIA DA FORÇA DE UMA AMIZADE absoluta aos quatorzeanos de idade, quando, passando férias na cidade de Ribeirão, em Pernambuco,conheci tio Manoel Victor. Ele e papai, morando em regiões diferentes, poucose freqüentavam. Mas, bastava tomar conhecimento de algumas dificuldadesque um deles estivesse a viver, o outro chegava, imediatamente. E chegava semlimites: para o que desse e viesse, para matar ou morrer. Não sei que aconteci-mentos existiram no passado. Imagino, porém, que deve ter sido algo muitoforte para alicerçar tão sólido sentimento. Os dois consideravam-se verdadei-ros irmãos. Daí, o título afetuoso de tio que nós lhe tributávamos.

Ribeirão foi um descobrir de emoções. A primeira paixão, vivi ali. Belezadiáfana, era loura e esguia. Encontrava-a sempre nos fins de tarde, na estaçãoferroviária. Ela se fazia bonita para ver o trem passar. Foi paixão não corres-pondida, mesmo porque, jamais soube a intensidade do afeto que provocava.

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Jogos de azar, bebidas alcoólicas, freqüentar cabarés foram vícios que co-nheci em Ribeirão. Tolamente, eles me fizeram sentir adulto.

A recordação, entretanto, que guardo com mais carinho das férias quepassei na pequena cidade do interior pernambucano, é a do que aconteceu emuma noite de sábado, no baile de encerramento da festa da Padroeira, NossaSenhora de Santana. O clube social estava completamente lotado. Um númeroenorme de pessoas tentava entrar e não mais conseguia. A orquestra tocaravárias vezes, e eu ainda não dançara. As mulheres eram poucas, diante de tantoshomens. Encontrava-me inquieto e ansioso. Sinto-me observado por uma belajovem. Morena, os longos cabelos negros presos em uma trança única, ofere-ciam-lhe graciosidade juvenil. Retribuo o olhar. Ela sorri. Convido-a para dan-çar. A integração foi total e repentina. A sensação maravilhosa de corpos desexos diferentes se transformarem em um só é embriagante. A música fortale-cia a atmosfera romântica. Seu nome era Emília e morava na cidade vizinha dePalmares. Até hoje, nas inúmeras viagens que fiz de automóvel entre Maceió eRecife, ao passar por Palmares, pergunto-me por aquela que me conduziu, pelavez primeira, através dos perigosos e envolventes caminhos da atração sexual.

19NA DÉCADA DE CINQÜENTA, ERA COMUM que vários adolescentes do sexo mas-culino se reunissem em grupos, chamados de turmas, nas praças públicas deMaceió. As maiores turmas foram as das Praças do Rex, Martírios, Deodoro,Rayol, Centenário e Sinimbu. A mais famosa, entretanto, foi a da Praça Deodoroque também era a da vizinha Praça da Cadeia. Um de seus integrantes, o Dida,foi campeão mundial de futebol. Todas elas foram celeiros de atletas. Algunsdeles se tornaram grandes craques. Existia uma forte rivalidade entre as turmas.Nenhum dos seus membros passava, sozinho, em outra praça, pois corria orisco de levar uma surra ou, na melhor das hipóteses, ser desafiado para umabriga, caso não tivesse a proteção da amizade de alguém da outra turma. Geral-mente, a rivalidade extravasava nos jogos dos times que se formavam nas pra-ças. O Itatiaia, o Bonfim, o Pajuçara, o Deodoro e o Tiradentes foram os me-lhores.

Havendo minha família residido nas Ruas João Pessoa e Dias Cabral,pertenci a duas turmas: a da Praça dos Martírios e a da Praça Deodoro.

Somente uma pessoa era bem aceita em todas as turmas. Desejada, esti-mada, cobiçada, amada, ela circulou com a maior desenvoltura, durante os anoscinqüenta e sessenta, junto a milhares de jovens. Nega Odete reinou absolutadiante de várias gerações. Generosa, amou pretos e brancos, ricos e pobres, feios

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e bonitos com a mesma prodigalidade. Compreensiva, jamais fez discriminação àqualidade nem à quantidade. Meiga e sensual, era toda doçura para com osiniciantes. Quantos traumas e psicoses ela não deve ter evitado? Mesmo os maisousados, ficavam tímidos diante de sua experiência e de sua arte natural.

A primeira imagem em que a visualizo na minha memória foi de umamanhã, já perto das doze horas, quando ao sairmos das aulas no Colégio Batis-ta, um dos alunos, avistando-a, grita: Nega Odete! Caminhava em direção ao“Zeiga” com uma marmita. O grito eletrizou a rapaziada. Um coro organizou-se. Nega Odete. Nega Odete. Ela, em resposta aos gritos e aos assobios, au-menta o bamboleio do corpo e acena sorrindo à garotada. Vim conhecê-larealmente, quando comecei a freqüentar a Praça Deodoro.

Tempos depois, lendo o imortal poema, Nega Fulô, de Jorge de Lima,lembrei-me imediatamente de Odete. O maior poeta de Alagoas, numa antevisãodo seu gênio, a descreveu quando cantou toda a magia e o encanto da mulhernegra.

No início de 1986, meu primo Roberto Suruagy promove um almoçona Barra de São Miguel, com os antigos companheiros que participaram damelhor fase da Praça Deodoro. Compareço. Foi um encontro com a minhamocidade. Conversamos sobre o passado. O nome de Odete surge. Sou infor-mado de que está atravessando dificuldades. Peço que a levem ao Palácio doGoverno. Recebo-a no Salão Nobre. Observo-a, enquanto o Capitão do Gabi-nete Militar a conduz à minha presença. Os anos não pesaram sobre ela. Guar-da a mesma sensualidade que tantos desejos inspirou. Levanto-me respeitosa-mente para cumprimentá-la. Suas mãos estão frias. É visível a emoção que adomina. É a primeira vez que visita o Palácio. Tento tranqüilizá-la. Afirmo, emtom de brincadeira: – Sou apenas eu. Ela sorri. Acho que estava se recordandodaquele garotão alto, magro, desengonçado, que o destino levaria por três vezesa governar Alagoas. Alimento a conversa com perguntas. Descontraída, explo-de sua gostosa gargalhada. Ajudo-a. Os problemas do Estado me chamam aopresente. Acabou o hiato de paz. Despeço-me. Levanta-se das austeras cadeirasda mesa de despachos e sai. Sentindo-se admirada, solta seu corpo. Os meneiosconcedem graciosidade aos passos. É a vida que caminha, sem preconceitos ecomplexos, em sua liberdade plena.

20A EXPECTATIVA É ANGUSTIANTE. TEMO A CONFIRMAÇÃO de estar com um dospulmões afetados. Tivera pneumonia, e a doença poderia haver provocado des-dobramentos mais graves. O receio é compreensível. Acredito ter uma longa vida

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pela frente, tenho planos. A paixão pelos livros alimentara minha imaginação.Desejo participar das decisões maiores de minha terra, anseio por ser útil. So-nho em conhecer o mundo, visitar países exóticos, amar belas mulheres, lutar obom combate.

A enfermeira avisa que Doutor Mello Motta me espera. O médico rece-be-me circunspecto, profissionalmente. Observo-o com vagar. Imagina, talvez,os meus sonhos. Vislumbro um olhar de simpatia no rosto severo e bondoso.As palavras saem suaves:

– A radiografia registra uma ligeira lesão no pulmão esquerdo. Acrescentarapidamente: – Deixarei você bom em poucos meses.

A tuberculose foi o primeiro e grande desafio que enfrentei. A doença,à época, era considerada praticamente fatal. Entre suas vítimas contavam-semilhares e milhares de brasileiros.

Embora o Doutor Mello Motta houvesse me tranqüilizado com a pers-pectiva da rápida cura, mesmo assim, temia o pior.

A doença possuía uma certa auréola. Conseqüência, naturalmente, de vá-rios poetas a haverem contraído e toda a literatura mundial apresentar o tísicocomo uma pessoa romântica.

Influenciado por esses intelectuais, sob certos aspectos, achava interes-sante a doença que me acometia. Mamãe foi toda desvelo, e papai, todo apoio.

A angústia era proveniente da obrigação de permanecer a maior parte dodia deitado, sem nenhuma atividade física. Os livros foram, mais uma vez, meusgrandes companheiros.

Ao sentimento de admiração que nutria pelo homem público e pelo pro-fissional de Medicina, soma-se o da gratidão.

Lourival de Mello Motta era alagoano de Palmeira dos Índios. Foi o quar-to filho de uma família de doze irmãos. Todos se destacaram nas profissões esco-lhidas, mas, tendo ingressado na atividade política, tornou-se o mais conhecido.

Formou-se em Medicina na Universidade do Brasil, sediada no Rio deJaneiro. Enfrentou muitas dificuldades para concluir o seu curso. Trabalhou nacidade grande, em funções diversas para poder freqüentar a faculdade. Os obs-táculos serviram para lapidar o seu caráter.

Secretário do Interior e Justiça na Interventoria Ismar de Goes Monteiro,revelou-se forte, corajoso e leal, atributos que a difícil e ingrata missão de res-ponsável pela segurança pública exige.

Deputado Estadual em duas Legislaturas numa das épocas mais com-plexas da história alagoana, foi verdadeiramente um bravo. Ameaças de morte,tentativas de assassinato e perseguições econômicas jamais conseguiram intimidá-lo. Soube, como poucos, dignificar o mandato popular.

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Jornalista combativo fez do seu Diário do Povo um marco de luta contrao excesso de autoridade concentrada no Poder Executivo. “O empastelamento”do órgão oposicionista fez do Doutor Mello Motta uma espécie de herói juntoàqueles que combatiam o governo.

21TEMPERAMENTOS DISTINTOS, DIVA, minha irmã mais velha e Divanni, meuirmão mais moço, estamos unidos, entretanto, não apenas pelo convívio dairmandade, mas, principalmente, pelos vínculos afetivos que nossos pais nostransmitiram.

Diva Suruagy é paixão pura. Dedicada em extremo, é capaz de fazer qual-quer sacrifício por aqueles de quem gosta e admira. Teve a felicidade de casar-se com um homem que a compreende em toda sua amplitude. Luís Correia é obom senso, é a precaução. Os dois se completam.

Divanni é dotado de profundo amor ao próximo. Espiritualista, românti-co, emociona-se com muita facilidade. Ele é doação total, tem imenso prazerem servir. Sua profunda sensibilidade, muitas vezes, o leva a interferir em des-tinos alheios com sacrifícios pessoais. Socorrinho é a companheira de todas ashoras, aceitando, com resignação, os percalços da vida.

Assumindo uma posição de destaque na sociedade alagoana, muitas vezesnão sou compreendido na difícil arte de conciliar os interesses familiares comos do Estado. Orgulho-me muito dos meus irmãos, tenho-lhes grande estima.

22VIVÍAMOS O INÍCIO DOS ANOS CINQÜENTA. À época, o sonho dourado da ju-ventude alagoana de classe média, era prestar exames para uma escola militarou fazer concurso do Banco do Brasil. Além da vida aventurosa, os cadetes emférias em Maceió, com suas vistosas fardas, faziam um sucesso enorme juntoao sexo feminino. Ingressar no quadro de funcionários do Banco do Brasil eraa segurança de um bom emprego, em termos salariais, era a garantia de umfuturo tranqüilo.

Concluído o curso ginasial, habilito-me, aos quatorze anos de idade, àEscola Preparatória de Cadetes de Fortaleza. Julgava-me intelectualmente pre-parado. Havendo estudado matemática com o professor Petrônio Viana, domi-nava a disciplina que inspirava maior temor aos candidatos. O exame médicoprecede às provas de conhecimentos gerais. Realiza-se no Vigésimo Batalhãode Caçadores, o popular 20º BC. O Major Nabuco Lopes, conhecido pelo rigor

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do seu caráter e sua coragem pessoal, é quem comanda os trabalhos. O grupo,composto de dezenas de jovens, está intimidado. Soldados com trajes de enfer-meiros haviam determinado que ficássemos completamente despidos e anota-vam nossos pesos e alturas. Conhecíamos a fama de valente do Major. Comen-tava-se que ele, em uma noite de carnaval, fazendo o corso na Rua do Comércio,brigara sozinho com três guardas civis. Consciente do impacto de poder quecausava, mantém-se taciturno e reservado. É a própria autoridade. Eficiente,meticuloso, examina um a um os adolescentes. Ouço a chamada de meu núme-ro. Adianto-me, nervoso e trêmulo. A aprovação era muito importante paramim. Havia-me imaginado oficial do Exército. O Major Nabuco pergunta arazão de uma enorme cicatriz que possuo na perna direita, logo abaixo dojoelho. Explico ter sido um corte de vidro quebrado, muito profundo, quandojogava futebol, nas férias que passei no Engenho Santa Luzia, em Urucu, hojemunicípio Joaquim Gomes. Sou reprovado. Soube que o laudo médico fora deque eu era incapaz, fisicamente, para longas marchas com equipamentos milita-res às costas. Amarguei a decepção. Muito tempo depois, compreendi que oDoutor Nabuco Lopes fora um dos agentes do destino que me conduziu paraos ásperos e atraentes caminhos da política.

Professor de Farmacologia da Faculdade de Medicina, reformado comogeneral, inicia uma nova e brilhante etapa de sua vida na Universidade Federalde Alagoas, tendo sido Diretor do Instituto de Ciências Biológicas, além deMagnífico Reitor, quando implantou o Hospital Universitário.

Temperamento disciplinado e disciplinador, chegou aos setenta e seisanos de idade, praticamente, com o mesmo peso que possuía na juventude.Adepto entusiasta da prática de ginástica, considerava o caminhar o melhorexercício. Íntegro, por formação e convicção, colocava as questões de honracomo verdadeiros tabus morais. Culto, viajado, ledor incansável de toda mo-dalidade de literatura, ampliou seus conhecimentos com vários cursos naEuropa, nos Estados Unidos e no Extremo Oriente. Apaixonou-se pela Chi-na. Falava com entusiasmo sobre a sabedoria mais do que milenar da civiliza-ção chinesa. Autor de vários trabalhos científicos, influenciou a inteligênciaalagoana.

Conversamos, pela última vez, na casa de praia de seu concunhado, JoãoNogueira, na Barra de São Miguel. Era uma manhã de domingo. Apesar dabeleza da paisagem e do lindo dia de sol, ele estava deprimido. Acompanhando,através dos jornais e da televisão, as notícias da corrupção que enlameava ogoverno federal e enlutava o Brasil, temia o apodrecimento moral do país. Ten-to convencê-lo de que tudo ainda não está perdido. Olha-me com um misto deincredulidade e esperança.

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Soube de seu falecimento, em julho de 1992, na cidade do Recife, onde,em fevereiro de 1916, havia nascido. Os dias finais foram cheios de dor inconsci-ente. Ao seu lado, Moema, a companheira de sempre, sofrendo mais do que elepor ter consciência da fase terminal. Ela encheu o convívio a dois de luz e bonda-de. Foi doação permanente. Nabuco Lopes era um homem no sentido mais am-plo do termo. Praticou o hábito da persistência como razão maior do sucesso.

23A PRAÇA DA INDEPENDÊNCIA FOI POPULARMENTE DENOMINADA Praça da Ca-deia em virtude da localização da penitenciária estadual, cuja presença pareciaser mais forte do que a do próprio Quartel da Polícia Militar, ao ponto de ologradouro ser conhecido, em toda Alagoas, pelo nome do presídio.

Sobrinho do Coronel Anacleto, tinha acesso às dependências da quadraesportiva, que ficava em frente ao quartel e à penitenciária, como também, aocinema e ao cassino dos oficiais. Ali, vivi boa parte da minha infância. Foi umperíodo maravilhoso. Era feliz, sem possuir a consciência da felicidade. O cine-ma, que funcionava às noites de quarta e sábado, era a grande atração, o encon-tro com um mundo fantasioso.

O prédio da penitenciária atemorizava nosso grupo de crianças. Conta-vam-se horrores sobre os crimes dos prisioneiros. Ouvíamos estórias incrí-veis sobre as lutas, as mortes e as torturas que aconteciam nos calabouços doantigo casarão.

Muito tempo depois, compondo o Conselho de Cultura do Estado, noGoverno Lamenha Filho, votei contra sua demolição. Fui voto vencido. A mi-nha idéia era aproveitá-la como museu ou sede da Secretaria de Segurança Pú-blica. Lamentei tivesse sido demolida. Bem ou mal ela foi um dos símbolos deuma fase da cidade de Maceió.

24SILVESTRE PÉRICLES GOVERNA ALAGOAS. ESPÍRITO autoritário, impulsivo e arre-batado, alterna com facilidade suas emoções. Os servidores do Palácio afirma-vam para os íntimos que o Ministro Silvestre Péricles costumava emprenhar pelosouvidos. Extremamente honesto, qualquer pleito que interpretasse interessesescusos levava-o a agredir o solicitante com palavrões. O seu estilo de governarenriquece o anedotário político de Alagoas. Boatos afirmavam que, certa feita,irritado com as críticas dos deputados estaduais que o ameaçavam com umprocesso de impeachment, mandou pichar de merda, por soldados da Polícia Mi-

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litar, as paredes externas do lindo prédio da Associação Comercial no bairro deJaraguá, onde, em caráter provisório, funcionava a Assembléia Legislativa. Con-siderava qualquer comentário contra o governo um insulto pessoal e reagiafuriosamente. Oferecendo um almoço ao Embaixador francês em visita a Maceió,ao ser interpelado pelo diplomata pedindo notícias de um ilustre advogadoalagoano que conhecera no Rio de Janeiro, responde, cometendo uma injusti-ça, pelo simples fato de ser um integrante da oposição: – dando a bunda comosempre. Paradoxalmente, é um bom poeta e excelente filho. Tem verdadeira ido-latria por Dona Constança. Um pedido dela é uma ordem. É a única pessoa aquem prestou total obediência.

Acostumei-me a vê-lo passear, à noite, enquanto brincávamos na PraçaMarechal Floriano Peixoto. Estatura pouco acima da média, cabelos brancos,cenho fechado, transmitia para nós, crianças, um certo temor. Não ousávamosdele nos aproximar.

Candidato a Prefeito de Maceió, em 1965, o Professor Mário Marroquimme leva à presença do Ministro Silvestre Péricles, de quem era muito amigo, emseu apartamento residencial, no bairro de Ipanema, no Rio de Janeiro. O intui-to do querido professor era tentar sensibilizá-lo a nos apoiar. Ele foi muitogentil, afirmando, entretanto, que havia assumido com o Deputado Muniz Fal-cão o compromisso de apoiar o candidato indicado pelo Deputado Federal AriPitombo, dentro da coligação que eles estavam montando para disputar o go-verno alagoano. Eleito, sempre lhe tributei muito respeito.

25A RUA DO COMÉRCIO ERA O GRANDE PONTO de encontro de Maceió. Nelaestavam localizados os bares-restaurantes mais famosos da cidade e as maioreslivrarias. O Cinearte e o grande salão de bilhar imperavam. Papai costumava, nofim da tarde, freqüentar o bar Continental, com um grupo de amigos. Discutia-se de tudo. Política, negócios, futebol, cinema, vida alheia eram analisados eampliados ao sabor das emoções e dos temperamentos. Costumava procurá-lo,juntamente com Divanni, na esperança de que nos pagasse sorvete ou com-prasse revistas em quadrinhos.

Saindo da matinê do Cinearte, visualizo papai conversando com o Profes-sor Guedes de Miranda, considerado a maior expressão intelectual de Alagoas.Político militante, impressionava pelo fulgor de sua personalidade. Cabeleiraesvoaçante, pleno de eloqüência, suas aulas, na Faculdade de Direito,impreterivelmente terminavam em aplausos dos alunos, fascinados pelo brilhodas palavras cheias de conteúdo e força. Boêmio, grande conquistador de mu-

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lheres, admirado pelos homens, lírico, apaixonado pela velha Grécia, possuíacultura aristotélica, embora Platão, com sua república utópica, fosse o modeloa ser seguido. Deputado Estadual, jornalista, advogado, Secretário do Interior,Procurador-Geral do Estado e fundador da Academia Alagoana de Letras, quan-do Interventor Federal, realizou um grande programa de obras, marcando a suapassagem entre os bons administradores do Estado.

Presidiu as eleições de janeiro de 1946, caracterizando a redemocratizaçãode Alagoas, quando foi eleito governador o Ministro do Tribunal de ContasSilvestre Péricles e, para o Senado Federal, o General Goes Monteiro.

Alto, robusto, cabelos brancos, transmitia uma imagem de força eautoconfiança. Deixei-me cativar por sua personalidade dominadora. Fui seueleitor quando disputou uma cadeira no Senado da República.

Assisti a sua posse como Vice-Governador, em 1951, na AssembléiaLegislativa, no Governo Arnon de Mello. Embora tenha exercido importantescargos políticos no cenário alagoano, sempre o considerei mais como Mestredo que como militante da política.

26OS CANDIDATOS A PRESIDENTE DA REPÚBLICA, Cristiano Machado, Brigadei-ro Eduardo Gomes e Getúlio Vargas visitam, em 1950, todas as capitais e ascidades mais importantes do país, levando suas mensagens ao eleitorado. Aostreze anos de idade, possuo mais curiosidade do que preferência.

Cristiano Machado, líder político altamente conceituado em Minas Ge-rais, é o indicado pelo PSD, o maior partido político do país. Candidato doGovernador Silvestre Péricles, colocaram-se centenas de carros de praça, emfrente ao Palácio, à disposição de quem desejasse ir para o aeroporto. Lembro-me de que o número de pessoas era pequeno para tantos automóveis. O moto-rista, praticamente, convidou-me para ir com ele. A impressão que CristianoMachado me transmitiu foi a de um homem elegante, mas muito cerimonioso.Sua candidatura não empolgou a população, fazendo com que a maioria doslíderes do partido apoiassem Getúlio Vargas. O resultado do pleito gerou aexpressão “cristianizado”, o que podia ser traduzido como abandonado peloscompanheiros.

O Brigadeiro Eduardo Gomes, candidato da UDN, era uma figura mítica.Herói da Revolta do Forte Copacabana, em 1922, implantador do Correio Aé-reo Nacional, parecia, aos meus olhos, um artista de cinema. Havia perdido,quatro anos antes, a eleição para o Presidente Eurico Gaspar Dutra. Era o maisbem apessoado. Não consegui chegar ao aeroporto. A comitiva, uma verdadei-

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ra multidão, já se encontrava no Tabuleiro do Martins. Colegiais com bicicletasse destacavam. A elite alagoana o apoiava. Fiquei com o sentimento de queseria o vitorioso.

Getúlio Vargas, indiscutivelmente, era o mais popular. Alcunhado de “paidos trabalhadores” pelo fato de haver implantado a legislação trabalhista noBrasil, havendo sido Presidente e Ditador do País durante 15 anos, era o maisodiado e o mais amado.

Peguei carona em um dos caminhões que já se encontravam lotados, naPraça da Cadeia, onde foi realizado o grande comício. Cheguei a vê-lo de perto.Usava um terno de casimira azul-claro. Não consegui ouvir quase nada do seudiscurso. Era constantemente interrompido por aplausos e gritos de Viva Dou-tor Getúlio. A multidão enfeitiçada chega às raias do fanatismo. Ele foi o vence-dor. Quatro anos depois, suicida-se com um tiro no peito e passa a pertencer àHistória do Brasil. Chorei sua morte.

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V i s l u m b r e

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INGRESSEI NA PREFEITURA AOS DEZESSEIS ANOS. Papai, oficial de polícia refor-mado, lutava com dificuldades financeiras para educar os filhos, atendendo-osnas necessidades de jovens que se julgam homens. A vaga obtida fora a deservente da turma topográfica. Minha função era segurar o enorme guarda-chuva branco que protegia o teodolito e o topógrafo dos fortes raios do sol edos violentos aguaceiros em que se dividem as estações climáticas no Nordes-te. Gostava do trabalho. Era divertido. Passeava de automóvel por toda a cida-de. Identificava-me bem com os companheiros: simples, bondosos e leais. Per-correndo caminhos diferentes na vida, permaneci o mesmo para eles. Sempreos tratei como amigos. Aborrecia-me, apenas quando a camioneta, que pres-tava serviços ao setor, não aparecia; era obrigado, então, a caminhar pelasruas centrais da cidade, carregando a enorme mira. O topógrafo, homem deorigem humilde, porém esforçado, fizera da conquista do título de engenhei-ro civil o grande sonho de sua vida. Ginasiano ainda, já comprara as botasque os seus “modelos” costumavam usar. Caminhava mais rápido com elas.Afirmava-se. Adquiria mais autoridade. As botas passariam, também, a tergrande atração para mim. Sacrificaria o primeiro ordenado e compraria umpar. Armados os instrumentos, estando o topógrafo à distância, vendo algu-ma garota por perto, eu ficava a proceder como se estivesse determinandoalinhamentos, calculando curvas, estabelecendo níveis.

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Cursava, à época, abril de 1953, o segundo ano do curso colegial. Traba-lhando os dois horários, passei a estudar de noite.

2COM A RESPONSABILIDADE DE SERVIDOR PÚBLICO, solicitei transferência do Co-légio Batista para o Guido de Fontgalland. Foi uma mudança da adolescênciapara o mundo dos adultos. Era o caçula de uma turma composta, em sua esma-gadora maioria, de pessoas com mais de trinta anos. O curso noturno, em nos-so Estado, fora uma iniciativa feliz desse homem de Deus e educador emérito,a quem Alagoas tanto deve, o cônego Teófanes de Barros. A idéia, transforma-da em realidade graças a uma vontade férrea, possibilitou que milhares dealagoanos ampliassem seus conhecimentos, melhorassem o seu padrão de vidae se tornassem mais úteis à nossa sociedade. O sucesso levaria outros estabele-cimentos de ensino a seguirem seu exemplo.

A transformação, para mim, foi radical. Amadureci em poucos meses.Perdi a irresponsabilidade feliz da adolescência e meu espírito começou a enve-lhecer no exercício das inúmeras funções que o destino me confiaria. Conquis-tei amizades que, ainda hoje, são gratificantes à minha alma. Recebi várias in-fluências no Colégio Guido; porém, indubitavelmente, a mais profunda foi aexercida pela personalidade invulgar do Padre Teófanes. Fiquei dominado peloseu talento, quando assisti à minha primeira aula de Filosofia, ministrada porele. A amplitude dos conhecimentos, seus dotes de orador e a magia da discipli-na encantaram a minha imaginação. Sacerdote vocacionado para servir à causaeducacional, fundou, além dos Colégios Guido e Élio Lemos, dezenas de giná-sios nos municípios mais importantes do interior alagoano, a Faculdade deFilosofia e o Centro de Estudos Superiores de Maceió.

A bondade de uma alma, que não sabe deixar de atender a um alunocarente, vem trazendo dificuldades e inquietações financeiras ao universoeducativo criado pelo eminente Mestre. Felizmente, tem ao seu lado, nessa faseoutonal, uma criatura maravilhosa que tem sido o seu grande apoio, a sua que-rida irmã, a Professora Teônia. Fui, também, seu aluno, quando fiz o cursosuperior de História. Ela ensinava Geografia Humana. Culta e inteligente, dis-ciplinada, responsável, dominava a heterogeneidade da turma através do talen-to e de uma suave autoridade. Tenho-lhe verdadeira adoração.

3APROXIMO-ME DA PORTA DO GABINETE do Secretário Geral de Administraçãoda Prefeitura Municipal de Maceió. Magro, feições juvenis, alto demais para a

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idade. Não estou apreensivo. Apaixonado por literatura, ledor incansável debiografias de personalidades célebres, aprendi, muito moço ainda, a situar oshomens dentro de suas limitações humanas. Sem o carisma do mito. Origemhumilde, convivendo com filhos de operários, de carroceiros, de trabalhadoresbraçais, mas, estudando nos melhores colégios de Maceió, num esforço enor-me de meu pai, que, só pude avaliar quando adulto, fui colega de filhos da elitede nossa capital. Passei a sentir-me destituído de complexos. Não me considerosuperior a ninguém, mas, também, não me considero inferior.

O contínuo anuncia-me; o Secretário recebe-me, com bondade.– Seu pai já me falou a seu respeito, Divaldo. Você quer deixar a turma

topográfica e trabalhar no serviço burocrático.– É verdade, Doutor Valente. Trabalhando apenas um horário, disporei

de mais tempo para estudar.– Está bem, meu filho. Você vai trabalhar na Diretoria do Pessoal e Material.Foi o meu primeiro contato com o Doutor Manoel Valente de Lima. In-

dependentemente do favor recebido, gostei, de imediato, dele. Homem culto,tranqüilo, transmitia a todos de quem se aproximava uma grande mensagem deafetividade. Jornalista emérito, foi editorialista, durante muitos anos, do Jornalde Alagoas. Político hábil, presidiu a Assembléia Legislativa do nosso Estado,num dos momentos mais difíceis da vida política alagoana.

Nossas vidas se cruzaram várias vezes depois daquele encontro, naquelalongínqua manhã de outubro de 1953. Na Prefeitura, fui promovido de diaris-ta, para mensalista, escriturário, Chefe de Secção, Diretor e Secretário-Geralantes de ser eleito Prefeito. O Doutor Valente foi Diretor de Pessoal e Material,Procurador, Procurador-Geral, Secretário-Geral, Vice-Prefeito e Prefeito. Nogoverno Luís Cavalcante, fui Presidente da Companhia de Armazéns e Silos,Presidente da Central de Abastecimento e Secretário da Fazenda e da Produ-ção. O Doutor Manoel Valente foi Diretor do Serviço Público e ProcuradorGeral do Estado. Durante todos esses anos, foi um dos meus grandes amigos.Foi meu conselheiro e orientador. Devo-lhe muito.

4MANÍACO POR LIVROS, LEIO COM SOFREGUIDÃO. Por falta de quem me oriente,não obedeço a critérios de leitura. Entusiasmo-me por escritores das mais di-versas escolas literárias. Admiro tanto José de Alencar quanto Émile Zola.Machado de Assis e Eça de Queiroz são, para mim, os maiores romancistas dalíngua portuguesa. Deleito-me com Goethe, Tolstói e Victor Hugo. Vivo aven-

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turas inesquecíveis, com Alexandre Dumas e Walter Scott. Torturo-me comDostoievski. Amo as belas parisienses com Guy de Maupassant. Conquisto aEuropa com Napoleão. Luto pela libertação das Américas com Bolívar, Wa-shington, San Martin e O’Higgins. Participo da campanha abolicionista comJoaquim Nabuco. Consolido a independência brasileira com Caxias e Rio Bran-co. Aprendo a distinguir o estadista do chefe de Estado comum, através deJefferson, e Bismarck e José Bonifácio.

Os livros são, a meu ver, a fonte de tudo de bom e de belo. Nos momen-tos de frustração, de tédio, de perseguições, apóio-me sempre neles.

Adquiro uma melhor visão da vida e uma noção real das coisas e doshomens. Passo a vê-los dentro dos dimensionamentos humanos. Não tentomodificar as pessoas; aceito-as, com as virtudes e os defeitos inerentes à perso-nalidade de cada uma. Torno-me compreensivo. Destituído de comportamen-tos de superioridade ou de inferioridade sou, geralmente, estimado por todoscom quem convivo.

5PERMANEÇO OITO MESES NO SERVIÇO TOPOGRÁFICO da Prefeitura de Maceió.Transferido para a Divisão de Pessoal e Material, continuo extranumerário-diarista, mas exercendo a função de auxiliar de escritório. Conseguira duas gran-des vantagens: trabalhar apenas um horário e ter um aumento salarial, de vintee dois, para vinte e seis cruzeiros diários.

Devo a transferência e o aumento à bondade do Doutor Manoel Valente.Jamais esqueceria seu gesto. Muito anos depois, retribuí a gentileza. Eleito Pre-feito, tomando conhecimento de que sua filha concluíra o Pedagógico e estavacursando Filosofia, sabendo que a municipalidade estava precisando de profes-soras, contratei-a.

Cultuo a gratidão e a lealdade como as mais nobres das virtudes. Sei queesse raciocínio afeta a moral política. Entretanto, sempre advoguei que a políti-ca, a exemplo do que ocorre com qualquer outra atividade humana, pode edeve ser exercida com dignidade. Considero derrotas as vitórias que sãoalcançadas através de traições. O ingrato, o traidor, o falso, são para mim osmais repelentes representantes da espécie humana.

Dentro de pouco tempo, aprendo todo o serviço da Divisão. Não recusotrabalho. Conquisto o respeito do chefe, Bráulio de Freitas Cavalcante, e a ami-zade dos colegas.

Sinto-me feliz. Residindo com meus pais, o pequeno salário, adicionado aoque recebo como professor particular de matemática, atende às minhas despesas.

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Concluo o curso colegial e preparo-me para o vestibular da Faculdade deCiências Econômicas. Aprovado, o Diretório Acadêmico convida-me para pro-fessor do cursinho pré-vestibular. Alargo o círculo de relacionamento. Torno-me um dos mais populares alunos da escola e sou eleito Diretor da UniãoEstadual de Estudantes.

6A PRIMEIRA VEZ EM QUE O VI FOI QUANDO, mensalista da Prefeitura de Maceió,prestava serviços no Tribunal Regional Eleitoral no pleito de 1954. O núme-ro de pessoas que desejava tirar ou transferir títulos era enorme. As depen-dências do Tribunal encontravam-se totalmente tomadas por aqueles que pre-tendiam ser eleitores, e a multidão fica eletrizada. O Deputado Federal FreitasCavalcante, candidato ao Senado da República, entra na sala. Todos queremabraçá-lo e cumprimentá-lo. E a todos ele cumprimenta e abraça. Mais gordodo que magro, sorriso largo, voz tonitruante, causou uma forte impressão noadolescente de dezessete anos. Talvez, naquele instante, atraído pelo magne-tismo que sua personalidade irradiava, tenha nascido, no meu subconsciente,a chama que me levaria às lutas políticas, a mais dominadora e apaixonantedas aventuras humanas.

O orador fluente e batalhador incansável, de temperamento apaixonado,dedicando-se por inteiro às causas que abraçava, era o mais popular dos líderesda União Democrática Nacional, em Alagoas. Os analistas políticos da épocacontam que, se Antônio de Freitas Cavalcante houvesse sido candidato ao go-verno naquela oportunidade, a história do nosso Estado teria sido diferente.

Advogado, formado pela tradicional Faculdade de Direito do Recife, jor-nalista em Salvador, Deputado Estadual, Deputado Federal em duas legislaturas,Senador da República, Ministro e Presidente do Tribunal de Contas da União,homem do mundo, jamais se separou de suas origens penedenses. Onde querque se encontre, na Europa, na Ásia, nos Estados Unidos ou na África, Penedomarca seus confrontos e limita suas emoções.

7O BRASIL ESTÁ TRAUMATIZADO. Escândalos provocados pela corrupção orga-nizada por auxiliares, que traíram a absoluta confiança de Getúlio Vargas, le-vam o velho presidente ao desencanto do poder e ao suicídio. A comoção éenorme. A imensa maioria das camadas mais brilhantes da população, conside-rando Getúlio uma espécie de pai dos pobres, revolta-se e surgem conflitos em

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várias regiões do país. Os líderes da UDN, combatendo sistematicamente oGoverno Vargas, são responsabilizados por seus adversários pela morte doadorado homem público.

O Governador Arnon de Mello, além de udenista, tem motivos de ordempessoal contra Getúlio Vargas. O seu sogro, Lindolfo Collor, fora exilado du-rante o Estado Novo. Político hábil, consegue neutralizar a ação dos inimigos,prestando todas as homenagens fúnebres que o ilustre morto merece. Nãoexistiram tumultos políticos, em Alagoas, naqueles dias difíceis que sucederamao 24 de Agosto de 1954. Foi uma das poucas exceções.

Arnon de Mello é um realizador. Jovem, em virtude de dificuldadesfinanceiras na família, enfrenta o viver na cidade grande. Procura os amploshorizontes do Rio de Janeiro como palco da concretização de seus anseios.Havendo trabalhado no Jornal de Alagoas como colaborador, tenta O Jornal,órgão primeiro dos Diários Associados sob o comando do singular AssisChateaubriand. É o período áureo do jornalismo-aventura. Colega de DavidNasser, João Calmon, Carlos Lacerda, Samuel Wainer, Jean Manzon,Austregésilo de Athayde, Rubem Braga, Joel Silveira e tantos outros, que fize-ram a epopéia da imprensa brasileira. Recebe a missão de cobrir a visita doMinistro Lindolfo Collor a Portugal. A viagem é feita de navio. Durante alonga travessia do Atlântico, o envolvente e bem-apessoado jornalista con-quista o coração da filha do Ministro. O casamento de Arnon de Mello comLeda Collor acontece em Lisboa. Voltando ao Brasil, divide suas atividadesentre o jornalismo e uma imobiliária. Consegue formar um sólido patrimônio.Candidata-se, em 1950, a Deputado Federal e empresta o nome, como candi-dato ao governo, pois nenhum líder de grande expressão eleitoral da oposi-ção aceita ser candidato contra o advogado Luís Campos Teixeira, apoiadopelo Governador Silvestre Péricles. A violência das lutas políticas enfraquecea liderança dos Goes Monteiro. Surpreendentemente, Arnon é eleito, comexpressiva votação, Deputado Federal e Governador de Alagoas, e o médicoEzequias da Rocha, desconhecido da maioria do eleitorado, derrota o todo-poderoso General e Senador Pedro Aurélio de Goes Monteiro, que buscava areeleição. Personalidade concentradora, Arnon de Mello não divide o podercom os companheiros de campanha, criando o seu próprio espaço no cenáriopolítico alagoano. O Deputado Federal Rui Palmeira explica a situação, comironia, para os correligionários do interior do Estado, que o procuram, comperplexidade, no escritório da Rua do Comércio, 400.

– Doutor Rui, estamos em cima? – É verdade, estamos em cima, enrabados, no torno.

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8MUNIZ FALCÃO, PERNAMBUCANO DE ARARIPINA, é transferido da Delegacia doMinistério do Trabalho, de Sergipe, para Alagoas. Exerce as funções com lisura edenodo. Empenha-se em defender os fracos e oprimidos em todas as questõestrabalhistas. Conquista a admiração e a estima das lideranças sindicais. O MinistroSilvestre Péricles pressente o potencial político da popularidade do Delegado doTrabalho. Convida-o para compor a chapa de Deputado Federal. Eleito comrelativa facilidade, permanece fiel às suas origens. Apresenta vários projetos de leibeneficiando os trabalhadores brasileiros. Fortalece a imagem de defensor dospobres. Oposicionista convicto, reelege-se em 1954 e consegue o apoio das for-ças que combatem o Governador Arnon de Mello e daquelas que não concor-dam com o candidato da UDN, disputando o governo.

Afrânio Lages é considerado por muitos o maior civilista de Alagoas. Oescritório de advocacia do professor é um dos mais rentáveis do Estado. Osusineiros, os grandes proprietários, os donos das indústrias têxteis, os banquei-ros, os maiores comerciantes buscam seu talento jurídico. Integrante da UniãoDemocrática Nacional, preside o Partido pelo respeito que inspira e graças aosconhecimentos de Direito Eleitoral que possui. Conselheiro do GovernadorArnon de Mello, é indicado como candidato à sua sucessão, pelos udenistasortodoxos, que temem o lançamento da candidatura do bacharel José Afonso,apelidado de primo feliz, em virtude do enorme prestígio que desfruta junto aogoverno. Iniciada a campanha, o ilustre mestre é rotulado de candidato dosricos e inimigo dos pobres. Abandonado por alguns líderes, vítima de mentirase infâmias, perde a eleição.

9MUNIZ FALCÃO, AO SE ELEGER, herda os ódios e os conflitos de uma socieda-de dividida. A luta política transforma-se em luta de vida e morte. Famílias, háanos, digladiam-se nas alternâncias do poder. Vendetas familiares ensangüen-tam o solo alagoano.

Ademário Dantas, chefe político de um pequeno município do baixo SãoFrancisco, primário, porém muito inteligente, define a situação com proprieda-de, ao discursar num comício pedindo votos para o seu candidato:

– Meus amigos, se o Doutor Afrânio ganhar, ói nós neles! – e faz o gestodo ato sexual.

– Agora, se o Doutor Muniz ganhar, ói ele em nós! Repetindo o gesto, faz o discurso mais eloqüente da noite, porque todos,

amigos e inimigos, entenderam.

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A Assembléia Legislativa de Alagoas é uma praça de guerra. Sexta-feira,13 de setembro de 1957. Trincheiras, formadas por sacos de areia da praia,protegem a Mesa Diretora. O Governo Muniz Falcão perde a maioria noLegislativo, quando condiciona o aumento dos salários do funcionalismo aoreajuste da alíquota do imposto de vendas e consignação, de 2,5% para 4%. Osestudos feitos revelaram que 0,5% seria suficiente para atender ao aumento dadespesa com pessoal. O governador insiste. Cria-se o impasse.

No dia da votação, a Assembléia é invadida por uma multidão de funcioná-rios, insuflados pelos governistas para hostilizar os deputados da oposição. Asautoridades policiais do Estado não são encontradas para oferecer a garantianecessária ao livre funcionamento da Augusta Casa. A Assembléia declara-se emsessão permanente. Intermediários tentam reaproximar o governador do Presi-dente do Poder Legislativo. O encontro acontece no salão vermelho do PalácioFloriano Peixoto. O Deputado Lamenha Filho, respeitado chefe político da re-gião norte do Estado, tem a hombridade de comunicar sua posição contrária àorientação do governo. O diálogo fica difícil. Os dois líderes jamais voltariam a seencontrar. As paixões políticas incendeiam-se com o assassinato do médico edeputado udenista Marques da Silva, na principal praça de Arapiraca, o maiormunicípio do interior alagoano. O professor Afrânio Lages, emocionado, ao dis-cursar no funeral do inditoso parlamentar, profere um grito de basta, na expres-são – É hora de parar!, iniciando inconscientemente o processo do impeachment.

A Casa está dividida em dois blocos. Vinte e dois deputados pretendemvotar o afastamento do governador Muniz Falcão. Treze juraram que o impe-dimento não seria votado. O Deputado Humberto Mendes, sogro do gover-nador, declarara à imprensa que a votação só aconteceria passando por seucadáver. Exaltados, os parlamentares estão armados de revólveres e metra-lhadoras. O tiroteio tem início: vários feridos e um morto. Humberto Men-des honrou a palavra: o impeachment somente foi votado depois de sua morte.O Parlamento alagoano é o único do mundo, onde os seus pares trocaram tirosno plenário.

10GANHANDO NA JUSTIÇA O DIREITO DE REASSUMIR O GOVERNO, Muniz Falcãovolta muito fortalecido, em termos populares.

Apoiando, em 1958, o Ministro Silvestre Péricles para o Senado da Repú-blica, derrota o ex-governador Arnon de Mello.

As forças políticas, que lhe dão sustentação, desagregam-se nas eleiçõesde 1960. O Deputado Federal Abrahão Moura é o nome mais forte nas hostes

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governistas à sucessão estadual. O Senador Silvestre Péricles não concorda e selança candidato. O Deputado Federal Ari Pitombo, do Partido Trabalhista, tam-bém postula o governo.

A UDN apóia o Deputado Federal Luís Cavalcante, candidato pelo Par-tido Libertador, e indica para compor a chapa, o Deputado Estadual TeotônioVilela. A divisão possibilita a vitória. O Major Luís perde a eleição no interiorpara Abrahão Moura e, na capital, para Silvestre Péricles, mas, na soma dosvotos, ele e Teotônio são os vencedores.

11APROVADO EM PRIMEIRO LUGAR NO VESTIBULAR da Faculdade de Ciências Eco-nômicas, dotado de um razoável poder de comunicação, professor de matemá-tica em cursos preparatórios para ingresso em escolas superiores, comecei a seralvo de convites para encontros da Juventude Universitária Católica e reuniõesde Diretório Acadêmico. Eleito diretor da União Estadual dos Estudantes deAlagoas, passo a participar de Congressos Estaduais e Nacionais, da classe es-tudantil, e a conviver com parlamentares, membros do governo e Ministros deEstado. Foi uma experiência maravilhosa. Adquiri a noção exata da grandeza edas limitações do nosso país e dos homens que conduziam o seu destino.

Juscelino Kubitschek presidia o Brasil e Muniz Falcão governava Alagoas.As lideranças estudantis tinham acesso fácil aos seus gabinetes de trabalho. APetrobrás havia sido criada, há pouco tempo, e o nosso Estado vivia a euforiada descoberta de petróleo no Jequiá da Praia. À época, a palavra de ordem,que devíamos transmitir aos colegas de nossas faculdades era a de combateros usineiros, rotulando-os de sanguessugas sociais e exploradores do povo, edefender a diversificação da economia, apoiada no petróleo recém-descober-to, para enfraquecer a influência dos grandes proprietários da sociedadealagoana.

Claro que existiam alguns produtores de açúcar com quem dialogávamos,mas queríamos, apenas, seu apoio para derrotarmos o que eles simbolizavam.

Adquirindo maior experiência de vida, mais conhecimentos através doestudo e de leituras permanentes, analisando as contradições do mundo capi-talista e marxista, assistindo a acordos e conflitos de cúpula, ditados apenaspelo anseio da conquista do Poder a qualquer custo, comprovando que ateoria, na prática, é outra, passei a descrer de todos aqueles que se julgamdonos da verdade.

Guardo recordações verdadeiramente inesquecíveis das lutas políticas es-tudantis que travei. Foram elas que me conduziram às campanhas partidárias.

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Os conferencistas que causaram mais forte impressão em meu jovemespírito, foram Pedro Calmon e Roland Corbusier. Recebi suas mensagens noauditório da Universidade Rural do Brasil, no Rio de Janeiro. Fiquei dominadoe, por que não dizer, esmagado pela cultura dos dois brilhantes Mestres.

Juscelino Kubitschek, Presidente da República e Muniz Falcão, Governa-dor de Estado foram os primeiros com quem dialoguei. Juscelino envolvia atodos de quem se aproximasse, com uma simpatia irresistível. Tinha um sorrisocativante. Com gestos e palavras amáveis, conquistava facilmente. Embora ha-vendo conversado com ele, em grupo, a impressão que ainda hoje possuo, é ade que se dirigia especialmente a mim. Foi um predestinado, um político maior.Muniz Falcão era atencioso e distante. Imagino que jamais permitia pequenasintimidades a ninguém. Líder carismático, era um cavalheiro no tratar e novestir, possuía uma elegância londrina.

Participei de uma passeata reveladora da rebeldia romântica da juventu-de. Os Deputados Estaduais, em 1959, reajustaram seus subsídios em 100%,passando-os de dezesseis para trinta e dois mil cruzeiros. Foi um escândalo.Não me recordo bem de qual fora o percentual de aumento do funcionalismopúblico, mas deve ter sido bem menor do que o dos deputados, porque arevolta era grande e geral. As lideranças estudantis levantam a bandeira doprotesto. Organiza-se uma passeata que culminaria em uma concentração naPraça Dom Pedro II. O Presidente da Assembléia Legislativa solicita prote-ção policial ao Chefe do Executivo. Uma companhia da Polícia Militar posta-se na Rua 2 de Dezembro, para impedir que os estudantes e os agitadoresprofissionais, que sempre se infiltram nos movimentos de massa, chegassemà porta da Assembléia. Saímos do prédio da Perseverança, na Rua João Pes-soa, onde funcionava a Escola de Economia. Fomos até a Praça FlorianoPeixoto, percorremos toda a Rua do Comércio e chegamos diante dos polici-ais. Improvisa-se um grupo de interlocutores para negociar com o oficial datropa. Sou um deles. O comandante pede que nos dispersemos, pois a ordemque recebera era para não passar ninguém. A praça estava interditada. Afir-mamos que passaríamos de qualquer maneira. Ele retrucou, já aos gritos, quenão ficaria desmoralizado. Começamos a cantar o Hino Nacional e avança-mos. O oficial dá o grito de comando de “escalar baioneta”. O ruído é desa-gradável para quem tem um fuzil apontado para o seu estômago. A tensão éperceptível. Durante alguns segundos, que pareceram durar a eternidade, osestudantes e os soldados ficaram se fitando. Marquei, bem, a fisionomia doque se encontrava diante de mim. Provoquei-o, xingando sua genitora. De-pois do passa-e-não-passa, o bom senso predominou. Voltamos e fizemosnossa concentração na porta da Faculdade de Direito. Cada orador se esme-

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rava em falar mal do governador, da polícia e dos políticos a quem chamáva-mos, todos, de corruptos.

Ficamos em greve. A cidade estava agitada. Os deputados mandam emis-sários. O único que aceitamos receber foi o líder da oposição, Teotônio Vilela.Explicou que o Poder Legislativo é o pulmão de uma sociedade. É por ondeela respira, sendo perfeitamente compreensível encontrarmos, nas casaslegislativas, o culto e o inculto, o trabalhador e o preguiçoso, o preto, o bran-co, o índio, até o honesto e o desonesto, porque o legislativo é o espelho ondea sociedade se reflete. Ele nada mais é do que uma fotografia do corpo socialonde atua. Teotônio vivia a sua fase boêmia. A conversa prolongou-se pelamadrugada. A grande estima que sentia pelo brilhante alagoano começounaquela noite e solidificou-se ao longo do tempo e de cinco campanhas elei-torais.

Governando Alagoas pela vez primeira, visito oficialmente o municípiode Igaci. Qual não é minha surpresa ao reconhecer no delegado, que me pres-tava as honras militares, o soldado que armara o fuzil diante de mim. Fiqueiimaginando se, no nervosismo daquele instante, e provocado pela irreverênciade um estudante, tivesse acionado o gatilho de sua arma. O sargento deve terestranhado a gentileza com que foi tratado pelo governador.

12A CASA DO ESTUDANTE UNIVERSITÁRIO, mais conhecida pela sigla CAEU,funcionava em um prédio alugado na Rua Comendador Leão, em Jaraguá. Amaioria dos seus moradores é de baianos. No início da Universidade Federal deAlagoas, um grande número de estudantes veio de Salvador para fazer vestibu-lar de engenharia e medicina em Maceió. Inteligentes e insinuantes, influen-ciam a política e os desportos universitários. O mais estimado deles é ArízioBorges; o mais popular junto às mulheres, é Aracê Prudente; o melhor atleta,Carlos Paes. Vários deles se casam com alagoanas e integram-se em definitivo àvida do Estado.

A CAEU foi fundada por José Haroldo da Costa, eloqüente e talentosoacadêmico de Direito, presidente da União Estadual dos Estudantes de Alagoas.O baiano Clóvis Soares, secundarista de engenharia e dirigente da Casa doEstudante, atende João Tenório que vinha insistindo em conseguir uma vaga. Éinterpelado por Arízio:

– Clóvis, você é um sacana muito grande. Ao invés de deixar a vaga paraum aluno que tivesse dificuldade financeira para pagar uma pensão, coloca ummilionário, filho de usineiro.

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– Seu comunista maluco! Com o João morando aqui, diminuiremos asnossas despesas. Ele já nos trouxe um saco de açúcar e trará tantos quantosprecisarmos. Você sabe que não tínhamos mais camas. Pois bem: comproucama e guarda-roupa, que ficarão para a Casa quando terminar o curso. E,tenho certeza, será também ponto de apoio quando nossas mesadas atrasarem.

Recebido friamente em conseqüência da campanha que Arízio fizera, João,destituído de vaidade, conquista rapidamente os colegas. O próprio Arízio, ex-celente caráter, reconhece suas virtudes:

– Confesso que o antipatizava. Pensei que você fosse um desses “filhosda puta” de pai rico, julgando-se dono do mundo, imaginando que poderia“cagar” na humanidade. Quero dizer que errei. Você é um cara legal.

Abraçam-se. É o início de uma sólida amizade. Comemoram com umafarra homérica, na pensão da Dina, o” puteiro” das melhores mulheres da “zona”de Jaraguá. O “Nego” Bonifácio Cavalcante, conhecido, não por ser ótimoaluno de Medicina, mas pelos porres que tomava nas noites de sábado, é o maisentusiasta. O companheirismo transforma em irmãos aqueles rapazes vindosdas mais diversas regiões do Nordeste.

13LAURO FERNANDES, PROPRIETÁRIO DOS RESTAURANTES Beiriz, Deodoro, Acapulcoe Gaúcho, os melhores de Maceió, atendendo à proposta da Diretoria da UEEA,concorda em oferecer o coquetel na solenidade em homenagem à Miss NoéliaCavalcante, estudante de Odontologia, em troca da publicidade e patrocínionos convites e nas faixas espalhadas pela cidade, anunciando a recepção. Cum-pre a palavra, porém os líderes estudantis não ficam satisfeitos. Considerampequena a quantidade de salgadinhos e refrigerantes. A raiva maior foi pelaausência de bebidas alcoólicas.

Planeja-se uma vingança. Como a Faculdade de Ciências Econômicasfunciona à noite, tem sua sede escolhida para o encontro dos conspiradores. A“Operação N”, de Noélia, consiste na ocupação da Churrascaria Gaúcha, amais luxuosa da capital alagoana.

Grupos, de dois em dois e de três em três, chegam, espaçadamente, aorestaurante. É uma terça-feira de junho. O elegante “maître” Carlos alegra-secom o inusitado movimento. A casa estava vazia. Gentilmente, conduz os fre-gueses às mesas, separadas por divisórias, no estilo dos restaurantes norte-ame-ricanos. Aos poucos, todas são ocupadas.

Os uísques e os vinhos mais caros são pedidos. Alguns, exagerados, be-bem champanha francês. Come-se do bom e do melhor. A madrugada deter-

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mina o fim do lauto banquete. O baiano Alírio, estudante de engenharia, previ-amente designado, pede a palavra e, com a eloqüência estimulada pelo álcool,agradece com adjetivos emocionantes, a “bondade” do “seu” Lauro em ofere-cer o magnífico jantar. Aplausos e gritos de “muito bem!” fazem-se ouvir. Omaître e os garçons, esperando um grande apurado e gordas gorjetas, ficamlívidos. Prudentemente, decidem não enfrentar quase cinqüenta universitários.Lauro Fernandes jamais voltou a fazer negócio com entidades estudantis.

14NOS SOBRADOS DA RUA SÁ E ALBUQUERQUE, próximos do Porto de Jaraguá,construídos no início do Século XX por comerciantes portugueses que enri-queceram com a exportação de açúcar e importação de produtos europeus,encontram-se os melhores cabarés de Maceió. Durante o dia, é intenso o movi-mento nos armazéns, nos estabelecimentos comerciais grossistas e nas agên-cias bancárias. O majestoso prédio da Associação Comercial é um símbolo daprosperidade vivida nas primeiras décadas dos anos 1900.

À noite, a avenida transforma-se em festa. Centenas de belas mulheres,vindas do interior de Alagoas e das capitais dos Estados vizinhos, desfilampelos enormes salões dos sobrados, buscando e oferecendo ilusões. Bolerosmexicanos e tangos argentinos se fazem ouvir, acima da algazarra, através dosconjuntos musicais. Marinheiros de todas as partes do mundo afogam, noálcool e no corpo das “raparigas”, as saudades das famílias e das paisagens dopassado.

O poeta Christiano Nunes Fernandes, depois de três doses de rum montila,embevecido pelo lamento do piano, define para os companheiros de mesa, napensão São Jorge, da Nega Ana, o espírito da zona portuária:

– O dia é a luta antropofágica pela sobrevivência. E a noite é um poemade conciliação.

A competição entre os cabarés Tabariz, Alhambra, Night and Day e SãoJorge evidencia-se na seleção de mulheres, músicos e bebidas. Prefeitos do in-terior, fazendeiros do sertão, fornecedores de cana, grandes comerciantes, dire-tores de repartições públicas e funcionários do Banco do Brasil são os melho-res clientes. Para eles, estão reservadas as mais novas e belas mulheres, o uísquenão-falsificado, o legítimo vinho do Porto – considerado o estimulante dosfracos e dos tímidos – os quartos com banheiros privativos.

Existe, entretanto, uma clientela privilegiada: os Deputados Estaduais.Luís Coutinho é o mais assíduo; sua entrada é sempre triunfal. Homem forteno Governo Muniz Falcão – seu voto fora decisivo à vitória do governador, no

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processo de impeachment –, é cercado de pessoas interessadas em favores gover-namentais. O motorista Curau e o perigoso pistoleiro Zequinha do Padeiro,seus fiéis guarda-costas, estão atentos a qualquer suspeito que se aproxime doparlamentar.

Claudionor Lima, presidente da Assembléia Legislativa, verdadeiro se-nhor feudal de Arapiraca, transmite uma imagem de poder e de vigor físico.Corajoso, acertada ou erradamente responsabilizado pelos inimigos por várioscrimes de morte em seus domínios políticos, é mais temido do que estimado.

Cleto Marques Luz é o conselheiro, o mediador, a prudência, a sensatez.Participando das loucas noitadas dos colegas nos cabarés de Jaraguá, causaestranheza aos outros parlamentares, por possuir uma personalidade tão anta-gônica.

Aroldo Loureiro, boêmio por temperamento, gosta da noite pela noite.Embora pertencente à classe social dos usineiros, filho de ex-governador deEstado, não é um esnobe. Pelo contrário, confunde-se com o homem comum,sente-se bem no meio da massa, independentemente de campanhas eleitorais.Rico, pródigo para com todos aqueles que precisam de sua ajuda, é muito po-pular onde quer que se encontre. Valente, jamais fugiu de uma boa luta.

João Tenório, em companhia de outros universitários da Casa do Estu-dante, encontra-se no Tabariz, pertencente ao “Seu Biu”, também chamado deMossoró, por ser amante da Nega Mossoró, uma mulata alta, bonitona, famosapor não aceitar desaforo de ninguém. Orgulha-se de nunca haver dado um tapaem algum engraçadinho que a tenha provocado, para não derrubá-lo.

É uma madrugada de sábado. A casa está cheia, as mesas repletas. Omaestro e compositor Antônio Paurílio sublima-se ao piano, tocando o boleroAnsiedade. É sua obra-prima. Compusera-o embriagado de paixão. É um eter-no apaixonado. Costuma afirmar que “só o amor é permanente; a paixão épassageira”. No momento, está apaixonado por Laura, bela pernambucana deGaranhuns, que indiferente ao amor do maestro, dança totalmente entregueaos braços do Doutor Dirceu Falcão, quartanista de Medicina, que faz jus aotítulo de doutor, pela excepcional habilidade de cirurgião e por tratar, de graça,todas as prostitutas doentes que o procuram. É muito querido. Recebe favoresespeciais.

Luís Carlos Falcão, delegado do Segundo Distrito, filho do “Senador”Hildebrando Falcão, revela suas qualidades de exímio dançarino. Farristahomérico, é tudo, menos um chefe de polícia. Alegre, descontraído, mulheren-go, boa prosa, compreensivo com a fragilidade humana, quando chega à dele-gacia, manda soltar, imediatamente, todos os vagabundos que a ronda policialprendeu.

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O Deputado Claudionor Lima é o primeiro a entrar. Logo depois, che-gam os Deputados Luís Coutinho e Cleto Marques, que haviam demorado umpouco, para atender a um eleitor, desejoso de uma apresentação junto ao Pre-feito Abelardo Pontes Lima. Cleto fora vereador, por dois mandatos, em Maceió.

“Seu Biu” desmancha-se em amabilidade. – Vou providenciar umas mesas! – Queremos de costas para a parede. Não precisava da recomendação. “Seu Biu” bem sabe que os deputados

precisam ter suas costas resguardadas. A luta pelo poder provoca muitas inimi-zades.

O Delegado Luís Carlos convida os parlamentares para sua mesa. Elestinham jantado no Bar do Tino, uma peixada regada a muito uísque e cerveja.Estavam bastante eufóricos.

A idéia, não se sabe de quem partiu. Pelo menos ninguém a assumiu. Averdade, entretanto, é que o grito de ordem foi dado pelo presidente da Assem-bléia, Claudionor Lima, em alto e bom som:

– Todo mundo nu! Vamos dançar! O Delegado Luís Carlos Falcão, entusiasmado, repete a ordem e manda

os guardas civis fecharem as portas da boate. Os estudantes, alegremente, são os primeiros a se despirem. Bonifácio

me diz: – Agora é que vai ficar bom! Os agentes de polícia obrigam o cumprimento da ordem: – Vamos, vamos logo, tirem a roupa! “Seu Biu” manda o conjunto tocar um samba, para esquentar o ambiente.

Doutor Goes Ribeiro, Procurador da República, boêmio por convicção, é umdos mais animados. A alegria é geral. Ninguém é de ninguém. Dança-se até o solraiar. Sempre me lembraria daquela noite, como a da maior farra de minha vida.

15O DESNÍVEL SOCIAL EM MACEIÓ é bastante definido entre os freqüentadoresdos cabarés de Jaraguá. Os da Rua Sá e Albuquerque representam a elite e aclasse média. Os do Duque de Caxias, a pobreza, caracterizada entre os traba-lhadores do Cais do Porto, operários, pequenos funcionários e desempregados.

O “Duque de Caxias”, popularmente conhecido como Duque, não é umcabaré. São três casas de dança: o Duque, propriamente dito, o Meu Cantinhoe o Lanterna Verde, também chamado de Verde. Em torno delas, vários barese botecos vendendo toda espécie de aguardente, algumas bodegas e vilas

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residenciais com dezenas de pequenos quartos onde as “meninas” recebem afreguesia. Ninguém sabe explicar o porquê do nome Duque de Caxias. Se erauma homenagem ao grande soldado, ou uma crítica de algum anarquista enge-nhoso que tinha horror ao símbolo da ordem e disciplinamento do Exércitobrasileiro. O fato é que o nome ficou.

Embora não existindo nenhuma proibição legal, dificilmente osfreqüentadores atravessam as poucas centenas de metros que separam os doislogradouros. A exceção é feita, apenas pelos estudantes e por um ou outroboêmio isolado.

Visito, por curiosidade, o Duque. Circulando pelas ruas enlameadas, souprovocado por mulheres que, em troca de pequenas importâncias, me ofere-cem todos os prazeres sexuais. Afasto-me sorrindo. Além do receio de doençasvenéreas, elas não me despertam a menor atração. Arízio Borges mostra ummulato alto e robusto cercado de admiradores.

– Aquele é o Mário Braga. É um dos maiores desordeiros da “zona”.Está vendo aquelas cicatrizes que tem nos braços? São cortes das peixeiras queele tem quebrado nas inúmeras brigas em que já se envolveu.

Observo que Mário Braga se orgulha das cicatrizes. Representam troféusde sua valentia. Dirigimo-nos para o “Meu Cantinho”. O forró está animado. Asanfona do cego João Oliveira destaca-se no quarteto musical. Reinaldo tira acor-des maviosos no violão; Fernando Paurílio, na bateria, e Ascendino, no pandeiro,cantam baiões e xaxados do grande mestre Luís Gonzaga. Os pares rodopiam aosom do ritmo gostoso. Lula Becker e Rafael Cajueiro, da turma da Praça Deodoro,oferecem um show de gafieira. Tenho minha atenção despertada pelo lindo rostode uma menina-moça de cor morena, que dança, feliz, totalmente entregue aoprazer da música. O homem que a tem nos braços é um mero figurante. Ele nãoexiste. O que existe é a embriaguez do ritmo que se apodera do seu corpo magroe bem proporcionado. O conjunto pára. Ela, afogueada, solta uma linda gargalha-da, libertando-se do transe. Sai da sala apinhada, em busca do ar fresco da noiteúmida de junho. Sigo-a, entabulo conversa.

– Cansada? – Não. Eu adoro dançar. – Você, realmente, dança muito bem. Sua alma transporta-se para a música. Ela sorri, agradecida. – É a primeira vez que alguém me diz isso. – Como é o seu nome? – Maria Helena. Gritos e correria. Bastinho, o valentão mais estimado pelas prostitutas de

Jaraguá, briga sozinho contra três homens. Possui a agilidade de um gato. Nin-

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guém consegue segurá-lo. Cada murro que ele acerta é uma queda. A patrulhada Polícia Militar interrompe a luta.

– O que foi que houve aqui, Bastinho? – pergunta o sargento. Quem responde, chorando, é Zefinha, uma das veteranas do Duque. – Aquele “viado xexeiro” me comeu, não pagou e ainda me deu uns

tapas. Também, arranhei o rosto dele. O Bastinho foi quem me salvou. Oscolegas vieram socorrê-lo, e Bastinho deu neles todos.

Os policiais tomam o dinheiro, pagam a Zefinha Lindo Olhar, como éconhecida, por possuir um olho de vidro; ficam com o resto e levam os vaga-bundos para o xadrez do Segundo Distrito.

16A UNIVERSIDADE RURAL, SITUADA NO QUILÔMETRO 47 da Rodovia PresidenteDutra, que interliga o Rio de Janeiro a São Paulo, é uma maravilhosa fazendacom um belo conjunto de prédios, construídos no estilo colonial mexicano.Milhares de estudantes, vindos de todas as regiões do país, dirigem-se para oauditório principal do campus universitário. É inverno. O intenso frio de julhode 1959 obriga os jovens a usarem agasalhos de lã. As mulheres, lindas e ele-gantes, embelezam o congresso nacional promovido pela UNE.

No alojamento da delegação de Alagoas, apresso os amigos GeraldoVergetti e Wolney Wanderley:

– Vamos embora, pessoal, já estamos atrasados! Não arranjaremos maislugar para sentar! Teremos de ficar em pé!

O imenso auditório está literalmente lotado. A sessão solene, de aberturado Congresso, é presidida pelo Magnífico Reitor da Universidade do Brasil,Professor Pedro Calmon. Oradores se fazem ouvir.

Hermann Baeta, aluno da Faculdade de Direito, é quem fala por Alagoas.As teses socialistas predominam. Defendendo-as, Baeta, que é um bom ora-dor, consegue muitos aplausos. A grande estrela da noite, entretanto, é oProfessor Pedro Calmon. Elegante, cabelos totalmente brancos, cultura enci-clopédica, talento verbal privilegiado, eletriza a multidão de universitários aoencerrar a solenidade. Fala na segunda pessoa do plural, num tom oratórioaltamente formal:

Estudantes do meu país, vos quero assim, inquietos, angustiados por mudanças soci-ais, desejosos de conduzirem a História. Vos quero vanguardeiros da Pátria. Eu vos querorebeldes e românticos!

Palmas ensurdecedoras interrompem o orador. Surpreendo-me, com lá-grimas nos olhos. Transformo o mestre, em ídolo, quando tomo conhecimen-

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to, por intermédio de José Haroldo da Costa, de que ele enfrentara a polícia doRio de Janeiro, que queria invadir a Faculdade de Medicina, na Praia Vermelha,para prender estudantes, colocando-se diante do portão e dizendo, para otruculento sargento:

– Aqui, nesta casa, só se entra através de vestibular. A noite prolonga-se no clube social da universidade. A música, vinda da

orquestra, é suave. Vivem-se os anos dourados. Ânsias de aventuras amorosasdominam a juventude. Encontro-me com uma cearense, de Fortaleza, estudantede enfermagem, na Escola Ana Nery, no Rio. Ambos temos consciência de queo encontro ficará limitado aos dias do Congresso. A Universidade Rural perma-necerá confundida, em minha memória, com as belas feições de Márcia Maria.

Forte impressão, provocada no Congresso Nacional de Estudantes, foi aconferência do Professor Roland Corbusier. Magro, estatura acima da mediana,elegante, dotado de excelente didática, profundo conhecedor de Filosofia e deSociologia, extasiou a platéia com seu talento e poder de comunicação. Senti-me esmagado pelo volume de conhecimentos do conferencista. O discurso doReitor Pedro Calmon havia-me enlevado. O Professor Roland Corbusier res-salta a limitação dos meus conhecimentos. Adquiro a noção de que estouengatinhando, em termos de cultura.

Alagoas conquista a Secretaria-Geral da UNE. Hermann Baeta aceita aindicação. Transfere-se para o Rio de Janeiro e inicia uma brilhante carreira jurídi-ca que o levaria à Presidência Nacional da Ordem dos Advogados do Brasil.

17SEBASTIÃO SANTOS, O SABARARU, VENDERA os cinemas Royal, localizado naRua Dias Cabral, Cinearte, na Rua do Comércio, Rex, na Pajuçara e Ideal, naRua 16 de Setembro, ao grupo Severiano Ribeiro, proprietário da maior cadeiade cinemas do Brasil. Os maceioenses, quando tomaram conhecimento, fica-ram esperançosos de que o poderoso grupo transformasse, pelo menos oCinearte, no melhor cinema da capital alagoana, em uma moderna casa de es-petáculos com tela panorâmica, ar-condicionado, moderno serviço de som ecadeiras acolchoadas.

Hermann Voss já implantara no Cine Plaza, no bairro do Poço, o“cinemascope”, o que fora um grande avanço. Moacir Miranda, ao construir oCine Lux, na Rua Santo Antônio, na Ponta Grossa, quebrara o monopólio dovelho Sabararu.

Os cinemas de Maceió eram calorentos e desconfortáveis. Os ventilado-res, insuficientes, principalmente quando a casa estava lotada. As cadeiras, mui-to incômodas.

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A esperança se transforma em frustração. Os meses passam e nenhumamelhora. Pelo contrário, à época de Sabararu, ele conservava muito bem osseus cinemas e, sempre que possível, fazia alguma benfeitoria. As reclamaçõesaumentam. Os estudantes tomam a si a iniciativa de fecharem o Cinearte comosímbolo de protestos. Tuíta (Nilson de Moura Souza), Chipaca (Francisco Melo)e Saxofone (Alberto Soares) são os líderes do movimento. De início, avacalhamas sessões cinematográficas e, depois, com o apoio da população, organizambarreiras para impedir a entrada de freqüentadores. A empresa foi obrigada afechar o cinema para as necessárias reformas.

Luís Severiano Ribeiro manda um engenheiro do Rio de Janeiro comoresponsável pelas obras. Hábil, bom relações-públicas, aproxima-se dos direto-res da União Estadual dos Estudantes de Alagoas e dos presidentes dos diretóriosdas faculdades. Explica o projeto e informa o andamento da construção. Con-quista a confiança de todos. Antes do prazo estabelecido, os trabalhos são con-cluídos. A reforma corresponde à expectativa da cidade. O cinema é novo, aténo nome: São Luís, em homenagem ao padroeiro da família Severiano Ribeiro.

A avant-première é com o filme Anastácia, a Princesa Perdida. Os convitessão disputadíssimos. É demonstração de prestígio social recebê-lo. A curiosida-de é enorme. As lideranças estudantis são convidadas. Luzia e eu comparece-mos à noite de gala, como bem a definiu a badalada cronista Maria Cândida emsua conceituada coluna diária na Gazeta de Alagoas.

18O CLUBE DOS ESTUDANTES UNIVERSITÁRIOS FUNCIONA sempre aos domingosna cobertura do edifício do Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Empre-gados em Transportes e Cargas, em frente à Praça dos Palmares, no Centro deMaceió. As matinês começam, impreterivelmente, às dezesseis horas e termi-nam com a chegada da noite. A animação é muito grande. São as primeirasfestas, às quais as mulheres alagoanas podem freqüentar desacompanhadas. Umaradiola “hi-fi” toca para as danças. Os discos do pianista Waldir Calmon egravações de músicas românticas feitas na boate Arpège, no Rio de Janeiro, sãoos preferidos. Boleros e fox-trots predominam. Romances começaram e termi-naram naquelas tardes inesquecíveis.

O convite –”Vamos para o CÉU?”–, feito por um rapaz a uma garota,geralmente é acompanhado de um sorriso malicioso, que permite dupla inter-pretação. A aceitação, vinda com a mesma malícia, cria uma atmosfera favorá-vel ao início de um namoro.

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19 JOSÉ HAROLDO DA COSTA CONSEGUE REALIZAR a Festa da Mocidade, em Maceió,sob o patrocínio da UEEA, a exemplo do que a UNE fizera, no Rio de Janeiro.

O dono do Parque Xangai comprometera-se que a entidade teria dez porcento do bordereau, caso conseguisse a isenção das taxas municipais, e o mesmopercentual do apurado no bingo, se a Secretaria de Segurança Pública autori-zasse a realização do jogo. O Prefeito Abelardo Pontes Lima e o CoronelHenrique Oest atendem aos diretores da União Estudantil.

O Parque é instalado na Praça Afrânio Jorge. José Haroldo entrega apresidência da Festa da Mocidade ao acadêmico de Engenharia Gilvan Azeve-do. O Governador Muniz Falcão prestigia, com sua presença, a abertura dosfestejos. A multidão comparece, atraída pela novidade dos sofisticados brin-quedos e pelos shows do Teatro de Revista. Parte da renda a UEEA destinou àsdespesas com a Casa do Estudante. Os moradores da CAEU são designados,através de revezamentos, para ajudarem nos trabalhos da diretoria da festa.Colaboro com os colegas. É uma experiência interessante. Aumentam meusconhecimentos sobre a natureza humana.

Eliezer Araújo, cearense de Sobral, é o gerente do Parque Xangai. Baixo,gordo, de feições grosseiras e pálpebras caídas, provoca um sentimento de re-pulsa em quem não conhece a grandeza de sua alma. Homem de absoluta con-fiança do Doutor Gaspar, dono do Parque, briga por um centavo do patrão.Terminada a conferência do apurado na noite, aceita convite para umas cerve-jas. Avarento com o dinheiro dos “outros”, é pródigo com seus próprios recur-sos. Instado a dividir a conta, não aceita, em hipótese alguma.

– Vocês são uns lisos. A despesa é minha. Exigente para com os trabalhadores do parque, usa a rispidez para escon-

der sua bondade. Pressentindo que alguns deles, realmente, estão em dificulda-des, oferece todo o apoio. Compreensivo, perdoa sempre os porres homéricosdo Orlando, o melhor mecânico do Parque.

O palhaço Picolé é outro tipo inesquecível. Aparentemente, devia pos-suir mais de sessenta anos, embora estivesse ainda muito forte. Era o diretor doteatro e o administrador da churrascaria, sendo o segundo em autoridade noParque. Fora do palco é a seriedade em pessoa. Não me recordo de, durantetoda a temporada, tê-lo visto sorrir. Amável, jamais permitiu intimidades. Trans-forma-se no tablado. É somente alegria. Leva a platéia às gargalhadas com suasanedotas. Sozinho, faz o espetáculo. Versátil, canta, dança, apresenta os artistas.Casa cheia, numa noite de sábado leva o auditório à loucura, dançando umarumba com a bonita vedete pernambucana, Ivone Valdez. Repetiram o númerovárias vezes, obrigados pela intensidade dos aplausos. Concluído o show, retira-

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da a fantasia de palhaço, volta a ser o homem sério e triste que parece desejarapenas o esquecimento.

20O CARNAVAL EM MACEIÓ É BASTANTE ANIMADO. Três grandes orquestras con-tratadas pela Prefeitura tocam frevo para o povo dançar. Os palanques sãoarmados na Praça Floriano Peixoto, no cruzamento da Rua do Comércio coma Rua Moreira Lima, e no Largo do Relógio Oficial. A multidão acotovela-seperto dos palanques. Muitos fazem o passo. Outros apreciam ou desfilam aolongo da Rua do Comércio, onde se concentram os festejos. O corso dos auto-móveis, cheios de lindas mulheres vestidas em luxuosas fantasias, jogando lan-ça-perfumes, confetes e serpentinas, formam um espetáculo à parte. Em tornodos melhores passistas, surgem grupos de admiradores. O mais famoso deles éo Moleque Namorador. Seu corpo parece possuir molas. Tem o ritmo no san-gue. Brigas surgem, repentinamente, provocando correrias e gritos de moci-nhas assustadas em busca dos braços protetores dos namorados. Patrulhas desoldados da Polícia Militar, do Exército e da Guarda Civil tentam garantir aordem. O perigo de conflitos aumenta, quando os blocos carnavalescos se en-contram. Os porta-estandartes dançam, um diante do outro, como se estives-sem em um duelo simulado. As orquestras, tocando o frevo-hino do clube,esforçam-se para suplantar o som da rival. Os passistas entram em delírio. Qual-quer provocação, e o tumulto será generalizado. Os blocos mais populares são:Cavaleiro dos Montes, Morcego Negro, Vulcão, Bomba Atômica, Cara Dura eSai da Frente.

O negro Gonguila, um verdadeiro gigante, somente músculos, é o presi-dente e dono do Cavaleiro dos Montes. É uma figura folclórica. Engraxate deprofissão, parece um chefe guerreiro conduzindo sua tropa ao assalto final,quando empunha o estandarte do seu bloco. Ele e o Manezinho, do Sai daFrente, foram os que mais resistiram à invasão das escolas de samba e dos trioselétricos no carnaval alagoano.

Os festejos momescos começam, uma semana antes, no sábado do ZéPereira, com o Baile de Máscaras no ginásio de esportes do Clube Fênix. Con-tinuam na Praia da Avenida, com o banho de mar à fantasia, na manhã dodomingo, e prosseguem todas as noites na maratona carnavalesca, na Rua doComércio.

O Baile de Máscaras é um grande acontecimento social. As famílias im-portantes da cidade comparecem. Existe uma competição, na busca dos prê-mios das fantasias mais bonitas e originais. Oferecem “status” aos vencedores.

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A festa é organizada por Dona Maria Magalhães, e a renda é revertida embenefício do Educandário Eunice Weaver que esta benemérita senhora presi-diu por anos consecutivos.

Estou jantando no restaurante da Fênix quando sou surpreendido pelobarulho de uma briga violenta, no bar do clube. Cerca de dez pessoas estãotrocando murros e pontapés. Mesas são viradas e cadeiras usadas como armas.Reconheço George Arroxelas, Sebastião Teixeira e Luís Carlos Falcão, que es-tão lutando contra cinco ou seis homens. Instintivamente, penso em entrar nabriga, ao lado dos mais fracos. Verifico, entretanto, que Arroxelas, sozinho, valepor todos. Atleta perfeito, exímio jogador de voleibol, basquete e futebol, cam-peão de atletismo, parece um lutador de boxe. Cada murro, é uma queda. Se-bastião enfrenta um dos adversários. Luís Carlos, na qualidade de delegado depolícia, esforça-se para acalmar os ânimos. George é quem sustenta a luta. JarbasBagdá, companheiro inseparável de Arroxelas e Sebastião, namorado da filhado Coronel Oest, sabendo que ele já chegou ao ginásio, vai buscá-lo às pressas,para que com a dupla autoridade de Secretário de Segurança Pública e de Coro-nel do Exército acabe com a briga.

Sei dos detalhes, depois, por Sebastião Teixeira. Eles estavam fantasiadosde senadores romanos. Vestiam um lençol branco em forma de túnica com umcordão amarrado na cintura e uma coroa de louros na cabeça. Entraram no barpara tomarem uma dose de “cuba-libre”. Encontraram um grupo de oficiais doExército, que estava bebendo. Um deles chamou o Sebastião de “veado”, porcausa da fantasia. Ele respondeu com um murro que quebrou o nariz do provo-cador. Os outros avançaram contra Sebastião Teixeira. Arroxelas defendeu oamigo.

