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miguel syjuco Ilustrado Tradução Fernanda Abreu

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miguel syjuco

Ilustrado

Tradução

Fernanda Abreu

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Copyright © Miguel Syjuco 2010 Proibida a venda em Portugal

Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009.

Título original Ilustrado

Capa gray318

Preparação Ciça Caropreso

Revisão Isabel Jorge Cury Carmen S. da Costa

[2011] Todos os direitos desta edição reservados à editora schwarcz ltda. Rua Bandeira Paulista 702 cj. 32 04532-002 — São Paulo — sp Telefone (11) 3707-3500 Fax (11) 3707-3501 www. com pa nhia das le tras.com.br www.blogdacia.com.br

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip) (Câmara Brasileira do Livro, sp, Brasil)

Syjuco, MiguelIlustrado / Miguel Syjuco ; tradução Fernanda Abreu. — São

Pau lo : Com pa nhia das Letras, 2011.

Título original: Ilustradoisbn 978-85-359-1842-7

1. Ficção inglesa — Escritores filipinos i. Título.

11-03084 cdd-823

Índice para catálogo sistemático:1. Ficção : Literatura filipina em inglês 823

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1.

Um baú de madeira surrado no quarto, com a marchetaria lascada, e a chave finalmente encontrada em uma gaveta tranca-da da escrivaninha. Dentro do baú: um diário recente (capa de camurça cor de laranja, queimada pelo atrito da mão até adquirir uma textura lisa cor de caramelo [do lado de dentro: traduções, adivinhações, piadas, poemas, anotações, e outras coisas]). Pri-meiras edições (Autoplágio, Terra vermelha, Ficções reunidas, O iluminado et cetera). Uma pequena mala caindo aos pedaços (alça de resina branca; adesivos de hotéis há muito fechados [a fechadura é arrombada com uma faca de cozinha: cheiro de lascas de lápis apontado e cola de encadernação, uma pilha de fotografias {com os cantos cheios de orelhas}, os diários de infân-cia da irmã presos por um elástico esfarelado, envelopes pardos cheios de papéis {transcrições, recortes de jornal, rascunhos de histórias anotados com caneta vermelha, documentos oficiais <certidão de nascimento, carteirinhas de vacinação, passaportes vencidos et cetera>}, um portfólio de telas pintadas {desenhos em

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carvão, grafite, tinta <cavalos, fachadas, retratos, talheres>}, um velho conjunto de bonecas russas {com a do meio faltando}, ou-tras miscelâneas variadas {uma caneta-tinteiro Parker Vacumatic, medalhas herdadas da Segunda Guerra Mundial, um cacho de cabelos cor de âmbar et cetera}]).

Na noite anterior, meu amigo e mentor estava vivinho da silva. Uma fresta da porta se abriu, e só pude ver seu nariz e um dos olhos.

— Sinto muito — disse ele. — Sinto muito. — A porta azul, por sua vez, não pediu desculpas e se fechou com um clique. O trinco foi passado com uma firmeza que, na época, não reconhe-ci. Fui embora e comi um cheesebúrguer com bacon sem ele, irritado com aquela grosseria pouco característica.

O que eu poderia lhe ter dito? Será que deveria ter forçado a porta? Dado dois tapas no rosto dele e exigido que me contasse qual era o problema? Mesmo dias, semanas depois, todos os fragmentos ainda não haviam se encaixado. Os acontecimentos pareciam ir-reais, confusos. Algumas noites, eu saía da cama pé ante pé, sem fazer barulho, tomando cuidado para não acordar Madison e correr o risco de atiçar sua ira; ia me sentar no sofá, totalmente imerso em pensamentos, até o céu ficar lilás. Tanto o suicídio quanto o assas-sinato me pareciam dois lados da mesma sedução encenada. Olhando para trás, era saudável que eu me sentisse assim. Os cli-chês nos fazem lembrar e ser reconfortados pelo fato de não estar-mos sozinhos, de outros já terem percorrido esse mesmo caminho muito tempo atrás. Ainda assim, eu não conseguia entender por que o mundo optava pela solução fácil: simplesmente riscá-lo da lista e depois ir para casa assistir a programas de tv com enredos complicados. Talvez esse seja o costume da nossa época.

Então, quatro semanas depois da morte de Crispin, recebi um telefonema de sua irmã (cuja voz fina e descorada parecia

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um pedaço de barbante), que me pediu para dar cabo dos per-tences dele; adentrei o apartamento bolorento de Crispin como se ele fosse uma cripta.

