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IMAGEM TAMBM SE LOBJETO/DESIGN

Sandra Ramalho e Oliveira

EDITORA ROSARI 2004

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PRIMEIRO, O CARDPIO As letras douradas da minha tese de doutorado sumiram. As capas dosdois exemplares, depositados na biblioteca da universidade onde eu trabalho, esto sem identificao, quase. Considerando-se que se tratava de uma impresso de boa qualidade, fiquei vaidosa, pois um indcio de que ela est sendo bastante lida, ainda que sendo uma tese, geralmente sinnimo de leitura muito de um texto muito formal e, por isso, enfadonha. Assim, achei que o assunto poderia ser interessante para um nmero maior de pessoas. Seu ttulo Leitura de imagens para a

educao; foi defendida no Programa de Estudos Ps-Graduados em Comunicao e Semitica daPUC/SP, sob a orientao de Ana Claudia Mei Alves de Oliveira e ela d origem a este livro. *****

Minha preocupao vem sendo, h tempo, o acesso s imagens, ou melhor, significao das imagens. Como professora de arte, muitas vezes eu mesma tinha dvidasdiante de determinadas obras. Buscava orientao nos conhecimentos de histria da arte, ou na histria de vida dos artistas. Mas tinha pruridos ticos; como professora, achava que eu no poderia ter certas dvidas. Eu me sentia, por vezes, uma impostora... Nesse tempo, preocupavam-me exclusivamente as imagens artsticas. Ainda assim, como motivar as pessoas para compreender a arte contempornea, se agora que muitos comeam a perder as resistncias em relao arte moderna (no faz muito que assisti algum conhecido ficar exultante por descobrir que Picasso tambm sabia pintar, ao visitar o museu que leva seu nome, em Paris, onde as obras do incio da sua carreira tambm esto expostas)? Em seguida, novas dedues: fora dos grandes centros, a arte vem sendo

sistematicamente terceirizada. Quero dizer com isto que nas escolas, mesmo em muitasescolas superiores, e at em algumas paredes tidas como respeitveis, as imagens s quais se refere como se arte fosse, so meras reprodues. Nas escolas, a arte est terceirizada em livros, slides, transparncias e, mais recentemente, em power point. Assim, os alunos no esto estudando arte, mas outra mdia, geralmente, a fotografia da arte (e no a fotografia de arte). E pelo fato de ser outra mdia, a imagem fotogrfica que reproduz a arte, geralmente a modifica em, no mnimo, trs de seus elementos constitutivos: dimenso, cor e textura. E esses elementos, j que so

3 constitutivos, eles so bsicos, eles constituem a imagem, eles engendram sua significao. E se esto distorcidos (ou modificados), implicam modificaes na sua significao. Quando uma reproduo apresentada no lugar da arte, alm de a imagem em questo no ser a imagem em questo, seu significado fica inevitavelmente alterado. Lembro-me do impacto que senti diante de trs exemplares da srie Os Retirantes, de Portinari, ao subir as escadas do MASP, percebendo-os to mais eloqentes (porque to maiores) do que as pequenas reprodues que eu conhecia... Diante desta constatao, percebida de diversos modos, ampliou-se o raio do meu interesse sobre imagens. No me desafiavam apenas as imagens artsticas, mas todo o universo visual em torno de ns, dos rtulos s capas de caderno, do desenho dos biscoitos estamparia de tecidos, dos cartazes s capas de CD, da organizao que associa texto verbal a imagens visuais (isto no redundncia, como veremos mais tarde), dos jornais propaganda eleitoral gratuita. Alm do mais, ou seja, alm de podermos estudar com nossos alunos o original dessas imagens, e no sua cpia, os exemplares de composio visual no qual elas consistem eram e so sempre mais prximos da realidade dos alunos, o que faz com que lhes seja mais interessante conhecer melhor. A est o

incio (ou o incio da formalizao) do meu interesse pelo design.*****

necessrio e eu continuo defendendo isto - que as pessoas possam conhecer e usar um referencial mnimo para poder decodificar o universo de imagens que invade o seu cotidiano. Intuitivamente eu achava que a mesma baseestrutural que sustentava as imagens da arte tambm estava presente na base das imagens estticas do cotidiano. Depois, confirmei atravs de teorias e de exemplos. Primeiro, foi necessrio estabelecer teoricamente esta classificao. Mas, afinal, o que arte? Pergunta irrespondvel, definitivamente, claro, pois pode ser respondida dos mais diferentes modos. No meu caso, eu precisava saber, ou

diferenciar, o que era arte do que no era (e o que seriam essas imagens que no eram arte?). Jan Mukarovsk foi o terico que me auxiliou, neste sentido. uma dasquestes que eu trato no primeiro dos meus textosdesign, que recebeu o ttulo de IMAGENS