George Arroxelas foi o ser humano mais completo que conheci. Culto,inteligente, excelente caráter, físico privilegiado, valente, solidário em qualquercircunstância, honesto em atitudes e pensamentos; bom filho, bom amigo ebom irmão, foi, realmente, uma pessoa bem-dotada. Nele se enquadrava a má-xima: “Sem temor e sem mácula”.

21 BENEDITO ALVES, CONHECIDO POR ALGUNS, como “Seu Biu” ou “Pai Véio” e,por todos, como Mossoró, tem o seu reino no Cabaré Tambariz. Elegante,sempre vestido de terno branco, atencioso, recebe a clientela com um generososorriso. Era um espetáculo vê-lo dançar tango. Orgulhava-se de saber os trintae dois passos do verdadeiro bailado da apaixonante música que retrata, commuita nitidez, o passionalismo da alma argentina.

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Conheci a mulata Mossoró. Alta, corpo rígido e robusto, bem torneada,famosa por sua força e valentia. Contava-se que, sozinha, batera em dois solda-dos da Polícia Militar. A imagem que, entretanto, guardo dela é de extrema femi-nilidade. Deixou-se conquistar pela gentileza do “seu Biu”. Tornaram-se aman-tes. Alegre, possuía uma gargalhada gostosa, reveladora de uma enorme sede deviver. Tivesse nascido na África, teria sido uma princesa, tal a nobreza de seuporte altivo. Sua personalidade era tão forte que o conquistador é o conquistado.Vitorioso empresário da noite, já decorridos muitos anos da morte da compa-nheira, o amante permaneceu com o nome de Mossoró até o fim de seus dias.

Recebi o apoio de Benedito Alves em todas as minhas campanhas políti-cas. Recomenda-me às “meninas” e aos amigos. Coloca meus retratos de pro-paganda no salão do cabaré. Jamais esqueci suas atenções. Quando completousetenta anos, compareci à festa que lhe ofereceram, em companhia do Gover-nador José Tavares e do Governador do Ceará, Gonzaga Mota que, a meuconvite, visitava Maceió. Ficou feliz em receber três Governadores de Estado.

Mossoró integrou-se à paisagem humana de Alagoas. O tempo mudou e,com ele, os costumes de nossa terra. Sendo um homem do passado, continuoupresente. Ator e espectador da fragilidade das paixões, a idade emprestou-lhe asabedoria da compreensão para com os erros.

22O MAESTRO ANTÔNIO PAURÍLIO, pianista exímio e brilhante compositor, eraalvo da admiração da comunidade alagoana.

Seus dotes musicais o fizeram conhecido nacionalmente. Lembro-me daemoção que vivi, quando, atendendo a convite, jantava no Iate Clube do Rio deJaneiro, e o pianista americano, que se apresentava no luxuoso clube cariocatocou o bolero Ansiedade, composto por Antônio Paurílio. Chegando a Maceió,contei-lhe o fato e seus olhos lacrimejaram de alegria.

Revivendo as noitadas alegres de meu tempo de jovem, encontro-o sem-pre. Freqüentávamos os cabarés de Jaraguá. O grupo de rapazes do qual eufazia parte, convidava-o para sentar-se à nossa mesa e pedia para que tocassesuas músicas ao piano. Não havia necessidade de insistir. Dirigia-se ao instru-mento e esquecia, para deleite nosso, o tempo. Tocava horas e horas seguidas.Na realidade, ele não tocava para nós. Tocava para sua alma sedenta de música.As gargalhadas masculinas, os sorrisos femininos, as brigas que surgiam nosalão não o perturbavam. Ouvia, apenas, sua doce e adorada musa.

Possuindo a irresponsabilidade feliz do artista, não nasceu para ser com-preendido, e sim, estimado.

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Poeta, boêmio e noctívago, buscou a noite para se despedir dos seusfamiliares e dos seus amigos.

23JUNHO, 1957. O CARTAZ, COLOCADO À ENTRADA da Faculdade de Ciências Eco-nômicas, convidava os estudantes para festejarem o São Pedro em Juvenópolis.A programação era da Juventude Universitária Católica.

Chove intermitentemente. O ônibus que nos conduz saíra da pavimenta-ção, que o Coronel Lucena fizera até Bebedouro, e chega à Rua Marquês deAbrantes. Vai completamente lotado. Cantos, gritos e gargalhadas fazem-seouvir. A alegria domina. Fogueiras, buracos e lama dificultam a passagem docoletivo. Entretanto, perde-se a noção do tempo e, rapidamente, chega-se aJuvenópolis.

Padre Pinho reza a missa a que assistiam católicos, agnósticos e ateus.Estimado e admirado por todos, consegue prender, com sua bondade, cente-nas de jovens em torno da palavra de Cristo.

Concluída a missa, as danças juninas começam ao som de uma sanfona.Os alunos de Juvenópolis servem canjica, pamonha e milho assado. Aquelesgarotos, órfãos em sua maioria, encontraram um futuro graças à vocação sacer-dotal de Padre Pinho. Concretizaram sonhos. Tornaram-se engenheiros, médi-cos, advogados, professores, militares, artífices. Receberam a grande mensa-gem que aquela personalidade magnética transmitia. Saíram das garras dadelinqüência e transformaram-se em seres úteis.

Convivi com o Padre Pinho em várias fases de minha vida. Estudanteuniversitário, comunguei, pela primeira vez, atendendo o seu pedido. Fiz minhaprimeira viagem de avião, Recife-Maceió, por convite dele. Prefeito, tive condi-ções de ajudá-lo destinando recursos à sua grande obra: Juvenópolis.

O Padre faleceu quando ainda me encontrava na Prefeitura. Dignifiqueiuma das ruas de nossa capital com o seu nome. Construí um grupo escolar emCruz das Almas, no Conjunto da COHAB, do qual o fiz patrono, buscando oexemplo que foi, para que servisse de modelo às novas gerações.

Vésperas de São Pedro, 1976. Os amigos do Padre Pinho e alunos deJuvenópolis homenageiam a sua memória. Inauguraram a estátua do queridosacerdote no jardim do educandário que ele construiu e preservou, com tantosacrifício. Dom Miguel Fenelon reza a missa pela alma de um santo. Dissertasobre aquele servir, constante e desinteressadamente, que foi a vida do inesque-cível religioso. Reencontro-me com a minha juventude e com antigos compa-nheiros. Danças típicas da época. Pamonha, canjica e milho assado são servi-

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dos pelos alunos. O quadro é o mesmo. A impressão que se tem é que falta,apenas, o Padre Pinho. Logo, a impressão é desfeita. O Padre está conosco.Vejo-o, com aquela batina velha e rota, a distribuir sorrisos e palavras deencorajamento. Permanece vivo. Juvenópolis é o seu corpo. As crianças, que aliprocuram abrigo e um futuro, são o seu sangue. E o seu espírito paira sobrenós. Ele era todo bondade.

24CONHECÊ-LA, CONQUISTÁ-LA E ESPOSÁ-LA FOI, realmente, uma dádiva dos deu-ses. Morena clara, olhos verdes, cabelos castanhos, esbelta, estatura mediana,rosto de linhas clássicas, sorriso fácil, destacava-se naquela longínqua e tãopróxima festa de aniversário. À época, em virtude do pequeno número de clu-bes sociais e da ausência de boates em Maceió, os jovens aproveitavam qual-quer pretexto para organizar “danças”, como eram denominados os bailes fa-miliares, ao som de eletrolas. Vivíamos a década de cinqüenta. A música damoda era o bolero e, no Brasil, Waldir Calmon e seu Conjunto reinavam abso-lutos. Fiquei fascinado. Ela dançava graciosamente com um rapaz que, depoisvim a saber, era seu irmão mais velho, Djalma. A docilidade do ritmo transmi-tia-se para o seu ser.

Interrogo quem é aquela criatura maravilhosa. Sou informado de que eraa filha do “seu” José Bezerra, funcionário da Prefeitura de Maceió. Por inter-médio do pai, que era meu colega de trabalho, convido-a para dançar. Aceitaesquivamente. Procuro saber detalhes de sua vida. Responde, por monossílabos.Estudava no Colégio Batista Alagoano e morava com uma prima e madrinhaque a criava como filha. Dominado pela sua meiguice, começo a cortejá-la.Primeiro, fiquei íntimo da família. Levei meses para conseguir namorá-la. Osim foi concedido na véspera de São Pedro, numa viagem que levava todos osBezerras a um sítio, que eles possuíam na Canabrava, hoje Taquarana. Noivarí-amos e nos casaríamos, quatro anos depois. Eu, escriturário interino da Prefei-tura, e Luzia, professora primária, ensinando no Grupo Escolar Silvestre Péricles,no Pontal da Barra.

Vivemos bonanças e enfrentamos borrascas. Ela, a meiguice em pessoa,sempre proporcionou a tranqüilidade necessária para que enfrentasse todas aslutas políticas que travei. Repudiando a acentuação da fragilidade humana, ex-posta cruamente no anseio da conquista do poder, jamais participou de umacampanha eleitoral, no que sempre contou com o meu silencioso apoio, pois,aceitando como regra do jogo político as calúnias e as infâmias de que os can-

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didatos são alvos, não gostaria de vê-la envolvida na degradação do caráterhumano. Entretanto, tenho certeza de que o oásis em que transformou nossolar, retemperador de minhas energias, foi o fator mais importante para todas asvitórias que alcancei.

O nosso matrimônio geraria quatro filhas: Walkíria, Mônica, Cristina ePatrícia. Em princípio, queríamos um casal. Fizemos mais uma tentativa paraum filho e, a quarta, foi um “erro de cálculo”. Como costumo afirmar, em tom debrincadeira, foi o erro mais lindo que conheço, pois Patrícia ficou esse tipo rarode beleza – morena de olhos azuis. Walkíria, estudiosa e elegante; Mônica, aenvolvente, acredito que, se a tivesse estimulado, teria percorrido os traiçoeirosrumos da política; Cristina herdou a suavidade de Luzia e Patrícia, a mais des-prendida. Personalidades heterogêneas, formamos uma família unida e solidária.

Luzia sente-se perfeitamente à vontade em qualquer ambiente em que seencontre. É a mesma pessoa, simples e doce, no Palácio do Presidente da Re-pública, em hotéis luxuosos dos Estados Unidos ou em hotéis cheios de nobre-za conservadora da Europa. Recebe, com a mesma gentileza, Ministros de Es-tado, nas recepções que preside, no Palácio Marechal Floriano, ou deserdadossociais, que buscam sua ajuda. Compreensiva com os milhões de defeitos quepossuo, embora nunca tenha falado, imagino que se sentia muito mais feliz nacasinha em que moramos, recém-casados, na Praça São Vicente, do que nosenormes, falsos e frios apartamentos do Palácio dos Martírios.

25O GOVERNADOR LUÍS CAVALCANTE IMPLANTA um estilo de administrar total-mente novo em Alagoas. Cria, para assessorá-lo, um Colegiado composto derepresentantes dos órgãos mais importantes da estrutura social e econômica doEstado. As reuniões ordinárias são mensais, e as extraordinárias, tantas quantasse façam necessárias. É quem primeiro planifica a administração pública, elabo-rando o Plano Trienal de governo. Convida um grupo de jovens, chamadopejorativamente pela oposição de jardim infantil do governador, para compor oescalão maior de sua equipe.

Alagoas prospera, apesar dos grandes desencontros políticos do país. Arenúncia do Presidente Jânio Quadros, a posse do Presidente João Goulart, oparlamentarismo, e o regime totalitário que seria implantado como conseqüência.

O Major Luís fortalece politicamente a imagem de uma pessoa simples,destituída de vaidades, avessa à ostentação do poder. Para desespero do Gabi-nete Militar, não gosta de andar acompanhado de seguranças. Costuma passearde bicicleta, quando visita pequenas cidades do interior. Chupa roletes de cana

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em bancos de praças e jardins. É adorado pelas crianças. No início, o povoestranhou. Depois, acostumou-se com o “jeito do Major”. A verdade é queessas excentricidades funcionam, apenas com o Major Luís. Em qualquer outropolítico, ele estaria liquidado eleitoralmente. Consegue eleger-se Deputado Fe-deral e Senador da República, por dezesseis anos. Íntegro e competente, respei-tado por todos, sua marca está registrada na História de Alagoas.

Votara no Major Luís, porque acreditei no slogan “O Major é o melhor”.Não participei diretamente de sua campanha; entretanto, pediria votos aos ami-gos e conhecidos, destacando as qualidades superiores do candidato. Trabalha-ra ostensivamente para o jornalista Sandoval Caju, postulante à Prefeitura deMaceió e, na hora de votar, sozinho, na cabina, minha consciência determinouque sufragasse o nome do candidato da UDN, o médico Jorge Quintella. Asexcentricidades de Jânio Quadros não me inspiravam confiança. Votei no Ge-neral Henrique Teixeira Lott e em Milton Campos para vice-presidente. Imagi-nei que seria o melhor para o Brasil.

26A CONQUISTA DE GRANDE FATIA DO MERCADO PREFERENCIAL dos Estados Uni-dos deve-se à Revolução Cubana. Fidel Castro, em 1961, assume o controle dogoverno. Depara-se com uma situação caótica. As grandes usinas de açúcar, osenormes hotéis-cassinos, enfim, a economia da ilha é praticamente toda con-trolada por empresários norte-americanos. Ele viaja a Washington para tentaruma composição que permitia honrar os compromissos assumidos com o povo,durante a fase romântica da guerrilha em Sierra Maestra. Não encontrareceptividade. Sofrendo fortes pressões econômicas, utiliza os poderes revolu-cionários e desapropria várias fábricas pertencentes a grupos americanos, pro-vocando prejuízos a milhões de pessoas de classe média, acionistas das holdingsmantenedoras das filiais em Cuba. O clamor é geral. Parlamentares, desejososde agradar a tantos eleitores, criticam violentamente o premiê cubano no Con-gresso Nacional. Os órgãos de imprensa, defendendo os interesses de seusanunciantes, oferecem destaques às denúncias, em suas manchetes. Fidel Cas-tro é apontado como ditador, um inimigo declarado da livre iniciativa, da de-mocracia americana. Governando um país de economia caudatária – Cubavive apenas em função do açúcar e do jogo – vê-se obrigado a buscar o auxílioda União Soviética. A Rússia, apesar de ser a maior produtora de açúcar domundo, extraído da beterraba, oferece apoio político, comprando a produçãocubana e repassando-a para outros países. Formaliza-se o rompimento com osEstados Unidos. Surge o primeiro governo comunista, nas Américas.

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Substitui-se o abastecimento da sociedade norte-americana, mercado pre-ferencial por pagar o preço do açúcar acima das cotações do mercado interna-cional, pelos países produtores da América Latina, cabendo a maior fatia aoNordeste brasileiro, já que todo o açúcar exportável do Brasil sai dos portos deRecife e Maceió. A produção alagoana, saindo de aproximadamente três mi-lhões de sacas para nove milhões, triplica.

27A RENÚNCIA DO PRESIDENTE JÂNIO DA SILVA QUADROS traumatiza a Nação. Ogoverno durara menos de sete meses. Empossado em 31 de janeiro de 1961,encaminha carta ao Congresso Nacional no dia 25 de agosto, renunciando àPrimeira Magistratura do país, sem explicar claramente os reais motivos dogesto, permitindo todo tipo de especulação. Nascido na cidade de Campo Gran-de, Mato Grosso, estudou Direito em São Paulo, onde fez uma carreira políticavertiginosa. Professor de Português, consegue eleger-se vereador na capital comexpressiva votação. Usando uma vassoura como símbolo de moralização públi-ca, é eleito Deputado Estadual e Prefeito de São Paulo, quando conquista pro-jeção nacional. Sua imensa popularidade o leva ao Governo do Estado, conso-lidando a imagem de administrador honesto e capaz. Deputado Federal peloParaná, é candidato indicado pela UDN à Presidência da República, elegendo-se com quase seis milhões de votos.

Mestre em criar impactos, governa traçando normas e cobrando provi-dências de seus auxiliares através de bilhetes. Dotado de uma grande autorida-de moral, é obedecido religiosamente. Poucos presidentes foram tão respeita-dos quanto ele. Estranhos decretos, proibindo o funcionamento das rinhas degalos e espetáculos de hipnotismo e letargia em clubes sociais, são acatadossem maiores resistências.

As mais diversas interpretações surgem em torno de sua renúncia. Algu-mas responsabilizam a depressão provocada pela solidão do planalto. Outras ar-gumentam que a personalidade autoritária do Presidente Jânio Quadros provoca-ra naturais conflitos com o Poder Legislativo, onde a bancada governista eraminoritária. Cada projeto oriundo do Executivo que é rejeitado no Parlamento, érecebido como uma ofensa pessoal. Buscando poderes mais amplos, tenta sensi-bilizar o povo contra o Congresso, afirmando ser prisioneiro de forças ocultas.Antes, porém, tem o cuidado de solicitar que o Vice-Presidente João Goulartpresida uma missão econômica à China comunista, para aumentar a desconfiançade vários segmentos militares contra o antigo Ministro do Trabalho de GetúlioVargas, alvo do Manifesto dos Coronéis, quase todos promovidos a generais. Analis-

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tas políticos especulam que a inexistência de reação popular, talvez fruto do iso-lamento de Brasília, frustrou esse plano e modificou a História do Brasil.

Apesar de não ter votado em Jânio Quadros, sinto profundamente a re-núncia. Um vazio enorme domina minha alma. Temo pelo futuro do país. Vi-vem-se os mesmos dias sombrios que sucederam ao suicídio de Getúlio. Agos-to permanece fatídico à política brasileira.

Aureliano Chaves, candidato a Presidente da República em 1988 pelo Par-tido da Frente Liberal, recebe o importante apoio do Prefeito de São Paulo,Jânio Quadros, que ficou com a prerrogativa de indicar o candidato a Vice-Presidente. O escolhido foi Cláudio Lembo.

Acompanho Aureliano, juntamente com os Senadores Hugo Napoleãoe Marcondes Gadelha à residência de Jânio Quadros, na capital paulista, paraa formalização do lançamento da candidatura de Cláudio Lembo. Estou curi-oso. Conheceria pessoalmente mais um dos protagonistas do grande dramada História.

Recebe-nos com fidalguia. Exalta as qualidades superiores do caráter deAureliano. Analisa as virtudes e os defeitos dos demais postulantes à presidência.Ao tecer comentários sobre Fernando Collor, interroga-nos sobre Alagoas. So-mos interrompidos por Dona Eloá que nos oferece cálices de vinho do Porto.

Dezenas de jornalistas e cinegrafistas estão postados à porta do sobrado,no bairro do Morumbi, onde o Prefeito reside. Aparenta um certo desprezopela imprensa. Quando ele, Aureliano e Cláudio Lembo assomam à sacada, umdos jornalistas pergunta a Jânio Quadros por que não permite aos jornalistasentrarem em sua casa. Responde com escárnio:

– Mas vocês vão estragar os tapetes de Eloá. É sempre com desdém que concede suas respostas às provocações da

imprensa. É o primeiro político que presencio escarnecer de jornalistas e sersempre notícia de primeira página.

Guardo dele a impressão de uma pessoa atenciosa e gentil.

28O DEPUTADO RANIERI MAZZILLI, PRESIDENTE DA CÂMARA, assume a Presi-dência da República, em virtude da renúncia de Jânio Quadros e da ausência deJoão Goulart, que se encontra na China comunista.

O Marechal Odílio Denis, Ministro da Guerra, o Brigadeiro Gabriel GrunMoss, Ministro da Aeronáutica e o Almirante Sílvio Heck, Ministro da Mari-nha, interpretando o sentimento da maioria esmagadora dos seus companhei-ros militares, reagem à posse do Vice-Presidente. O Governador do Rio Gran-

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de do Sul, Leonel Brizola, com o apoio do General José Machado Lopes, co-mandante do III Exército, ameaça pegar em armas para garantir a posse dogaúcho João Goulart. O espectro da guerra civil volta a pairar sobre o país. Oimpasse está criado. A solução encontrada pela classe política foi a implantaçãodo parlamentarismo, através de uma reforma constitucional.

João Goulart, que viajara de Pequim a Paris, onde se inteira dos aconteci-mentos, decide voltar para o Brasil pelo Uruguai. Parte para Montevidéu. Aidéia inicial é instalar o governo em Porto Alegre e organizar a resistência. ODeputado Federal Tancredo Neves intermedeia a solução. João Goulart con-corda em assumir a Presidência da República, no regime parlamentarista. ANação respira, aliviada.

Organiza-se o Gabinete que governará o país juntamente com o Presi-dente João Goulart. O Deputado Tancredo Neves é eleito Primeiro-Ministropelo Congresso Nacional. Habilidoso, concilia as divergências partidárias e osconflitos de interesses, compondo uma boa equipe ministerial. O Brasil retomao seu desenvolvimento. Evidencia-se o fato de que, em o governo não complicando,o potencial humano e econômico leva o país à prosperidade.

Tancredo Neves, em junho de 1962, desincompatibiliza-se do ministériopara ser candidato a Governador de Minas Gerais.

O Deputado Federal, pelo PTB, San Thiago Dantas, Ministro das Rela-ções Exteriores, uma das maiores inteligências do Brasil, é o candidato naturala primeiro-ministro. Ele, continuando o trabalho de Tancredo Neves, consoli-daria o parlamentarismo. Estranhamente, o Presidente João Goulart, emborasendo seu companheiro de Partido, não o apóia. Derrotado no Congresso Na-cional, San Thiago afasta-se do governo. O Presidente vai buscar no Rio Gran-de do Sul um ilustre desconhecido, Francisco de Paula Brochado da Rocha,inegavelmente um homem de bem, porém, sem a experiência política necessá-ria ao exercício da chefia do governo. Permanece menos de três meses. Faleceno cargo; o coração não suportou as tremendas pressões do poder.

O Deputado socialista Hermes Lima é o último dos primeiros-ministrosda malograda tentativa de implantar-se o parlamentarismo no Brasil republica-no. Toma posse em novembro de 1962. No início de janeiro do ano seguinte, érealizado o plebiscito sobre a manutenção do regime. Mais de dez milhões, dosquase treze milhões de eleitores que comparecem às urnas, votam a favor dopresidencialismo.

Razões existem para essa esmagadora votação: o Presidente da Repúbli-ca, que havia jurado manter o regime parlamentar, julgando-se espoliado emseus poderes, é quem mais conspira para sua derrubada; os pretensos candida-tos à sucessão presidencial, o Senador Juscelino Kubitschek, os Governadores

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Magalhães Pinto, Carlos Lacerda e Ademar de Barros desejam assumir a Presi-dência da República com poderes amplos; a inapetência administrativa dos chefesde governo, transmitindo à população a idéia de ingovernabilidade; e a cargapublicitária que essas forças, em conjunto, promoveram sobre as vantagens dopresidencialismo. A surpresa é que mais de dois milhões de pessoas tenhamoptado pelo regime parlamentar, por haverem chegado à conclusão de que erao ideal para a sociedade brasileira.

29O PROFESSOR BENEDITO MORAIS FOI UM HOMEM realmente extraordinário.Comerciante no Mercado Público de Maceió, após haver prestado o serviçomilitar na Marinha de Guerra, no Rio de Janeiro, divertia-se, nos momentos defolga, no seu estabelecimento comercial, resolvendo os mais complexos pro-blemas de matemática. Sua fama começou a alastrar-se quando um grupo dejovens o procurou, convidando-o a lhes ensinar aritmética para concurso pú-blico. Em pouco tempo, o número daqueles que desejavam ser seus alunos eratão grande que chegou à conclusão de que teria maior renda com suas aulas, doque como vendedor de secos e molhados, além de fazer o que realmente gosta-va. Nascia, naquele instante, o mais famoso professor de ciências exatas deAlagoas. Raro é o funcionário do Banco do Brasil, oficial do Exército, daMarinha e da Aeronáutica, engenheiro ou concursado do DASP, nascido emnosso Estado, que não tenha sido seu discípulo, nas décadas em que lecionounos mais diversos colégios de nossa capital e em aulas particulares, na suaresidência, situada na Praça Nossa Senhora das Graças. Vários de seus alunosrealizaram cursos de Doutorado em matemática, nas mais renomadas univer-sidades da Europa e dos Estados Unidos e, sempre, destacaram o orgulho dehaverem iniciado os estudos sob sua orientação.

Estudei com ele durante três anos. Já possuía um grande embasamentomatemático, adquirido com Petrônio Viana e Edmilson Pontes. Conquisteidezenas de lápis, que ele estabelecia como prêmios para quem resolvesse,com maior rapidez, os problemas que colocava no quadro-negro ou tirassedez, nas listas semanais que passava como deveres de casa. É que, naquelaépoca, eu possuía um bom raciocínio algébrico, o que muito me facilitavasolucionar problemas de aritmética. Ficamos amigos. A partir do segundoano, recusou-se a receber meu pagamento com o argumento gentil de que,em aritmética, ele não tinha mais nada para me ensinar. Insisti em permane-cer como ouvinte. Concordou. Uma vaga em suas turmas particulares eradisputadíssima.

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Nas noites de aula, eu chegava meia hora antes em sua casa, exatamenteàs dezoito e trinta, para ouvir fatos de sua vida tão cheia de acontecimentos,enquanto ele fumava um cachimbo após o jantar. Foram momentos inesque-cíveis para mim. Ele possuía um enorme fascínio. Lembro-me de um dia emque recebera um presente e estava especialmente feliz, não com o presenteem si, mas com as circunstâncias que o cercavam. Contou a história. Muitosanos atrás, professor do Instituto de Educação, ensinando logaritmo, pediuàs alunas que, na próxima aula, trouxessem o livro chamado de Tábua, quecontinha os valores do seno e co-seno, indispensáveis aos cálculos na apren-dizagem do tema. Poucas atenderam. Ele, altamente disciplinado, considerouo fato um insulto. Com sua voz de tenor – falava normalmente alto –, aliadaao terror que a matemática inspira na maioria dos estudantes, anuncia queaquela que não atendesse à determinação na aula seguinte, além de não assis-tir à aula, tiraria zero na nota do mês. Ao sair da sala, é abordado por umajovem trêmula, de aparência humilde que, com lágrimas nos olhos, explicanão haver conseguido comprar o livro porque seu pai estava desempregado enão tinha dinheiro. “O Velho Biu”, como era chamado às escondidas portodos nós, deve ter olhado para a tímida adolescente com aquela carranca queescondia seu enorme coração e afirmado que ela não se preocupasse. Com-prou a tábua e a ofereceu à garota. Naquele dia, recebera uma caneta Parker,de ouro, acompanhada de uma carta em que sua antiga aluna informava seralta funcionária do Ministério da Fazenda no Rio, e que lhe estava mandandoaquela lembrança como uma pequena retribuição do gesto que a marcara tãoprofundamente, ao ponto de jamais havê-lo esquecido. Apesar da penumbrado estreito corredor, onde costumava dar suas baforadas, sentado numa ve-lha cadeira de balanço, imagino haver captado um ligeiro tremor de emoçãona sua voz tão forte e acredito que seu olhar estava marejado, quando afir-mou que se sentia feliz por haver tido oportunidade de, através dos conheci-mentos que transmitiu, modificar, para melhor, milhares de vidas.

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E s c a l a d a

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O PREFEITO TRANSFERIRA O SECRETÁRIO-GERAL DA MUNICIPALIDADE paraa função de Procurador e convida um jovem economista para ocupar aSecretaria. Assinado o termo de posse, lembro-me da manhã em que come-çara a trabalhar no serviço topográfico. Galgara todas as categorias funcio-nais. De servente ao maior cargo da esfera administrativa na Prefeitura deMaceió. Árdua foi a caminhada. Encontrei vários braços que me apoiarame mãos que me conduziram. Amigos são patrimônios que devem ser preser-vados com zelo.

Permaneceria no cargo durante quinze meses. A experiência que adqui-rira me foi bastante proveitosa. Muito jovem, investido de uma grande auto-ridade, começo a ser alvo de invejas e de intrigas. Aprendo a conhecer melhora natureza humana. Pessoas que, na minha presença, cercavam-me de aten-ções exageradas, às costas, difamam, caluniam. As primeiras reações são derevolta, de nojo. Depois, passo a ter pena desses sub-homens. Não são dig-nos nem do ódio, pois só odiamos a quem respeitamos. Os seres, normal-mente inferiores, merecem apenas desprezo ou piedade. Amadureço rapida-mente; envelheço em poucos meses.

Considero como o início de minha vida política o exercício da Secretariada Prefeitura de Maceió. Coordeno todos os departamentos e mais de dois milfuncionários. O cargo fora exercido por grandes líderes alagoanos. Rui Palmei-ra, Aurélio Buarque de Holanda, Carlos Ramiro Bastos, Claudenor Sampaio,

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Alfredo Gaspar de Mendonça, Manoel Valente de Lima, entre outros, dignifi-caram a função.

Convivendo diariamente com deputados, prefeitos, vereadores e lideran-ças classistas, sinto-me atraído para o grande jogo da vida. As paixões humanas,a variedade de interesses despertam um desejo profundo de influenciar nasdecisões maiores da comunidade. Não sabia, entretanto, que aquela decisão melevaria a píncaros jamais imaginados. Privaria da intimidade das mais altas auto-ridades do país, proferiria conferências em todas as capitais do Brasil e emalgumas das mais importantes cidades do mundo, modificaria a paisagemalagoana e beneficiaria milhares e milhares de pessoas. O meu conceito depoder é fazer o bem, é construir, é ajudar. A concretização desse raciocíniotransformar-me-ia, sempre, num vitorioso.

2A JUVENTUDE ESTUDANTIL DE MACEIÓ, na segunda metade dos anos cinqüenta,tinha um encontro marcado, às noites de quarta-feira, com o programa “Palito deFósforo”, o incendiário dos auditórios, na Rádio Difusora de Alagoas. À época, acapital alagoana era bem provinciana; havia uma carência enorme de diversões.

Não existia televisão, e o rádio era o grande meio de comunicação. Apopularidade do programa decorria da versatilidade artística e do senso de hu-mor do poeta e jornalista Sandoval Caju. Paraibano de Bonito de Santa Fé,espirituoso, envolvente, carismático, em pouco tempo conquistou osmaceioenses.

O auditório, às vinte horas, está completamente lotado. O programa teminício quando termina a “Hora do Brasil”. Todas as lâmpadas são desligadas.Escuridão total. Abre-se a cortina do palco, Sandoval acende um fósforo esaúda a platéia. Enquanto a iluminação volta, palmas e vaias respondem à sau-dação. O Regional dos Professores toca “Pajuçara” e começa o show de duashoras de brincadeiras, anedotas, empulhações e músicas. O forte do apresenta-dor é a improvisação. Anunciando uma cantora ligeiramente estrábica, afirma:

– Aí vem Marlene Santos, a cantora que, quando olha para um, vê dois! Discutindo, certa feita, com Manoel Miranda, estudante de Medicina, a

entrega de um prêmio de uma gincana, coloca a mão no bolso interno dopaletó e diz:

– Vou puxar a arma que assenta qualquer cabelo! Enquanto esperávamos que puxasse um revólver, tira um pente e penteia

a farta cabeleira. Gargalhada geral. A irreverência aumenta o sucesso do radia-lista junto ao grupo jovem.

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O prestígio popular, conquistado através do Rádio, levou Sandoval Caju,naturalmente, à prática política. Candidato a Prefeito de Maceió, galvanizou acidade. A candidatura, no início, foi recebida como uma piada. E em verdade,os comícios eram verdadeiros shows. A estudantada começou a comparecerem massa. O sentimento de vitória domina os adeptos de Sandoval. Surgemcontribuições de material de campanha. As concentrações aumentam de co-mício para comício. O último, na Praça Marechal Deodoro, foi uma verdadei-ra apoteose. Sandoval chegou de terno branco, para, segundo ele, falar maisclaro. Delirantemente aplaudido, inicia o discurso invocando o testemunhodo patrono da praça.

– Marechal Deodoro da Fonseca, insigne Proclamador da República, osincrédulos, os homens de pouca fé ousam afirmar que perderemos a eleição.Quero perguntar a Vossa Excelência: esta parada é ou não é nossa?

A multidão magnetizada espera que a estátua responda. Os segundos pas-sam. O silêncio é absoluto.

O candidato retoma a palavra. – Quem cala, consente. Ganhamos a parada. Só poderíamos perder esta,

se o cupim desse na urna. Palmas e sorriso geral. O resultado confirmou a tendência do eleitorado. Sandoval Caju é eleito,

com magnífica votação. Levou o singular de sua personalidade para a administração pública.

Temperamento irrequieto, agilizou as obras de pavimentação e construção depraças, não atendendo aos prazos e às exigências de licitação. Certa feita, umconstrutor, recebendo ordem para pavimentar uma rua, perguntou pela con-corrência, recebendo a resposta de que ela seria feita durante a execução dostrabalhos.

O importante era que começasse logo. O povo gostava da velocidade noatendimento dos pleitos. Trabalhava-se dia e noite. Cada inauguração era umafesta. As novas praças embelezam Maceió.

Chefe da Divisão dos Impostos Predial e Territorial, recebo convite doPrefeito Sandoval Caju, para assumir a Direção-Geral da Municipalidade. Me-ses depois, à véspera do Ano Novo de 1962, convida-me para Secretário-Geralde Administração. Amigo e admirador do Secretário Floriano Ivo, tento recu-sar, argumentando que seria mais útil ao seu governo permanecendo na Dire-toria. Responde-me, afirmando que, sendo assim, eu ficaria com os dois cargos.Explico que não era possível, e exalto o talento de Floriano.

– Já acertei tudo com ele. Vou nomeá-lo Procurador, para “procurar” osoutros Procuradores.

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– Permaneci no cargo até 1963, quando fui convidado pelo GovernadorLuís Cavalcante, para integrar sua equipe, assumindo, logo depois, a Secretariada Fazenda.

Explode o movimento de março de 1964. Sandoval Caju perde os direi-tos políticos. Mesmo na adversidade, permanece com seu senso de humor.Vendo, no birô do advogado que elaborava sua defesa, a enorme papelada doprocesso de acusação, comenta em tom de blague:

– Estamos no reinado do Papa João XXIII, o último Pio foi o XII, setudo isso for verdade, estarei preso até o reinado do Pio Mil.

Governador de Alagoas, procuro Valdete Loyola Caju e peço que meindique um dos seus filhos para trabalhar no governo. Simone, então estudantede Medicina, dignificou o nome da família.

Sandoval Caju, advogado militante, viveu as ilusões do poder e a angústiado ostracismo, permanecendo, entretanto, apaixonado pela política, a mais belae a mais volúvel das amantes. Cada eleição é a esperança do grande amplexo,pleno de desejos e emoções.

3QUADROS ESTATÍSTICOS SÃO ANALISADOS. Pesquisas são efetuadas. Visitas avários municípios, para estudar in loco suas potencialidades, são feitas. Opçõessão oferecidas ao Governador Luís Cavalcante. Decisões são tomadas. Filoso-fias de Governo são traçadas. Objetivos são definidos.

Composta a fotografia sócio-econômica de Alagoas, os técnicos viajam aSão Paulo. Confronta-se a economia alagoana com a da região nordestina e ado país. Situam-se as fontes de financiamento para a execução das obras conti-das nas metas traçadas. Elabora-se o plano trienal. Aprendo muito.

Secretário de Estado. Responsável maior pela arrecadação e pelo em-prego do dinheiro público. Alagoas vive um período de relativa tranqüilidadefinanceira. Normaliza-se o pagamento do funcionalismo. Anualmente reajus-tam-se os salários dos servidores estaduais em percentuais jamais concedi-dos. Os duodécimos das Secretarias e das Sociedades de Economia Mista sãoentregues, com certa regularidade. É a fase do maior número de realizaçõesgovernamentais. A arrecadação, de orçamento para orçamento, aumenta comíndices superiores ao da desvalorização da moeda. As razões são diversas.Obviamente, o êxito não se deve à ação direta do Secretário. Iniciava-se amaravilhosa arrancada da produção açucareira alagoana, que ajudaria o Brasila reconquistar a liderança mundial do produto. O capital de giro do Estadorecebe várias injeções de órgãos internacionais que ajudavam o Nordeste a

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combater o subdesenvolvimento. A economia é beneficiada por fatores so-bre os quais o Secretário não tem o menor controle. Se algum mérito possuo,é o de estar sempre lembrado de que a Secretaria, além de Fazenda, é, tam-bém, da Produção. O relativo sucesso alcançado devo-o ao apoio, à orienta-ção e à lealdade de quatro notáveis colaboradores: O Diretor da Despesa e oda Receita, o Tesoureiro e o Contador Geral do Estado. Homens de setentaanos, bastante experientes. Possuía idade para ser neto deles e entretanto,nunca tive minha autoridade contestada. Recebi uma dedicação paternal.Marinho Júnior, Pedro Porto, Antônio Barbosa e Samuel Bulhões forammestres de amor ao serviço público, de austeridade e de honestidade no lidarcom os bens do Estado. Defensores intransigentes dos Departamentos quedirigiam, contrariam muitos interesses e contraem vários inimigos. Sou víti-ma da velha tática dos intrigantes, porém agora, sou apontado não como omandante, mas sim, como marionete. Desejam provocar um conflito entre oSecretário e os Diretores. Não conseguem. O respeito mútuo é muito maiordo que as intrigas. Considero-me um privilegiado por ter convivido,diuturnamente, durante dois anos, com homens tão superiores. Devo a eles acomplementação de um curso prático de administração que fiz na vida. Fo-ram os melhores professores que encontrei.

4PEDRO PORTO NÃO FOI O ÚNICO A ILUMINAR OS CAMINHOS do novo e inexperienteSecretário da Fazenda. Foi, entretanto, no meio dos amigos que fiz naquelaPasta, um dos que me causaram a mais profunda impressão. Tocado por umenorme amor à coisa pública, dedicado inteiramente ao seu trabalho, que co-nhecia nos mínimos pormenores, dava-me, ainda, diariamente, exemplos decorreção pessoal e de honestidade de princípios.

José Marinho Júnior foi um dos homens mais dignos com quem já tive aoportunidade de conviver. Exemplo de dedicação, lealdade, honradez e amorao serviço. Defendia intransigentemente os interesses do Estado. Tornava-seranzinza até quando estavam em jogo os recursos do Tesouro Público. Entre-tanto, vivia a fazer prodigalidade com o seu salário. Distribuía, às escondidas,favores aos colegas mais necessitados.

Percorremos caminhos diversos. A política envolveu-me em seus tentá-culos. Enfrento novos desafios. A paixão das lutas nas praças públicas atrai-me.Candidato a Prefeito, falando ao povo de Maceió, qual não é minha surpresaquando diviso, ao longe, a figura simpática do bom velhinho. Tímido, aplaudia-me com o olhar.

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5Congonhas, meados de 1964. O aeroporto da capital paulista é o de maiormovimento do país. Centenas de pessoas desfilam em seus salões e corredores.Variados tipos humanos: japoneses, norte-americanos, europeus, africanos, bra-sileiros das mais diversas regiões ali são vistos. Viajara para firmar um convênioentre a Secretaria da Fazenda de Alagoas e a de São Paulo. Voltava para o Riode Janeiro. O serviço de som do aeroporto anuncia:

– Passageiros da ponte aérea, vôo das dezesseis horas, dirijam-se ao portãode embarque. Boa Viagem.

Encontro-me com o Deputado Muniz Falcão. Acolhe-me com um sorri-so de simpatia. Viajamos juntos num “Constellation” da Panair. Conversamossobre vários assuntos. O diálogo derivou naturalmente para a política. Numdeterminado instante, surpreende-me:

– Suruagy, vai sempre ser candidato a Prefeito de Maceió? Tento fugir dapergunta.

– Não sei, Governador – chamei-o sempre de Governador. Acho quenão possuo nenhuma possibilidade de vencer. Aperta o meu braço esquerdo eafirma:– Possui mais chance do que você imagina.

A minha provável candidatura surgira de um grupo de amigos da Prefeiturae dos componentes do chamado “Jardim Infantil” do Major Luís Cavalcante.Embora me sentisse tentado a entrar na luta, realmente, não acreditava que pos-suísse condições eleitorais de vencer o pleito. Economista, professor de matemá-tica, secretário da fazenda, já havendo participado de política universitária, jamaisacreditei que algum dia me visse candidato a cargos eletivos. Estimulava as espe-culações em torno do meu nome, todavia, intimamente, duvidava. Aquela afir-mativa, vindo de um experimentado político, o tom de sinceridade da voz, tudoisso me fez começar a crer que possuía alguma possibilidade de ser eleito.

O avião pousa no Aeroporto Santos Dumont. Dona Alba o espera. Fazfrio, os agasalhos de inverno fazem-na mais bonita e elegante. É visível o amorque os domina. Ela fora de automóvel. Oferecem-se para deixar-me no HotelOK. Agradeço a gentileza e despedimo-nos.

Lutei contra ele, entretanto, combatemo-nos com ética, respeito e lealda-de. Nunca usamos uma palavra desairosa para com o outro. Um gesto menosdigno jamais existiu entre nós. Nutria por ele uma grande admiração. Era dota-do de verdadeiro espírito público.

Desincompatibilizo-me da Secretaria da Fazenda para disputar a Prefei-tura da Capital alagoana. Lincoln Cavalcante, adepto entusiasta de minha can-didatura, consegue-me um estágio de quatro semanas no Banco Nacional deDesenvolvimento Econômico, no Rio de Janeiro.

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Djalma Falcão, tomando conhecimento de minha viagem, pede-me paralevar uma encomenda ao irmão. Entrego-a em seu apartamento em Ipanema.Era uma carta encaminhando um documento contendo assinaturas de várioslíderes pessepistas que reconheciam nele o melhor candidato que tinham paraenfrentarem as eleições que se avizinhavam. Lê a carta e guarda silêncio. Mos-tra-me o abaixo-assinado, faz um gesto abrangendo Dona Alba, Rosa Maria e oapartamento.

– Estou levando uma vida muito tranqüila, tenho bons amigos e o respei-to dos meus colegas da Câmara. Julgo que os alagoanos sempre me concederãoum mandato de Deputado Federal. Lutei muito, mas consegui o que queria.Sou um homem feliz. No entanto, vou para uma luta que, tudo indica, serádificílima. Não posso fugir ao apelo dos companheiros.

Acreditei nele. Deputado Federal, tantas vezes quantas se candidatasse,morando em Ipanema, com uma esposa dedicada e uma filha amorosa, possuíabens que dificilmente são conquistados. Seria novamente vítima das incom-preensões, da inveja, do jogo mesquinho de interesses, do desassossego quecercam as funções executivas. Governar é a mais atraente e a mais difícil dasmissões. Uma candidatura majoritária nunca é fruto da ambição de um só ho-mem. Ele é apenas um denominador comum de ambições.

A campanha tem início. Coligações partidárias são feitas. O PSP, o PTB eo PSB apóiam Muniz Falcão. O PSD, a UDN e o PL lançam a candidatura deRui Palmeira. O PDC e o PTN apresentam Arnon de Melo. Geraldo Sampaiosai candidato com o apoio do MTR, e João Uchôa, com o apoio do PST.

Lamenha, que presidia a Assembléia Legislativa, coordena a composiçãoPSD-UDN que levaria aos alagoanos as candidaturas de Rui Palmeira para go-vernador e a minha para Prefeito de Maceió. Felicito-me por haver iniciadominha vida política na companhia de um homem que possuía tantas virtudescívicas, morais e intelectuais quanto o filho de São Miguel dos Campos. Oembate foi renhido. Cabia, a mim, manter a luta na capital. Participei de mais decinqüenta comícios. Em todos eles tentei insistentemente, sensibilizar o eleito-rado em torno do meu nome e do Senador Rui. Todo o Estado vivia o climaeleitoral. Os três primeiros colocados foram Muniz Falcão, Rui Palmeira e Arnonde Melo. No entanto, a maioria absoluta não foi conseguida. De acordo com aLei, o candidato mais votado precisava do referendo da Assembléia Legislativa,ou, então, teria que se submeter a um novo julgamento popular. Os DeputadosEstaduais permanecem coerentes com os compromissos partidários. O PSP eo PTB não têm maioria, Muniz não consegue a homologação da vitória e Alagoasvoltará as emoções de um novo pleito. Contudo, uma crise política de âmbitonacional leva o Presidente Castelo Branco a decretar o AI-2, dissolvendo os

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treze partidos vigentes e instituindo o sistema bipartidário. Os juristas buscamuma solução para o caso alagoano. O destino intervém. Mal incurável dominao organismo de Muniz Falcão. Ele tenta reagir, porém, já é muito tarde. Dia adia suas forças vão-se exaurindo.

O nosso último encontro foi no Hospital Português, no Recife. Sou rece-bido por Alcides e Dona Alba. Solicito que transmitam meus votos derestabelecimento. Insistem para que eu entre no quarto. A terrível doença fizeraseu trabalho devastador. O homem que tinha diante dos meus olhos era umasombra do que fora aquele líder adorado pela massa. Reconhece-me. Tenta umaceno. Não consegue. Balbucio palavras ininteligíveis e saio. Desejo guardar aimagem física do grande comandante que ele foi.

Falece pouco tempo depois. O corpo é trasladado para Maceió. Solicitoautorização à família para que o município construa, no Cemitério Nossa Se-nhora da Piedade, o mausoléu em que descansará dos embates da vida. Foi aúltima homenagem que lhe prestei.

Muniz Falcão era dotado de maneiras aristocráticas. Alto, magro, vestia-se com uma elegância londrina. Líder carismático, não permitia grandes intimi-dades. Atencioso para com todos, formal, guardava, entretanto, uma certa dis-tância. Odiado ou adorado, era um homem que inspirava respeito.

6 JOÃO BELCHIOR MARQUES GOULART CONQUISTOU A ESTIMA e a confiança dogrande líder Getúlio Dornelles Vargas quando este, afastado do poder, de-sencantado com a política e com os políticos, refugiou-se voluntariamenteem sua estância no município de São Borja, no Rio Grande do Sul. A dedica-ção do jovem advogado, filho de estancieiros tradicionais, amigos da famíliaVargas, sensibilizou o velho caudilho. A solidariedade nos períodos de ostra-cismo é que marca mais profundamente a alma do homem público. Engajou-se na campanha presidencial de 1950. Getúlio Vargas, vitorioso, o faz Minis-tro do Trabalho, Comércio e Indústria. Adotando posições demagógicas,segundo os segmentos conservadores, é muito criticado pela mais extremadaoposição ao governo. Sentiu realmente o suicídio de Getúlio. Foi a perda doguia, do protetor. Rotulado junto às massas, de o amigo dos trabalhadores, emconseqüência dos ataques radicais dos inimigos do presidente, consegue trans-formar-se no herdeiro político de Vargas, suplantando líderes da estatura deOswaldo Aranha, João Neves da Fontoura, Danton Coelho e os própriosfamiliares do ex-presidente.

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Defendendo a coligação do PSD com o PTB, compôs a chapa de Jusce-lino Kubitschek, como candidato a vice-presidente, indicado pelo Partido Tra-balhista. Postulando a reeleição ao lado do General Lott, sobrevive ao “venda-val janista”, elegendo-se concomitantemente com Jânio Quadros.

Readquirindo a amplitude dos poderes da Presidência da República, de-pois do plebiscito, reacendem o ódio e a desconfiança das forças que haviamdeposto Getúlio Vargas em outubro de 1945, e que, muito ajudadas pelos opor-tunistas, conduziram-no ao suicídio em agosto de 1954. Apoiando-se na classeoperária, nos sindicatos e associações estudantis, promete reformas sociais, anacionalização de empresas estrangeiras e a divisão de terras dos grandes pro-prietários. É paradoxal para muitos, que um dos maiores estancieiros do sulpregue a reforma agrária nos latifúndios do Norte e do Nordeste do país. Amaioria dos governadores está em oposição ao Presidente, principalmente osdos Estados de São Paulo, Minas Gerais e Guanabara, o eixo econômico epolítico mais importante do Brasil. O Rio Grande do Sul é governado pelopessedista Ildo Meneghetti, aliado da UDN e antigo adversário de João Goularte Leonel Brizola.

Greves reivindicatórias de melhorias salariais e de natureza política explo-dem em todas as partes, a inflação continua incontrolável, a crise econômico-financeira se acentua, há indisciplina nos quartéis. O princípio da hierarquia mili-tar é afetado. O conflito entre o capitalismo e o marxismo aumenta na AméricaLatina com a vitória da revolução cubana. A imprensa, quase que diariamente,denuncia escândalos. Auxiliares, exercendo funções importantes no governo,perdem credibilidade, provocando diminuição nos índices de popularidade doPresidente da República. A autoridade governamental está diluída.

A rebelião inicia-se em Minas Gerais. O Governador Magalhães Pinto eos Generais Olímpio Mourão Filho e Carlos Luís Guedes, no dia 31 de mar-ço de 1964, deflagram o Movimento. É lido, em uma cadeia de emissoras derádio, o manifesto-senha da Revolução. As tropas mineiras marcham em dire-ção ao Rio de Janeiro e Brasília. Em São Paulo, o General Amaury Kruel,comandante do II Exército, adere aos revolucionários. O Governador Ademarde Barros anuncia seu apoio. O Presidente João Goulart, não contando comdispositivo militar, desejoso de evitar derramamento inútil de sangue, viajapara Porto Alegre. O Deputado Federal Leonel Brizola, cunhado de Jango,tenta convencê-lo a resistir. Recusa levar o país a uma guerra civil e asila-seno Uruguai. O Brasil defronta-se com uma de suas encruzilhadas. O SenadorAuro de Moura Andrade, Presidente do Congresso, declara vaga a Presidên-cia da República e empossa como Presidente em exercício, o Deputado RanieriMazzilli.

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Em 11 de abril, o Congresso Nacional elege o General Humberto deAlencar Castello Branco Presidente do Brasil. Empossado no dia quinze iniciao ciclo de governos militares.

O Governador de Alagoas, Major Luís Cavalcante e o Presidente da As-sembléia Legislativa, Deputado Lamenha Filho, conseguiram com muito equi-líbrio e serenidade, evitar a “caça às bruxas” que se segue a qualquer movimen-to revolucionário. Não se transformaram em instrumento do ódio.

As paixões político-ideológicas dividem e envolvem o Brasil.

7MUITOS HOMENS CONTRIBUÍRAM PARA A CONCRETIZAÇÃO do grande sonho dosertanejo alagoano, que era ter sua região abastecida com as águas do Rio SãoFrancisco.

Entre eles, destacam-se três pelo empenho em fazer com que os céticosacreditassem na possibilidade da obra, em captar recursos para sua execução e,finalmente, em concretizá-la. Foram o Senador Rui Palmeira, o GovernadorLuís Cavalcante e o industrial Benício Monte. Os dois primeiros políticos cum-priram o dever, que é o de retribuir à confiança de um povo, através de obrasque venham modificar a paisagem geográfica e social de uma região ou de umEstado. Como seria bom se todos os políticos agissem assim. O terceiro, oindustrial Benício Monte, como um bom cidadão, sacrificou pelo interesse ge-ral as suas ojerizas particulares. Atendendo a um feliz convite do Major paraassumir a Presidência da Companhia de Água e Saneamento de Alagoas, aindaem fase de implantação, empenhou-se, de corpo e alma, na sua missão, quandopoucos acreditavam nela.

Testemunha privilegiada dos acontecimentos pelo fato de estar à frenteda Secretaria da Fazenda, acompanhei de perto o trabalho desse homemnotável pelo seu denodo e pelo seu amor à causa pública. Depois que assu-miu o comando da CASAL, nunca o encontrei, sem que deixasse de falarsobre a irrigação da bacia leiteira. Perdia a noção do tempo. Quantas vezes“brigamos” por verbas. Até que, num domingo, ele me leva aos municípiosde Jacaré dos Homens e Belo Monte, a fim de visitar o canteiro de obras.Confesso que fiquei maravilhado com o espetáculo que presenciei; quilô-metros e quilômetros de valas abertas e milhares de canos davam a idéia doque tinha sido a luta daquele homem e de sua equipe. Tornei-me entusiastado empreendimento e, dentro das possibilidades financeiras do Estado,passei a ajudá-lo.

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Ele criou uma mística dentro da companhia. Os funcionários da empresapassaram a sentir-se úteis à coletividade. O importante era que a obra fosse con-cluída.

8CONVENCERA-ME DOS ARGUMENTOS. Aceito ser candidato a Prefeito de Maceió.É verdade que, há muito, desejava governar minha cidade. Entretanto, tinhadúvidas quanto às possibilidades eleitorais. Temia, não a derrota em si, mas queela fosse fragorosa. Amigos afirmam que essa possibilidade não existe. Admi-tindo-se a hipótese de não ser vitorioso, ficaria em segundo, ou, no máximo,em terceiro lugar.

Cinco são os candidatos. Conceituados, desfrutando de prestígio popu-lar, alguns já com bastantes serviços prestados à sociedade, são concorrentesdifíceis e dignos de respeito. Empenho-me na luta. Neófito em política, estréiocomo orador de praças públicas. Saio-me razoavelmente bem. Tenho, porém,uma grande dificuldade, segundo os companheiros, não sei prometer. Tenhoescrúpulos de não poder cumprir e ser considerado um demagogo. À solicita-ção de compromissos diretos, respondo com evasivas. É com surpresa queobservo, no futuro, que essas respostas foram consideradas compromissos for-mais. Participo de dezenas e dezenas de comícios, de palestras, de conferênciasem bairros, distritos, faculdades, clubes esportivos e sindicatos. Em todas asoportunidades, falando ao povo, afirmo apenas possuir experiência de admi-nistração pública, em virtude dos vários cargos que já exercera na Prefeitura eno Governo do Estado, apesar da pouca idade. Juventude, ausência de vaidades(os cargos, por mais elevados que fossem, nunca me subiram à cabeça), coerên-cia para com os amigos e as forças políticas com as quais me sinto integrado, asquais criam-me perspectivas de vitórias.

O resultado das eleições surpreende. Fiquei praticamente com a metadeda votação da cidade. Disputando com o maior número de candidatos a Prefei-to da história política de Maceió, consegui o maior percentual de votos.

Conscientizo-me da enorme responsabilidade, implícita no magnífico re-sultado. Deixara de ser uma esperança, tornara-se uma certeza. A excessivaconfiança da maioria e a mágoa de grande número daqueles que votaram noscandidatos derrotados gerariam uma acentuada incompreensão para minhasfalhas e pouco crédito para meus acertos. Tudo o que realizasse seria poucopara o que se esperava. Minha capacidade de realizar, na imaginação do povo,desprendia-se da realidade financeira do município e atingia conotações miríficas.

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Naquele instante, acreditava-me capaz de concretizar os sonhos de uma comu-nidade. Muito tempo levaria, ainda, para compreender a difícil posição de ummais que depositário de esperanças. Somente depois de amargas experiências,frustrado, incompreendido, é que me convenceria de como é difícil conduzirou modificar destinos.

9ARTICULA-SE A COMPOSIÇÃO POLÍTICA QUE LEVARIA o Partido Social Democrá-tico a apoiar o candidato da União Democrática Nacional ao Governo do Es-tado de Alagoas, nas eleições de outubro de 1965. O PSD reivindicava indicaros candidatos a Vice-Governador e a Prefeito de Maceió e sugeria que a UDNcompletasse a chapa que concorreria às eleições municipais, apresentando ocandidato a Vice-Prefeito. As démarches são encetadas pelo Deputado LamenhaFilho, Presidente da Assembléia Legislativa, e pelo Deputado Federal MedeirosNetto, líderes de grande prestígio do PSD. O acordo seria pacífico se um dosmais destacados membros da UDN, o Deputado Theobaldo Barbosa, já nãohouvesse anunciado que era candidato a Prefeito de nossa capital. Inúmerasreuniões são realizadas. Sugestões e mais sugestões são discutidas. Entretanto,o PSD, por intermédio de Lamenha, “fechou a questão”. Apresentou, comocandidato do Partido a Vice-Governador, um dos grandes nomes do seu qua-dro, o bacharel Francisco Oiticica, que, inclusive, no passado, já fora lembradopela própria UDN para, em coligação, ser candidato a Governador, e para Pre-feito, o nosso nome. Os líderes udenistas, visando à conquista da vitória dacampanha governamental concordam e apresentam, como candidato a Vice-Prefeito, o Vereador Juvêncio Lessa.

A Convenção que apresentava oficialmente os candidatos seria realizadana Associação Comercial. Praticamente, foi nessa noite que mantive meu pri-meiro contato com o Senador Rui Palmeira, nosso candidato ao Governo doEstado. Naturalmente, que já o conhecia; seu nome era uma legenda em Alagoas.Centenas de histórias contavam-se a seu respeito. Mas vivíamos em mundosdistintos. Além da diferença de idade que nos separava, ele, no exercício domandato de Senador da República, morava no Rio de Janeiro e em Brasília,vindo a Maceió, para visitas rápidas ou, com mais vagar, nos recessos parla-mentares, quando geralmente permanecia no seu querido engenho Prata, emSão Miguel dos Campos. Fiquei verdadeiramente maravilhado com o seu dis-curso de lançamento de candidatura. Considerava-o o maior orador político deAlagoas. Costumava usar artifícios oratórios. Que frases geniais criava! Comosabia utilizar as palavras! Transcrevo um exemplo:

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Não é o desejo de não mudar que nos faz aliados em mais esta oportunidade. Mas adeterminação de promover, onde nos caiba, quando nos caiba, aquelas transformações quemarcam o mundo de hoje. O papel de comando, que ainda nos cabe, sugere que não cruzemosos braços, e, muito menos, fechemos os olhos. Somos todos nós, os políticos partícipes de ofíciodo grande esforço na luta contra a fome, a doença, o analfabetismo. Esses grandes malessociais não podem sobreviver ou não sobreviveremos nós. Os povos, que hoje lideram o mundo,pretendem chegar à lua e não conseguiram dar solução aos mais simples e, ao mesmo tempo,mais graves problemas humanos. A corrida espacial tem, por isso, ares de fuga.

Faremos política, sim. Desejamos fazer a política que mais convenha aos alagoanos.Ela é indispensável para que possamos administrar tranqüilamente, para que tenhamos abase necessária ao trabalho administrativo e para que se criem novos líderes.

Era orador para auditórios selecionados. Na praça pública, falando para asculturas mais heterogêneas possíveis não causava o mesmo efeito que obtinhadiscursando em recintos fechados. Era mais o conferencista do que o oradorpopular.

Os Partidos organizam a comissão coordenadora da campanha. A presi-dência é entregue ao Deputado Lamenha Filho. Médicos, dentistas, advogados,que simpatizam com a causa, são recrutados para concederem assistência gra-tuita a centenas de pessoas que procuram os candidatos em busca de auxíliosque possam ser prestados por esses profissionais liberais. Designa-se um tesou-reiro para não só ajudar a conseguir recursos, mas também para controlar asdespesas, efetuar pagamentos, organizar a contabilidade e prestar contas à Exe-cutiva. Não é uma função fácil. É necessário que goze da confiança de todos,principalmente, dos doadores de dinheiro para o fundo partidário. O escolhidoé Jarbas Gomes de Barros.

Inicia-se a maratona política. Somente quem já foi candidato ou partici-pou ativamente de uma campanha sabe o que ela significa em termos de esfor-ço físico e mental.

Dezenas e dezenas de comícios. Inúmeras conferências e palestras sãoproferidas em sindicatos de classe, em faculdades, em colégios, em instituiçõesreligiosas. Visitas são feitas a fábricas, estabelecimentos comerciais, terreiros demacumba, clubes sociais e cabarés.

Coube a mim e ao Juvêncio a responsabilidade de conduzir a campanhaem Maceió. O Senador tinha que, no mínimo, falar pelo menos uma vez emtodos os municípios do Estado. Desejava que ele dedicasse maior número dedias à Capital.

Maceió conta com mais de um terço do eleitorado alagoano e enfrentáva-mos as maiores lideranças populares da cidade: Muniz Falcão, Oséas Cardoso,Arnon de Melo e Silvestre Péricles. Lutávamos contra a Rádio e o Jornal Gaze-

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ta de Alagoas, inegavelmente, os órgãos de imprensa de maior penetração nacomunidade alagoana. Éramos candidatos apoiados pelo Governo do Estado,e, depois do advento do voto secreto, nenhum candidato apoiado pelo gover-nador em Alagoas conseguira vencer eleições. Queria retê-lo ao meu lado eusava esses argumentos, que eram convincentes porque verdadeiros. Porém, osnossos correligionários do interior também reclamavam sua presença. Quantasqueixas os candidatos ensejam por não poderem fazer aquilo que é humana-mente impossível, que é o de estar em três, quatro lugares, ao mesmo tempo.Muitos deles, a centenas de quilômetros um do outro.

Fiz o que era possível. Dos cinqüenta e oito comícios que realizei emMaceió, ressaltei, em todos eles, as qualidades superiores de que sua personali-dade era dotada e pedia, e insistia, para que aqueles que votassem em mim,sufragassem o seu nome. Alguns dos meus amigos imploravam para que eu nãoinsistisse tanto. Que apenas recomendasse o nome do Senador, mas, sem aque-la veemência. A preocupação desses amigos é que eu não fosse traído, segundoeles, pelos udenistas mais radicais que votariam no Theobaldo, candidato natu-ral do Partido, mesmo havendo seu nome sido apresentado por outra legenda.Respondia que ninguém é obrigado a fazer um acordo, mas que depois de feitoé obrigado a mantê-lo. Cumpriria a minha parte.

Seria mais cômodo atender a esses rogos. Amigo pessoal de vários mem-bros da família Falcão, sabia ser simpático ao Doutor Muniz. Ele sempre metratou com uma deferência toda especial. O Coronel Anacleto Suruagy, meutio, fora Comandante da Polícia Militar no seu Governo. O Deputado AntônioAmaral, parente afim, era um dos seus principais pontos de apoio no sertãoalagoano. E, naquele pleito, o Deputado Muniz Falcão era a maior força políti-ca de Maceió. Lutar contra ele, em nossa cidade, era quase suicídio político.Entretanto, lutei. Em todos os bairros onde falei, pedi votos para o SenadorRui. Realizei comícios em todos os pontos da cidade. Lembro-me de uma noi-te, quando discursava no distrito industrial de Fernão Velho, eterno reduto deoposição e grande base eleitoral munizista. Inicio o discurso; estudo a multi-dão; frieza total. Resolvo provocá-la com a seguinte mensagem:

O povo alagoano, mais uma vez, é convocado às urnas para escolher aquele que dirigiráos destinos de Alagoas no próximo qüinqüênio administrativo. Na minha opinião, todos osaspirantes ao cargo são homens de bem. Entretanto, entre eles, destaca-se a figura do SenadorRui Soares Palmeira pelos grandes serviços prestados ao nosso Estado e ao nosso país, noCongresso Nacional. Poderíamos citar dezenas e dezenas de projetos de interesse para o desenvol-vimento de Alagoas, apresentados e defendidos por esse brilhante parlamentar, honra não só daclasse política alagoana, mas também orgulho da classe política brasileira. Para não cansá-los,operários de Fernão Velho, deter-me-ei em apenas um, que, por si só, justificaria a vida pública

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do eminente Senador. É o projeto da adutora da Bacia Leiteira. Sensibilizado pelo drama daseca que, periodicamente, assola o sertão, contrário a soluções paliativas, começa a lutar para queos órgãos do Governo Federal, sediados na região, elaborem os estudos técnicos com vistas àcaptação de água do Rio São Francisco para abastecer as cidades sertanejas. Consegue incluir noorçamento da Nação recursos destinados à execução da obra. É um trabalho de pioneirismo.Poucos acreditam. Sempre que suas atividades permitem, volta àquela região para sentir o apelosilencioso e trágico e mais trágico, porque é silencioso de milhares e milhares de alagoanos, que,lutando contra tudo e contra todos, clamam através de olhares, que traduzem, com mais eloqüên-cia do que as mais belas frases pronunciadas por um grande tribuno, o sofrimento em que vivem.Eles pedem água. Eles pedem, apenas, o direito de sobreviverem. Revoltado por tanta miséria,reencontra as forças necessárias para continuar seu trabalho que, agora, passa a ser algo maisnobre, passa a ser uma missão quase divina. A de amenizar o sofrimento do seu semelhante. ÉPolítica no mais alto sentido.

Em 1960, o Major Luís Cavalcante é eleito Governador do Estado e toma para si aresponsabilidade de concretizar um sonho. Unem-se Governos Federal e Estadual, e realiza-se o “milagre”. A obra é iniciada. Tornou-se irreversível e, quando concluída, será a maioradutora da América Latina.

São esses dois homens que se submetem ao julgamento popular. O Major, como respon-sável pelo maior Governo de Alagoas em termos de realizações físicas, que foi buscar, nafigura ímpar do Senador Rui Palmeira, exemplo da honorabilidade, da inteligência e dacultura do nosso povo, o continuador dessa administração que tantos benefícios, que tantoprogresso trouxe para nosso Estado.

Alagoanos, assumamos um compromisso com o futuro de nossa terra, assumamos umcompromisso com a consolidação do nosso desenvolvimento, elejamos no próximo dia 3 deoutubro, para Governador de Alagoas, o Senador Rui Palmeira.

Não conseguimos maioria de votos em Fernão Velho, mas, pelo menos,ao terminar o discurso, a “frieza” incômoda daqueles que nos ouviam já nãomais existia. Pelo contrário, ao descer do palanque, tive dificuldades para aten-der a todos que desejavam me cumprimentar. Com esforço, cheguei ao auto-móvel que me conduziria a Maceió.

Realizamos apenas seis comícios juntos. O do Vergel do Lago, o da PraçaGuimarães Passos, o do Tabuleiro do Martins, o da Coréia, o da Praça Deodoroe o do encerramento da campanha, que foi realizado na Praça Sinimbu.

Fiel ao seu estilo, ele não insuflava, doutrinava a massa. O discurso quemais me impressionou foi o proferido no bairro da Coréia. Era o estilo doestadista reagindo contra aquelas fugas para a oratória popular. Quando eleterminou, confidenciei-lhe.

– Senador, este discurso merecia um auditório como o Congresso Naci-onal, para que ecoasse por todo o país.

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Respondeu-me sem palavras. Com um gesto raro, colocou as mãos nosmeus ombros e abraçou-me. Acho que o abraço não foi provocado pelos elo-gios que lhe fiz, mas, pela emoção de que estava possuído e que foi a responsá-vel pelo brilhante discurso com que nos brindou. Foi uma pena que aquelesbelos conceitos, dignos de figurar numa antologia literária, hajam sido proferi-dos de improviso e tenham-se perdido para a posteridade, ao naufragarem naplacidez da lagoa Mundaú, para onde nossas palavras eram conduzidas pelovento naquela noite de setembro.

10O ESQUEMA DE FORÇAS POLÍTICAS, responsável pela vitória da UDN, doPDC e do PL em 1960, fragmenta-se. Três candidatos saem do mesmo gru-po. Rui Palmeira, Arnon de Mello e Geraldo Sampaio. Exatamente o opostodo que ocorrera há cinco anos, quando esses Partidos marcharam unidos eseus adversários divididos, também, com três candidaturas: Abraão Moura,Silvestre Péricles e Ari Pitombo. O resultado foi o que a lógica determinava.As oposições, reunidas sob a liderança de Muniz Falcão, venceram o pleito.Entretanto, consegui a vitória em Maceió. Por motivos inexplicáveis, o eleito-rado inclinou-se para mim. É verdade que a minha coerência em torno dacandidatura do Senador Rui e o reconhecimento do êxito administrativo doGoverno do Major Luís, feito em praça pública, numa hora em que poucosousavam fazê-lo, conquistara os udenistas e os amigos do governador. Que-bramos todos os recordes políticos da capital. Fui o candidato que disputoucom o maior número de concorrentes (quatro) e o mais votado em toda ahistória da cidade. Fui o mais jovem Prefeito eleito de Maceió e o único quese elegeu contando com o apoio do Governador do Estado. Até então, ogoverno sempre perdera eleições na Capital.

11Três dias após as eleições, o pleito estava definido. Faltava apenas apuraralgumas urnas da terceira zona eleitoral de Maceió, exatamente aquela em quea oposição era mais forte, e a dos pequenos municípios do interior. Os resulta-dos não alterariam o quadro eleitoral. A seqüência dos candidatos por votaçãofoi: Muniz Falcão, Rui Palmeira, Arnon de Mello, Geraldo Sampaio e JoãoUchôa. Entretanto, o Deputado Muniz Falcão não conseguiu maioria absoluta.A soma dos votos do Senador Rui e do Senador Arnon de Mello foi maior queo número de votos obtidos pelo líder oposicionista. Era necessária a homolo-

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gação da vitória pelo Poder Legislativo. O esquema das forças de oposição eraminoria na Assembléia. Acreditava-se que haveria novas eleições, participandoapenas os dois candidatos mais votados. Porém, à noite do dia 6 de outubro de1965, tudo eram conjecturas. Em companhia de David Azevedo, vou visitar oSenador Rui. Hospedava-se no Farol, na Rua Comendador Palmeira, numa casaque mantinha alugada para quando estivesse em Maceió com a família. Aindanão nos havíamos encontrado depois do pleito. Eu viajara no dia quatro aoRecife e só voltara naquela tarde. Esperava encontrá-lo acabrunhado. Seria na-tural, seria humano. No entanto, sua fisionomia estava impassível. Difícil anali-sar através dela os sentimentos que lhe vão na alma. Cumprimenta-me pelavitória. Titubeio. Resmungo alguns agradecimentos. Além de seus familiares,encontrava-se o Deputado Federal Segismundo Andrade, que com a veemên-cia que o caracteriza, dissecava as eleições. Apresentava os motivos, que segun-do ele, eram os responsáveis pela derrota. Defendia seus pontos de vista comardor. O Senador nada falava. Permanecia calado. Imagino que seu pensamentoestava muito longe daquela sala. É quando chega Siloé Tavares. O DeputadoSegismundo o interroga:

– Qual foi o resultado final de Santana? As feições do político santanense respondem melhor do que palavras. A

amargura da derrota estava estampada em seu rosto. Acredito que ele sofriamais com o revés da candidatura do seu grande líder, do que se fosse a sua. OSenador, compreendendo, o interrompe:

– Não precisa dizer nada, Siloé. Em tom de blague: – Cheguei à conclusão de que o alagoano me prefere no Senado. Sorrisos... Quebrou-se a tensão. Conversamos mais uns trinta ou quaren-

ta minutos. David e eu pedimos licença para nos retirar. O Senador nos acom-panhou até a porta. Segurou o meu braço, como se desejasse conversar algocomigo. David afasta-se discretamente.

– Suruagy, quero agradecer o esforço que você fez por mim. E surpreen-dendo-me:

– Filho, você entrou, agora, em política. Não esqueça essa lição. Nuncajustifique as possíveis derrotas que venha a sofrer. E nunca ressalte as suasvitórias. Receba-as com humildade.

Como foi oportuno aquele conselho, naquele instante, naquela noite, quan-do, ingenuamente, acreditando desfrutar de um grande prestígio, encontrava-me vaidoso.

A admiração que nutria por ele, com o decorrer da campanha, transfor-mara-se em estima.

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12ENCONTRAVA-ME INDECISO. Relutava em decidir se deveria permanecer o téc-nico, o economista, ou atender aos apelos de centenas de amigos que, havendotrabalhado comigo na Prefeitura e no grupo jovem do Governo Luís Cavalcan-te, insistiam na possibilidade de uma vitória, caso cedesse aos apelos de sercandidato a Prefeito de Maceió.

Exercia a função de Secretário da Fazenda do Estado. O chamado JardimInfantil do Governador defendia o raciocínio de que um de nós deveria disputarum cargo eletivo visando à permanência do “time” nas decisões maiores dacomunidade.

Manola, velho companheiro da Prefeitura, era o mais entusiasta. Argu-mentava que a vitória seria fácil. Mais de 80% dos servidores municipaisseriam, não apenas eleitores, mas cabos eleitorais; e realmente foram. A tropade choque da campanha foi composta do funcionalismo da Prefeitura e dosferroviários, conquistados graças a Dilton Simões.

Manoel Dória foi um dos mais atuantes da luta. Saía de manhã, de tarde ede noite, impecavelmente vestido, com uma pasta preta debaixo do braço, cheiade retratos meus. Distribuía a propaganda com tal dignidade que ninguém ousavarecusar. Brigou e permaneceu ao meu lado em todos os pleitos que enfrentei eem todos os cargos que exerci até sua morte. Fiel ao seu temperamento, radicalizavao combate, ia para a linha de frente. Possuía, por mim, uma afeição paternal. Nãoadmitia a menor crítica à minha pessoa. Dissecava, impiedosamente, o caráterdos que me combatiam. Sendo um verdadeiro arquivo ambulante da vida deMaceió, começava a analisar os meus adversários pelos pais e avós.

Era um emotivo, como todo passional. Entretanto, só o vi chorar umavez. Foi quando, concluído o meu mandato de Prefeito, descemos juntos asescadas da Prefeitura.

A impressão que ficou em mim, é que eu era uma espécie de ídolo paraele. Quando partiu, deixou-me duas certezas: perdi um dos amigos mais leais, eAlagoas ficou menor.

13A SOCIEDADE ALAGOANA TRANSFORMAVA-SE. A evolução industrial em nossoEstado gerara uma nova classe – a do usineiro – que, por controlar a produçãoda maior fonte de riqueza de Alagoas – o açúcar – influenciaria a política doEstado. Desaparecia a figura do senhor de engenho. Em seu lugar, surgia umnovo tipo social. O fornecedor de cana. Alguns senhores de engenho reagiram,mas as condições do mercado internacional favoreciam as usinas, e, algumas

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safras depois, eles eram vencidos. Concentração de enormes fortunas nas mãosde poucas famílias. O título de usineiro passa a ser sinônimo de poder. A eco-nomia do Estado, indiscutivelmente, prosperava com o novo ciclo que se im-plantava. A interrogação, que se fazia, era se essa prosperidade atingiria o povode maneira geral. Como ocorre com toda classe que atinge o Poder, os usineiroscontraem inúmeros inimigos. A usina é considerada por muitos como um imensopolvo a sugar a economia de uma maioria, em benefício de poucos privilegia-dos. Aventureiros aproveitam a insatisfação, para que radicalizando as paixõeshumanas, conseguissem vantagens pessoais. As lutas de classe chegam a Alagoas.

Os capitães da indústria têxtil, os grandes fazendeiros do sertão, osplantadores de arroz do baixo São Francisco, os comerciantes dos maiorescentros urbanos e os plantadores de coco do litoral aliam-se aos usineiros emdefesa de seus patrimônios.

Radicalização de ambos os lados. Ódios. Lutas. Mortes. A posição maisdifícil, nessa conjuntura, é a dos liberais-democratas pugnando pelas teses es-posadas pela Revolução Americana e pela Revolução Francesa. Ora são acusa-dos de marxistas, ora são acusados de “vendidos aos capitalistas”.

A juventude estudiosa de nossa terra, estava dividida em quatro grandescorrentes: a primeira, discípula de Voltaire, Rousseau e Jefferson; a segunda,adepta do positivismo de Augusto Comte; a terceira, marxista-leninista, e aquarta, admiradora de Georges Sorel e de Valfredo Pareto.

Rui Palmeira foi inegavelmente o grande líder do primeiro grupo. Duran-te esse período de transição da vida sócio-política e econômica de Alagoas,permaneceria sempre fiel aos princípios democráticos. Entretanto, vítima deuma dessas inexplicáveis incongruências da atividade política, por motivos an-tagônicos, perdeu as eleições, em 1946 e 1965, para o Governo do Estado. Naprimeira, acusado de esquerdista e, na segunda, de reacionário. De esquerdista,porque lutava por melhores salários para o trabalhador, por educação para to-dos, por melhoria do padrão de vida do povo. De reacionário, por defender aconvivência do capital com o trabalho, como fator básico para o desenvolvi-mento, atuando o poder público como agente moderador.

Mudou ele? Não. Mudaram as épocas e, com elas, as interpretações dosfenômenos sócio-econômicos. Em toda sua longa vida pública foi coerentecom suas idéias. Morreria acreditando que a democracia é a forma mais subli-me de se governar um povo.

14VITÓRIA EM ELEIÇÃO MAJORITÁRIA É, geralmente, vitória de esquema político.A imagem do candidato é vendida, é imposta à opinião pública, através da

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publicidade acionada pela máquina partidária. É claro que ele precisa possuirqualidades que permitam a criação do mito. O que é falso, algumas vezes, podeiludir, desde que repetido com insistência. Porém, mais cedo ou mais tarde,descobre-se, desmascara-se. O que é verdadeiro, o que é autêntico, é muitomais fácil de ser aceito.

Candidato e Partido complementam-se na perseguição da vitória. É importante para o fortalecimento do regime democrático que, no de-

correr do pleito, um não esteja acima do outro. Quando as circunstâncias per-mitem que o Partido vá buscar, em seus quadros, não o de maior identificaçãopopular ou o que possua condições para adquiri-la através da campanha, enfim olíder, teremos um governo que não será capaz de motivar o povo às grandesobras que se fazem necessárias ao desenvolvimento. Elas poderão ser feitas, massem entusiasmo, porque o executor maior não foi capaz de inspirar apoio. Igual-mente perigoso para a sociedade é quando o candidato se torna mais importanteque o Partido ou a causa. As ditaduras são decorrentes desse fenômeno.

Minha eleição à Prefeitura de Maceió foi fruto dessa identidade entremim e as forças políticas que nos apoiavam. Sem elas, não teria ganho. Comoutro nome, dificilmente, o Partido teria alcançado o poder.

A razão primordial de uma agremiação partidária é a conquista do Poder.É por seu intermédio que executa o programa que influenciará e modificará osrumos de milhares e de milhões de pessoas. Na oposição, pode criticar e evitarque determinadas providências sejam tomadas. Mas construir, realizar, execu-tar, somente através do Poder. Sua busca é a seiva que dá vida ao Partido, quealimenta seus membros.

15O PRIMEIRO ANO DE UMA ADMINISTRAÇÃO É geralmente o mais difícil. Cadaadministrador tem métodos próprios que, no subconsciente, considera os maisacertados. É, também, uma característica do ser humano levar suas inclinaçõese tendências para o que dirige. Meses se passam até que o novo sistema detrabalho seja implantado. Adicione-se a isso a dificuldade de substituir todos oscargos de chefia. Numa cidade relativamente pequena, onde toda a elite intelec-tual e administrativa se conhece, ou é constituída de parentes e amigos, é maisdifícil do que parece modificar um secretariado. Amizades antigas são desfeitasou ficam estremecidas. Os companheiros de campanha, quando não conse-guem os cargos desejados, ficam magoados.

– É um ingrato, só foi eleito por minha causa e não me aproveitou. Vejaquem ele foi buscar para a Chefia do Gabinete. Não fez nada na campanha e équem está beneficiado.