Quatro meses depois de sua morte, eu não conseguia mais dormir à noite; ficava sentado escutando a respiração de Madi-son, pensando, por algum motivo, nos pais que nunca conheci e no quanto sentia falta de Crispin, com seu ridículo chapéu fedo-ra e suas opiniões fortes.

Passados seis meses, comecei a escrever a biografia de Cris-pin; não sei direito por quê, mas as longas horas na biblioteca, a ideia de que a vida dele poderia ajudar a minha, tudo isso preser-vou minha sanidade.

Oito meses e uma semana depois, Madison me deixou para valer; fiquei torcendo para ela telefonar, mas ela não telefonou.

Bem tarde da noite do dia 15 de novembro de 2002, exata-mente nove meses depois da morte de Crispin, eu estava exami-nando minha caixa de entrada à procura de um e-mail de Madi-son. Com um bip, três mensagens novas surgiram. A primeira era de [email protected]. Dizia, em parte: “Afie o seu sabre de amor até deixá-lo tinindo. Ajuda que provoca vitórias do desejo. Como durar mais fazendo amor e ter mais sensações”. A segunda era de [email protected]. Dizia, em parte: “ob-

tenha diploma hoje! Se estiver procurando um jeito rápido de subir na vida (não reconhecido), esta é a solução”. O terceiro e-mail estava prestes a ir para a lixeira quando percebi quem o tinha enviado. A mensagem dizia, em parte: “Prezado senhor/senhora... Fui informado pelo nosso advogado, Clupea Rubra, que meu pai, na época mandachuva do governo e chefe da fortuna da família, telefonou para ele, Clupea Rubra, levou-o para visitar seu apartamento e lhe mostrou três caixas de papelão preto. Algum tempo depois, meu pai morreu em circunstâncias misteriosas, e o governo desde então tem nos perseguido, importunado, policia-do e congelado nossas contas bancárias. Venho portanto solicitar

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sua heroica ajuda para reaver o legado de meu pai e destruir seus desprezíveis assassinos. Mais informações tba”. O remetente era [email protected]. Criei uma nova mensagem para responder. Escrevi: “Crispin?”. O cursor piscou para mim. Cli-quei em “enviar” e aguardei.

Na manhã seguinte, comprei minha passagem de avião.

Vejam o rapaz embarcar em um avião. Não é um rapaz jo-vem, mas um homem com aspecto de rapaz, como ele descreveria a si mesmo. Ele ocupa seu assento no meio da fileira, com o laptop aberto, uma caneta na mão, a caminho de Manila (quase escrevi “a caminho de casa”, pensa ele com um sorriso). Detesta essa viagem, tanto o trajeto quanto a chegada. Está escrevendo neste momento “o limbo entre dois postos avançados de humanidade”.

Enquanto o avião é rebocado para trás, ele pensa no que está abandonando. Pensa em seu amigo e mentor perdido, sentado diante da máquina de escrever, produzindo uma lenta acumulação de letras, palavras, frases, encaixando peças espalhadas como mi-galhas de pão pelo caminho atrás de si.

O rapaz irá voltar, o coração partido, solitário, rejeitado. Seus três irmãos e duas irmãs estão todos no exterior, livres de casa — encarapitados no alto de uma colina em São Francisco, lançados sob o céu de Vancouver, escondidos entre os ruídos alegres de No-va York. Seus pais, de quem já não se lembra, estão enterrados em túmulos que ele não consegue se forçar a visitar porque sabe que seus corpos não estão lá. Os avós, que o educaram da melhor forma que puderam, estão em Manila, embora ele não tenha mais con-tato com eles por causa da violência emocional de sua última par-tida. Embora não ouse reconhecer isso, está voltando para casa. Sabe muito bem o que são casas vazias e conhece as peças que as lembranças podem pregar em meio a ecos desconhecidos.

Durante as longas horas passadas dentro do avião, tenta não

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pensar em como seus pais morreram, e, consequentemente, não consegue pensar em mais nada. Folheia de maneira obsessiva os jornais filipinos. Estuda seus arquivos de anotações, recortes, ras-cunhos. Abre a caneta-tinteiro que pegou entre os pertences do amigo morto. Tenta escrever o prólogo de Oito vidas vividas, bio-grafia de seu mentor que quer escrever. Remexe-se na cadeira. Pen-sa. Observa os outros passageiros. Julga todo mundo, praticando o tradicional esporte filipino de justificar tanto as inseguranças pessoais quanto as compartilhadas. Lê mais um pouco, à procura de um ponto de referência em um mundo que nunca lhe pareceu completamente seu. Escreve mais um pouco, tentando explicar coisas a si mesmo. Rabisca um asterisco.