DO DESIGN, IMAGEM DA ARTE?No menos polmico o assunto seguinte: esttica. Quais os diversos sentidos e interpretaes que esta palavra carrega consigo, atravs da histria? E o que hoje atribumos a ela? Se

4 imagens nos interessam, seja quanto criao ou leitura (e no melhor escritor aquele que muito l?), os significados da palavra esttica, as funes das imagens, sua condio de imagem esttica ou imagem artstica tm que interessar tambm. Disso aborda o texto que tem como ttulo

AFINAL, O QUE ESTTICA?, que acabou comeando tambm com um questionamento,como o anterior. Tudo a ver... no so as dvidas que nos fazem pesquisar, buscar conhecimentos? ***** Confirmada, com a devida uno terica, a possibilidade de no se ter preconceitos em relao s imagens, independentemente de suas funes ou da categoria na qual esteja ela classificada, era imperativa a busca de uma via de acesso significao. Qual a chave que pode abrir a misteriosa porta da arte conhecida como abstrata, por exemplo? Seria a Histria da Arte, com seu acervo de caractersticas de uma sucesso de estilos, movimentos, acontecimentos, vidas? Ou a Psicologia, por meio de interpretaes das pinceladas daqueles que so compelidos a se expressar atravs da arte, dada a incapacidade das linguagens convencionais para explicitar seus sonhos? Ou a Sociologia, atenta s caractersticas do contexto, as quais permitem o surgimento de fenmenos artsticos, cada vez mais associados a movimentos sociais? Ora, foi a que entrou a Semitica. E, ao entrar tambm aqui, me obriga a escrever um pouco mais, mesmo sendo o mais breve possvel. apenas UMA PINCELADA DE SEMITICA. E nem vai precisar pular o captulo; alm de ser um assunto que bom estar por dentro, pois parece estar na moda, garanto no ser chata. ***** Tudo preparao para o que vem depois, que so as leituras de imagens. Antes ainda de comear, falta apresentar o como fazer, ou seja, o roteiro, ou os passos da proposta metodolgica,

para que os leitores possam depois fazer as suas prprias leituras de imagens. Os professores de arte podero trabalhar com seus alunos usando mil imagens diferentes.Os designers de todas as especialidades podero desconstruir imagens para melhor estud-las e melhor criar novas imagens. E o leigo, bem, para ele vou contar a lio que deu meu Primo Paulo, advogado: Legal te interessares tanto por arte! Afinal, nem a tua rea... Como no a minha rea? Eu sou gente!

5 Assim, para todos que so gente, escrevi UM MODELO PARA LER IMAGENS. Foi durante a escrita deste captulo que senti a necessidade de incluir alguma coisa sobre a violao de normas quando da criao de imagens. Mais precisamente, ao estabelecer analogias entre o texto verbal e o texto visual. Da surgiu ABAIXO AS REGRAS. ***** Apresento as duas primeiras leituras, que so de duas obras de arte, usando esse modelo que venho propondo. Afinal, foi da arte que eu parti... E outra: o mesmo modelo de anlise usado para uma imagem da arte serve para a anlise de uma imagem ou a imagem de um produto do design. Isto ser mostrado, exatamente pela analogia das leituras e pela semelhana entre os passos. No tocante arte, uma das imagens analisadas uma colagem de Matisse, a obra chamada Formas, em um texto verbal intitulado FORMAS MATISSIANAS; a outra um Portinari da srie Os Retirantes, que se chama Enterro na Rede, no captulo batizado de UM ENTERRO

SEM CAIXO.***** De imagens artsticas para imagens estticas, entramos no campo da moda; inicialmente, uma espcie de introduo, onde lembro que a moda um profcuo sistema de comunicao entre os seres; por isso essa parte recebeu o ttulo de MODA TAMBM TEXTO.Ela vem seguida de uma leitura de uma imagem nessa rea, intitulada

ARGOLAS

DOURADAS. Como a moda , intrinsecamente, mutante, e como tambm muito complexa, emtermos de elementos constitutivos e at de figuras que a compe, tomei formas, as argolas, e cores, os dourados, que so recorrentes ao longo da histria, para pensar um pouco sobre esta linguagem que usa o corpo como suporte atravs da histria e da geografia. Igualmente, as argolas douradas servem aqui de um exerccio de anlise do minimalismo e, neste sentido, pretendo ainda aplacar um pouco os preconceitos e mostrar as identidades/identificaes entre entidades perceptveis ao olhar. *****