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A raiva aumenta à medida que vai falando. – Estou cansado de servir de escada para os outros. Quando chegarem as

próximas eleições, ele me paga.As famílias são envolvidas no rompimento. A oposição a um Prefeito, a

um Governador ou a um Presidente da República, começa, quando anuncia aequipe de auxiliares. A equipe tem que ser constituída entre os amigos e corre-ligionários que forem mais capazes para os cargos a serem preenchidos. Ocritério tem que ser primeiro, o da capacidade; depois, o da amizade. O ideal équando se pode conciliar a capacidade com a amizade. Tem-se, então, a dedica-ção do amigo aliada à inteligência de um cérebro bem-dotado.

O Chefe do Executivo tem que estar preparado, psicologicamente, paraas naturais incompreensões. É humano o raciocínio de supervalorização dealguns companheiros ou de seus familiares, em torno de sua atuação na lutapolítica. O Partido tem compromisso com todos, porém, nunca o de indicá-lospara funções em que não possuam habilitação. O fracasso refletirá na adminis-tração como um todo e prejudicará a comunidade.

16INFORMAÇÕES DE QUE COMPROMISSOS JÁ ASSUMIDOS impediam o Partido SocialDemocrático e o Governador Luís Cavalcante de apoiarem meu nome comocandidato à Prefeitura da Capital alagoana, levam-me, desejoso de evitar cons-trangimentos a Lamenha e ao Major Luís, a desistir da pretensão de participardo pleito eleitoral que se aproximava. Apesar de procurado por líderes de ou-tras agremiações partidárias, não aceitava, sequer, discutir a hipótese de lutarcontra o candidato do governo do qual fazia parte na qualidade de Secretárioda Fazenda. Preferia desistir da vida política.

Escrevo a Lamenha, então Presidente da Assembléia Legislativa e Secre-tário do Diretório Regional do PSD, e a Lincoln Cavalcanti, Secretário de Esta-do, defensor intransigente de minha candidatura junto ao irmão Governador,comunicando meu propósito. Procurado por eles, insistem para que não anun-cie minha decisão e permaneça candidato a candidato. As composições políti-cas determinariam os acontecimentos. Lamenha foi o grande articulador dacoligação UDN-PSD que levaria ao julgamento do povo alagoano as candida-turas Rui Palmeira – Francisco Oiticica e Divaldo Suruagy – Juvêncio Lessa,postulantes, respectivamente, a Governador e Vice-Governador, a Prefeito eVice-Prefeito de Maceió.

Nosso primeiro comício foi na Praça da Maravilha, e Lamenha estavalá. Jamais esqueci. Eleito Prefeito pavimentei aquela região da Pajuçara e nunca

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permiti que pairassem dúvidas do quanto estimo e do quanto devo a esse bomamigo.

17MACEIÓ, INTERNATO DO COLÉGIO MARISTA, 1937. Quem visse aquelerapazinho de olhar decidido e de maneiras firmes, não adivinharia jamais o quese passava no seu íntimo. Falecera Antônio Semião Lamenha Lins, e ele, o filhomais velho, ficara com a incumbência de dirigir o engenho Coronha. Poderiacontinuar em Maceió. Nesse caso, porém, sua mãe, Dona Olímpia, assumiriaum encargo pesado demais para a sua fragilidade feminina.

Antônio Semião Lamenha Filho não pensou um instante, ficou na pro-priedade, comandando a batalha da sobrevivência da família.

Para Lamenha, aquela foi a decisão mais importante de sua vida. Alunodestacado do Colégio Diocesano, ele abandonava definitivamente a possibili-dade de se formar. Ia plantar cana. Em vez de lidar com os livros, teria contatopermanente com as delícias e as agruras da vida do homem do campo.

A idéia de não ser mais um proprietário rural de poucas letras tambémnasceu daí. Dessa tomada de posição, Lamenha guardava duas características:não decidia nada “de rompante” (embora jamais se tenha arrependido de terficado à frente da família) e foi um apaixonado pela leitura. Os bons autores,clássicos e modernos, Shakespeare inclusive, foram seus companheiros diletos.

Entre Eça de Queiroz e a gritaria cabocla do engenho, Lamenha plasmoua sua personalidade. No colégio, ele era o líder. No engenho, antes de dono, erao primeiro nas demonstrações de presença.

O “chinesismo”, que o acompanhava, decorria do hábito, consciente-mente cultivado, de pensar muito antes de determinar o rumo a ser seguido.

Esse homem, que teria indubitavelmente uma excelente carreira de inte-lectual, pois qualidades de espírito não lhe faltavam, jamais se revelou um de-sencantado por não ter conquistado o “anel” de doutor. Seu senso de humor esua acurada capacidade de julgamento faziam dele uma pessoa simpática, deconvivência fácil e de uma extraordinária inteireza de caráter.

Devo muito de meu itinerário político a Lamenha. Quando levou o seuPartido a apoiar meu nome na disputa pela Prefeitura, arriscava, possivelmente,a sua famosa acuidade política. Ele sabia da dureza da luta que nos esperava porconhecer a tendência, historicamente oposicionista, do eleitorado das capitais.Entretanto, confiou no seu jovem amigo, que por sua vez, tem-se esforçado paranão decepcioná-lo.Quando o tempo oferecer perspectiva para uma análise desa-paixonada, os alagoanos terão uma idéia exata do valor da contribuição que, para

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a grandeza de nosso Estado, foi oferecida por Antônio Semião Lamenha Filho. A nova geração de políticos de Alagoas deve ir buscar, no exemplo de seu

espírito público, da sua honradez, da sua capacidade de servir, do seu alto sensode amizade e da sua preocupação constante de ser um agente do desenvolvi-mento, um espelho onde refletir uma personalidade superior.

18SINTO-ME PREOCUPADO AO ASSUMIR AS RÉDEAS do governo municipal. Apesarda experiência administrativa que possuo e da identidade com os problemasmunicipais, fruto de vários cargos que já tive a oportunidade de desempenhar,é que tenho consciência de que os problemas e as dificuldades que vou encon-trar à frente da Prefeitura de Maceió serão inúmeros.

Encontro-me numa posição cômoda ao ser empossado no honroso car-go. Não fiz promessas mirabolantes ao povo da minha terra. Nada prometi, anão ser encetar o máximo de meus esforços, para tentar realizar algo de útil e deproveitoso em benefício de nossa cidade. Quem administra tem sempre queraciocinar em termos de conjunto, tem que colocar sempre em primeiro planoo todo, e nunca, o caso isolado, individualizado.

Para nos ajudarem no equacionamento e na solução desses problemas, e,também para coadjuvar a minha mocidade, convidei as elites intelectuais da nossaterra a participarem de nossa administração, pois a história atesta que toda socie-dade, onde as elites se omitem do poder político, tende a decair. Com essas con-vicções, conduzi todas as minhas ações à frente do Executivo da Capital.

19A TARDE CHEGAVA AO FIM. Das janelas envidraçadas do Gabinete, admirava opôr-do-sol. O Oceano Atlântico parecia absorver-me em suas águas profundas.É uma absorção sem luta, suave, tranqüila. A enorme bola de fogo hesita emdeixar os prazeres do dia e entregar-se ao reconfortante encontro. Acalentou,gerou vida. Inconstante e generoso, amou milhares de mulheres. Gordas e ma-gras, bonitas e feias. A todas ofereceu calor, prazer e, por todas, foi amado.Parte em busca de novas aventuras em mundos estranhos. O incógnito do seucaminhar confunde-se com os mistérios da noite que se aproxima.

O crepúsculo é repousante, considero-o o momento mais bonito do dia.Sou sempre invadido por uma doce calma quando o contemplo. Extasio-mediante do espetáculo. Uma paz interior me domina; estou satisfeito. Acabara desancionar a lei que criava as Secretarias de Finanças e de Administração. Con-

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cluíra a reforma administrativa da municipalidade. Havia criado a Superinten-dência Municipal de Obras, a Fundação Educacional e o Instituto de Previdên-cia dos Servidores. O organograma afunilado já não atendia às exigências deuma cidade que se aproximava dos trezentos mil habitantes. Uma SecretariaGeral e os demais Órgãos, em nível de Departamento e com pouca capacidadede decisão, centralizavam excessivamente os trabalhos burocráticos. Tudo, pormais insignificante que fosse a solução, dependia do Prefeito. Das menoresdespesas à nomeação de altos funcionários, era necessária a autorização doChefe da Edilidade. Diariamente, tinha que assinar uma verdadeira pirâmide deprocessos. Sentia-me enjaulado, preso a um gabinete. Precisava de tempo paraplanejar, ter idéias, acompanhar o andamento de obras. Precisava descentrali-zar, delegar poderes, senão, passaria quatro anos simplesmente a apor minhaassinatura em documentos.

A estrutura, com maior flexibilidade, começa a funcionar. Pavimento a paralelepípedos, mais de cem mil metros quadrados em di-

versas ruas. Interligo bairros. Bato o recorde em construção de escolas. Praçase galerias de águas pluviais são construídas em vários pontos de Maceió. Ape-sar da reforma tributária de 1966, que esvaziou os recursos dos municípios doNorte e do Nordeste, o funcionalismo da Prefeitura é um dos mais bem pagosdas capitais nordestinas e recebe seus salários religiosamente em dia. Constato,com surpresa, que o favor pessoal consegue mais votos do que as obras.

O Prefeito, dos cargos executivos, é o que está mais próximo do povo. Équem recebe a primeira e a maior pressão popular. Nas regiões subdesenvolvi-das, o quadro social torna-se dramático. Centenas de pessoas o procuram, dia-riamente, no seu gabinete de trabalho, ou onde quer que se encontre, paraformularem os mais justos, os mais estranhos e os mais diversos pedidos. Em-pregos, casas, medicamentos, caminhões de barro, dinheiro e auxílio-funeralsão os mais comuns. Às primeiras horas da madrugada, à porta de sua residên-cia, já se encontram dezenas de solicitantes. É um verdadeiro calvário, para oadministrador correto. Os vereadores, também, pressionados pela populaçãoque de tudo precisa, insistem, exigem e condicionam apoio ao atendimento dospleitos. A incerteza do futuro, acentuada pela ausência de um mercado de em-prego capaz de absorver milhares de jovens que, anualmente, atingem a maio-ridade, expostos ao pior tipo de pressão, que é a afetiva, leva a maioria, ou, porque não dizer, a totalidade dos políticos, quando estão no poder, a empregaremfamiliares. Na oposição, criticam. No poder, colocam filhos e parentes em car-gos-chave. Democratas, na oposição, transformam-se em tiranos, no governo.Aprendi, instintivamente, a desconfiar dos donos da verdade ou dos falsosmoralistas. O mais perigoso é o recalcado. No poder, extravasa todas as suas

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frustrações. E, como decisões executivas têm efeitos profundos e multiplicadores,ele transforma-se num perigo para a sociedade.

A Prefeitura de Maceió foi a minha grande academia de vida. Nela, forjei omeu caráter para lutas maiores. Convivi com a maldade e a bondade; encontreiingratos e invejosos. Mas também, encontrei o correto e o leal. Enfrentei angús-tias e inquietação. Tive, entretanto, momentos de alegria e de afirmação ao modi-ficar para melhor, a vida de milhares de pessoas, ao inaugurar obras promotorasde desenvolvimento. Convenci-me de que é melhor ser bom e justo.

20O CHEFE DO GABINETE INTRODUZIU OUTRO GRUPO de dez pessoas que dese-javam falar comigo. O hábito já tornara comum aquele espetáculo. Aquelaspessoas fariam pedidos, os mais variados e os mais extravagantes possíveis.Preparei-me, com resignação, para ouvi-las, pacientemente e, depois, explicarda melhor maneira de que eu fosse capaz, que não era possível atendê-las,porque, de acordo com a lei de responsabilidade dos Prefeitos, estou impedidode conceder um simples caminhão de barro para um pobre, que precise tapar acasa, pois não posso usar nenhum bem da Prefeitura para serviços de terceiros.E, o pior, é que eles pensam que é má vontade minha. Esquecem que umpolítico só deixa de fazer favores quando é humanamente impossível. Não,porque ele seja caritativo, e que espera, no futuro, transformar o favor em vo-tos. Explico, e torno a explicar, e eles olham para mim, com uma incredulidadehumilde, que me faz desejar ardentemente ter perdido a eleição, para não mesentir impotente diante de tantos dramas.

Olhando o grupo, senti um choque diante da expressão de sofrimentoque o rosto de uma mocinha, de aproximadamente dezesseis anos, irradiava.Era alta, magra, mais feia do que bonita; no entanto, seus olhos demonstravammedo, quase terror. Pediam proteção. Olhava-me de esguelha. Desejando ereceando ser chamada. Atendi a três ou quatro pessoas na sua frente, esperandoque ela se sentisse mais confiante. Quando a convidei a sentar-se ao meu lado,ela teve um sobressalto. Levantou-se da poltrona com dificuldade, tropeçou emobstáculos invisíveis e quase caiu no chão encerado. Houve risos. Meu rostofechado desaprova tal hilaridade, que rapidamente desaparece.

Depois do café pequeno, que lhe foi servido pelo contínuo, ela começoua contar sua história.

Era a irmã mais velha de uma família de oito irmãos. O pai tinha abando-nado sua mãe, para morar em São Paulo com outra mulher mais nova. E a mãe,de tanto trabalhar, de tanto vender seu corpo, de tanto passar fome, está

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tuberculosa. Cabia, agora, a ela, a responsabilidade de sustentar a família. Pedia,implorava um emprego. Fiz ver que ela era de menor idade e que não podiaingressar no serviço público com menos de dezoito anos, e que, mesmo quetivesse idade, de acordo com a nova Constituição, teria de fazer concurso e elanem sabia assinar o nome. Ao ouvir essas explicações, começou a chorar. Cho-rava baixinho. Entretanto, toda a sala parecia chorar com ela.

Uma velha comentou para a vizinha de cadeira: Quando os homens querem,fazem tudo.

Como aquela afirmação era certa e injusta, ao mesmo tempo! Dei dezcruzeiros à mocinha e fiquei imaginando o que seria dela nesta selva que é omundo. Neste salve-se-quem-puder, que é a luta pela vida. Como seria bom, sea humanidade fosse menos egoísta!

21ESTÁVAMOS EM ARACAJU PARTICIPANDO DA SEGUNDA CONVENÇÃO do Distrito14, de Lions do Brasil. Os clubes de Maceió apresentam, para julgamento dosdemais integrantes da família leonística do Nordeste, o nome do companheiroLuís Souza como candidato a Governador Distrital. Sou surpreendido peloaspirante à governadoria incumbindo-me de apresentar oficialmente a sua can-didatura. Tarefa difícil, seria falar para centenas de líderes dos diversos Estadosnordestinos. Tarefa fácil a de enfatizar a capacidade, a experiência administrati-va e as qualidades morais do candidato. Falei de improviso; convenci-me dequão gratificante era a minha missão, pelos aplausos que recebia, à medida queia discorrendo a respeito das atividades leonísticas e particulares do alagoanoque pleiteava a honra de governar milhares de Leões, espalhados pelas princi-pais cidades dos Estados, de Sergipe ao Rio Grande do Norte. Eleito por una-nimidade, Luís Souza é carregado, em triunfo, pelos amigos e admiradores.Sentimos que, mil anos que ele vivesse, jamais esqueceria aquele instante. Haviafeito da filosofia do Lions, do ideal de servir desinteressadamente, a sua própriafilosofia de vida. E aquela vitória significava o reconhecimento dos seus paresàs suas virtudes.

22A ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA NÃO HOMOLOGA a eleição do Deputado MunizFalcão. Os alagoanos preparam-se para enfrentar as emoções de um novo plei-to. Entretanto, o destino tece a sua teia. A vitória de políticos ligados à oposi-ção ao Governo Revolucionário do Presidente Humberto de Alencar Castelo

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Branco, em vários Estados e, principalmente, nos Estados da Guanabara e deMinas Gerais, provoca uma crise político-militar, que conduz à decretação doAI-2, extinguindo todas as agremiações partidárias existentes no país. Implan-ta-se o sistema do bipartidarismo. Os treze partidos que existiam são reduzidosa dois: Aliança Renovadora Nacional e o Movimento Democrático Brasileiro.

Os juristas não encontram uma solução para o problema da sucessãogovernamental em Alagoas. É decretada intervenção federal. O General JoãoJosé Batista Tubino é nomeado Interventor por seis meses.

O Deputado Federal Muniz Falcão, vítima de mal incurável, falece nacapital pernambucana.

O Presidente Castelo Branco, apoiado nos poderes que lhe são concedi-dos pelo Ato Institucional, determina que o Diretório Regional da ARENA,partido que apóia a Revolução de março de 1964, envie para submeter ao julga-mento do Governo Federal, uma lista contendo os nomes dos aspirantes aoGoverno Alagoano com o número de votos que cada um receba dos diretorianos.Os Deputados Lamenha Filho e Segismundo Andrade, o professor AfrânioSalgado Lages e o industrial Benício Monte são os votados. Cada membro doDiretório possuía o direito de votar em dois candidatos. Antônio SemiãoLamenha Filho é o que recebe maior número de votos na Convenção do Parti-do e, dias depois, tem seu nome ratificado pelo Presidente da República.

Logo após, é eleito pela Assembléia Legislativa, Governador do Estadode Alagoas, para o período de 16 de setembro de 1966 a 15 de março de 1971.

Os novos governadores têm a responsabilidade política de criar condi-ções de vitória para os candidatos do Partido ao Congresso Nacional e às As-sembléias Legislativas, nas eleições de 15 de novembro de 1966.

Encontrava-me nos Estados Unidos, quando Lamenha é empossado go-vernador. Volto faltando dez dias para as eleições. O Coronel Gerson Argolo,chefe da Casa Militar, avisa-me que o governador desejava falar comigo. Vouvisitá-lo à noite. Encontro, no Palácio Floriano Peixoto, o Senador Arnon deMello, o Deputado Federal Segismundo Andrade, os Deputados EstaduaisAntenor Serpa e Arnaldo Paiva e o Prefeito do Município de Delmiro Gouveia,José Bandeira. Lamenha põe-me a par do quadro político. Achava que dos noveDeputados que constituíam a bancada de Alagoas na Câmara Federal, a ARE-NA elegeria seis certos, e, possivelmente, um sétimo. Dos trinta e cinco Depu-tados que compunham a Assembléia Legislativa, o nosso Partido elegeria devinte e dois a vinte e cinco e para o Senado, venceríamos no interior do Estadocom um número de votos superior a dez mil, mas perderíamos na capital. Aminha missão era ajudar a diminuir a diferença em Maceió, a fim de que ela nãoultrapassasse a do interior. A tarefa não era tão difícil, apesar da popularidade

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do Senador Silvestre Péricles, candidato à reeleição pelo MDB, graças ao reco-nhecimento dos alagoanos à inteligência privilegiada e à grande cultura do can-didato da ARENA, o jornalista e escritor Teotônio Vilela. Alie-se a isso a sim-patia que sua figura humana irradiava e o fato de ser um dos maiores oradoresque Alagoas já produziu.

Todas as forças do Partido são convocadas. A luta é estafante. Os adversá-rios impõem respeito. A grande preocupação era conquistar o eleitorado da Capi-tal, de tradição oposicionista. O Governador Lamenha Filho e os Senadores RuiPalmeira e Arnon de Mello são os cérebros da campanha. Em 13 de novembro,quarenta e oito horas antes das eleições, último dia permitido pela Lei eleitoralpara a realização de comícios, fizemos quatorze comícios-relâmpago em Maceió,todos eles transmitidos para o interior do Estado pela Rádio Gazeta.

No dia das eleições, Lamenha foi votar em São Luís do Quitunde. OSenador Arnon de Mello e o Deputado Federal Oséas Cardoso – o políticoalagoano de maior prestígio popular naquele pleito – ficaram juntos visitandoas seções eleitorais da capital. Fiquei com o Senador Rui Palmeira. Visitamostodos os bairros de Maceió. Encontramo-nos às 17 horas, na Casa dos Pobres,no Vergel do Lago, com o Governador que já voltara do interior, com o Sena-dor Arnon de Mello e com o Deputado Oséas Cardoso. Diagnosticamos opleito que estava prestes a encerrar-se. Não temíamos a derrota. Todas as infor-mações que recebêramos das várias regiões do Estado acentuavam a certeza devitória. A apuração apresentaria o seguinte resultado: Assembléia Legislativa:ARENA – 24 Deputados; MDB – 11; Câmara Federal: ARENA – 6 Deputa-dos; MDB – 3.

Teotônio Vilela fora eleito Senador da República. A bancada alagoana noSenado ficara, assim, toda constituída de arenistas.

23EXERCIA AS FUNÇÕES DE PREFEITO DE MACEIÓ quando o conheci. Alagoasencontrava-se sob o regime de Interventoria Militar.

Humberto de Alencar Castelo Branco visitava a nossa terra, não apenascomo Presidente da República, mas, também, como Chefe Revolucionário. Con-centrava uma enorme soma de poderes em suas mãos. Poderia ter-se tornadomais um ditador latino-americano, como encontramos com certa freqüência,independentemente de conceitos ideológicos, na história do continente. Seusprincípios democráticos levaram-no a autolimitar, em dois anos e seis meses, oseu mandato presidencial, oferecendo, assim, um exemplo de não perpetuidadeno Poder.

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Do primeiro dos nossos encontros, guardo apenas impressões de ordemsocial. Conversamos amenidades: população de Maceió, orçamento da Prefei-tura, força econômica da cidade. Na segunda visita presidencial que nos fez, jáno Governo Lamenha Filho, proferiu um discurso de muita profundidade po-lítica, reafirmando à Nação os propósitos democráticos da Revolução, da qualfora um dos principais líderes. O então Governador de Pernambuco, Nilo Co-elho, que estava presente, congratula-se com Lamenha pela homenagem pres-tada a Alagoas, por ter sido palco de um compromisso do maior significadopara o futuro do nosso país.

Estudioso e disciplinado, era um dos mais cultos e dos mais brilhantesoficiais generais das Forças Armadas Brasileiras. Possuindo todos os cursos doExército, tendo participado com destaque da Campanha da Itália, era muitorespeitado pelos companheiros e por todos aqueles que o conheciam de perto.Seu apoio foi decisivo à deflagração do Movimento de março de 1964. Coube-lhe a missão mais difícil, o tratamento de choque no corpo social. Medidasaparentemente antipáticas tinham que ser tomadas. O Governo torna-se temi-do e impopular. A História, entretanto, far-lhe-ia justiça. Deixando a Revoluçãoestruturada em bases legais e o país democratizado através da Constituição de1966, entrou para a galeria dos grandes Presidentes do Brasil.

24O SENADO DE BERLIM E A FUNDAÇÃO ALEMÃ para o Desenvolvimento Inter-nacional ofereceram uma recepção aos prefeitos e parlamentares brasileirosque participavam de um curso de administração pública na antiga capital daPrússia. Vivíamos o mês de outubro de 1968. O grupo era composto de vintee duas pessoas, incluindo os técnicos e os Diretores da Associação Brasileirados Municípios. Estávamos, há treze dias, na bela e reconstruída cidade. Asmarcas físicas da Segunda Grande Guerra existiam apenas como símbolosestigmatizadores da bestialidade do apocalipse. O muro, separando as duasAlemanhas do pós-guerra, retratando a insensatez humana, é uma ameaça per-manente à tão sonhada e tão distante paz mundial.

Ganhara a estima e o respeito de todos os participantes. Indicado, emoutras oportunidades para falar em nome da delegação, recebo a incumbência,mais uma vez. Analiso a presença da tecnologia e da capacidade de trabalho dopovo alemão no desenvolvimento brasileiro, nesses últimos cem anos, graças àcolonização no Sul do país e às empresas de origem alemã que se instalaram noBrasil. Viajaríamos dois dias depois para visitarmos os principais municípios daRepública Federal da Alemanha.

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As amizades surgidas naquele curso me levariam à Vice-Presidência e àPresidência da Associação Alagoana de Municípios, durante quatro anos. Éclaro que tudo começou, quando Prefeito de Maceió, fui eleito presidente daABM. Foram os meus primeiros passos no movimento municipalista brasileiroe internacional. Participo de vários encontros de prefeitos e vereadores. Inte-gro o Conselho Deliberativo da ABM composto de três representantes de cadaEstado. No entanto, o estreitamento do companheirismo com os Diretoresdaquela entidade surgiria no curso que fizemos na Europa.

Presidir a Associação Brasileira dos Municípios foi uma experiência muitorica para mim. Exerci a função quando já era Deputado Estadual. Entre as mi-nhas obrigações, havia a de visitar anualmente as principais cidades brasileiras, oque me levava a percorrer o Brasil e, pelo menos uma vez por ano, representavao nosso país em Seminários e Congressos no Exterior. Conquistei grandes ami-zades que foram e, ainda hoje são, responsáveis pelas muitas vitórias que alcanceina vida. O amigo verdadeiro é um patrimônio de valor imensurável. Convém,entretanto, jamais esquecer que uma amizade deve ser cultivada com gestos per-manentes de dedicação e solidariedade. É uma avenida de mão dupla. O egoísta,o egocêntrico não têm amigos; têm, apenas interesses. Em verdade, são solitários.

O egoísta é um homem só. Não consegue enganar por muito tempo.Enfim, para se ter amigos é necessário que se tenha uma consciência exata dagrandeza da amizade.

25NOVA YORK ESTÁ A MEUS PÉS. O ESPETÁCULO, visto pela janela do avião, éverdadeiramente deslumbrante. Milhões de lâmpadas multicolores estendem-se por quilômetros e quilômetros. Minutos antes, ao ler no painel de avisos doavião, o tradicional – aperte os cintos e não fume – começara a procurar acidade na escuridão que parecia infinita. Descortino, ao longe, um facho de luzque sobe da terra em direção ao céu. Uma adolescente, deslumbrada com o quepresencia, grita extasiada para a amiguinha que está ao seu lado.

– Veja que bacana! – Que lindo! Genial! Sorrio. O linguajar da juventude define bem a beleza da megalópole nor-

te-americana. É impressionante o movimento no Aeroporto Kennedy. É uma verdadeira

Babel. Árabes, judeus, chineses, europeus, africanos e latinos confundem-se namassa humana. Passeando-se por seus corredores e por suas salas, ouvem-se osmais diversos idiomas e os mais estranhos dialetos. É a vitrine do mundo.

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No automóvel que me conduz ao hotel, rememoro os últimos aconteci-mentos de minha vida. Fora convidado pela Embaixada dos Estados Unidos,através do Consulado de Recife, para compor um grupo de nove prefeitosnordestinos que deveriam participar de um Seminário de Administração Muni-cipal, durante sessenta dias, nos Estados Unidos. Embora procure esconder,estou emocionado. É a primeira viagem que faço ao exterior. A mudança ébastante súbita. Em apenas doze horas, atravessara o Atlântico, voando do Riode Janeiro para Nova York, com escalas em Brasília e Port Spain. O táxi desen-volve alta velocidade. O tráfego é intenso, mas organizado. Atravessa pontes eviadutos. Vence distâncias. Leio uma placa: Quinta Avenida. Parece um sonho.

O hotel onde fico hospedado é perto da Broadway. Preenchida a ficha dehóspedes, saio a passear pela famosa artéria. São incontáveis os teatros, os cine-mas, as boates, os restaurantes que se estendem pela longa avenida. Centenasde anúncios luminosos, de todos os formatos e de todas as cores, num piscarconstante, dão um verdadeiro banho de luz nos milhares de casais que buscamprazer e diversões. Uma ânsia de viver domina os nova-iorquinos. As casas deespetáculos, por mais numerosas que sejam, estão sempre lotadas. É outono efaz frio. As mulheres estão lindas em seus belos e caros casacos de peles. Oshomens, preocupados em conquistar-lhes a confiança, esmeram-se em gentile-zas. A penumbra das boates é convidativa à troca de carícias. Louras esculturaisdançam num gesticular que lembra os atos do amor. Doses e mais doses deuísque são ingeridas. Uma excitação sexual paira sobre o ambiente. Permaneçoaté à madrugada, vagando sem destino, presenciando o rodar constante daque-le carrossel humano. Acordo tarde.

A viagem a Washington está programada para as dezessete horas. Já háalgum tempo, a publicidade e, principalmente, o cinema tornaram famosos WallStreet, Estátua da Liberdade, Hide Park, Empire State, Rockefeller Center. Al-moço no Harlem e visito a ONU. A majestosa sede debruça-se sobre o rioHudson. Ouve-se, ao longe, o silvar de barcas e de chatas que navegam condu-zindo o progresso. A beleza do edifício conquistava a todos. Os arquitetos, osescultores e os pintores maiores do mundo contemporâneo emprestaram asensibilidade de suas inteligências para que ele se tornasse realmente belo. Or-gulha-me saber que Niemayer foi um dos projetistas e de encontrar um muralde Portinari decorando uma de suas salas. As esculturas, as telas, os muraislançam mensagens de paz e de amor.

Críticas apressadas são feitas à Organização das Nações Unidas por aquelesque esquecem ser a simples existência de um parlamento mundial que eviden-cia possibilidades de diálogos entre diferentes povos, o direito de os pequenospaíses lutarem por aquilo que consideram sagrado.

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Quantos conflitos não foram evitados, graças ao entendimento que aONU tornou possível! Ela é um monumento ao bom senso e ao intelecto.Percorro o plenário, os gabinetes, as salas de comissões, com o mesmo respeitoque percorrera, horas antes, a nave da Catedral de São Patrício.

Nova York retrata, como nenhuma outra cidade, o tragicômico do viver.Ela empresta sua grandiosidade aos sentimentos humanos. O vício, a degrada-ção moral adquirem proporções tais que aterram o visitante. A virtude, o traba-lho e a cultura atingiram conotações que nos fazem crer nas origens divinas dohomem.

26ALAGOAS ESTÁ INQUIETA. A PRESIDÊNCIA DA PETROBRÁS, depois de haver ouvi-do a opinião dos diretores maiores da empresa, torna pública a decisão detransferir a sede da regional de Maceió para Aracaju.

A descoberta de petróleo, em meados da década de cinqüenta, no povo-ado de Jequiá da Praia, município de São Miguel dos Campos, foi comemorada,em todo o Estado como uma grande perspectiva econômica.

A instalação de dezenas de torres de perfuração nos tabuleiros alagoanos;a presença de enormes engenheiros americanos e canadenses desfilando comroupas coloridas e exóticos macacões embriagando-se nos bares das noitesmaceioenses; a construção dos acampamentos de obras que são verdadeiraspequenas cidades; o mercado de empregos que se abriu para centenas de jo-vens, com salários bem acima da média alagoana confirmavam as esperanças dapopulação.

A perda da sede da Petrobrás provocou um trauma econômico e psicoló-gico. O volume de vendas no comércio diminuiu sensivelmente. A folha depagamento dos servidores da empresa petrolífera, em Maceió, é maior do queas despesas com o pagamento dos funcionários estaduais. Diminuindo o girocomercial, diminuiu a arrecadação tributária dificultando a programação dogoverno. Os comerciantes temem permanecer financeiramente prisioneiros damonocultura açucareira. O futuro permanece sombrio.

As razões da transferência, expostas pela Diretoria da Petrobrás, são denatureza técnico-administrativa. Sergipe, com a descoberta de petróleo emsua plataforma submarina, transforma-se no segundo produtor do Nordeste,mais que o dobro da produção de Alagoas, perdendo, apenas, para o Estadoda Bahia.

O Governador de Sergipe, Lourival Baptista, amigo pessoal do PresidenteCastelo Branco, habilmente, tira proveito político, colocando-se subliminarmente

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como o responsável pela decisão. Insinua, através da imprensa, que, com o seuprestígio, influenciou a importante conquista do povo sergipano.

O governador alagoano, Lamenha Filho, é alvo de críticas desairosas da-queles que lhe fazem oposição. Responsabilizam-no pela perda. Afirmam quenão lutou, que havia cruzado os braços. Lamenha, com a consciência tranqüilade haver feito o possível, publica as informações que recebera da Direção daPetrobrás. A dignidade lhe oferece altivez. O veneno da dúvida, entretanto,fora instalado na opinião pública.

27EUVALDO LUZ, EMPRESÁRIO BAIANO, possuía uma oficina de reparos de equi-pamentos de navios, em Salvador. Dotado de espírito de iniciativa, conseguiu,durante a II Guerra Mundial, amealhar uma razoável fortuna. Concluído oconflito, ampliou as atividades empresariais.

O Conselho Nacional de Petróleo autoriza perfurações em todo o territó-rio brasileiro, notadamente nos Estados de Sergipe, Alagoas e Bahia, locaisonde as pesquisas no subsolo apresentavam maiores probabilidades de encon-trar o precioso óleo.

A empresa de Euvaldo Luz havia ganho a concorrência para fazer a ma-nutenção das brocas. Em uma manhã, de terça-feira, fiscalizando os trabalhosdas oficinas, verificou que algumas brocas guardavam resíduos de uma substân-cia desconhecida. Mandou fazer as análises e constatou tratar-se de sal-gema.Procura saber qual a região que aquelas brocas haviam perfurado. Informadode que foi em Maceió, viaja ao Rio de Janeiro, para requerer o direito de lavrajunto ao Departamento Nacional de Pesquisa Mineral. Qual não é sua surpresaem saber que a Union Carbide, poderosa multinacional pertencente ao cartelmundial de cloro-soda, já havia requerido! Pertinaz, espera pacientemente du-rante vinte anos e, em sigilo, solicita no primeiro dias após o vencimento doprazo, novo direito de lavra. A Union Carbide jamais imaginara que alguém,além dos seus técnicos, sabia que embaixo da cidade de Maceió, encontra-se amaior reserva de sal-gema do mundo. Os administradores da empresa esquece-ram de pedir a prorrogação da licença. Vive-se o ano de 1962. A multinacionalutiliza todo o seu poderio para impedir o atendimento do projeto. Os militaresassumem o poder, no Brasil, em 1964. O Presidente da República, Humbertode Alencar Castelo Branco, ao tomar conhecimento do litígio, avoca o proces-so e oferece um despacho definitivo com os seguintes dizeres: Aprovo e conside-raria contra o meu governo quem não o fizer.

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28O PROFESSOR AFRÂNIO LAGES, Presidente da Companhia de Desenvolvi-mento de Alagoas, recebe Euvaldo Luz no seu gabinete de trabalho, na Aveni-da Duque de Caxias. Entusiasma-se com as notícias que recebe. As perspecti-vas que se abrem à economia alagoana, com a implantação de uma fábrica decloro e de soda cáustica, são bastante animadoras. Oferece todo o apoio dogoverno Luís Cavalcante. Consegue sensibilizar os irmãos Brito a venderemum terreno de sua propriedade, na deserta praia do Pontal da Barra, a fim deque o empresário baiano consiga completar a área necessária à construção dafábrica. Euvaldo Luz, sigilosamente, havia comprado vários lotes a preços irri-sórios. Roberto Brito foi o último a vender, recebendo, por isso, melhores van-tagens financeiras. A região era desvalorizada pela presença da usina de trata-mento de esgotos da cidade e pelo odor desagradável que se exala pelos bairrosdo Prado, Trapiche da Barra e Pontal.

Conquistado o direito de lavra do sal-gema, dono de uma grande faixalitorânea em Maceió, Euvaldo Luz viaja aos Estados Unidos, Japão e Euro-pa tentando uma sociedade com uma empresa internacional bastante capi-talizada para poderem enfrentar a gigantesca Dow Chemical, instalada noPólo Petroquímico da Bahia, senhora do abastecimento brasileiro e de enor-me fatia do mercado mundial de cloro-soda. Percorre vários países. Con-vence-se de que não conseguirá sócio na Europa, quando, em Amsterdã eFrankfurt, nenhum grupo holandês ou alemão se interessou pelo projeto.Em Tóquio, os japoneses discutiram detalhes do empreendimento. Voltan-do ao Brasil, estranhamente é procurado por um diretor da Du Pont, em-presa que não possui tradição no mercado mundial de soda, mas EuvaldoLuz, ansioso para levar adiante o projeto, aceita. Acertam a composiçãoacionária: 90% divididos em partes iguais para os dois maiores acionistas e10% para o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico. O Governobrasileiro passa a ser o fiel da balança. O grupo que receber o apoio do BNDE,nas reuniões da Diretoria ou nas votações das assembléias da empresa, ficarámajoritário.

29A LUTA CONTINUA. A DU PONT CRIA todos os obstáculos possíveis àconcretização do projeto, negando-se a fazer o aporte de recursos, com osquais se havia comprometido, pela sua participação acionária. Euvaldo Luzconvence-se de que ela está mancomunada com a Union Carbide e a DowChemical para impedir que a empresa se transforme em realidade. Aceitara a

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associação, de comum acordo com suas co-irmãs multinacionais, em troca devantagens em mercado de sua atuação empresarial em outras regiões do mundo.

O governo brasileiro intervém, em 1975, através da Petroquisa, subsidiá-ria da Petrobrás, assumindo o gerenciamento do projeto que começa a deslanchar.A empresa viabiliza-se. A Du Pont du Neowmors reduz sua presença, comoacionista, de 45% para menos de 5% do capital, e, em 1981, retira-se totalmen-te, vendendo suas últimas ações.

O governador Lamenha Filho, inteligentemente, oferece seu importanteapoio à consolidação da empresa. A sociedade alagoana, traumatizada com aperda da sede da Petrobrás, enxergou na Salgema a redenção econômica doEstado. Lamenha teve a acuidade necessária para investir na esperança popular.Transformou a implantação da empresa em uma das metas do seu governo.

O professor Afrânio Salgado Lages é o sucessor do Governador AntônioSemeão Lamenha Filho. Empossado, em 1971, aos sessenta anos de idade,levou toda sua experiência de advogado militante e os conhecimentos do ma-gistério para conduzir os destinos de Alagoas.

Elitista por temperamento e formação, dotado de grande espírito público,apaixonado pelo progresso do Estado, empenhou-se em consolidar o trabalhoque iniciara quando presidira a Companhia de Desenvolvimento.

Secretário da Fazenda, no governo Luís Cavalcante; Prefeito de Maceió,no Governo Lamenha Filho; Líder da Bancada da Maioria e Presidente daAssembléia Legislativa, no Governo Afrânio Lages fui testemunha privilegiadados acontecimentos que levaram à implantação do Projeto Salgema.

30VIAJÁVAMOS DE AUTOMÓVEL EM DIREÇÃO A MAJOR ISIDORO. Havíamos deixadoa rodovia asfaltada que interliga Maceió a Palmeira dos Índios. O Senador Arnonde Mello contava-me a história das dificuldades que enfrentou, quando Gover-nador do Estado, para que aquela estrada que tínhamos percorrido se tornasseuma realidade. Lutou contra imensos obstáculos. Pertencia a um partido políti-co contrário ao do Presidente Getúlio Vargas e sofria uma oposição sistemáticano plano estadual. Conseguiu, entretanto, sensibilizar o chefe da nação quemuito o ajudou a realizar um grande governo. Lamentou profundamente osuicídio do Presidente Vargas.

Estamos na campanha eleitoral de 1970. Ele era candidato à reeleição, eeu, a uma cadeira na Assembléia Legislativa. Fora eleito Governador de Alagoas,há vinte anos. Era a experiência e a sagacidade política em pessoa. Apesar dehaver conquistado a Prefeitura de Maceió, em 1965, num pleito inesquecível,

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sentia-me um neófito, um aprendiz diante de um mestre. Era verdadeiramenteincrível a sua resistência física. Dormia apenas quatro, cinco horas, cumpri-mentava centenas de pessoas em cada cidade onde chegávamos, discursávamosem vários municípios num mesmo dia e percorremos todo o Estado juntos.Sua magnífica votação, sob certos aspectos, surpreendeu-me. Sabia que a estru-tura da Aliança Renovadora Nacional alagoana garantiria a vitória dos doiscandidatos do Partido ao Senado. Imaginava, porém, que o mais votado seria oMajor Luís Cavalcante. Inclusive, cheguei a defender esse raciocínio numa en-trevista à Rádio Gazeta. Entretanto, o Senador Arnon de Mello bateu, à época,um novo recorde eleitoral. Obteve o maior número de votos de toda a históriapolítica de Alagoas.

Eleito, concomitantemente, Deputado Federal e Governador, em 1950, éo único alagoano que conquistou três mandatos consecutivos de Senador daRepública. Tendo implantado o primeiro jornal em off-set, a primeira emissorade freqüência modulada e a primeira estação de televisão em Alagoas, tornou-se um dos pioneiros do sistema de comunicação do Estado.

31O GOVERNADOR AFRÂNIO LAGES CONVIDA OS DEPUTADOS recém-eleitos àSétima Legislatura, para um encontro na residência do seu companheiro de cha-pa, o Vice-Governador José Tavares. Iniciava-se o ano de 1971. A reunião erapara definir, entre os membros da bancada da maioria, a eleição da Mesa Execu-tiva da Assembléia Legislativa. Theobaldo Barbosa, graças à sua experiência par-lamentar e à retidão do seu caráter, é o escolhido para presidente. Discutida acomposição da Mesa, o Professor Afrânio surpreende-me com o convite paraque seja o líder do seu governo. Aceito a missão. Guilherme Palmeira leva-mepara casa no seu automóvel. Combinamos que ele seria o vice-líder. Jamais pode-ríamos imaginar que começava, naquela noite, uma aliança política que nos leva-ria a vitórias inesquecíveis e aos mais importantes cargos na vida pública.

Liderei a bancada por dois anos. Eleito, por unanimidade, presidi a Casade Tavares Bastos no segundo biênio; compondo o Conselho da União Parla-mentar Interestadual (UPI), ampliei o meu relacionamento nacional. Foi a me-lhor fase da minha vida política. Imagino: quando estudarem a História daAssembléia Legislativa Alagoana, chegarão à evidência de que a SétimaLegislatura foi um dos mais profícuos e tranqüilos períodos de uma Casa queficou famosa por ser o único parlamento do mundo onde houve um tiroteioentre seus pares. Formávamos, independentemente de siglas partidárias, uma“família”. Éramos quinze Deputados: doze da ARENA e três do MDB. Nunca

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surgiu um atrito maior nos debates em defesa de idéias. Existia respeito enor-me entre os colegas. Todos, sem exceção, eram e continuam sendo bons ami-gos. Alcides Falcão foi um deles. Três faleceram: Walter Figueiredo, José Lúcioe Higino Vital. Foi como que perdêssemos entes familiares. Um dos fatos maisgratificantes à minha alma foi quando a médica Neide Vital, filha de um adver-sário e amigo, Higino Vital, convidou-me para conduzi-la ao altar da CatedralMetropolitana, no dia do seu casamento, em lugar do pai falecido.

Aproxima-se a sucessão estadual de 1974. Vários são os postulantes. AAssembléia apresenta o meu nome e o do Theobaldo ao julgamento dos com-panheiros da Aliança Renovadora Nacional. Fizemos campanha em linhas pró-prias, mas com o sentido de conjunto. Qualquer que fosse o escolhido, os de-putados estaduais seriam os vitoriosos. Escolhido pela direção do partido como referendo do Presidente Ernesto Geisel, viajando de Brasília para Maceió, aprimeira pessoa que me abraça, ao descer do avião, é Theobaldo Barbosa.

A vitória, em termos políticos, foi realmente da Assembléia Legislativa.Todos os deputados foram reeleitos, menos Aroldo Loureiro que adoeceu nosúltimos trinta dias da luta eleitoral; entretanto, sempre o considerei como sedeputado fosse. Theobaldo e Antônio Ferreira, que disputaram uma cadeira naCâmara Federal, venceram facilmente o pleito. Tudo o que alcancei devo aopovo alagoano e a esses companheiros. Considero o sentimento de gratidão omais nobre que o ser humano possui. Gratidão é a maior das virtudes.

32FALAR DE UM AMIGO MORTO É UM MOMENTO DE SAUDADE. A vida volta do seutempo e encontra o vazio. Tivemos o prazer de termos sido aluno de Jayme deAltavilla e gozarmos da honra de termos contado com sua amizade e privadoda sua intimidade. Várias vezes o visitamos em sua acolhedora residência, napraia do Sobral, apenas para termos o prazer de ouvi-lo. Recebemos seus con-selhos e orientações. Com que satisfação nos recebia! Fazia-se de pequeno paranão magoar a nossa pequenez. Sua cortesia e meiguice desfaziam imediatamen-te as reservas com que, de ordinário, os que estão de cima recebem os que, nasletras e nas artes, vêm de baixo.

Começamos, em 1968, a escrever um romance cujo título seria Sabalangá.O Mestre, num dos nossos diálogos, confessa-nos que iniciara um livro decontos, na década de trinta, cujo nome é Sabalangá. Imediatamente, modifica-mos o título de nosso romance para “Sua Excelência o Governador”. Encorajou-nos a continuar a escrever. Enxergava talento onde apenas existia esforço. Eleera todo bondade.

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A pobreza é impaciente. Anfilófio Melo precisava iniciar a sonhada as-censão e a construiria sozinho, degrau por degrau.

Adolescente ainda, aos quinze anos de idade, já ministrava aulas no colé-gio do professor Higino Belo. Era o chamamento do destino. Seria professordurante toda a sua longa existência. Das diversas atividades que exerceu, a quemais o marcou foi a do magistério.

Perdeu a adolescência, antes de perder a inocência. Queimava os miolose o encanto da idade que só pensa em brincar e fazer pequenas loucuras, que sóos poetas praticam também sem culpa.

Recife liderava intelectualmente o Nordeste. As demais capitais da regiãoclamavam pela criação de escolas de nível superior. O mundo universitáriobrasileiro repousava em três grandes centros: Pernambuco, Bahia e São Paulo.Anualmente, dezenas de alagoanos deslocavam-se para a capital pernambucana,à procura de uma profissão que lhes permitisse a abertura das portas do suces-so. Em Maceió, centenas de vocações eram frustradas.

Aquele jovem, ao ingressar na tradicional Faculdade de Direito do Reci-fe, vencendo dificuldades inenarráveis, prometeu, a si mesmo, que lutaria paracriar uma Escola de Direito em Alagoas, objetivando atender aos reclamos danossa juventude. Realmente, ao lado de outros idealistas, fundou, em 1931, aFaculdade de Direito, que tantos serviços tem prestado à nossa sociedade e quefoi a mater da Universidade Federal, em nosso Estado.

Aposentado, solitário, recebendo a visita dos verdadeiros amigos, aquelesde qualquer instante, dos momentos de felicidade e de tristeza, de glória e deinfortúnio, como ficava alegre em rever seus antigos discípulos! Conversáva-mos sobre tudo: literatura, política, administração, viagens, Maceió de ontem,Alagoas de hoje.

A inatividade foi desagradável. Por mais que se voltasse para as letras,Jayme de Altavilla não se desvencilha do espectro do tempo, que parece surgir-lhe como fisionomia desconhecida. Dir-se-ia que, inopinadamente, lhe desven-dara a velhice. O Instituto Histórico foi o seu grande refúgio. Dedicou-se, decorpo e alma, aos preparativos da festividade do centenário. Implorava ao Cri-ador que lhe permitisse viver o suficiente para presidir as solenidades da grandeefeméride. O Misericordioso sempre atende aos bons. À noite do 2 de dezem-bro de 1969, ele estava lá.

Com que magnífico discurso nos brindou! Que maravilhosa aula de His-tória nos concedeu! Como enriqueceu as letras alagoanas com aquela peça lite-rária! Foi o canto do cisne.

Maceió, 26 de março de 1970. Sexta-feira Santa. Dia da morte do Senhor.Morre o professor Anfilófio Jayme de Altavilla Melo. Os sinos não repicam;

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silenciam, em homenagem à morte do Filho de Deus. Somente o silêncio écapaz de interpretar a grande dor da humanidade, dos amigos, dos familiares edos discípulos do Mestre que se foi do mundo dos vivos.

33PREFEITO DE MACEIÓ, VIAJO AO RIO DE JANEIRO E BRASÍLIA, em busca derecursos para amenizar os inúmeros problemas da cidade. Estamos em abrilde 1967. Luzia telefona-me comunicando que a nossa residência fora assalta-da durante a noite. Explica que os ladrões roubaram apenas objetos e nemela, nem as meninas, sofreram o menor constrangimento. Em verdade, nãoviram nada. Estavam dormindo e somente tomaram conhecimento do rouboquando acordaram pela manhã. Voltando da viagem, sou informado de maio-res detalhes.

O assaltante utilizara um garoto que entrara pela pequena persiana e abri-ra a porta da frente da casa. O nome dele é Bururu. A polícia o prendera comfacilidade. Conhecia bem os seus métodos. Era freguês antigo e constante daDelegacia de Roubos e Furtos. Decido visitá-lo. Julgava-me devendo uma gen-tileza. Respeitara a tranqüilidade de quatro mulheres indefesas. Estava em umagrande cela, completamente lotada de ladrões, assassinos e desordeiros. O dele-gado chama-o pelo estranho apelido. Aproxima-se das grades. É um mulato, depequena estatura, cheio de músculos. Aparenta muita força física. Reconhecen-do-me tenta explicar que já não possuía os objetos roubados, pois vendera tudona Feira do Passarinho. Afirma que sua família gosta muito de mim. Segundoele, eu atendera solicitação de sua mãe em benefício de uma das filhas. Acres-centa que, se soubesse ser a minha residência, não teria feito o roubo. Sorrio. Omeu sorriso estimula-o a pedir-me algum dinheiro. Entrego-lhe uma determi-nada importância e aumento a minha convicção de que é bom fazer o bem. Oretorno, geralmente, vem de onde nunca se espera. É verdadeira a assertiva deque sempre colhemos o que plantamos.

34A ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA DE ALAGOAS INSTALARA solenemente a SétimaLegislatura. Maior brilho era emprestado ao evento, porque naquela históricatarde, se empossava como governador, o Professor Afrânio Lages.

O Professor de Direito, feito político pelo grande espírito público de queera possuidor, nasceu em Maceió, em março de 1911. Filho do Deputado eSenador Estadual José Gonçalves Lages e de Dona Maria Salgado Lages, teve

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sua vida dirigida para as atividades intelectuais pelas inclinações natas e pelaorientação dos pais. Fez os cursos primário e secundário no Colégio Diocesano,em nossa Capital e colou grau de bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais, emsetembro de 1931, na Faculdade de Direito da Bahia.

Mestre de renome interestadual, integrou bancas examinadoras de con-curso para provimento de cátedras em várias Universidades Federais.

Advogado militante, homem da sociedade, presidiu o Clube FênixAlagoana e foi Governador do Rotary.

Face à experiência adquirida no desempenho das mais diversas ativida-des, possuía consciência da gravidade dos problemas que encontraria à frentedo Governo do Estado. Sabia que o cargo, por mais honroso que fosse, narealidade, era um grande encargo. Que o ônus era bem maior que o bônus.Estava psicologicamente preparado para receber a incompreensão e a odiosidadeprovocadas por interesses contrariados.

Estudioso de sociologia, sabia que a incerteza do amanhã gera no ho-mem o egoísmo, e que este é acentuado nas regiões que ainda não alcançaramos níveis ideais do desenvolvimento, pela intranqüilidade social em que vivemas populações das áreas subdesenvolvidas. Entretanto, acreditamos, foi exata-mente por conhecer toda essa problemática que aceitou a honrosa missão degovernar os alagoanos. Sentia-se capaz de eliminar ou de amenizar as distorções.Conhecia a terra e os homens. Foi o desejo de ser útil que o conduziu. Era umrepublicano de idéias e um aristocrata por comportamento.

35ELEITO PRESIDENTE DA ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA SABIA que o voto implica adisposição de confiar, de conferir direitos e prerrogativas, de dirigir os destinosde um Poder que implicitamente atinge a toda a comunidade. Porque, não te-nhamos a menor dúvida, se o Poder Legislativo se encontra diminuído ou avil-tado, quem, na realidade, se encontra aviltada ou diminuída é a comunidade,porque ele é quem melhor retrata, é quem espelha com maior fidelidade e niti-dez, os seus aspectos positivos ou negativos.

Nunca poderíamos repetir lamentos que retratam as incompreensões hu-manas. Naquela Casa, pairando acima até das paixões políticas, sempre encon-tramos o que de mais caro e mais sublime os seres humanos podem ofereceraos seus semelhantes: amizade e compreensão. Encontramos prodigalidade paranossas poucas virtudes e benevolência para os nossos muitos defeitos.

Fomos cautelosos com as verbas, não vendo mérito na liberalidade, porsaber como é fácil praticá-la quando exercida às expensas alheias. Naturalmente

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que a nossa direção foi um trabalho de equipe. As nossas decisões eram asdecisões da Executiva. O nosso conceito de dirigir é o de delegar poderes ecobrar providências. Estamos plenamente convencidos de que, pelo menosnum particular, cada ser humano é superior a nós. Buscamos, então, no somatório,não a perfeição, porque talvez ela seja inatingível, mas o melhor que possamosrealizar. Juntos, todos os parlamentares que faziam a Assembléia daquele perí-odo, esculpimos a imagem que a nossa Casa deve possuir diante da comunida-de alagoana.

Presidindo um dos Poderes do Estado, encontramo-nos como o vian-dante da velha imagem. Atingira o topo da colina e contemplamos, emociona-dos, a estrada percorrida.

36CONHECI-O, PESSOALMENTE, NO INÍCIO DA DÉCADA DE SESSENTA. Vereador emMaceió, fazia oposição ao Prefeito Sandoval Caju, em cuja administração exercias funções de Secretário Geral da Municipalidade. Fiel ao seu caráter, combatiao estilo administrativo, mas, nunca, o homem. Suas críticas visavam a construire não, a destruir. Existiam, portanto, o diálogo e o entendimento em torno dofundamental. Jamais negou apoio aos pedidos de crédito para execução de obrasque julgava indispensáveis ao desenvolvimento da cidade. Comecei a respeitá-lo e admirá-lo.

Amigo leal, chefe de família responsável, político por vocação e por desti-no, aparentemente frio, hábil nos conciliábulos, inspira, nos companheiros e noeleitorado, mais confiança do que entusiasmo. Ele é mais razão do que emoção.

Enfrentamo-nos, várias vezes, ao longo das nossas vidas políticas. Com-batemos o bom combate. Jamais saíram, dos nossos lábios, palavras que dene-grissem a estrutura moral do outro. Disputamos, juntos, o Governo de Alagoas.A primeira pessoa que me abraçou quando desci do avião, vindo de Brasília,Governador escolhido, foi Theobaldo Barbosa. Apoiei-o à Câmara Federal.Eleito o Deputado mais votado do nosso Partido, no pleito de 1974, convidei-o para funções de destaque do nosso governo. Preferiu exercer o mandato, oque fez com muita dignidade e espírito público.

Iniciou suas atividades políticas como oficial de gabinete do GovernadorArnon de Mello. Vereador, em duas Legislaturas, por Maceió; Deputado Esta-dual, em três Legislaturas; Presidente da ARENA e do PDS; Deputado Fede-ral; Vice-Governador e Governador de Alagoas, é um homem amadurecidopara exercer funções de maior responsabilidade, tanto na área estadual, quantona nacional.

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Substituindo-o na Presidência da Assembléia Legislativa Alagoana, em 1973,sintetizei a sua personalidade afirmando que é uma pessoa que cresce com oconvívio. Convivendo com ele é que o conhecemos em toda a sua grandeza.

Amadurecemos nos cargos públicos. Complementamos a nossa educa-ção com o viajar. Conhecemos todo o Brasil e, atendendo a convites, os paísesmais desenvolvidos do mundo. Vimos o ocaso de velhas civilizações, o nascere o renascer de novas áreas de influência.

Tivemos oportunidade de externar, mais de uma vez, da tribuna da As-sembléia, ser perfeitamente compreensível encontrar numa casa legislativa, ho-mens cultos e incultos, honestos e até desonestos.

Após o mandato de Deputado Estadual, fisicamente permanecemos jo-vens. Espiritualmente, contudo, já estávamos bastante envelhecidos. Adquiri-mos experiências e procuramos conhecimentos.

37É PROVÁVEL QUE NAS RELAÇÕES ENTRE OS HOMENS, nada seja mais desejado –ou mais desejável – que o ideal de Justiça. Com efeito, desde as primeiras civi-lizações, a idéia de justiça sempre esteve associada à de perfeição, de felicidadecoletiva, como síntese, enfim, de todas as bem-aventuranças do relacionamen-to humano. Para os hebreus, justiça era obediência à lei divina e humana; paraos gregos, era critério de igualdade e de proporção; para os romanos, era amelhor maneira de dar a cada um o que é seu. Mas, para todos os povos e emtodas as épocas, a justiça foi sempre um reflexo da perfectibilidade social, ofeliz corolário de bom relacionamento entre as pessoas.

A experiência social não exagerou ao emprestar tamanha importância aesse ideal. Em verdade, ele é imprescindível a todo grupo com aspirações deprogresso, pois, quando inexiste, quando, na consciência social, não vibra umforte sentimento de justiça, as pessoas perdem a noção do dever e se desviamda virtude. A justiça é, portanto, o equilíbrio entre a moral e o direito. Tem umvalor superior ao da lei; assim, embora as leis possam ser injustas, o justo ésempre moral. Via de regra, respeitar a lei é sinal de respeito à justiça; mas hácasos em que, para respeitar a justiça, o homem digno se insurge contra asimperfeições da lei. Não há dúvida de que acatar a lei é um salutar ato dedisciplina. Entretanto, é necessário que a lei atenda à realidade sócio-econômi-ca de um povo.

O sentimento de justiça é tão importante que, quando, através de um atoinjusto, se atenta contra ele, a reação é sempre violenta. Revoluções, lutas declasses, intranqüilidade social, conflitos políticos e choques econômicos são

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efeitos diretos de uma ausência de justiça no relacionamento humano. Na co-munidade onde não existe o sentimento do ser justo, predomina a lei da selvacom todos os seus aspectos negativos. É óbvio que o âmbito da lei não exauretodas as possibilidades de injustiça. Um governante incapaz, um parlamentarilusionista ou um juiz omisso concorrem, igualmente, para a disseminação deatos injustos.

38O AVIÃO LEVANTA VÔO DO AEROPORTO DE SALVADOR em direção a Brasília.Estamos numa tarde de sábado, de 4 de maio de 1974. A maioria dos passagei-ros são parlamentares nordestinos. Os chefes dos Poderes do Estado alagoano,Governador Afrânio Lages e o Desembargador Barreto Acioly viajam à capitaldo país para participarem da solenidade de hasteamento da Bandeira que, na-quele mês, estava sob o patrocínio de Alagoas. Presidindo a AssembléiaLegislativa, fui convidado para participar do evento. O Presidente do Senadoda República e do partido majoritário no Congresso Nacional, Petrônio Portela,embarcara em Aracaju. Estivera naquela semana na Bahia, em Maceió e emSergipe. Ouvira os líderes das bases da ARENA, a fim de apresentar relatórioao Presidente Geisel, sobre o processo sucessório dos governos estaduais.

O Boeing completa a manobra de decolagem. Petrônio Portela convida oSenador Teotônio Vilela para sentar-se ao seu lado. Daí a instantes, recebo umrecado por intermédio do seu assessor Moisés, que ele gostaria de falar comigo,às onze horas da próxima segunda-feira.

Deputados Federais sergipanos e baianos, sabendo-me um dos postulantesao governo do meu Estado, vêm conversar comigo sobre as minhas possibili-dades. Prudentemente, afirmo ter pouquíssimas chances. Conversávamos empé no corredor do avião. Foi quando Petrônio Portela, contrariando seu estilo,chama a minha atenção em voz alta.

– Suruagy, gostaria que você, segunda-feira pela manhã, fosse falar comigo. Os olhares concentraram-se em mim. Políticos experientes sentiram a pre-

ferência pelo meu nome. O segundo convite, minutos depois do primeiro, feitode uma maneira tão ostensiva, antecipou-me a certeza de que seria o escolhido.

As intrigas, as mentiras e as calúnias, que cercam o processo eleitoral,quer seja direto ou indireto, mas, principalmente, no último caso, intensifica-ram-se durante todo o domingo. Telefonemas entre Maceió e Brasília não pa-ram. Tento permanecer tranqüilo.

Na segunda-feira, na hora aprazada, sou recebido por Petrônio Portelaque afirma, sem rodeios, que o Presidente da República, ao tomar conhecimen-

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to de que mais de 90% dos diretorianos haviam-me indicado para governador,ratificara a minha escolha. E acrescenta, sorrindo:

– Se alguém se aproximou do tão procurado consenso, esse foi você. Agradeço, esforçando-me para esconder a emoção. Subitamente, pára de sorrir e pergunta, de chofre: – Já pensou no vice-governador, e no candidato ao Senado? Senti, de

imediato, a responsabilidade que a resposta teria. Não pensei no vice-governador, porque acho que a sua escolha está con-

dicionada à luta pelo Senado. E, para o Senado, temos dois grandes candidatos:o Senador Teotônio Vilela que, naturalmente, pleiteia a sua reeleição; e o ex-Governador Lamenha Filho que, na minha opinião, é o melhor nome que pos-suímos, em termos eleitorais.

Recebo mais uma lição em política. Esperava que me aconselhasse a agircom cautela, com tato, a fim de evitar uma divisão no Partido. Surpreende-me.

– Sabemos disso, Suruagy. Sabemos, também, que é o único capaz deneutralizar o Lamenha. Quando pedi que me indicasse três pessoas capazes degovernar Alagoas, só indicou você. A impressão que tive é a de que ele sesentirá plenamente realizado com sua presença no Governo.

Continua: – Existem interesses maiores em torno da reeleição de Teotônio. Prometi conversar com Lamenha. E assim o fiz. Voltando a Maceió, após a recepção apoteótica que recebi do nosso povo,

viajo ao Engenho Coronha. Sinto-me confiante. Certa noite, algum tempo de-pois, conversando com Toinho em sua residência, na rua Goiás, em presençade José de Melo Gomes e de Murilo Mendes, com o argumento de que o nossogrupo não teria condições de fazer o governador e o senador, quis desistir daminha candidatura em favor do seu nome. Não aceitou e insistiu que o maisimportante era conquistarmos o governo. Explico a ele a situação.

– Divaldo, não lhe criarei dificuldades. Mas gostaria que você perguntasseao Presidente da República se realmente é essa a orientação.

Concordei. Na semana seguinte, seria recebido pelo Presidente Geisel econversaria sobre o assunto.

No dia anterior à audiência presidencial, procuro o Senador PetrônioPortela e peço que explique à nossa bancada a posição dos dirigentes do parti-do. Precisava de testemunhas. Ele não se fez de rogado. Convocou os trêsSenadores e os quatro Deputados Federais da Aliança Renovadora Nacional edestacou a candidatura de Teotônio. Todos compareceram, menos José Sampaio,que se encontrava em São Paulo. Nelson Costa, que viajara comigo, participada reunião.

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O Presidente Geisel confirma a indicação de Teotônio. Numa das inú-meras vezes em que o visitei, em Teresópolis, em companhia de Jorge Assun-ção, recordamos todos esses acontecimentos.

O apoio de Lamenha, dentro das circunstâncias, foi decisivo. Sempreme senti em débito para com ele. Anos depois, condicionei minha candidatu-ra ao governo de Alagoas, pela terceira vez, a ter como companheiro de cha-pa seu genro Manoel Gomes de Barros. Preparei Mano para ser governadorcomo minha última homenagem ao inesquecível líder Antônio SemeãoLamenha Lins.

Nossos caminhos cruzaram, inúmeras outras vezes, com os do MinistroPetrônio Portela. Guardo dos nossos encontros a recordação da grande agilida-de mental e do poder de diálogo que possuía. Ele tinha uma profunda convic-ção de que o sistema democrático, mesmo não sendo perfeito, é a melhor for-ma de governo que a humanidade conhece.

39DE TODAS AS MODIFICAÇÕES SOCIAIS HAVIDAS ATÉ HOJE, a mais relevante foi,sem dúvida, a que aboliu o determinismo de berço, que dava a uns o direito degovernar e impunha a outros a obrigação de obedecer. Ainda há quem evoque,até com certa dose de nostalgia, essa época em que o berço era tudo, pois, poruma tendência compreensível, quem assim devaneia pensa que seria um dospoucos privilegiados pela origem nobre e não, um dos muitos estigmatizadospor um nascimento plebeu. Mas, a não ser como imodesta fantasia ou comosintonia de um desejo de ver restaurados valores que hoje se contestam, emqualquer outro caso, a evocação seria descabida, uma vez que o período evoca-do, não obstante a pompa, o requinte e o esplendor romântico que o marcaram,teve o grave defeito de sacrificar o mérito em favor da origem.

É nos dias de hoje, quando o nascimento não mais implica qualquer sortede determinismo, que faz sentido o milenar livre-arbítrio bíblico, pois, somentehoje, o homem é verdadeiramente senhor do seu próprio destino. Isso nãoquer dizer, evidentemente, que as sociedades hodiernas pretendam igualar oque a natureza faz desigual. A regra da igualdade não consiste, senão, em quinhoardesigualdade aos desiguais, na medida em que se desigualam. É nessa desigual-dade social, proporcionada à desigualdade natural, que se acha a verdadeira leida igualdade, pois, tratar com desigualdade a iguais ou a desiguais com igualda-de seria desigualdade flagrante e não, igualdade real. Mas, se a sociedade nãopode igualar o que a natureza criou desigual, pode, entretanto, reagir sobre asdesigualdades nativas.

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Diante dessa faculdade concedida ao homem, de forjar o seu próprio vir-a-ser, a educação assume, hoje, uma importância que jamais teve ontem. Nopassado, a educação era pouco mais do que simples ornamento, uma vez que ovalor do indivíduo estava vinculado à sua origem. Mas, no presente, quandonenhum homem pode ser frustrado em suas pretensões de êxito, por lhe falta-rem haveres e qualidades de nascença, a educação é fundamental e sintetiza amais segura receita de sucesso. É a educação, em seu sentido mais amplo, en-tendida como todo esforço de auto-aprimoramento, que abre os horizontes dohomem moderno e lhe concede o entusiasmo e a energia de que necessita paraperseguir um ideal e alcançá-lo. Sem educação, não se pode ter ideal; o que setem é fanatismo. O entusiasmo idealista do homem que pensa não se confundecom a exaltada cegueira do ignorante.

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A f i r m a ç ã o

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ALAGOAS VIVEU, NAQUELE INSTANTE, aparentemente, um dia de profundas mo-dificações em sua direção administrativa. Novo governador, novo secretariado,novos diretores nas empresas estatais. Entretanto, na realidade, consolidava-seaquela mentalização que somente as comunidades amadurecidas adquiriram eas sociedades superiores conquistaram, o espírito de continuidade de uma ad-ministração que deixou de ser personalista para tornar-se comunitária.

Os governos Afrânio Lages e Divaldo Suruagy identificaram-se, irmana-ram-se, no grande propósito da conquista do bem comum.

A primeira eleição para governador significou, para mim, um coroamentoda vida pública. Por mais honrosos que fossem os cargos que viesse a exercerno amanhã, nenhum deles me traria maior satisfação interior. Recebo-a, porém,com humildade. O Poder só tem uma razão nobre, quando é utilizado para aprática do bem. Exerci as mais diversas funções em Alagoas, das mais humildesàs mais importantes. Nenhuma delas alterou a minha maneira de ser. Chegueiao governo destituído de complexos de superioridade ou de inferioridade. Pri-vara, há vários anos, de sua intimidade, para deixar-me iludir. Possuía uma no-ção exata de sua força e de sua limitação. Sempre me causaram piedade aquelesque esquecem que o Poder é interino. Devemos apenas utilizá-lo para melho-rar o todo social. Estava consciente de que iria contrariar muitos interesses.Sabia que, para cada sim, diria mais de mil nãos. Estava preparado psicologica-mente para as incompreensões. Não me alimentava o desejo de agradar e sim,

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o de ser justo. Um governo, a menos que desconheça a sua missão, não podepor amor a um interesse, comprometer os outros interesses da sociedade. É nacombinação de todos eles que consiste o grande problema da administraçãopública. Acredito que a principal qualidade do político é saber adaptar os meiosaos fins e não deixar periclitar o interesse social maior, por causa de uma dou-trina ou de uma aspiração.

Sempre enfatizei que, dentro das minhas limitações humanas, me esforçopara tratar a todos de uma maneira que desejo que todos me tratem. Jamaisabrirei mão de minha autoridade porque sempre respeitarei a dos demais.

O Estado deve ser juridicamente, militarmente, produtivamente e moral-mente forte, a fim de poder cumprir suas obrigações morais para com o povo.Nos dias atuais, a maior obrigação moral do Poder Público é a de garantir ofuturo. Para esse fim, faz-se mister que possua organização policial capaz deproteger eficientemente a nossa sociedade contra aqueles que tentam aviltá-la.

Advogo, no entanto, que a melhor proteção que um povo deve ter é umpadrão de vida compatível com as necessidades que a sofisticação do desenvol-vimento tecnológico criou.

Considero a obtenção do pleno desenvolvimento das nossas riquezasfísicas, humanas e de qualquer outra espécie, como o objetivo maior da nossapolítica governamental, seguindo-se imediatamente de outro objetivo, a prote-ção daqueles direitos que julgamos inalienáveis.

Nessa luta titânica, na busca de melhores dias, devemos evitar o desperdí-cio de tempo, de riquezas, de vidas e de oportunidades. Ele é o nosso maiorinimigo. Eliminá-lo é a mais dinâmica das responsabilidades de um governo.

No momento daquela vitória, expressei o desejo de dividir os louros comaqueles que a tornaram viável. Incontáveis foram os braços que me conduzi-ram ao Governo das Alagoas. Seria humanamente impossível enumerá-los,embora guarde bem viva a imagem de todos eles, que jamais esquecerei. Naimpossibilidade de agradecer nominalmente a todos, destaquei os que foraminstrumento do destino.

Herdei de meu pai, Pedro Marinho Suruagy, o senso de honra, o altoconceito de amizade, o costume de respeitar a todos e não temer ninguém. Osonho dele foi concretizado. Os Suruagys entraram na História das Alagoas.

Luíza de Oliveira Suruagy era a docilidade feita pessoa. A perfeição hu-mana, que é coração e espírito, bondade e inteligência, encontrei nos seus me-nores atos. Plasmou o meu espírito com doçura e energia. Devo-lhe muito.Vejo-me criança, e ela a ensinar-me o caminho que leva a Deus. A oferecer-mea educação dos primeiros anos, que é a mais dominante e penetrante. Os gran-des princípios, a religião, o amor ao trabalho, o amor ao dever, o desejo de ser

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bom, a humildade como norma de vida, a compreensão para com as falhas dopróximo, tudo isso foi ela quem depositou em minha alma. Considero-me umprivilegiado, por ter tido, como pais, criaturas tão maravilhosas.

Luzia é a companheira de todos os instantes, de todas as horas. Conforta-me sabê-la ao meu lado, compreensiva para com os muitos defeitos que possuo,proporcionando-me a tranqüilidade tão necessária para enfrentar as lutas políti-cas. Por mais glorioso ou por mais amargo que seja o meu amanhã, ela será o meuponto de apoio e de encorajamento, sempre a sorrir, sempre otimista, a achar quetodos são bons e que o mundo é belo e colorido como o arco-íris.

Luís Cavalcante e Lamenha Filho foram as mãos amigas que me guiarampelos corredores em forma de labirinto da política alagoana. O Major, entre-gando-me as mais importantes funções no seu governo; e Lamenha, defenden-do intransigentemente junto às agremiações partidárias, a minha candidatura aPrefeito de Maceió. Jamais me faltaram. Sempre os vi como fontes permanen-tes de bons ensinamentos e de exemplos a serem seguidos. Guiando-me poreles, comecei a aceitar a idéia de que a maledicência, a acusação e até a calúniasão uma parte do preço que se paga por estar na vida pública. É uma lição durae desagradável, mas que é necessário aprender, pois, a não ser que a pessoa aaprenda, e saiba o que esperar, e esteja preparada para enfrentá-la emocional-mente, a atividade política tornar-se-á insuportável. Eles foram parceiros develhas lembranças e companheiros de novas experiências porque estiveram,constantemente, presentes sempre que acharam que eu pudesse precisar deajuda.

Rui Palmeira foi quem me mostrou a amplidão que a carreira políticapode levar a um jovem. Nossos diálogos foram aulas inesquecíveis que eu rece-bi de um verdadeiro estadista.

Dividi, com o Vice-Governador Antônio Gomes de Barros, a minha açãode governo. Diariamente, até o traumático dia de seu prematuro falecimento,Antônio Gomes estava ao meu lado, levando a sua experiência, o seu bomsenso, a sua lealdade e sabedoria às nossas decisões governamentais.

O Poder Judiciário, guardião das grandes conquistas da sociedade demo-crática, era o nosso árbitro.

O Tribunal de Contas, em sua constante e nobilitante vigília, uma garan-tia da boa utilização que concederia aos recursos públicos.

Aqueles quatro anos puseram à prova as nossas habilidades numa exten-são bem maior do que qualquer experiência que tenhamos conhecido.

No ato de posse, pedi a Deus que estivéssemos à altura da grande missãoque nos fora confiada. Os nossos acertos ou os nossos desacertos beneficia-riam ou prejudicariam milhares de pessoas.

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2ANALISANDO A HISTÓRIA DO BRASIL, nas últimas décadas, chegamos à conclu-são de que, apesar das grandes dificuldades econômicas vividas, dos inúmerosproblemas de ordem climática enfrentados, dos reflexos negativos que essasdificuldades e esses problemas tiveram sobre os fenômenos sociais e políticos,é visível o desenvolvimento do nosso país.

O progresso que alcançamos foi conseqüência da capacidade de trabalho,da inteligência do nosso povo e das nossas potencialidades. Mas, por dever dejustiça, não podemos deixar de reconhecer que ele se deve, em muito, à visãosuperior de um homem que comprometeu toda a sua razão maior de viver comas grandes aspirações da nossa Pátria.

Secretário de Estado, no Rio Grande do Norte e na Paraíba, Comandantede importantes unidades militares, Presidente da Petrobrás, Chefe do GabineteMilitar de dois Governos da República, Ministro do Superior Tribunal Militar,o General Ernesto Geisel coroaria sua vida pública com o exercício da Supre-ma Magistratura da Nação.

Caráter retilíneo, dotado de um senso de moral e de um código de honrainflexível, os seus mais ferrenhos adversários jamais ousaram macular a suahonorabilidade. Tenaz, sempre perseguiu com obstinação os rumos traçados eas metas estabelecidas.

As grandes hidrelétricas; a modernização dos meios de comunicação; aextensão ao trabalhador rural, aos septuagenários e aos inválidos dos benefíci-os da legislação social; a busca da restauração democrática, com a extinção dacensura à imprensa e dos atos de exceção tudo isso caracteriza o governo Geisel.

Guardamos dos nossos encontros e dos nossos diálogos, a impressão deuma pessoa profundamente humana, afetuosa e compreensiva para todos aquelesa quem dedicava estima e respeito.

Governando Alagoas, recebemos dele um apoio enorme para todos ospleitos que formulamos em nome da nossa comunidade.

O pólo cloroquímico; a conclusão da rodovia BR-104, em terras alagoanas,beneficiando o rico vale do rio Mundaú; o início da pavimentação da estradaPalmeira dos Índios – Carié, velho sonho do nosso sertão; os projetos deintegração agrícola; o dique de proteção à cidade de Maceió contra as enchen-tes, são atestados de sua sensibilidade às nossas reivindicações.

Jamais me concedeu um não. Se algum êxito encontrei em meu primeiromandato à frente do Executivo Alagoano, devo ao seu auxílio.

O nosso relacionamento não foi o formal, que geralmente existe entre oPresidente da República e o Governador de um Estado. Recebi a sua palavra,como se estivesse à volta de uma mesa e à sombra de uma casa, ouvindo aconhecida e estimada voz paterna a falar de seu saber feito de experiências.

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Sabemos que democracia não é palavra vã, fruto de uma improvisação oude emoções momentâneas. Não adianta uma queima rápida de etapas, se nãotivermos o cuidado de delimitar os espaços em que o fogo pode ser salutar.Não se podia, é claro, delongar indefinidamente o momento da volta à plenitu-de democrática.

A meu ver, o clima que influenciou a opinião pública em todos os seussetores, se fez cada dia mais favorável à maturidade da democracia brasileira,graças à determinação desse estadista que foi o Presidente Ernesto Geisel.

Escrevo sobre este inesquecível homem público, cuja memória o Brasilcultuará num ato de justiça, e eu, particularmente, registro de forma indelével,entre as mais gratas lembranças, a linguagem do coração, aquela mais das vezesesquecida, porém, a única a constituir o ponto básico da comunicação, queatinge o seu clímax quando se permeia a linha misteriosa e sublime da amizade.

3O PROFESSOR AFRÂNIO SALGADO LAGES É o sucessor do Governador Antô-nio Semeão Lamenha Filho. Empossado, aos sessenta anos de idade, levoutoda sua experiência de advogado militante e os conhecimentos do magistériopara conduzir os destinos de Alagoas.

Elitista por temperamento e formação, dotado de grande espírito público,apaixonado pelo progresso do Estado, empenhou-se em consolidar o trabalhoque iniciara quando presidira a Companhia de Desenvolvimento.

Estudioso de sociologia, sabia que a incerteza do amanhã gera, no ho-mem, o egoísmo, e que este, é acentuado nas regiões que ainda não alcançaramos níveis ideais do desenvolvimento, pela intranqüilidade social em que vivemas populações das áreas subdesenvolvidas. Entretanto, acreditamos, foi exata-mente por conhecer toda essa problemática que aceitou a honrosa missão degovernar os alagoanos. Sentia-se capaz de eliminar ou de amenizar as distorções.Conhecia a terra e os homens. Foi o desejo de ser útil que o conduziu. Era umrepublicano de idéias e um aristocrata por comportamento.

Adoeceu em meados do governo. Ao falecer, após longa e incômoda en-fermidade, haverá levado na consciência a tranqüilidade própria dos que sabemhaver cumprido o seu dever.

4RECEBO O GOVERNO DE ALAGOAS, EM MARÇO DE 1975, das mãos do professorAfrânio Lages. Ano em que a Petroquisa assume o controle acionário da Salgema.

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Consigo sensibilizar o Presidente da República Ernesto Geisel, em torno dosinteresses maiores de Alagoas. O país possuía, à época, o Pólo Químico de SãoPaulo, que havia surgido como conseqüência da pujança da economia paulista,e o Pólo Petroquímico da Bahia, que era decorrente de uma decisão técnico-política do governo federal. Em agosto de 1976, o Presidente Geisel define oPólo cloroquímico, em território alagoano, e o Pólo Químico de Rio Grandedo Sul, descentralizando o parque industrial brasileiro.

O Governador Roberto Santos, da Bahia, adverte-me sobre as dificuldadesde toda natureza que, ingenuamente, desencadeei. Faltavam recursos ao Estadopara implantar o mínimo de infra-estrutura indispensável ao pólo. Com um pou-co de ironia e muita verdade afirma: – Suruagy, os problemas que você vai enfrentar sãomaiores do que Alagoas. Não me preocupei. Imaginava que houvesse ficado commágoas pela Bahia não ter sido beneficiada com a decisão presidencial. Fui umtolo. Quantas vezes, diante da magnitude dos obstáculos, concordei com a assertiva!