Salvador nasceu de Leonora Fidelia Salvador em um quar-to particular do Hospital Mãe do Auxílio Perpétuo, em Bacolod. Estavam presentes sua irmã de oito anos, Magdalena (apelido Lena), seu irmão de seis anos, Narciso Terceiro (apelido Narci-sito), e sua yaya, Ursie (não há registro de seu nome verdadeiro). O pai, Narciso Lupas Salvador ii, conhecido por parentes e ami-gos como Júnior, voltava de Manila a bordo do navio a motor da Companhia de Vapores De La Rama Don Esteban, depois de participar do Congresso do Commonwealth.

O mais jovem membro da família Salvador veio ao mundo na terceira geração da fortuna familiar, adquirida graças a uma mistura de empresas, açúcar, política e notória avareza. Os quatro anos anteriores à invasão japonesa iriam se revelar formadores: durante toda a sua vida, as raízes da família na região de Visaias representaram algo promissor e puro.

Trecho da biografia em andamento Crispin Salvador: Oito vidas vividas, de Miguel Syjuco

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... testemunha ocular relatou duas explosões, a segunda ocorrida trinta segundos após a primeira, ambas no terceiro andar do shopping McKinley Plaza, em Makati. Segundo um porta-voz da Lupas Land Corporation, não houve mortos. Nenhum grupo assumiu responsabi-lidade pelo...

Philippine-Gazette.com.ph, 19 de novembro de 2002

entrevistador:No final dos anos 1960, o senhor escreveu: “A literatura

filipina deve ser a conquista de nosso eu coletivo separada daque-les que tememos estarem nos observando”. Ainda acredita nisso?

cs:Eu acreditava que a autenticidade só podia ser obtida pela

descrição, com nossas próprias palavras, do nosso fragmento de experiência. É claro que isso dependia da completa independên-cia intelectual e estética do “eu”. Depois de algum tempo, acaba--se percebendo que esse isolacionismo intelectual gera estilo, ego, prêmios. Mas não mudança. Eu me esforcei, entende, mas vi muito pouca coisa melhorar à minha volta. O que estamos se-meando? Fiquei impaciente com a política social que a literatura era capaz de abordar e alterar e com a forma insuficiente como ela o havia feito até então. Decidi provocar ativamente a partici-pação — sabe como é, incitar os leitores a agir por meio do meu trabalho. Penso nos efeitos dos livros de José Rizal em nossa própria revolução contra a Espanha, um século atrás. Penso na poesia de Eman Lacaba, que trocou a caneta por uma arma e morreu na mata com os comunistas na década de 1970. “O exér-cito descalço na selva”, assim os chamou seu famoso poema. A epígrafe desse poema era linda. Ho Chi Minh. “Um poeta tam-bém deve aprender a conduzir um ataque.”

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entrevistador:Alguma coisa o fez querer conduzir esse ataque?

cs:Orgulho e medo da morte. Sério. O senhor está sorrindo,

mas não estou brincando.

entrevistador:O seu retorno à polêmica é uma crítica frequente. O se-

nhor...

cs:As pessoas consideram isso dois passos para trás. É um erro.

Quando se vai muito longe, às vezes se completa o círculo. A ta-refa então se torna muito mais difícil e os passos em falso mais prováveis — embora o eventual desfecho possa se tornar mais pertinente. Isso, é claro, expõe a pessoa a acusações de quixotis-mo ou, pior ainda — ou melhor, quem sabe —, messianismo. Veja bem, pretensão e ambição são termos diferentes para dizer a mesma coisa. Na verdade, o que dá uma rasteira nos críticos é o desejo de causalidade do artista — do verdadeiro artista.

entrevista concedida à The Paris Review em 1991

Faltam três horas para eu chegar. A Manila. “Em casa”, eu quase disse.

Detesto esta viagem, tanto o trajeto quanto a chegada, o limbo entre dois postos avançados de humanidade. Vocês se lem-bram de quando viajar de avião era divertido? Distintivos de pi-loto de brinquedo e aeromoças sorridentes que os levavam para visitar o imenso cockpit? Hoje em dia, eles nos obrigam a nos separar de nossos objetos de valor e a passar por detetores de

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metal, nervosos e sem sapatos; amedrontam-nos com histórias sobre trombose venosa profunda; amontoam-nos como animais e depois passam Keanu Reeves em telinhas no encosto dos assen-tos para nos ninar e nos fazer mergulhar em um torpor descon-fortável. Logo depois de pegarmos no sono, eles nos acordam. Aposto que ninguém que ainda seja marxista teve de viajar em um assento da classe econômica na fileira do meio em um voo de longa distância abarrotado como este.