6 No esquecendo da relao, nem sempre harmoniosa, entre design e artesanato, escrevi

ENQUANTO O ARTESANATO NO SE ATUALIZA, para compartilhar com o leitorpreocupaes sobre esta linguagem to designer, como a linguagem artesanal, a qual complementada com a anlise de duas imagens tridimensionais. mais um dos textosdesign que apresento, o qual batizei de IMAGENS HAND MADE, que consiste em uma minuciosa leitura de duas peas de cermica figurativa, oriundas da minha terra, o litoral catarinense. Atravs deles fao tambm uma homenagem toda produo visual de Florianpolis e adjacncias. ***** Ento, entramos no mbito do produto. Devo confessar que tenho uma predileo por vidros de perfume (e pelo seu contedo tambm). Vai ficar evidente, pois apresento partes selecionadas de meu estudo de ps-doutorado, desenvolvido em Paris, sob a orientao do semioticista italiano, radicado na Frana, Andrea Semprini, tendo como objeto de estudo imagens especficas da marca Givenchy. O perfume Hot Couture seu vidro foi estudado, vindo a compor com outra leitura de frasco desenvolvida ainda no doutorado, qual seja, o vidro do perfume Eden, da Cacharel. Iniciamos com

FRASCOS TAMBM SO TEXTOS, que contm consideraes de ordem geral, tendo comofoco a significao das imagens, ainda que em forma de vidro de perfume. Seguimos com ESSNCIA DO PARASO NUMA GOTA, o captulo onde apresentada a leitura do perfume Eden, da empresa francesa Cacharel e, logo aps, apresentada a leitura de Hot Couture, que recebeu o ttulo de UM PRISMA QUE MAIS QUE UM

FRASCO.***** Chegamos ento no ltimo bloco de textos, este voltado para a publicidade. O primeiro captulo, introdutrio como os que antecederam as leituras da moda,do artesanato e dos frascos, recebeu o ttulo de PROPAGANDAS, TEXTOS SINCRTICOS. Para comprovar esta afirmativa, apresentamos as duas ltimas leituras de imagens; uma delas refere-se marca Mont Blanc e recebeu o ttulo de UMA CANETA TRS CHIC.

7 O outro exerccio de leitura de imagem publicitria consiste no captulo intitulado

UM

DILOGO ENTRE DESIGNERS. Ele encerra esta coletnea, mostrando as relaesintertextuais que se estabelecem em um texto hbrido ou miscigenado como o da publicidade do perfume Hot Couture, de Givenchy. o ltimo dos textosdesign que ora apresento. Enfim, so muitos temas; eles todos tm relaes entre si, mas apontam para distintas questes. So escritos que foram bem sintetizados, penteados, simplificados, para facilitar o acesso do leitor... afinal, so duas teses saindo da prateleira... e de uma s vez... Mas no preciso que o leitor se assuste com isso: alm de sintetizado, simplificado e penteado, tudo foi devidamente traduzido, daquele linguajar pomposo das teses para um portugus que todo mundo entenda! E, depois de tudo, THE END o fim!

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IMAGENS DO DESIGN, IMAGENS DA ARTE?Existem diferenas entre as imagens produzidas nas diversas reas do design e as imagens consideradas obras de arte? Para complicar mais a questo, vamos fazer uma outra pergunta: pode uma imagem

esttica, produzida por um designer, destinada a um determinado fim especfico, vir a tornar-se uma obra de arte?Como se sabe, as imagens podem desempenhar vrios papis. Fica ento registrado que o parmetro da funcionalidade pode contribuir para o estudo da imagem, mesmo no sendo absoluto nem definitivo, uma vez que no se trata de um referencial destitudo de polmica. Assim, este pode ser um bom comeo para a discusso: analisar as finalidades que podem ter as imagens. Isto significa examinar as funes de cada imagem, verificar como ela funciona, para qu ela serve, para poder definir se ela um produto do design ou uma obra de arte. Existem diversos estudiosos que so contra pensar em arte como um fenmeno que tenha funo, pois a relao entre a arte e o sujeito deveria ser de pura gratuidade. Outros dizem que o prprio fato de uma imagem funcionar esteticamente, j , em si, uma utilidade, uma funo. O que se observa que as funes de uma imagem podem mudar, atravs no s do tempo, como do espao. E se mudam as funes, conseqentemente, tambm pode mudar a categoria dessa imagem. Por exemplo, o que em determinado contexto cultural teve funo religiosa e persuasiva pode, em outro espao, deixar de t-las, mesmo que permaneam outras funes, como a simblica e a esttica. Servem como exemplo as Igrejas que so ou que contm relevantes obras de arte sacra, e que hoje esto transformadas, praticamente, em museus, pois so abertas permanentemente visitao e muitas delas cobram ingressos j que nelas raramente so oficiados atos litrgicos; nessas circunstncias, inexistem funes religiosas e persuasivas.