O pólo cloroquímico significava um volume de investimento de aproxi-madamente um bilhão de dólares, em menos de duas décadas, na combalidaeconomia alagoana, criando, ainda, amplo mercado ao álcool produzido pelasusinas de cana-de-açúcar que estavam atingindo seus limites industriais.

Incumbi o Secretário de Planejamento, José de Melo Gomes, de promo-ver os estudos necessários à criação da Coordenadoria do Meio-Ambiente e dalegislação de proteção ambiental.

Contratamos o economista Rômulo Almeida para elaborar os primeirosdocumentos de análise crítica e sugestões reivindicatórias junto ao GovernoFederal. A autoridade técnica e moral de Rômulo era uma garantia de compe-tência e seriedade. Fundador e Presidente do Banco do Nordeste, membro daequipe de planejamento do Pólo Petroquímico de Camaçari e Diretor do Ban-co Nacional de Desenvolvimento Econômico, era um exemplo de honradez.

Envolvemos a sociedade alagoana colocando no Conselho de ProteçãoAmbiental representantes das entidades organizadas de trabalhadores, classesprodutoras, jornalistas, Universidade Federal, Secretários de Estado e Direto-res da Salgema. Emprestei prestígio político ao colegiado, presidindo, na con-dição de governador, a maioria das reuniões do Conselho.

5O SUPERINTENDENTE DA SALGEMA, ROBERTO COIMBRA envia às principaisautoridades do Estado de Alagoas um relatório confidencial contendo infor-mações com aspectos catastróficos sobre uma possível evasão de cloro emtorno da área da fábrica.

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O Deputado Walter Figueiredo, líder da oposição na Assembléia Legislativa,distribui cópias com os jornalistas credenciados na Casa, e lê o documento, naíntegra, na tribuna do Poder Legislativo. Faz uma previsão retórica da gravida-de da tragédia se o vazamento ocorresse, em uma tarde de domingo, com oEstádio Trapichão totalmente lotado num jogo entre o CSA e o CRB, o clássicodo futebol alagoano.

O impacto foi terrível. Pessoas que passavam de automóvel em frente daSalgema, juravam que ficaram nauseados, com vontade de vomitar por causado cloro. Outros haviam tido cegueira momentânea com irritação nos olhos.Cada caso, independentemente de confirmação, era explorado ao máximo, deuma maneira sensacionalista pela imprensa. O inusitado sempre é notícia; alémdisso, as explicações da empresa, em notas oficiais, eram matérias pagas. AUniversidade Federal de Alagoas que funcionava, provisoriamente, no Pontalda Barra, no Campus Tamandaré, antiga Escola de Aprendizes de Marinheiros,apressa sua transferência para o Tabuleiro do Martins. O pânico generaliza-se.Afirma-se que uma explosão na Salgema arrasaria metade de Maceió. A reden-ção econômica do Estado passa a ser considerada por muitos uma verdadeirabomba atômica. O positivo transforma-se em negativo. As emoções pairamacima da razão.

Convencido de que governar um corpo social é administrar interessesconflitantes, enfrento a borrasca. Autorizo o Coronel Paulo Ney Ramalho, Co-mandante Geral da Polícia Militar e Presidente da Comissão de Defesa Civil aelaborar um plano que previsse bloqueio e controle do tráfego de acesso àsáreas envolvidas; disponibilidade de remédios e equipamentos médicos paraatender aos feridos; ambulâncias com motoristas e enfermeiros treinados paracondução das vítimas aos hospitais (em número necessário para um grandeacidente) e reforço à brigada de incêndio da Salgema. O plano recebeu o nomede Operação Cata-Vento.

Solicito que o Deputado Jorge Quintella, líder do governo na AssembléiaLegislativa, informasse as providências programadas para uma calamidade pú-blica e desse ênfase às medidas (que eram de rotina em qualquer indústria quí-mica) que tomara com a finalidade de prevenir os acidentes com efeitos noci-vos à população e garantisse que era muito remota a possibilidade de vasamentode cloro devido aos altos investimentos que a Salgema havia feito em moder-nos equipamentos antipoluidores oferecendo o máximo de segurança.

Consigo dividir a opinião pública. Lideranças comunitárias, dos mais di-versos segmentos sociais, dotados de grande credibilidade pela firmeza moralde seus caracteres, começam a conceder entrevistas favoráveis ao pólocloroquímico.

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6RECEBIDO EM AUDIÊNCIA PELO PRESIDENTE DA REPÚBLICA Ernesto Geisel, de-fendo a definição do pólo cloroquímico para o Nordeste. Argumento que, dentrodo critério da descentralização do desenvolvimento industrial do país, em boahora por ele implantado, Alagoas deveria sediar o novo pólo, não apenas porpossuir a reserva da matéria-prima, o sal-gema. É que a Bahia já possuia o pólopetroquímico, e São Paulo dispensava qualquer análise por ser o maior parqueempresarial da América Latina. O presidente prometeu estudar o assunto. Diasdepois, ele me telefona comunicando que decidira implantar o pólo cloroquímicoem Alagoas e o novo pólo petroquímico do Brasil, no Rio Grande do Sul.

O apoio do Presidente Geisel foi fundamental à viabilização do pólo.Havendo presidido a Petrobrás, quando foi criada a Petroquisa, tinha uma cons-ciência muito exata da importância das fábricas químicas, como indústria deponta, para o processo de enriquecimento da economia.

Empreendedor, disciplinado, dotado de espírito público e de uma capaci-dade invulgar de trabalho, intrinsecamente honesto, transmitiu ao governo aimagem de sua fortaleza moral. Conduziu com pulso de ferro o difícil períodode transição de um Estado Revolucionário para um Estado de Direito; enfren-tou borrascas. Avançou, recuou e voltou a avançar na perseguição da plenitudedemocrática. Pairando acima dos ódios e das vinditas, levou o país à distensãopolítica, evitando uma provável guerra civil, que a violência do terrorismo e datortura poderia ter conflagrado no Brasil.

7ELEITO GOVERNADOR DE ESTADO, começo a planejar a minha sucessão. Umacampanha eleitoral deve ser feita com muita antecedência. O convívio na As-sembléia Legislativa permitiu o surgimento de um grupo de parlamentaresque teria uma enorme influência na vida política e administrativa de Alagoas.Quatro deles chegaram ao governo e, enquanto permaneceram unidos, ja-mais perderam uma eleição. A minha preferência recaía sobre Guilherme Pal-meira e Theobaldo Barbosa. Enxergava neles os atributos maiores que umhomem público deve possuir, além de prestígio eleitoral. Ajudei-os,subliminarmente, a aumentar suas votações. Theobaldo foi o Deputado Fe-deral mais votado em 1974 e Guilherme, o segundo na Assembléia Estadual.Convidei Theobaldo Barbosa para ser Prefeito de Maceió e coordenei a elei-ção de Guilherme Palmeira à Presidência da Casa Legislativa. Desejava destacá-los. Queria que o povo conhecesse o real valor desses grandes políticos.Theobaldo preferiu, entretanto, ficar no Congresso Nacional. Concluído o

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biênio de Guilherme na Presidência da Assembléia, convoquei-o à Secretariade Indústria e Comércio entregando a ele a coordenação do pólo cloroquímico.A função executiva confirma ou anula lideranças. Guilherme Palmeira temseu prestígio consolidado.

É provável que Theobaldo Barbosa, se houvesse assumido a Prefeiturade Maceió em permanente contato com as bases políticas, exercendo o segun-do cargo executivo do Estado, teria tido ótimas condições de se eleger gover-nador de Alagoas.

O processo de eleição indireta é profundamente antropofágico. Política éjogo bruto. Os candidatos estão expostos a todos os tipos de calúnias e infâ-mias. Nada aproxima mais os homens dos deuses do que a política. O mudardestinos ou paisagens apaixona os seres humanos. Apesar da brutalidade dojogo político, a eleição direta é um campo aberto, onde o adversário não conse-gue esconder por muito tempo a estratégia da luta. Os postulantes se revelamem suas virtudes e defeitos. No pleito indireto, as intrigas se fazem no anoni-mato. A “punhalada”, na maioria das vezes, vem pelas costas.

O Presidente Ernesto Geisel, apoiado na estratégia montada pelo Minis-tro Golbery do Couto e Silva, consegue impor sua vontade, elegendo um can-didato comprometido com o processo de abertura do sistema revolucionário, oGeneral João Baptista Figueiredo.

O Deputado José Bonifácio de Andrada, líder da bancada da maioria naCâmara Federal, um dos mais hábeis políticos brasileiros, apóia a candidaturado General Sílvio Frota. Seus vice-líderes apostam na sua sagacidade e, comraríssimas exceções, o acompanham.

Os acontecimentos posteriores justificam o erro tático que o político mi-neiro cometera. Primo de dois generais do Alto Comando, os irmãos AndradaSerpa, e amigo do Chefe do Gabinete Militar, Hugo de Abreu, adeptos dacandidatura do General Frota informavam a José Bonifácio que o vitoriososeria o Ministro do Exército.

Embora os trinta e três deputados que compunham o Movimento Reno-vador, integrassem a Aliança Renovadora Nacional, não aceitavam a liderançade José Bonifácio, que, no entanto, não lhes dava a mínima importância, pelopequeno número que representavam dentro da bancada governista. Tomandoconhecimento de que seu adversário emprestara apoio à candidatura Frota,procura, por intermédio do Deputado Teódulo de Albuquerque, o MinistroJoão Baptista Figueiredo a quem oferece sua solidariedade.

A bancada federal de Alagoas, na oportunidade, era composta de seisdeputados. Dois da oposição e quatro da situação.

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José Alves era vice-líder do governo, Geraldo Bulhões integra o movi-mento renovador, Theobaldo e Antônio Ferreira atuam em faixas próprias.

Os deputados da ARENA firmam documento, defendendo a candidaturade um Deputado Federal ao governo de Alagoas. Os deputados estaduais, como meu apoio, replicam com a indicação de Guilherme Palmeira.

Inventam-se as piores mentiras, algumas até hilariantes, em torno de Gui-lherme. A mais inusitada delas foi de que ele havia feito um atentado terroristaà Base Aérea, no Recife. A todas consegui desmanchar junto aos órgãos deinformação.

Viajando a Brasília, para receber a Comenda do Mérito Rio Branco, con-cedida pelo Ministério das Relações Exteriores, sou convidado pelo DeputadoFrancelino Pereira, Presidente Nacional do Partido, para discutir a sucessãoalagoana. Recebe-me no seu apartamento e tenta me convencer, durante trêshoras, a concordar com uma lista tríplice, composta por deputados federais eestaduais. Recuso-me, explicando que já havia indicado o nome de Guilhermeao Presidente Geisel e preferia perder ou ganhar com ele. Sentindo que eu nãoconcordava, utiliza um argumento irrespondível, dizendo que a bancada fede-ral, em virtude do impasse, indicava o nome do Senador Luís Cavalcante. Ad-mito que jamais teria condições de criar o menor obstáculo ao nome do Major.Concordava com sua escolha, desde que Guilherme fosse candidato ao Senadoda República. Ele tenta me dissuadir, argumentando ter informações de que onome mais forte para ganhar o pleito era o nosso. Afirmo não querer nemdiscutir o assunto. Condiciono meu apoio à candidatura de consenso à ida doGuilherme para o Senado e anuncio que seria candidato a Deputado Federal.Rende-se aos meus argumentos e telefona para a residência do Senador LuísCavalcante. Já era mais de meia noite.

O Major me recebe e concorda em ser o candidato, insistindo que eu dispu-tasse o Senado. Explico os motivos e ele me compreende. Combina-se uma reu-nião final para as onze horas daquele dia. Estávamos às duas da madrugada.

Chegando ao Hotel Nacional onde estou hospedado, sou surpreendidopelo Deputado Federal Geraldo Bulhões que estava à minha espera. Informa-me que seria o futuro governador de Alagoas. Respondo ao Geraldo, dizendoque estava com sono e imaginava que ele também estivesse; melhor seria sedeixássemos para discutir o assunto diante do Francelino e demais membros dabancada, no encontro que teríamos naquela manhã.

Comunico, por telefone, ao Senador Luís Cavalcante a posição de Geral-do Bulhões. Ele, revoltado, deixa de ser neutro e passa a aliado. O encontrocom os deputados federais foi melancólico e deixei bem claro que o meu candi-dato era Guilherme Palmeira.

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O Presidente Geisel, às quinze horas, em companhia do futuro PresidenteJoão Baptista Figueiredo, dos Ministros Golbery do Couto e Silva, ArmandoFalcão e do Deputado Francelino Pereira recebe a mim e ao Senador LuísCavalcante, Presidente Regional do nosso Partido. Comunica-nos que Guilher-me Palmeira havia sido escolhido governador de Alagoas. Sugere que indique-mos um deputado federal para ser o vice-governador.

Os fados haviam conduzido para os dois nomes que escolhera quatroanos antes. A mudança era Guilherme, para governador, e Theobaldo, paravice-governador.

Jamais esqueci as constantes demonstrações de apoio e amizade que rece-bi do Presidente Geisel. Até o fim de sua longa vida sempre o visitei, emTeresópolis, levando minha permanente gratidão.

8DEFINI A DATA PARA INAUGURAR A PAVIMENTAÇÃO asfáltica entre Olho D’Aguadas Flores e São José da Tapera. As lideranças políticas da região solicitaramque fosse pela manhã, pois pretendiam oferecer um grande churrasco ao povo.Vários bois haviam sido oferecidos pelos fazendeiros. Concordo. A inaugura-ção seria às dez horas. Levanto vôo num pequeno monomotor do aeroclube. Oavião, do governo, estava em revisão. As opções de pouso eram Santana doIpanema ou Batalha. Vivíamos um belo dia de verão; o sol emitia seus raioscausticantes e o calor era abrasador.

A paisagem que descortino do avião, depois de Palmeira dos Índios, édeprimente. O Nordeste estava sendo castigado por mais uma seca. Analiso osresultados dos investimentos governamentais no sertão alagoano. Bilhões decruzeiros foram gastos na infra-estrutura. Adutoras foram construídas para captarágua do Rio São Francisco, a fim de abastecer os centros urbanos. Eletrificam-se cidades, povoados e fazendas. Melhoram-se os meios de comunicação, atra-vés da instalação de uma rede telefônica. Asfaltam-se as principais rodovias,constroem-se escolas e hospitais. O impacto, entretanto, na economia sertane-ja, é praticamente nenhum. As produções de leite e de feijão, as mais importan-tes fontes de riquezas, permanecem quase as mesmas. É verdade que todasessas obras melhoraram consideravelmente as condições de vida da população.Uma viagem entre Pão de Açúcar e Maceió, que era feita em oito ou dez horas,hoje é feita em apenas três horas. Melhorou-se a assistência médica e educacio-nal, há mais conforto graças à energia elétrica e ao abastecimento d’água. Po-rém a economia é que não sofreu alterações.

Interrogo-me. Qual a verdadeira vocação econômica do semi-áridoalagoano? A resposta está diante de mim. Mais uma vez, a natureza oferece

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uma lição para o homem. A única atividade produtiva que convive com a secaé a pecuária leiteira, graças à visão de Delmiro Gouveia, quando plantou asprimeiras mudas do cacto conhecido como palma forrageira. A verdade seimpõe; a saída econômica é fortalecer e ampliar a região produtora de leite.

O piloto interrompe as minhas divagações, perguntando-me se deveriapousar em Santana. Decido pousar na estrada que deveria inaugurar, em SãoJosé da Tapera. Estava consciente de que nunca um avião havia pousado emTapera. O comandante mergulha em vôo rasante várias vezes, a fim de cha-mar a atenção daqueles que esperavam a solenidade de inauguração. Viaturaspoliciais improvisam uma pista no asfalto. Os vôos rasantes haviam chamadoa atenção de centenas de crianças. Quando o avião pára as manobras de pou-so, está cercado por uns duzentos meninos e meninas. Salto do avião. Umgaroto, aparentando dez ou onze anos, olha extasiado para mim. Imaginoque, aos seus olhos, devo parecer um astronauta. É quando toda sua admira-ção extravasa em palavras: – Eita Governador arretado! – Sua voz não veio ape-nas da garganta. Ela veio de maior profundeza, do seu coração. Foi,indubitavelmente, o mais puro e autêntico elogio que recebi, ao longo detoda minha vida pública.

9É UM TANTO MAL-AGRADECIDA E IRRACIONAL – conquanto natural e compre-ensível – a irritação que comumente se tem diante da crítica. Compreende-seque ninguém goste de ser criticado. Daí nos exasperarmos quando alguém dis-corda ou expõe dúvidas quanto à nossa qualificação. Todavia, apesar de naturale compreensível, tal reação é desagradecida e sem razão. Em verdade, nós de-vemos ser gratos aos que nos criticam, pois, são eles que nos dizem quais são osnossos defeitos. Os amigos, via de regra, aceitam-nos como somos sem imporcondições, e não gostam apenas das nossas virtudes, mas gostam também dosnossos defeitos. São as outras pessoas, as que só toleram os nossos méritos – eàs vezes nem isso – que têm as melhores condições de apontar os nossosdeméritos, ajudando, destarte, no nosso aprimoramento, e por essa ajuda nóslhes devemos ser profundamente gratos.

Há que se distinguir, evidentemente, a crítica honesta da desonesta. Noprimeiro caso, quem critica julga sinceramente estar certo. Esse é um tipo decrítica que sempre merece atenção, mesmo quando o crítico está errado. Já noúltimo caso, quem critica não busca a verdade, apenas a utiliza como pano defundo, para encobrir intenções pouco dignas. Críticas assim devem ser, sim-plesmente, ignoradas. É fácil separar as críticas construtivas das destrutivas;

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basta verificar a autoridade de quem critica. Uma pessoa sabidamente desones-ta não pode dar lições de honestidade; um belicoso não pode falar em paz; ummau-caráter não pode impor feitos morais; um mentiroso não pode defender averdade; um desequilibrado não pode opinar sobre equilíbrio.

10CONVIDO O MINISTRO MÁRIO HENRIQUE SIMONSEN para proferir uma confe-rência num encontro que organizara no início do nosso governo, na cidade dePenedo, reunindo autoridades alagoanas e todos os órgãos federais que atuamno Nordeste. O objetivo maior era discutir qual a melhor maneira de conse-guirmos recursos da União para acelerar o desenvolvimento alagoano. Atendeao nosso convite, identificando-se com as aspirações do nosso Estado. Contro-lando o Tesouro Nacional, concedeu-nos no Ministério da Fazenda, um apoioque muito me ajudou na difícil missão de governar Alagoas.

Inteligência altamente privilegiada, não seria nenhum exagero afirmar quese aproximava da genialidade. Simples, destituído de vaidades, acostumado aoconvívio com o poder desde o nascimento, jamais se tornou um arrogante. Daía simpatia que provocava em todos que o conheciam de perto.

Apaixonado por música clássica, conhecia-a em tamanha profundidadeque teve oportunidade de presidir júris de concursos internacionais de ópera.

Engenheiro, economista, escritor, empresário, Ministro de Estado, ima-gino que se realizava mais como professor, era um mestre nato. Dotado de umagrande facilidade de expressão, possuindo uma cultura geral muito sólida e umsenso de humor britânico, transformava suas aulas e seus diálogos em momen-tos inesquecíveis.

11INAUGURÁVAMOS A PAVIMENTAÇÃO DA RODOVIA para o município de Boca da Mata.O Ministro dos Transportes, Dirceu Nogueira, prestigiava a solenidade com suapresença. Percorríamos a estrada e mostrava ao ministro o imenso canavial. Aquelemar verde perde-se no horizonte. A Usina Triunfo surge diante de nossos olhos;é uma das maiores indústrias de açúcar de Alagoas. Tudo aquilo se tornou real,graças à força de vontade de um homem verdadeiramente extraordinário, queacreditou na potencialidade da região, lutou contra a incredulidade, comprome-teu seu patrimônio, trabalhou noite e dia, domou a terra áspera, venceu.

O usineiro José Tenório nos acompanhava. Apresento-o ao ministro comoo modificador daquela paisagem. Septuagenário, alto, magro, ouvindo mais do

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que falando, personalidade dominadora, o Major Zé Tenório, ou, simplesmen-te, Major, como todos o chamavam, era a própria imagem física do líder.

Conquistei sua amizade por intermédio do seu filho João Tenório. Pro-vocava-o a cada encontro, com inúmeras perguntas sobre o grande salto daindústria açucareira em nosso Estado, quando, passando de três para dezoitomilhões de sacas de açúcar, criamos uma infra-estrutura industrial e implanta-mos uma estrutura agrícola apta a esmagar toneladas de cana, correspondentesa trinta e cinco milhões de sacas, em poucos anos.

A Revolução Cubana, as necessidades do mercado internacional do açú-car, a crise do petróleo e a conseqüente demanda do álcool, a coincidência dosurgimento de alguns homens-época na classe empresarial alagoana, foram ascausas do desenvolvimento do setor.

Havendo sido Vereador e Prefeito de Atalaia, guardava um certo desen-canto da política partidária. O seu Partido era o daqueles a quem admirava erespeitava. As siglas pouco significavam para ele. Votava e apoiava pessoas enão agremiações.

Leal e dedicado, jamais titubeava na defesa de um amigo que estivesse aprecisar de apoio ou de solidariedade. Expunha-se e enfrentava consciente-mente os riscos. Considerava a amizade o bem maior.

12INDIZÍVEL O JÚBILO DA COMUNIDADE ALAGOANA quando comemorou os cin-qüenta anos de sacerdócio de Dom Adelmo Cavalcante Machado.

Há todo um mistério a se contemplar e toda uma reflexão a ser feita, numdia como aquele, em que uma vida, na sua totalidade, resolveu entregar-se aserviço dos homens por causa de Deus, na caminhada inflexível do tempo paraa eternidade.

Olhando Dom Adelmo no jubileu de ouro de seu sacerdócio, era comose estivéssemos a procurar na sua imagem a resposta àquilo que a esfinge davida nos pergunta diariamente.

Dom Adelmo decifrou e respondeu. A prova insofismável se encontra nacaminhada de cinqüenta anos pelas estradas, pelas veredas e pelos atalhos quesomente Deus e ele conheciam, no mistério da opção de ser padre.

Para conhecê-lo, precisamos mergulhar no silêncio das horas de oração ede meditação, nos instantes necessários do “Vigiai e orai”, nas paredes de livrosdo seu quarto simples, de Reitor do Seminário de Maceió.

Gostaríamos de ter ouvido os seus diálogos ou os seus monólogos, por-que Deus, às vezes, também esconde a sua face para provar o seu servo, nacapela do Seminário de Nossa Senhora da Assunção.

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Por mais que analisemos a sua exuberante cultura e tenhamos admirado oprofundo conhecedor que foi de Grego, Latim, Francês e Português; por maisque reconheçamos o seu saber filosófico e teológico; por mais que vislumbre-mos a têmpera de aço de seu caráter, não chegaremos a entender um poucodesta magnífica personalidade, se não colocarmos a plenitude da força do Es-pírito de Deus plantado na sua vida.

Todos nós, que o conhecemos durante longos anos, através de continua-dos contatos, é que podemos dar o testemunho público e solene de que DomAdelmo, antes de mais nada, era um Homem de Deus.

13LUTAVA CONTRA A INCREDULIDADE DE TODOS E A IRONIA DE MUITOS – Plantarcana de açúcar em tabuleiro? Isso é uma loucura, uma idiotice. – Os comentá-rios eram gerais. Entretanto, os irmãos Coutinho (Benedito e Antônio) insis-tiam com a idéia, apesar do descrédito e da campanha negativa.

Pernambucanos, haviam adquirido a Usina Sinimbu em julho de 1951.Ela fora montada pela firma inglesa Williams & Cia., em 1894, para fabricaçãode açúcar demerara. Começava o fim dos engenhos de bangüê, que dominarama economia nordestina no Período Colonial e no Brasil Monárquico. O terrenofora doado pelo Visconde de Sinimbu. À época, a lei proibia a compra de terraspor estrangeiros. Os ingleses ficaram gratos e homenagearam o Visconde, co-locando o seu nome na usina.

A primeira safra sob a direção da família Coutinho foi de cinqüenta ecinco mil sacas. O plantio da cana só se fazia nas várzeas. O tabuleiro, teorica-mente, era estéril. A indústria estava condenada a desaparecer, pois, não possuin-do terras para se desenvolver, tornar-se-ia totalmente antieconômica.

O plantio nos tabuleiros começou em 1954. O receio era que o aduboesterilizasse a terra. No máximo, daria a planta, mas nunca, a soca. Diziamque tudo que, até então, haviam plantado em tabuleiro fora um fracasso. Per-sistiram. E Alagoas deu o grande salto na produção de açúcar. O nosso Esta-do que produzia, no início da década de cinqüenta, um milhão e seiscentasmil sacas, produz hoje mais de vinte milhões. Sendo o terceiro produtor deaçúcar do país e o segundo de álcool, foi a resposta aos homens de pouca féque existem em qualquer época e que ousaram duvidar da nossa potencialidade.

Antônio Coutinho, até os setenta anos de idade, continuou o mesmogigante que conquistou uma região inóspita. Sua capacidade de trabalho eraverdadeiramente incrível. Sua personalidade e seu físico privilegiado lembra-

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vam os antigos bandeirantes. Seu nome ocupa lugar de destaque na galeria dosconstrutores da grandeza alagoana.

14BRASÍLIA, AGOSTO DE 1979. Câmara dos Deputados. O serviço de som emnosso gabinete, anuncia a palestra do Professor Afonso Arinos de Melo Francona Comissão de Constituição e Justiça. Apresso-me em ouvi-lo.

Deputado em três Legislaturas; Senador da República; Líder de Bancada;Mestre de Direito Constitucional; Escritor Consagrado; Membro da AcademiaBrasileira de Letras; Chanceler do Brasil, no governo Jânio Quadros e no Mi-nistério Brochado da Rocha, no Parlamentarismo, o palestrista é um patrimôniovivo da cultura política do nosso país.

Encontro-o em companhia de Dona Anah, de Ernani Sátiro e de DjalmaMarinho. Cumprimentamo-nos com alegria. Ele visitara Alagoas, a nosso con-vite, para fazer uma conferência na Assembléia Legislativa, quando a presidi.Passara três dias em nosso Estado. Lançara, na Academia Alagoana de Letras, oseu livro sobre o Presidente Rodrigues Alves e ficara encantado com a arquite-tura barroca de Marechal Deodoro e com a beleza paradisíaca das lagoas Mundaúe Manguaba.

Consciente do grande amor que dedica à esposa, sua companheira hámais de cinqüenta anos, cumprimento-a com afetividade.

– Dona Anah, a senhora está cada vez mais linda. Não é verdade, Profes-sor? – Absoluta, Suruagy. Concordo plenamente.

Dona Anah, meigamente, pergunta por Luzia. Conversamos amenida-des. Djalma nos interrompe. A palestra vai ter início.

O grande constitucionalista traça magistralmente uma síntese da históriadas Constituições Brasileiras. Foram sessenta minutos de magia cultural. Elefascinou todo o auditório. A sala encontrava-se cheia de deputados e de curio-sos atraídos pela força do seu nome. O silêncio era absoluto. Íntimo dos fatoshistóricos, discorria, analisava e apontava as causas, as razões que determina-ram as nossas cinco Constituições.

Concluída a conferência, iniciam-se os debates. Passava das doze horas.Compromissos outros impedem-me de participar. Despeço-me do eminenteMestre, através de Dona Anah que se encontrava sentada perto de mim.

Os conceitos emitidos, a postura ética, o poder de comunicação, a pro-fundidade cultural, o domínio da tribuna, levaram-me à convicção de que, real-mente, o Professor Afonso Arinos de Melo Franco é um homem superior, umcondutor de acontecimentos, um homem-destino. Fomos colegas no Senado

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da República; o Rio de Janeiro lhe concedeu essa distinção. Recebi dele liçõesmagníficas de civismo. Sua morte enlutou o Senado e o Brasil.

15OS ENORMES E ARISTOCRÁTICOS SALÕES do Hotel Excelsior localizado na viaVeneto, em Roma, regurgitavam de turistas, diplomatas e empresários. O movi-mento era incessante. O frio de dezembro, na Europa, levava as pessoas aprocurarem o calor e o conforto dos cafés e dos restaurantes.

Atraídos pelo mavioso som de um piano, João Tenório e eu nos dirigi-mos para o acolhedor bar do hotel. O maître, com dificuldade, nos consegueuma mesa. Pedimos uísque e concentramos nossa atenção no pianista. Seu físi-co configura-se com a suavidade da música. Mais baixo do que alto, no máximoum metro e sessenta centímetros de estatura, magro e pálido, seu rosto detraços clássicos tem a palidez de quem vive a noite. Ele parece não cantar e,sim, dialogar com a música. Sua voz meiga, quase sussurrada, como que hipno-tiza. Uma magia nos envolve, um estado de graça e leveza nos domina.

O rapaz que se encontra à mesa, à nossa direita, visivelmente espera al-guém. De instante a instante, olha o relógio e perscruta o hall. A angústia é a dequem espera uma mulher muito amada. Ela chega, denotando com o olhar,apreensão em virtude do atraso. Sorri ao encontrar o rapaz. O sorriso primeiroveio dos olhos e, depois, os lábios acompanharam. O bar estava repleto demulheres bonitas, mas elas ficaram emudecidas diante da recém-chegada. Lou-ra, alta, esguia, com cabelos dourados que descem em ondas sobre seus om-bros, atrai os olhares. Ao retirar o casaco de peles, um corpo divino revela-se. Ovestido preto, colante, delineia suas linhas perfeitas. O generoso decote mostraa maciez de sua pele. O rapaz, ajudando-a a tirar o casaco, torna-se, ao beijá-la,alvo da inveja geral dos homens.

O pianista, coincidência ou não, interrompe seu canto. Naturalmente de-seja homenageá-la. Poderia ser italiana, francesa, americana ou inglesa. Dedu-zo, entretanto, pela graciosidade de seus gestos, que seja francesa. É convenien-te explicar que sua beleza não era do gênero “cheguei”. Pelo contrário, era ameiguice que a fazia tão encantadora e atraente. Não acompanharia o rapaz quebebia conhaque e pede Kirsch Royal. Solicita ao pianista que toque Emmanuelle,que parece ser sua canção preferida. O casal irradiava uma imagem de amor. Oentrelaçamento de mãos, os beijos prolongados, as carícias trocadas prenunci-avam o viver de um furacão de emoções.

Roma, apesar de visitada várias vezes, perpetuou em mim aquele quadro.Sempre que penso na atmosfera romântica da cidade, visualizo aquele casal e o

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pianista do Hotel Excelsior. Eles aqueceram e preencheram uma fria e solitárianoite do inverno europeu.

16O BRASIL REJUBILAVA-SE COM O NOVO REGIME de governo e Afonso Penainiciava a sua gestão como Presidente da República, inaugurando uma adminis-tração marcada por tensas relações entre o Poder Executivo e o Congresso.Eram dados os primeiros passos no sentido do estabelecimento de uma políti-ca de valorização do comércio cafeeiro, ameaçado pela superprodução e pelaqueda de preços no mercado internacional.

Foi naquele ano, 1906, e nesse cenário, nos albores da jovem República,que Ismar de Goes Monteiro veio ao mundo, em Alagoas, no seio de umafamília numerosa. Filho do médico Pedro Aurélio Monteiro dos Santos e deDona Constança Cavalcanti de Goes Monteiro, descendia de proprietários deengenhos, cujos métodos coloniais de produção de açúcar estavam aos poucos,sendo substituídos pelas técnicas modernas das usinas que, durante muitas dé-cadas, haveriam de dominar a economia nordestina.

Era um, entre nove irmãos, alguns dos quais, como ele, predestinados ater atuação destacada na vida política de Alagoas e do Brasil: Pedro Aurélio, omais velho, líder militar da Revolução de Trinta que instaurou o Estado Novo,duas vezes Ministro da Guerra, Senador por Alagoas no período de 1947 a1951 e Ministro do Superior Tribunal Militar; Cícero, que tomou parte ativa naRevolução de Trinta e morreu em combate contra os revoltosos paulistas, em1932; Manoel César, Senador por Alagoas, de 1935 a 1937; Edgar, nomeadoInterventor de Alagoas, em 1945 e Silvestre Péricles, também Senador e Go-vernador de Alagoas, entre 1947 e 1951.

Essa é a estirpe dos Goes Monteiro que muito deve de sua têmpera àfortaleza de caráter e à obstinação de Constança Cavalcanti, verdadeira matriarcanordestina que, com pulso firme e ânimo inquebrantável, soube moldar a per-sonalidade dos filhos, após a morte prematura do chefe da família, aos quarentaanos de idade.

A luta pelo poder e as dissensões políticas dividiram, em muitas oportu-nidades, os irmãos Goes Monteiro. O temperamento arrebatado e combativo,característico da família, levou os desentendimentos a proporções trágicas emque houve mortes e derramamento de sangue. O tempo, no entanto, acalmouas paixões e dissipou os ódios, deixando intangível o prestígio e a influênciasingular que exerceram na História de Alagoas e do Brasil, ao longo de quasetrês décadas.

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Muito cedo, Ismar de Goes Monteiro optou pela carreira das armas. Cur-sou a Escola Militar de Realengo e, em 7 de janeiro de 1927, foi declaradoaspirante-a-oficial. Em 1941, já havia ascendido ao posto de Major, e é nessaaltura de sua carreira, que, impelido pela predestinação que envolveu toda a suafamília no torvelinho dos acontecimentos da época, ingressou na vida política,como Interventor de Alagoas, no período de 1941 a 1945.

Jovem e impetuoso, sua gestão à frente do Governo do Estado foimarcada pelo combate sistemático ao banditismo, que ainda grassava pelossertões alagoanos, e pelas judiciosas medidas administrativas que muito con-tribuíram para reorganizar as finanças estaduais e dar maior eficiência aosserviços públicos.

Nessa época, com o término da Segunda Guerra Mundial e a derrota donazi-fascismo, o Brasil começou a receber os bafejos dos ventos daredemocratização e da liberdade que culminaram com a deposição de GetúlioVargas, em 29 de outubro de 1945.

Naquela ocasião, surgiram os primeiros grandes partidos políticos nacionais,entre os quais o Partido Social Democrático, a que logo se filiou o então Tenente-Coronel Ismar, candidatando-se a uma vaga no Senado Federal, nas eleiçõesconvocadas para a formação da Assembléia Nacional Constituinte que haveria depromulgar, em 16 de setembro de 1946, a quarta Constituição republicana.

A gestão de Ismar de Goes Monteiro, à frente do Governo de Alagoashavia, em verdade, merecido a aprovação popular, inequivocamente expressana sua eleição para o Senado Federal, em 2 de dezembro de 1945, com umamargem expressiva de votos, sob a legenda do PSD, onde teve destacada ebrilhante atuação como Senador e Constituinte.

No Exército, galgou todos os degraus da hierarquia militar, até o postode general, sempre com promoções por merecimento, sendo agraciado comdiversas comendas militares, entre as quais a Medalha da Guerra e a Medalha daOrdem do Rio Branco, que lhe foram conferidas em razão dos relevantes servi-ços prestados ao país.

Com a consciência tranqüila pelo cumprimento de seus deveres de cida-dania, faleceu no Rio de Janeiro, e com sua morte encerra a presença dos GoesMonteiro na História de Alagoas.

17HOTEL NACIONAL. BRASÍLIA VOLTARA AOS SEUS DIAS DE GLÓRIA. O recessosofrido pelo Congresso provoca um colapso econômico na cidade. Entretanto,observa-se que os dias de depressão e amargura são coisas do passado. A es-

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perança e confiança no futuro domina a todos. A felicidade se concretiza,torna-se palpável. Brasileiros dos mais variados rincões da Pátria encontram-se e confraternizam-se. Velhos amigos, antigos companheiros abraçam-se,trocam confidências, especulam sobre os nomes cotados para preencheremos altos cargos do novo governo. Brasília é um grande teatro, e o suntuosoHotel Nacional é o seu palco. Governadores, ministros, militares, embaixa-dores, jornalistas famosos, senadores, deputados, prefeitos das capitais maisimportantes do país, ali estão hospedados. Mulheres elegantíssimas levam oencanto de suas belezas às luxuosas dependências do hotel. É noite. A pisci-na iluminada dá um toque de magia ao ambiente. Duas louras lindas, aparen-temente indiferentes à atenção que despertam, mas conscientes da admiraçãoque provocam, nadam displicentemente. O restaurante em torno é só alegria.O grande mundo industrial, político e diplomático está presente. 1969, possedo Presidente Garrastazu Médici. O Deputado Antônio Gomes, então Presi-dente da Assembléia Legislativa de Alagoas, sentia-se perfeitamente à vonta-de entre os grandes nomes da Nação.

Membro de uma família de tradicionais políticos de nosso Estado, viu-seconvocado a administrar o município de União dos Palmares. Hábil, inteligen-te, amigo nos momentos difíceis, inspira grande confiança àqueles com quemconvive. Líder, é eleito deputado estadual, por quatro legislaturas consecutivas.Na Assembléia, acentua suas qualidades de liderança. Profissional competentee profundo conhecedor dos problemas agrícolas do Estado foi Secretário deAgricultura de Alagoas.

Quando defendi sua candidatura em nossa chapa junto aos companheirosde Partido, bem sabia das qualidades superiores que formavam aquela persona-lidade. Os argumentos apresentados foram os de que representávamos duasgrandes agremiações partidárias (PSD-UDN) que formaram a ARENA, e sim-bolizávamos o político da capital e o do interior. O raciocínio foi de imediatoaceito por todos. Não só por ser verdadeiro, mas, principalmente, por tratar-sede uma figura humana como a de Antônio Gomes de Barros.

Eleitos Governadores de Alagoas, perdemos as características regionais epassamos a representar um todo sócio-político.

Desejoso de buscar a experiência e os conhecimentos do meu compa-nheiro de governo, convoquei-o para funções outras, além das estabelecidaspela Constituição. Presidiu praticamente todos os Conselhos Normativos dosÓrgãos da Administração Indireta, acompanhando, assim, o dia-a-dia funcio-nal das Autarquias, das Fundações e das Sociedades de Economia Mista. Presi-diu também, as principais Comissões – de estudos e de trabalho – que o Execu-tivo sentiu a necessidade de criar.

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Jamais viajei a outra Unidade da Federação, sem que Antônio Gomes nãoassumisse imediatamente o governo. Dirigir é saber delegar e cobrar, é ter hu-mildade em reconhecer as nossas deficiências e autoridade moral para não fugiraos nossos deveres. Estamos, Antônio Gomes e eu, imbuídos desse propósito.Queremos a crítica construtiva, aquela que denuncia falhas e apresenta solu-ções. Desprezamos a oposição radical que a nada conduz. Recalques não de-vem ser levados à vida pública.

Confundi-me com Antônio Gomes de Barros na preocupação de ofere-cermos o melhor de nossos esforços na perseguição de dias mais felizes para onosso Estado. Do somatório de nossas ações, do trabalho em conjunto, dapreocupação de servir à coletividade é que resultou o desenvolvimento quetanto queríamos para Alagoas.

Traído pelo coração, que o arrebatou precocemente de nosso convívio,sua morte se transforma numa nódoa de dor e saudade, sempre que rememoroo meu primeiro mandato como Governador de Alagoas.

Prefiro, contudo, recordá-lo como se encontra em minhas lembranças:elegante, atencioso, um perfeito cavalheiro. Formal, autodisciplinado, podería-mos, num julgamento superficial, considerá-lo um homem frio. Entretanto,quanto erraríamos se assim o julgássemos! Temperamento apaixonado, era ca-paz de qualquer sacrifício por um amigo ou por uma causa que abraçasse. Acre-ditava serem a lealdade e a coragem qualidades básicas do caráter humano.

18O PALÁCIO MARECHAL FLORIANO, sede do Governo de Alagoas, é um prédioconstruído pelo arquiteto italiano Luís Lucarini, no período compreendido entreos fins do século passado e o início deste. A construção foi iniciada pelo Gover-nador Gabino Bezouro e foi inaugurado pelo Governador Euclides Malta. Temsido palco dos principais acontecimentos político-administrativos do Estado du-rante a República. Angústias, afirmações, intrigas, esperanças, frustrações, ódio,amor, festas, funerais, alegria, tristeza, enfim, todas as paixões que cercam o po-der, engrandecendo ou degradando o ser humano, foram testemunhadas pelaslargas e centenárias paredes. O Major Luís Cavalcante, um dos melhores gover-nadores que a nossa terra já teve, em momentos de depressão, costumava afirmarque o palácio é mal-assombrado, um verdadeiro martírio, numa alusão ao nomeque o povo lhe emprestou, por encontrar-se diante da igreja de Bom Jesus dosMartírios. Sacrifício ou não, alguns venderiam a alma ao diabo para nele residir.

Governando Alagoas, por quase nove anos em três mandatos, residi nocasarão, pouco mais de vinte e quatro meses. Confesso que nunca vi nenhum

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fantasma dos muitos que devem circular pelos seus salões e corredores. Noentanto, a experiência não foi boa, era como morar numa repartição pública e aminha família jamais se adaptou. As meninas adoraram quando nos mudamospara o apartamento, no edifício Leonardo da Vinci.

Guardo, porém, a lição altamente válida de uma experiência, numa ma-drugada de agosto. Viajara a Palmeira dos Índios e chegara às duas horas damanhã. Vou tomar água gelada no refrigerador da cozinha e avisto um ratoenorme. Estranhamente, sou dominado por um espírito de adolescente e deci-do dar-lhe um pontapé. Corro atrás dele, consigo encurralá-lo num canto daparede e ficamos nos defrontando por alguns segundos em silêncio total. Podiaouvir o descompasso da minha respiração sôfrega pelo esforço da corrida. Ossegundos eternizam-se. Espero algum passo em falso, para chutá-lo e sou sur-preendido pelo seu desespero. Encurralado, avança cegamente contra mim.Temendo ser mordido dou um salto e ele consegue fugir escada abaixo. Apren-do o ensinamento: jamais devemos encurralar ninguém, sempre é bom deixaruma saída. Até um mísero rato, quando encurralado, transforma-se num animalaltamente perigoso.

19A VOTAÇÃO, REALMENTE, ME SURPREENDEU. Não possuía qualquer dúvida quantoà vitória. Anunciava, com precaução, que obteria cinqüenta mil votos mas, noíntimo, esperava setenta mil. Entretanto, jamais imaginei, nem nos momentosde maior euforia, que ultrapassasse os cem mil votos. De cada três eleitoresalagoanos, um votou em mim para deputado federal. Foi, em termos proporcio-nais, a maior votação do Brasil. Empossado deputado, cheguei a uma conclu-são rápida: não existe a menor diferença prática entre o parlamentar de trintamil e o de trezentos mil votos.

Nos primeiros dias, fiquei analisando a maneira de ser de cada colega.Era óbvio que, na Casa, não existiam tolos. Qualquer que seja o processo utili-zado para se eleger, ninguém chega a compor o Congresso Nacional do seupaís se não for uma pessoa inteligente. Claro que não devemos confundir cul-tura com inteligência. Verifiquei que os vaidosos, os que desejavam aparecer aqualquer custo, perdiam o respeito dos companheiros. A humildade, o trabalhoe o talento são os valores fundamentais para se conquistar uma posição dedestaque no Parlamento.

A maioria dos deputados é oriunda das Assembléias Legislativas, das Pre-feituras das maiores cidades e de Secretarias de Estado. Havendo exercido aPresidência da Associação Brasileira dos Municípios, composto o Conselho da

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União Parlamentar Interestadual e Governado Alagoas, já conhecia grande nú-mero de meus colegas. O convívio era o melhor possível. Surgiram amizadesinabaláveis. Os desencontros entre deputados, geralmente, acontecem com oscompanheiros do mesmo Estado pela natural desconfiança provinda da com-petição na conquista do eleitorado.

Adotei o critério de, semanalmente, proferir um discurso no pequenoexpediente, denominado “pinga-fogo”, e um pronunciamento, uma vez pormês, de maior profundidade, no grande expediente onde analisava ou denunci-ava assuntos de natureza econômica, política e social. Confronto as primeirasdecepções. Pela exigüidade do tempo, grande número de discursos no “pinga-fogo” são apenas considerados lidos; e a inscrição para falar no grande expedi-ente, feita às vinte e quatro horas do primeiro dia útil de cada mês, é um empur-ra-empurra que, visto de longe, parece uma luta livre. Poucos são os queconseguem êxito.

Pode-se dividir a atuação dos deputados federais em três categorias: osque freqüentam diariamente as sessões plenárias; os que trabalham nas comis-sões técnicas e os que se dedicam a reivindicar recursos e obras, junto aosMinistérios e órgãos do Governo Federal, para as regiões que representam. Oplenário é um enorme palco; os debates, uma encenação teatral. As decisõesimportantes da Casa são, geralmente, tomadas nas comissões ou através deacordos de lideranças.

Viajei por todo o Brasil e visitei os Estados Unidos e a Europa, em mis-sões da Câmara. Representei-a, em 1981, na Escola Superior de Guerra, ondefui o xerife e o orador da Turma Marechal Cordeiro de Farias.

O Congresso é o ponto de encontro da Nação. Todos os segmentos dasociedade ali se fazem representar. É o convívio das mais heterogêneas perso-nalidades, o Brasil no que ele tem de positivo ou negativo, o pulmão do corposocial brasileiro, a defesa das minorias oprimidas, por onde o país respira. Atribuna é a caixa de ressonância das questões maiores da comunidade nacional.O não funcionamento do Poder Legislativo, apesar de todas as suas distorções,deixa uma Nação inerte, e, o que é pior, profundamente injusta.

Compondo o colégio de líderes da bancada da maioria, assumindo asresponsabilidades da liderança todas as terças-feiras, minha ação parlamentarse fez sentir com maior agudeza no plenário. Proferi centenas de discursos e fizum verdadeiro curso prático de ciência política nos debates que travei com asmaiores figuras da Câmara. Vice-Presidente da Comissão de Economia e mem-bro da comissão de Minas e Energia, convivi com homens extraordinários ecom personalidades mesquinhas. Conheci gigantes e anões morais. Defendiintransigentemente os interesses do Nordeste. Sempre estive na linha de frente

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na luta pela correção dos desníveis regionais. Tenho certeza de que não decep-cionei o nome de Alagoas.

20EMBAIXADOR DO BRASIL, JUNTO À SANTA SÉ, Expedito Resende, atendendo aonosso apelo e ao dos Deputados Federais Victor Faccioni e Paulo Studart,formulados através do Consulado do nosso país, em Berlim, conseguiu umaaudiência especial para nós e para o Conselheiro do Tribunal de Contas deAlagoas, professor José de Melo Gomes.

A data estabelecida foi o dia trinta e um de outubro de 1979. Quandotomamos conhecimento da confirmação do pedido, encontrávamo-nos emVeneza. Cancelamos nosso vôo para Florença e viajamos diretamente a Roma,pois tínhamos que receber as credenciais diplomáticas no dia trinta.

Chegamos à Praça de São Pedro, através da área interna do Vaticano, nomercedes oficial do embaixador que, gentilmente, cedera seu carro para noslevar.

Multidão calculada em cerca de cinqüenta mil pessoas, lotava a Praçaonde o apóstolo Pedro foi crucificado. A Basílica, que foi construída em home-nagem à memória do primeiro Papa, domina a todos. Faz-nos sentir pequenosdiante da sua grandeza física e espiritual.

Precisamente às onze horas, o Papa João Paulo II entra triunfalmente, emcarro aberto, na Praça. A multidão, magnetizada, prorrompe em aplausos. Aforça mística do cristianismo se faz sentir.

Delegações de fiéis dos mais distantes países se encontram. Africanos,eslavos, asiáticos, americanos e europeus, rendem suas homenagens ao maispoderoso e ao mais humilde dos sacerdotes de Deus.

As palmas e os vivas intensificam-se. O Papa levanta uma criança e abeija. O gesto, mais do que uma simples demonstração de afetividade, traduz orenovar constante da Igreja Romana, através de inúmeras gerações, em dois milanos de História.

Estamos diante da tribuna montada para a solenidade; poucos metrosnos separam. Tento analisar suas feições, enquanto profere a homilia em seteidiomas: italiano, inglês, francês, alemão, espanhol, português e polonês, finali-zando com a bênção, em latim. É incrível seu conhecimento lingüístico. Suavoz é profunda e musical.

Olhando para seu rosto, compreendemos de imediato que nasceu paradirigir homens. A primeira impressão que nos causa é a do seu vigor físico; temum corpo de atleta; de alguém acostumado à prática de esportes. Possui um

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sorriso meigo e juvenil; sua maneira de sorrir é a responsável maior pelo fascí-nio que exerce. Julgo que ele está bem consciente do magnetismo transmitidopor seu sorriso. Olha a multidão e sorri. E como nós sentimos uma paz inte-rior! A manhã fica mais bela. É comovido que presenciamos o semblante defelicidade de uma jovem, sentada numa cadeira de rodas. Ela se encontra numdoce enlevo, à espera de um milagre.

Concluída a bênção, o Papa adianta-se para nos cumprimentar. Antece-de-nos um casal dos Estados Unidos. Ele, professor de arqueologia e diretor deuma universidade norte-americana. Sua esposa, dotada de uma nobre beleza,estava atendendo à determinação protocolar, toda vestida de negro, o que au-mentava a sua dignidade de grande dama. Studart, Faccioni e José de Melopedem-me que apresente os brasileiros. Sua Santidade conversa maisdemoradamente conosco e confirma sua visita ao Brasil em meados de 1980.Graceja, dizendo que precisa estudar mais o português para melhor falar aonosso povo. Autografa uma fotografia que o Faccioni, como bom descendentede italianos teve a feliz iniciativa de levar, e dirige ao Studart e ao José de Melo,palavras de carinho.

Saímos, conduzidos pelo Chefe do Cerimonial, ainda dominados pelaemoção do encontro. Confesso que naquele instante pensei em minha mãe, ena felicidade que a dominaria, vendo seu filho ser abraçado por Sua Santidade,o Papa, diante da Basílica de São Pedro, em Roma.

21OS DEPUTADOS, NORMALMENTE INQUIETOS e buliçosos, permanecem em si-lêncio em respeito ao orador. Parlamentares da ARENA e do MDB reveren-ciam uma das melhores figuras da Casa.

O deputado pelo Rio Grande do Norte, Djalma Marinho, encontra-se natribuna e expõe os seus princípios políticos. Depreendeu-se do magnífico dis-curso, a formação romântica da personalidade liberal desse nordestino, quedignifica a nossa região com o seu talento. Sentindo-se o término do pronuncia-mento, todos desejam prolongá-lo. Apartes se fazem ouvir. Inicia-se um dosmais belos debates que já presenciei na Câmara. É o Parlamento no seu sentidomais nobre, diálogo de alto nível, teses em conflito, choque de inteligências,tiradas de espírito. A ética, norteando a ação dos debatedores. Cria-se um en-canto mágico e a Presidência da Mesa perde a noção de tempo. A cultura domi-na; Djalma é aplaudidíssimo. Instintivamente, avança-se para abraçá-lo.

O catarinense Arnaldo Schmit, dominado pelas emoções do seu primeiromandato, foi quem melhor definiu aquele encantamento:

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– Suruagy, hoje à tarde fiquei muito orgulhoso de pertencer à Câmara. Djalma Marinho foi eleito deputado federal pela vez primeira, em 1950,

sob a legenda da UDN. Advogado, dotado de um grande embasamento cultu-ral, bom orador, destacar-se-ia imediatamente. Temperamento afável, humilde,atencioso para com grandes e pequenos, desprendido, gera, em torno de si,sentimentos de profunda afeição e admiração.

Conversador infatigável, adora romper a madrugada discutindo literaturae política. Testemunha privilegiada dos principais acontecimentos políticos daSegunda República, foi íntimo de Milton Campos, Carlos Lacerda, Pedro Aleixo,José Maria Alkimim, Gabriel Passos, Virgílio de Melo Franco, Afonso Arinos,Magalhães Pinto, Tancredo Neves e Daniel Krieger, entre outros; tornou-sesenhor de muitas estórias.

Djalma honra-me com a sua amizade. Fomos apresentados em 1975,pelo então governador, Tarciso Maia, na pérgola da piscina do Hotel Nacio-nal. Deixei-me logo dominar pelo colorido de sua conversação. Era noite efazia frio em Brasília. O doce aquecimento do whisky provocava agradáveisconfidências.

Chegamos, para alegria minha, juntos ao Congresso. Atraído pelo seumagnetismo e buscando sua experiência, transformei-o em conselheiro políti-co. Discutia com ele os discursos mais importantes a serem feitos na Câmara.Orgulho-me de sabê-lo meu amigo.

Djalma Marinho estava vivendo seu sexto e, segundo afirmava, últimomandato de deputado federal. Jamais perdeu uma eleição proporcional, experi-mentando, entretanto, o revés político em duas oportunidades: quando dispu-tou o governo do seu Estado e o Senado da República. A derrota é sempreamarga. Ela traumatiza os fracos e oferece sabedoria aos fortes. Djalma foibuscar, no insucesso eleitoral de 1974, a emulação necessária para voltar à Câ-mara. É um homem feliz, reencontrou-se com o seu destino.

Como Presidente da Comissão de Constituição e Justiça, foi um símboloda dignidade, da cultura e da honradez da classe política, reunindo, na sua sin-gularidade, o passado, o presente e o futuro do Parlamento Brasileiro.

22O HOMEM PÚBLICO ENCONTRA-SE exposto a todos os tipos de infâmias e men-tiras. Cada não proferido, por mais atencioso que seja, dependendo do caráterda pessoa que o recebeu, provoca reações que vão da consciência da impossibi-lidade do atendimento à injustiça de afirmar que só não foi atendida porquenão existiu vontade de atender. Esquecem que o político, independentemente

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de Partido, encontrando-se no governo ou na oposição, somente deixa de aten-der a um pleito quando é humanamente impossível, porque, esperando, ou não,gratidão, deseja ser estimado e admirado.

Estando no governo, isto é, quanto maior poder de decisão detenha,maior o número de conflitos e de insatisfações. A capacidade de um governantesolucionar as reivindicações da comunidade é, aproximadamente, dez por cen-to e esse percentual diminui, ainda mais, nas regiões subdesenvolvidas, pois ogoverno fica prisioneiro de um círculo vicioso: os pedidos são inúmeros por-que a grande maioria da população é carente e tudo espera do Estado; paralela-mente, os tributos arrecadados pela minoria que contribui para a formação dariqueza coletiva são insuficientes para os justos reclamos e anseios populares.

Os inimigos, destituídos de caráter e de qualquer conceito de moral, ten-tam transferir tudo o que acontece de ruim para o governador. Alguém mataoutro por motivos familiares; o culpado é o governador. Um soldado de políciaembriaga-se em uma pequena cidade do interior e espanca um cidadão; o cul-pado é o governador. O fiscal de rendas multa um empresário; a culpa é dogovernador. Poderia citar centenas de exemplos de fatos que implicam desgastediário do governante.

E, quando se acrescenta à perda do Poder a ingratidão dos falsos amigose dos insaciáveis que, por mais que tenham recebido, acharam pouco e inven-tam motivos fúteis para críticas e começam a elogiar o novo governador, quetambém será criticado, no amanhã, quando nada tiver para oferecer, chega-sefacilmente à conclusão de que a mais difícil, ingrata e complexa de todas asatividades humanas, é a de dirigir destinos.

A grande compensação do exercício do poder executivo, para aquelesque têm espírito público, é a construção de escolas, hospitais, conjuntosresidenciais, pavimentação de estradas, a eletrificação de cidades, a realizaçãode obras de saneamento e abastecimento d’água, a modificação de paisagens ea promoção do desenvolvimento, além do bem que se pode fazer diretamentea milhares e milhares de pessoas.

Os gestos de reconhecimento compensam, em muito, a alma do políticodas injustiças que receba. Mesmo porque o bom é ajudar o próximo e nãoesperar nada em troca. Ser grato ou não é um problema de quem recebe e nãode quem faz a gentileza. Gratidão não se cobra, espera-se.

Encontrava-me em São Paulo. Precisava de uma informação de um de-terminado secretário do governo, em Alagoas. Telefono do Hotel Othon paraMaceió. Uma doce voz feminina atende. Possui um tom juvenil. Imagino queseja uma jovem de 19 anos, no máximo 20. O Secretário não se encontrava.Estava despachando com o Governador José Tavares. Pergunta meu nome e se

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desejo deixar algum recado. Identifico-me e peço apenas que registre o telefo-nema. É quando sou surpreendido com uma afirmação carinhosa.

– Adoro você. Eu e minha família jamais esqueceremos o que fez pornós.

Confesso que não sei o que fiz e não pretendo saber. A beleza do gestoestá no anonimato.

Reconheço, porém, que aquele – adoro você –, dito de uma maneira tãoingênua e espontânea, traduzindo uma pura solidariedade, compensou ascanalhices de que sou alvo no sujo jogo da política. Estimulou-me a continuara luta contra as infâmias de sub-homens que tentam transferir para os outros,num escudo ilusório, todas as deformações de suas mentes doentias e degene-radas.

Querida amiguinha, você realimentou minha crença na humanidade. Suamensagem me trouxe fé e esperança. Aquela manhã na capital paulista, comonum passe de mágica, perdeu a cor cinzenta do inverno e adquiriu o coloridoda primavera. No automóvel que me conduziu ao aeroporto de Guarulhos,pensava no conteúdo de sua mensagem e acreditei que o ser humano é intrinse-camente bom; o mal sempre será derrotado e a verdade sempre predominarásobre a mentira.

Obrigado, muito obrigado mesmo, pelo – Adoro você.

23MILHARES DE LÂMPADAS RESPLANDECEM NA ESCURIDÃO da noite. É Atenasfulgurante em sua beleza. Tenho dificuldades de dormir em vôos noturnos.Suspendo a leitura do livro Xogum, do romancista James Clavell, para melhorapreciar através da janela do avião, o espetáculo que os monumentos da Acrópole,especialmente o Partenon, iluminados, oferecem. Eles vêm resistindo à des-truição dos homens e do tempo há milênios. O Jumbo da Lufthansa saíra deHong Kong, sobrevoara o Paquistão e a Índia em direção à Europa. A diferen-ça de fuso horário transforma curta, em termos de horas, a longa viagem inter-continental.

Liberada a bagagem, alugo um táxi para conduzir-me ao Hotel GranBretagne. É janeiro e a madrugada acentua a forte intensidade do frio do inver-no. As ruas e avenidas da capital grega estão desertas. Permito que a emoçãodomine o meu ser. Concretizava um sonho da juventude. Apaixono-me pelaHistória da Grécia Antiga quando ainda fazia o ginásio, no Colégio BatistaAlagoano. Péricles era o meu modelo de estadista; Sócrates, o da sabedoria; eLeônidas, o do guerreiro indômito. A mitologia grega fora a minha leitura de

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lazer. Hércules, Apolo, Minerva, Ícaro, Teseu, Diana e Júpiter foram íntimos deminha infância. Nutria uma enorme curiosidade intelectual pela Grécia e portudo aquilo que o país helênico simbolizava.

O Hotel Gran Bretagne, o mais tradicional de Atenas, localizado no cen-tro da cidade, é um belo edifício de linhas arquitetônicas clássicas, sóbrio econfortável. Preenchido o formulário de identificação, na portaria, sou levadoao apartamento. Tomo uma ducha de água quente, quase fervente, e jogo-mena enorme cama e durmo profundamente. Acordo no fim da tarde. Depois deum pequeno lanche, faço um passeio a pé pelas áreas circunvizinhas. Janto norestaurante do hotel. As músicas românticas, tocadas pelo pianista, aumentam anostalgia do sentir-me só, naquela noite de domingo.

Aguardo, na manhã de segunda-feira, o guia turístico que contratara atra-vés da recepção do hotel. Embora possua alguns conhecimentos de inglês,idioma com característica universal, considerara prudente utilizar os préstimosde um guia, por entender poucas palavras gregas. Fui surpreendido por umajovem falando português escorreito. O nome dela é Nina. Carioca, filha de mãebrasileira com um marinheiro grego, vive alternando períodos entre os doispaíses. Havendo concluído os cursos de Letras e Filosofia da História, no Riode Janeiro, viajada, falando fluentemente cinco idiomas, impressiona por suaampla cultura. Simpática mais do que bonita, torna-se bela quando fala. Suavoz é meiga e persuasiva. É agradável ouvi-la explicar as origens das peças dorico acervo do Museu Nacional de Arqueologia. Durante o jantar, num restau-rante típico, uma taberna, a alma grega transparece nas canções, nas dançaspopulares tão bem expressadas pela arte daqueles que, anonimamente, se apre-sentam em casas noturnas, somente conhecidas pela população local. A alegriaé contagiante e todos dançam e cantam; pratos são quebrados com estardalha-ço; o vinho é consumido em abundância, ao som do ritmo frenético. A orques-tra, repentinamente, pára. Palmas e gritos estridentes de bis, bis. Afogueados efelizes, os pares sorriem. É um sorriso de doação mútua. Vêem-se beijos. Aprincípio com suavidade, depois com sofreguidão. A identidade é absoluta en-tre aqueles que se amam nos palcos dos grandes acontecimentos históricos queformaram os berços da humanidade e receberam os fluidos mágicos do Teatrode Dionísio, do Odeon de Herodes Ático e do Templo de Zeus Olímpico.

Nos dias subseqüentes, assisti às evoluções da troca de guarda diante domonumento do soldado desconhecido, realizado pela tropa de elite dos“évzones”. Visitei Delfos e o canal de Corinto. Naveguei no Mar Egeu e noMediterrâneo percorrendo e buscando as ilhas gregas. Ninguém escapa imuneà Grécia.

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24ALAGOAS ATRAVESSA UM PERÍODO DE CONTINUIDADE ADMINISTRATIVA. As obrasiniciadas ou projetadas por mim são concluídas e iniciadas por Guilherme eTheobaldo que, com sua grandeza d’alma, aceitara compor a chapa na condi-ção de vice-governador. Deputado Federal, pretendendo fugir às pressões denatureza política, aceito participar do curso da Escola Superior de Guerra, noRio de Janeiro, em 1981, ano que antecedia o pleito eleitoral. Acompanho, àdistância, as discussões e lutas de bastidores em torno da sucessão estadual.

Guilherme Palmeira telefona de Maceió, combinando um encontro noRio Othon Palace Hotel, onde costumava se hospedar quando Governador deAlagoas. Estávamos em outubro. Durante horas, tenta me convencer a aceitar acandidatura ao governo. Afirma ser o meu nome o que mais provocava umsentimento de vitória no eleitorado. Sabendo a importância de Guilherme nãointerromper sua atividade política, condiciono minha anuência à postulaçãodele ao Senado da República. Concorda. Precisávamos estender os entendi-mentos à possibilidade de Theobaldo desistir de ser candidato a deputado fe-deral e presidir o pleito. Outro obstáculo a ser contornado era discutirmos umacomposição com o Deputado José Tavares, também postulante ao governoalagoano.

Concluo o curso na ESG, nos primeiros dias de dezembro. Voltando aMaceió, temos uma reunião com Guilherme e Theobaldo na residência oficial,no bairro do Farol. Fica definido que Theobaldo assumiria o Governo no pe-ríodo de um ano, de 15 de março de 1982 a 15 de março de 1983, e não por dezmeses, como determinava a Lei Eleitoral. Ele formaria o secretariado sem ne-nhuma interferência nossa e indicaria o Secretário de Educação, caso fosseeleito.

José Tavares aceita ser candidato a vice-governador. A luta foi renhida.José Costa, o maior líder da oposição, valoriza a vitória.

Durante doze anos de seqüenciamento administrativo, Alagoas conquis-tou índices de desenvolvimento bastante expressivos, quando comparados comoutros Estados do Nordeste. Concedemos prioridade à consolidação do pólocloroquímico e dinamizamos a indústria do turismo.

25OS GOVERNOS DIVALDO SURUAGY E GUILHERME PALMEIRA confundem-se emum só, junto a grandes camadas da opinião pública alagoana. Independente-mente do volume de obras públicas, estabelecemos os novos rumos da econo-

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mia alagoana quando desenvolvemos os pólos turístico e o cloroquímico. Alagoashavia atingido os limites de suas fronteiras econômicas. A produção açucareiranão ultrapassará trinta milhões de toneladas. A tendência é estabilizar empouco menos de vinte milhões. A cultura fumageira, na região da grandeArapiraca, e a de cereais, no sertão, dependem de fenômenos climáticos quefogem ao controle do homem. O arroz, cultivado nos vales do baixo SãoFrancisco, apesar do projeto de irrigação Marituba, no município de IgrejaNova, dificilmente atingirá um milhão de sacas. A grande valorização de ter-ras, no litoral alagoano, com a especulação imobiliária, diminuiu bastante aprodução de coco-da-baía. Embora a mais moderna fábrica de beneficiamentodo produto, no Brasil, a Socôco, esteja localizada em Maceió, a maior parteda matéria-prima vem do Estado do Pará, onde a empresa tem uma das mai-ores sementeiras do mundo. A pecuária leiteira encontra seu grande hábitatno sertão, sendo a única atividade econômica que convive com a estiagemprolongada (seca). A pecuária de corte, localizada na zona da mata, tem umpapel secundário na economia. A cana-de-açúcar impera na região. A indús-tria têxtil que, no passado, ocupou um enorme espaço sócio-econômico, comvárias fábricas empregando milhares de pessoas, perdeu sua importância, comgraves conseqüências para a realidade alagoana. As reservas de petróleo de-tectadas são relativamente pequenas. O organograma econômico que sempredesejei, como ideal, para o Estado, seria quarenta por cento para o setorsucro-alcooleiro; trinta por cento para as indústrias químicas; e o percentualrestante, para as demais atividades.

O Nordeste brasileiro é o maior potencial turístico do mundo ocidentalainda não devidamente explorado. Possuindo razoável infra-estrutura, várioshotéis cinco e quatro estrelas, praias maravilhosas e sol, praticamente, os tre-zentos e sessenta e cinco dias do ano, ainda não conseguiu se transformar emuma das metas do turismo internacional. Recife, Salvador e Fortaleza, possuin-do aeroportos capazes de receber aviões supersônicos, serão os centros recep-tores, os portões de entrada. As demais capitais da região serão beneficiadascom os programas paralelos. Evidencie-se que Recife está mais próximo, emhoras de vôo, de Nova Iorque do que o Havaí. Enquanto, aproximadamente,quatro milhões de americanos visitam anualmente Honolulu, pouco mais devinte mil vêm ao Nordeste. Nenhuma atividade econômica na região possuitanta potencialidade, nem absorve tanta mão-de-obra quanto o turismo.

As duas saídas da economia alagoana são conflitantes entre si. As indús-trias químicas, quando não devidamente equipadas, agridem a natureza, e oturismo de lazer precisa de praias e rios não poluídos, de parques e jardins

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preservados, de áreas urbanas limpas e saneadas, do planejamento do uso dosolo. Esse conflito exige da sociedade alagoana uma consciência permanentede estabelecer um convívio entre os interesses contrários. O nosso mérito foi ode coordenar o processo de desenvolvimento acima das paixões.

26A CONCEPÇÃO POPULAR EMPRESTA A UM GOVERNADOR de Estado em nosso paíse, principalmente no Nordeste, um poder sem limites, um poder absoluto. Aexplicação, imagino eu, vem do processo de colonização do Brasil, quando sedividiu a Colônia em grandes extensões de terras, chamadas Capitanias Heredi-tárias, e seus donatários eram senhores de vida e morte em seus domínios. Daísurgiram as figuras dos Coronéis do Sertão (título oriundo da cobiçada patentede Coronel da Guarda Nacional) e dos Caudilhos do Sul, influenciados pelosfamosos líderes da América Espanhola, principalmente da Argentina e do Uru-guai. Ainda hoje, encontramos remanescentes, embora raros, desses chefespolíticos dotados de um código de honra, onde a morte é preferível à desmora-lização. Atingir a honra de um desses homens seja quem for, é se preparar paramatar ou morrer. É conveniente destacar que eles não são desordeiros, isto é,provocadores, nem, muito menos, assalariados ou intermediários do crime. Ge-ralmente são prestativos, respeitadores, leais e cumpridores da palavra empe-nhada. Não quebrando as leis do código em que vivem, são pessoas de ótimoconvívio.

O conceito medieval de poder, que vem passando de geração para gera-ção, tem levado muitos governadores a atos de abuso de força, dividindo asociedade que ele tem o dever de manter unida e em paz.

Conheço dois exemplos bastante definidores e, por isso, bastante interes-santes, dessa mentalidade que aceita qualquer decisão absurda do governo, des-de que beneficie, e que condena a medida mais acertada, desde que prejudique.

Aconteceram na Paraíba e em Pernambuco. Utilizarei nomes fictícios,mas os casos são verdadeiros.

O fazendeiro Antônio Alves, paraibano de Teixeira, ficou muito orgulho-so quando soube que seu filho Roberval, médico altamente conceituado emCampina Grande, havia sido eleito governador do Lions. A palavra governadortinha efeito mágico para ele. Contou para todos os amigos e mandou espalharna cidade que seu filho mais velho havia sido eleito governador. Entrou noautomóvel e foi visitá-lo, em Campina. Chegando à cidade, abraçou o filhoefusivamente, dizendo que era o orgulho da família. O Doutor Roberval, co-nhecendo bem o pai, tentou explicar, com habilidade, que a governadoria, para

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a qual havia sido eleito, não era bem a que ele estava pensando. O “Coronel”possuía apenas o curso primário, mas era bastante inteligente. Interrompe asexplicações do filho:

– Me diga uma coisa. Nesse seu governo a gente pode ajudar os amigos eperseguir os inimigos?

– Não, meu pai. Não pode. – foi a resposta. – Então largue essa merda – esbravejou, enfurecido, o velho fazendeiro. O Deputado Joaquim Santos, o maior plantador de coco do sul de

Pernambuco, está verdadeiramente deslumbrado com sua eleição para a As-sembléia Legislativa. Milionário e semi-alfabetizado, até então ajudara com di-nheiro, a eleger vereadores e prefeitos das cidades de sua região. A política, paraele, tinha a mesma paixão do jogo. Sua candidatura à Casa de Joaquim Nabucofoi conseqüência do apelo do governador que afirmava precisar do seu nomepara consolidar a vitória do Partido. Ficou envaidecido com o convite e entroude corpo e alma na luta. Gastou mais da metade da fortuna para ser eleito ejulgava-se com crédito junto ao governo. Empossado, dias depois, pede umaaudiência ao Chefe do Executivo, através do Gabinete Militar pois não acredi-tava muito no Gabinete Civil. É recebido com demonstrações de apreço noSalão de Despachos do Palácio do Campo das Princesas.

– Governador, estou precisando de uma gentileza de Vossa Excelência. – Estou à sua disposição, Deputado. – Em São José da Coroa Grande tem um cabo de polícia que é um ho-

mem da minha absoluta confiança. Esquece o Excelência e confidencia: – O senhor, precisando de algum “servicinho”, pode confiar nele. Sorrindo, intimamente, o governador responde: – Muito obrigado. Não vou precisar. – Quem sabe! Mas, precisando, ele está às ordens. É só falar comigo. Faz uma pausa e inicia o assunto. – A verdade, governador, é que devo umas atenções ao Cabo Francisco e

gostaria de pagá-las. Prometi que, se eleito, conseguiria com o senhor a promo-ção dele a tenente.

O governador, pacientemente, explica da sua impossibilidade em aten-der, dizendo que um cabo, para chegar a oficial, tem várias promoções a per-correr e que precisa fazer vários cursos para atingir o oficialato.

O deputado extravasa, numa frase, em sua ingênua e autêntica ignorân-cia, toda a sua magoada conceituação de autoridade:

– Governador, o senhor me desculpe. Mas só acredito em governo quepode.

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27O PRIMEIRO CONTATO QUE MANTIVE COM O GENERAL João Baptista Figueiredoocorreu na época em que, já eleito Governador de Alagoas, eu definia a com-posição da equipe governamental, e ele exercia as funções de Ministro Chefedo Serviço Nacional de Informações. O Professor José de Melo Gomes erameu candidato à Secretaria do Planejamento mas seu nome sofrera, por partedo SNI, restrições para ocupar a Pasta.

Em audiência com o Presidente Geisel, ressaltei as qualidades superioresque norteiam o caráter de José de Melo e assumi a responsabilidade da correçãode suas atitudes. O Presidente interfonou para o Ministro recomendando queele me recebesse e encontrasse uma saída para o assunto. José de Melo foi, queeu saiba, o único Secretário de Estado a merecer o endosso de dois Presidentesda República, já que Figueiredo substituiu o General Geisel na Primeira Magis-tratura do país.

João Baptista Figueiredo é um homem que não engana homens. Ele éautêntico na sua maneira de ser e proceder. Julgando-se “Presidente em Mis-são”, não possuía a paciência necessária para discutir os complexos problemasadministrativos e financeiros e, muito menos, para lidar com a classe política.Imagino que nutria uma natural desconfiança para com os intrincados jogos doprocesso político.

Vivendo, já, a fase de abertura da liberdade de imprensa, transformou-senum alvo fácil para as maledicências das interpretações errôneas de suas atitu-des. Frases reveladoras de sua autenticidade eram colocadas como agressões asegmentos da sociedade brasileira.

Quando da posse do Presidente João Baptista Figueiredo, eu era Deputa-do Federal e assisti, apenas, à solenidade no Congresso Nacional, pois preferificar entre os poucos que acompanharam o General Ernesto Geisel ao aero-porto da Base Militar, de onde viajaria para o Rio de Janeiro a caminho do seuretiro, o Recanto dos Cinamomos, em Teresópolis.

Em meu segundo mandato como governador, mantive, por força do car-go, contatos, mais amiúde, com o Presidente, quando tive oportunidade demelhor conhecer sua personalidade.

Homem forte, até para os padrões da caserna, o General Figueiredo rea-lizou um governo que refletia, naturalmente, esse aspecto. Sucedendo ao Presi-dente Geisel, um estadista determinado a fazer a mutação política do regime,pode-se dizer que Figueiredo deu alguns passos decisivos, nesse sentido, a par-tir do avanço já assinalado pelo seu antecessor. A estratégia de Figueiredo, quealguns analistas consideram fruto somente da sua indiferença, levou à vitória acoligação nascida, inclusive, do descontentamento registrado nas próprias hostes

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de sustentação do governo. Inconformados com os rumos que a eleição indire-ta para Presidente da República tomava, líderes governistas se uniram à oposi-ção, elegendo Tancredo Neves e José Sarney. Embora Tancredo fosse umapersonalidade aglutinadora, sua vitória muito se deveu aos governistas que lheemprestaram apoio.

Pouco afeito às armadilhas das colocações políticas, Figueiredo era ho-mem direto nas suas afirmações. Direto até demais, conforme alguns observa-dores. E isso o levou a ter contra si as próprias forças que, normalmente, odeveriam apoiar.

João Baptista Figueiredo, apesar de ter sido o último Presidente da chama-da fase revolucionária, encontrou, ainda, muitos obstáculos a superar, inúme-ros problemas delicados a resolver. A época tumultuada, principalmente pelalegítima ansiedade de recondução do país ao Estado de Direito, determina umaperspectiva histórica para melhor julgamento do Presidente Figueiredo e doseu governo.

28INGRESSEI NA ACADEMIA ALAGOANA DE LETRAS, como se estivesse a receberuma recompensa, não pelos méritos, nem pelos possíveis êxitos, mas pelo tra-balho pertinaz e constante.

Acredito na cultura como fator essencial de um desenvolvimento quenão se estiole porque perdeu a medida do humano que existe no homem.

Conseguida neste batente diário do nosso estudo, favorece-nos a oportu-nidade de termos sempre uma palavra criadora, em face das constantes edesconcertantes mudanças do nosso tempo.

Entre mim e Povina Cavalcanti, patrono da cadeira que ocupo, há umfato que, ainda hoje, me emociona, como se naquela época – idos de 1969 –, jáestivéssemos preparando, ele e eu, a narrativa de meu ingresso na Academia.

Em seu último livro, “Volta à Infância”, assim escreveu Povina no seupórtico: Não acho explicação para o fato. Mas aconteceu. Passei trinta e oito anos semvoltar à minha terra. Alguma coisa devia incompreensivelmente me impedir de rever o torrãonatal. Viajei muito durante esse longo tempo. Minha primeira visão de Maceió foi de bordodo Boeing da VASP sobrevoando a cidade, muito alto, em direção a Recife. Maceió era umasimples mancha debruada pelas espumas das ondas do litoral. Não se distinguia nada. Nemo casario, nem o verde perene de sua vegetação. Mas ali estava. Quem nos dizia era, pelomicrofone, um comissário solícito. Tomei conhecimento da notícia com batidas arrítmicas docoração. E, em breves instantes, vi que Maceió ficava para trás, já agora sem nenhum deline-amento, nem das alvas espumas do mar. A viagem estava por terminar, Recife quase à vista.

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Da capital pernambucana a Maceió, iríamos de automóvel. Mais três horas, somadas àsduas e vinte minutos do percurso aéreo, desde o Rio.

E, agora, observai a minha surpresa e emoção quando leio, às folhas seis,o que Povina Cavalcanti escreveu: No aeroporto de Guararapes, uma surpresa: oPrefeito de Maceió, Divaldo Suruagy, mandava receber-nos, minha mulher e eu, por um doscolaboradores mais brilhantes de sua equipe de administradores, o meu confrade e amigoprofessor Antônio Santos, que passou a ser, daí por diante, um companheiro de inexcedívelsolicitude.

E conclui o escritor: “Foi assim, com esse estado de espírito que, pelas dezesseishoras do dia 29 de novembro de 1969, penetrava no solo alagoano, num penitente retorno defilho pródigo”.

Hospedando-o, em Maceió, tive uma satisfação imensa em poder convi-ver, por alguns dias, com um homem culto, intelectual de largos recursos, masde uma simplicidade que encantava e nos deixava naquela atitude de humildadetão benéfica e necessária no relacionamento humano.

Estudos de grande porte, de Povina Cavalcanti, encontramos no livro,escrito em 1923, sobre o poema, o “Acendedor de Lampiões”, de Jorge de Lima.

É nesse ensaio que Povina rechaça, de uma vez por todas, a notícia malé-vola e insultuosa de que o poema teria sido um plágio. Gostaríamos, comopágina integrante deste elogio a Carlos Povina Cavalcanti, incluir, tão-somente,o final do retrato psicológico que ele fez, com admirável maestria, de Jorge deLima: Não tinha excentricidades de gênio; era gênio, sem anomalias congênitas ou cultivadas.No fundo, era de uma bondade sem limites. Vestia-se com discreto apuro; amava as coresneutras; cultivava as tintas com propriedade. Por acaso, ou por condicionamento da próprianatureza, havia uma singular harmonia entre os seus gostos físicos e espirituais. Uma admi-rável proporcionalidade marcava o ritmo de suas preferências. Nunca se excedeu; nunca foipolêmico; nunca se destemperou. Nem a política, para a qual não tinha a menor vocação,perturbou a sua serenidade.