À minha volta, nesta lata de sardinha, meus companheiros de viagem: nós, os insurretos aquiescentes, inconscientes; nós, que já fomos embora e voltamos tantas vezes ao longo da história que nossa língua nos batizou com um nome — balikbayan. Se-guimos de ombros arriados, vergados pela ausência; nossas baga-gens de mão estão estufadas com objetos que não couberam na mala despachada, todos os incontáveis presentes para os incon-táveis parentes — prova de que o nosso tempo no exterior não foi em vão.

Essa é a minha gente. (Crispin a chamava de “pé torto, co-ração aberto”.) A meu lado está um homem atarracado e corpu-lento usando uma jaqueta jeans délavée e uma máscara de dor-mir que lhe escorrega do rosto, a cabeça jogada para trás de modo a poder roncar com mais eficiência. Provavelmente um operário da construção civil, um membro da diáspora de milhões de indivíduos escravizados pelo poder de persuasão dos sonhos. Do meu outro lado, duas senhoras mais velhas, irmãs ao que parece, remexem-se e folheiam a revista de bordo pela décima sexta vez. Suas almofadas infláveis ao redor do pescoço me lem-bram cangalhas de búfalos, se é que a metáfora não é óbvia de-mais. Uma delas tem um rosário embolado em uma das mãos. Com a outra, vira as páginas cheias de fotografias. A irmã reclama que ela está folheando depressa demais. Do outro lado do corre-dor, uma filipina mignon de sapatos de salto altíssimo descansa

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a cabeça loura no ombro de um americano grandalhão que deve ser do Texas, usa os óculos bem na ponta do nariz em forma de cunha e lê um livro de Dale Carnegie sob um facho de luz. Uma cobra e uma adaga tatuadas serpenteiam por seu antebraço. Atrás dele está sentado um caucasiano idoso, enérgico, cabelos bran-cos, a jaqueta esportiva e a calça de brim amarfanhadas ao estilo jesuíta intrépido ou pedófilo em férias. A seu lado, um dueto de empregadas domésticas fofoca sem parar, prolongando o expe-diente de nove horas. A cabeça delas, envoltas em máscaras de dormir que prendem seus cabelos, fazem pequenos movimentos para abocanhar pedacinhos de hipérboles, como pombos catan-do o arroz jogado na calçada nos passeios de domingo, folga das domésticas que existem aos milhares nas grandes cidades do mundo. Já ouvi duas vezes o que Minda fez com Linda e fiz careta três vezes diante da coisa terrível que Dottie disse a Edil-berto. Tomei notas e sorri ao ouvir uma delas reclamar:

— Ela me apunhalou pelas costas, e nem de costas eu esta-va. — As vozes agressivas e bruscas das mulheres estão cristaliza-das por anos de servidão, por uma pouco convincente autocon-fiança, pela distância intransponível em relação às coisas que outrora lhes eram caras.

Eu mesmo só entendi o que Crispin havia se tornado para mim depois que ele se foi. Meu próprio lolo, Grapes, sempre ti-nha sido demasiado distante, como os avôs muitas vezes o são, para compensar a morte de meu pai. Ele mal passava de uma si-lhueta espectral que eu vislumbrava pelas portas envidraçadas do escritório que ele mantinha em casa, escrevendo cartas à escriva-ninha ou então lendo as fitas de papel regurgitadas por seu telex até a hora da refeição, quando ia se sentar à mesa e fazia piadas comigo. As piadas sempre haviam me parecido forçadas, e eu ria porque ansiava por um vínculo com ele. Fico dizendo a mim mesmo que não foi culpa de ninguém. Meus avós já haviam cria-

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do os próprios filhos. A julgar por alguns relatos, nem nisso tive-ram sucesso. E subitamente se veem com outros seis filhos. Órfãos recentes, recém-chegados de Manila, despachados a granel para Vancouver para atrapalhar a aposentadoria precoce de meus avós — um exílio que eles haviam acabado de aprender a amar.