Se alguma coisa o magoava, ele se ressentia com uma estóica dignidade. Sua formaçãocristã ensinou-lhe a ser humilde. Mas humilde, sem defecção; humilde, sem pusilanimidade;humilde, sem renúncia ao comando vigilante, ativo da sua consciência. Jorge nos demonstraque não é o grito, que convence; é a palavra, simplesmente, que triunfa. Quem se desmanda ematos de violência está sujeito às reações da tirania. Jorge tinha de cor os conselhos destafilosofia.

A meu ver, entretanto, a grande obra de Povina Cavalcanti é o seu cantode cisne, “Volta à Infância”.

Sente-se em Povina sobretudo o lírico: À noite, depois da ceia, era comum areunião de amigos na sala de visitas, quando, não raro, se fazia ouvir um violão. Não melembro quem cantava, mas recordo umas valsas pernambucanas, que me sensibilizavam tanto

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que eu pensava estar sonhando. Valsa dos que amam; Valsa dos que sofrem, sei lá! Acreditoque data desse tempo remoto o fundo de lirismo, que lastreou, por toda a vida, minha alma depoeta malogrado.

Honra-me pertencer à Academia Alagoana de Letras. Realizava-se, então,mais uma etapa da trajetória que a Providência me reservou.

29APÓS OITO ANOS, NOVAMENTE TOMAMOS POSSE no cargo de Governador deAlagoas. A beleza reverencial da cerimônia e a seqüência do seu protocolo nossão bem familiares. Muitos dos parlamentares presentes também estiveramconosco, quando assumimos o governo pela primeira vez. Também nos eramfamiliares vários rostos amigos de velhos conhecidos, de antigos companheiros ecorreligionários, e, por que não dizer, também dos nossos adversários. Apesardisso, estranho como possa parecer, o que estávamos sentindo agora era inédito.Não era uma repetição do que já sentira. Isso talvez encontre explicação no fatode que, querendo ou não, todos nós mudamos. E é esse mudar constante, esserenovar diário que faz da vida um contínuo processo de aprimoramento.

Ao ser escolhido, pela segunda vez, para dirigir os destinos dos alagoanos,nós ousamos pensar que fizemos alguma coisa certa na primeira. O julga-mento do povo, que decidiu a nossa volta, justifica essa pretensão. Nós tam-bém devemos ter errado, no mínimo, como contingência do próprio esforçode acertar. Mas cremos ter deixado algo capaz de resistir ao tempo. Apósvinte anos de atividade pública, chegáramos a uma altura da vida em que sótemos uma ambição, que é trabalhar pela grandeza do nosso Estado e pelobem-estar do nosso povo. Essa é a glória, pequena mas sólida, que esperamosdeixar aos nossos descendentes. Os alagoanos entenderam isso, apoiando onosso nome. E o seu apoio é o melhor motivo, sério e profundo, para quecontinuemos o nosso esforço.

Voltamos ao poder sem ódios nem ressentimentos. Devemos saber sepa-rar o que importa daquilo que é periférico ou secundário. E o que importavamesmo era o bem-estar e a tranqüilidade da família alagoana. Para que issofosse alcançado, tornou-se necessário que até os desentendidos sejam entendi-dos. Achamos que o governo e a oposição não traduzem necessariamente idéiasconflitantes. A nosso ver, em lugar de conflito, o que deve ocorrer é umacomplementaridade. Numa democracia, a tarefa de governar não cabe a um sóhomem ou a um só Partido. É assunto que envolve toda a comunidade, a qualdeve participar, aplaudindo, criticando, sugerindo, sem ressentimentos pessoaise sem radicalismos ideológicos.

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Nesse período de transição, a eficácia, a maximização de benefícios e aeliminação de desperdícios foram fatores determinantes do comportamentofuturo. Era, pois, absolutamente indispensável uma conscientização por partedo homem público de que só criatividade, inovação e participação da comuni-dade poderão ampliar os recursos disponíveis, criar recursos e multiplicar osefeitos de suas aplicações.

Na participação totalitária, todos devem dar assentimento à decisão, oque se consegue por manipulação de todo tipo, intensas campanhas nos meiosde comunicação, e ameaças variadas.

Na democracia, há o consentimento expresso dos participantes da deci-são, o consentimento implícito dos que se omitiram podendo participar e o queé importante, o consentimento expresso também dos que se opuseram, mas aoaceitar as regras do jogo democrático, concordaram previamente na possibili-dade da decisão ser-lhes desfavorável, contanto que a decisão nunca mude oprocesso.

Precisávamos acelerar a construção de um novo tipo de Estado: partici-pante no processo econômico, buscando regular as relações, cada vez maiscomplexas, entre os indivíduos e os grupos ou organizações, para promovermaior bem-estar e justiça social.

No projeto econômico de Alagoas – que divide a liderança do açúcar edo álcool com o cloroquímico –, a própria história impõe ao governo umapostura avançada para preservar a posição dos empresários alagoanos. A trans-posição dessa postura para a área social fornecerá as condições necessárias parao governo obter a adesão das forças da sociedade, desde que o projeto socialapresente soluções inquestionáveis à pobreza absoluta, o analfabetismo, o de-semprego, a seca, a falta de moradias e a falta de saúde.

A implantação da indústria cloroquímica de Alagoas deveria ocorrer, si-multaneamente à modernização de toda a agroindústria tradicional do Estado,em especial a do açúcar e do álcool. A modernização, associada a um aumentode produtividade acima do normal, viabilizaria a obtenção de maiores lucros epermitiria aos empresários alagoanos a manutenção de sua posição de liderançaeconômica do Estado, onde, em conjunto com a PETROQUISA, poderiampreservar esta liderança.

Em termos de indicadores sociais, medidos por qualquer unidade, a nos-sa situação era realmente delicada: mortalidade infantil, analfabetismo, númeromédio de residentes por domicílio ocupado, crianças em idade escolar semmatrícula e outros.

A situação presente e as projeções que se podiam fazer para o Estadoapresentavam um quadro efetivamente promissor. Bem dotado de matérias-

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primas, a nossa própria história está forjando um projeto econômico, integran-do a economia tradicional com a economia do futuro, de uma forma que podetrazer grandes progressos para o Estado.

Com suas fronteiras agropecuárias praticamente ocupadas, o futuro sóapresentava uma alternativa: modernização e aumento da produtividade paraelevar o padrão de vida, a fim de atingir o nível das regiões mais desenvolvidasdo país.

A primeira e principal necessidade do ser humano é o emprego. Com ele,suas necessidades, total ou parcialmente, podem ser atendidas; sem ele, gera-seum problema social crítico. Como a oferta só cresce com novos investimentose com o aumento da produção e dos negócios; e, como a ação será dirigida paratais objetivos (pólo cloroquímico, produtividade, modernização, construção decasas, saneamento básico), constata-se que o emprego, de fato, era a principalpreocupação do governo.

Foi preciso, entretanto, mais ainda: que houvesse uma mobilização geral,uma conscientização, uma disposição de todos no sentido de tornar Alagoasum Estado exemplar. Assim tivemos que produzir tudo o que pudéssemos paraatender às necessidades dos nossos habitantes. Todo e qualquer produto cujafabricação não exija economia de escala ou ponderável custo de transporte,teria que ser produzido aqui. E inversamente: tudo o que pudesse ser exporta-do, por causa das facilidades ou de economias de escalas existentes, lutamospara produzir.

Especial destaque foi conferido ao turismo pelo grande potencial querepresenta. Além de gerar empregos, o turismo é uma possibilidade real devendas de bens e serviços, com grande efeito multiplicador, desde que realiza-do com eficácia. As praias, as piscinas naturais no mar, as lagoas, o folclore, oartesanato; tudo são atrativos onde Alagoas se sobressai.

Combater a pobreza absoluta diminuindo as condições subumanas devida: sub-habitações, subnutrição, analfabetismo, subemprego e endemias. E,como as favelas de Maceió constituem-se no maior foco de pobreza absoluta, aação deveria concentrar-se, inicialmente, na capital. A experiência de Maceiógeraria, naturalmente, os subsídios para equacionar alternativas para as demaisáreas do Estado.

O excesso de pessoal é pior do que a carência. Havendo carência, há apossibilidade potencial de racionalização, de aumento da produtividade parasuprir a carência; quando há excesso, há sempre o receio de que uma eventualracionalização caracterize o excesso e, portanto, a possibilidade de dispensa.A primeira providência é, pois, enxugar o quadro sem criar a perspectiva dedispensa.

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Dividimos os instantes de alegria com as vitórias conquistadas e o senti-mento de frustração com a consciência de que, por mais que nos esforçásse-mos, jamais pudemos atender, em plenitude, aos grandes anseios do povoalagoano.

Somos contemporâneos do futuro. Em 1986, ao fim da jornada, nãoavoquei que me fosse creditado o acerto de vitórias.

Para mim, governar é fazer o bem, o melhor que possa. Governar não é serbom. É ser humano e justo, ser superior para resistir a ser mesquinho, rancorosoou odiento, saber desprezar as pressões espúrias e a volúpia do Poder.

Decidir, sem a influência de emoções próprias ou alheias. Não se enver-gonhar de corrigir os seus próprios erros. Ter coragem de desagradar a qual-quer preço, para fazer o bem. Negar o bem a alguns, quando possa representaro mal para muitos. Ter coerência de atitudes e ser firme na adoção de princípiosde moralidade administrativa. Não se deixar influenciar pelos bajuladores ouintrigantes. Não se deixar dominar pelos poderosos e saber achegar-se aos hu-mildes, fracos e oprimidos, para lhes aliviar a dor, ajudá-los a suportar o sofri-mento, dar-lhes mais oportunidade de trabalho, com que possam ter melhorsalário e vida condigna. Reconhecer no trabalhador, peça principal na socieda-de organizada em família, a mola mestra do desenvolvimento. Olhar o passadocom isenção e encarar o futuro com obstinação.

30IPANEMA ESTÁ CHEIO. O ESPETÁCULO É BELO E RARO. Não sendo rio perene,raramente consegue encher seu longo e tortuoso leito. Somente um invernomuito bom, o que não é comum no sertão nordestino, é que possibilita a paisa-gem que descortino do terraço da casa da fazenda Boa Vista, no município deBatalha, na bacia leiteira alagoana. A meu lado, visivelmente orgulhoso, o ho-mem que foi um dos construtores do progresso da região, o maior produtor deleite do Nordeste, Mair Amaral.

Narra um pouco da história de sua vida. Aquela fora a primeira das mui-tas fazendas que adquiriu e era a sua preferida. Mostrou, através dela, que eraum empresário, um realizador. Até então era apenas o filho de Leopoldo Amaral.Revela a grande admiração que nutria pelo pai que enfrentara cangaceiros, esti-agens, terra hostil, dificuldades de toda espécie para desbravar uma enormeextensão de terra em Sertãozinho, hoje Major Isidoro. Nascera, assim, a Fazen-da Braz e, com ela, uma legenda de luta, trabalho e dignidade.

“Seu Mair”, como eu o chamava, possuía estatura mediana. Mais robustodo que gordo, aparentava vitalidade e força. Sexagenário, cabelos completa-

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mente brancos, sangüíneo, corado, milionário, caráter reto, algumas vezes brus-co, franco, dizendo o que pensava, jamais usou a palavra para enganar, emborativesse fama de sabido em negócios. A exemplo do que acontece com a maioriados sertanejos, era fiel aos compromissos assumidos e gostava de receber, ofe-recendo o melhor ao visitante. Encontrou em Dona Adilina não somente amãe de seus filhos, mas principalmente a esposa dedicada, a companheira dosmomentos difíceis e a compreensão para os naturais defeitos decorrentes dafragilidade humana.

Prefeito de Batalha, realizou uma boa administração mas não gostou daexperiência. Achava que não possuía paciência para lidar com os múltiplosinteresses que tanto mudam a personalidade humana nos embates e nas pai-xões da política. Poderia defini-lo, no linguajar moderno, como “não sendo doramo” ou, numa expressão bem carioca, “não tinha jogo de cintura”. O políti-co da família Amaral é Antônio.

Concluído o meu mandato de Prefeito de Maceió, em 1970, lancei-mecandidato a deputado estadual. Mair Amaral, pela amizade que o vinculava a tioAnacleto, a papai e pelo bom relacionamento que já nos ligava, volta a partici-par da campanha eleitoral. Recordo-me sensibilizado da noite em que fizemosum comício-relâmpago na cidade de Batalha. Seríamos apenas dois oradores.Ele iniciou, apresentando-me ao povo e aos seus amigos. Foi pródigo em elo-gios à minha administração na Secretaria da Fazenda e na Prefeitura da Capital.Encerrei, agradecendo seu apoio e destacando tanto a experiência quanto osconhecimentos que, à época, imaginava possuir.

Dezesseis anos depois, lutando por uma cadeira no Senado da República,visito Batalha no dia da eleição, 15 de novembro. Circulavam rumores de quepoderiam surgir conflitos. Viajo em companhia de Guilherme Palmeira e deArdel Jucá para apoiarmos os nossos companheiros de partido. Leopoldo, filhode Mair, nos procura e permanece a meu lado, substituindo na afetividade o paifalecido. Dias antes, Paulo, o mais velho dos seus filhos, e Mairzinho, o caçula,nos haviam recebido. O primeiro, em sua encantadora fazenda, emMonteirópolis; e o outro, na importante revenda de automóveis, em Arapiraca.A amizade que herdei de Pedro Suruagy perpetua-se através de gerações. Olegado de um amigo verdadeiro, no sentido mais implícito do termo, é umpatrimônio que devemos sempre cultuar.

31A CÂMARA DE VEREADORES DE JUAZEIRO DO NORTE concede-me o Título deCidadania sob os argumentos expostos no ofício que recebo do Presidente da

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Casa, de que sempre defendi, em todos os cargos que ocupei, os interessesmaiores do Nordeste. Embora sensibilizado com a homenagem, imagino que omotivo real seja o grande número de alagoanos que reside na cidade notabiliza-da pela ação pastoral do Padre Cícero Romão, Santo ungido pela profunda fédo povo nordestino, independentemente da vontade do Vaticano. O PadreCícero, inclusive, é mais venerado em Alagoas do que no próprio Ceará. Acre-dito que o fato ocorra em virtude da sua militância na política cearense onde foieleito deputado federal e vice-governador. Participando ativamente do proces-so político, saiu do campo teológico, envolveu-se nas paixões humanas que olevaram à excomunhão de Roma. Transformado em mártir, a credibilidade po-pular o faria Santo, ainda em vida.

Contam-se inúmeras histórias de seus milagres que se vêm multiplicandoao longo dos anos. Milhões de romeiros já visitaram o Juazeiro, que se transfor-mou em Cidade Santa. Ela está para o Nordeste, assim como Meca está para omundo muçulmano. Desde a minha infância que ouço falar nos milagres do Pa-dre Cícero. Minha mãe era uma de suas devotas. Narrarei, apenas, o que ouvi deDom Hélder Câmara numa de suas visitas a Maceió, a convite de Dom AdelmoMachado. Dom Hélder contou que, logo depois do término da Primeira GuerraMundial, em 1918, aluno do Seminário de Fortaleza, passou uma semana, emférias, no Juazeiro, e conviveu com o Padre Cícero. Certo dia, uma senhora oprocurara, angustiada, pedindo a proteção do “padrinho” para salvar o filho dovício da embriaguez. Ela, chorando, afirmava que o rapaz vivia constantementebêbado, caindo pelas sarjetas. Não conseguia trabalho e se transformara numtrapo humano. Padre Cícero mandou chamá-lo à Igreja. O jovem, trêmulo derespeito, aproximou-se. Mandou que abrisse a boca. Puxou-o pela língua e feznela o sinal da cruz, dizendo que, se bebesse uma gota de álcool, estaria amaldiçoa-do. A maldição do Padre Cícero era inferno garantido, o rapaz deixou de beber.

Estive em Juazeiro nos primeiros dias de junho. O movimento é inces-sante. Dezenas de novos hotéis, centenas e centenas de estabelecimentos co-merciais, milhares de carros trafegando em suas estreitas ruas retratam o pro-gresso material. Ao longe, na serra, a gigantesca estátua do Padre Cícero dominae abençoa a cidade. Lembrei-me de um diálogo que tive, em 1968, com o entãoPrefeito de Juazeiro e depois deputado federal, o médico Mauro Sampaio. Es-távamos na Alemanha participando de um Seminário de Administração Públi-ca. Ele explicava que mandara construir a estátua convencido de que ela influ-enciaria o desenvolvimento do município. Não sabia que estava criando umexemplo que se espalharia rapidamente. Rara é a cidade nordestina que nãopossua uma estátua do Padre Cícero. Aconteceu o que Mauro previa. Crato eBarbalha transformaram-se em satélites. A região do Cariri é a mais próspera

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do interior cearense. Juazeiro é o centro propulsor desse progresso. A purezada fé do homem simples do Nordeste forma o espírito da cidade.

32CONFESSO TER PIEDADE DAQUELES QUE, ao assumirem o poder, imaginam estarinvestidos de uma outorga divina que lhes concede o dom da sabedoria absolutae de serem os donos da verdade plena. Esquecem as limitações humanas e aefemeridade das funções. Geralmente são pessoas menores do que o cargo.

Em três décadas de atividade política, exercendo os mais diversos cargos,aprendi o óbvio (muitos levam toda uma vida e não o aprendem): no exercíciodo poder, a humildade oferece grandeza.

Certa feita, fui procurado por umas garotas, alunas do Colégio Batista,que estavam participando de uma gincana e haviam recebido a incumbência deme levarem ao ginásio esportivo, do querido estabelecimento de ensino. Entreas tarefas da turma, existia uma entrevista coletiva. Perguntaram-me a razãomaior de, ao longo de mais de trinta anos de campanhas eleitorais, jamais haversido derrotado. Expliquei que atribuía as vitórias conquistadas, entre outrosmotivos, ao fato de sempre tratar a todos da maneira como desejo ser tratado.O sucesso, no relacionamento humano, depende exclusivamente de se pôr emprática esse preceito que as religiões monoteístas do mundo adotaram comomandamento.

Cada um colhe o que planta. Nunca vi ninguém plantar banana e colherabacaxi. Plante sementes de otimismo para colher os frutos da felicidade. Res-peite, para ser respeitado. Cada um de nós é responsável por seus atos. Pensepositivamente e será sempre um vitorioso. Seja solidário e fraterno. Ofereça umsorriso, um gesto de cordialidade, que receberá muito mais do que está ofere-cendo. Procure o lado bom de cada acontecimento. Jamais esqueça: Quem acendeuma luz na escuridão, é o primeiro a iluminar-se. Tenha firmeza em suas atitudes epersistência em seu ideal. Mais cedo ou mais tarde, alcançará o que deseja.Foram esses os conselhos que ofereci à juventude estudiosa do Colégio Batista,encerrando com a afirmação de que as atividades do poder não passam deilusões. O positivo é o bem que se faz e as realizações que visam consolidar odesenvolvimento das comunidades.

33O GOVERNADOR LAMENHA FILHO RECEBE O PODEROSO Ministro dos Trans-portes e o Diretor-Geral do Departamento Nacional de Estradas de Rodagens,

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que visitam oficialmente Alagoas. Vivíamos os idos de maio de 1968. Prefeitode Maceió, participo de uma reunião administrativa no salão de despachos doPalácio Floriano Peixoto, entre Mário Andreazza e as principais autoridades doEstado. Foi o nosso primeiro encontro. Reivindico, com o apoio de Lamenha,a duplicação dos doze quilômetros da pista asfáltica entre a Praça do Centená-rio e o entroncamento rodoviário no Tabuleiro do Martins. Defendo os meusargumentos, apresentando dados estatísticos com a média dos acidentes fataisocorridos naquele trecho, nos últimos três anos.

Imaginei, à época, que, sensibilizado pela vontade de realizar de um jo-vem prefeito, autorizaria o engenheiro Elizeu Resende a executar a obra atravésde convênio. Anos depois, conhecendo-o melhor, cheguei à conclusão de queo forte sentimento de ajudar, característica maior de sua personalidade, fora adeterminante superior que o levara a atender ao pleito.

A verdade, entretanto, é que sempre me senti em débito. GovernandoAlagoas na década de setenta, outorguei-lhe juntamente com a AssembléiaLegislativa, o título de cidadania, numa fase difícil de sua vida, quando ele esta-va sendo vítima de calúnias, que somente seriam desmentidas, de uma maneiracategórica, pelas dificuldades financeiras que a luta contra a doença indomávelo levaria a enfrentar, nos seus últimos dias. O título valeu muito mais pelogesto. Mariozinho, um dos seus filhos, contou-me certa feita, no Rio de Janeiro,quanto fora gratificante à sua alma, naquele momento, a homenagem do povoalagoano.

O Ministro Mário Andreazza já imprimia, em 1969, um ritmo aceleradoàs obras de construção e pavimentação de estradas, de ampliação dos portos,de fortalecimento da construção naval e da Marinha Mercante. Estava há doisanos no Ministério dos Transportes.

Rachel de Queiroz escreveria, em artigo especial para uma publicação doDNER, e, depois, reproduzido em vários jornais: “Por onde chegam as estradas –ela dizia – fogem os bandidos, floresce a agricultura, implantam-se as indústrias e o governose fixa. Pé de governo, roda de governo precisam de estrada”. Rachel exultava com ainterligação pelo asfalto do Nordeste com o restante do país. O Ministro MárioAndreazza deixou o ministério em 1974, com um saldo de mais de quarenta milquilômetros de rodovias, promovendo a integração deste Brasil-Continente.

Voltando ao Governo de Alagoas, em 1983, enfrento ao seu lado o dra-ma de cinco anos de seca no semi-árido nordestino. Andreazza garantia a so-brevivência de cerca de cinco milhões de flagelados nas obras de pequenos emédios açudes, assegurando o sustento dessas famílias nordestinas.

Pelas estradas circulavam centenas de caminhões da Sudene, dia e noite,levando alimentos e água potável para as populações. Numa das últimas via-

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gens de inspeção, já a bordo de um pequeno avião da Força Aérea Brasileira, elecontemplava a paisagem seca e comentava: Se não tivéssemos construído a malharodoviária do Nordeste, não sei qual seria o destino de tanta gente.

Assim era o coração enorme daquele gaúcho que se preocupava comos menos favorecidos, ao tempo que construía uma obra ímpar na Históriada República. Seu lema era o desenvolvimento com repercussão social. Foiassim que deixou uma marca jamais atingida em qualquer parte do mundo,na primeira metade dos anos oitenta: a construção de dois milhões e duzen-tas mil habitações populares, em aproximadamente dois mil municípios bra-sileiros.

No Ministério do Interior, enfrentou os problemas da habitação soma-dos aos do meio ambiente, aos do desenvolvimento regional, aos de saneamen-to básico e aos das calamidades públicas – não só as secas, mas as grandesenchentes. Somente no vale do São Francisco, deparou, em 1981, com duzen-tos e cinqüenta mil desabrigados. Mandou proteger as cidades às margens doVelho Chico, com diques de proteção, e relocou as populações para as partesaltas, construindo centenas de novos conjuntos habitacionais. Prometeu e feztodas as obras em apenas um ano.

Era o Ministro do Nordeste. Era o Tocador de Obras. Era também o GrandeChefe dos indígenas, que fazia cumprir, à risca, as diretrizes do Marechal Rondon.Demarcou mais de um milhão e meio de hectares de terras dos índios na Ama-zônia e no Centro-Oeste.

Destituído da presunção dos donos do poder, gentil, humilde, buscandonos outros o preenchimento de suas limitações, prestativo, atencioso para comtodos e ajudado pela imagem de grande executivo, teve seu nome cotado, natu-ralmente, para disputar a Presidência da República no então vigente ColégioEleitoral.

Os governadores do Partido Democrático Social indicam o meu nomepara compor a chapa do Ministro Andreazza, que disputaria na ConvençãoNacional do PDS, no dia 11 de agosto de 1984, no Centro de Convenções, emBrasília, o lançamento oficial da candidatura.

A fragilidade humana, mais uma vez, se evidenciou numa convenção par-tidária. Quatrocentos e treze convencionais comprometeram-se, por escrito,que votariam em Mário Andreazza, e apenas trezentos e cinqüenta honraramseu compromisso. Não sei quais foram os motivos, entretanto sei que não foinada digno. Fiquei ao seu lado durante toda a apuração. Recebeu a derrota commuita dignidade. Defendeu os que o traíram. Ofereceu para mim e AntônioCarlos Magalhães, quando o acompanhávamos até sua residência, lições dehumildade e de grandeza de espírito. Os sentimentos de estima e gratidão fo-

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ram acrescidos com o de admiração. Orgulho-me de haver sido seu compa-nheiro naquela luta inesquecível.

Estive no Hospital 9 de Julho, em São Paulo, quando se submeteu àscirurgias no pulmão e no cérebro. Mantive constantes contatos telefônicos comele nos períodos de convalescença.

Tomo conhecimento, através da imprensa, de que Mário Andreazza seencontrava em fase terminal, no Hospital Sírio Libanês, na capital paulista.Viajo às pressas. Despedi-me dele, no final da tarde de domingo, dezessete deabril. A terrível doença alquebrara o gigante. Encontrava-se, entretanto, lúcido.Aperta as minhas mãos, olha-me nos olhos e exclama meu nome. Comovido,afasto-me do seu leito hospitalar. Estava convencido de que era o fim. Doisdias depois faleceu. Acompanhei-o à última morada, no Cemitério São JoãoBatista, em Botafogo, no Rio de Janeiro. Modificou paisagens, corrigiu desní-veis regionais, agilizou desenvolvimento, promoveu o progresso, foi uma vidaampla de realizações.

34AS RUAS ESTAVAM COBERTAS DE NEVE. Uma tempestade caíra durante toda anoite e continuara pela madrugada do sábado, 5 de março. O ano é 1983. Via-jara de Tel Aviv para Jerusalém, a mais que milenar cidade, com Marcello Bar-ros e Adalberto Câmara, em companhia dos engenheiros Abraham Sztyclic eMenahem Libhaber, diretores da companhia de água e saneamento de Israel,conhecida mundialmente pela sigla TAHAL. Eram os nossos anfitriões. Con-fessando minha surpresa por encontrar neve no Oriente Médio, eles explicamque é um fenômeno raro, que a última nevada havia ocorrido há mais de vinteanos. Sabendo do meu aniversário, naquele dia, acrescentam em tom de brinca-deira, que era um presente da natureza.

Visitando a Igreja do Santo Sepulcro, o Monte Sião, o Muro dasLamentações, a Velha Muralha, o Museu, a Sinagoga, o Monte das Oliveiras,passeando pelas artérias que formam a Via Dolorosa, detendo-me em cadaEstação da Cruz, senti-me dominado e, por que não dizer, enlevado pela místi-ca que milênios de acontecimentos históricos envolveram a cidade. Indícios deseu nascimento são encontrados na Idade da Pedra. Considerada Santa, pelareligiões Católica Romana, Judaica, Muçulmana e Ortodoxa, foi teatro de inú-meras batalhas pelo seu domínio. Rios de sangue correram por suas ruas. E opior é que toda essa mortandade foi feita em nome de Jesus Cristo, de Jeová ede Alá, cujo ensinamento maior que legaram à humanidade foi o de paz entreos homens. Jesus foi a maior vítima de insensatez humana, e Jerusalém foi o

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cenário de sua crucificação. Ela nasceu e ressuscitou. Foi vinte vezes sitiada edezoito vezes reconstruída. Todos os impérios predatórios a cobiçaram e vá-rios deles a saquearam; entretanto, jamais perdeu sua identidade. Ela é única.

Oferecem-me um almoço no moderno Hotel Hilton, na parte nova deJerusalém, que se derrama pelas encostas e pelos vales onde se destaca a Uni-versidade, uma das melhores do mundo.

Naquela noite, dormiria no Kibbutz Bror Hayil, próximo à Faixa de Gaza,fundado por judeus egípcios e hoje habitado em sua esmagadora maioria porimigrantes brasileiros. O paulista Henry Steingiesser e o carioca Markin Tudersão os nossos cicerones. Passei dois dias inesquecíveis no Kibbutz. Sua popula-ção é de, aproximadamente, seiscentas famílias. Além das atividades agrícolas epecuárias, possui uma indústria de desidratação de cenouras, uma central decomputadores e um departamento de cerâmica, dirigido pelo artista plásticoBuchbindir, fluminense de Niterói. Bror Hayil fatura anualmente cerca de doismilhões de dólares. Atendendo a pedidos, profiro uma palestra sobre políticabrasileira, no Centro Cultural, que tem o nome de Oswaldo Aranha, em home-nagem ao gaúcho que presidiu a Assembléia Geral da Organização das NaçõesUnidas que reconheceu o Estado de Israel.

Encontro, na história da vida de Abraham e Menahem, toda a grandeza eo drama do povo judeu. Abraham nasceu em Recife e é tio de Menahem, quenasceu num campo de concentração, na Alemanha de Hitler. São judeus deorigem polonesa. Abraham e sua esposa, Sarita, uma judia paraibana, formamum casal encantador. Ele é o coordenador de projetos para a América Latina daTAHAL. Gentil e atencioso, ninguém poderia conceber que era um livre atira-dor do exército de Israel e que já participara de várias batalhas. Seu sobrinhoMenahem, jovem engenheiro que projetou a ampliação do serviço d’água deSão Paulo, apaixonado por música brasileira, fã de Gal Costa, não aparenta serum oficial pára-quedista e que participou do cerco das tropas egípcias no deser-to de Negev, numa das diversas guerras que Israel enfrentou, nem que foi umdos primeiros a saltar de pára-quedas na invasão ao Líbano. Privando da intimi-dade deles, conhecendo o sistema de vida espartana que levam, o sofrimentoque enfrentaram, o amor ao estudo, chego à conclusão de que é um povo pre-destinado a vencer.

Merece respeito e admiração uma raça que produziu Karl Marx, BenGurion, Albert Einstein, Leon Trotsky, a família Rothschild, Golda Meir e Je-sus Cristo. Os judeus estão sempre a surpreender o mundo. E como, apesar detodas as tragédias que enfrentaram, jamais deixaram de acreditar no futuro,sobreviveram como povo e como religião.

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35NA PRIMEIRA VIAGEM QUE FIZ A SANTIAGO DO CHILE, em janeiro de 1982,fiquei hospedado no Hotel Carrera, nas proximidades do Palácio de La Moneda.Ainda eram visíveis, nos edifícios em torno da Plaza das Armas, as marcas dasbalas da luta onde morreu o Presidente Salvador Allende. O país encontrava-sedividido. Centenas de pessoas foram mortas, milhares estavam presas e outrastantas haviam ido para o exílio.

O nome do poeta Pablo Neruda estava como que proibido, oficiosamen-te, pela censura revolucionária. Ninguém assumia a proibição, mas ela existia.Pergunto aos porteiros e ascensoristas do Hotel Carrera onde poderia encon-trar o livro “Vinte Poemas de Amor e Uma Canção Desesperada”. Respon-dem-me que dificilmente encontraria algum trabalho literário de Neruda ex-posto à venda na capital chilena. Somente adquiri o livro, em versão portuguesa,na livraria Siciliano, no Rio de Janeiro.

Volto a Santiago, onze anos depois, em abril de 1993. O preço da liberda-de e do sacrifício de tantas vidas foi o equilíbrio econômico e financeiro. Odesenvolvimento, confirmado no alto percentual de empregos, na redução doanalfabetismo, na eficiência do sistema de saúde pública e da previdência so-cial, nos aumentos da renda “per capita” e do Produto Interno Bruto, nãoesconde que o regime democrático apenas é consentido pela sombra imensaque ainda paira sobre o Chile, a figura do General Augusto Pinochet, no Co-mando Geral do Exército. Se o preço valeu a pena, somente o povo chilenopode responder. Constato, entretanto, que o poeta Pablo Neruda passou a serorgulho nacional. Sua residência, em Isla Negra, foi transformada em museu.Seus objetos pessoais são venerados como se relíquias fossem. Os poemasvoltaram a ser publicados em constantes edições.

Conheci Pablo Neruda em toda sua grandeza, quando li sua autobiogra-fia, Confesso que Vivi. Seu nome de batismo era Nefatli Ricardo Reys Basoalto.Nasceu em 12 de julho de 1904, em Parral, no centro do Chile, região de bos-ques, onde crescem as vinhas e onde o vinho é abundante. “Daquelas terras,daquele barro, daquele silêncio, ele saiu a andar e a cantar pelo mundo”. Oamor e a natureza foram as primeiras inspirações de sua poesia. Enxergava, nafúria das grandes ondas do mar, a palpitação do universo. As mulheres, oslivros e a política foram as suas imensas paixões.

Afirmava que não havia nascido para condenar e sim para amar. Susten-tava que a tarefa do escritor não é misteriosa nem mágica; é uma tarefa pessoal,de benefício público. Acreditava que nenhum artesão pode ter, como o escritortem, por uma única vez durante a vida esta sensação embriagadora do primeiroobjeto criado por suas mãos, com a desorientação ainda palpitante de seussonhos. É um momento que não voltará nunca mais.

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A política infiltrou-se em seus poemas, quando milhares de operáriosdespedidos das minas de salitre e de cobre chegaram à capital e, juntamentecom os estudantes que apoiavam as reivindicações populares, foram espanca-dos pela polícia nas ruas de Santiago.

Diplomata de carreira, foi Cônsul na Birmânia, no Ceilão, em Colombo,em Cingapura e em Batávia. Apaixonou-se pelo exotismo do Extremo Oriente.Nas Américas, assumiu os consulados de Buenos Aires e do México. Cônsulem Barcelona, viveu toda a dramaticidade da guerra civil espanhola. Encerrousua carreira diplomática como Embaixador em Paris.

A atividade política veio como uma tempestade para tirá-lo de seu traba-lho literário. Sai da solidão do gabinete, e volta uma vez mais, para a multidão.Senador da República, candidata-se à Presidência do Chile. Em busca da unida-de popular, renuncia em favor da candidatura de Salvador Allende. Solidão emultidão continuaram sendo deveres elementares de sua apaixonante existên-cia. Possuía a felicidade de haver chegado, através dos labirintos da palavraescrita, a ser poeta de um povo.

36PROFESSOR OSMAN LOUREIRO DE FARIAS NASCEU EM MACEIÓ, em 1895, nocasarão patriarcal dos seus avós paternos, quando a sociedade açucareira nor-destina sofria transformações radicais. Senhores de Engenho transformavam-se em fornecedores de cana e em usineiros.

Filho da aristocracia do açúcar, não se contentou em plantar canas. For-çou o acesso à classe dos usineiros, então recém-surgida. Começou montando,nas terras do seu engenho Varame, em Atalaia, a Usina Aliança (hoje, de fogomorto) e, depois, adquiriu a Usina Camaragibe, que ampliou e modernizoucom a ajuda dos filhos e, em cuja presidência, veio a falecer.

Compondo os quadros dos industriais do açúcar e do álcool, sua posiçãofoi sempre de liderança. Presidiu o Sindicato, a Cooperativa e a Associação dosUsineiros de Alagoas.

Poucos, em meu Estado, tiveram tanta amplitude. Mestre, político, advo-gado e empresário, exerceu todas essas atividades com tal brilhantismo que setornou um exemplo.

Professor Emérito de Direito, pelos grandes serviços prestados à culturajurídica, dotado de um grande poder de comunicação, suas aulas tornaram-seinesquecíveis para aqueles que desfrutaram o privilégio de terem sido seus alunos.

Secretário-geral do Estado, na Intervenção de Afonso de Carvalho,Interventor nomeado por Getúlio Vargas, de 1934 a 1937 e, posteriormente,

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Governador de Alagoas, houve-se, no exercício da difícil e honrosa missão deconduzir o destino de um povo com decência, coragem e, sobretudo, comgrande amor pela terra e pela gente alagoana.

Autor de vários livros e de substanciosas monografias sobre Direito eEconomia, de inúmeros artigos especializados, dublê de cronista e poeta, per-tencia à Academia Alagoana de Letras e ao Instituto Histórico e Geográfico deAlagoas.

Cumpriu, com ânimo forte, todas as missões que as circunstâncias lheimpuseram. Teve filhos, plantou árvores e produziu livros. Realizou-se.

Consciente de que a grande característica da vida é o milagre da sua cons-tante renovação, recebeu a proximidade da morte sem temor, como se ela fosseo seu tugúrio.

Tornou-se não apenas um eco, no fundo de outros pensamentos, masconseguiu sobreviver a si mesmo, perpetuando-se na História das Alagoas.

37O IMPACTO DA NOTÍCIA ME DEIXOU ATÔNITO. Ela chegou ainda em caráterconfidencial. Os governadores estavam sendo avisados de que o presidenteeleito teria que se submeter a uma intervenção cirúrgica, às pressas, na vésperada posse. Fatalmente, surgiriam inquietações políticas e populares e precisáva-mos estar atentos à ordem pública. Autorizo sigilosamente que a Polícia Militarfique de prontidão e viajo a Brasília, palco do drama que nenhum ficcionista,por mais imaginoso que fosse, seria capaz de conceber.

Defensores de diversas correntes políticas levantam teses jurídicas estra-nhas à posse do Vice-Presidente José Sarney. As “cassandras” não lograramêxito. O bom senso predomina. O Brasil não aceitava entrar em aventuras. ANação estava amadurecida à consolidação do processo democrático.

Inicia-se o calvário de Tancredo Neves. Durante quase quarenta dias, elesofre nos leitos hospitalares. Tempo necessário à aceitação plena do PresidenteSarney que soube conquistar o respeito e a admiração do país pela dignidadecom que se comportou naquele período doloroso da vida nacional.

Acompanhei de perto a trajetória que levou Tancredo Neves à conquistada Presidência da República. Fomos eleitos Governadores, de Minas Gerais ede Alagoas, em novembro de 1982. Ele já era personagem da História; percor-rera todos os caminhos da política. Vereador em São João Del Rei, DeputadoEstadual, Deputado Federal em várias legislaturas, Ministro de Estado no Go-verno Vargas, Primeiro Ministro no Parlamentarismo, Governo João Goulart eSenador da República.

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Encontrávamo-nos constantemente nos mais diversos pontos do país.Era visível que tinha um objetivo maior a atingir. Das onze reuniões do Conse-lho Deliberativo da Sudene, acontecidas durante os meses iniciais do períodoem que governou Minas, compareceu a nove, inclusive participando daquelasrealizadas no interior do Nordeste, como Parnaíba, no Piauí e Paulo Afonso, naBahia. Temperamento afável, normalmente gentil, prodigalizava atenções paraconosco. Guardo dele um bilhete muito carinhoso onde exagera nos adjetivosà minha pessoa.

Ambições desenfreadas, ausência de noções do limite, vaidade e egoísmoem homens com poder de mando provocam desencontros que esfacelam omaior sistema de forças políticas da Nação.

O diálogo se impõe. Busca-se aquele que seria o grande interlocutor. Nareunião do colegiado da Sudene, em Recife, na sexta-feira, 27 de abril de 1984,na qualidade de primeiro orador inscrito, destaco as virtudes de estadista deTancredo Neves e apresento-o como a confluência dos diversos segmentos dasociedade brasileira. Os Governadores nordestinos endossam as minhas pa-lavras. O eco, através da imprensa, em todo o Brasil, foi enorme. Dias depois,os Governadores do PMDB reunidos em São Paulo, lançam o seu nomecomo candidato a Presidente da República. Fiel ao seu estilo, nem diz sim,nem diz não. Aguarda. Os acontecimentos o conduziriam à vitória. Alagoas,em termos proporcionais, foi o Estado que lhe deu maior número de votos.Dos 17 eleitores, 14 votaram nele. Os 6 delegados da Assembléia Legislativa,acompanharam o meu candidato.

A sua candidatura extrapolou os limites partidários, as lutas de classes eraciais, as ideologias, os conflitos religiosos. Foi a transição de um Estado Re-volucionário para um Estado de Direito sem traumas e violências. A Naçãoencontrou-se em torno dele. Tancredo Neves foi a concretização do sonho dopacto social brasileiro.

38O RESTAURANTE TINHA UM DAQUELES ENORMES NOMES alemães intraduzíveispara o idioma português. Apesar de ser uma noite de segunda-feira, estava comtodas as mesas ocupadas e um razoável número de pessoas aguardava vagas. Aexplicação para o grande movimento, não só naquele restaurante, mas em todasas casas noturnas do bairro boêmio de Frankfurt, talvez estivesse no frio devários graus abaixo de zero, do rigoroso inverno do leste europeu, aliado ànostalgia que dezembro traz, com a proximidade do Natal, quando muitos co-meçam a sentir uma saudade difícil de ser definida. Ela é imprecisa, porém,

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forte e aguda. É impossível localizá-la no tempo. É estranha, e até paradoxal,pois pode estar tanto no passado, quanto no futuro. É uma saudade do queperdemos e, também, do que deixamos de conquistar. São lembranças dos pre-sentes que recebemos e dos que deixamos de receber quando crianças. Sãolembranças de entes queridos que entraram e saíram de nossas vidas. É umasaudade que acaricia e machuca a alma. Daí a tristeza que muitos sentem noperíodo natalino.

Depois de minutos de espera, o garçom nos consegue uma mesa. Jáestamos impregnados da alegria que domina o ambiente. Os alemães cantame dançam ao som de um conjunto de jovens músicos e, nos intervalos, de umvelho tocador de acordeão. Canções folclóricas da Francônia, ajudadas pelasaborosa cerveja, o delicioso vinho e o forte conhaque levam a maioria a umêxtase de euforia. O anseio de confraternização é geral. Amores, embora taci-tamente limitados a uma noite e, por isso mesmo, eternos, surgem na fuga dovazio.

A minha atenção é despertada por um homem aparentando seus 65 anosde idade. É o protótipo do anglo-saxão. Mede quase um metro e noventa, cor-po atlético, embora uma barriga protuberante revelasse o hábito de beber cer-veja em excesso. Grande cicatriz marcava a face esquerda do seu rosto, e umade suas pernas parecia ser mecânica. Quando se dirigiu ao toalete, caminhavamancando apoiado numa bengala. O corte militar do cabelo revelava a pro-fissão. É, visivelmente, um veterano de guerra. O que despertou minha curio-sidade foi sua total apatia diante da esfuziante animação que, de tão intensa,parece um histerismo coletivo. É uma alegria nervosa. Seus olhos, de um azulintenso, não têm vida, são opacos, devem ter presenciado horrores. Começoa imaginar, não sei bem por que, se é um major ou coronel reformado de umadas tropas de elite do exército alemão. Afasto a hipótese de ser um general.Participou de várias batalhas durante a Segunda Guerra Mundial e foi feridovárias vezes em combate. O “mundo” dele ruiu. Desencontrou-se; é um morto-vivo, um náufrago.

39JOSÉ DE MEDEIROS TAVARES PERTENCIA À GERAÇÃO que estava ansiosa por par-ticipar das responsabilidades de dirigir os destinos de nossa comunidade. Dessageração, herdeira de um passado glorioso, mas que está consciente de que tema obrigação de construir um futuro digno desse passado.

Muito moço ainda, foi convocado para exercer cargos de destaque navida administrativa de Alagoas.

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Atraído pela política, viu-se candidato a deputado estadual, em 1962. Ob-teve expressiva vitória. Sua vida parlamentar foi pontilhada de êxitos. Presiden-te do Poder Legislativo, seus co-estaduanos, conquistados pela brilhante atua-ção do jovem legislador, reelegeram-no com expressiva votação, em 1966. Foimeu vice-governador quando governei Alagoas pela segunda vez.

Calmo, de maneiras educadas, organizado, atencioso, é incapaz de cons-cientemente, magoar alguém. Habilidoso no tratar com as pessoas, ouve maisdo que fala. Tem o que já se chamou o “gênio da amizade”.

40ENCONTRO-ME EM WEIMAR, pequena cidade da Alemanha Oriental, famosa porter sediado a Assembléia Constituinte que implantou a República após a deposi-ção do Kaiser Guilherme III, ao término da I Guerra Mundial. É junho de 1992.É um belo dia de primavera. Os jardins do antigo palácio do Príncipe CarlosAugusto estão cobertos de flores. Ele convidara, em meados do século XVIII,Johann Wolfgang von Goethe, o consagrado autor da novela As Desventuras deWerther para, na qualidade de Conselheiro, abrilhantar a corte com seu talento.

Procuro a casa de Goethe, hoje transformada em museu. Viveu mais decinqüenta anos em Saxe-Weimar, elevando-a à categoria de um dos santuáriosculturais do mundo. Dividia o seu tempo entre a poesia, as longas viagens pelocontinente europeu e a política. Aglutinou, em torno de si, um grupo de bri-lhantes homens e mulheres que, sob a sua direção, discutiam filosofia, dedica-vam-se à poesia e brincavam de amor. O seu enorme talento ansiava por beleza.A versatilidade do seu espírito levou-o à pintura e à música. Amante da paz,não existia nele a volúpia prussiana da conquista da guerra. Costumava afirmar:Componho canções de amor porque tenho amado muito. Como poderei escrever contos deguerra sem nunca ter odiado?

Abençoado pelos deuses, fisicamente bem apessoado, possuía um espíritoperfeito num corpo perfeito. Foi admirado pelos homens, e adorado pelas mu-lheres. Nascido em 1749 na cidade de Frankfurt, filho de pai bastante rico, fugiado tédio do estudo de leis, em Estrasburgo, dedicando-se à literatura, teatros,festas e concertos. Aprendeu a tocar violoncelo e tornou-se um excelente esgri-mista. Facilmente amava, facilmente esquecia. Transportava sua aventura amoro-sa para um poema inesquecível. Aos catorze anos, apaixonou-se violentamentepela vez primeira. Aos setenta e quatro, apaixonou-se pela última vez.

Reuniu todo o seu gênio para presentear a humanidade com sua obra-prima. Revela as imperfeições do homem. Oferece à sua personagem tudo oque a vida lhe concedeu: riqueza, poder, beleza, audácia, prestígio social, os

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prazeres do amor. Entretanto, tudo o que o Doutor Fausto empreende, de bomou de mau, termina em fracasso. O seu caminhar é uma série de quedas. Osardores e os desejos da mocidade são cinzas de paixões. O estranho é que nomomento em que renuncia à felicidade, ele a encontra. Perdoado pela doceMargarida, a quem tanto infelicitara, juntos conquistam o paraíso. Confirma-seque a mulher é a eterna salvação do homem.

Recordo-me dos fatos marcantes dos oitenta e três anos de vida de Goethe,percorrendo as salas do casarão-museu onde, escrevendo seu poema épico,buscou concretizar a ilusão do sonho da eterna felicidade, na pessoa de Fausto.Muitos continuam vendendo suas almas ao Diabo. Sacrificam valores, degra-dam-se, transformam-se em trapos morais no percurso da enganosa caminha-da. Esquecem que, cedo ou tarde, o bem sempre predomina sobre o mal. Estafoi a grande mensagem que Goethe legou à posteridade.

41ESTAVA EM BRASÍLIA, COMO CONSTITUINTE, quando readquiriu seus direitospolíticos uma das figuras mais representativas de uma fase da história alagoana.

Conflitos violentos, lutas exacerbadas, caudilhismo, abuso de poder exi-giam do homem público, além de todos os requisitos que estão implícitos naatividade política, um verdadeiro culto ao machismo.

Os grandes proprietários, os famosos coronéis – título herdado dos co-ronéis da Guarda Nacional –, senhores de vida e de morte, nos seus domínios,apoiavam sistematicamente o governo em troca de uma série de impunidades.Verdadeiros senhores feudais, possuíam um código de honra com característi-cas medievais. Não estava escrito em nenhum tratado, mas a sociedade respei-tava. O fenômeno ocorreu em todo o Brasil, porém perdurou mais no Nordes-te onde, ainda hoje, encontramos seus resquícios.

Oséas Cardoso Paes viveu e atuou politicamente nesse mundo, receben-do, desde adolescente, a influência do seu meio social. Nascido às margens dorio Paraíba, na cidade de Viçosa, na zona da mata de Alagoas, cedo se deixoudominar pela mais exigente e absorvedora das amantes que o homem pode ter:a Política.

Dotado de uma coragem suicida e de uma enorme habilidade no manejodas armas, notabilizar-se-ia nas inúmeras lutas travadas pela conquista do po-der, em nosso Estado. A imaginação popular coloriu sua participação nessesconflitos com tonalidades de lenda. À medida que exercia cargos de destaque,sua fama de valente espalhava-se pelo país. Surgiram vários contestadores. Saí-ram-se sempre mal.

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Prefeito de Piranhas, no alto sertão do São Francisco, e da encantadoraPilar, na Interventoria lsmar de Goes Monteiro, foi um bom administrador,apesar da precariedade dos recursos dos municípios.

Amigo leal e dedicado, permaneceria ao lado do General lsmar nos con-flitos que separaram os irmãos Goes Monteiro. A amizade entre os dois foimuito sólida. Oséas era uma espécie de procurador dele em Brasília.

Deputado estadual em três legislaturas e deputado federal em duas, foieleito e reeleito com magníficas votações pelos alagoanos, empolgados pela suapersonalidade singular e gratos por gentilezas recebidas, oriundas de sua voca-ção nata para servir.

Oséas Cardoso é dessas pessoas que gostam de fazer, e não, de receberfavores. Sente-se bem, ajudando o próximo. Multiplica-se para atender às soli-citações que recebe. Cassado, afastado da política, continuou com a mesmaprestimosidade. Atende com fidalguia a todos que o procuram, sejam amigos,estranhos ou antigos desafetos.

Certa feita, foi procurado por um compadre, em nome da mãe do Depu-tado Claudenor Lima, que havia sido cassado, logo após 1964, e se encontravaforagido no interior de Goiás. Claudenor e Oséas haviam trocado balas nocélebre tiroteio ocorrido na Assembléia Legislativa alagoana, na votação doimpeachment do Governador Muniz Falcão. Eram inimigos ferrenhos. Foi Oséas,talvez o mais perigoso dos adversários do filho, que foi procurado pela mãeaflita, confiada no seu senso de honra, para que lhe fosse o portador de umamensagem. Encontraram-se numa pequena casa de uma distante fazenda. Es-tavam armados. Claudenor, com uma metralhadora portátil sobre uma mesa,ao alcance de suas mãos. Cumprimentaram-se com desconfiança. Explicada amissão, abraçam-se. Oséas tornou-se um ponto de apoio de Claudenor, en-quanto ele esteve longe de sua querida Arapiraca.

Casado com um anjo feito mulher, sempre teve na esposa aquela compa-nheira com quem comungou suas angústias, seus perigos e suas alegrias. Afirmaque, sem Lilita, ele, de há muito, teria soçobrado. Ela foi uma espécie de tábua desalvação que o impediu de naufragar no mar revolto das suas inquietações.

Cassado durante dez anos, jamais perdeu a sua imagem, em Alagoas. Acassação foi conseqüência da preocupação dos seus inimigos com o enorme pres-tígio eleitoral de que desfrutava. Em sua última eleição à Câmara Federal, conse-guiu a maior votação, em termos absolutos, do nosso Estado e, em termos pro-porcionais, do Brasil. Jamais ousaram acusá-lo de corrupto ou de subversivo.

Oséas saiu pobre da política, a exemplo do que acontece com os verda-deiros políticos. Nunca se locupletou dos cargos que exerceu ou do prestígiode que desfrutou para enriquecer.

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Dedicou-se nesses últimos anos à iniciativa privada. Nela, graças à suacapacidade de trabalho e aos amigos que soube fazer e conservar, formou umpatrimônio que lhe permitirá viver com dignidade o resto dos seus dias.

42O JAPÃO ERA UMA CONSTANTE E AGRADÁVEL SURPRESA. Muito lera sobre asociedade japonesa, mas não estava preparado para o que encontrara. A capaci-dade de trabalho do povo, o forte conceito familiar, o extrapolamento da dedi-cação filial às empresas, transformando-as, na prática, em grandes núcleos fa-miliares. A consciência do coletivo, a responsabilidade para com o todo, a ânsiade buscar novos conhecimentos, copiando e aperfeiçoando a tecnologia exis-tente em outras nações e, através da pesquisa, novas descobertas, melhorando,assim, o padrão de vida humana, foram, segundo penso, as razões que permiti-ram o “milagre japonês”, fazendo com que o país se recuperasse rapidamenteda destruição da Guerra Mundial, superasse a ausência de suas reservas mine-rais e se transformasse no segundo mais rico do mundo, logo depois dos Esta-dos Unidos, sem traumáticos desníveis sociais, com plena liberdade de pensa-mento e sem conflitos raciais.

Viajando de Los Angeles a Tóquio, pela JAL, mantive os primeiros con-tatos com a lendária arte do bem-tratar das gueixas. As aeromoças iniciam oserviço de bordo, vestidas a caráter, atendendo aos passageiros com uma genti-leza que torna a longa viagem inesquecível.

O Hotel New Otani, com mais de três mil apartamentos, localizados emduas enormes torres, quarenta e dois restaurantes e um shopping center nosubsolo, cercado de belíssimos jardins, é um exemplo da eficiência japonesa. Aroupa entregue na lavanderia é devolvida, completamente limpa, em menos deuma hora. Um lanche, pedido no quarto, é servido em dez minutos. A lhanezados empregados impressiona. Conheci os melhores hotéis, nas mais diversascapitais da Europa e das Américas, não encontrando, em nenhum deles, essemesmo tratamento.

A defesa do bem público, considerado pela população patrimônio nacio-nal, é ensinada de geração para geração. É inimaginável se depredar uma cabinatelefônica, uma rodovia, um jardim ou uma rede de energia elétrica. Uma rosafenece no pé, e ninguém ousa arrancá-la. O respeito ao próximo é enorme.Pessoas gripadas saem às ruas com máscaras para evitar a contaminação. Osalário não é o fundamental para o trabalhador, e o empresário jamais pensa emdemitir trabalhadores para diminuir custos. É, realmente, difícil copiar-se omodelo japonês.

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Desejo conhecer uma fábrica, na tentativa de entender o desenvolvimen-to industrial do Japão. Combino uma visita à unidade matriz da Furukawa,grande produtora de condutores de eletricidade nos arredores de Tóquio. Sourecebido por um dos diretores, que me mostra as diversas escalas de produção.O mesmo espírito de corpo, a mesma dedicação ao trabalho, a consciência deque a empresa é a continuação do lar, a mesma eficiência.

Encontrava-me na estação do metrô, esperando voltar ao centro da cida-de. A tarde estava chegando ao fim. É quando tenho minha atenção atraídapara um lindo rosto de mulher numa das janelas do trem que passa em direçãocontrária. Os olhares se encontram. Admiração e coqueteria. A candura, a mei-guice, a suavidade da beleza oriental feminina encontram-se naquele rosto. Elasorri e a promessa contida no sorriso é magnética. O instante perpetuou-se,embora tenha durado apenas segundos. Jamais o esqueceria. A imagem daquelerosto permaneceria para sempre em minha retina.

43A PROXIMIDADE DO NATAL EMPRESTOU MAIOR COLORIDO A MADRI. As figurasbíblicas dos Reis Magos são tão populares quanto a lenda nórdica do PapaiNoel. As ruas centrais foram invadidas por verdadeiras multidões. Milhares depessoas circulam fazendo compras ou simplesmente desfilam admirando asbelas vitrinas. O sol e a temperatura de quatro graus ajudam. O clima é de festa.

Sou um entre os milhões de turistas que chegam mensalmente à Espanha.Em dezembro, a maioria deles vem da Alemanha ou dos países da Escandinávia,fugindo dos rigores do inverno do Leste Europeu. A indústria do turismo é amaior fonte de renda da Ibéria. A infra-estrutura turística é perfeita. Toledo,Sevilha, o Vale de los Caídos, Granada, Barcelona, os palácios reais e as velhasigrejas proporcionam passeios maravilhosos e educativos. A História da Espanhaé muito rica em acontecimentos. O espanhol é o segundo idioma do mundoocidental, perdendo apenas para o inglês.

Depois de haver visitado os principais monumentos da capital espanho-la, de assistir ao show do Scala e às danças flamengas, captando a alma do povona Plaza Mayor, palco de grandes concentrações populares nos últimos sécu-los, programo uma viagem a Toledo, a primeira sede do Reinado.

As muralhas emprestam à cidade uma paisagem medieval, dominada pelamajestosa Catedral Primada. Berço de inúmeras obras-de-arte, escolhida comoresidência pelo grande artista El Greco, que nela pintou seus mais famososquadros, percorrer suas estreitas e enladeiradas artérias é viajar pelo obscuran-tismo da Idade Média e pelo iluminar do Renascimento.

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Fernando de Aragão e Isabel de Castela, denominados os Reis Católicos,famosos por haverem expulsado os muçulmanos de terras espanholas e deterem patrocinado a viagem em que Cristóvão Colombo descobriu a América,escolheram a Igreja de San Juan de los Reys, em Toledo, para guardar seusrestos mortais. Conquistada Granada, último baluarte mouro na Europa, o ca-sal real ao visitar o Palácio do Califa, ficou deslumbrado com tanto luxo eriqueza, apaixonou-se pela suntuosidade mourisca e decidiu ser sepultado nacidade cuja conquista o glorificara.

A Rainha Isabel faleceu sem filho. Possuía apenas filhas que haviamcasado com membros de outras famílias reais européias. O Rei Fernando, jáidoso, guardava a frustração de não haver gerado um herdeiro do sexo mas-culino. Passada a dor da viuvez, decorrido um período que atendesse às con-veniências sociais, o Rei contrai núpcias com uma jovem e bela princesa. Aânsia de gerar um filho era tanta que ele toma todos os remédios, ervasafrodisíacas e banhos medicinais que cortesãos lhe aconselham. Os resulta-dos não foram satisfatórios.

A ironia é que o homem, cujas decisões políticas e administrativas muda-ram a história da humanidade, seja lembrado aos visitantes da Iglesia de SanJuan, pelos guias turísticos, em tom jocoso, por inibições sexuais da sua velhice.

Afasto-me do local convencido de que a imagem e a projeção social dapersonalidade do indivíduo, exige um cuidado permanente. Sei que o sucessode qualquer natureza provoca inveja e ódio naqueles que fracassaram. E cadaum extravasa esses sentimentos de acordo com a sua formação. O importante,porém, é viver de uma maneira que os caluniadores não tenham razão.

44O DISCURSO FOI BRILHANTE. FUGIU DO ELOGIO FÁCIL, comum em conven-ções partidárias, para interpretar o papel do estadista, do político maior numasociedade. O Presidente eleito, o General Ernesto Geisel, apreendeu a sutile-za do orador em destacar fatos e exemplos de sua vida, que avalizavam aexpectativa nacional em torno da busca da plenitude democrática. Comen-tam que a impressão positiva foi tão profunda que pesou consideravelmentena decisão final que o Chefe da Nação e do Partido tomaria na escolha doDeputado Federal Aureliano Chaves para Governador do Estado de MinasGerais.

Engenheiro por profissão, o destino o conduziu à política, configurandoa imagem do administrador que se aproxima do ideal, aquele que possui umaformação técnica com a sensibilidade social do político.

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Professor da Faculdade de Engenharia de Itajubá, Sul de Minas, Secretá-rio de Estado, Deputado Estadual, Deputado Federal, Governador de MinasGerais, acumulou uma experiência e uma gama de conhecimentos que ocredenciam como um dos mais hábeis e mais cultos políticos brasileiros.

Governando Estados incluídos na área da Sudene, no mesmo períodoadministrativo, encontramo-nos inúmeras vezes nas mais diversas cidades. Con-vivendo com ele, conhecendo-o de perto, passei a ter uma noção exata da gran-deza e da honradez do seu caráter.

Brindou-me com a sua amizade. Deslocou-se, certa feita, de Belo Hori-zonte a Penedo, município alagoano situado no Baixo São Francisco, paraprestigiar um encontro de governadores, que promovemos com os órgãos re-gionais do Ministério do Interior.

Convidado para proferir uma palestra em Ouro Preto, dentro das home-nagens prestadas à memória de Tiradentes, Luzia e eu fomos alvo de carinhoinesquecível do casal Aureliano e Vivi.

Temperamento forte, irrita-se com certa facilidade. Intelectual, com físi-co de halterofilista, apesar do seu auto-disciplinamento, costuma reagir quandopressente que tentam diminuí-lo. Conseguiu aliar uma grande coragem pessoalao pragmatismo do político mineiro.

O êxito de sua administração governamental e sua capacidade políticacolocaram seu nome como o companheiro indicado para ajudar o PresidenteJoão Figueiredo, na difícil missão de conduzir os rumos do país. Exerceu adelicada função de Vice-Presidente da República com eficiência, habilidade edignidade. Jamais ultrapassou os limites. Jamais abriu mão de sua autoridade.Conquistou o respeito da Nação.

45A S ESTUDANTES QUE FORMAM O GRUPO DE DANÇAS FOLCLÓRICAS da Secretariade Educação encantavam todos que se encontram no Teatro Deodoro. Elasemprestam graciosidade ao espetáculo. O Pastoril, a Chegança, a Baiana, oReisado, a Roda de Coco, o Guerreiro adquirem maior colorido no ritmo e navoz das lindas jovens. A harmonia do conjunto impressiona. Os aplausos vi-brantes revelam o entusiasmo do auditório. O professor Pedro Teixeira é so-mente alegria. Está orgulhoso e satisfeito. O sucesso compensa as longas horasde treinamento. Conseguiu transmitir para suas alunas, explicando as origens ea história de cada folguedo, que folclore é muito mais do que uma diversão; éextravasamento da alma de um povo, é cultura na pureza popular.

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Nascido em Viçosa, no então povoado Chã Preta, criança ainda, captoutoda a magia das festas natalinas, das homenagens do espírito simples do nor-destino do interior a São João e a São Pedro. Enfeitiçado, assistia aos desafiosdos repentistas, às vaquejadas, às cavalhadas. Essas influências marcaram pro-fundamente a sua personalidade. Setentão, permanece o mesmo apaixonadopelas suas origens. Cada encontro com a cidade de Chã Preta é um reviver deemoções. É um retorno à infância com tudo que tem de belo.

Transformou numa paixão o estudo ordenado e aprofundado do folclo-re, como ciência; as causas da presença lusitana, indígena e africana nas expres-sões musicais do povo do Nordeste. A nostalgia, o sofrimento do negro escra-vo emprestaram às canções, muitas vezes, não um sentimento de alegria, e sim,um grito de dor.

Governador de Alagoas, nomeio-o para compor o Conselho Cultural doEstado. Cultura, para ele, não é uma posição estática, contemplativa, elitizante,mas é ação, participação, sal, sangue, vida. É povo.

46O UVINDO A HOMILIA PROFERIDA PELO CARDEAL do Rio de Janeiro, Dom Eu-gênio Sales, na missa de corpo presente pela alma de Dom Avelar BrandãoVilela, na Igreja Mãe do Brasil, na cidade de Salvador, transporto-me para opassado e começo a recordar os diversos encontros que mantive com aqueleque era o único Cardeal, nascido em Alagoas. Compareci à sua posse, em 1971,como Arcebispo Primaz do nosso país, representando a Assembléia LegislativaAlagoana, em companhia de Theobaldo Barbosa e de Tarcísio de Jesus. Ofere-ci-lhe, por recomendação do Conselho Estadual de Cultura, a maior honrariade Alagoas, a Comenda dos Palmares, em solenidade realizada na noite dedezesseis de setembro de 1985, no Instituto Histórico e Geográfico. Participeidas Missas que ele celebrou em sua querida Viçosa e do inesquecível encontrodo clero brasileiro no Estádio da Fonte Nova, na Bahia, nas festividades do seuJubileu de Ouro Sacerdotal. Lembro-me das conversas que mantivemos nasviagens de avião que, ocasionalmente, fizemos juntos. Considerado um dosmaiores oradores sacros do Brasil, marcou profundamente o meu espírito como discurso de paraninfo dos concluintes da nossa Universidade, através damensagem explicando a necessidade do relacionamento entre o capital e o tra-balho, na manhã da inauguração da Usina Seresta e das palavras de despedidaao seu estimado irmão Teotônio Vilela, no cemitério Parque das Flores.

Cultura enciclopédica, voz suave, meigo no tratar a pobres e ricos, humil-de em sua grandeza, encantava a todos de quem se aproximasse.

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Ordenado Padre em Aracaju, Bispo de Petrolina, Arcebispo de Teresina,Presidente do Conselho Episcopal Latino-Americano, Vice-Presidente da Con-ferência Nacional dos Bispos do Brasil, (CNBB). Arcebispo Primaz, Cardeal,Presidente da famosa Assembléia Geral do Episcopado Latino-Americano emMedellín, redator da introdução da Carta do Encontro de Puebla, quando lan-çou a tese da Civilização do Amor, foi, indubitavelmente, um dos maiores vul-tos da Igreja católica.

Transcrevo o perfil que dele tracei quando, presidindo o Poder LegislativoAlagoano, o saudei na sessão solene em que a Assembléia o homenageou, apóso Papa Paulo VI haver-lhe concedido a púrpura cardinalícia.

O papel e a influência do líder são hoje muito mais amplos do que nopassado. O desenvolvimento de economias centralizadas, sob governos tam-bém centralizados, colocou ao alcance do grande homem, do líder, decisõescapazes de afetar praticamente todos os aspectos da vida.

O homem-época, geralmente, caracteriza-se pelo romantismo e pela per-tinácia. Romantismo como uma nova maneira de sentir, romantismo comouma rebeldia contra convenções esdrúxulas, como reação ao conformismo.

Dom Avelar Brandão Vilela é, indubitavelmente, um desses homens-época.Romântico, porque faz da preocupação com a sua pessoa um sinal de que seinsere no drama social do nosso tempo. Sua vida é um exemplo de obstinação.É um prodígio de vontade, de tenacidade, de fé, de todos os atributos de ação.

A Catedral de São Salvador está repleta. Milhares de pessoas estão pos-tadas diante da urna funerária. O Presidente da República, José Sarney, Car-deais, vários Ministros de Estado, Governadores, Senadores, Deputados, Ofi-ciais-Generais, dezenas de Bispos, centenas de Sacerdotes, de Freiras e, o queé mais importante, o povo baiano, reverentemente, se despedem daquele que,durante quinze anos, foi o seu Bom Pastor. Dom Eugênio fala com o coração.As frases felizes e definidoras saem com facilidade dos seus lábios. O silêncio éapenas quebrado pela dor extravasada em choros que ecoam pela multidão. Findaa missa, o Hino do Senhor do Bonfim é cantado. É a voz da Bahia.

Dom Avelar repousa, ao lado do Padre Antônio Vieira e de outros líde-res religiosos, na Catedral Primeira do Brasil. Ele, como São Paulo, combateuo bom combate e foi vitorioso. Sua alma iluminada foi chamada à companhiade Deus.

47O SOL IRROMPE EM TODA SUA GRANDEZA E TRANSFORMA uma manhã chuvosade fins de novembro em um dia esplêndido à prática de esportes. Tranqüilizo-

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me. A renda do jogo seria recorde. Os tradicionais adversários, CRB e CSA,decidiriam, naquela tarde, o campeonato alagoano de futebol. O ano é 1969.

O clássico havia sido precedido, durante toda a semana, de uma intensadivulgação pelos órgãos de imprensa, de notícias, insultos, intrigas, provoca-ções entre os jogadores, técnicos, diretores e as duas imensas torcidas. Alagoas,praticamente, divide-se meio a meio, entre azulinos e regateanos. Cada torce-dor afirma, com a segurança da paixão, que o seu clube é o mais popular. Emverdade, é muito difícil dizer qual a torcida mais numerosa. O coronel NiloFloriano Peixoto, Comandante Geral da Polícia Militar e Presidente do CSA,havia prometido a vitória à sua legião. Eu, Prefeito de Maceió e Presidente doCRB, com o intuito de irritar os adversários e tranqüilizar os regateanos, afir-mara que nunca tinha entrado numa luta para perder e que “o galo de campina”seria vitorioso. A rivalidade é acentuada, criando um clima de “guerra”.

A multidão invade o Estádio Severiano Gomes, na Pajuçara. As bandei-ras alvi-rubras ocupam as arquibancadas, no lado direito e as azul e branco, nolado esquerdo. Centenas de policiais, prudentemente, colocam-se entre as duastorcidas. É belo o espetáculo do tremeluzir de milhares de bandeiras ao som decharangas.

O Desembargador José Pantaleão Neto, homem austero e de poucaspalavras, no exercício de sua profissão de Juiz de Direito, Conselheiro doRegatas, encontrava-se de luto fechado, em virtude da morte da mãe. Surpre-endo-me, portanto, ao vê-lo com uma camisa vermelha. Notando a interroga-ção em meu olhar, explica-me: Suruagy, hoje pela manhã fui ao cemitério e pedilicença à mamãe para quebrar o luto, vestindo esta camisa, porque ela traz muita sorte aoCRB. Conscientizo-me de que, no futebol, o irracional predomina sobre asolidez da lógica.

O Centro Esportivo Alagoano, fundado em 7 de setembro de 1913, é tetra-campeão e sonha com a conquista inédita do penta. O Clube de Regatas Brasilnasceu em 20 de setembro de 1912. Humilhado durante os últimos quatro anos,deseja ardentemente conquistar o campeonato. Joga com a vantagem do empate.

Os times entram em campo. O espoucar dos foguetes é ensurdecedor. Amultidão delira. É contagiante o entusiasmo. Vejo-me a gritar, como no tempoda minha infância, quando, conduzido por tio Anacleto Suruagy, apaixonei-mepelo Regatas. O inicio, como em todo jogo de decisão, é tenso. Os jogadoresestudam os adversários. Não existe favorito. Igualam-se em valores individuaise condições técnicas. Ganhará o que melhor souber aproveitar as oportunida-des. O CSA faz o primeiro gol. A torcida azulina explode de alegria. Osregateanos, momentaneamente emudecidos, voltam a estimular o time comseus gritos de guerra. O técnico azulino comete o erro tático de recuar os

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jogadores, formando uma retranca, na tentativa de garantir a vitória. O CRBcresce, encurrala o inimigo, mas não consegue furar o sólido bloqueio. É quan-do, faltando uns quinze minutos para o término da partida, o nosso técnicoPinguela, como todo bom baiano, apoiado em seus orixás, convoca no bancode reservas o atacante Roberto, que nos fora emprestado pelo Clube Náuticodo Recife e, até então, não conseguira acertar em nenhuma partida. Ele recebeum lançamento, nas imediações da grande área, mata a bola no peito e chutaviolentamente. O goleiro do CSA não teve a menor chance.

A torcida do CRB entra em delírio. Pouco depois, o juiz encerra o jogo.O fanatismo impera. Os regateanos, enlouquecidos de alegria, depredam oalambrado, rasgam a rede da trave, guardando os pedaços como recordação ecarregam os jogadores nos braços. Envolvem-me no entusiasmo delirante. Souabraçado, beijado, carregado, rasgado por um número incalculável de pessoas.Algumas desejam apenas tocar em mim, como se tocassem em um amuleto.Walter Pitombo Laranjeiras, acompanhado de outros amigos, consegue me res-gatar. Feliz, com os olhos marejados de lágrimas, amarrotado, sinto as comple-xas emoções do delicioso sabor da vitória.

48A MELHOR DEFINIÇÃO QUE PODERÍAMOS TRAÇAR para sua personalidade é a deque, embora seja um homem múltiplo, ele é, intrinsecamente, um político nato.

Percorreu, na prática, todos os caminhos que um político deve perseguiraté ascender à primeira magistratura do seu país. Deputado Federal, jovem einflamado, pertenceu à “Banda de Música” da União Democrática Nacional.Governador do Maranhão, firmou uma imagem de bom administrador. Sena-dor da República, consolidou uma projeção que o levaria à Presidência Nacio-nal da ARENA, Partido que dava sustentação ao Movimento Revolucionário,implantado, no Brasil, em 1964.

A trajetória, que se fez sem mudanças bruscas, deu a Sarney condições deobservar com clareza os horizontes políticos do Brasil. À sua aguçada sensibi-lidade não escaparam os fatos que representavam os mais altos interesses dademocracia. Insistindo em que não tinha candidato à Presidência da República,o General João Figueiredo deixava campo aberto ao crescimento, entre os queo apoiavam, de nomes que não encontravam respaldo maior entre as liderançasgovernistas. Pode-se dizer, então, que José Sarney sentiu as implicações profun-das daquele momento histórico. E o seu apoio à oposição, acompanhado degrande número de correligionários, foi fator decisivo na vitória de TancredoNeves.

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Os grandes acontecimentos da História não são, sempre, obras do acasoou da fortuna; mas são o resultado do planejamento e da genialidade. Aquelesque sabem traçar o seu destino dificilmente fracassarão.

A eleição de Tancredo Neves para Presidente da República, e do seu vice,José Sarney, o primeiro Presidente civil eleito após o Ciclo dos Militares, signi-ficou a concretização da abertura democrática. O imponderável levaria Tancredoa submeter-se a uma cirurgia, bastante grave, às vésperas de sua posse, ensejandoque José Sarney assumisse a Presidência do Brasil.

Levado à Presidência da República pelas circunstâncias que a Históriaregistra, Sarney encontrou dificuldades notadamente na área econômica. Aabertura pregada pelas forças que elegeram a dupla Tancredo/Sarney se pro-jetou também no segmento da economia. Daí as ações de impacto buscadaspelo governo, algumas vitoriosas, no início, outras sem os reflexos positivosdesejados.

Paralelamente aos óbices criados pela economia, o Presidente Sarney eradesafiado, também, por algumas questões de ordem política. Ele as enfrentou,fazendo desse enfrentamento uma afirmação do seu espírito democrático. Nocírculo político, procurou afirmar-se pelas posições de diálogo, de tolerância ede respeito.

Passei a privar da intimidade de José Sarney quando fomos companhei-ros no Congresso Nacional. Conheci-o, em meados da década de setenta, emSão Luís do Maranhão, quando participei de um Encontro de Prefeitos deCapitais do Nordeste. Epitácio Cafeteira era o nosso anfitrião. O destino des-ses dois homens públicos, ao dividirem a liderança política do Maranhão, le-vou-os a se transformaram em ferrenhos adversários. As vidas deles, em váriasoportunidades, cruzaram com a minha atividade política.

Imagino José Sarney haver adotado a atitude de tratar tão bem os inimi-gos, de modo que eles achem interesse em tê-lo como aliado, e tratar os amigos,de maneira que os ligue, permanentemente, aos seus ideais.

José Sarney governou o país numa fase bastante complexa, agindo commuita sensatez e equilíbrio. Romancista e poeta, com várias livros publicados,membro da Academia Brasileira de Letras, divide com bastante sucesso essasatividades, integrando-se numa junção tal que se torna difícil estabelecer emqual delas melhor pontifica. Político renovador possui, na sua formação, agudainteligência e sensibilidade para apreender o conhecimento do mecanismo deuma sociedade e de uma época.

O homem José Sarney, ainda em plena ação, tem traços de personalidadeque vêm se afirmando a cada ação sua no decorrer do tempo. O GovernoSarney foi de ontem. As paixões desencadeadas por esse maranhense e pelos

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seus atos impedem, ainda, um julgamento com isenção. Vamos aguardar a mar-cha inexorável do tempo – que as vezes torna mais nítidas certas nuances –para uma avaliação isenta da sua passagem pela cena política brasileira.

49VIAJAVA DE AUTOMÓVEL DA REGIÃO DO ALGARVE PARA LISBOA. Estava voltan-do de Marrocos através da Espanha. Pernoitara em um pequeno e encantadorhotel, em Portimão, cidade-balneário no sul de Portugal. Bela Vista era o seunome. Descortinando do salão de café, naquela manhã, a praia cheia de gaivo-tas, decido visitar a famosa Escola de Sagres, fundada pelo Infante DomHenrique para melhor adestramento dos navegadores que escreveriam, comsuas descobertas marítimas, uma das maiores epopéias da humanidade.

A chuva que caíra insistentemente à noite anterior, desaparecera, e o soliluminava um frio dia de janeiro de 1990. Três horas depois, o “fiat” começavaa longa subida do Rochedo de Sagres. O cenário é deslumbrante. Existe algo desagrado. Sinto-me pequeno. É como se estivesse penetrando em uma imensacatedral. Sensação igual, somente quando visitei, pela vez primeira, a Basílicade São Pedro em Roma.

O espetáculo da eterna luta entre o mar e o rochedo é impressionante.Fujo à tentação de vertigem da altura. O canto das sereias me atrai. Resisto comrelutância. O mistério do Oceano Atlântico é apaixonante. Compreendo a atra-ção e a angústia do homem do mar.

Reverencio a memória do Infante Dom Henrique, inspirador do ImpérioPortuguês. Sua biografia confunde-se com a do início do Novo Mundo. Influ-enciado pela leitura do livro de Marco Polo, narrando o esplendor das riquezasdo Oriente, convence-se de que o destino de Portugal estava vinculado à con-quista dos oceanos.

Reúne um grupo seleto de pilotos e cartógrafos em torno de um ideal emodifica os rumos da história portuguesa.

Reverencio a memória daqueles heróis que, ao buscarem um novo cami-nho para as Índias, descobriram o Brasil.

É uma manhã de segunda-feira. O pequeno número de turistas permiteuma privacidade para melhor apreciarmos o belo cenário. Um casal de namora-dos, envolvido no enlevo da paixão, beija-se demoradamente, acariciados pelabrisa marítima. Afasto-me, deixando-os entregues ao feliz egoísmo dos amantes.

Reinicio o retorno a Lisboa. Compreendo melhor a alma de Portugal,analisando o passado glorioso de um pequeno país que se fez grande pela per-severança do seu povo.

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I l u s ã o

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A ELEIÇÃO CONCOMITANTE PARA O SENADO DA REPÚBLICA e para a Assem-bléia Nacional Constituinte passa a ter um significado de coroamento de vidapública. Sem pertencer a nenhuma das famílias tradicionais de Alagoas, oschamados donos da terra, fui abrindo o meu espaço, degrau por degrau. Con-sidero, entretanto, o início de minha carreira política a data de 2 de janeiro de1962, quando assumi a Secretaria Geral da Prefeitura de Maceió. Fui alvo decalúnias e infâmias. Mentes doentias, que sempre desejaram conquistar o po-der para se locupletarem, são incapazes de conceber que alguém use a forçade Prefeito ou de Governador de Estado, apenas para fazer o bem e paraconstruir obras indispensáveis ao desenvolvimento e ao progresso de umpovo. Encontrei muitos ingratos que tiveram suas vidas e a de seus familiarestotalmente modificadas, para melhor, graças às minhas decisões e que passa-ram, no seu íntimo, a me odiar. Alguns, porque são insaciáveis; por mais quese faça, eles acham pouco. Outros, porque o favor recebido revela que preci-sou, e o fato de haver precisado magoa o seu ego e extravasa suas frustraçõese complexos.

É gratificante saber que, para cada um desses recalcados, encontrei mi-lhares de pessoas gratas, leais e amigas. Algumas delas chegando ao exagero depossuírem verdadeira veneração por mim, imaginando que possuo apenas vir-tudes, quando, em verdade, como todo ser humano, encontro na minha perso-nalidade um somatório de aspectos positivos e negativos.

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Entre os positivos, destaco uma obstinação muito grande em perseguirum objetivo definido; a intenção de jamais esquecer gentilezas recebidas; abusca de coerência de princípios e amizades; o esforço em dizer a verdade,embora não diga todas, porque algumas delas magoam; a decisão de jamaisfugir da luta, quando provocado; a preocupação de tratar a todos da maneiraque desejo que todos me tratem; e o cuidado de não permitir que o podermudasse os meus hábitos e a minha maneira de ser – pelo contrário, sempre meensejou muita humildade pelas limitações nele implícitas.

Amigos íntimos colocam entre os meus inúmeros defeitos, um exageradoespírito conciliador, uma benevolência com os oportunistas, quando pedem aminha proteção, e o costume de assumir os erros daqueles que estão ao meu lado.

Sinto-me, no entanto, plenamente realizado na política alagoana. Nuncase fez tanto por Alagoas quanto nos nossos dois períodos de governo. Bativários recordes em termos de construir salas de aula, pavimentar estradas, rea-lizar concursos públicos, empregar pessoas, construir casas populares e postosde saúde, consolidar uma legislação de proteção ambiental, propor aumentossalariais do funcionalismo, implantar e consolidar os pólos cloroquímico e tu-rístico. E tudo isto sem atrasar, um dia sequer, o pagamento do pessoal e semgerar traumas sociais. Orgulho-me muito de não haver sido apenas o políticoque mais tempo governou o Estado, mas, sim, aquele que conseguiu governarsem nenhuma greve, nas mais diversas categorias funcionais. E destaco quegovernamos, pela vez segunda, na fase de abertura política, quando uma verda-deira explosão de liberdade tomou conta do país, resultando em inúmeros mo-vimentos grevistas nos mais diversos Estados da Federação Brasileira. Jamaisrecusei um diálogo com nenhuma liderança classista. Estou plenamente con-vencido de que o diálogo entre contrários é fundamental na difícil arte de go-vernar.

Concluído o mandato de Senador, afasto-me da política alagoana destitu-ído de ódio e frustrações. Pelo contrário, o sentimento que me domina é o degratidão. Grato a Deus por tudo que me concedeu, aos meus pais, pelos exem-plos constantes de dignidade e honradez que sempre me ofereceram, à maioriado povo alagoano e aos inúmeros amigos que permitiram tantas vitórias. Con-sidero a gratidão a mais nobre das virtudes e a política a mais apaixonante dasatividades humanas.

2BRASÍLIA VIVE UM DOS SEUS MOMENTOS DE GLÓRIA. O clima é festivo e decongraçamento. O Congresso Nacional é o grande ponto de encontro. Milha-

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res de pessoas, de todas as partes do país, circulam em seus gabinetes e corre-dores. A Nação se encontra, no que tem de melhor ou de pior, na AssembléiaNacional Constituinte. Ela não é apenas a esperança de um povo, mas o espe-lho em que a sociedade se reflete; éa fotografia do nosso corpo social. Daí serperfeitamente compreensível encontrarmos, nesse amplo Colegiado, os exem-plos que vão do anarquista – que deseja o caos, para através dele, construir umanova organização sócio-jurídica – ao conservador, que teme modificações abrup-tas da sociedade pelas fatais desestabilizações da ordem; além desses, o mode-rado defensor das mudanças que impliquem em evolução, sem provocar trau-mas sociais. Enfim, as idéias, os anseios, os complexos e as paixões que circulampelo imenso território brasileiro.

Na véspera da instalação da Assembléia Nacional Constituinte, perplexi-dade e preocupação dominaram vários segmentos políticos, com o anúncio deum documento, assinado por mais de uma centena de parlamentares, defen-dendo a tese da Constituinte exclusiva, isto é, com plenos poderes sobre oExecutivo, o Judiciário e o Legislativo, inclusive o recesso indeterminado doSenado e da Câmara dos Deputados, a não-eleição da Mesa Diretora das duasCasas, além dos rumores da extinção imediata do sistema bicameral.

Reuniões prolongam-se pela madrugada. O Senado, por unanimidade,decide eleger sua Executiva composta num grande acordo de lideranças darepresentatividade partidária e empossá-la regimentalmente. O exemplo serveà Câmara dos Deputados. Ulysses Guimarães, alicerçado na Presidência doPartido majoritário, elege-se Presidente da Câmara e da Assembléia NacionalConstituinte.

Discute-se durante quatro dias para se definirem as normas provisóriasque deverão conduzir os critérios para a aprovação do Regimento que nortearáos trabalhos da Assembléia. O povo fica perplexo. Alguns jornais começam amostrar o Constituinte como um “malandro” que leva um tempo enorme adiscutir filigranas ou “o sexo dos anjos” e confrontam os seus subsídios com amédia dos salários do trabalhador brasileiro. Críticas e insatisfações surgem dealguns parlamentares e, também, de setores da opinião pública. Como sempre,a virtude está no meio. Todos têm e não têm razão. É conveniente atentar paraa renovação de cerca de setenta por cento do Congresso. Alguns desses recém-eleitos estão ansiosos para participar, mesmo que seja com alguns gritos queatraiam as câmeras de televisão ou o “flash” das máquinas fotográficas. Estavasentado, numa das sessões, ao lado de uma “raposa” do Senado quando ele,com uma sabedoria maliciosa, me dizia:

– Suruagy, não se pode nem riscar um fósforo, neste plenário, que alguémnão pense que é um fotógrafo e faça logo uma pose para a posteridade.

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Tenho certeza, a experiência o diz, que esse entusiasmo dos primeirosdias passará logo e que o Constituinte elaborará uma Carta que corresponda àexpectativa da Nação. A Assembléia foi um cone vertical dentro da nossa so-ciedade. Quer queiramos, ou não, ela é a imagem do povo brasileiro.

3A ELEIÇÃO DO PRESIDENTE DA ASSEMBLÉIA NACIONAL CONSTITUINTE e o julga-mento, em plenário, da prerrogativa dos Senadores eleitos em 1982 participa-rem da Constituinte revelaram, na minha opinião, a tendência do Colegiado,em buscar, na votação da Casa, o caminho da moderação.

A “anticandidatura” do Deputado Lysâneas Maciel não sensibilizou seuspares. Ele, naturalmente, não esperava vencer, mas, imagino, não esperava umavotação tão inexpressiva.

A proposição do Deputado Roberto Freire, referendada pelo Partido dosTrabalhadores, através de seu líder, Deputado Luís Ignácio Lula da Silva, defen-dendo a tese de que um terço do Senado Federal não podia legislar na AssembléiaNacional Constituinte, suscitou um belo debate. O Senador Fábio Lucena, doPMDB do Estado do Amazonas, com a autoridade política e moral de quem foieleito em 1982 e 1986, defendeu, com muita segurança e eloqüência, o direito deseus colegas. Usou argumentos irrefutáveis. Durante a discussão, surgiu um argu-mento concludente. Promulgada a nova Constituição, ela poderá ser modificadapor emendas oriundas de qualquer Senador, desde que consiga o apoio de doisterços do Congresso. Ora, se o Senador pode alterar a Carta Magna, por que nãopode participar de sua elaboração? É importante frisar que os Senadores de 1982,ao serem eleitos pelo sufrágio popular, estão naturalmente investidos da forçapolítica e ética para atuarem na elaboração do documento maior do país.

Submetido o assunto à votação, o resultado de 394 contra 124 votos, foirevelador.

Acredito que, nos demais impasses, o número de votos deverá sofreralterações relativamente pequenas.

O rumo está traçado. As reformas sociais serão evolutivas, porém gra-duais. Mesmo que o Regime Parlamentarista substitua o Presidencialismo, ogrande desafio da sociedade brasileira no ano de 1987 não está no campopolítico-institucional, e sim, no econômico-financeiro.

4PUDÉSSEMOS CONCEDER UMA FEIÇÃO FÍSICA à Assembléia Nacional Constituin-te, indubitavelmente, ela seria a do Deputado Ulisses Guimarães. Não apenas

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pelo fato de haver presidido os trabalhos do Colegiado, mas por haver conse-guido imprimir as marcas de sua personalidade superior nas decisões maisimportantes do grupamento político, colocando-se acima das paixões parti-dárias, sem perder o comando do maior partido no Congresso Nacional,embora vários companheiros de grande envergadura tenham tentado dimi-nuir sua liderança.

Existe hoje, na sociedade brasileira, um consenso. Nenhum parlamentarseria capaz de coordenar personagens tão heterogêneas na elaboração de umtexto constitucional, num período de transição entre um Estado Revolucioná-rio e um Estado de Direito, com tanta habilidade e firmeza, quanto o DoutorUlysses, um dos caciques do velho Partido Social Democrático, o “Glorioso”na denominação dos seus mais entusiásticos seguidores.

Embora tenha vivido momentos inesquecíveis na presidência do Movi-mento Democrático Brasileiro, simbolizando a resistência civil ao domínio doBrasil pelas estruturas militares, permanece encarnando o espírito da sabedoriamaliciosa, prudente e audaz do pessedismo, intérprete da metodologia do úni-co partido político que conseguiu, em nosso país, possuir o que é muito raro noser humano – imagine numa agremiação partidária –, o senso do limite e osenso da oportunidade.

Deputado Estadual Constituinte em 1947-1951, junto à AssembléiaLegislativa de São Paulo, Deputado Federal em dez legislaturas, Presidente daCâmara em várias oportunidades, Ministro de Estado, permanece um modelode altivez. Sua vida pública sempre foi pautada pelos interesses maiores do país.

Quando o Presidente Castello Branco, apoiado em poderes revolucioná-rios, extinguiu em outubro de 1965, os treze partidos existentes no Brasil eimplantou o bipartidarismo, imaginava estar criando um sistema político ideal.Acreditava que a ARENA e o MDB poderiam se tornar instituições sólidascomo os Partidos Democrata e Republicano, nos Estados Unidos da América,ou o Conservador e o Liberal, na Inglaterra. O grande Presidente esqueceu queagremiações políticas estáveis não são criadas por decretos, e sim, por tradiçõesdefinidas em programas ou em fenômenos transformadores da sociedade. Osistema bipartidário, na verdade, foi uma “camisa-de-força” que agrupou asmais estranhas e diversas personalidades, graças ao artifício enganoso dassublegendas. As lideranças detestavam-se nas bases e mantinham uma falsaaliança na cúpula, determinada pelos interesses junto ao governo central.

Tivessem permanecido os três maiores partidos, o PSD, a UDN e o PTB,solidificados em inúmeras campanhas eleitorais, haveria estabilidade partidária,pois essas agremiações formavam canais naturais às grandes tendências do pen-samento político do mundo contemporâneo.

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Fazendo oposição ao regime revolucionário, o MDB nasceu pequeno. Pou-cos desejavam filiar-se aos seus quadros. Ulisses Guimarães optou pela legendado Movimento Democrático Brasileiro. O partido cresceu em sua presidência.Em alguns instantes políticos, pregou-se até sua extinção. Superou todos osobstáculos e levou o MDB a retumbantes vitórias. A perspectiva da conquistado poder atraiu os oportunistas e aventureiros que tanto descaracterizam aclasse política.

Ulisses Guimarães viveu na Assembléia Nacional Constituinte uma fasemaravilhosa de sua vida. Cercado do respeito e da estima de todos que reco-nheciam as suas virtudes, conseguiu extrapolar as fronteiras da atividade políti-ca e, ficando acima das paixões, transformou-se em patrimônio nacional.

A morte do grande líder, em 12 de outubro de 1992, em condições trági-cas, sublimou sua participação no processo político brasileiro.

5A CONSTITUINTE DE 1987 É A ÚNICA DA HISTÓRIA DO BRASIL que não foidecorrente de uma ruptura das instituições da sociedade. A de 1823 foi umaconseqüência da luta pela consolidação da Independência, declarada no anoanterior. A de 1891 surgiu graças à Proclamação da República. A de 1934 foidecorrente da Revolução de 32, em São Paulo. A de 1937, pela decretação doEstado Novo. A de 1946, pela participação das Forças Armadas brasileiras naderrota do nazi-fascismo na Europa e a conseqüente deposição da fase ditato-rial do período Getúlio Vargas. E a de 1967 é fruto do movimento de 64. Daí,a estranheza de alguns segmentos do nosso corpo social com a tese de que aAssembléia Nacional deve possuir poderes constituintes e ordinários, ficando,assim, acima de todo o sistema de leis do país, isto é, podendo tudo.

A preocupação aumenta quando se presenciam estranhas alianças entrepartidários de grupos conservadores que desejam eleições presidenciais o maisrápido possível, para atender às aspirações de seus líderes, com grupamentosque defendem o raciocínio de “quanto pior, melhor”, para através da destrui-ção dos valores do Estado, erigirem uma nova ordem.

Alguns Constituintes argumentam que a soberania do Colegiado está tãoimplícita quanto o direito de voz e de voto de seus membros. É como se esti-vessem a discutir o óbvio. Mesmo porque, independentemente da inclusão daSoberania em qualquer artigo do Regimento disciplinador das sessões da As-sembléia, a votação da maioria absoluta avocará essas prerrogativas, quando elase faz necessária.

O confronto, no início dos trabalhos, aparentou um desejo de se estabe-lecer quem é quem nas forças que atuam na Constituinte. Duas verdades se

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impuseram independentes do resultado: os blocos ficarão acima das siglas par-tidárias e há necessidade imperiosa de negociações, através do diálogo constan-te não só entre os líderes, mas também entre eles e suas bancadas, a fim de quea nova Constituição esteja à altura dos anseios da Nação e ofereça um senti-mento de que ela não é efêmera, mas, sim, possuidora de perpetuidade dentrodas limitações da fragilidade da ação humana.

6A ELEIÇÃO DE FERNANDO COLLOR DE MELLO para Governador do Estado,em oposição à candidatura de Guilherme Palmeira, por quem fora nomeadoPrefeito de Maceió, interrompeu um seqüenciamento administrativo que seprolongava por mais de vinte anos. Personalidade imprevisível, o novo gover-nador é capaz de gestos de extrema fidalguia e de extrema grosseria em questãode minutos. Em poucos meses, desorganiza-se a estrutura econômica e funcio-nal do Estado. O pólo cloroquímico fica estagnado, e o movimento turístico éfeito pelos donos de hotéis e agências de turismo privados. Destruir é muitomais fácil do que construir. Impaciente com o exercício do dia-a-dia da arte degovernar, pretexta fugas em forma de viagem. Apenas no primeiro ano do seumandato, viajou mais de cem vezes por todo o Brasil, em “jatinhos” alugados.Aceita todos os convites para viajar aos mais longínquos países, levando enor-mes comitivas e hospedando-se nos hotéis mais luxuosos. Enquanto se gastamfortunas em viagens, perseguem funcionários com pequenos salários, rotulan-do-os de “marajás”, generalizando algumas distorções legais. Faz acordo comos grandes proprietários, provocando enormes prejuízos à receita tributária eanuncia, falsamente, para o país, em campanhas publicitárias milionárias, queestá fazendo uma reforma agrária em Alagoas, tomando terra dos ricos e doan-do aos pobres. Jovem, tipo atlético, bem apessoado, sabendo usar como pou-cos a mídia eletrônica, reconheceu os seus erros e fracassos administrativoscomo perseguição e hostilidade do Presidente José Sarney, quando, na verdade,o Governo Federal, segundo parecer do Tribunal de Contas Estadual, transfe-riu, no período, maior volume de recursos do que o arrecadado pelo governolocal. Desgastado, impopular, usa a força policial para conter, violentamente,manifestações pacíficas contra os desmandos da administração. Proíbe, pordecreto, concentrações na Praça Floriano Peixoto, localizada na frente do Palá-cio, negando uma tradição de mais de cem anos, pois aquele logradouro sem-pre foi palco das inquietações sociais do Estado. Ausência de obras, funciona-lismo revoltado com o atraso de três meses do pagamento e desencontro comas principais lideranças empresariais levaram-no a buscar saídas honrosas para

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se desincompatibilizar do governo. Pensa em ser candidato a Vice-Presidente.Emissários sondam os presidenciáveis Ulysses Guimarães e Mário Covas. Nãoencontrando receptividade, deixa o PMDB, o maior partido político do país,filia-se ao Partido da Juventude, depois transformado em PRN (Partido daReconstrução Nacional) e lança-se candidato a Presidente da República. A can-didatura é recebida como uma piada. O governador de um pequeno Estado doNordeste candidato a Presidente é motivo de chacota. A sua vitória quebroutoda a lógica política. Fernando Collor se transforma no maior fenômeno elei-toral do Brasil. Os industriais, os grandes comerciantes e os proprietários ru-rais, assustados com a perspectiva de vitória de um candidato de tendênciaesquerdista, gastaram uma verdadeira fábula em sua campanha. A massa popu-lar, os desempregados, os trabalhadores de salário mínimo, os analfabetos vota-ram, na sua maioria, em Fernando Collor. A classe média, composta de profis-sionais liberais, micro-empresários, funcionários públicos e trabalhadoresespecializados apoiou ostensivamente o candidato Luís Ignácio Lula da Silva.O eleitorado alagoano, descrente do Governo Collor e surpreendido com osíndices de pesquisas de opinião pública dos grandes centros populacionais dopaís, que o colocavam como franco favorito, volta-se confiante em suas pro-messas, esperançoso e na ilusão de que ele, na Presidência da República trans-formaria Alagoas em um paraíso na terra. A decepção tem a mesma dimensãoda esperança. Os ventos, que varrem o Brasil, estão novamente inquietos.

7A PLAZA DE SAN MARTÍN ESTÁ PRATICAMENTE DESERTA. Os fortes ventos e ofrio intenso naquela manhã de junho, em Buenos Aires, afugentam os apressa-dos transeuntes. Sou uma exceção. Admiro, com vagar, o belo monumentocom a estátua eqüestre do El Libertador que os argentinos ergueram em home-nagem a um dos maiores heróis da América do Sul e, por que não dizer, dahumanidade.

O General José de San Martín, responsável maior pelas independênciasda Argentina, Peru e Chile do domínio espanhol, é um patrimônio da grandezahumana. Poderia, caso desejasse, haver-se tornado mais um ditador latino-ame-ricano, como tantos que infelicitaram a história do continente. Reagiu, entre-tanto, às intrigas do poder e aos interesses mesquinhos dos eternos bajuladores,buscando o exílio voluntário em Londres e Bruxelas. Faleceu na França, em1850, aos 72 anos. Leio, no bronze, os nomes das batalhas – São Lourenço,Chacabuco, Maipu e Ayacucho –, que glorificaram o seu nome. Ele está aureoladopela lenda.

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O caminho é protegido pelas sombras das imensas e seculares árvoresque embelezam o parque. Duas garotas, de cinco ou seis anos, bem agasalhadascom roupas de inverno, alimentam os pombos que fazem a alegria da garotada.Um homem, com aspecto de avô, pacientemente as espera, sentado em umbanco de madeira. Namorados envolvidos em seu afeto, corpos entrelaçados,agasalhados pelo amor, ignoram a baixa temperatura.

Os hotéis Plaza e Sheraton, construídos nas proximidades da praça, re-presentam dois estilos, duas épocas, duas influências, dois mundos bastantedistintos. O Plaza simboliza a aristocracia européia, o bom gosto, a tradição. OSheraton representa o novo, a descontração, a riqueza ostensiva.

Continuo a minha caminhada. Saio da área arborizada e contorno a pra-ça. É intenso o tráfego nas Avenidas Santa Fé e Leandro Alem. A Torre de losIngleses domina a paisagem. Ao longo, vislumbro o majestoso rio da Prata.Tenho minha atenção atraída para um enorme mural. Aproximando-me,visualizo, esculpida no mármore, a relação de centenas de nomes dos jovenscaídos na Guerra das Malvinas. Ao meu lado, encontra-se um casal: a mulher,com lágrimas nos olhos, reza em voz baixa; o marido, suponho, postado umpouco atrás da esposa, aguarda, visivelmente emocionado, com um buquê deflores nas mãos. Concebo serem pais de um dos rapazes mortos. Mais de milpereceram em combate. Concluída a oração, depositam as rosas na base domonumento. Afasto-me, respeitando os sentimentos de pesar. Eles saem vaga-rosamente, cabisbaixos, esmagados pelo sofrimento da perda de um filho que-rido. A consciência da inutilidade das guerras domina as minhas emoções. Re-volto-me com a insensatez e a brutalidade humana. O grito de dor de uma mãedeve ecoar mais alto do que o troar dos canhões.

8CONHECER TEOTÔNIO, HAVER CONTADO COM A SUA AMIZADE, ouvido as suasconversas, sentido a sua bondade e aprendido de sua inteligência são fatos quedesejávamos ver sempre repetidos, como se estivéssemos com aquela sensaçãoingrata do momento feliz que se finda.

Revelo meus sentimentos – tantas vezes retidos e comedidos, na política –para dizer o que penso sobre o Teotônio, sobre a amizade que nos uniu e sobreuma personalidade que, antes de mais nada, era inteiriça, sempre a mesma, nassituações e nos momentos mais diversos e mais díspares.

As andanças de um liberal, na pregação permanente da liberdade, se per-dem nos horizontes longínquos de seus bem e integralmente vividos sessenta ecinco anos.

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Boiadeiro, comprando e tangendo gado dos sertões da Bahia e de Sergipe,ao lado de seu companheiro e amigo, o Capitão Gé, seu tio Getúlio BrandãoVilela; corredor de mourão, montado no cavalo “Escravo”; o elegantefreqüentador do antigo Cassino da Urca; o senhor de engenho que resolveufazer a Usina Boa Sorte, e, depois, a Usina Seresta; o político de tantas e tama-nhas destemidas atitudes; o estudante de tantas façanhas no Recife, na Bahia,no Rio de Janeiro e que não conseguiu diploma algum fugindo do enquadramentode uma profissão; o irmão de nove irmãos, o pai de sete filhos, o grande Sena-dor da República, tudo isso desborda menos de uma inteligência privilegiada efulgurante do que da bondade, a toda prova, do coração do Teotônio.

As Andanças pela Crônica, seu primeiro livro, impresso em 1963, são asmesmas Andanças de um Liberal que polarizaram o Brasil inteiro, caminhando oTeotônio pelas mesmas estradas e pelas mesmas veredas, com a mesma ansie-dade e disposição, como se estivesse encourado à procura de um boi bravo, nascapoeiras do Engenho Mata Verde.

Teotônio sempre foi a melhor expressão de alguém presente, mesmo quea chamada na sala de aula da vida tenha retirado o seu nome.

Ser oposição é um dever: ser contestação, a nosso ver, um radicalismoque nada constrói.

A grande diferença entre oposição e contestação, bem sabemos, é a deque a oposição reconhece a existência do fato histórico e, através de críticas esugestões, tenta reformulá-lo.

Já a contestação não reconhece a existência daquele acontecimento, nãolhe concedendo, portanto, qualquer legitimidade.

Foram necessárias, meu caro Teotônio, a solidão e a ausência de apartesem seus primeiros discursos no Senado, para que a Nação Brasileira despertas-se, e o povo aclamasse você como uma das expressões maiores do pensamentopolítico brasileiro.

Chegamos a pensar que muito bem se houve a Providência de Deus emter consentido que o seu impetuoso sentimento de liberdade não lhe tenhadado qualquer diploma, mesmo tendo cursado a Escola Militar e as Faculdadesde Engenharia e Direito.

Deus lhe deu o diploma da vida, onde o sinete de formatura se traduzpela clarividência de seu raciocínio, pela versatilidade de sua cultura, pela bon-dade de seu coração.

Teotônio é desses escritores que não podem ser lidos com a impunidadee a indiferença do leitor diletante. Ao lê-lo, estamos logo ao seu lado, como sefôssemos tocados por um novo despertar de vida que brota da magia, do en-canto e da profundidade de suas palavras e de suas idéias.

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A sua palavra operou uma salutar mobilização nacional e consenso, quetestemunhamos, pela volta ao pleno Estado de Direito, que lhe é creditado pelaquase totalidade do povo brasileiro.

Teotônio era uma figura singular. Encontramos múltiplas facetas em suapersonalidade: empresário; jornalista, orador, cronista, político. Em todas elas,é modelo, e exemplo. Como empresário, implantou um complexo industrialque modificou a paisagem e a economia do município de Junqueiro. Provouaos descrentes que, além de intelectual, era também um homem de sensoprático. Como jornalista, cronista, enfim, escritor, é aquele que pode rivali-zar-se com os mestres do gênero, no Brasil. Encontramos, nos seus escritos,a leveza, a graça, a ironia fina, o estilo superior dos que nasceram para aatividade literária.

Como político lidou com as idéias. Defendeu princípios e não interesses.Raciocinou em função do todo e, dificilmente, em função do indivíduo. Foisempre eleito (e não negava) pelos companheiros dominados pela sua inteli-gência e orgulhosos de sua capacidade. Deputado Estadual, Vice-Governadore Senador da República não possuiu um cabo eleitoral; entretanto, teve umexército a lutar por ele e a conduzi-lo à vitória.

9ASSISTO, NO ART-COPACABANA, a um dos clássicos do cinema italiano, o filme:A Família. Estranhamente, enxergo com dificuldade pelo olho direito. É comose entre mim e a tela existisse uma leve cortina de gaze. Penso ser algumapequena irritação. Ao sair do cine-teatro, compro um colírio na farmácia maispróxima. Coloco várias vezes, por precaução, durante à noite. Observo, no diaseguinte, não haver nenhuma melhora. Estamos em dezembro de 1988. O Riode Janeiro, que se fizera mais lindo, para melhor comemorar o nascimento deJesus Cristo, perde, para mim, todo o encanto. Volto a Maceió. Procuro o oftal-mologista Alan Barbosa. Dilata a pupila e procede a minucioso exame de fundode olho. Constata o descolamento da retina. Sugere que viaje a São Paulo parafazer a cirurgia, com o Doutor Tadeu Cvintal, um dos “monstros sagrados”,em sua especialidade, da medicina brasileira. Alan fizera parte de sua equipe, noperíodo em que residiu na capital paulista.

Viajo em companhia de Luzia e de Alan Barbosa que, gentilmente,prontificou-se a me acompanhar. É o rosto amigo, no mundo de estranhosdo Hospital Santa Catarina. A anestesia me leva, aos poucos, à inconsciênciade um sono sem sonhos. Soube depois que a cirurgia havia durado cincohoras. Ao acordar, encontro-me no mundo das trevas. Os dois olhos estão

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vendados. Sinto-me completamente cego. Entro em pânico. É como se tives-sem me enterrado vivo. O desespero me domina. Tento, com gestos frenéti-cos, retirar as vendas dos olhos. Luzia acode, preocupada. Desesperado, pelacegueira momentânea, peço que me dopem. Volto à inconsciência. Na ma-nhã do dia seguinte, véspera de Natal, Doutor Tadeu e sua equipe, após osexames, mantêm sem venda o meu olho esquerdo, que, por precaução, haviasido cauterizado com raios laser. Enxergar, ver pessoas e objetos, provoca-me um sentimento de renascer.

José Rodrigues Bastos e Dona Letícia me recebem em sua residência, como carinho oferecido a um filho querido. Apesar das amabilidades de que fuialvo, atravesso um período dos mais difíceis que já enfrentei. Impossibilitadode ler e escrever, não podendo fazer o menor esforço físico, dispunha de todoo tempo para pensar e refletir. Concluo que viver sem visão não teria qualquersentido. Perco as ilusões e as vaidades. A luta pela conquista do poder deixa deser objetivo e transforma-se em algo efêmero e vazio. Liberto-me das ambi-ções. Começo a valorizar as pequenas coisas. Ler um bom livro, ouvir músicassuaves, fazer caminhadas solitárias, jantar a dois, cinemas, teatros, viagens, ohoje acima de tudo. O ser bom, justo, solidário, gentil, razões maiores da vida.A paz de espírito, a suprema felicidade.

10ENCONTRO NA SALA VIP DO AEROPORTO DE SÃO SALVADOR, da Bahia de To-dos os Santos e de todos os pecados, o grande romancista brasileiro e suaesposa Zélia Gattai, companheira de tantos acontecimentos, na vida plena deemoções, desse casal encantador em sua simpatia.

Estamos em 10 de setembro de 1992. É uma manhã de quinta-feira. Re-cordam-se da viagem que fizeram a Maceió, em um dos períodos em que go-vernei Alagoas. Jorge Amado proferira palestra sobre Graciliano Ramos, noauditório da Universidade Federal, na Praça Visconde de Sinimbu. Presidi asolenidade. Havendo lido todos os seus livros, foi fácil saudá-lo discorrendosobre os inesquecíveis personagens que sua imaginação criou ou os que ele foibuscar na alma do povo baiano.

As comemorações do centenário de nascimento do Velho Graça condu-ziram o nosso diálogo em torno da figura singular do maior escritor alagoano.Afirma que, em 1933, embarcou num paquete do Loyd Brasileiro, arribando doRio de Janeiro ao porto fluvial de Penedo, no rio São Francisco, em Alagoas. Oobjetivo único era conhecer pessoalmente Graciliano Ramos. Lera os originaisde “Caetés”, tomara-se de entusiasmo e decidira comunicar de viva voz a sua

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admiração. Tinha pouco mais de vinte anos e acabara de publicar Cacau. Che-gou a Maceió, viajando de automóvel o dia inteiro por uma estrada de terra eburacos. Encontrou o romancista em um bar, na Rua do Comércio, no centroda cidade. Foram apresentados pelo crítico literário Valdemar Cavalcanti. Fica-ram amigos. Acompanhou com admiração a vida e a criação literária deGraciliano Ramos. Tornaram-se parentes quando Luiza, filha do escritoralagoano, casou-se com James Amado, irmão de Jorge, que consideravaGraciliano, na intimidade, terno e solidário.

Conhecia muitos fatos da atividade romanesca de Jorge Amado, mas so-mente tive uma noção exata da sua grandeza ao concluir a leitura de “Navega-ção de Cabotagem” que ele, irreverentemente, intitula “apontamentos para umlivro de memórias que jamais escreverei”. Envolvi-me totalmente com suaslutas, viagens, amores, vitórias, decepções, exílio, tristezas, alegrias e esperan-ças. Não conseguia me separar do livro. Apesar de suas quase setecentas pági-nas, li-o em poucos dias. Jorge Amado revela-se não apenas o combatente e ointelectual, mas o homem justo, amigo dos amigos, compreensivo para com osdefeitos do próximo, leal aos seus princípios e batalhador incansável contra oradicalismo, contra a repressão em qualquer atividade humana.

Sabendo-o marxista convicto, fiquei surpreso com a análise que faz doPT. Transcrevo alguns tópicos: A fundação do Partido dos Trabalhadores, em plenoregime militar, me entusiasma. Ele nasceu nos Sindicatos, parido pelas greves dosmetalúrgicos. Auspiciosa notícia. Vamos ter, por fim, pensei, um verdadeiro partido operá-rio, integrado, orientado, dirigido por trabalhadores. Acaba-se o tempo dos falsos partidosoperários, nos quais intelectuais, em sua maioria medíocres e presunçosos, pequenos burgue-ses arrogantes e vazios, ditam ordens com acento portunhol, arrogam-se representantes doproletariado, em seu nome sonham assumir o poder e mandar brasa. Fardam-se com uni-formes de dirigentes revolucionários, consideram-se sábios, arrotam teorias, juram por Marxe Lênin, por Stálin ou Trótsky e Mao, seriam grotescos, se não fossem perigosos. No poder,não há quem os segure. Serão capazes de qualquer estupidez, de qualquer monstruosidade,como está sobejamente provado. Conheci e tratei com muitos desses indivíduos, em escalõesdiversos de poder. Alguns não eram más pessoas, mas estavam todos deformados.

Bati palmas à fundação do PT. Veemente, tomado de entusiasmo, rasguei elogiosnas colunas dos jornais. A ilusão durou pouco. Logo, o PT virou frente de grupelhos e desiglas radicais. Os mesmos subintelectuais, sob o comando de ex-dirigentes stalinistas emaoístas, que perderam toda e qualquer perspectiva política, já não acreditam em nada,são apenas aproveitadores.

Zélia Gattai, autora do best seller “Anarquistas, Graças a Deus”, no qualconta a saga de sua família de imigrantes italianos no início do século XX, emSão Paulo, é o grande amor de Jorge Amado. Ela preencheu a necessidade

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afetiva de Jorge. Juntos percorreram e percorrem o mundo, conviveram com osmaiores escritores contemporâneos, viveram inúmeras aventuras. Ele a consi-dera namorada e cúmplice de tudo que construíram de belo e bom na vida. Emseus oitenta e cinco anos, aprendeu a ser escritor com o povo. Não se julga umliterato. Na verdade, é um sábio da sabedoria do povo.

11ESTAMOS EM MAIO, E O VERDE DA PRIMAVERA DOMINA BERLIM. As árvores ficammais belas, e os lindos canteiros de flores transformam-se em verdadeiras obrasde arte. O sol leva milhares de pessoas às ruas e bosques da cidade. Depois doslongos meses de inverno, homens e mulheres despem-se para melhor se entre-garem aos raios solares. A doação é total e sem reservas. O nu não é imoral naAlemanha. Apolo reina absoluto.

Programo visitar o Museu de Pérgamo no lado oriental de Berlim, sededo governo da República Democrática Alemã (RDA), no Leste Europeu. Atra-vesso o Muro, símbolo da incompreensão humana, em um ônibus turístico.Enquanto os passaportes são examinados, o veículo é rigorosa e eficientemen-te vistoriado. A guia, uma “Frau” aparentando cinqüenta anos de idade, infor-ma a história dos castelos, teatros, universidades e catedrais que tanto embelezama metrópole. Ela fala português com sotaque lusitano. Percorremos a famosaavenida Unter der Linden, palco de grandes acontecimentos do povo prussiano.O acervo histórico-arquitetônico mais importante está em território comunis-ta.

A maioria dos visitantes de museus, em Berlim, é atraída pelo Museu dePérgamo, onde os deuses gregos lutam contra gigantescos celtas. O acesso àcoleção da Ásia Menor é através da imponente Porta de Ister, que formaraparte das muralhas da Babilônia, no século VI antes de Cristo. A porta se carac-teriza pelos animais simbólicos, compostos de tijolos em relevo sobre um fun-do vítreo azul-escuro. Olhando para o altar, você deve conceber que está de pésobre um extenso terraço de mármore, no planalto que orla as praias asiáticasonde se erguia outrora a antiga cidade de Pérgamo. Destruído, praticamente,pelos bombardeios da Segunda Guerra Mundial, o Museu foi recuperado nadécada de cinqüenta, transformando-se em uma das grandes atrações culturaisda Europa.

Retornamos a Berlim Ocidental no fim da tarde. A proximidade do verãotorna os dias mais longos. Entretanto, o tempo mudara. Uma chuva fina, queparecia mais uma garoa, acompanhada de fortes ventos, cai sobre a cidade. Oônibus chega à barreira de Checkpoint Charlie. A fiscalização ainda é mais

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rigorosa para impedir qualquer tentativa de fuga. Um homem, de aparênciajovem, solitariamente apoiado na balaustrada, a tudo assiste. Indiferente à chu-va, deixa-se molhar. Enquanto aguardo a liberação do carro, presto atenção aoseu rosto. Convenço-me de que ele não olha os grupos de turistas e, muitomenos, os guardas. Olha através de nós. Imagino que busca alguém querido noOcidente. A nostalgia do olhar é intensa. Deduzo traduzir a saudade da mulheramada. A consciência de sabê-la tão perto e, ao mesmo tempo, tão distanteaumenta sua angústia. O crepúsculo fica mais nostálgico.

Assistindo, pela televisão, à derrubada do Muro, poucos meses depois,em 9 de novembro, compreendo a louca alegria da multidão na Porta deBrandenburgo. Recordo-me da tristeza estampada naquele rosto anônimo. É aintransigência do radicalismo violentando os seres humanos. Volto, em 1990, aBerlim. Assisto ao momento histórico da unificação da Alemanha. É gratifi-cante presenciar a união de um povo.

12É JANEIRO E A PERSISTENTE CHUVA JUNTO À INTENSIDADE da ventania aumen-tam o rigor do inverno europeu naquela tarde de quarta-feira. Viajávamos deParis a Bruxelas. O Renault-Espace que nos conduz pela magnífica auto-estra-da tem dificuldade em localizar onde se travou a batalha que modificaria osrumos da História Moderna. Chegamos ao Parque de Waterloo através de umaciclovia. Concretizo um sonho da juventude. O presente que recebi de meu paiao completar dezesseis anos foi um livro sobre a vida de Napoleão Bonaparteescrito por Désiré Lecroix, neto de um Oficial do Grande Exército. Napoleãoé retratado apenas em suas virtudes. Tornei-me seu admirador. Tempos depois,já adulto, li várias biografias do famoso general onde ele é apresentado dentrodas limitações humanas. Mas, confesso, a imagem do gênio permaneceu emminha memória.

Deixo-me dominar pelo clima histórico. As emanações do passado sãofortes. Transporto-me para 18 de junho de 1815. O exército francês, inferiorizadoem termos numéricos, é derrotado pelos ingleses, comandados por Wellington,e os prussianos, por Blucher. Era o momento ideal para o herói morrer, à frentede seus soldados. O desejo de negociar uma paz honrosa para assegurar osdireitos do seu filho, Francisco Carlos José, ao reinado de Roma, o conduziu àdegradante prisão, na ilha de Santa Helena, e à morte inglória, aos 51 anos deidade, por envenenamento.

Bonaparte nasceu em uma família de classe média, na cidade de Ajaccio,capital da Córsega. Cérebro invulgar, disciplinamento de vontade, persistência,

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magnetismo, planejamento cuidadoso de suas ações conduziram-no aos pínca-ros da glória, do poder.

O capitão de artilharia Napoleão Bonaparte, aos 24 anos, expulsa os mo-narquistas franceses e parte da esquadra britânica da cidade de Toulon, impor-tante base naval no Sul da França. Cada vitória conquistada significava umapromoção. Em apenas quatro meses, ele passou de capitão a general. Com 26anos, era o comandante-em-chefe de todas as tropas sediadas na Itália em lutacom o poderoso exército austríaco. Transforma homens esfomeados eindisciplinados nos melhores soldados da Europa. Conquista a Itália. Aureoladopelas batalhas é o ídolo do povo francês e, aos 30 anos, é Primeiro Cônsul esenhor absoluto da França.

Derrota repetidas vezes as coligações militares montadas pelas casas reaiseuropéias. É a vitória do talento do homem comum contra o retrógrado direitode nascimento. Desmistifica a superioridade da nobreza. É a consolidação daRevolução Francesa; a ascensão da burguesia.

A ambição desenfreada o conduz a organizar um império. Julga-se umnovo Alexandre, Júlio César ou Carlos Magno. Alia o poder temporal com oespiritual, assinando a Concordata com o Papa Pio VII. Sabe da influência dareligião e reconhece a Igreja Católica. Impõe o reconhecimento da Revolução.Coroa-se Imperador na Catedral de Notre Dame. Casa-se com uma princesaaustríaca. É o auge da glória. Redesenha o mapa da Europa.

O excesso de poder traz, no seu bojo, os germes de sua destruição. É asístole e a diástole dos movimentos humanos. Rememoro a odisséia do grandecorso tomando um conhaque, no Bivouac de l’Empereur, onde ele instalou oQuartel General, hoje um albergue histórico. Napoleão iniciou o processo quelevaria à independência dos povos das Américas Espanhola e Portuguesa. Crioucondições para a unificação da Itália e da Alemanha. Ajudou a fazer dos Esta-dos Unidos uma potência mundial, ao vender-lhes o território da Luisiana.Inspirou o bonapartismo, forma autocrática de governo, que influenciou tan-tos países. Não foi um mero conquistador. Era a genialidade a conduzir desti-nos de nações. Foi um homem-época.

13ACORDO COM DIFICULDADE. O frio de fim de inverno, em Roma, é um convitepara permanecer na cama, principalmente para quem se excedera no vinho aojantar, na Trattoria Meo Pattaca, à noite anterior. O tilintar do telefone é impe-rioso. Atendo. A voz neutra da telefonista informa que são seis horas. Recordo-me que o ônibus da companhia de turismo deverá passar no Hotel Flora, às

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sete. Disponho de apenas sessenta minutos para tomar banho e vestir umaroupa que me agasalhe. Salto do leito aquecido pelo cobertores de lã e enfrentouma chuveirada. Já havia pago o tour à Florença. Tomo o café da manhã norestaurante térreo do hotel.

Aguardo o ônibus à porta do Flora. Observo as tarefas do início de maisum dia de trabalho na Via Veneto. A famosa avenida começa a regurgitar vida.Os funcionários das lojas das grandes griffes internacionais chegam elegante-mente trajados. As mulheres italianas geralmente são muito bonitas. Os gar-çons dos cafés freqüentados por celebridades do cinema e da literatura e quetanto encanto oferecem à cidade arrumam as pequenas mesas na calçada prote-gida das variações climáticas pelos abrigos desmontáveis.

A viagem de ônibus, Roma-Florença, é de duas horas, com uma paradaem um auto-grill, para um ligeiro lanche e compra de suvenires. A maioria dospassageiros é de americanos e japoneses. A guia, uma loura simpática, aparen-tando uns trinta e cinco anos, fornece informações em inglês e espanhol.

A primeira paisagem que nos proporciona da histórica cidade é da PiazzaleMichelangelo, construída na colina de San Miniato, de onde se descortina ummagnífico panorama de Florença em toda sua grandeza. No centro da praça,foi erguida uma cópia, em bronze, da estátua de Davi rodeada por figuras ale-góricas do Dia, da Noite, do Crepúsculo e da Aurora.

Admirando o belo conjunto urbano, às margens do rio Arno, recordo-mede que suas origens se perdem na eternidade do tempo. Fundada pelos etruscos,foi sob o domínio dos romanos que Florença, um século antes do nascimentode Cristo, adquiriu caráter de verdadeira cidade. O seu nome deve-se ao rápidoflorescimento alcançado graças à fertilidade do solo e à posição privilegiada depassagem obrigatória às legiões romanas que conquistaram e dominaram o mun-do por mais de mil anos.

Terra dos Médicis, uma família de príncipes muito rica, que ofereceuvários governantes a Florença e cardeais à Igreja Católica, inclusive papas. Omais notável deles, por haver-se tornado um grande protetor das artes, foiLorenzo, denominado, graças à sua habilidade política, de Il Magnífico.

Berço de gênios como Dante, Boccaccio, Giotto, Michelangelo, Maquiavel,Leonardo da Vinci, Galileu e muitos outros, mereceu o título de Atenas daItália.

Percorremos os monumentos da cidade. A Catedral de Santa Maria delFiore é um símbolo de fé, poder e orgulho. Depois das Igrejas de São Pedro,em Roma, e São Paulo, em Londres, é o maior templo católico. O campanárioe o batistério formam com a Catedral um dos mais belos conjuntos de arteconstruídos pela genialidade humana.

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Somos conduzidos à Galeria Dell’Accademia construída por CosimoMédici para estudo da juventude do grande acervo artístico. Ela foi ampliada,nos fins do século XIX, para permitir a instalação de uma das obras primas deMichelangelo, a estátua original do Rei Davi, em mármore, que estava sendodesgastada pelas intempéries.

Depois de admirar La Pietà de Pegestrina e I Quattro Priggionieri, saioda Galeria em direção da Piazza Signoria, centro político e local das concentra-ções populares de Florença. Diante do majestoso Palácio Vecchio dei Signori,o povo comparecia para tomar conhecimento dos negócios de Estado e dasdeclarações de guerra; assistia às festas do padroeiro São João Batista, às recep-ções a personalidades estrangeiras e à solenidade de condecorações aos heróis.

Transporto-me para o Renascimento. Sinto a força da História. Aquelapraça foi palco dos principais acontecimentos. Dante ali cantou seus versosimortais. O frade Girolamo Savonarola foi enforcado naquele largo, e seusrestos mortais, queimados para servir de exemplo. Em seu vasto espaço,Michelangelo e Leonardo da Vinci viveram momentos de glória. Em caminha-das solitárias no logradouro, Galileu perdeu suas dúvidas e concluiu que a terraé redonda e não quadrada, como seus contemporâneos imaginavam. Maquiavel,ao trafegar pela praça, concebeu sua filosofia política.

O alarido de um grupo de nove ou dez adolescentes liberta-me dos deva-neios. São lindas em sua juventude. Uma delas presenteia-me com um maravi-lhoso sorriso. Joga-se toda naquele sorriso; tem um sabor de oferta total. Gra-ciosamente rodopia e segue seu caminho; o vento faz esvoaçar seus longoscabelos louros. Fico a observá-la. Antes de se perder na multidão, volta a meoferecer um novo sorriso. Ela é um belo quadro emoldurado pelo Pórtico deOrcagna. O cinza da tarde chuvosa, em Florença, desaparece como que pormilagre, e a jovem resplandece em um facho de beleza.

14ENCONTRAVA-ME, NUM FIM DE TARDE, no Café anexo ao plenário do SenadoFederal, quando o Senador Itamar Franco senta-se à minha mesa. Informa-me haver sido sondado por emissários dos candidatos à Presidência da Repú-blica, Leonel Brizola e Fernando Collor, que desejavam ter um líder políticode Minas Gerais como companheiro de chapa. É compreensível o raciocíniodo Brizola e do Collor, pois Minas possui o segundo colégio eleitoral do país.Confessa-me estar em dúvida sobre qual dos convites deverá aceitar. Adver-sário político de Fernando Collor, estimulo Itamar Franco a aceitar o convitede Leonel Brizola.

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Em termos eleitorais, Itamar agiu corretamente. Fernando Collor transfor-mou-se no maior fenômeno, na minha opinião, da História Política do Brasil.Governando um dos menores Estados da Federação, com um eleitorado inferiorao de um bairro da cidade de São Paulo, contribuindo com menos de um porcento à formação do Produto Interno Bruto, ele fundara uma pequena agremiaçãodenominada PRN (Partido da Reconstrução Nacional) e conseguiu eleger-se Pre-sidente da República. Não conheço exemplo igual, em nenhum país.

Possuindo ambos um temperamento forte e dominador, imagino, devater sido bastante difícil o relacionamento de Fernando Collor e Itamar Francodurante a campanha eleitoral. Empossados, tornou-se público e notório odistanciamento entre os dois líderes.

Fernando Collor é afastado do governo e Itamar Franco o assume. En-frentando o maior desafio da sociedade brasileira dos últimos quarenta anos,um dos maiores índices inflacionários do mundo, convida o Embaixador RubensRicupero para o Ministério da Fazenda com a tarefa específica da implantaçãodo Plano Real. O sucesso é absoluto. O êxito tem a mesma dimensão do pro-blema. O Embaixador transforma-se em herói nacional. Lamentavelmente, umainconfidência, em entrevista concedida ao jornalista Carlos Monfort, provocouum escândalo que o levaria a exonerar-se do Ministério.

Itamar Franco convida o Senador Fernando Henrique Cardoso, Ministrodas Relações Exteriores, para assumir a condução da economia nacional. Apopularidade do plano estende-se a Fernando Henrique que, habilmente, a ca-pitaliza, elegendo-se, no primeiro turno das eleições de 1994, Presidente doBrasil.

Itamar Franco é um homem de personalidade complexa, mas, da maiorintegridade, dotado de espírito público e de uma grande consciência social.Convivemos, durante quatro anos, no Senado Federal, quando tive a oportuni-dade de melhor conhecê-lo. Honrou-me com sua amizade.

15O EMBAIXADOR DO BRASIL, NO VATICANO, Afonso Arinos Filho, nos recebecom a tradicional fidalguia dos Melo Franco. Consegue incluir Luzia, Cristina eeu na relação dos convidados especiais para a cerimônia da bênção que o Papa,João Paulo II, às quartas-feira, concede a milhares de fiéis de toda parte domundo, que se encontrem em Roma. Apesar do clima primaveril, de maio de1989, chove bastante na Cidade Eterna. Em virtude do mau tempo, a bênçãopapal é realizada em um belo anfiteatro, na área interna do Vaticano. Fazemosparte do pequeno grupo a quem o Papa cumprimenta pessoalmente. Encontra-

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mos o Deputado Luís Ignácio Lula da Silva e sua esposa. Enquanto aguardáva-mos a chegada de Sua Santidade, conversamos sobre a proximidade das elei-ções presidenciais.

Havia tomado conhecimento da presença do Lula em Roma, através dosprincipais jornais italianos que noticiavam as honras, que lhe são prestadas so-mente concedidas a Chefes de Estado pelo Primeiro Ministro. Alguns órgãosde imprensa o consideram o futuro Presidente do Brasil.

As homenagens oferecidas pelos governos socialistas de vários países daEuropa emprestam-lhe um forte sentimento de confiança na vitória. Recordo-me que menospreza seus prováveis adversários. Refere-se a Fernando Collorcomo sendo um playboy, a quem ele derrotaria com bastante facilidade.

Luzia, até então calada, interfere, pedindo desculpas, para alertá-lo:– Deputado, não subestime Fernando Collor. Ele é muito obstinado. De-

pois que toma uma decisão, segue tenazmente o objetivo estabelecido. Lula responde: – Collor não suportará um debate público. Voltamos ao Brasil. O clima eleitoral domina a nossa sociedade. Inicia-se

a campanha. O PFL lança a candidatura de Aureliano Chaves. Percorro váriasregiões do país, em sua companhia. Convencido do seu espírito público e dosprofundos conhecimentos da realidade brasileira, sou um entusiasta de sua can-didatura. Lamentavelmente, ele é derrotado no primeiro turno. Os dois candi-datos mais votados são Fernando Collor e Luís Ignácio Lula da Silva.

Os grandes órgãos de imprensa, os industriais, os fazendeiros e os jovensmaiores de 16 anos, que haviam adquirido o direito de voto na Constituinte de1988, graças ao apoio dos esquerdistas, votam, em sua esmagadora maioria, emFernando Collor. A classe média, composta de funcionários públicos, profissio-nais liberais, professores e intelectuais, revelam nítida preferência pela candida-tura de Lula.

No segundo turno, não participei ativamente da campanha, mas votei emLuís Ignácio Lula da Silva. Embora não concorde com muitas de suas idéias,tenho-lhe grande admiração. Nascido numa pequena cidade do interior nor-destino, jovem ainda, emigra para São Paulo. Dentro de poucos anos é o maiorlíder sindical do país e, coordenando um Partido composto de várias tendên-cias se transforma, durante mais de uma década, na única opção presidencial deseus correligionários. É digno de nosso respeito.

No primeiro debate pela televisão, na opinião da maioria dos analistaspolíticos, Lula foi vitorioso.

Collor suspendeu todos os seus compromissos e dedicou-se exclusiva-mente ao treinamento para o encontro de forças, em cadeia nacional de televi-são, que ele considerava decisivo.

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Lula encerra a campanha com um comício-gigante, no Rio de Janeiro, àsvésperas do segundo debate. Dorme pela madrugada. Viaja a Brasília para umencontro com os dirigentes da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil.Isso aconteceu às dez horas. Desloca-se de Brasília a São Paulo para o confron-to. Visivelmente extenuado, leva nítida desvantagem.

Os cientistas políticos afirmam que as últimas imagens do debate foramdecisivas à vitória de Fernando Collor. O destino, ironicamente, surpreenderaLuís Ignácio Lula da Silva.

16A TROPA DE ELITE DOS GRANADEIROS DA INDEPENDÊNCIA está postada diantedo Panteão Nacional, para prestar as honras militares ao Presidente do Brasil,José Sarney, que em visita oficial à Venezuela, homenageará, naquela manhã, amemória de Simón Bolívar, o mais universal dos líderes da América Latina. SanMartín, José Bonifácio, José Martí, Luís Alves de Lima e Silva, Francisco Miranda,Bernardo O’Higgins, Sucre e Juarez foram grandes, mas nenhum deles adqui-riu a amplitude do El Libertador, como Bolívar é carinhosamente chamadopelo povo venezuelano.

Os ministros de Estado, os parlamentares, os diplomatas e os empresá-rios que integram a comitiva presidencial brasileira chegam, obedecendo à ori-entação protocolar, trinta minutos antes do Presidente, o que me permite per-correr, tranqüilamente, as dependências do Panteão. É uma verdadeira catedralde civismo. Os restos mortais e as estátuas de Simón Bolívar, Antônio José deSucre, Miranda e a relação das batalhas e dos principais generais do exércitopatriótico ali se encontravam.

Transporto-me para meus tempos de estudante, quando conheci a gran-deza de Bolívar através da história de sua vida escrita pelo biógrafo alemãoEmil Ludwig. José Antônio de La Santíssima Trinidad Simón Bolívar, liberta-dor de cinco Nações – Colômbia, Equador, Venezuela, Peru e Bolívia – nas-ceu em Caracas, em 1783, e morreu na Colômbia, em 1830. Sua família erailustre e abastada. Aos 16 anos foi complementar sua educação na Espanha.Viajou por toda a Europa. Assistiu na Igreja de Notre Dame, em Paris, àcoroação de Napoleão Bonaparte. Deixou-se dominar pela magia do gêniode Napoleão e familiarizou-se com as doutrinas de Rousseau, Montesquieu eVoltaire. Conheceu Alexander von Humboldt. Espírito romântico, jurou, noMonte Sacro, em Roma, que dedicaria a vida a romper a cadeia que nos oprime, opoder espanhol. Recebeu, nos Estados Unidos, os exemplos de uma Democra-cia Republicana.

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Simón Bolívar tornou-se conhecido como a maior expressão de estadistada América Latina. Dotado de uma aura mítica que se consolidou e se agigantouao longo do tempo, seu espírito domina a Venezuela. Ele é, verdadeiramente,adorado em seu país. Homem de pensamento esclarecido, alguns dos seus fei-tos militares possuem um toque genial que o situa ao lado dos grandes capitãesda História. Temperamento forte e autoritário, era, entretanto, um liberal porconvicção filosófica. Num de seus discursos, afirmou: Fugi de um país onde um sóindivíduo exerce todos os poderes. Não é esse, senão, um país de escravos. Chamai-meLibertador da República; nunca serei seu opressor.

O Presidente Sarney, após colocar uma coroa de flores no túmulo deBolívar, na nave central do Panteão, exalta a influência política, em todo ocontinente americano, do Manifesto de Cartagena, da Carta da Jamaica e daMensagem ao Congresso de Angustura, documentos que elevaram Simón Bolívarde um grande cabo de guerra a um político maior, um estadista, com a tese dopan-americanismo.

Emocionado, coloco minha assinatura, em nome do Senado Federal, nolivro de atas que registra a solenidade de homenagem do Brasil ao El Libertador.

A Venezuela possui, atualmente, uma população de quinze milhões dehabitantes, sendo que cerca de quatro milhões moram em Caracas, que é umacidade encantadora, alegre, plena de vida, situada entre montanhas, com umclima permanente de primavera e temperatura oscilando entre dezesseis e vintee um graus centígrados. País rico, é o maior exportador e o terceiro produtormundial de petróleo. A Venezuela enfrenta dificuldades pela ausência de umparque industrial e de uma produção agrícola que atenda às necessidades de seupovo. É uma grande importadora de produtos manufaturados e de alimentosdos Estados Unidos. Banhada pelo mar das Antilhas e pelo oceano Atlânticotem acesso fácil ao Pacífico, graças à proximidade do canal do Panamá. O lito-ral venezuelano, que se estende por quase três mil quilômetros, é muito bonito.

Depois da morte prematura de Bolívar, aos 47 anos de idade, o país viveudécadas entre o sonho de uma democracia estável e a realidade cruel de ditadu-ras caudilhescas. Em 1958, o sonho democrático concretiza-se. Governos elei-tos diretamente pelo povo revezam-se no poder em cada qüinqüênio adminis-trativo. A imagem de Simón Bolívar paira sobre a alma da Venezuela.

17OUÇO A NOTÍCIA PELO RÁDIO DO APARTAMENTO DO HOTEL CALIFÓRNIA. Eraquarta-feira, 19 de dezembro de 1990. Acabara de tomar banho e preparava-mepara enfrentar mais um dia de compromissos no Rio de Janeiro. A voz do

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locutor anuncia a morte do cronista Rubem Braga. Sentimento de perda medomina; foi como saber que uma pessoa amiga havia falecido. O impacto foimaior porque, fiel ao hábito de começar e terminar os meus dias lendo umlivro, lera, naquela manhã, uma crônica que ele escrevera quando correspon-dente de guerra, do Diário Carioca, na Itália. Era como se tivéssemos conversa-do há poucos minutos. Da janela do quarto, diviso a imensidão do mar quetanto cantara em seus escritos. As ondas sopradas pelos ventos entoam em seulouvor. Lembro-me das orações da minha infância e rezo por sua alma.

Ledor incansável de todos os seus livros, imagino conhecê-lo, pois o es-critor sempre se revela naquilo que escreve. Não consegue se esconder, afirmarque a solidão do homem é cheia de detritos, lembranças, pequenos fantasmasque são como objetos inúteis, quebrados, em um porão, nomes riscados emcadernos de telefones, teias de aranha.

Conheci pessoalmente Rubem Braga, quando, ingênuo e leviano, procurei,em 1968, a Editora Sabiá levando, debaixo do braço, uma cópia encadernada domeu primeiro romance, Sua Excelência, o Governador. Ainda hoje, o endereço per-manece em minha memória. Edifício Ike. Avenida Nossa Senhora de Copacabana,860. O objetivo da visita era tentar a publicação do livro. Sou recebido por FernandoSabino que escuta a pretensão. Gentilmente me leva à sala do seu sócio RubemBraga. Explicam que haviam fundado a editora sem razões comerciais, apenaspara publicar os trabalhos deles e de alguns amigos como Carlos Drummond deAndrade, Vinícius de Moraes, Paulo Mendes Campos, Murilo Mendes, Otto LaraResende, Pablo Neruda, Gabriel Garcia Marques. Concebam a ousadia! Vejamem que time queria entrar. Anos depois, Governador de Alagoas, recebo comadmiração Rubem Braga e Millôr Fernandes, em Maceió.

Príncipe dos cronistas brasileiros, na opinião de Manuel Bandeira, conse-gue ser triste e otimista num só pensamento: No dia em que uma mulher descobre queo homem, pelo simples fato de ser seu marido, é seu cônjuge, coitado dele. Mas no meio de tudoisso, fora disso, através disso, apesar disso tudo – há o amor. Ele é como a lua, resiste a todosos sonetos e abençoa todos os pântanos.

Escritor maior, embelezava o cotidiano com seu talento. Observando, àdistância, uma jovem viúva que brinca com o filho na praia, descreve a cena: Omenino ri, jogando água no corpo da mãe que vai buscá-lo. Traz ao colo o garoto já bemcrescido. O esforço faz-lhe tensos os músculos dos braços e das coxas; é bela assim, marchandocom a sua carga querida. Não, a viúva não está de luto, a viúva está brilhando de sol, estávestida de água e de luz.

Vinícius de Moraes esboçou seus traços num poema: Terno em seus olhos de pesca-dor de fundo/Feroz em seu focinho de lobo solitário/Delicado em suas mãos e no seu modode falar ao telefone.

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Desejoso de homenageá-lo, faço alguém feliz em sua memória. Ao pri-meiro pedinte que encontro, ao sair do hotel, entrego, em nome de RubemBraga, uma razoável ajuda em dinheiro e, à noite, jantando no Le Bistrô, ofere-ço ao amante de lindas mulheres, um grande momento.

18DEFINIÇÕES DIVERSAS SOBRE OS CONCEITOS DE AMIZADE têm surgido ao longodo tempo. Na antiguidade, os filósofos gregos, ao estudarem o comportamen-to humano, estabeleceram as normas básicas. Independentemente de critériosclássicos, ouso afirmar que o egoísta, aquele que apenas pensa em si, jamaisconsegue transformar-se em um verdadeiro amigo. Amizade exige lealdade,gratidão, espírito de renúncia, desprendimento.

A atividade política leva-nos a conviver com todas as modalidades decaracteres. A luta pelo poder aguça as virtudes e os defeitos.

Em mais de 30 anos de vida pública encontrei desafetos gratuitos e dedi-cações permanentes. Dentro de minhas limitações, esforcei-me para tratá-loscomo gostaria que eles me tratassem. Dentro das dedicações permanentes, des-taco o nome de uma criatura realmente exemplar. Trabalhamos juntos por maisde duas décadas. Em todo esse longo período, jamais presenciei um gesto queo diminuísse em meu conceito. Nelson Ozório foi um homem superior. Nívelprimário, possuía, no entanto, uma inteligência privilegiada. Sempre tinha umafrase definidora em torno de um fato político ou resultante da análise do cará-ter de alguém. Influenciou muitas das minhas decisões. Algumas vezes me arre-pendi por haver delegado poder a uma pessoa a quem ele, na sua linguagem deapaixonado por brigas de galo, afirmava: – Governador, fulano não tem fibra. Aqui-lo é um galo terranço.

Buscando conscientemente a perfeição profissional, tornou-se um exem-plo concreto da idéia de que quem é bom em qualquer atividade, por mais modestaque ela seja, sempre será valorizado. Quando deixei o governo para assumir adeputação federal, o novo Governador Guilherme Palmeira, o Prefeito deMaceió e três Secretários de Estado, disputaram sua competência como mo-torista.

Faleceu em meados de agosto de 1993, faltando poucos meses paracompletar sessenta anos, vítima de enfarte. O coração havia fraquejado seisanos antes. O trabalhador incansável ficara psicologicamente frágil. Ofereci asolidariedade que se concede a um irmão. Foi enterrado no mausoléu dafamília Suruagy. Poucas pessoas encontrei na minha vida que merecessemtanto o título de amigo.

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19O OBJETIVO DA VIAGEM ERA A EXPOSIÇÃO UNIVERSAL DE 1992, em Sevilha,mas decido permanecer em Madri e fazer, de trem, o trajeto entre a capital e acidade mais importante do sul da Espanha. O percurso que é feito normalmen-te em sete horas, de automóvel, pelo TVA (trem de alta velocidade), inauguradopelo Rei Juan Carlos para facilitar o transporte de milhares de pessoas à Expo/92, se faz em apenas duas horas, com todo conforto e segurança.

Hospedo-me no Hotel Plaza, na acolhedora Praça de España, onde seergue o monumento ao gênio de Miguel de Cervantes, criador das figuras imor-tais do lírico Dom Quixote e do pragmático Sancho Pança. O coração daEspanha pulsa em Madri, e a alma madrilenha espalha-se pela Gran Via; home-nageia Cibeles, a deusa grega da fertilidade; passeia pelos parques do Recoletos,de La Castellana, do Prado; e deixa-se aprisionar na histórica Plaza Mayor,palco de tantos acontecimentos na vida da cidade.

O mundo se encontra em Sevilha. Mais de uma centena de países partici-pam da Expo/92. Os melhores arquitetos, escultores e pintores de cada paísrealizaram maravilhas no campo artístico e da engenharia. Espetacular, festiva,fantástica, contraditória, incrível, fugaz, todos os adjetivos podem ser aplicadosperfeitamente para descrever a última exposição universal do século. Sevilha éuma cidade grávida de história. É uma terra generosa, em que nada se morre, opassado grandioso permanece na memória arquitetônica do estilo barroco. Elajá era grande na época de Júlio César. Don Giovanni e Carmen, óperas que perten-cem ao acervo cultural da humanidade, têm como cenário as ruas milenárias deSevilha. Cristóvão Colombo desfilou sua glória e suas angústias pela cidade.Ela sinalizou o desenvolvimento tecnológico do século XX com a exposiçãomundial de 1929 e baliza o século XXI com a Expo/92. Volto a Madri. Aviagem parece não ser entre distâncias. O trem transforma-se em uma máquinado tempo. Viajamos do futuro para o passado.

À véspera de retornar para o Brasil, vou jantar com Heráclito Rollemberg,no tradicional restaurante Las Cuevas del Conde. Discutindo a carta de vinhocom o maître, somos surpreendidos por um garçom, de aparência inglesa, ofere-cendo sugestões em fluente português, com sotaque brasileiro. Interpelado pornós, explica haver nascido em Curitiba, ter trabalhado em vários restaurantes noParaná, quando casou com uma paulista que conhecera no Hotel Bourbon, emFoz de Iguaçu. Apoiado pela família da esposa, montou um restaurante interna-cional em Campinas. O confisco do governo Collor deixou-o sem dinheiro ecom dívidas que não podia pagar. Poliglota, falando quatro idiomas, deixou aesposa e duas filhas com os sogros e fugiu (como ele disse) para a Europa. Estavatrabalhando clandestinamente, gastando apenas o imprescindível para sobrevi-

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ver, na esperança de economizar o necessário para pagamento dos credores ereabrir seu restaurante. Era compreensível o seu ódio a Fernando Collor.

Caminhando em direção ao Hotel Plaza, naquela noite fria de junho, emMadri, reflito sobre os aspectos positivo e negativo dos efeitos profundos emultiplicadores de uma ação de governo.

20FERNANDO COLLOR, NÃO POSSUINDO A PACIÊNCIA NECESSÁRIA PARA LIDAR, noseu dia-a-dia, com as inúmeras solicitações que a classe política costuma sub-meter ao julgamento do Presidente da República, aceita qualquer pretexto paraausentar-se das tarefas inerentes ao ato de governar.

Apaixonado pelo culto ao físico, transforma a prática da ginástica em uminstrumento de divulgação de sua imagem. Faz da simples subida da rampa doPalácio do Planalto um acontecimento feérico. Tendo conhecimentos rudimen-tares de pilotagem de pequenos aviões, posa de comandante dos complexoscaças-mirage da Força Aérea quando, num vôo teste, fez questão de ultrapassara barreira do som. Viaja pelos principais países do mundo levando suas excen-tricidades. Aproveita o vôo inaugural da Transbrasil, para os Estados Unidos, e,atendendo sua megalomania, faz chegar ao conhecimento da imprensa queaterrissara, em Washington, comandando o enorme boeing. Os seus colegas,chefes de governo, passam a chamá-lo, em tom de pilhéria, Indiana Jones, ofamoso aventureiro, imortalizado por Hollywood. Embriagado pelo poder, jul-ga-se acima do bem e do mal.

Fazendo-lhe oposição, tento alertá-lo, da Tribuna do Senado, para os ris-cos aos quais os seus falsos amigos, ao denegrirem a imagem de seu governo, oestão expondo. Destaco a notícia, segundo o conceituado colunista do Jornaldo Brasil, Zózimo, publicada no respeitado “Financial Times”, de Londres,quando registra o aparecimento de um verbo novo em nosso léxico: o verboalagoar. Conjugar-se-ia este verbo, como se fosse o tradicional lubrificar: se al-guém diz que alagoou determinado projeto, isso significa dizer que ele foi conve-nientemente lubrificado, ou seja, subornado.

Sugiro que aproveite o prestígio do cargo de Presidente do Brasil e trans-forme o verbo alagoar em sinônimo de honradez e dignidade.

A confiança da população na capacidade da equipe governamental sedesgasta com assustadora velocidade, tornando difícil ao Presidente, resgatar opaís do quadro de inércia econômica, social e política.

Revelam-se as frustrações de uma população que se viu atropelada, emsuas justas expectativas, pela execução de planos tão mirabolantes quanto

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meteóricos, que se esfumaçaram antes de produzirem efeitos positivos, apesarde terem provocado danos pessoais incalculáveis.

Promessas, como inflação zero, ampliação do poder aquisitivo, retomadado crescimento, melhoria do perfil de distribuição de renda, foram transforma-das em seus opostos. O país testemunha sua pior recessão, com um aumentoassustador da pobreza.

Fiel ao meu estilo, em consideração a uma amizade que existira no passa-do, faço-lhe críticas restritas aos atos públicos. Nunca, essas críticas foramdirigidas à pessoa do Presidente, nem de seus familiares.

Preocupado em que não se imagine que eu esteja interessado, apenas, emapontar falhas de sua equipe, destaco, por um dever de consciência, dois ho-mens públicos da maior estatura moral, verdadeiros sustentáculos de seu go-verno: o Senador Marco Maciel, líder da bancada governista e o Senador JarbasPassarinho, Ministro da Justiça.

Ofereço-lhe mais uma colaboração, lembrando os ensinamentos da His-tória. Os escândalos, provocados por Rasputin, na Corte do Tzar Nicolau II,levaram à deposição do Imperador e ao trucidamento da família real. O “marde lama”, provocado por Gregório Fortunato, levou o Presidente Getúlio Vargasao suicídio. Aconselho-o a evitar, enquanto lhe é possível, transformar a “pseudo-República das Alagoas” na “República do Galeão”.

Pedro Collor de Mello surpreende o país denunciando a corrupção rei-nante em vários escalões do governo. O Congresso Nacional não pode ficarindiferente aos clamores populares. Não era mais uma denúncia de petistas oude comunistas, nem protestos daqueles que tiveram sua poupança confiscada.Era o próprio irmão do Presidente da República que alertava a população bra-sileira para os desmandos existentes. Foi uma verdadeira bomba que, ao explo-dir, levou estilhaços para todos os lados.

Instala-se uma Comissão Parlamentar de Inquérito. O Senador HumbertoLucena, líder do PMDB no Senado Federal, me convida para integrar a CPI.Sendo adversário político do Presidente, por uma questão de ética, recuso-me aparticipar. A maioria dos depoimentos compromete a autoridade governamen-tal. A “teia de aranha” aproxima-se do Palácio do Planalto.

No dia 29 de setembro de 1992, a Câmara dos Deputados decreta o afas-tamento do Presidente Fernando Collor, empossando automaticamente, o Vice-Presidente Itamar Franco.

O humorista Jô Soares me convida para o seu programa de entrevistas,em São Paulo. Com a inteligência e a jocosidade que o caracterizam, tenta ridi-cularizar Alagoas, atribuindo-lhe a responsabilidade por tudo de ruim e de erra-do que o governo Collor tenha cometido. Esclareço que o Presidente havia

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sido, na prática, eleito por São Paulo, pois isoladamente tivera mais votos doque Mário Covas, Lula, Paulo Maluf, Ulisses Guimarães e Guilherme Afif, acres-centando ainda, que ele não era alagoano, e, sim, carioca.

Em fins de dezembro, o Senado Federal, presidido pelo Ministro SydneySanches, Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, decreta seu impeachment e aperda de direitos políticos durante oito anos.

Recuso-me, a partir daquele momento, a criticá-lo. Enquanto era o pode-roso chefe da nação, sempre o enfrentei. Julgava uma covardia combatê-lo quan-do se afastara do poder.

O Brasil conseguiu, finalmente, romper o padrão latino-americano de saí-da de crises. Fez isso sem convulsões, apesar das grandes e expressivas manifes-tações que se sucederam, de Norte a Sul, numa cobrança pelo respeito à cida-dania. Sem sobressaltos, sem uma gestão sequer que colocasse em perigo asinstituições democráticas, a sociedade promoveu, por meio de seus represen-tantes no Congresso Nacional, o impeachment do Presidente da República. ADemocracia não sofreu solução de continuidade.

21A PRIMAVERA EMPRESTA MAIOR BELEZA A PARIS. Milhares de pessoas desfilampelas ruas milenares da cidade. O verde das árvores e as flores multicoloridashumanizam a famosa metrópole. Os grandes magazines disputam entre si a vitri-na mais bonita. Centenas de barcos navegam no Rio Sena. Os cafés e os restau-rantes estão lotados. A feérica iluminação cria um clima de festa. Em uma noitede sábado, de maio de 1991, presencio o belo espetáculo oferecido pelo encantoda mulher francesa, tomando uma taça de vinho tinto, em um bistrô, no ChampsElysées. Inopinadamente, sou surpreendido pela correria de um grupo de asiáti-cos. Recebi, depois, de um policial a informação de que eram iranianos. Espanca-vam-se com murros, pontapés e cadeiradas. Alguns, já estavam sangrando. Leva-ram, para o exterior, seus conflitos religiosos e políticos. A polícia agiu com rapideze eficiência. Todos foram presos, mas a alegria, pelo menos para mim, fora rom-pida. A selvageria, o ódio com que aqueles “irmãos” se agrediam, mostravam-mede perto a brutalidade do lado animal do homem. A noite ficou triste.

Recordo-me desses fatos, em outubro de 1993, em Berlim, na FundaçãoAlemã para o Desenvolvimento Internacional, quando, ao lado de um grupode russos que ali participava de um seminário, assistia, pela televisão, aos tan-ques bombardeando o Parlamento em Moscou. Constato as divergências. Eramvisíveis em alguns, a angústia e o medo. Em outros, naturalmente partidários deBoris Yeltsin, a satisfação. Chegavam a expressá-la com palmas, indiferentes

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aos sentimentos dos companheiros. A maldade se impunha. Centenas de pes-soas morreram na luta pelo poder na Rússia.

O absurdo maior, no entanto, que está ocorrendo no mundo moderno, éa guerra entre a Sérvia e a Bósnia. Os países que formaram a antiga Iugoslávia,depois da Segunda Guerra Mundial e sob a forte liderança do Presidente Tito,integravam o Império Austro-húngaro até a primeira década do século XX.Aureolado como herói nacional, graças à resistência que comandou contra oinvasor nazista, impôs sua autoridade por mais de quarenta anos, a ferro e fogo.

Recusando-se, com êxito, a ser títere de Stalin, conquistou o respeito dospaíses do Ocidente. Sua morte acentuou as divergências raciais, econômicas,religiosas e políticas.

A débâcle da economia do Leste Europeu provocou um vendaval que le-vou de roldão os governos comunistas. O quadro mais dramático é o da extintaIugoslávia. As vítimas da guerra sobem à casa dos milhares. O pior tipo defanatismo é o religioso. É impossível compreender que, na Europa, no limiardo século XXI, exista um conflito, em que livres atiradores especializam-se ematiradores para matar crianças. Não podemos conceber que alguém seja morto,simplesmente porque professa uma religião diferente da nossa. O ódio e oradicalismo não combinam com a bondade e a compreensão de Deus.

22OS MÚSICOS DA ORQUESTRA HISTORISCHE KOSTUME, do Teatro Wiener MozartKonzerte, estão todos vestidos a caráter, com os trajes típicos dos vienenses dasegunda metade do século XVIII. O som mavioso proporciona um sentimentode que estou a ouvir algo divino. Embevecido, leio o programa do concerto. Aorquestra nos oferece sonatas para piano e violino. A acústica da casa de espe-táculos é perfeita. O silêncio reverencial da platéia é absoluto. Não preciso demuita imaginação para me transportar de maio de 1989 à Austria de 1775. Acapital do império católico austro-húngaro é uma grande meca cultural. Umjovem, criança ainda, surpreende com sua genialidade o mundo europeu. OImperador, a família real, a nobreza curvam-se diante do talento verdadeira-mente genial de Wolfgang Amadeus Mozart.

Nascido em Salzburgo, em janeiro de 1756, faleceu, em dezembro de1791, na cidade de Viena, faltando apenas um mês e dias para completar trintae seis anos de idade. Nesse curto período de vida, presenteou a humanidadecom um legado de mais de seiscentas obras-primas no campo musical. Deze-nas de óperas, sonatas, missas e sinfonias enriqueceram o patrimônio da músicauniversal.

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Escreveu sua primeira ópera aos onze anos. Temperamento instável, in-consciente e inconseqüente, parecia a alguns a encarnação do demônio; a ou-tros, um anjo, um mensageiro de Deus, para oferecer aos míseros mortais umsopro celestial na imensidão do tempo.

Antônio Salieri, o seu maior rival, vivia esse misto de ódio e admiração.Ele, que se julgava um virtuoso, obediente aos mandamentos bíblicos, nãopodia conceber que Deus lhe negasse o que concedia, com tanta prodigalidade,a um irreverente pecador.

Os comentários, entretanto, são irrelevantes quando o mundo homena-geia o gênio de Mozart, no bicentenário do seu falecimento físico, pois perma-nece imortalizado em seu acervo musical.

Concluído o concerto, dirijo-me ao Hotel AM Schubertring. Encerro mi-nha conta e peço um táxi para me levar à estação ferroviária, onde devereiviajar, no expresso noturno, para Munique. Chove torrencialmente em Viena.Entro no carro às pressas. Sento-me ao lado do motorista. É um negro jamaicano.Quando toma conhecimento de que sou brasileiro, chama-me de irmão e colo-ca, no toca-fitas, um cassete com músicas do Caribe. O ritmo gostoso econtagiante do merengue invade o automóvel. Analiso as emoções que estouvivendo. Em questão de minutos, transporto-me do cenário dos séculos XVIIIe XIX, quando gerações de gênios criaram um acervo de obras eruditas jamaissuperado no universo musical, para o Século XX, em que a contribuição daraça negra tem sido marcante na música popular. O jazz, o samba, a conga, arumba, o calipso, o mambo e tantos outros ritmos que a imaginação artísticatem criado. É uma experiência apaixonante. As origens africanas ligam-me fra-ternalmente àquele anônimo motorista, naquela noite chuvosa de fim de pri-mavera, em Viena.

O expresso pára em Salzburgo. O relógio acusa três horas da manhã. Dajanela do trem, observo a estação. Um vendedor solitário oferece, em sua bar-raca móvel, chocolates, refrigerantes e sanduíches. Dois jovens bêbados, senta-dos em um banco, bebem cerveja e cantam canções folclóricas da Bavária.Uma velhinha, aparentando oitenta anos de idade, elegante em seu casaco depele, dirige-se sozinha ao vagão-leito onde me encontro. Temo por ela. Ne-nhum policial à vista. Poderia ser facilmente assaltada. Observo-lhe as feições.O pequeno chapéu que protege sua cabeça do frio de zero grau das montanhasalpinas não esconde as linhas clássicas do seu belo rosto. Os olhos transmitemresolução e autoconfiança. Perco minha preocupação. O condutor, um alemãode quase um metro e noventa, com uma enorme cicatriz na face esquerda, arecebe com deferência. A impressão que me causara de haver sido oficial dastropas de assalto nazistas, desaparece. O longo e nostálgico apito do chefe do

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comboio, autorizando a partida, ecoa pela madrugada. A terra de Mozart per-manece em minhas recordações.

23A GUIA TURÍSTICA EXPLICA AOS VISITANTES a história do Palácio de Sintra, que,em verdade, é a história tragicômica dos reis e das rainhas de Portugal que nelemoraram. Chega ao apartamento que pertenceu a Dom Sebastião e fala umpouco sobre a vida do jovem audacioso, desaparecido enquanto comandava astropas portuguesas na batalha de Alcácer Quibir, em 1578, quando mais forteera sua presença no aceso do combate. Jamais seu corpo foi encontrado. Aindahoje, informa a guia, com um semblante entre risonho e misterioso, diz a lendaque se espera, em toda manhã de forte nevoeiro, o retorno do Rei.

Começo a analisar a influência do gesto romântico e quixotesco daqueleque, aos vinte anos de idade, brava e tolamente, abandonou as suas responsabi-lidades para guerrear na África. Morto, sem deixar herdeiros, deixou o povoportuguês na esperança de sua volta, já que seu corpo não foi reconhecido. Aespera do retorno do Rei passou a ser uma ação política denominada pelosadeptos de sebastianismo. Os anos passaram-se e a descrença domina a popu-lação. A eterna luta pelo poder forma grupos entre os membros da nobreza. ORei da Espanha, Filipe II, filho de Carlos V e primo de Dom Sebastião, usandoo parentesco, arvora-se, com o apoio de um dos segmentos em luta, Rei dePortugal e, conseqüentemente, também do Brasil.