Talvez a sonoridade filipina de nossas expressões em inglês ou então as formas diferentes como cada um de nós se parecia com meu pai lembravam excessivamente a meus avós a vida que eles tinham antes da instauração da lei marcial que expulsou Grapes da vida política no auge da carreira, privou Granma de suas partidas de mahjong e de seu batalhão de criadas, e os trans-formou em apenas mais um casal de bobos trêmulos de olhinhos puxados percorrendo devagar demais o corredor de sopas e ce-reais do Safeway. Quando nós seis chegamos, eu havia acabado de fazer cinco anos. Meus avós fizeram o melhor que puderam: abriram mão da pequena casa que haviam construído, mudaram--se para outra grande, feia e pretensiosa, e contrataram uma babá para ajudar a cuidar de nós. Grapes e Granma fizeram questão de nos transformar em canadenses, de nos preparar para a mistu-ra dentro da qual havíamos sido arremessados, e nos proibiram de falar tagalo, com medo de que jamais conseguíssemos domi-nar o inglês. Até mesmo eles abandonaram seus nomes tradicio-nais e adotaram a versão deformada de meu irmão caçula para as palavras gramps, avô, e grandmom, avó: o homem que eu conhe-cia como Lolo nas Filipinas se transformou em Grapes, ou “uvas” (“azedas”, costumava dizer ele); Lola virou Granma (“Como o navio que transportou os rebeldes de Castro”). À medida que todos nós passamos a conhecer as limitações da assimilação, tornamo-nos uma família mais unida. Lembro-me de certa vez, depois da escola, em que Granma e eu paramos na igreja de St. Thomas para acender uma vela, como ela fazia diariamente, pa-ra todas as almas falecidas, vivas ou ainda por nascer. De repente,

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um homem se levantou de um dos bancos e começou a gritar conosco.

— Voltem para casa, seus metecos! — Devia ser um bêbado ou um maluco, embora na época eu não soubesse distinguir uma coisa da outra.

— Nós não somos metecos — foi tudo que minha avó con-seguiu dizer. — Somos filipinos. — No trajeto de volta para casa, Granma não disse nada e ignorou minhas perguntas, como se eu tivesse feito algo errado.

Lembro-me também, anos depois, de nós seis assistindo à tv com nossos avós. O jantar já tinha esfriado na mesa havia muito tempo e estávamos vendo imagens do Edsa Boulevard abarrotado de gente vestida com camisetas amarelas, rezando e cantando, freiras de braços dados formando correntes para deter blindados do Exército, uma jovem enfiando uma flor no cano do fuzil de um soldado que se esforçava para não sorrir. O âncora da cbs dizia: “Talvez isso seja o mais perto que o século xx já chegou de uma derrubada da Bastilha. Mas o mais notável é ver como hou-ve pouca violência”. Mostraram uma mulher baixinha de óculos falando com a multidão.

— Essa daí é Cory Aquino — explicou-nos Grapes. O ânco-ra prosseguiu: “Nós, americanos, gostamos de pensar que ensina-mos a democracia aos filipinos. Bem, hoje à noite eles estão en-sinando ao mundo”. Helicópteros e soldados se juntaram à multidão que cantava, e todos sorriam. Então, com lágrimas nos olhos, Granma disse:

— Nós podemos voltar para casa.Já faz muito tempo que tenho idade suficiente, mas só ago-

ra começo a entender. À minha volta, no avião, ouço o que ela quis dizer: o ritmo melodioso do ilonggo do assento de corredor junto ao meu, cujo sotaque malemolente me faz lembrar o jeito como minha avó dizia as coisas. De mais longe, perto dos banhei-

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ros, vem a consonância compassada do ilocano e perto da divisó-ria ouve-se bicolano. Uma aeromoça fala tagalo com um sujeito mais velho, da mesma idade do meu avô, enumerando-lhe todos os lugares que já visitou. O homem assente com a cabeça ao ouvir cada nome, como se também houvesse estado lá. Talvez essas pessoas estejam voltando para casa para mudar alguma coi-sa. Talvez eu possa ser como elas.

Meus companheiros de assento me olham como se eu fosse estrangeiro. Guardo minhas palavras em tagalo para a hora certa, para surpreendê-los com aquilo que compartilhamos. Suas im-perfeições cheias de sotaque me lembram as minhas, como aque-la vez em aula, meu primeiro dia em Columbia, em que em vez de dizer “anais da história” eu disse “anal da história”, e como quis sair correndo da sala, embora ninguém tenha parecido no-tar. Fico escutando discretamente meus conterrâneos no inglês hesitante com que se dirigem aos comissários de bordo, nunca totalmente aperfeiçoado apesar de anos no Ocidente: efes ainda muitas vezes trocados por pês, vogais pouco distintas, tempos verbais misturados, sílabas entrecortadas — apenas os coloquia-lismos ocidentais muito praticados são pronunciados com con-vicção. Assim como essas expressões, nós também somos uma coleção de clichês e, por cima de nossa individualidade nua, usamos tipos práticos como uniformes. Somos mais reais do que aquele conceito filosófico da humanidade como um meio de luz: somos o meio da transpiração. Nossa operosidade, nossa inexpres-sividade, dois lados de nossa grandiosa imagem nacional. Essa imagem é a forma tangível de nosso desejo comum de uma vida melhor. Alguém chuta o encosto do meu assento, como a me lembrar que eu deixe de ser tão profundo.