À época, o mundo ocidental estava dividido em duas grandes correntes:a Católica Apostólica Romana e a Protestante. O grande defensor da primeirafora Carlos V, que fundara o Império Espanhol. Liderando os países que ha-viam protestado contra a autoridade de Roma, não reconhecendo a liderançado Papa como Sumo Pontífice, encontrava-se a Holanda. Milhões de pessoasmorreram nas guerras religiosas.

Apesar de ser um país católico e a família real portuguesa estar vinculada àda Espanha por laços de sangue, Portugal une-se economicamente à Holanda. OTratado de Tordesilhas não conseguira diminuir o fosso existente entre os doisreinos pela disputa do imenso território, hoje conhecido como América Latina.

Os engenhos de açúcar, no Nordeste, pertenciam aos portugueses, mas atecnologia do fabrico e a comercialização do produto, através da célebre Com-panhia das Índias Ocidentais, eram dos holandeses. Quando eles tomaram co-nhecimento de que o tradicional inimigo era senhor do Brasil, invadiramPernambuco e a Bahia para defenderem seus interesses econômicos. A impor-tância que emprestaram ao domínio do Nordeste foi tão grande que mandaram

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um dos seus príncipes, Maurício de Nassau, para administrar a conquista. Apresença holandesa em vários estados nordestinos, ainda é muito visível, nãosomente em fortes militares e outros marcos históricos, como também em inú-meras pessoas de olhos verdes e azuis que encontramos em pequenos povoa-dos do sertão. Os portugueses e os povos do Mediterrâneo possuem olhospretos e castanhos.

Expulsos do Nordeste, os holandeses se fixaram nas Antilhas. 27 anosdepois, o Brasil perderia a liderança mundial na produção de açúcar, e a regiãonordestina, o controle político e econômico da Colônia.

Recordo-me que São Sebastião é Padroeiro do Rio de Janeiro, numa ho-menagem que Estácio de Sá, o fundador da cidade, prestou ao lendário Rei.

Observo o sóbrio mobiliário com um respeito venerando. Não existeluxo, nem o supérfluo. O palácio de veraneio é uma fortaleza medieval. Oquarto é de um guerreiro. O frio, no fim da tarde de um dia de dezembro, namontanhosa Sintra, aproxima-se de zero grau. O nevoeiro forma colares bran-cos nas colinas. O crepúsculo lembra o amanhecer. Imagino que Dom Sebas-tião, vestido em sua armadura, cavalga as nuvens, em seu ginete de guerra,mantendo vivo o sentimento da nacionalidade portuguesa.

24A NOITE, EM MACEIÓ, TEM DOIS MARCOS BASTANTE DEFINIDOS. O primeiro de-les foi o Zinga, em meados da década de sessenta. Até então, o dançar somenteacontecia nos clubes sociais, nas residências particulares, em festas de aniversá-rios, ou em cabarés, nas zonas de prostituição.

Era inconcebível à mulher freqüentar, sozinha ou em companhia de ami-gas, a Fênix Alagoana, a União Beneficente Portuguesa, o Aliados, o Tênis, oIate ou qualquer outro clube da cidade. Tinha que estar acompanhada do pai,do esposo, do irmão ou de um amigo da família.

O Restaurante-Boate Zinga, localizado na praia de Riacho Doce, libertoua mulher alagoana dos preconceitos do machismo nordestino. Pela primeiravez em Maceió, duas ou três mulheres freqüentavam, independentemente decompanhia masculina, uma casa noturna. No entanto, o Zinga estava limitadoà alta classe média e à elite financeira. A distância do distrito de Riacho Doceexigia o uso do automóvel, à época, símbolo de riqueza. O alto custo dos pre-ços do restaurante também era outro fator limitante. Barbosinha, o proprietá-rio, muito se orgulhava de possuir todos os tipos de bebidas que somente pode-riam ser encontrados nas casas paulistas e cariocas mais luxuosas.

Eduardo Calheiros, ao construir o Gstaad e o Middô nos anos setenta,revolucionou a noite maceioense. O conjunto compunha-se do primeiro res-

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taurante de categoria internacional e boate privê da capital alagoana. Apoiado,no início, nos modelos do Gallery, de São Paulo e no Hipopotamus, do Rio deJaneiro, a Middô possuía uma clientela de pessoas com elevado nível de renda,o que significa dizer, acima de quarenta anos de idade ou seus filhos. Com otempo, houve um predomínio do grupo jovem, o que afugentou os “coroas”que começaram a se sentir deslocados no meio da juventude, além das diferen-ças nas exigências musicais. A pequena classe média jamais se sentiu à vontadena Middô e, muito menos, teve acesso ao Gstaad.

A Casa da Seresta, embora não tenha tido característica de divisor detempo, possuía algo muito forte. Ela era o ponto de encontro dos mais diversossegmentos da estrutura social de Alagoas: Ricos e pobres, pretos e brancos,velhos e jovens. Alguns, buscam, reviver as emoções agradáveis do passado;outros, a fuga da solidão; todos, a alegria do presente. Era agradável observaros dançarinos. Revelavam-se na maneira de dançar. O exibicionista esquecia teruma mulher em seus braços, concentrando-se na tentativa de conquistar a ad-miração da platéia. A impressão que me domina é que eles pensavam estarparticipando de uma competição esportiva. Os tímidos precisavam do convitede um olhar ou do encorajamento de um sorriso. Os precavidos estudavam asdamas que estivessem sem companheiros aparentes, antes da abordagem. Osromânticos curtiam a integração total. Detalhe interessante é que, algumas ve-zes, as mulheres tomavam a iniciativa do convite.

A Casa da Seresta não foi apenas alegria; principalmente, era a ausênciade preconceitos e complexos, era a democratização da noite.

25TIVE A HONRA E A RESPONSABILIDADE DE PARTICIPAR, durante os últimos oitoanos, dos acontecimentos mais decisivos da vida política nacional, com certezaos de maior relevância para o Congresso, como a Assembléia Nacional Consti-tuinte, o impeachment de um Presidente da República, a CPI do Orçamento e aRevisão Constitucional. Durante esse período, assim como ao longo de trintaanos de vida política, venho esforçando-me para conduzir minha atuação combase nos mais elevados princípios da ética, buscando sempre contribuir para oaperfeiçoamento das instituições democráticas, para a construção de uma Na-ção desenvolvida, soberana e socialmente justa.

A maior alegria, para um homem público, é ver seu trabalho reconheci-do pela sociedade. O reconhecimento do povo de Alagoas, que me prestigioucom sua confiança, conduzindo-me pela terceira vez ao Governo do Estado,constitui, para mim, razão de indisfarçável satisfação e orgulho. Consiste,

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igualmente, em motivo de profunda preocupação. A extensão da minha res-ponsabilidade, maior do que a esperança dos que confiaram em mim paradirigir os destinos de Alagoas, limita-se apenas pela dimensão dos problemasque terei de enfrentar.

Conheço de perto cada problema, cada necessidade geográfica, humana epolítica do meu Estado, que venho acompanhando há muito tempo, no exercíciode várias funções políticas. Sei também que um Estado como Alagoas convive,há muito anos, com um elenco de desafios extremamente amplo para ser enfren-tado com sucesso no limite de uma gestão governamental. É preciso, em primei-ro lugar, enfrentar os desafios que concernem a toda a sociedade brasileira e quetêm estreitamente a ver com a superação da crise. Ou seja, sair da recessão, debe-lar a inflação e modernizar-se, política, econômica e socialmente.

A segunda ordem de dificuldades é também comum a todos os Estadosbrasileiros, porquanto diz respeito às mudanças promovidas pela Constituição de1988 no nosso modelo federativo. De fato, ao mesmo tempo em que consagrouo princípio federativo pelo fortalecimento financeiro dos Estados e Municípios,a Constituição de 1988 não apenas deixou o Governo Federal em posição bastan-te desconfortável, por não haver estabelecido condições institucionais para que oprincípio se materializasse, mas também não eliminou a dependência dos Esta-dos em relação à política de recursos do Governo Federal.

Essa situação só poderá ser alterada mediante o estabelecimento de umnovo pacto federativo que defina claramente a distribuição de competênciasentre a União, os Estados e municípios, eliminando as competências concor-rentes. O passo inicial é estabelecer, por princípio, que uma determinada fun-ção passível de ser exercida pela instância hierarquicamente inferior não deveráser assumida pela instância a ela superior.

Esse assunto nos reporta à terceira ordem de dificuldades a serem en-frentadas pelo Estado de Alagoas, tradicionalmente pobre, subdesenvolvido edependente, se o compararmos com os mais aquinhoados Estados do Sul e doSudeste. As modificações necessárias para tirar o país da crise devem passarnecessariamente pelo crivo da questão regional, sob pena de não se efetivarem.

É preciso também recuperar a confiança do empresariado e da popula-ção, para imprimir à economia um novo padrão de crescimento. A todos énecessário que se acene não só com esperanças, mas principalmente com asegurança de que as regras, claras e bem definidas, serão de fato obedecidas.

É claro que a sociedade continuará desempenhando papel relevante nes-se processo. Sempre se disse que uma das maiores causas da inflação era adesconfiança – ou a quase certeza –, de que as boas medidas econômicas ti-nham motivações exclusivamente circunstanciais, diria até eleitoreiras. A confi-

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ança não se conquista por decreto ou por artifícios de ilusionismo, mas pelademonstração inequívoca de merecimento.

26A CIDADE DE WASHINGTON TORNA-SE MAIS BONITA NO OUTONO. O verde dasfolhas de milhares de árvores transforma-se em um amarelo ouro. Os imensosparques, onde estão localizados os monumentos à memória dos estadistas queajudaram a construir a grandeza dos Estados Unidos, ficam mais belos em finsde outubro, início de novembro. Centenas de turistas visitam o memorial deLincoln e o de Jefferson, deixando-se fotografar diante do obelisco que simbo-liza a verticalidade de caráter do Presidente George Washington. As cerejeirasem flor emolduram a paisagem. A Casa Branca contrasta, em sua simplicidadearquitetônica, com a força econômica da Nação norte-americana. Permanece,entretanto, há mais de duzentos anos, irradiando a magia do poder.

Visitara o Capitólio. O sol da manhã de quarta-feira, 28 de outubro de1992, não consegue dominar o frio de oito graus centígrados. O país está en-volvido em novo pleito presidencial. A reeleição de George Bush está ameaçadapela candidatura de Bill Clinton. O Partido Democrata pretende quebrar ahegemonia de doze anos que os republicanos implantaram quando RonaldReagan derrotou Jimmy Carter. O clima eleitoral é contagiante. Apanho umtáxi defronte à Suprema Corte. Pretendo almoçar no famoso “ Le BistrotFrançais”, na elegante Georgetown. Tenho minha atenção despertada para umadesivo no painel do automóvel, com os dizeres: Bush é bom para os japoneses. Omotorista, um verdadeiro gigante negro, explica que a política externa do Pre-sidente favoreceu à conquista do cobiçado mercado americano para os produ-tos fabricados no Japão, aumentando a recessão e o desemprego. Estava con-vencido da vitória de Bill Clinton. Desde maio que vem fazendo pesquisas comos passageiros e a esmagadora maioria votará no candidato democrata. Mostra,orgulhoso, um recorte de jornal com uma reportagem sobre as suas pesquisas.Interessado em política, sabendo-me brasileiro, pergunta sobre o impeachmentdo Presidente Fernando Collor. Conheceu o Rio de Janeiro e São Paulo emexcursão turística. Informado de que a Câmara dos Deputados, apoiada nasprovas irrefutáveis da Comissão Parlamentar de Inquérito e no clamor popular,havia decretado o impedimento do chefe de governo, por prática de corrupção,e que a democracia não havia sofrido o menor abalo, exclamou entusiasmado:Great ! (fantástico).

Orgulho-me do Brasil. O nosso país ofereceu ao mundo um exemploúnico.

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E s t o r v o

1

PRETENDIA ENCERRAR MINHA CARREIRA POLÍTICA como Senador da República.No meu discurso de estréia, já deixava bem claro este desejo. A eleição doPresidente Fernando Collor de Mello ensejou-me o desejo de permanecer aolado de um pequeno grupo, em Alagoas, que se mantinha em oposição. Asreuniões aconteciam na residência do então Vereador Claudionor Araújo, noLoteamento Bougainville.

A concentração de forças governamentais era verdadeiramente esmaga-dora. Além do Presidente Fernando Collor, enfrentávamos o Governador Ge-raldo Bulhões, noventa e cinco dos cem Prefeitos de Alagoas, incluindo o deMaceió, mais de oitenta por cento dos Deputados Estaduais, a maioria da Ban-cada Federal e a grande totalidade dos vereadores alagoanos.

O pequeno número de oposicionistas não chegava a dez. Era incontesta-velmente, em termos simbólicos, uma luta de Davi contra Golias.

A orientação estabelecida era a de não apresentarmos nenhum candidatoa cargos majoritários, dos oposicionistas com mandatos eletivos, a fim depreservá-los de uma inexorável derrota. Deveríamos buscar o nome de umapessoa apolítica, com grande credibilidade perante a opinião pública, para dis-putar o pleito.

Qual não foi nossa surpresa, quando, um ano e meses depois, esse peque-no grupo já possuía dois candidatos a Prefeito da Capital, ambos com grandeschances de vitória!

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O esforço era de se evitar uma luta entre Teotônio Vilela Filho e RonaldoLessa. O PMDB, contando com bons quadros, reivindica liderar ou integrar achapa oposicionista. Ronaldo aceitava ser vice de Téo Vilela, mas o PMDB nãoconcordava estar ausente do pleito. Várias reuniões são realizadas com o obje-tivo de evitar o impasse, não se obtendo êxito.

Houve três candidatos à Prefeitura de Maceió em 1992: um, pelo governo,o Deputado José Bernardes, e dois pela oposição dividida entre Téo Vilela eRonaldo Lessa. Houve um empate técnico entre os três candidatos, ficando,entretanto, Teotonio Vilela Filho em último lugar. No segundo turno, as opo-sições se uniram, e Ronaldo Lessa foi vitorioso. Participei ativamente da cam-panha ao lado de Téo Vilela, porém, não obtivemos sucesso.

A nova realidade provocada pelos acontecimentos nacionais que tiveram– como não poderia deixar de ser – profunda repercussões políticas em Alagoasme levou a rever a posição de afastamento da vida pública. Minha pretensão eradisputar a reeleição ao Senado Federal. Havendo governado Alagoas em duasoportunidades, conhecendo o quadro caótico da máquina administrativa esta-dual, vítima de péssimos gerenciamentos, não podia possuir nenhuma atraçãopela idéia de voltar a conduzir o destino da terra alagoana. Recebo, entretanto,constantes solicitações de milhares de pessoas oriundas dos mais diversos seg-mentos da sociedade, para retornar ao governo, muitas delas em tom dramáti-co, revelando a angústia popular. Cheguei à conclusão de que não poderia faltara tanto chamamento. Ganhar ou perder passou a ser algo secundário, o impor-tante era lutar. Anuncio a candidatura em uma entrevista concedida aos jorna-listas Flávio Gomes de Barros e Ricardo Mota, na TV Pajuçara. Ocupo todosos espaços na imprensa. A repercussão, como era de se esperar, foi enorme.

Planejo a campanha. A estratégia teve como objetivo criar um forte senti-mento de vitória. O “já ganhou” é negativo em candidaturas proporcionais,mas, nas majoritárias, quando apoiado em verdade, é altamente válido.

O único nome que tinha condições de nos enfrentar, de igual para igual,era o do Senador Guilherme Palmeira. O Governador Geraldo Bulhões tentou,por todos os meios, convencê-lo a ser candidato. Esqueceu que Guilherme e eutemos uma amizade solidificada em inúmeros acontecimentos políticos queenfrentamos juntos. Embora não tenhamos assumido qualquer compromissoformal, sabemos que jamais disputaremos os mesmos cargos. Sempre seremosponto de apoio, um do outro.

Afirmei, em todas as entrevistas concedidas à imprensa, que o difícil nãoera ganhar a eleição, e sim, governar o Estado. O que parecia presunção tor-nou-se realidade. Conquistamos mais de 80% dos votos válidos e ganhamosem todas as urnas eleitorais. O resultado foi recorde nacional.

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É gratificante à alma do político ser depositário das esperanças da esma-gadora maioria do povo que ele, por duas vezes, governou. Mas é bom tambémconfessar ser bastante preocupante.

As informações que recebia da desorganização dos órgãos da administra-ção – direta e indireta – da máquina estadual, lamentavelmente confirmavammeus prognósticos do quadro de dificuldades que iria encontrar.

2AS ELEIÇÕES, EM 1994, NÃO TIVERAM CARACTERÍSTICAS DE DISPUTA, e sim, deuma verdadeira consagração. Embora concorresse com dois engenheiros e umamédica, todos de reconhecida competência profissional, sendo um deles candi-dato do Governador Geraldo Bulhões, e o outro, do Prefeito de Maceió RonaldoLessa, eles não possuíam densidade eleitoral para nos enfrentar.

Os efeitos negativos de natureza econômica já se faziam sentir com muitaagudeza sobre a realidade alagoana. Deixara a folha de pessoal, há nove anos,com pouco mais de quarenta mil funcionários e a encontrava com mais desetenta mil.

O professorado estadual, com o menor salário do país, se encontrava emgreve há vários anos. O alunado da rede pública havia perdido o período letivopor três anos seguidos.

As unidades de urgência e emergência, na área de saúde, se encontravamem greve há mais de oito meses.

A justiça estadual havia decretado paralisação de suas atividades e determi-nado prisões, pelo não cumprimento das sentenças, para vários Secretários deEstado e Diretores dos órgãos da administração direta e indireta do governo.

A máquina administrativa estava praticamente paralisada. Quando essequadro era comparado com o período em que eu havia governado Alagoas,fase em que bati todos os recordes em pavimentação de rodovias, em constru-ção de escolas e de unidades de saúde, realizações de concurso e construção decasas populares, eu levava nítida vantagem.

Acrescente-se a tudo isso o pagamento em atraso do funcionalismo e ofato de nos meus dois governos anteriores anunciar, através de um calendárioanual, o dia exato do pagamento de cada mês subseqüente, fatores que provo-cavam um natural saudosismo na imensa legião de funcionários.

A solenidade de transmissão do cargo do governo revelava com muitanitidez as imensas dificuldades que iria enfrentar. O Governador GeraldoBulhões é vaiado durante o seu discurso. Temeroso de que ele sofresse algumconstrangimento da multidão reunida no “hall” do Palácio e na Praça Floriano

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Peixoto, acompanhei-o até o automóvel, desejando-lhe muitas felicidades. Na-quele instante, orei silenciosamente, para que não vivesse situação idêntica. Bemsabia como a massa é volúvel. Quem aplaude hoje, é o mesmo que vaiará ama-nhã, se seus interesses não forem atendidos. O que vaia hoje é o que aplaudiráamanhã, ao ver suas necessidades satisfeitas. É a eterna busca de um “salvador”.

Em administração pública, não há milagres. O que existe é uma relação decausa e efeito. Quando deixei o governo em 1986, o setor sucro-alcooleiro, omais dinâmico da economia alagoana, era responsável por 56% da formaçãotributária do Estado. Quando assumi, em janeiro de 1995, o setor contribuíacom apenas 4% para a formação da receita estadual. Os demais segmentoseconômicos, quase todos eles recebendo, direta ou indiretamente, os benefí-cios dos recursos provenientes da presença da cana-de-açúcar, diminuíam emmuito sua capacidade de contribuição.

Sabemos que qualquer crise provoca, de imediato, nos setores industrial ecomercial, demissão de servidores e a sonegação ou postergação de impostos,o que naturalmente agrava os efeitos negativos da crise no setor público.

Animava-me, entretanto, a esperança do apoio do Presidente da Repúbli-ca Fernando Henrique Cardoso.

3NÃO QUERO PARECER DRAMÁTICO, não é minha intenção apagar as chamas doentusiasmo que pude sentir durante a campanha, nos encontros que mantivecom as lideranças comunitárias e nos comícios que realizei. Não quero desen-ganar os que estão sincronizados nesta fé de dias melhores. Mas a dura realida-de me obriga a ser realista. Já disse, mais de uma vez, que não tenho compro-misso com o erro. Não sou refém de nenhuma mentira. Desejo manter aautoridade moral que se funda na verdade. Eu nunca disse que fazia milagres.

Alagoas encontra-se em uma fase difícil da sua História. O mais negrodos prognósticos feitos anteriormente estava longe da triste verdade. Ainda hátempo de banir o individualismo egoísta, do “salve-se quem puder”. Confio naenergia da vontade e da abnegação. Confio nos homens públicos compenetradosdo seu dever e os convido para esta cruzada de trabalho transparente. Temos deestar unidos em torno de soluções concretas, com os focos de estrangulamentodetectados, identificados e mostrados ao povo. É em função dessa transparênciaque estou publicando, no Diário Oficial, todos os atos do governo. Não existeesta figura de segredo público. Não me encantam as honras efêmeras do poder.

Estou aqui, na suposição de que posso ajudar o nosso Estado a sair dessequadro de dificuldades, com a minha experiência de vida pública. Mas a obra de

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reconstrução de Alagoas não é tarefa de um homem ou de um grupo. É, istosim, uma tarefa de todos. Todos podem ajudar, desde o consumidor que exigea nota fiscal até o vendedor que dá a nota fiscal antes de ser exigida. O preço doprogresso coletivo é o esforço do conjunto. O governante não pode ser “bon-zinho” com o dinheiro público. Não vamos confundir política comirresponsabilidade. Ela pode ser a mais nobre ou a mais degradante das ativida-des humanas.

Os desajustes, resultantes do desemprego, do abandono da criança, dodesamparo à velhice, da marginalização do deficiente, merecerão, de nossa par-te, a total condenação.

Impossível a liberdade de conviver com a sociedade desigual e conflitante,marcada pela baixa qualidade de vida.

Os interesses coletivos devem ser colocados acima das aspirações pessoais.Precisamos fugir da discordância trágica entre aparência e realidade. A perdado senso comunitário estimula, no homem, suas características mais perversas,inclusive a vontade de explorar os outros.

Alagoas muito está a precisar daqueles, entre os seus filhos, que tiveram oprivilégio de adquirir os conhecimentos indispensáveis ao vencer na vida. Sãomilhares e milhares de seres humanos que não vivem, vegetam. Somos agredi-dos diariamente pelo drama de centenas de crianças que esmolam o direito desobreviverem. Daí a perversidade dos que enriqueceram com a miséria dosdeserdados da sorte.

Esta é uma realidade, para cuja saída se exige pressa, aliada à firmeza, àdeterminação, ao bom senso de servir sem se servir.

4HAVENDO SIDO, DURANTE OITO ANOS, colega do Presidente Fernando Henriqueno Senado da República, existia uma certa intimidade em nosso relacionamento.

Quando consegui convencer o então Senador Marco Maciel, líder dogoverno Collor na Câmara Alta do País, do constrangimento que me domina-va por não seguir sua orientação nos diversos projetos oriundos do PoderExecutivo, que eu achava não serem do interesse nacional, deixei o PFL e,ficando sem Partido, recebo, em meu gabinete, a visita dos Senadores FernandoHenrique e Teotônio Vilela Filho que me convidaram, formalmente, paraingressar no PSDB. Identificado com os princípios da Social-Democracia,admirador de Artur da Távola, Mário Covas, Franco Montoro, José Serra edos Senadores que me convidaram, fiquei tentado a integrar os quadros da-quele Partido.

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Desisti, ao tomar conhecimento de que o Presidente Fernando Collor deMello havia formulado o desejo de que o PSDB compusesse a coligação que osustentava no Congresso Nacional.

O motivo que me levara a deixar o Partido da Frente Liberal, contra avontade do líder Marco Maciel e da totalidade dos membros do Diretório Na-cional, presidido por Hugo Napoleão, do qual eu era o Primeiro Vice-Presiden-te, fora, apenas, a minha postura oposicionista.

Os comentários que circulavam nos bastidores do Senado, eram de queFernando Henrique seria Ministro das Relações Exteriores.

Nessa oportunidade, sou convidado, pelo líder do Partido do MovimentoDemocrático Brasileiro, o Senador Ronan Tito, em companhia do Presidenteda Casa, Humberto Lucena, em nome do Deputado Ulisses Guimarães, parapertencer ao PMDB, o único Partido de centro no Brasil, que, em convençãonacional optara, por maioria expressiva de votos, fazer oposição ao GovernoCentral.

Decidindo aceitar o convite, tive o cuidado de telefonar para Djalma Fal-cão, Presidente do Diretório Regional, em Alagoas, consultando se ele teriaalguma restrição ao meu nome. Pelo contrário, recebi o seu apoio entusiástico.

O PSDB, através da Executiva Nacional, rejeita a proposta do governoCollor pela diferença de, apenas, um voto.

Permanecemos, Fernando Henrique e eu, com um bom relacionamento.Aliás, possuía um ótimo convívio, independentemente de siglas partidárias, comtodos os Senadores.

É interessante destacar que, certa feita, em uma das sessões prolongadasdo Senado, coincidiu que Fernando Henrique sentou-se ao meu lado e, en-quanto ouvíamos os discursos, conversamos generalidades. Defendi o raciocí-nio de que ele seria um bom candidato à Presidência da República e de que oCovas, ao invés de disputar novamente a Presidência, deveria lutar pelo Gover-no de São Paulo. Cheguei a convidá-lo a proferir uma conferência, em Maceió,o que foi referendado por Téo Vilela. Ele atendeu ao nosso convite e fez apalestra, no auditório do prédio da Secretaria da Fazenda. O futuro confirmouo meu vaticínio.

O Diretório Regional do Partido do Movimento Democrático Brasileiro– PMDB em Alagoas decide, formalmente, romper com a candidatura OrestesQuércia e apoiar Fernando Henrique.

Viajo a São Paulo, em companhia de Teotônio Vilela Filho e João Tenório,para confirmar o nosso apoio. Ele nos recebe em seu apartamento, ao lado dedona Rute e de Sérgio Mota. Concedemos, juntos, entrevista à imprensa defi-nindo a composição partidária.

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Tendo obtido mais de 80% dos votos para o Governo do Estado, é claroimaginar que o ajudei na conquista da votação, até hoje recorde, de 75% doeleitorado alagoano que sufragou o nome de Fernando Henrique, em seu pri-meiro mandato, à presidência do Brasil.

5POR COINCIDIR A NOSSA POSSE, no dia primeiro de janeiro de 1995, com aposse do Presidente, e, por não desejar contrair débitos inúteis, recuso-me aalugar um jatinho para viajar à Brasília.

Solicito uma audiência ao Presidente Fernando Henrique. Sou o primeirogovernador a ser recebido pelo Presidente, o que aconteceu no dia quatro, àsdez horas. Conversamos amenidades. Explico a importância da conclusão darodovia BR-101, em Alagoas, no trecho São Miguel dos Campos e Porto Realdo Colégio. Aproveito para enfatizar as imensas dificuldades financeiras queAlagoas está enfrentando. Tranqüiliza-me, oferecendo seu importante apoio.Ao sair, encontro o Governador Miguel Arraes na ante-sala do Gabinete Presi-dencial. Ele me transmite suas preocupações com as finanças de Pernambuco.

Começa a minha via crucis. A idéia primeira era um empréstimo de anteci-pação de receita orçamentária, no valor de cinqüenta milhões de reais, quedeveria ser amortizado, através dos recursos do Fundo de Participação dosEstados, a juros módicos. Caso esta operação houvesse se transformado emrealidade, teríamos pago os quase três salários em atraso, o que nos daria auto-ridade política e administrativa para afastar os funcionários irregulares e puniros faltosos. Na prática, o empréstimo aconteceu no mês seguinte, em fevereiro,no montante de dez milhões de reais a juros exorbitantes, de mais de 100% aoano, para serem pagos em dez meses. Aceitei, pelo quadro dramático que estavavivendo. Mantive contatos com a Diretoria do Banco do Nordeste para tentarconseguir os recursos restantes. O novo empréstimo, de dez milhões de reais,foi a juros ainda mais exorbitantes, de quase 200% ao ano. Por incrível quepareça, os bancos privados nos oferecem recursos a juros mais atraentes.

Sabendo que o mercado internacional estava operando a juros de 7% aoano, tento sensibilizar o Presidente da República para orientar o Tesouro Nacio-nal a permitir a operação com Bancos Japoneses ou Norte-Americanos. O Mi-nistério da Fazenda, após exaustivas reuniões, com a presença de vários mem-bros da Bancada Federal de Alagoas, encaminha o pleito ao Banco Central como seu aprovo. Iniciam-se longas negociações com a Diretoria e os técnicos doBanco Central. Todo tipo de exigências e pedidos de seguranças bancárias sãofeitos ao longo de nove meses.

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Atendendo às minhas solicitações, o Presidente Fernando Henrique, oVice-Presidente Marco Maciel, o Presidente do Congresso Nacional, José Sarney,e o Presidente da Câmara, o Deputado Luís Eduardo intercederam para agilizaro pleito de Alagoas. As mais altas autoridades do país não conseguiram sensibi-lizar os técnicos do Banco Central.

O conceito que gozava junto à imensa maioria da sociedade alagoana estátotalmente desgastado. O atraso do pagamento do pessoal provocou um qua-dro de calamidade pública. Justiça e Polícia Civil em greve, a polícia Militaraquartelada, as unidades de urgência e emergência paralisadas provocavam umclamor generalizado. O estranho é que o Presidente Fernando Henrique jamaisnos convocou para uma reunião com os parlamentares federais de Alagoas e osMinistros da área econômica a fim de encontrarmos uma solução para as imen-sas dificuldades que envolveram o nosso Estado.

6ALAGOAS, POSSUINDO UMA POPULAÇÃO MENOR do que alguns bairros da cidadede São Paulo; contribuindo com menos de 1% para a formação da riquezanacional e tendo apenas nove Deputados Federais num universo de mais dequinhentos parlamentares, tem pouco poder de pressão sobre o centro decisóriodo país. Nega-se, ou dificulta-se, o que se concede, com relativa facilidade, aosEstados mais poderosos da Nação. Lamentavelmente, é a lei do mais forteposta em prática no campo administrativo.

7OS ESTUDOS REALIZADOS ANTES DA MINHA POSSE NO GOVERNO do Estado indi-caram a necessidade da imediata adoção, no âmbito do funcionalismo estadual,de duas medidas de relevante importância: a elevação de padrões vencimentais aovalor do salário mínimo fixado pelo Governo Federal e o reajuste da remunera-ção dos cargos de provimento em comissão. A primeira, por imposição constitu-cional; e a segunda, para corrigir o aviltamento dos valores praticados, entãoincompatíveis com a formação da equipe técnica do governo. Os dois projetos,com custo total estimado em cinco milhões de reais, tiveram o aval dos futurosSecretários de Estado da área econômica, porquanto previam uma elevação dosníveis de arrecadação, logo após a investidura do novo governo. Como medidade cautela, o reajuste dos cargos comissionados foi previsto para implantação emtrês etapas, correspondentes aos meses de janeiro, fevereiro e março/95, sendoque a última foi extinta antes de ser implantada, para contenção de custo.

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O Congresso Nacional, em janeiro/95, fixou em oito mil reais a remune-ração mensal dos Senadores e Deputados Federais, para vigorar na legislaturaseguinte, iniciada em primeiro de fevereiro daquele ano. A fixação elevou emaproximadamente 95% os valores então praticados, em momento de plena es-tabilidade econômica. Em igual percentual, a Assembléia Legislativa Estadualfixou em seis mil reais os novos subsídios dos Deputados Estaduais, com o fitode manter a vinculação constitucional máxima de 75% por cento entre as re-munerações de membro do Congresso Nacional e de Deputado Estadual.

Em virtude das equiparações e vinculações remuneratórias existentes nalegislação estadual, muitas das quais decorrentes de normas constitucionais, oelevado aumento estendeu-se a várias categorias funcionais de todos os Pode-res e órgãos independentes do Estado. Assim, além dos Deputados Estaduais,foram beneficiados com a medida os Secretários de Estado, Magistrados, Mem-bros do Ministério Público, Conselheiros e Técnicos do Tribunal de Contas,Procuradores de Estado, Delegados de Polícia e servidores da Secretaria daFazenda, tanto ativos quanto inativos, inclusive as pensões deixadas pelo exer-cício nesses cargos. O reajuste causou um impacto financeiro mensal de maisde doze milhões de reais.

O novo salário mínimo, a vigorar a partir de Primeiro de Maio de 1995,foi fixado em cem reais, resultante de um reajuste de 43%. A elevação causougrandes dificuldades financeiras para Estados e Municípios, que tiveram demajorar as suas folhas de pagamento para adotar o novo valor, em conseqüên-cia de exigência constitucional. Em Alagoas, o reajuste repercutiu na remunera-ção dos servidores de níveis elementar, médio e superior, ativos e inativos.

Por sua vez, os professores e demais membros do magistério estadual, aolongo do governo anterior, reivindicaram, sem sucesso, padrões remuneratórioscondignos, resultando em greves sucessivas e perdas de anos letivos, pelo alunado.Ademais, o Estado não estava cumprindo a exigência da Constituição Federal,relativa à aplicação de, no mínimo, 25% da receita resultante de impostos, com-preendida a proveniente de transferências, na manutenção e desenvolvimentodo ensino. O justo pleito do magistério teve de ser atendido, o que contribuiutambém para o cumprimento do dispositivo constitucional citado.

Além disso, encargos outros tiveram de ser assumidos por força do cum-primento de decisões judiciais, como a que resultou no reajuste do soldo dospoliciais militares.

A folha que, em dezembro/94, último mês da gestão anterior, era detrinta e cinco milhões e oitocentos mil reais elevou-se, em julho/95, até cin-qüenta e seis milhões e setecentos mil reais, num incremento de 58% ao longodo período indicado.

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Convém frisar que, em função dos números verificados em 1994 e docrescimento vegetativo previsto, os técnicos do governo admitiram que, aotérmino de 1995, a folha poderia atingir o insuportável valor de oitenta milhõesde reais.

Ao tempo em que as medidas acima eram implementadas, providênciasde contenção de custos foram adotadas, através de um rígido sistema perma-nente de controle da folha, que proporcionou a extinção de vantagens cumula-tivas percebidas sob idêntico fundamento, a correção de cálculos de adicionaiscom efeitos cascata, a suspensão de acumulações ilícitas de cargos públicos,entre outras, quer mediante a adoção de procedimentos saneadores, – como oresultante da desconstituição de enquadramentos ilegais efetuados no governoanterior e o que fixou o teto remuneratório –, ou através de outros procedi-mentos que anularam o seu crescimento vegetativo – como a transformaçãodos anuênios em qüinqüênios –, resultando na estabilidade, por cinco anos, dasdespesas a título de adicional por tempo de serviço, o que, por sinal, veio a serem seguida adotado pelo Governo Federal.

Aliás, por falar em crescimento vegetativo, convém frisar que esse fatovem gerando, mensalmente, aumento de 1,5% a 2% nas folhas mensais depagamento de servidores de outros Estados e da União.

Pode-se afirmar com segurança, que a administração da folha de paga-mento verificou-se de forma correta, com muita competência, tanto que o seuvalor máximo fora alcançado em julho/95 e, de lá para cá, graças aos mecanis-mos de controle adotados, vem sofrendo decréscimos continuados, mormenteno âmbito do Poder Executivo. Daí, considerando o resultado do decurso dostrinta e um meses do atual período governamental, Alagoas situa-se entre osEstados que menos elevaram o valor de sua folha de servidores.

8O DÉFICIT MENSAL DE VINTE MILHÕES DE REAIS, que encontrei nas finançasestaduais, exige uma série de medidas drásticas.

Jamais me faltaram vontade política e decisão para reverter a crise insidio-sa, cujos efeitos penalizam, indistintamente, todos os segmentos do corpo so-cial alagoano.

Contam-se às dezenas as medidas que adotei no sentido de incrementar areceita e reduzir as despesas públicas, corrigindo distorções e vícios no serviçopúblico estadual. Destaco algumas: estabelecimento, através de Emenda Cons-titucional, de um teto de salários, aplicável aos servidores dos Três Poderes,com o objetivo de coibir a incidência de supersalários na folha de pessoal;

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desconstituição dos atos de enquadramentos funcionais irregulares; regulariza-ção de vantagens pecuniárias, que estavam sendo pagas sem autorização legal;redução escalonada, em 50%, dos vencimentos dos ocupantes de cargos emcomissão no Executivo; redução, em 20%, dos subsídios pagos ao Governa-dor, ao Vice-Governador e dos vencimentos atribuídos aos Secretários de Es-tado; definitiva extinção da chamada verba de mordomia; desativação das alasresidenciais do Palácio do Governo, em conseqüência de ter continuado resi-dindo, com a minha família, em meu apartamento e custeando as despesas comrecursos próprios; rigoroso cruzamento nas folhas de pessoal, com o objetivode escoimá-las de acumulações ilegais; remessa automática ao Ministério Públi-co de todas as ocorrências que configurassem delitos contra a administração,para as providências legais cabíveis e aumento considerável na arrecadação doICMS, um dos mais expressivos em toda a Região Nordeste.

Nos limites da ordem jurídica, tudo fiz para reverter a situação adversa,retomar o processo do desenvolvimento econômico e garantir o funciona-mento do Governo do Estado na prestação dos serviços essenciais em favorda sociedade.

Deparei-me, todavia, com obstáculos que transcendem à vontade dogovernador, porque incrustados numa legislação estadual casuística e plenade vícios.

Não me foi possível sensibilizar setores poderosos da administração, quepreferiram continuar encastelados em redomas de privilégios, indiferentes aodrama social dos alagoanos.

Sempre entendi que a obra social, para que seja duradoura e produza bonsefeitos, precisa ter caráter solidário. Daí a importância, na sua construção, daparceria indispensável dos Três Poderes, dos seus vários órgãos, das entidadesrepresentativas da sociedade civil e da própria comunidade. Sem nenhum dese-jo de fazer acusações, mas, apenas, para registrar os fatos, é-me imperioso afir-mar que nem sempre contei com a parceria dos demais setores. Desprezando acomodidade de uma tranqüila reeleição de Senador, decidi atender à convoca-ção da quase totalidade das lideranças políticas do Estado e do próprio povoalagoano, para, pela terceira vez, exercer o mandato de governador. Ao aceitaro apelo moveu-me o sentimento de retribuir a confiança que, ao longo de trintaanos de vida pública, recebi da sociedade alagoana. Provindo da classe média esem vínculos com quaisquer oligarquias, galguei os patamares mais altos dapolítica e da administração, no Estado. Nas últimas três décadas, meu nomeestá vinculado às conquistas maiores de Alagoas.

Mais do que depoimentos em causa própria, falam em meu favor as esco-las, os colégios, os postos médicos, os hospitais, as maternidades, as rodovias

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asfaltadas, a implantação do pólo cloroquímico, os conjuntos habitacionais, asadutoras que abastecem as cidades do sertão e do agreste, num acervo de obrasdisseminadas por Maceió e pelo Interior, que, mais do que palavras, testemu-nham a minha postura de inflexível fidelidade ao Estado.

Esse conjunto de obras e realizações constitui as bases de sustentação dodesenvolvimento econômico e social.

No exercício de tão altas investiduras, não corrompi e nem me deixeicorromper, jamais traí os princípios dentro dos quais pautei minha conduta decidadão e de homem público; mantive-me fiel às minhas origens.

Para mim é gratificante registrar o fato de que, após uma vida públicatão longa e plena de vitórias, continuo o homem pobre e simples que semprefui, possuindo como único patrimônio material o apartamento próprio onderesido.

Discípulo e amante da democracia, procurei sempre conduzir-me nos es-tritos limites da ordem constitucional. Infenso às manifestações do ódio, davingança, da intolerância, não persegui, nem pratiquei arbitrariedades.

9O ENCONTRO ACONTECEU NO PALÁCIO DA ALVORADA. O Presidente FernandoHenrique Cardoso convidara todos os vinte e sete governadores do país parauma análise sobre as implicações e perspectivas de aprovação, no CongressoNacional, das reformas constitucionais, nos segmentos previdenciário, admi-nistrativo e tributário.

Recordo-me de uma reunião idêntica, em fevereiro de 1996. O cenárioé o mesmo. Os protagonistas, excluindo eu e o Governador do Mato Grossodo Sul, Wilson Martins, é que são totalmente diferentes. O Presidente daRepública era José Sarney, e o Ministro da Fazenda, Dílson Funaro. Verdadei-ro “gentleman” ao tratar as pessoas, transformava-se em um “messiânico” aoconduzir os assuntos da economia, isto é, saía da causa e efeito, em busca desoluções milagrosas. A cruel doença que minava suas energias contribuiu, emmuito, para oferecer-lhe uma auréola. Não lutava contra o traiçoeiro câncer,mas contra a famigerada inflação que tanto infelicitava o povo brasileiro. OPlano Cruzado foi, para ele, uma verdadeira cruzada, uma batalha contrainfiéis.

O fracasso do Plano e a edição do Cruzado II afetaram sensivelmente suapersonalidade. Não foi mais o mesmo homem. Senti muito a sua morte.

Retorno a 1995. Precisamente, à segunda-feira, 25 de setembro. O Presi-dente Fernando Henrique explica a necessidade de se preservar a estabilidade

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da moeda, através das reformas. O Real, nesta transição do país, passa a termaior significação do que as componentes políticas, econômicas e sociais. Ogoverno aposta tudo no sistema monetário.

Concluída a brilhante exposição (falou mais o didático do que o líder),o Presidente provoca o debate, que se prolongaria por mais de seis horas. Souo primeiro, dos governadores, a pedir a palavra. Raciocino em termos deregião. Sugiro algumas medidas que, imagino, postas em prática, ajudariam adiminuir o fosso entre os Estados ricos do Sudeste e os pobres do Norte eNordeste. Defendo o saneamento das finanças estaduais e municipais, argu-mentando que não interessa ao Brasil uma União forte e Estados e Municípiosfracos. O Presidente Fernando Henrique, gentilmente, concorda com algunspontos de vista que expus.

O Ministro da Fazenda, Pedro Malan, recebe a tarefa de coordenar asnegociações. Ele comunica-me que recebera orientação do Presidente para es-tabelecer prioridade ao Estado de Alagoas.

A racionalidade da economia terá de curvar-se aos desígnios da socieda-de brasileira.

10O OLHAR ERA TRISTE, ACENTUAVA UMA FRAGILIDADE. Estranhamente seu rostooval, formado por traços perfeitos, revelava uma determinação meiga, umaforça suave que despertou minha atenção. Ela, naquele instante, inspirava maisum sentimento fraterno do que uma atração sensual. Alta, aparentemente pos-suía um metro e setenta, loura, cabelos longos e soltos, esbelta, era um beloprotótipo da mulher anglo-saxônica.

Jantava com Heráclito Rollemberg, no restaurante chinês Jade, no EuropeCenter. O início do outono trouxera maior encanto a Berlim. A cidade está emfesta. Comemora setecentos e cinqüenta anos. Milhares de turistas aumentam amovimentação da mais populosa urbe da Alemanha. Concertos de orquestrassinfônicas e de jazz, shows dos mais famosos artistas do mundo, óperas, com-petições esportivas, visitas de Chefes de Estado de vários países animam a vidaberlinense. Conseguir uma vaga nos inúmeros restaurantes, bistrôs e casas deespetáculos da cidade exige paciência e planejamento.

Começo a imaginar a razão da aparente melancolia daquela bela mulher.Talvez um amor frustrado, a perda de um ente familiar querido, algum desejonão conquistado. Ela, entretanto, tinha tudo para ser feliz: juventude, beleza, e,pela elegância no se vestir, também não deveria ter dificuldades financeiras.Qual o porquê da tristeza?

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Conjecturo sobre a complexidade da alma humana e a eterna busca dafelicidade. O sonho de transformá-la permanente, quando o máximo que seconsegue são momentos, instantes felizes. A inquietação do amanhã, a estressanteluta pelo dia-a-dia, lembro-me do sofrimento de milhões de pessoas das re-giões subdesenvolvidas, do número enorme de suicidas nas nações ricas.

Fujo da alegria dominante, em Berlim, e deixo-me invadir pela melanco-lia da encantadora e misteriosa vizinha da mesa. Ela terminou sua refeição esaiu indiferente à nossa presença. Concordo com Heráclito quando afirma que,embora o ambiente permanecesse festivo, um grande vácuo havia surgido.

11VISITO SÃO PETERSBURGO E ESTOU HOSPEDADO no famoso Hotel Astória. Inau-gurado em 1912, era reconhecidamente o melhor da capital do antigo ImpérioRusso. A aristocracia européia desfilava em seus suntuosos salões. Vizinho daCatedral de Santo Isaac e próximo do Palácio e Museu L’Hermitage, testemu-nhou o declínio da família Imperial do Tzar Nicolau II, o assassinato do mongeRasputin, duas guerras mundiais, a Revolução de 1917, o retorno de Lênin, arecepção gloriosa do líder maior dos bolcheviques, na Estação Finlândia, e aconsagração e o ocaso do regime comunista.

Em 1914, São Petersburgo passa a chamar-se Petrogrado (cidade de Pedro,o Grande). Após a morte de Lênin, transforma-se num monumento à sua me-mória, com o nome de Leningrado. Depois da “débâcle” do comunismo, vol-tou a ser São Petersburgo.

Hitler, ao decidir com os seus generais, a invasão da Rússia, estabeleceuSão Petersburgo, por ser um símbolo, como alvo principal. Concentrou suastropas de elite, as famosas divisões Panzers para um ataque arrasador e distri-buiu convites marcando a data para um jantar no restaurante Zímme Sad (Jar-dim de Inverno), do Hotel Astória, comemorando a conquista de Leningrado.O que os nazistas não contavam era com a bravura da população. O cercodurou de outubro de 1941 a janeiro de 1943.

Morreram mais de um milhão de pessoas. Só de fome, mais de quinhen-tos mil. Durante esses quase três anos de tanto sacrifício, os teatros permanece-ram oferecendo normalmente seus belos espetáculos de balé, óperas e concer-tos de orquestras sinfônicas. Mantinha-se alto o moral da comunidade. Não erararo uma bailarina ou um músico desmaiar de fome durante a apresentaçãomusical.

Quando os soldados russos rechaçaram os alemães e invadiram Berlim,encontraram os convites, que Adolf Hitler havia mandado imprimir, (convi-

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dando seu Estado-Maior) para o jantar, em dezembro de 1940, comemorativoda conquista de Leningrado.

Tomo conhecimento de todos esses fatos, narrados com visível orgulhopelo garçom do restaurante Zímme Sad, na noite de 31 de outubro de 1994.São Petersburgo está dez graus abaixo de zero. A imaginação me transportapara o outono de 1941. Fico imaginando o sofrimento de milhões de pessoassem nenhum sistema de aquecimento.

Aprendo algumas lições: o povo extrapola sua capacidade de resistência esacrifício quando acredita numa grande causa; por mais forte que sejamos, nun-ca devemos ser prepotentes; pelo contrário, quanto maior poder, mais humildeno proceder; a humildade engrandece os poderosos.

12A PRAÇA VERMELHA CORRESPONDE À MINHA EXPECTATIVA. As muralhas da for-taleza do Kremlin, a Igreja de Nossa Senhora de Kazan, a Catedral de SãoBasílio e o monumento-túmulo de Lênin formam um dos mais famosos e im-pressionantes conjuntos arquitetônico do mundo.

Gustavo Nunes Leal, brasileiro nascido no Rio de Janeiro, jovem estu-dante de História Russa, que nos acompanha na visita a Moscou, explica que onome Praça Vermelha quer dizer Praça Bonita. Vermelho, no idioma russosignifica beleza, não existindo correlação com a palavra comunismo. Informaque a Igreja de Nossa Senhora de Kazan, destruída durante a febre ateísta,somente foi recuperada graças a um engenheiro que, arriscando a própria vida,mediu e guardou todas as dimensões do Templo, permitindo, assim, areconstituição que, em l99l, foi inaugurada.

A Catedral de São Basílio, patrimônio artístico da Humanidade, só nãosofreu a mesma destruição em virtude da coragem de um arquiteto muito con-ceituado na Rússia, que ameaçou suicidar-se na nave principal da Igreja, casoiniciassem a derrubada no prédio. Ele foi preso, mas conseguiu a preservaçãoda Catedral.

Quando sabemos que Hitler mandou dinamitar Paris, o que não aconte-ceu porque o general que recebeu a ordem teve o bom senso de não cumpri-la,chegamos à conclusão de que o fanatismo e o totalitarismo, independentemen-te de conotação ideológica, têm que ser combatidos, pois representam um pe-rigo à paz mundial.

Gustavo, carioca de Copacabana, interrompeu o Curso de Direito, naUniversidade Federal do Brasil, para estudar a História da Arte Russa. Inteli-gente e culto, falando com fluência oito idiomas, reside há quatro anos em

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Moscou. Vasco Nunes Leal, seu pai, Diretor da Petroquisa, quando tomouconhecimento de nossa viagem ao leste europeu, telefonou para o filho pedin-do que nos recebesse no aeroporto de São Petersburgo. Fiquei íntimo de todoo acervo artístico do Museu L’Hermitage, por seu intermédio. Assisti ao con-certo da Orquestra Sinfônica de Leningrado e ao balé, no Teatro Bolshói, emMoscou, graças à sua profunda sensibilidade. Explica os imensos problemas deordem econômica que a Rússia está enfrentando para modernizar o seu parqueindustrial e melhorar o padrão de vida do povo.

Oferecemos um jantar de despedida, no restaurante do Hotel Metropol,a Gustavo e a sua namorada Florência. O Hotel é o mais luxuoso da cidade.Chefes de Estado, Diplomatas dos mais diversos países do mundo, empresá-rios que estão descobrindo as potencialidades do mercado russo, ali se en-contram. O restaurante europeu está à altura da fama que possui. O ambientemantém toda a tradição aristocrática européia. O teto do salão é belíssimo. Éuma obra de arte. Gustavo e Florência estão naquela fase maravilhosa daaventura do viver. Estão cheios de planos. Hesitam entre Moscou e Antuér-pia. Qualquer que seja a decisão, será o futuro. E como é belo o amanhã paraaqueles que acreditam no futuro!

13JÁ O REPETI MUITAS VEZES E, A CADA DIA, mais me convenço de que governonão é a ação isolada de um homem, nem mesmo de uma equipe. É, isto sim, osomatório de esforços, do qual participam todas as forças de uma comunidade.Vivemos tempos difíceis em Alagoas, no Brasil, quiçá no mundo, e não pode-mos, nem devemos, fugir à responsabilidade de analisar os fatos à luz da sereni-dade que deve nortear os atos conseqüentes.

A crise financeira que assola o Nordeste, vem submetendo os governantesda região, quase que integralmente, às preocupações com disponibilidades decaixa, afastando-os da universalidade de seus deveres, uma vez que, ao Governa-dor de um Estado, além das obrigações constitucionais, cabe a responsabilidadede coordenar e comandar a máquina administrativa, já que é, também, retaguardanatural e permanente dos interesses maiores dos diversos segmentos sociais.

Todas as classes, quer sejam representativas de empregados ou emprega-dores, de natureza econômica, cultural, técnica ou conjuntural, esperam encon-trar no governador, um defensor intransigente de seus interesses e um advoga-do sempre disponível na busca das soluções que venham beneficiá-las.

Guardo, em minha memória, uma das mais sérias crises que enfrentei, emoutra de minhas gestões à frente do Executivo Estadual. Respeitado empresá-

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rio alagoano se suicidara, em conseqüência de enormes dificuldades financeirasque sua fábrica têxtil, localizada em Delmiro Gouveia, estava enfrentando. Ainadimplência era de tal porte que, para a empresa cerrar as portas, nem precisavaque os Bancos credores mandassem executar-lhe o débito. Bastava que lhe fos-sem cobradas as contas de água e de luz. Eu não podia, entretanto, permitir queuma indústria parasse suas atividades, levando ao desemprego centenas de operá-rios, em conseqüência de uma crise conjuntural. Reuni os diretores dos órgãoscredores, em Alagoas, pedi que contabilizassem a dívida e consegui sensibilizaragentes dos Bancos do Brasil e do Nordeste à busca de uma solução que nãoculminasse com a execução. Solicitei, também, que o BNDES coordenasse atransferência do controle acionário para outro grupo, financeiramente mais sóli-do. As “démarches” foram coroadas de êxito. A fábrica não fechou.

14BELO HORIZONTE FOI PALCO DO ENCONTRO de todos os governadores do Bra-sil que atenderam ao convite do Governador Eduardo Azeredo, de Minas Ge-rais, para uma reunião com os Ministros da área econômico-financeira, quandose analisariam as implicações da reforma tributária e, no sentido mais abrangente,a reforma fiscal.

O cenário não poderia ser mais adequado. Foi o quase centenário Palácioda Liberdade. Cheio de História, escreveu mais um capítulo, juntando-o aosmuitos que os seus belos salões já testemunharam na evolução da política bra-sileira.

Os debates acentuam as distorções regionais. Defendi a tese de que oBrasil, em verdade, é um conjunto de quatro países dentro de um só, unidos,milagrosamente, pelo idioma português. A Amazônia, o Nordeste, o Centro-Sul e o Extremo-Sul têm economia, tradição, hábitos e costumes totalmentediferentes. São realidades distintas. Argumentei que é uma grande injustiça tra-tar desiguais de uma maneira igual. Enfatizei o preço cruel que os produtoresnordestinos estão pagando com o prolongamento do período recessivo. Todasas culturas agrícolas da região, o cacau, a cana-de-açúcar, o algodão, o coco, oleite, o feijão, o arroz, enfim todas as atividades econômicas, entraram em crise.A difícil concorrência com os empresários do Sul aprofundou-se com a com-petição do mercado internacional. O coco das Filipinas chega a Maceió maisbarato do que o plantado em Paripueira. O leite em pó, produzido em Batalha,é mais caro do que aquele que vem da Europa. A fábrica de Delmiro Gouveiacompra algodão, no Egito, a preços melhores do que o cultivado em Palmeirados Índios. A conseqüência imediata é a diminuição do giro comercial, com

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implicações diretas na arrecadação do Estado. Expliquei que o brasileiro nãopossui nenhuma tradição de sacrifício coletivo. Prefere a ilusão da inflação doque a realidade da recessão. O tema principal de meu pronunciamento foi adefesa do Nordeste. Os Ministros da Fazenda e do Planejamento, Pedro Malane José Serra, e o da Justiça, Nelson Jobim, propuseram a extinção do impostode exportação, a federalização do ICMS, a transferência, para os Estados, doImposto sobre Propriedade Territorial Rural e a criação de um Fundo de com-pensação para cobrir as perdas estaduais. Debateram, durante quase cinco ho-ras, as críticas e sugestões às teses por eles apresentadas. As dificuldades finan-ceiras, com raríssimas exceções, atingiram o país como um todo. Milhares deconcordatas e falências. Milhões de pessoas desempregadas.

Duas decisões ficaram claramente definidas. A importância doenvolvimento dos governadores junto às bancadas dos seus Estados, no Con-gresso Nacional, e o repensar da estrutura do serviço público, nos três níveis degoverno (federal, estadual e municipal), através da reforma administrativa.

Aproveitei minha viagem a Belo Horizonte, para visitar Aureliano Cha-ves, modelo de político digno e competente.

Assisti, também, no Palácio das Artes, ao lançamento do livro de RonaldoCosta Couto sobre a vida de Tancredo Neves.

Voltando ao Hotel Othon, comecei a conjecturar como a nossa Históriateria sido diferente, para melhor, se Tancredo e Aureliano houvessem exercidoa Presidência da República. Recordo os nossos inúmeros diálogos e as batalhaseleitorais que juntos travamos. Participei de suas campanhas presidenciais. Con-sidero-me um privilegiado por haver partilhado, ao lado deles, o maravilhososonho de um Brasil, sem demagogos e corruptos, pleno de prosperidade ejustiça social.

15RECEBO O CONVITE PARA PARTICIPAR DO JANTAR que o Presidente da República,Fernando Henrique Cardoso, oferece ao seu colega, Luís Eduardo dos Santos,Presidente de Angola. A razão do convite foi a suposição de que a expressivamaioria dos escravos que formou o Quilombo dos Palmares era oriunda daregião angolana.

O evento aconteceu no Ministério de Relações Exteriores, na minha opi-nião, o mais belo dos edifícios de Brasília, por reunir os traços futuristas daarquitetura de Oscar Niemeyer, com o magnífico acervo artístico do Itamarati.

Ouvindo os discursos dos dois Presidentes, começo a refletir sobre aepopéia do Império “Ultramarino” de Portugal e seu desmembramento, que

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começou com a independência do Brasil e ultimou-se com as perdas das colô-nias africanas.

Milhares de angolanos morreram na luta pela libertação da sua terra. Oterritório foi palco do confronto entre o capitalismo e o marxismo. As super-potências manobraram seus cordéis, na África, em torno da insensata busca dopoder mundial. Os interesses internacionais e os conflitos tribais provocam ohorror da guerra civil. O número de mortos aumenta assustadoramente.

A metrópole portuguesa pagou um preço muito alto por sua políticacolonialista. A humilhação das forças armadas, com a derrota no continenteafricano, gerou, em abril de l974, a Revolução dos Cravos. A mola propulsorafoi a vontade obstinada de um grupo de homens, unidos pela atração dopoder.

Angola, atualmente, vive um período de paz. O que parecia impossíveltornou-se realidade graças a um inteligente acordo político. É, porém, impor-tante atentar que uma paz de desigualdade não pode proporcionar resultadospositivos. Apesar dos pesares, erros podem ser corrigidos pela boa vontade.Devem-se evitar as soluções de força. A unidade só pode resultar de um proce-dimento simples e objetivo.

O Presidente Luís Eduardo dos Santos, ao despertar as energias do seupovo, convenceu o país da grandeza do seu destino.

16UM DOS MAIORES DANOS CAUSADOS PELAS INJUSTIÇAS SOCIAIS é fazer as pessoasinjustiçadas acharem que o trabalho é uma coisa odiosa, um estigma de servi-dão. Mas quem pensar assim se equivoca, pois o trabalho é o único instrumen-to capaz de corrigir todos os males sociais, inclusive as injustiças. Tudo o queexiste de bom e de belo no mundo é fruto do trabalho. Todas as grandes epo-péias, todos os grandes feitos têm no trabalho a grande força realizadora. Édever de cada geração aumentar esse capital acumulado. Cada um de nós tece oseu destino, colhe o que planta. Com trabalho, qualquer pessoa progride e plan-ta para o futuro, porque, se utilizar bem o dia de hoje, certamente dependerámenos do dia de amanhã.

Uma fórmula criada pela ociosidade atribui tudo à boa ou à má sorte. Émuito cômoda essa atitude passiva, que elide a responsabilidade social do tra-balho. Mas tem o defeito de negar a liberdade e o livre arbítrio, que diferem ohomem do animal. Com o passar do tempo, tal comportamento foi sendo com-batido. O homem foi impelido a banir esse modo de pensar ou – pelo menos –esse modo de agir, quando passou do isolamento para a associação, pois, se o

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egoísmo é danoso ao indivíduo em sua vida familiar, é ainda mais funesto àcoletividade, nas suas relações inter-subjetivas. É que o egoísta se crê, sincera-mente, superior aos outros. E, quando pessoas assim podem impor suas vonta-des, esse zelo sagrado na defesa de privilégios acaba gerando a discórdia, adisputa social e a luta de classes.

17ORGULHAVA-SE, COM JUSTA RAZÃO, de ser o político brasileiro com o maiornúmero de mandatos consecutivos. Baiano, de São Salvador, iniciou sua longacarreira, elegendo-se Deputado Estadual em sua terra. Durante quase sessentaanos, foi eleito Deputado Federal pela Bahia e pelo Rio de Janeiro. Os cariocas,dominados por seu espírito público, elegeram-no, por três vezes, Senador daRepública. Vivemos juntos o seu último mandato.

Cheguei, em 1986, ao Senado Federal. Nelson Carneiro fazia parte, aolado de Afonso Arinos, Luís Viana, Josaphá Marinho, Roberto Campos, DarcyRibeiro, João Calmon e Jarbas Passarinho, do pequeno e seleto grupo dos “mons-tros sagrados” da Casa.

Adquiri o hábito de freqüentar os gabinetes, sob os mais diversos pretex-tos, desses líderes a quem aprendi a admirar desde os meus tempos de estudan-te. Eu ainda estava na adolescência, e eles já eram nomes nacionais.

Interrogava-os sobre os inúmeros acontecimentos da História do Brasilde que foram protagonistas ou testemunhas privilegiadas, nessas últimas cincodécadas. Guardo recordações inesquecíveis desses diálogos. Esquecia que éra-mos colegas e colocava-me na posição de discípulo.

Aproximei-me mais de Nelson Carneiro na época em que fui secretárioda Mesa Diretora durante o biênio em que ele presidiu o Senado. Tive a opor-tunidade de dimensionar a sua enorme cultura jurídica e o seu talento político.As nossas reuniões, às quartas-feiras, acentuaram o nosso companheirismo eaprofundaram a nossa amizade.

Tomando conhecimento, através da televisão, da morte do estimado lí-der, transportei-me, emocionalmente, para aquela que era o grande orgulho desua vida: Laura, a filha única.

Participei de um Seminário na Alemanha, com a então Vereadora peloRio de Janeiro, depois, Deputada Federal. É uma amiga muito querida. Elapossui a mesma intensa paixão pela política que tinha o seu pai, aliada ao en-canto de ser mulher.

Nelson Carneiro pontifica no cenário nacional, como um dos mais cultose atuantes membros da História do Parlamento Brasileiro.

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18TODO HOMEM BEM-SUCEDIDO, ou que tem pretensões ao sucesso, sabe que achave do êxito está na atitude mental de cada um diante dos desafios diáriosque a vida impõe. Por analogia, e porque o sucesso coletivo é apenas a soma dosucesso individual, pode-se dizer que o progresso de um povo está igualmentecondicionado à aludida atitude mental, isto é, depende da sua disposição peran-te os obstáculos.

O ser humano é dono de seu destino. Ninguém está condenado à pobre-za, à miséria, ao fracasso. Mas só os que amam o trabalho árduo têm o direitode exigir a sua parte de grandeza. Cada um deve apoiar-se nos seus própriospés. Quem trabalha, sempre tem oportunidade de progredir. E não é precisomudar aptidões. Cada um é o que é. Ninguém pode alterar a sua natureza, mastodos podem melhorá-la. E não se dêem ouvidos aos negativistas, nem aosapóstolos do infortúnio. O tempo que se dedica ao trabalho nunca é perdido.

19DIFÍCIL SERIA DIZER SE O EGOÍSMO É inerente à condição humana ou se é umadoença traumática que se adquire na luta pela vida. Seja o que for, o fato é queesse hábito de gostar demais de si mesmo, sem pensar nos outros, é a maisgrave de nossas fraquezas, porque, desde o alvorecer da civilização, está na raizde todos os nossos males.

Mesmo sem o otimismo alvar dos tolos, é fácil comprovar que não somos,embora pareça, uma gente sem memória. Mesmo quando o negativismoextrapola os limites dissimuláveis de má vontade, talvez sejam válidas e oportu-nas algumas recomendações de prudência no uso da liberdade de dizer aquiloque não se pode provar. Sabemos que a nossa liberdade termina onde começaa liberdade do nosso próximo. Afinal de contas, deve haver um limite, mesmopara a insânia, pois uma campanha de meias-verdades ou de obstinada negaçãoa tudo o que já conquistamos pode ter reflexos mais graves do que os riscoscalculados da convivência democrática.

20AO LONGO DE MINHA VIDA PÚBLICA, JAMAIS IMAGINEI que tivesse de enfrentaruma situação financeira tão caótica quanto a que nos deparamos, ao assumirpela terceira vez o governo.

Por convicção pessoal, comprovada numa vivência que vem atravessan-do os tempos, sempre elegi como prioridade de anteriores administrações, aten-

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der às naturais exigências dos servidores públicos que, em análise final, sãoresponsáveis pelo funcionamento da máquina estatal, sem solução de continui-dade, mercê das mudanças de direção que a alternância do poder, característicados regimes democráticos, impõe ao topo das pirâmides administrativas.

Assim entendendo e buscando sanear as finanças de Alagoas, vi-me dedi-cando tempo quase integral à busca de soluções, que sempre esbarravam numasérie de imprevistos, em coisas quase imponderáveis, em dificuldades que têmo seu nascedouro na própria situação financeira em que se encontra o país.

Foi preciso e absolutamente necessário, como já afirmei em outras opor-tunidades, conforme testemunho de toda a comunidade, apelar para medidasextremas a fim de que Alagoas não perecesse numa falência, por todos os títu-los, inconseqüente.

Não há por que discutir que um Estado não pode existir, apenas parahonrar a folha de pagamento do funcionalismo.

Sem outras medidas de incremento à produção de bens e serviços, de umracional andamento das obras e das providências, geradoras de riquezas, o pró-prio pagamento da folha tornar-se-ia inviável, porque lhe faltaria o aporte derecursos necessários à sua execução.

Daí por que não vacilei um só momento, mesmo contrariando a minhaformação, em tomar medidas drásticas para compatibilizar a despesa com areceita.

As dificuldades existem para serem superadas, e não desfaleceu, em mo-mento algum, a minha esperança de que a normalidade voltaria e teria a felici-dade de reencontrar-me comigo próprio, como das outras vezes, quando tive ahonra de administrar Alagoas.

Reiteradas vezes, informei os alagoanos das providências nem sempresimpáticas, que nunca deixei de tentar em benefício da governabilidade e, te-nho certeza, a comunidade saberá reconhecer o muito que conseguimos reali-zar, com a marca registrada da honestidade e da transparência, apesar das difi-culdades e dos poucos recursos disponíveis.

Podemos destacar a área de saúde, bem melhor do que encontramos; oscento e noventa mil alunos da rede pública, concluindo o ano letivo; agriculto-res municiados com mil e duzentas toneladas de sementes que produziram umadas maiores safras dos últimos anos; adutoras sendo concluídas; o turismo emalta como decorrência de várias providências acertadamente adotadas; o Par-que da Pecuária restaurado; os grandes vultos de Alagoas reverenciados nasações da Secretaria de Cultura; um DETRAN moralizado, servindo de parâmetroa Estados vizinhos; o Pólo Químico transformado em multifabril e adequado asediar as novas indústrias, das quais doze projetos já foram aprovados pela

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Secretaria da Indústria e do Comércio para próxima implantação; as estradasdo interior que recebem banho de asfalto para mais facilmente carrear sua pro-dução à capital; a assistência que as prefeituras voltaram a receber, através daSecretaria Metropolitana que, nos últimos doze meses, teve a função deintegradora municipal, além de centenas de atitudes moralizadoras exercidas,sempre com divulgação, nos vários setores da administração estadual.

Com esse saldo, iniciamos o novo ano na expectativa de melhores dias,certos de que, se não realizamos tudo aquilo a que nos propuséramos, pelomenos estamos com a consciência tranqüila, por havermos esgotado todos osesforços, no sentido de fazermos o melhor que pudemos. E isso já é muito.

21ENCONTRAVA-ME ANGUSTIADO. O pedido de empréstimo externo, que haviasido aprovado pelo Tesouro Nacional, estava há praticamente nove meses noBanco Central, e a autorização para concretizá-lo ainda não fora concedida.Sou procurado pelo Secretário da Fazenda, José Pereira de Sousa, perguntan-do se poderia receber dois representantes do Banco Divisa que desejavamconversar conosco a respeito da possibilidade de colocar títulos de Alagoas nomercado.

Desejoso de encontrar saídas à catastrófica situação em que nosso Estadose encontrava, provoco um encontro, no gabinete da presidência da Companhiade Água e Saneamento, com a presença do Vice-Governador, Manoel Gomes deBarros, do Presidente da Assembléia Legislativa, Antônio Albuquerque, do Pro-curador-Geral do Estado, Marcelo Teixeira, do Subprocurador, Evilásio Feitosa,do Presidente do Tribunal de Contas, Isnaldo Bulhões, do Deputado João Neto,líder do governo, do Secretário do Planejamento, Jorge Toledo e do Secretário daFazenda. Os emissários do Banco carioca explicam detalhes da operação quehavia sido feita com a Prefeitura de São Paulo e outros Estados e Municípios dopaís. Questionamentos são levantados e debatidos. Aprova-se a idéia. Solicito queo Banco Divisa formalize, por escrito, a proposta.

Recebendo o ofício, dias depois, encaminho mensagem à AssembléiaLegislativa, solicitando delegação de poderes à Secretaria da Fazenda para pro-ceder às medidas legais compatíveis com a execução do projeto. A mensagem éaprovada. Entretanto, todo meu esforço estava concentrado na aprovação doempréstimo externo.

Recebo informações de que a documentação coletada fora submetida,com ofício do titular da Secretaria da Fazenda, ao julgamento do Banco Cen-tral, mas que seria importante que o ofício, protocolizado no Banco, fosse subs-

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tituído por outro, de igual teor, assinado pelo governador. Intimamente nãoacreditava na aprovação. Assinei o ofício, com esperanças remotas.

A minha surpresa foi que, em apenas 23 dias úteis, o Banco Central, que,até então, não autorizara o empréstimo externo, de cento e cinqüenta milhõesde dólares, recomendado pelo Tesouro Nacional em quase um ano de cansati-vas negociações, em poucos dias aprovava a emissão de títulos, no montante detrezentos milhões de reais.

O exame do Senado da República, embora constitucionalmente seja omais importante, na verdade, foi um ato de apoio político aos imensos proble-mas que o nosso Estado estava enfrentando.

Procurei o Banco do Brasil e a Caixa Econômica para serem administra-dores das Letras de Alagoas. Apresentaram argumentos de que só podiam ad-ministrar Letras do Governo Federal. Mantive contatos com Diretores doBradesco, do Itaú e do Banco Real que, gentilmente, expuseram argumentosque impossibilitavam o gerenciamento das Letras. Fomos obrigados a operarcom o Banco do Estado de Alagoas que se encontrava sob intervenção. Cadaoperação feita tinha uma cópia enviada ao Banco Central para o devidocadastramento, como determina a legislação.

A campanha pela sucessão do Prefeito Paulo Maluf, em São Paulo, giroumuito em torno da aplicação dos recursos oriundos dos precatórios. Algunsatribuíam o sucesso administrativo, que permitiu a vitória do Secretário de Fi-nanças Municipais Celso Pitta, às grandes obras realizadas na cidade, graças,em grande parte, aos recursos provenientes das Letras do Tesouro.

O Senador Eduardo Suplicy consegue aprovar um requerimento pedindoinformações ao Banco Central sobre os precatórios paulistas. A resposta so-mente foi lida no plenário do Senado Federal após o sucesso eleitoral, no se-gundo turno, do candidato Celso Pitta. Trava-se um debate bastante acaloradoentre os Senadores Eduardo Suplicy, que acusava o Prefeito Paulo Maluf, eEsperidião Amim, que o defendia na qualidade de Presidente Nacional do seuPartido. Suplicy desafia Esperidião para, juntos, firmarem um pedido de ins-talação de uma CPI, sobre os precatórios de São Paulo. Amim concorda, desdeque se incluam, na investigação, as Letras de Santa Catarina, aprovadas com oapoio do Governador, Paulo Afonso, seu desafeto político. Jader Barbalho, líderdo Partido do Movimento Democrático Brasileiro no Senado, defendendo o cor-religionário, condiciona emprestar o apoio da bancada da maioria, se a ComissãoParlamentar de Inquérito fosse extensiva a todos os Estados e Municípios quetivessem emitido Letras do Tesouro. Aprovada a Comissão, ele designa o Sena-dor do PMDB pelo Paraná, Roberto Requião, para ser o relator da CPI que temcomo Presidente o Senador do PFL do Amazonas, Bernardo Cabral.

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Caracteriza-se o objetivo político. Roberto Requião, à medida que os holo-fotes se concentram na sua pessoa, começa a alimentar desejos de ser candidatoa Presidente da República ou de voltar ao Governo do Paraná. Esperidião Amimassume, ostensivamente, a condição de candidato, mais uma vez, ao governo deSanta Catarina. Eduardo Suplicy já está em plena campanha para sua reeleição aoSenado. Paulo Maluf, julgando-se o grande vitorioso com a eleição de Celso Pitta,compõe os entendimentos para retornar ao Governo do Estado de São Paulo. Osadversários e inimigos dos Governadores Miguel Arraes, Paulo Afonso e DivaldoSuruagy orquestram uma grande campanha de desgaste.

Telefono aos Senadores Bernardo Cabral e Roberto Requião afirmandoque fazia questão de prestar meu depoimento na Comissão Parlamentar deInquérito, independentemente de qualquer convite. Debati, durante mais detrês horas, com os integrantes da CPI. Recebi a solidariedade dos amigos e dosantigos companheiros e o respeito de todos. O meu depoimento, transmitidopor várias estações de televisão, teve uma natural repercussão pelo fato de tersido o primeiro governador a tomar essa iniciativa, caracterizando, assim, nãoter nada a esconder.

O resultado final desse drama político acontece nas eleições de 1998. Nãoconsegui me eleger Deputado Federal. Miguel Arraes, Paulo Afonso e RobertoRequião são fragorosamente derrotados no primeiro turno, e Paulo Maluf per-de o pleito para Mário Covas, que consegue se reeleger.

22CONHECI ADOLPHO BLOCH POR INTERMÉDIO de Murilo Melo Filho e FernandoCâmara Cascudo. Leitor contumaz da revista “Manchete”, sabia vários aconte-cimentos de sua apaixonante e aventurosa vida. Transmiti-lhe minha admira-ção. À época, ele era todo entusiasmo e orgulho com a majestosa sede docomplexo jornalístico que seu espírito empreendedor construíra na praia doFlamengo. Mostrou-me, praticamente, todo o prédio, encerrando a visita, nopalco do belo teatro. Surpreende-me com o convite para escrever artigos sobreAlagoas para a revista “Fatos e Fotos”. Confesso, fiquei sensibilizado. Guardo,com muito carinho, até hoje, todos os recortes. Ao longo do tempo, em todasas lutas políticas que travei, sempre tive a simpatia do Grupo Bloch.

Existem homens que nascem para construir. Há pessoas privilegiadasque retribuem o mal com o bem, quais apóstolos incansáveis na afirmaçãopositiva dos valores humanos. Há homens incomuns que sabem ser amigos,que mantêm sua lealdade, mesmo quando estão em uma posição minoritária.

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Adolpho Bloch era um homem assim. Tinha uma capacidade de criar que só seesgotou quando morreu, deixando em todos os que o conheceram, uma angus-tiante sensação de orfandade. E nunca repassou o sofrimento que viveu, aindacriança, vítima inocente das viradas políticas e da intolerância religiosa. É exemplodo imigrante empreendedor que dedica seu gênio à terra que o acolheu. Ésímbolo do refugiado que soube adotar com ardor a pátria que lhe deu refúgio.Afeiçoou-se ao Brasil e amou-o como poucos.

Foi em uma cidadezinha, a 120 quilômetros de Kiev, capital da Ucrânia,que o pioneiro Adolpho Bloch – Abrasha Bloch – nasceu filho caçula dos noverebentos de Iossif Petróvitch. O pai era o dono de uma gráfica, e vivia com amulher Ginda e os filhos, até que estourou a Revolução Russa, em 1917. Aguerra, o medo e o pavor, que se seguiram, logo transformaram em homem omenino Adolpho, então com nove anos. A gráfica foi desapropriada e, emresgate das vidas dos seus membros, a família teve de dar tudo o que tinha devalor aos cossacos, tão belos no palco, mas tão ferozes na vida real, lembra. Adolphovendeu libretos de ópera para sobreviver e tomou chá de casca de laranja paraenganar a fome. Porém a sistemática e crescente violência contra os judeusobrigou Bloch a emigrar para o Brasil, numa terceira classe do navio Re d’Itália.– Chegamos ao Rio no início de 1922; como bagagem, trouxemos a saúde; como riqueza,um pilão.

Adolpho Bloch construiu um império, a partir do nada. Desde o marcoinicial, com a revista “Manchete”, em 1952, e durante mais quarenta e trêsanos, ele foi sempre um lutador. Ousado, intrépido, otimista. Dizia: – O im-portante na vida não é ter, ser ou parecer : o que importa é fazer, construir, desenvolver.Encantava-se com tudo o que fazia, sem visar ao lucro como meta maior. Fezum jornalismo sem ódio, engajado no progresso e no desenvolvimento dopaís. Amigo fraternal de Juscelino Kubitschek, apoiou seu governo, a cons-trução de Brasília e abriu a primeira sucursal jornalística no Planalto Central.JK foi cassado, obrigado a exilar-se, e seu nome foi proibido de receber men-ção na imprensa. Mas Adolpho Bloch ignorou a proibição e continuou a citare defender o ex-presidente. Juscelino morreu em 1976. Adolpho construiu,em Brasília, o Memorial JK e inaugurou-o no dia 12 de setembro de 1981,data em que seu amigo faria 79 anos.

Recebo um telefonema de Murilo Melo Filho. Ele desejava me entrevis-tar. Combinamos, para fins de agosto. Adolpho Bloch nos convida para almo-çar na “Manchete”. Anna Bentes, sua esposa, nos prestigia com o encanto desua inteligência. Ela é que conduz a conversação. Adolpho é todo alegria peloinício da filmagem da novela “Tocaia Grande”, baseada no famoso romance deJorge Amado. Foi nosso último encontro. Em menos de três meses, falecia em

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São Paulo. A impressão mais forte que guardo dele é do seu constante entusias-mo no destino glorioso do Brasil.

23O POLÍTICO, A EXEMPLO DE TODO AQUELE que exerce a função pública,deve possuir a consciência de que seus atos estão sempre expostos às explica-ções à comunidade a quem, em teoria, ele presta serviços. Daí a origem daexpressão servidor público.

É claro que, apesar do meu esforço, dentro de minhas limitações huma-nas, para tratar a todos de uma maneira como desejo que todos me tratem,contrariei muitos interesses e fui alvo de mentiras e infâmias de inimigos einvejosos. Uma delas foi feita, às vésperas da eleição de 1982. Incluíram meunome em uma relação de, aproximadamente, cinqüenta líderes em diversas re-giões do Brasil, que falsamente possuiriam dinheiro na Suíça, sendo vários delesfrancos favoritos aos governos dos seus Estados. O objetivo da infâmia era pura-mente eleitoreiro.