À esquerda, meu companheiro de assento já capitulou há muito tempo na luta pelo descanso de braço (que envolveu de minha parte diversos subterfúgios e fingimentos que ele nem

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sequer notou), eu saboreio o lebensraum do meu cotovelo. Quan-do informo à aeromoça o prato que desejo comer, sinto meu vi-zinho me observar com o canto do olho. Sua escolha é diferente, oposta. Quando nossa comida é distribuída e desembalada, arre-pendo-me na mesma hora da minha carne e cobiço o frango dele. Passo gel desinfetante à base de álcool nas mãos. O vizinho me olha e sorri. Passo-lhe o pequeno frasco e ele também limpa as mãos. Então, muito casualmente, guarda o frasco no bolso da frente da roupa. Ambos consumimos nossos retângulos de comi-da como se nossos cotovelos estivessem grudados no corpo. Fin-jo estar muito entretido em pensamentos e fito a tela escura da tv à minha frente.

Na minha agenda: visitar a casa da infância de Crispin.Entrevistar sua irmã e sua tia.Investigar os nomes encontrados em suas anotações: Chang-

co. Pastor Martin. Bansamoro. Avellaneda. Dulcinea.Examinar as cinzas das pontes que ele queimou.Reconstruir suas muitas vidas.Sei que quando aterrissarmos em Manila meus companhei-

ros de voo irão aplaudir a perícia de pouso do piloto. Sei que irão pular da poltrona com o avião ainda taxiando, para pegar a baga-gem de mão nos compartimentos acima dos assentos. Sei que uma voz irá repreendê-los pelo alto-falante e que aeromoças irri-tadas irão deter suas mãos erguidas e fechar as portas dos com-partimentos. É sempre a mesma coisa. Isso é bom, não é? Esses companheiros de viagem já computaram mais quilômetros via-jados do que a maioria dos habitantes no mundo, trocaram abra-ços de chegada e de partida, trabalharam e economizaram, en-viaram dinheiro todo dia de pagamento, escreveram cartas em papel fino como casca de cebola para pagar mais barato no cor-reio dizendo a seu clã que em breve voltarão, enfim, para casa; vão chegar sem ser reconhecidos por filhos irreconhecíveis, para

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esposas cujos beijos se tornaram ostensivos e devedores. É como o aforismo de Ovídio que Crispin certa vez me repetiu: Tudo muda, nada termina.

Quanto a mim, nada aguarda minha chegada. Na verdade, é assim que eu prefiro que seja.

Ele não sabe o que prefere. Quando a aeromoça bonita chega empurrando o carrinho, ele quer um ginger ale, mas pede um uís-que triplo. Bebidas alcoólicas são gratuitas nos voos internacio-nais, entendem? Animado feito uma criança por ter sua própria tela no encosto do assento à sua frente, ele se força a ficar acorda-do para assistir ao último filme de Keanu Reeves. Enquanto os créditos finais desfilam, experimenta aquela exasperação que todos sentem depois de permitir que duas horas de sua vida fossem sa-queadas. Faz inúmeras peregrinações até o fundo da aeronave para pegar sorvetes e sacos de salgadinhos gratuitos. Hesitante, acende a luz individual de leitura, com medo de a claridade acor-dar seus vizinhos. Lê a revista de bordo. Em um artigo sobre Bali, as fotografias de garotas eurasiáticas posando sobre areia branca e almofadas de seda triangulares vestidas com biquínis fosforescen-tes o deixam visivelmente excitado, e ele se remexe sob o cinto de segurança e segura a revista em uma posição estratégica, sentindo--se com treze anos de idade em vez de vinte e seis. Olha em volta. Algumas fileiras à frente está sentada uma chinesa sexy de Hong Kong que ele quis ajudar a suspender a mochila até o comparti-mento de bagagens na hora do embarque. Como não teve coragem, ficou em pé no corredor esperando ela guardar a mochila sozinha, examinando discretamente sua bunda e a forma como sua cami-seta subia para revelar as tentadoras covinhas acima da cintura. Então estica a cabeça para olhar para ela. E pensa: Alguma coisa na pressão da cabine está me deixando com tesão. Põe a culpa no

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tédio da longa viagem. Afinal de contas, o erotismo existe para romper a monotonia da vida. E se ela estiver sentindo a mesma coisa que eu?, pensa. E se eu simplesmente a pegasse pela mão e a levasse até o banheiro? O pior que ela poderia fazer seria dizer não. Ele olha, mas não consegue vê-la. Distingue seu pé descalço despontando de onde ela o enfiou, entre a própria perna e o des-canso de braço. Fica maravilhado com a beleza delicada desse pé. Madison tinha pés de homem. Faz tanto tempo que eu não toco em outra pessoa. A forma como Madison o abraçava quando os dois faziam amor quase sempre parecia ser sua principal motiva-ção para transar com ela. O abraço era como lavar as mãos em água morna devagarzinho — era intenso, completo, e o purificava daquela única coisa que ele não lhe revelava.