Deputado Federal, encaminhei carta ao Embaixador da Suíça solicitandoque oficializasse, junto aos estabelecimentos de crédito do seu país, o pedidode informação sobre a existência de alguma conta minha em qualquer banco.Recebi um ofício, muito atencioso, explicando a impossibilidade de atender aopleito, em virtude de as leis suíças defenderem o segredo bancário. A respostajá era uma boa defesa. Se o Governo Suíço, por intermédio do Embaixador,não tinha acesso às contas bancárias, imagine os panfletários de Porto Alegre!Não contente, autorizei, juntamente com outros parlamentares, à Presidênciada Câmara dos Deputados, a processar os jornalistas, que terminaram sendocondenados por crime de calúnia. Além disso, levei a notícia ao ridículo, pas-sando uma procuração, em cartório, concedendo plenos direitos para ficar como dinheiro, a quem encontrasse, fora do Brasil, uma conta bancária minha, nãoapenas na Suíça, mas em qualquer lugar do mundo. Até hoje, estou esperando.

Anos depois, em 1991, em conseqüência da guerra das Nações Unidascom o Iraque, a opinião pública mundial pressionou o Parlamento da Suíça amodificar a lei do sigilo bancário para saber o volume de depósito de SadamHussein.

Senador, fazendo oposição ao Governo Federal, mandei uma carta aber-ta, lendo-a da Tribuna do Senado, ao Presidente da República, solicitando queele, dispondo da INTERPOL, através da Polícia Federal, do Ministério da Fa-zenda, do Banco Central e do Ministério das Relações Exteriores encaminhasseexpediente ao Governo Suíço pedindo informações da existência de algumaconta bancária minha naquele país. É natural que, sendo meu adversário políti-

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co, teria o maior prazer em denunciá-la. Jamais conseguiu, pelo simples fato deessa conta não existir.

24A VERDADEIRA ALMA DO POVO PERUANO, encontrei-a em Cuzco e Machu-Picchu,testemunhas da glória e da tragédia da civilização Inca.

O Imperador Huayna Copac rompe as tradições sagradas do seu povo,dividindo o reino entre seus dois filhos: Huáscar, legítimo herdeiro e Ataualpa,o filho bastardo.

Ao entregar o comando da região de Quito ao favorito Ataualpa, queentraria na História como o último dos Imperadores, provocou uma guerracivil que levaria o Império à ruína.

Lima, apesar de ser a capital e a maior das cidades do Peru, revela toda apujança da influência cultural e administrativa do vice-reinado mais importanteda América Espanhola. Cuzco, entretanto, identifica-se com as nossas origensamericanas.

Nas batalhas, entre os dois irmãos, pelo domínio do Império, morreu aelite dos guerreiros. Praticamente, toda a nobreza foi dizimada. Mais de cemmil soldados foram mortos em combate.

As tribos indígenas, que haviam sido subjugadas a ferro e fogo, ao longodo tempo, pelos exércitos incas, iniciam uma série de revoltas, sem temor dascruéis represálias de que foram vítimas, no passado.

Os espanhóis, sob o comando de Francisco Pizarro, atraídos pelas notí-cias da imensa quantidade de ouro existente no Peru e apoiados pelas tribosrevoltadas, conquistam o imenso Império dos Filhos do Sol.

A corrida em busca do enriquecimento rápido provocou um intenso pro-cesso migratório de europeus, da Península Ibérica para a América do Sul. Empouco tempo, a população multiplicava-se. A Igreja Católica impõe-se sobre oculto ao Sol e à Lua. Costumes são modificados. O entrelaçamento de raçasgera um novo tipo de beleza feminina e de força masculina.

Encontro a resultante dessas culturas, tanto no litoral, quanto nas monta-nhas peruanas. Refugiara-me do frio de 8°C, certa noite de dezembro, no bardo Hotel Palace, na simpática cidade de Trujillo, palco de inúmeros conflitossangrentos na luta pela independência. Enquanto me aquecia com uma dose de“Black Label”, lia o livro “A Lanterna na Popa”, do deputado e escritor RobertoCampos. Poucas pessoas ocupavam o bar. Tenho minha atenção despertadapor duas jovens peruanas que acabavam de chegar ao hotel. Ainda estavamcom as valises de mão. Pediram café e torradas. Uma delas, realmente, linda. Édoce o simples fato de observá-la. A altivez de seus ombros; os traços perfei-

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tos, em linhas clássicas, do belo rosto; o corpo esguio revelam a nobreza desuas origens. Tenho certeza de que é uma princesa inca que veio me saudar.Aquela fria noite de domingo permanece em minhas recordações.

25UM SÍMBOLO INDUZ MUITO ALÉM DE UMA IDÉIA CONSCIENTE. A cruz do cristia-nismo, ou a suástica do nazismo, por exemplo, a um simples olhar, nos transmi-tem um transbordante mar de emoções, de paixões humanas, de sentimentosfortes. É que o símbolo tem a eloqüência do silêncio, é direto e incisivo. Exis-tem pessoas que também são símbolos. Um militar representa sua corporação,um sacerdote representa o seu credo, um jornalista representa o seu jornal.Todas as pessoas-símbolo têm o dever funcional de jamais abandonar seureferencial ético, e esse dever aumenta na ordem direta do poder que têm.Entre os chamados poderes constituídos, o presidente, governadores e prefei-tos representam o Poder Executivo; os senadores, deputados e vereadores re-presentam o Legislativo; e os magistrados representam o Poder Judiciário.

As notícias, acerca de atos desairosos praticados por uma dessas pessoas,contribuem para o enfraquecimento da categoria, classe ou instituição a queessa pessoa pertence. O erro da parte enodoa o todo. E, quando, por ação ouomissão, o próprio todo participa do erro, seus efeitos são ainda mais dano-sos. É injurioso achar que o povo não percebe o descompasso entre a aparên-cia e a realidade. O povo percebe. E revolta-se. Revolta-se ainda mais o ho-mem simples, que sofre a exclusão social, apesar de honesto. Esse acabadescrendo de tudo, na preconceituosa sensação de que todo homem podero-so é desonesto por natureza.

Recuso-me a considerar fatalisticamente irresistível uma Alagoas repletade anomalias e deformações, com homens-símbolo engolidos pela voragem dooportunismo e do empobrecimento de princípios. Nada é mais torpe e insidio-so do que a desonestidade protegida. Nada é mais ilegítimo do que um poderexercido sem grandeza nem dignidade.

26ENCONTRO-ME DIANTE DE UM IMENSO AUDITÓRIO, no salão de convenções doHotel Tropical, na cidade de Manaus. Centenas de “adesguianos” de todos osEstados da Federação Brasileira ali se encontram. Recebera convite para profe-rir, no encontro nacional da Associação dos Diplomados da Escola Superior deGuerra, uma palestra sobre os desníveis regionais, na minha opinião, o maior

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desafio da sociedade brasileira, por nele estar, naturalmente, implícito o desní-vel social.

Em busca de um melhor entendimento, improviso uma ligeira retrospec-tiva sobre a história do país. Analiso as encruzilhadas econômicas que provoca-ram e acentuaram as distorções em nosso processo de desenvolvimento. De-fendo a tese de que, um dos sintomas mais preocupantes, no momento atual, éa existência de um desnível profundo – com tendências ao agravamento – quese observa, não só entre os setores da população, mas também entre as suasdiversas regiões.

Essa situação de marcante desequilíbrio sócio-econômico atenta contra asaúde política de um povo e contra a sua vocação ao desenvolvimento. A Na-ção, com efeito, é um organismo vivo, o qual só será saudável e forte, se suasdiversas partes ou seus diversos segmentos crescerem e se desenvolverem har-moniosamente.

O Brasil já experimentou todas as mazelas econômicas e sociais decor-rentes de altas taxas de inflação que, em 1981, alcançaram a casa dos três dígi-tos chegando à casa dos quatro dígitos, em 1994. Tamanha anarquia econômicanão só aumentava as diferenças de renda entre os brasileiros do Norte e osbrasileiros do Sul, mas, até mesmo, seqüestrava a própria cidadania.

O Plano Real restabeleceu, não somente a esperança, mas sobretudo apossibilidade de analisar a economia brasileira despida da tão pavorosa máscarada inflação que, durante tanto tempo, escondeu os grandes problemas estrutu-rais do país. É chegada a hora, portanto, da retomada das questões regionais,das transferências internas de renda, do direito à atividade econômica, da pre-servação das características regionais, da diminuição das migrações, mas nãosem o esquecimento, da determinação brasileira de inserir-se na nova ordemeconômica mundial que é, inegavelmente, a formação de grandes mercadoscontinentais.

Indiscutível é o fato de que uma Nação não pode ser mais forte do que oseu elo mais fraco. E o elo mais fraco da Nação Brasileira é, sem dúvida, aRegião Nordeste. Nela faz-se necessária a presença destemida da União, bus-cando diminuir a crescente desigualdade com as demais regiões.

Num debate ocorrido durante uma reunião da Sudene, em Recife, osGovernadores do Nordeste evidenciaram a dificuldade financeira que a Regiãoestava enfrentando e seus profundos reflexos nos segmentos administrativo,social e econômico.

A sociedade nordestina é prisioneira de um círculo perverso: não temdesenvolvimento, porque não dispõe de recursos; não tem recursos, porquenão dispõe de projetos; não tem projetos, porque não dispõe de recursos. Esse

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círculo cruel tem que ser rompido sob pena de negarem a milhões de brasilei-ros o direito mínimo do viver com dignidade.

Há que fazer-se a distinção, antes de tudo, entre as diferenças regionais eas disparidades regionais. As diferenças formam um conceito geoclimático; asdiversidades regionais, um conceito sócio-econômico. As diferenças regionaissão um bem; as diversidades, um mal.

É justamente na diferença de suas regiões que reside a potencialidade dopaís para enfrentar o desafio de seu desenvolvimento, o qual nunca se exaure,mas encontra, sempre, na diversidade de sua riqueza humana e natural, novasperspectivas e novas alternativas de superação das dificuldades. As diversidadesregionais são, pelo contrário, um fator restritivo para o desenvolvimento. Urge,a todo o custo, combatê-las e, na medida do possível, eliminá-las. É isso o quea Nação precisa entender, não de maneira teórica e acadêmica, mas de formaefetiva e real.

Na realidade, um crescimento desproporcional de uma região do país emdetrimento das outras, poderá nos dar a ilusão temporária de desenvolvimento,quando, de fato, esse fato só serve para estimular focos de debilidade, queameaçam a própria saúde nacional.

Dentro desse entendimento, incorre em grave erro de perspectiva qual-quer política nacional que insista em centralizar investimentos em certas re-giões mais desenvolvidas, em função de seu maior retorno.

O debate foi bastante acalorado. Esforço-me para responder, de umamaneira convincente, às perguntas formuladas. Os entusiásticos aplausos leva-ram-me a imaginar que havia sensibilizado aquelas lideranças à grande cruzadade um Brasil mais justo e, obviamente, mais feliz.

27A PRAÇA JOÃO PESSOA ESTAVA TOTALMENTE LOTADA por milhares de paraibanosque desejavam homenagear o seu grande líder.

Observo a multidão de uma das janelas do Salão Nobre, do Palácio daRedenção. Encontro-me ao lado do Governador do Piauí, Francisco de AssisMoraes, e do Senador Humberto Lucena.

Poucos minutos atrás, ouvindo o belo improviso do Senador RonaldoCunha Lima, despedira-me de Antônio Mariz, companheiro de tantos aconte-cimentos políticos. Recusei-me a vê-lo no caixão. A terrível doença lhe deixarapele e ossos. A imagem, que faço questão de guardar, é a do homem aguerrido,combativo, lutador de causas que julgava justas. Ele foi um dos melhores espí-ritos públicos com quem tive oportunidade de conviver.

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A sua vida serve para ser contada às crianças, como histórias de contos defadas: era uma vez um homem sério. Às vezes penso que Mariz era uma figuradesgarrada da Távola Redonda, na Corte do Rei Artur.

Sertanejo de “papo-amarelo”, como se diz na Paraíba, isto é, curtido pe-las prolongadas estiagens, sempre revoltado com o gemido dos seus conterrâneosque desfilavam, errantes, pelo silêncio das solitárias estradas paraibanas. Mariznunca se revoltou, mas também nunca se conformou. Foi lá que arranhou o seucoração com as impressões primeiras da natureza das distâncias sociais, muitoembora não houvesse espessura de diferenças entre ricos e pobres, pois maisforte era a convivência. Daí, a predisposição ao sentimento de igualdade e àmodéstia pessoal nos meios de viver, modelando-o em todas as ações.

Possuía uma coragem indômita de enfrentar adversários políticos pode-rosos, sem nunca tergiversar, sem nunca se curvar. Civilizado, talvez, pela ma-neira cordial e educada como tratava os seus semelhantes, mas Antônio Mariz,repito, era muito mais. Era um forte, cheio de coragem cívica e pessoal. Eratambém um homem que sabia perdoar.

Conhecido pela preservação da palavra empenhada, era capaz de ir à der-rota eleitoral, contanto que os seus compromissos não fossem estilhaçados.Sim, sim; não, não. Nenhum conselho maroto ou oportunista seria capaz deafastá-lo do acertado, mesmo sem qualquer papel assinado. O cartório era a suavoz. O documento era a sua honra.

Lembro-me de um comício em sua cidade natal, Sousa, no alto sertãoparaibano. Teotônio Vilela, Noaldo Dantas, Antônio Ferreira e eu chegamos àscinco horas da tarde. A cidade era um grito só: Mariz, Mariz, Mariz! Na lindanoite sertaneja, a multidão explodia na praça.

Recordo-me de uma lua imensa, que a todos iluminava, passeando no céusertanejo e da voz de Mariz, espargindo-se sobre a multidão: A força bruta sempreserá derrotada no final. Já vi fracos enfrentarem os mais fortes apenas com o poder do espírito,que vence em todas as circunstâncias.

Mariz não morreu. Encantou-se. E, sobre o seu túmulo, gostaria de colo-car uma flor de mandacaru, resistente, forte e bela como a sua própria vida.

28ENRIQUE IGLÉSIAS, PRESIDENTE DO BANCO Inter-Americano de Desenvolvi-mento, visitando Alagoas, revelou sua vontade de conhecer o Complexo Hi-drelétrico de Paulo Afonso, especialmente a Usina de Xingó. Preocupado emretribuir as gentilezas de que fui alvo por parte do Presidente do BID, quandoestive em Washington, esforcei-me em viabilizar a viagem.

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Fomos de avião de Maceió a Paulo Afonso e, de helicóptero, a Piranhas.A beleza da paisagem selvagem e agressiva do alto sertão do São Franciscoencanta os visitantes. A visão aérea do “canyon”, da barragem e do magníficoconjunto residencial construído pela CHESF é algo inesquecível. Piranhas, vis-ta do alto, acentua sua semelhança com uma imensa lapinha.

Sérgio Moreira e seus companheiros de Diretoria explicam os detalhestécnicos da construção e a potência energética das duas turbinas inauguradas, einformam a proximidade da complementação da obra, com o funcionamentoda terceira turbina em poucos meses.

Enquanto ouço as palestras, transporto-me para o passado, precisamentehá doze anos, quando acompanhei o então Presidente da República, JoãoBaptista Figueiredo, em uma viagem ao canteiro de obras de Paulo AfonsoIV, a maior do sistema. Naquela oportunidade, decidia-se o destino de Xingó.Acompanhei, passo a passo, a execução dos trabalhos. Estava ao lado dosPresidentes Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso quando, visivel-mente emocionados, acionaram, em dezembro de 1994 e meados de maio de1995, respectivamente, o painel de controle eletrônico movimentando toda aforça das águas canalizadas do São Francisco.

29BRÁULIO LEITE JÚNIOR É FIGURA EXPONENCIAL da arte cênica em Alagoas.Polêmico, impulsivo, com a emoção à flor da pele, é capaz de explodir em santaira para, logo depois, se reaproximar, sinceramente arrependido, do amigo comquem brigara. Seus destemperos são céleres, e suas reconciliações, também.

Atualmente, o nosso grande ator passa por uma fase de dulcificação doespírito. Cercado de amigos, alimenta o bate-papo em que também é bom de-mais.

Na história das atividades teatrais da província, Bráulio tem lugar mereci-do de grande destaque. Num apanhado ligeiro, encontramo-lo dirigindo – ebem – peças como “Reflexos de Santidade” e “Entre quatro Paredes”.

Fundador do “Teatro de Amadores de Maceió”, saiu para criar “OsDionisos” e destacou-se, inegavelmente, como figura de proa na concepção enas vitórias do “Teatro Universitário”.

Apesar de todas essas conquistas e afirmações, foi no palco que nossoteatrólogo conseguiu as mais retumbantes vitórias. Mais de uma geração dealagoanos se encantou com as suas apresentações. A opereta “O Herdeiro deNaban”, sob a direção de Linda Mascarenhas, logrou êxito absoluto graças,em grande parte, ao desempenho cênico de Bráulio. “Massacre”, foi outra

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vitória consubstanciada pelos aplausos em cena aberta. “Planície” e o “OSorriso de Gioconda” formam, também, uma trilha luminosa na vida desseator nato.

Outros sucessos marcaram a trajetória de Bráulio Leite Júnior: “O Pro-cesso de Mary Dugan” e “Amanhã se não Chover”, para citar somente os maislembrados, fizeram o encanto da platéia.

No teatro infantil que, como sabemos, é um segmento difícil e delicado,Bráulio venceu também. Sua atuação no “Rei Mentiroso” foi antológica.

Como Diretor do Teatro Deodoro, Bráulio Leite Júnior completou ociclo de sua vida artística. Diretor de cena, fundador e dirigente de conjuntosde teatro amador, conquistou, na ribalta, sua maior glória.

Conduzia as platéias, fazendo-as rir ou chorar, conforme o seu papel.Empolgava, encantava, exercia domínio absoluto com o seu gênio.

Atendendo a seus argumentos, criei a Fundação Teatro Deodoro, permi-tindo a flexibilidade necessária à dinamização do movimento artístico em nos-sa terra. Foi um período áureo. Os artistas mais famosos do Brasil embelezaramas noites maceioenses. O Teatro de Arena Sérgio Cardoso e o Museu de Arte eSom são, igualmente, frutos de sua visão e capacidade de trabalho.

Alagoas tem toda razão de se envaidecer de Bráulio Leite Júnior.

30RADIO CITY ESTÁ COMPLETAMENTE LOTADA. A famosa e enorme casa de espe-táculos nova-iorquina tornou-se pequena para a multidão que deseja assistir aoshow de Frank Sinatra e Shirley Maclaine. Agradeço a precaução que tivera decomprar o ingresso antes de viajar a Washington, na semana anterior.

Localizada na esquina da Avenida das Américas com a Rua 50, próximada Broodway, é um verdadeiro templo da música popular internacional. Cons-titui uma consagração, para qualquer artista, apresentar-se na Radio City. É aglória. Existem outros, entretanto, que levam prestígio ao Music Hall. É oque acontece com Frank Sinatra. A sua fama é garantia de sucesso em qual-quer lugar do mundo.

Concretizo um dos sonhos de minha adolescência. Assistir, ao vivo, a umshow de Frank Sinatra. Minha geração, no Brasil, esperou trinta anos para teresse privilégio. Durante esse período, compramos todos os seus discos e assis-timos a todos os seus filmes. Quando se apresentou no Rio de Janeiro, pormotivos estranhos à minha vontade, não pude comparecer. Daí o meu entusi-asmo ao tomar conhecimento de que ele faria um show, em Nova York, naúltima sexta-feira de outubro. Estamos em l992.

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O auditório está magnetizado por Frank Sinatra. É incrível. Aos 76 anos,mantém a mesma chama da juventude. Recordo-me, no entanto, de que tudonão foi sucesso em sua vida.

No início da década de cinqüenta, a gravadora Colúmbia o havia dispen-sado; a Metro-Goldwyn-Mayer não renovara seu contrato e, o que era pior, AvaGardner o trocara por um toureiro, em Madri. O desespero foi tanto que eletentou o suicídio, cortando os pulsos. Escapou por pouco e decidiu viver.

Reencontrou-se com o sucesso, em meados de 1953, quando conquistouo “Oscar” como o melhor ator coadjuvante em “A um Passo da Eternidade”.Suas canções voltam a bater recordes de venda. As atrizes mais lindas deHollywood jogam-se em seus braços. Sua estrela volta a brilhar e, agora, parasempre. É um afilhado dos deuses.

31O TRICENTENÁRIO DA RESISTÊNCIA HERÓICA DO QUILOMBO dos Palmares pro-moveu, em todo o país e em várias partes do mundo, uma série de comemora-ções exaltando, acertadamente, o forte sentimento de luta da raça negra.

Alagoas, palco do primeiro grito de liberdade que ecoou pelas Américas,tornou-se o centro maior dos acontecimentos. A Serra da Barriga, o últimobaluarte da “República dos Palmares”, que durou mais de noventa anos, trans-formou-se em solo sagrado, uma espécie de Meca.

Recordo-me que, em 1986, quando consegui sensibilizar o governo fede-ral a proceder o tombamento da região, erigindo-a em Monumento Nacional,assistia a uma cena inusitada. Centenas de pessoas beijavam, religiosamente, aterra que fora encharcada pelo sangue de milhares de negros trucidados pelastropas do bandeirante paulista Domingos Jorge Velho.

A magia do local influencia a todos que possuam a imaginação necessáriapara conceber a angústia de uma batalha onde a morte era melhor do que asobrevivência, para os derrotados. Guardadas as proporções, ela me lembra oholocausto dos judeus, quando, no lendário Monte Massada, nas proximidadesdo Mar Morto, foram dizimados pelas legiões romanas.

O Presidente Fernando Henrique Cardoso, professor de sociologia, cons-ciente da importância do negro na formação da civilização brasileira, emprestaao evento o prestígio do cargo que ocupa. A cidade de União dos Palmares, quetanto se orgulha de ser o berço da epopéia dos quilombolas, é, pela vez primei-ra, visitada por um Presidente da República. Os palmarinos, fiéis à tradição dehospitalidade, recebem com carinho o ilustre visitante. A popularidade do Mi-nistro Pelé muito ajudou na boa acolhida à comitiva presidencial.

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O enorme helicóptero que nos conduz a Maceió sobrevoa a Serra daBarriga. A Senadora Benedita da Silva, solidária com os irmãos de cor, emoci-ona-se. Enganaram-se aqueles que julgaram haver morto o Zumbi. Ele perma-nece nos ideais que simboliza. Enquanto houver injustiça, em nosso país, seuespírito continuará combatendo, com o exemplo de sua vida, em busca doequilíbrio social.

32A HISTÓRIA DO MUNDO REGISTRA INÚMEROS CASOS em que um acontecimentonefasto serviu para fortalecer os povos, unindo-os em torno de um ideal co-mum. Não foi a ação solitária de um governante que fez a Alemanha sobreviverao saque e ressurgir das cinzas, após a derrota na Segunda Guerra Mundial. Foio esforço do povo alemão. Não foi o trabalho isolado de um governo que fez oJapão renascer dos escombros de duas bombas atômicas. Foi a garra do povojaponês. Ressalvadas as devidas proporções, é válido querer que algo parecidoocorra conosco. É lúcido esperar que, mesmo em circunstâncias dolorosas, oEstado se adapte a uma nova realidade econômica, não mais presa ao poderpúblico, não mais apática, de braços cruzados, à espera de um milagre governa-mental.

Precisamos colher as lições e entender, de uma vez por todas, que o pro-gresso humano é fruto de trabalho árduo, que nada é de graça na natureza, quenada cai do céu. Esta é a pedra angular de toda realização grandiosa. Jamaisteremos uma Alagoas socialmente justa, se nos limitarmos, apenas, a afirma-ções óbvias, a proclamar o quanto nos preocupam as injustiças sociais.Edificaremos uma Alagoas pujante, rica e poderosa, com a participação de todaa nossa sociedade.

Opinião é o artigo mais barato que existe no mundo. Opinar e, conse-qüentemente, criticar, constitui até garantia constitucional. Mas o valor dacrítica depende da pessoa que critica, varia na ordem direta da sua autoridademoral.

33NO MOMENTO EM QUE O PAÍS ATRAVESSA UM DOLOROSO PROCESSO de acomoda-ção, com retração da economia, uma brutal redução do emprego e o aumentodas desigualdades sociais, em que o consumo opulento coexiste com elevadosníveis de pobreza absoluta, talvez seja necessária uma reflexão sobre as causashistóricas, econômicas e culturais da atual conjuntura, para se entender por que

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o Presidente da República, quase reduzido à condição de provedor do PlanoReal, continua obtendo índices favoráveis nas pesquisas de opinião pública.

Após vários anos de convivência pacífica com uma inflação galopante, oBrasil acabou desenvolvendo uma cultura inflacionária, com valores e regrascomportamentais próprias, de plácida aceitação e de ávida exploração do que setinha como um fenômeno endêmico e fatalístico. Em verdade, o período inflaci-onário durou muito tempo, porque muitos ganhavam com ele. Só os mais pobresé que perdiam, já que grande parte dos seus salários se esvaía, como fumaça. Osgrupos sociais de renda privilegiada ou variável tinham os seus ganhos indexadose ainda faturavam alto, aplicando as sobras no mercado financeiro.

Por isso, no primeiro instante, os mais pobres foram beneficiados com aimplantação de uma moeda forte, quando o salário mínimo pulou, de sessentapara mais de cem dólares e, com o aumento do poder aquisitivo, também au-mentou o consumo de alimentos. Mas os demais agentes econômicos sofrerampesadas perdas, a começar pelos entes públicos. Os governos, que historica-mente são os primeiros e principais carentes de dinheiro, eram grandementebeneficiados pela inflação, que lhes anulava os “déficits” de caixa e “pagava”seus empréstimos, uma vez que, nominalmente, o aviltamento da moeda faziaaumentar a receita e diminuir a despesa.

O advento do Plano Real mudou esse quadro e, agora, mesmo sem ne-nhum acréscimo nos gastos, o simples aumento vegetativo de uma folha depessoal, da ordem de três por cento ao mês, o que significa dizer mais de cin-qüenta por cento ao ano, já implica um preocupante problema de caixa. O setorprivado também foi duramente atingido, com falências, concordatas e quedasna produção, e isso resultou em milhares de demissões, pois a estabilidademonetária, transformada num fim em si mesmo, impediu a adoção de umapolítica de desenvolvimento econômico e de pleno emprego.

Mas a grande vantagem de uma economia estável é que ela sinaliza parauma administração gerencial e, não, simplesmente burocrática. Cria novos va-lores, nova mentalidade, exige uma visão nova com um novo papel do Estado.

34O DEBATE ENTRE O MINISTRO DA FAZENDA, Pedro Malan, e os Governadoresdo Nordeste, em Recife, na reunião da Sudene, evidenciou a dificuldade finan-ceira que a região está enfrentando e seus profundos reflexos nos segmentosadministrativo, social e econômico.

O círculo cruel tem que ser rompido sob pena de negarem a milhões debrasileiros o direito mínimo do viver com dignidade.

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Quadro igualmente dantesco é o comprometimento de todo o dinheiropúblico apenas com a folha de pessoal, o que impossibilita à máquina do gover-no de ser um agente do progresso.

É tese pacífica, junto a várias correntes de economistas, que os custossalariais exacerbam o consumismo, negando incentivos ao esforço produtivo.Por outras palavras, encoraja o consumo a expensas do investimento.

As crises financeiras, ao contrário das sociais, não provocam solidarieda-de, e sim, acentuam o egoísmo humano. A minoria privilegiada usa sua influên-cia para ganhar cada vez mais, em detrimento da imensa maioria que sobrevivecom salários de fome. É o chamado poder sem responsabilidade.

Todos concordam que tomemos dinheiro emprestado para manter o pa-gamento dos salários em dia, em vez de atacarmos o problema fundamental,que é reduzir as despesas e aumentar a receita. Em verdade, não defendem oEstado, defendem-se a si mesmos. A estratégia do ajuste exige senso de priori-dades e penoso esforço de captação de recursos.

É conveniente lembrar que todo privilégio é odiento. Sabemos, também,que o ódio coletivo provoca reações imprevisíveis.

Os governadores, com raras exceções, transformaram-se em meros ge-rentes de folhas de pagamento. Vivem dias de angústia e noites de insônia.

Em Alagoas, agravada pela política recessiva implantada pelas autoridadefederais, para manter a moeda estável, a situação é mais angustiante, pelo fatode havermos herdado quase três meses de salários em atraso. Os vencimentosdo professorado, dos técnicos de nível superior e de várias outras categoriasestão totalmente defasados. Perco 80% do meu tempo, buscando saídas para oimpasse. Confesso que, sozinho, o Executivo não terá condições de resolver acrise, se as outras forças da sociedade não participarem do esforço coletivo.Não se pode evitar a queda, depois do tropeço.

A economia alagoana é altamente viável. Precisamos, apenas, gastar me-nos do que produzimos e adotar a prática confuciana, ensinada quinhentosanos antes de Cristo: a disciplina, no trabalho e o espírito de poupança, na artede governar.

35O MEDO COMEÇA A DOMINÁ-LO. O dia não tinha sido propício. Eram dezoitohoras e só havia conseguido quatro reais. O amante de sua mãe estabelecerauma quota diária de dez. Quando ele não alcançava o total estabelecido, levavauma surra de cinturão, com a ameaça de que, na próxima vez, apanharia muitomais. Às vinte horas, apenas arrecadara seis reais. Apavorado, decide não voltar

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para casa. Prefere dormir na rua, embora correndo o risco de ser roubado pelosmeninos maiores. É orientado por um colega, a buscar abrigo no SOPROBEM.Acostumado com a brutalidade do falso padrasto, explorado pela mãe, umaébria contumaz, surpreende-se ao ser recebido com carinho. Inconscientemen-te, adquirira um novo lar. O Albergue do Jovem Trabalhador transforma-se emseu ponto de apoio.

Antônio José tem nove anos. Compleição robusta, amadurecido na lutaselvagem pela sobrevivência em um mundo cão, aparenta uma idade maior.Vivia nas ruas, desde os cinco anos. Envolveu-se em inúmeras brigas, apanhoue bateu muitas vezes. Conquistou o respeito dos companheiros. Jamais fugia deuma provocação. Entretanto, o traço mais marcante do seu caráter é o fortesentimento de grupo.

Uma alimentação regular e uma grande quantidade de doce livraram An-tônio José do hábito de cheirar cola. Recuperado, aceita o internato emJuvenópolis.

A Instituição, criada pelo espírito humanitário do Padre Pinho, que fezdo servir desinteressadamente a razão maior de sua atividade sacerdotal, per-manece um modelo graças aos maristas liderados pela humildade e pertináciado Irmão Pedro.

Antônio José encontra o objetivo do viver. Trabalho, disciplina, estudo,esporte, crença em Deus, moldam o seu caráter. É a dignidade humana.

36O TREM DA GREAT WESTERN SAI DE VIÇOSA em direção a Quebrangulo. Apaisagem é uma das mais belas do Estado de Alagoas. As águas do rio Paraíba,em busca do Oceano Atlântico, fertilizam a região. A terra é igualmente privile-giada à agricultura e à engorda de gado. A velha “maria-fumaça” sopra ruidosa-mente no esforço de subir a serra Pedra Talhada.

O jovem estudante da Faculdade de Direito, em Maceió, embora tenhafeito aquela viagem inúmeras vezes, é sempre emocionado que se reencontracom sua cidade. As recordações da infância e da adolescência são doces e pro-fundas. As festas juninas, as novenas do mês de maio na Igreja do Bom Jesusdos Pobres, os namoros a distância, as trocas de olhares, apertos de mãos maisprolongados, os banhos de rio estão gravados na sua memória. O ruidoso api-to, anunciando a chegada do trem, leva grande número de pessoas à estação.Era um grande ponto de encontro. Os mais velhos iam buscar notícias da capi-tal e a juventude, com suas melhores roupas, desfilava e flertava. Nove dosdezesseis filhos do fazendeiro Sebastião Teixeira Cavalcante viajam para passar

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o Natal e o Ano-Novo com os pais. A família costumava reunir-se nas fériasescolares. A estudantada, vinda do Recife, Maceió e Palmeira dos Índios, comsua alegria irreverente, anima Quebrangulo.

Nascido na Fazenda Bonito, na fronteira com Pernambuco, em 11 deOutubro de 1907, alto, possuindo mais de um metro e oitenta, bem apessoado,compleição atlética, corredor de vaquejadas, comunicativo, corajoso, bom ora-dor, João Teixeira fazia um enorme sucesso junto às mulheres e conquistavafacilmente o respeito dos homens.

A crise econômica oriunda dos reflexos negativos que se abateram sobreo mundo ocidental, após a débâcle da Bolsa de Nova York; a derrota eleitoral deGetúlio Vargas; a insatisfação da jovem oficialidade das Forças Armadas comas decisões oligárquicas da Primeira República; e a morte de João Pessoa foramos estopins da Revolução de 1930. João Teixeira, de temperamento reformadore belicoso, é um dos mais ardentes entusiastas do movimento revolucionário.

Na década de quarenta, a inteligência nordestina tinha poucas alternati-vas de afirmação. Fiscal do Consumo, oficial do Exército, funcionário do Ban-co do Brasil eram sonhos da classe média. As Faculdades de Medicina e Direi-to, praticamente as únicas existentes no Nordeste, eram os estuários da elite.Os filhos dos donos da terra, os grandes proprietários e os ricos comercianteseram os privilegiados, com raríssimas exceções, que exerciam a medicina e aadvocacia, e através delas, a política, isto é, a condução dos rumos da comuni-dade.

João Teixeira escolheu a advocacia, especializando-se em Direito Penal, eo destino o conduziu à política partidária. Prefeito de Quebrangulo, em 1943,na Interventoria Ismar de Goes Monteiro, e, com a queda do Estado Novo,Deputado Estadual Constituinte, em 1947, exercendo a liderança da maioria efundador do Partido Social Democrático, um dos Partidos mais estáveis daHistória Brasileira.

A projeção nacional do General Goes Monteiro, como líder militar daRevolução de 30, faria com que a família assumisse o comando político deAlagoas, que era chamada por alguns, no sul do país, de “Alagoes”. A referênciajocosa era porque três dos irmãos governaram o Estado, um deles foi Prefeitode Maceió, e quatro foram senadores da República. O conflito entre os GoesMonteiro dividiu a sociedade alagoana. As conseqüências tiveram efeitos trági-cos e multiplicadores.

Líder da bancada do Governo Silvestre Péricles, na Assembléia Legislativa,e Secretário de Segurança Pública, no Governo Muniz Falcão, o professor deProcesso Civil da Faculdade de Direito, João Teixeira, teve um papel muitoimportante nos acontecimentos políticos da época. O amadurecimento da ida-

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de domara o espírito apaixonado. Transforma-se no conciliador. É escolhidopelo Presidente Juscelino Kubitschek para mediar o impasse entre o Governa-dor Muniz Falcão e o Poder Legislativo Estadual.

Faleceu aos oitenta anos. Viveu intensamente. Personalidade magnética,irradiava uma natural simpatia. Uma mesa de jogo, com sua presença, transfor-mava-se em algo inesquecível. Gostava de um bom vinho, num jantar prolon-gado, quando conversava sobre os mais diversos assuntos. Adorava ouvi-lofalar sobre o passado alagoano, assumindo propositadamente um linguajar ca-boclo irônico e pitoresco. Costumava dizer, com uma gostosa gargalhada, quese sentia mais o vaqueiro do que o professor universitário ou o líder político. Amorte foi para ele o descanso do sono desejado, depois de um longo dia produ-tivo e útil, como foi sua vida. Permanece a saudade.

37COMO OUTROS GRANDES MOVIMENTOS QUE MUDARAM o curso da História, aodisséia dos sem-terra, na marcha sobre Brasília, deixa lições e apreensões,autoriza bons e maus presságios e entra para a narração dos deslocamentospopulares no Brasil como o evento mais relevante para o enfrentamento daquestão agrária. A justeza das pretensões é inegável. O direito ao trabalho é abase da dignidade da pessoa humana. E aquilo a que o Movimento dos Traba-lhadores Rurais Sem Terra aspira é trabalhar, produzir, amenizar as agrurassociais do campo, para corrigir a estrutura social do país, sabidamente injusta.Mas a arrogância e a insensatez de alguns dos seus líderes, que pregam o tumul-to como forma de reivindicação e advogam a violação do direito como instru-mento de luta, podem comprometer o movimento e levá-lo a transformar-senas finadas ligas camponesas. Além disso, há motivos para preocupação, por-que também pode ser contaminado pela ação de corpos estranhos, de agrega-dos de última hora, iluminados pela estrela em ascensão do MST, que aprovei-taram a maré de simpatia para atingir objetivos político-eleitorais.

O fim da União Soviética mudou a face do mundo. O fim da inflaçãotransformou a face do Brasil. Os que não entenderam, os que não gostaram dasmudanças, agora lutam, como hienas, pelo cadáver político de um antigovernismoultrapassado. São más companhias para os sem-terra, saudosistas de uma épocacujo retorno ninguém quer. São predadores, inchados de rancor revanchista.

Para fazer avançar o processo de reforma agrária e melhorar a distribuiçãode terra, o MST precisa resistir à sedutora tentação de tornar-se arrogante, não seperder em delírios de grandeza, nem nos deslumbramentos de uma vitória fácil,nem deixar-se levar pela influência deletéria de agrupamentos esdrúxulos, ressus-

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citados pela providencial carona da manifestação de Brasília. O movimento develimitar-se aos problemas específicos da reforma agrária, restringir-se aos interes-ses do homem do campo. Com sinceridade de propósitos, sem emocionalismos,dentro da ordem legal, com respeito à vida. Atentados à propriedade e desrespei-tos à autoridade ameaçam a ordem democrática. O Estado de Direito exige res-peito à lei. O confronto é contraproducente. Agir fora da legalidade, com a into-lerância e a radicalização das posições extremadas, sempre acaba em violência. E,quando isso acontece, quem perde é o lado mais fraco.

Invasões de propriedades, chamadas, eufemisticamente, de ocupações,não resolvem o problema da reforma agrária. Para produzir, a terra vale muitopouco, se não tiver crédito, infra-estrutura e tecnologia. O que resolve o pro-blema é o diálogo, a parceria, dentro da lei.

38A CONCEPÇÃO, ALGO NATURALISTA, DO AUMENTO POPULACIONAL, parece a maisacertada, porque é defendida por pessoas bem intencionadas. Mas a ameaçadessa insensatez não é mais uma dedução lógica, é algo palpável nas ocorrên-cias que nos comovem, nos chocam e nos agridem. Na cidade de Itaituba,interior do Pará, seis em cada dez crianças e adolescentes de famílias de baixarenda são abandonados pelos pais. São filhos de ninguém, que acabam adotadospelos traficantes de drogas e exploradores da prostituição infantil. Na capitalpaulista, a polícia está de mãos atadas porque, ali, os traficantes são, em grandenúmero, menores de idade e, portanto, penalmente inimputáveis.

É preciso pensar no bem comum. É preciso, com o devido gerenciamentodas instituições democráticas e sem obrigar a ninguém, informar einstrumentalizar pais e mães para o exercício da paternidade responsável. Éindispensável repensar e mudar leis que obrigam a polícia a soltar um assassino,menor de dezoito anos, embora com várias mortes, e prender um pequenocontraventor, ocasional, por ser de maior idade, leis que não proíbem os meno-res de cheirar cola, mas os proíbem de trabalhar. Ao contrário do que se pensa,não são as crianças mais pobres que mais trabalham. Pesquisas do IPEA, ates-tam existir mais crianças trabalhando em Curitiba do que em Recife.

É materialmente impossível gerar novos empregos que atendam a essademanda, especialmente agora, com a revolução tecnológica, afetando o mer-cado de trabalho mais seletivo e mais exigente, em função da concorrênciainternacional.

A submissão resignada, a aceitação, mansa e pacífica, de um quadro quese agrava, comprometem as pretensões de alcançar o progresso e o bem-estar.

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Nossos grandes problemas são, principalmente, sociais. Cabe ao poder públi-co, síntese de todos os poderes, tomar decisões estratégicas para a aplicação doplanejamento familiar no Brasil. A maior riqueza de um país é o seu povo.

39APÓS DUAS ADMINISTRAÇÕES VOLTADAS PARA O SOCIAL quando, governando umEstado nordestino marcado, como os demais, por acentuado desnível entre ossegmentos da sociedade e por um mercado de trabalho exaurido e deficitário,assumi, novamente, o executivo alagoano para defrontar-me com os mais varia-dos problemas e, entre eles, um que, particularmente, me violentava a cada dia.

Deixamos o governo, em 1986, com o erário equilibrado e os saláriospagos rigorosamente em dia, mas, quando, nove anos depois, em janeiro de1995, retornamos ao cargo, encontramos Alagoas com uma balança financeiradesequilibrada, com débitos milionários, salários defasados e receita muito aquémdas despesas previstas. Iniciamos, então, uma luta sem tréguas, de tentativas ebusca de soluções, no afã de devolver ao Estado e ao seu cidadão a dignidadetão ansiosamente esperada.

Havendo vivido as duas faces da moeda – a de empregado e a de empre-gador – , tinha melhores condições de compreender a angústia daqueles que sesentiam ameaçados de perder o emprego. Ninguém que não tenha enfrentadoessa experiência, profundamente negativa é capaz de avaliar, em sua verdadeiradimensão, o drama de quem se sente ameaçado da perda de um salário fixo. Éa ausência de um futuro. É o temor diante do desconhecido. Por isso, enfrenteios técnicos do Tesouro Federal e jamais admiti a idéia, tão defendida por eles,de demissão em massa sob o argumento de que esses funcionários estavamirregulares. Somente concordei quando aceitaram a tese da indenização atravésdo Programa de Desligamento Voluntário (PDV).

Diante de vários membros da Bancada Federal, o Ministro Pedro Parentenos informava que não haveria limite de recursos à aplicação do PDV emAlagoas. Estranhamente, quando o número ultrapassou a casa dos cem mi-lhões de reais, todas as exigências que poderiam ser imaginadas foram feitaspara dificultar o Programa. O que era apenas um objetivo-meio para o projetofinal do Saneamento Financeiro do Estado passou a ser a condicionante geral.O PDV, que deveria ter sido concluído em dezembro de 96 ou, no máximo, emfevereiro de 97, só o foi um ano depois. A decisão do Supremo Tribunal, atra-vés do relator Ministro Sepúlveda Pertence, embora não seja definitiva, a res-peito da Emenda do Governador José Tavares assegura a tranqüilidade de mi-lhares de funcionários. O fato tem uma significação muito profunda, em virtude

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da carência de empregos, em regiões subdesenvolvidas, como a do NordesteBrasileiro.

A realidade mais explosiva do mundo atual é o desemprego, causado peloavanço tecnológico e pela globalização da economia. Se não houver humanida-de no exercício do poder, se o gerenciamento da atividade pública não fizeropção preferencial pelos mais fracos, serão bem sombrias as perspectivas deum futuro regido unicamente pelas forças do mercado e pela avidez do lucro.

Ninguém se antecipou a mim na compreensão de que, sozinho, sem aju-da federal, Alagoas jamais se livraria da crise. Exatamente por isso, nunca meperturbei ao ouvir vozes discordantes falar em “intervenção” ou “perda desoberania”. O tempo está demonstrando que eu estava certo. Alagoas está selibertando da crise graças ao projeto de austeridade, implantado de forma exaus-tiva e dramática. Sempre estranhei quando alguém afirmava que estava faltandovontade política, quando, em verdade, o que estava faltando mesmo era dinheiro.

A Justiça se fez e, como em todos os outros casos de supostas irregulari-dades das quais tenho sido levianamente acusado, a verdade cristalina se sobre-porá às meias-verdades porque a mentira, a infâmia e as injustiças jamais triun-farão. Tenho a consciência tranqüila de que procedi corretamente.

40AURÉLIO BUARQUE DE HOLANDA, reconhecidamente o mais famoso filólogobrasileiro e excelente contista, não é apenas o intelectual brilhante; é, também,uma figura humana maravilhosa. Alagoano, do Vale do Camaragibe, sentia-se àvontade nos restaurantes luxuosos das capitais européias e nos botecos dasbeiras de estradas, no interior do Nordeste. Epicurista, apreciava, com a mesmaintensidade, os vinhos brancos da Renânia e a aguardente azuladinha, deCoruripe, em Alagoas. Fisicamente lembrando um nobre romano, diálogo en-cantador, provocou inúmeras paixões em muitas mulheres. Extrovertido, ale-gre, possuía muito senso de humor.

Contam que comparecendo à sessão solene de posse de um novo mem-bro da Academia Brasileira de Letras, teve dificuldades em estacionar seu auto-móvel. Conseguiu uma vaga somente a dois quarteirões da sede da Academia.Foi constrangedor o desfile, pelas ruas centrais do Rio de Janeiro, com o visto-so fardão de imortal, que a tradição determina. Os populares olhavam para elecomo se fosse um extraterreno. Alguns, mais ousados, com a irreverência ca-racterística dos cariocas, soltavam piadas. Sério, testa franzida, avançou firme,mas prometeu a si mesmo que, no futuro, evitaria aquele vexame. Prometeu ecumpriu.

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A Casa de Machado de Assis engalana-se para uma nova solenidade deposse. O Mestre Aurélio dá os últimos retoques no seu vestuário. Olha-se noespelho. O aspecto é majestático. Pede, pelo interfone, que o porteiro do edifí-cio chame um táxi, que o deixará à porta da Academia Brasileira de Letras.Entrando no carro, nota um olhar de espanto no motorista. Informa o endere-ço. Viajam alguns quilômetros em silêncio. É palpável a curiosidade do moto-rista. Não se contendo, pergunta:

– Vossa Excelência me perdoe. Por acaso é general? Aurélio, pelo sotaque, reconhece que ele nasceu em Portugal. Resolve manter o mistério. – Não, senhor – responde. – Almirante? – Não, senhor. Continua o diálogo. – Brigadeiro? – Não, senhor. – Marechal? – Não, senhor. O silêncio domina o interior do táxi. O português esgotara seu repertório

de autoridades capazes de usar uma farda tão bonita. Uma idéia súbita lheacode. Decifrara o enigma. O tom de voz não é mais de pergunta. É de afirma-ção:

– Ah, já sei! Vossa Excelência é Rei.

41HELGA NÃO COSTUMAVA FALAR DO SEU PASSADO. Vivia intensamente o presen-te e planejava, com disciplina germânica, o futuro. Metódica, deixava para osacasos poucos acontecimentos do amanhã. Daí, a surpresa de Rafael quando,após algumas taças de vinho tinto, no encantador e aconchegante Café Radisson,saíram a passear pelas ruas e avenidas de Berlim Oriental, e ela, meigamente,lhe disse que queria mostrar o local onde havia nascido e vivera a alegria dainfância e a irresponsabilidade feliz da adolescência.

Era uma das primeiras noites de maio, e o agradável clima de primaveraeuropéia convidava a longas caminhadas. Envoltos nas fortes emoções dosmomentos inesquecíveis, percorrem cenários de acontecimentos que engran-decem e denigrem os seres humanos. Milhões de pessoas morreram nas inúme-ras batalhas que foram travadas naquela cidade, tão sublime em sua culturaartística e tão brutal nas lutas pelo poder. Poucos países do mundo cultuaram

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tanto a beleza e a violência como a Alemanha. Beethoven e Hitler são doisexemplos expressivos dessa dicotomia.

Rafael, abraçado a Helga, sentindo o calor do seu corpo maravilhoso,reflete sobre os conflitos da humanidade. A eterna disputa entre o bem e o mal.Por temperamento, acredita que o bem sempre será vitorioso.

As ruas ficam desertas e pouco iluminadas. Rafael começa a ficar preocu-pado. Lembra-se de que ouvira comentários sobre a organização de gangues,no lado oriental. Helga, tranqüila, aconchega-se mais ao rapaz, buscando prote-ção contra o frio. Um forte nevoeiro acentua a escuridão da noite. Caminhamem silêncio, totalmente envolvidos um no outro.

O silêncio é mais eloqüente do que qualquer palavra. Chegam a umlogradouro. Helga aponta para o segundo andar de um prédio de quatro pavi-mentos. – Foi ali que nasci e vivi até os doze anos, quando me levaram para olado ocidental.

Rafael entende a importância do gesto. Helga, ao lhe confessar seus se-gredos, estava entregando os sentimentos mais caros de sua vida. Era a doaçãototal. Voltaram ao Berlim Penta Hotel. Fizeram amor com tanta ansiedade que,naquele instante, o mundo limitou-se ao clímax do êxtase.

42TUDO INDICA QUE ESTAMOS ENTRANDO em um novo ciclo perverso do agrava-mento das disparidades regionais, a menos que profundas transformações sejamintroduzidas nas estratégias política e instrumental do desenvolvimento regional.

Observa-se, por exemplo, que as principais causas da queda da taxa decrescimento do Nordeste, no período 1987/93, foram a redução dos investimen-tos públicos e a conseqüente diminuição dos investimentos privados. Em mea-dos da década de setenta, a formação de capital fixo da região chegou a alcançarníveis próximos de 30% por cento do PIB. Em 1991, essa taxa havia caído parapouco mais de 15% por cento. Um aspecto perturbador é o fato de que o inves-timento privado caiu mais rapidamente que o investimento público na Região.

Outra constatação preocupante é a de que o Nordeste não conseguiuaumentar o grau de abertura de sua economia para o exterior. A estratégiaregional de crescimento esteve baseada no acesso a um mercado interno prote-gido, com o qual a região não mais poderá contar, à medida que se consolida aestratégia brasileira de liberalização econômica e inserção internacional.

Os fatores que caracterizam o novo paradigma de desenvolvimento doBrasil, como menor presença do Estado, redução da proteção aduaneira, ênfaseem novas tecnologias e em recursos humanos qualificados, inserção e

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competitividade internacional, tudo isso conspira para favorecer as áreas maisdesenvolvidas do país, marginalizando, ainda mais, as regiões periféricas.

A ausência de uma política de descentralização industrial pode contribuirpara o aumento das disparidades regionais. A tendência natural da indústria é ade concentrar-se nos pólos desenvolvidos, em busca das chamadas economiasde aglomeração. Essa orientação privada, todavia, pode não coincidir com osobjetivos sociais do governo, pois não leva em conta as “deseconomias exter-nas” do aumento da poluição industrial, da excessiva concentração urbana, doempobrecimento das regiões periféricas, enfim, todos os custos sociais cujaconta é deixada para o governo pagar.

Todos os incentivos dados, em nível nacional, devem ser, regularmente,estendidos ao Nordeste, em condições preferenciais, com especial ênfase nocaso da indústria automotiva e dos componentes industriais em geral, para con-figurar uma explícita política nacional de desconcentração econômica e, emparticular, industrial.

O fator crítico para a aceleração do desenvolvimento regional é a recupe-ração da capacidade de investimento da região, com a mobilização de recursosgovernamentais e privados, de fontes internas e externas. Um trabalho sistemá-tico e ordenado de pesquisa e identificação de oportunidades, de organizaçãode um banco de dados sobre a região, de estudos de mercado e de elaboraçãode programas e projetos, de concepção e estruturação de “pacotes financeiros”e de divulgação dessas informações, seria executado pelos órgãos de desenvol-vimento regional, em articulação com Estados e Municípios, visando a ampliaros investimentos.

Os programas sociais do governo não podem restringir-se a uma dimen-são assistencial, mas devem ser integrados numa ação sistemática para capacitaros pequenos e humildes, assim como os pobres e indigentes, a superarem a suacondição de excluídos, habilitando-os para o trabalho produtivo e o exercícioresponsável da cidadania.

O que se pretende é dar um salto qualitativo na formulação eimplementação de uma nova estratégia de desenvolvimento do Nordeste, rom-pendo com o passado e projetando uma nova visão de futuro.

43AS REBELIÕES DAS POLÍCIAS MILITARES, tiveram início em uma corporação, deBelo Horizonte, quando um cabo de polícia foi morto, às portas do Palácio daLiberdade. Desdobrou-se, como um rastilho de pólvora, nas cidades de Belémdo Pará, Teresina, João Pessoa e, concomitantemente, em Recife e Maceió.

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Na terça-feira, quinze de julho, centenas de policiais militares desfilarampelas ruas centrais da capital alagoana, reivindicando uma causa mais do quejusta: a regularização dos seus salários atrasados. Reconhecíamos ser legítimo opleito só que não podia ficar restrito ao poder armado do Estado. A pretensãoé verdadeira para todo o funcionalismo.

Tomando conhecimento de que a passeata estava diante do Palácio Mare-chal Floriano, dirijo-me ao Salão dos Despachos, símbolo da governabilidade.Permaneço com o vice-governador, ao lado de pequeno número de amigos eoficiais do Gabinete Militar, que ali se encontravam. O cargo exigia uma atitudede coragem cívica. Nada de grave aconteceu.

No dia 17 de julho, a concentração é na Praça Dom Pedro II, em frente àAssembléia Legislativa. O Deputado João Neto, Presidente do Poder, haviasolicitado tropas federais para garantir a tranqüilidade dos trabalhos. A multi-dão invade a praça. Os soldados atiram para o alto. Generaliza-se o pânico, comperspectivas de tiroteios. O Presidente da Assembléia me telefona, angustiado,pedindo que crie condições para que eles possam sair ilesos. Assistindo pelatelevisão a correria reinante na praça, preocupado que ninguém seja morto,decido esvaziar o movimento tirando uma licença, com prazo determinado.Telefono para o Presidente Fernando Henrique dizendo que era a melhor solu-ção, para evitar um conflito de conseqüências imprevisíveis e informo que es-tava passando o governo para o vice, Manoel Gomes de Barros, como já fizeradezenas de vezes, em decorrência da praxe que havia assumido de não haver,entre nós dois, nenhuma solução de continuidade. O Presidente concorda emanda a Maceió o General Alberto Cardoso, em companhia do Ministro daJustiça, Senador Iris Rezende, como observadores dos acontecimentos. A Pra-ça Dom Pedro II esvazia-se no início da tarde. A cem metros do logradouro,tanto em direção às ruas do Comércio, do Imperador e João Pessoa, tudo esta-va calmo.

O Recife, durante três dias, ficou exposto ao vandalismo. Os inúmerosassaltos obrigaram os comerciantes, nos bairros, a fecharem suas portas. EmFortaleza um soldado atira no Comandante Geral da Polícia Militar que perma-neceu entre a vida e a morte.

Os ministros chegaram no fim do dia. Conversamos assuntos gerais e osconduzo à entrada principal do Palácio, defronte à Praça Floriano Peixoto, ondenão existia qualquer agitação.

Reuni os Deputados da bancada governista e formalizei a transferênciado governo, durante o período de licenciamento. Pedi que fossem leais ao“Mano” como tantos foram a mim. O Vice-Governador e o Presidente daAssembléia acompanharam-me até o automóvel, na garagem do Palácio.

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Os inimigos e alguns falsos amigos inventaram que eu havia saído pelaporta dos fundos. A falsidade é uma conseqüência da fragilidade de caráter.Dois dias antes, sem me intimidar diante da multidão, recusara-me a sair doPalácio. Não havia sentido em abandoná-lo quando inexistia qualquer tumultoe, os funcionários do gabinete, ofereciam total solidariedade.

No início de novembro reassumo o governo e, solenemente,desincompatibilizo-me para disputar uma vaga na Câmara Federal.

44É GRATIFICANTE PARA MINHA ALMA DE HOMEM PÚBLICO haver recebido, emmomento de infortúnio, centenas e centenas de mensagens de solidariedade,através de telefonemas, cartas e telegramas, plenos de referências elogiosas arespeito de nossa atividade política.

Poderia destacar inúmeras, mas pretendo fixar-me naquela que, imagi-no, tenha sido oriunda de algum líder espiritual. Dela, gostaria de destacar al-guns tópicos para partilhá-los com todos quantos me são queridos, por tradu-zirem uma síntese de tudo de bom e de belo que eu tenha recebido nesses diasque permanecerão inesquecíveis em minha memória, pela confirmação, quetive, da grandeza humana.

O título é “estorvo”, também conhecido como empecilho. O estorvoseria uma pedra no caminho. É inevitável que ele surja, ou se apresente, nomomento exato em que estamos tentando, com todo nosso empenho, levaravante algum propósito, ou ação relevante. É um obstáculo que não mede con-seqüências. Pessoas que têm idéias nobres, vocações expressivas, devem estar,cada vez mais, inteiradas desse fato e precavidas, ante sua inusitada aparição.

O estorvo exige que demos marcha à ré e, às vezes, até que suspendamosa viagem. É imperioso aos que estão determinados a grandes planos e a gran-des conquistas não entrarem em pânico ou discussão com o estorvo ou o obje-to dele. É mister que demos a volta e do mesmo nos distanciemos, assim comoo rio que, contornando a montanha, segue sua trajetória em busca do destinotraçado pela natureza.

Realmente, o estorvo é uma pedra no caminho. Não é surpresa o fato degrandes homens e mulheres, que tenham enfrentado esse monstro, o haveremvencido com fé em Deus, concluindo suas tarefas com galhardia, porque con-sideraram o estorvo apenas como um obstáculo menor que seus sonhos. E,com essa certeza, avançaram.

Lendo esse texto inspirador de tanta confiança, lembro-me de um missi-onário com quem convivi na minha juventude, um Pastor americano, que cos-tumava afirmar: O empecilho, depois de vencido, se transforma em glórias para o vencedor.

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É indispensável caminhar transpondo obstáculos e sombras, para trans-formar as dificuldades em degraus de ascensão.

45A CORDA COM UM GOSTO AMARGO NA BOCA. Leva alguns minutos para terconsciência de onde se encontra. O quarto está escuro. Levanta-se aos trope-ções. Aciona o interruptor para acender a luz. A iluminação revela a pobreza domobiliário. Olha seu relógio de pulso. São três horas da madrugada de umacalorenta noite de janeiro. O calor de verão, na cidade do Recife, aumenta asede que o excesso de bebida alcoólica lhe provoca. Bebe água com sofregui-dão. Saciada a sede, volta a deitar-se. Arrepende-se do whisky que tomou. Nãoconsegue conciliar o sono. Começa a analisar sua vida. Tem 64 anos, sendo que45 dedicados ao partido.

Antônio José nasceu no bairro de Santo Amaro, na capital pernambucana.O pai era alfaiate. Muito cedo começou a auxiliá-lo. Hábil e esforçado, apren-deu o ofício com relativa facilidade. Aos 18 anos, prestou o serviço militar no14° Regimento de Infantaria do Exército Brasileiro. Espírito disciplinado eresponsável, gostou do viver no quartel. Foi aprovado nos primeiros lugares nocurso de cabo e teve as atenções de um colega veterano, admirado não só porser muito solidário, mas, principalmente, pelo fato de ser o campeão de tiro aoalvo do regimento. Foram companheiros de estudos, farras e brigas. Ficaraminseparáveis. Era o seu modelo. Aceitou as idéias do amigo e transformou-seem ativista. Expulso do Exército por suas atividades revolucionárias, foi preso,espancado e torturado várias vezes. Participou de dezenas de campanhas elei-torais. Sofreu a fome, a luta, o exílio. Viveu na clandestinidade. Morou emMontevidéu e Buenos Aires e, a suprema glória: conheceu a União Soviética.Quanto maior fosse o seu sofrimento, maior a dedicação ao Partido. Era a suacruzada, a sua religião, e Moscou, uma espécie de Meca ou Jerusalém.

– Como é forte a necessidade de crença no ser humano. Ele precisa crernum Deus, em outro ser humano, ou em uma idéia.

Antônio José custou a aceitar o apoio de Carlos Prestes à candidatura deGetúlio Vargas, em 1950, depois do que ele sofrera no Estado Novo e da morteda esposa alemã, Olga, nas mãos do nazismo, por culpa do Governo Vargas. Oassassinato de Trótsky, por ordem de Stalin, e o expurgo de mais de dois mi-lhões de bolcheviques. O culto à personalidade de vários líderes do Partido. Orompimento do herói de guerra da Iugoslávia, o Marechal Tito, com Moscou.O aviltamento da memória de Stalin e a prisão da viúva e dos seguidores deMao Tsé-tung, após a morte do grande revolucionário chinês.

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O isolacionismo e a estagnação da Albânia, por fidelidade aos princípiosstalinistas, e a campanha de calúnias e infâmias, noticiada pela imprensa mundial,tentando denegrir a honra de Envei Hoxha, chefe da resistência contra a inva-são nazista e do governo albanês, durante quatro décadas, o levou à conclusãode que a perpetuidade no poder é nociva à memória do líder e ao desenvolvi-mento de um povo.

Havendo combatido os Estados Unidos pela interferência econômica emilitar nos países do terceiro mundo, não entende as invasões da Hungria, daChecoslováquia e do Afeganistão pelas tropas vermelhas. Acha difícil explicara palavra de ordem de lutar, embora lute sistematicamente contra a implanta-ção de usinas atômicas nos países capitalistas, pois bem sabe que quase todo omundo comunista instalou fábricas nucleares em seus territórios, inclusive Cuba,que tem quatro usinas, e o presidente do programa nuclear é o filho de FidelCastro, chamado afetuosamente de Fidelito. Jamais aceitou os argumentos paraa opressão militar do governo polonês ao sindicato Solidariedade.

A presença de empresas multinacionais na República Popular da China ena União Soviética, em busca de melhor produtividade, e o reconhecimento dolucro como símbolo de competência, deixaram-no atônito.

A luta pela correção dos desníveis sociais através do socialismo é a suagrande causa. Reconhece, entretanto, que países como Japão, Alemanha, Ingla-terra, França e a Escandinávia conseguiram, através de um processo evolutivo,a conquista de uma justiça social perfeita sem sacrificar a liberdade. Enfatiza,porém, que milhões de pessoas são exploradas nas mais diversas partes domundo, em benefício de uma minoria privilegiada.

Retilíneo em suas atitudes, excelente caráter, honesto, angustia-se comtodas essas contradições. A arbitrariedade daqueles que chegam ao poder, usandocomo bandeira de luta o combate ao arbítrio, provoca-lhe frustrações profun-das. A falsidade dos pseudomoralistas levou-o a desconfiar daqueles que secolocam como “Salvadores”. A experiência política lhe diz que, geralmente,são os maiores corruptos quando têm alguma parcela de poder.

Recorda-se, com nitidez, dos detalhes da discussão sobre o livro“Perestroika”, de Mikhail Gorbachev, no apartamento do Deputado ArthurCavalcante, em Olinda. O grupo era pequeno. Apenas seis pessoas. Haviammarcado o jantar especificamente para discutir as novas idéias. O debate foibastante acalorado. Dois companheiros haviam considerado o livro um retro-cesso. Argumentavam, radicalmente, que Gorbachev era um direitista que esta-va colocando em perigo a pureza do ideal comunista. A maioria, no entanto,considerou a autocrítica do regime um passo à frente no evoluir humano, nabusca da paz universal, no respeito à soberania dos povos e no grande encontroda humanidade, evitando, assim, o holocausto atômico.

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Antônio José relê trechos da carta que Lasta, uma senhora de Leningra-do, escreveu para o líder soviético, 70 anos depois da Revolução de 1917.

Todos nós devemos lutar contra todas as manifestações das odiadas velhas regras, taiscomo burocracia, corrupção, conformismo, subserviência e medo dos poderosos. Esse, agora, éo dever de todos que não querem voltar ao passado. A construção é sempre difícil, e mais difícilainda quando se tem que limpar o local onde se vai construir.

O dia está amanhecendo. A luz do sol começa a iluminar a terra. É a forçada vida. O caminho para evitar o Apocalipse ainda é longo. Mas o importanteé que os primeiros passos foram dados. O diálogo e o entendimento são funda-mentais. É um novo raiar.

46O TÚMULO ESTÁ ABANDONADO. O matagal invadiu a tumba. Os efeitos nega-tivos do desgaste do tempo provocaram um aspecto desolador. Mesmo assim,possui um toque de nobreza. É evidente que, quem quer que seja a pessoa alienterrada, não tem ninguém a cuidar da sua memória. O administrador docemitério Nossa Senhora da Piedade, o mais antigo de Maceió, afirma nãoexistir nenhum registro, nos arquivos do campo santo, explicando a construçãodo mausoléu. A qualidade do mármore revela que o responsável deve ter sidoalguém de muitas posses. O sexo feminino é definido pelo nome Maria. Sim-plesmente Maria. O mistério é aumentado pelo fato de não constar referência àfamília a que pertencia.

David Azevedo, companheiro de tantas caminhadas, está ao meu ladonesse passeio fúnebre. Foi ele quem despertou minha curiosidade para o enigma.Possuindo a sensibilidade romântica dos poetas, decide homenagear a mulhersimbolizada por Maria, arcando com as despesas de recuperação do mausoléu.

Todos que se deparam com a lápide, interrogam-se. Quem foi Maria? Ahipótese de esposa é logo afastada. Uma sociedade conservadora, como a dacapital alagoana, nos primeiros anos da década de vinte, jamais omitiria a estru-tura familiar. O alto custo do dinheiro empregado na obra denuncia que erauma mulher muito querida. Talvez uma filha ou uma irmã. Tenho certeza deque não chegou a envelhecer. Nesses casos, por que esconder as origens? Bus-co a tese do grande amor proibido. Considero-a a mais lógica.

Liberto a imaginação. O senhor de engenho, ao tomar conhecimento deque sua filha caçula estava apaixonada por um homem casado, internou-a noconvento de Nossa Senhora, na cidade de Alagoas. A jovem entrou em de-pressão e suicidou-se. Deixou uma carta confirmando a sua imensa paixão.Rumores surgiram. O pai, prisioneiro de um código de honra medieval,

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prepotente por orgulho, por ignorância ou por covardia, embora estivesse so-frendo com a enorme perda, enfrentou o desespero da esposa e enterrou a filhano anonimato.

Poderia ter sido, também, a amante que morrera em plena juventude, víti-ma de uma tuberculose galopante, doença fatal nos fins do século passado. Ohomem amado transfere, à perfeição dos mortos, a angustiante saudade dapaixão perdida.

Ficção ou realidade, pouco importa. O apaixonado sabe que a verdadenão é pura. E, por isso mesmo, misturada a afirmações sinceras, subterfúgios edesvios. Não é importante o que Maria fez ou deixou de fazer. Busco, apenas,preencher uma lacuna. A verdade absoluta está na morte. Ela nivela ricos epoderosos a párias e mendigos. A alegria, a tristeza, a enfermidade ou as expe-riências mais secretas de Maria, sua permanente procura de amor, hoje sãoapenas silêncio.

Rememoro essas divagações do espírito visitando, cheio de saudades, aúltima morada de meu inesquecível amigo-irmão David Azevedo. Falecido su-bitamente, ele agora repousa, para sempre, naquele túmulo que, um dia, numgesto de ardor romântico, resgatara ao descaso e ao anonimato.

47A EXISTÊNCIA HUMANA É CONSTITUÍDA DE FATOS encadeados e seqüenciadosentre si de tal modo que, se cada um deles for analisado isoladamente, o con-junto fica prejudicado, e a realidade se distancia do enfoque aparente.

Suspendendo os efeitos da liminar que atribuíra irregularidades à licença,concedida pela Assembléia, em 17 de julho último, ao Chefe do Executivo, oEgrégio Poder Judiciário de Alagoas restabelece a legalidade de nossa posiçãocomo Governador do Estado. Enquanto isto, o Poder Legislativo, arquivandodenúncias que propunham o desencadear de um processo de impeachment con-tra o mandato que recebi da esmagadora maioria dos sufrágios populares demeu Estado, desagrava minha alma de homem público das calúnias e meiasverdades, contra mim assacadas.

Reconhecido pelo Tribunal de Justiça o direito que detenho de reassumiro governo, resta-me, agora, o julgamento popular ao qual me submeterei, maisuma vez, de cabeça erguida, cônscio de meus limites humanos e sobretudo, daspotencialidades que possuo para, na Câmara Federal, continuar servindo nossacomunidade.

Nesta hora, contudo, em que a verdade se restaura e a legalidade se im-põe, após 90 dias de meditação, durante os quais convivi com desencantos

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decorrentes de falhas de caráter, mas, felizmente acompanhados de gestos degrandeza e solidariedade humana que ultrapassaram, de muito, minhas melho-res expectativas, decidi me desincompatibilizar, agora, do cargo de Governa-dor. Antecipo, assim, uma decisão que se fez praxe nos dois mandatos anterio-res, quando exerci a Chefia do Executivo.

Só admiti a idéia de disputar, mais uma vez, o Governo de Alagoas, porimaginar que poderia ser útil ao nosso Estado. Sabia que a situação financeira eadministrativa era bastante difícil, mas, confesso, fiquei surpreendido com ocaos que encontrei. Enfrentei uma grande dúvida: a vitória teria sido uma bên-ção ou uma maldição. No entanto, aprendi a ter sempre em mente que, quandoinclinamos nossa cabeça em sinal de resignação ou perdemos a vontade depermanecer firmes, opondo resistência, começará, impreterivelmente, nossaqueda ao abismo.

Assumi o governo na esperança de minorar as agruras do povo da minhaterra. Não há caminho que não tenha percorrido, não há acordo que não tenhatentado, não há esforço que não tenha feito, com impessoalidade, objetividadee isenção, nessa escalada de angústia, nessa visão impressionista que durou 31meses, de dias tormentosos e de noites insones. Houve momentos em que mesenti como o condenado a caminho do patíbulo.

Política, para mim, sempre foi construir, realizar, fazer o bem, lutar con-tra distorções sociais e regionais. Permaneço fiel aos meus princípios. Jamaisviolentei a minha consciência no exercício do Poder.

Na certeza de que o melhor resultado de uma obra se obtém no trabalhocomum, ouvi todas as vozes, de todos os lados, à procura da parcela de verdadeque, em geral, todas elas contêm; e empenhei-me no sentido de agrupar asforças do Estado em torno de dificuldades concretas, de questões objetivas.

Para os problemas de Alagoas, busquei soluções, e não, culpados. Jamaisme faltaram vontade política e decisão para reverter a crise insidiosa, cujosefeitos penalizam, indistintamente, todos os segmentos do corpo social alagoano.É tão importante conter os Poderes como instituí-los.

Uma das vantagens de estar na oposição é que se pode, em pensamento,passar à frente daqueles cujo destino é colocar os planos em prática. Não iría-mos perder tudo, na tentativa de fazer demais.

Sempre entendi que a obra social, para que seja duradoura e produzabons efeitos, precisa ter caráter solidário. Daí a importância, na sua construção,da parceria indispensável dos Três Poderes, dos seus vários órgãos, das entida-des representativas da sociedade civil e da própria comunidade.

Alagoas tem todo um potencial econômico capaz de consolidar o seudesenvolvimento, desde que as chamadas elites esqueçam seus interesses

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corporativistas e se unam em torno deste grande objetivo. É uma ilusão pensarque se poderá sobreviver a um colapso geral.

A dificuldade, na prática, está em que as classes privilegiadas ficam cadavez mais ricas; as outras, cada vez mais pobres. E os interesses e cumplicidadesque se criam são de tal ordem que o estágio distributivo vai sendo, indefinida-mente, adiado.

Para garantir a felicidade coletiva, não basta fazer cessar toda a oposiçãoirregular. É preciso resistir ao espírito de anarquia. Precisamos de um governoque garanta nossas vidas, nossas propriedades e nossa liberdade. Em caso con-trário, chegaremos logo ao pior. Em cada Estado, há combustíveis prontospara arder. Basta uma faísca para provocar um incêndio. Adotemos um abenço-ado ato de esquecimento. Devemos olhar para o futuro. Tem que haver um atode fé na família alagoana.

Democracia não é a lei da turba. A Democracia não se baseia na violên-cia, nem no terrorismo, mas na razão, no jogo limpo, na liberdade, no respeitoaos direitos dos outros. Por isso, é necessário conter homens ambiciosos, es-pertos e desprovidos de princípios que viriam, mais tarde, a adquirir um injustodomínio sobre a sociedade.

Ao reparar os atos de meu governo, apesar de estar consciente de nãohaver cometido qualquer falta intencional, tenho uma compreensão bastanteprofunda de meus defeitos, para não imaginar que, provavelmente, cometi mui-tos erros. Mas, fossem eles quais fossem, não os cometi consciente de queestava agindo erradamente.

Afasto-me sem mágoas nem recriminações, animado pela paz interior deuma consciência tranqüila e agradecido pela maneira cativante com que semprefui tratado pelo povo da minha terra, que fez de mim um político vitorioso, eque, várias vezes, me consagrou nas urnas com recordes nacionais de aceitação.Ao contrário do que se divulgou no país afora, ser alagoano é saber ser amigo.Implica certa aristocracia do coração.

O gesto terá sido válido se ele servir para debelar a crise que ora aflige omeu Estado. Confio na eficácia do tempo. Ofereço o sacrifício de trinta e cincoanos de vida pública, de trabalho fecundo e continuado, no desejo de que, parao bem de Alagoas, meu afastamento do Poder tenha uma valia superior à mi-nha permanência.

48VIVI, MAIS UMA VEZ, AS EMOÇÕES de uma campanha eleitoral. Sabia dos obstá-culos imensos que teria de enfrentar. Inveja e difamações se aliavam à falta de

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condições financeiras para enfrentar o pleito. Refleti bastante. Cheguei à con-clusão de que, qualquer que fosse o resultado, deveria participar do processo,pois, fatalmente, seria alvo do ódio de meus adversários e precisava ter acessoaos meios de comunicação para defender o meu nome.

Estabeleci três metas.A primeira delas era provar, através do guia eleitoral, que ninguém, ao

longo da história administrativa de Alagoas, fez tanto por nosso Estado quantoDivaldo Suruagy. Bati todos os recordes em pavimentação de rodovias, emconstrução de salas de aula, de unidades de saúde, de casas populares e emrealização de concursos públicos. Esse objetivo foi plenamente atingido.

A segunda foi desafiar, publicamente, os meus opositores através de cons-tantes anúncios em todas as estações de televisão, quando, novamente utilizan-do o guia eleitoral, divulguei, várias vezes, a declaração de meu patrimôniosolicitando que os meus inimigos adotassem idêntica atitude.

A terceira, obviamente, era tentar ganhar o pleito. Alguém, muito sábio,afirmou, certa feita, que o verdadeiro político só deixa de concorrer em campa-nhas eleitorais quando morre ou quando o povo lhe nega o indispensável apoio.

Derrota não se justifica. Respeita-se. Não fui eleito, simplesmente porquenão obtive os votos necessários para ganhar.

Gostaria, realmente sensibilizado, de expressar minha gratidão aos milha-res e milhares de alagoanos que, numa demonstração de confiança e apreço,sufragaram nosso nome.

Inicia-se um novo ciclo político em nosso Estado. Desejo, sinceramente,que os seus líderes correspondam à confiança de Alagoas.

Imagino haver chegado o momento de escrever minhas memórias. Dougraças a Deus por me haver concedido a mais nobre de todas as suas bênçãos:o sentimento do dever cumprido.

49OS CAMINHOS DA POLÍTICA SÃO, MUITAS VEZES, estranhos e imprevisíveis,contrariando a lógica dos acontecimentos. Líderes, com prestígio eleitoralcomprovado, francos favoritos em pesquisas de opinião pública, perdem naseleições por um gesto inoportuno, uma estratégia errada, uma frase mal colo-cada, uma calúnia aceita com cunho de veracidade. Outros iniciam uma cam-panha, aparentemente sem possibilidades de vitória, verdadeiros azarões, e,durante o decorrer do pleito, crescem na aceitação popular, graças ao bomdiscurso, a uma posição de vítima por agressões recebidas ou por falhas doadversário.

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Perguntado, certa feita, por um jornalista, que conselhos poderia ofereceraos jovens pretendentes à difícil e apaixonante aventura política, respondi: tra-balho, pertinácia e jamais esquecer que uma campanha não é feita em quatromeses, e sim, em quatro anos.

Política exige uma dedicação total. Ela é uma ação permanente. Aquelesque desejam vivê-la em plenitude devem ordenar suas idéias pensando no cole-tivo e, nunca, em interesses mesquinhos; esforçar-se para praticar o axiomamaior no relacionamento humano que é o de tratar a todos da maneira quedesejamos que todos nos tratem. Perseguindo essa norma de vida, dificilmentedeixarão de ser vitoriosos.

Poderiam contestar-me. Por que tantas pessoas inescrupulosas, verdadei-ros amorais, conseguem sucesso no processo político? Afirmaria que, em ver-dade, não são políticos. São oportunistas, muitos até vigaristas, encontrados emqualquer atividade. O erro é generalizar. Eles não podem ser confundidos comuma classe social. Devemos enfrentá-los e derrotá-los.

Política é compreensão para as falhas humanas. É lutar contra as injusti-ças dos poderosos do momento. É fazer o bem sem esperar recompensas. Éser solidário nas dificuldades. É possuir a consciência de que o Poder é volúvele efêmero.

Concluindo a leitura das memórias do ex-Presidente dos Estados UnidosRichard Nixon, encontro a confirmação de como o Poder é instável e ilusório.Personalidade polêmica e contraditória, viveu os altos e baixos da atividade polí-tica. Deputado Federal, Senador da República, Vice-Presidente, por dois manda-tos consecutivos, no Governo Eisenhower, foi derrotado pelo Senador JohnKennedy quando disputou, pela primeira vez, a Presidência do seu país. Instalan-do-se como advogado em Los Angeles, candidata-se ao governo da Califórnia eperde. Parecia o término de sua carreira política. Anos depois, é indicado peloPartido Republicano como candidato à Presidência. Eleito, surpreende o mundorestabelecendo as relações diplomáticas com a China comunista. A surpresa éque sua imagem sempre fora vendida como a do político conservador e até rea-cionário. Reeleito com uma votação consagradora, renuncia em poucos meses,envolvido no escândalo Watergate. Ninguém teve dúvidas de que era um homemliquidado. Surpreende mais uma vez o mundo, recuperando grande parte do seuprestígio nos Estados Unidos, tornando-se conselheiro de Presidentes e influen-ciando nos destinos da sociedade norte-americana.

O famoso historiador britânico Arnold Toynbee analisou o fenômenoque ele chama de afastamento e retorno. Define como um período de desliga-mento e afastamento temporário de uma personalidade criativa do seu meiosocial e sua posterior volta ao mesmo meio, assumindo uma nova posição, com

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novos poderes. O número de figuras históricas que exemplificam sua tese ébastante expressivo. Entre outros, Maomé, Confúcio, Garibaldi, Lenin, WinstonChurchill, Charles de Gaulle. No Brasil, os exemplos maiores são RodriguesAlves, Getúlio Vargas e Jânio Quadros. Alguns grandes homens se tornarammedíocres porque não conseguiram suportar uma derrota, e muitos tornaram-se grandes porque foram capazes de superar um revés.

A derrota nunca é fatal a não ser que você desista; quando passamos poruma derrota, conseguimos colocar nossas fraquezas em perspectiva e fortificarnosso sistema imunológico para lidar com elas no futuro; nunca sabemos o quan-to somos fortes enquanto as coisas correm mansas. Quando precisamos enfren-tar a adversidade, de dentro de nós brota uma força que não sabíamos ter.

Chu En-Lai, um dos companheiros de Mao Tsé-tung na Grande Marcha,costumava repetir: os que só percorrem estradas planas não desenvolvem suas forças. Ne-nhuma vitória é permanente e nenhuma derrota é irreparável. A mensagem finalque deixaria é a de que jamais devemos aceitar a derrota. Não importa quantas vezes formosderrotados. Levantemo-nos e voltemos à luta.