Ele esfrega o queixo coberto pela barba por fazer, um vilão de cinema mudo imerso nos próprios pensamentos, e seu relógio de pulso reflete um facho de luz que passeia pelas paredes da aerona-ve, pelas costas dos assentos, pelos rostos de seus companheiros adormecidos. Cobre o pulso com medo de os vizinhos verem a in-sígnia da coroa e se perguntarem se o relógio é uma falsificação comprada em Mong Kok. Examina-o à luz. Foi um presente do avô no seu aniversário de vinte e um anos. Isso anos depois de a família toda voltar às Filipinas, anos depois de as coisas começa-rem a azedar, anos depois de seu avô voltar à política e às mulhe-res. Aço inoxidável, mostrador branco perolado, Oyster Perpetual DateJust. Seu avô tinha um exatamente igual. Quase. O do rapaz é uma falsificação, ainda que uma falsificação de boa qualidade — cristal bisotado de verdade em vez de acrílico liso, mas o meca-nismo interno é da Rado. O avô seguira corajosamente um nego-ciante que mascava um palito — que, segundo ele, o fazia pensar em um lagarto sibilante — por um beco que saía da Tung Choi Street, subira três lances de degraus estreitos e precários, e pagara duzentos dólares americanos pela imitação mais realista que ja-

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mais vira na vida. Mais tarde, mandou gravar uma dedicatória para o neto na parte de trás do relógio, e por isso o rapaz o havia guardado como se fosse um tesouro. Tanto pela dedicatória como também pela preciosa lembrança dos jantares de família de anti-gamente, quando os dois tiravam os relógios, trocavam-nos, com-paravam-nos e se maravilhavam. Já faz tanto tempo que o rapaz finge que seu relógio é verdadeiro que até mesmo ele se esqueceu, e se permitiu, como todos os outros, ser enganado.

Ele irrompe na sala feito uma bomba, o cabo perolado de sua Midnight Special reluzindo.

— Sou eu — grita —, Antonio Astig. Mãos ao alto! — Mas a sala já está vazia. A janela está aberta e uma das folhas balança de forma provocante. Ele cruza a sala como um tigre faminto li-bertado da jaula na hora do almoço. Ao olhar para fora, para o España Boulevard, vê a cabeça calva do Dominador se agitando lá embaixo. Este nada pela rua alagada até um caminhão ilhado de caçamba aberta. O Dominador luta desesperadamente contra a maré revolta, e destroços o atingem quase a cada braçada. An-tonio ouve gritos de homens atrás de si, os estalos de seus sapatos subindo a escada, descendo o corredor. Polícia! Antonio pula pela janela e mergulha na água da enchente. Ela tem o gosto de todas as lágrimas das vítimas virgens do Dominador. Quando volta à superfície, vê o Dominador na caçamba do caminhão, cortando as cordas de um oleado com seu canivete de trinta cen-tímetros. Acima de Antonio, policiais aparecem nas janelas e apontam para ele suas pistolas. Torna a mergulhar, nadando co-mo um tubarão. Na água turva, as balas da polícia passam zunin-do como torpedos. Ele sobe à superfície a tempo de ver o Domi-nador tirando um jet ski amarelo e vermelho da caçamba do caminhão. O motor ruge feito um urso e o Dominador vai embo-

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ra em alta velocidade, serpenteando por entre carros e jeepneys submersos. Antonio vê um segundo jet ski no caminhão. Vai nadando até lá. As balas passam chispando por ele. Ao baterem na água, produzem pequenos estouros. Antonio sobe no cami-nhão. Com um único movimento, empurra o jet ski para fora e dá a partida. Sai a toda a velocidade sobre a água da enchente, sentindo o vento frio no rosto. Através das vitrines embaçadas das lojas, pessoas em pânico assistem à confusão. Ao passar como um borrão, Antonio lhes lança seu sorriso mais sedutor.

Trecho de Manila Noir (página 53), de Crispin Salvador

E-mail meu para Crispin: Ora, ora, sr. Wilson! Não posso

deixar de pensar que Madison poderia ter me pagado metade do

que pagou aos terapeutas para eles diagnosticarem seu transtorno

de personalidade borderline. Fico arrasado ao ver como hoje em

dia todo mundo tem uma justificação clínica para sua estranheza.

Meu lolo recebeu recentemente um diagnóstico de narcisismo

freudiano. Então pediu que sua secretária fizesse uma pesquisa na

internet. Em vez de descobrir tudo de ruim sobre o diagnóstico,

ele, é claro, viu apenas o lado bom. “Todos os grandes líderes são

narcisistas”, exclamou para minha avó. Assim, em lugar de com-

prar todos os livros que ensinam a superar essa síndrome e mos-

tram como os doentes magoam as pessoas à sua volta, ele com-

prou O narcisista vitorioso — livro sobre as qualidades triunfantes

de Nero, Napoleão, Hitler, Saddam etc. Porra, Grapes chegou a

comprar um segundo exemplar para dar de presente de aniversá-

rio ao presidente Estregan. lol! Fico me perguntando como o pre-

sidente vai reagir. Não me entenda mal, não estou zangado com

meu avô. Ficar zangado significa dar importância. Tudo que sinto

por ele é pena. De toda forma, vou chegar atrasado para nosso

encontro de cheesebúrguer com bacon. Você vai ter que me contar

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os detalhes escabrosos da sua ida para casa e do tal discurso no

ccf. Estou morrendo de curiosidade.

“Meu pai tinha o nome muito adequado de Narciso”, escre-veu Salvador em Autoplágio. “Em determinado momento, em algum ponto da linhagem que o precedeu, esse nome carregou em si a tragédia do mito e a ironia de poder pertencer a um ho-mem tão caracteristicamente antinarcisista. Mas meu pai não dava a mínima para esse tipo de sutileza: era como se, para ele, o nome houvesse sido feito sob medida, e o próprio ato de batizá--lo de ‘Narciso’ tivesse dado origem à paródia de um sacramento sagrado em que cada um é batizado segundo sua essência, em homenagem à pior característica pela qual sempre será lembra-do. Na verdade, ele foi ainda mais diminuído pelo apelido ‘Jú-nior’, de acordo com o hábito desavergonhado e estranhamente filipino de inventar apelidos infames. Uma profecia que se autor-realizou: por mais que se esforçasse, estava condenado para sem-pre a ser o pequeno narciso.”

Trecho da biografia em andamento Crispin Salvador: Oito vidas vividas, de Miguel Syjuco

— Você é o mais bonito de todos os meus netos — Grapes sempre me dizia. Eu nunca soube como responder, então sorria o sorriso de um menino tímido saboreando a atenção. É claro que eu não acreditava nele. Tinha medo de acreditar.

— Você é o mais bonito porque é o que mais se parece co-migo — dizia ele. — O que você quer ser quando crescer? — completava então.

— Sargento do Exército.

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Grapes ria, divertindo-se a valer.— E presidente das Filipinas, não?— O que for mais importante.— Deixe eu ser presidente — dizia ele —, e você pode ser

sargento do Exército.Ele me pegava no colo com um grunhido exagerado e me

carregava para a cama. Meu avô recendia a loção pós-barba Old Spice e a fumo de cachimbo, o que, hoje percebo, também fa-zem parte dos clichês reconfortantes. Mas esse é realmente o cheiro que ele tinha.

— Muito bem, Sarge — dizia enquanto me ajeitava na ca-ma. Esse se tornou seu apelido para mim. Cada um de nós tinha o seu, aqueles apelidos só dele que transformavam cada um em seu neto especial. Jesu era “Groovy”, “legal”. Claire era Reina, “rainha”. Mario era Smiley, “sorridente”. Charlotte era Princessa, “princesa”. Jerald era The Plum, “a ameixa”. E eu era Sarge, “sar-gento”. Talvez eu não devesse dizer “era”, e sim “sou”. Não sei.

Uma vida inteira depois disso, Madison me chamava de Beau ty, “lindeza”. Olhava para mim na cama, tocava meu rosto com a ponta dos dedos como se tivesse medo de quebrá-lo, e me dizia:

— Que homem lindo você é. — E eu, claro, acreditava ne-la. Tinha medo de não acreditar.

Todas as noites, debaixo das cobertas, o pé dela encostava no meu. Sempre queríamos dormir de conchinha, mas, por cau-sa da minha curvatura cervical problemática e do meu travessei-ro ortopédico, eu precisava dormir de costas se não quisesse ama-nhecer com dor no pescoço. Passávamos a noite inteira com os pés encostados, um gesto de garantia de que atravessaríamos juntos a parte mais escura da noite.

— Te amo — dizia eu.— Eu também te amo.