Cartazes de espetculos, como os que foram criados no incio do sculo porToulouse-Lautrec podem, atravs do tempo, perder sua funo informativa. Prova disso que nos recortes desses cartazes, quando da sua reproduo, no h cuidado com elementos verbais, pois certas palavras foram cortadas ao meio, j que s tinham sentido quando os cartazes possuam a funo informativa. Mas neles ainda restam as funes simblica e esttica. Outros tipos de imagem podem servir de exemplo para a ocorrncia de mudana nas funes das imagens. o caso das pranchas de botnica, aquelas dos cartazes escolares ou mesmo reproduzidas nos livros de cincias, contendo como ilustrao de cada planta, o desenho do fruto

9 aberto e fechado, da flor, da folha, da rvore inteira. Muitos exemplares dessa categoria de imagens so comercializados em galerias de arte. Para ampliar ainda mais os exemplos, lembramos das imagens produzidas pelos viajantes

europeus que aqui no Brasil estiveram, como Rugendas, Debret ou Eckhout. Eles desenharam aflora e a fauna, os trajes, os costumes, os tipos fsicos aqui encontrados na poca, com a principal finalidade de mostrar, em terras distantes, como a vida acontecia por aqui. As exposies desses trabalhos tm levado muita gente aos museus onde se realizam. Hoje, so considerados arte. Em um olhar panormico em direo ao mundo das imagens, poderemos nelas encontrar diversas funes:

mgicas, religiosas, polticas, estticas, epistmicas,

informativas, decorativas, persuasivas ou at comerciais. Alm da funosimblica, que parece ser inerente sua condio de imagem, uma ou mais funes podem se realizar em uma mesma imagem. Exemplificando, praticamente todos os afrescos com temas religiosos, alm de sua funo simblica, guardam ainda as funes religiosa, esttica e persuasiva. Um videoclipe publicitrio, juntamente com seu carter simblico, tem tambm funo persuasiva e comercial, alm de apresentar uma proposta esttica. Assim parece claro que as imagens se prestam para diversas finalidades, que podem ser chamadas de funes, e que essas funes podem se alterar, ao longo do tempo. Fica ento registrado que o parmetro da funcionalidade pode contribuir para o estudo da imagem, mesmo no sendo absoluto nem definitivo, uma vez que no se trata de um referencial destitudo de polmica. ***** De posse dessas idias, podemos apreciar (e, quem sabe, adotar) uma afirmao baseada em Jan Mukarovsk, um estudioso da esttica e da significao das imagens; ela pode funcionar como um paradigma quando da necessidade de classificao de imagens e pode ser assim resumida:

quando a imagem tem entre suas funes a funo esttica, mas ela secundria, temos uma imagem esttica; quando a imagem tem entre suas funes a funo esttica, e ela a mais importante, temos uma imagem artstica.

10 A partir deste paradigma podemos responder s questes iniciais. Em primeiro lugar, sim, existem diferenas entre imagens da arte e imagens do design, na medida em que existem distines entre as funes dessas imagens. E quanto segunda questo, um produto do design, uma imagem ou um produto esttico pode tornar-se, sim, uma imagem ou produto artstico: no momento, no contexto e na medida em que sua funo esttica tornar-se mais importante do que suas outras funes utilitrias. o que acontece com muitos produtos do design que j esto em museus, porque so representativos de um estilo, ou de um movimento esttico, ou significam uma quebra de paradigmas ou registram um determinado momento da histria. Neste sentido (e para concluir), ainda importante lembrar que toda a imagem artstica

esttica; mas nem toda imagem esttica artstica.

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AFINAL, O QUE ESTTICA?Estamos, todo o tempo, falando de imagem esttica; devido a mudanas ocorridas, igualmente atravs do tempo, com a palavra esttica, torna-se necessrio atualizar o conceito que est por trs desta palavra. Muitos enganos podem ser cometidos ao se ouvir ou usar a palavra esttica. Geralmente, ela considerada sinnimo de beleza, e esta beleza sendo considerada como padro ideal, com base no estilo clssico da antiga Grcia e depois, de Roma, princpios formais mais tarde retomados no Renascimento, como o equilbrio e a harmonia. Mas estamos no sculo XXI e os equvocos continuam. Da merecer uma reviso as definies que a palavra esttica recebeu atravs da histria. Derivada do grego aisthetiks, de aisthanesthai, que quer dizer perceber, sentir, a palavra foi usada primeiramente por Alexander von Baungarten, no sculo XVIII, para designar mais do que cincia do belo: o estudo da sensao ou a teoria da

sensibilidade. Esttica, como disciplina da rea da Filosofia, relativamente recente na histria dopensamento humano, portanto. Mas os homens pensam acerca da natureza da arte, do porqu e do para qu da atividade artstica muito antes de Baungarten ter batizado esse conjunto de conhecimentos com o nome de Esttica. Da que esttica, no sentido de reflexo sobre imagens produzidas pela humanidade, existiu desde os tempos mais remotos, mesmo que o termo no fosse usado para nome-la; e mesmo que no se tenha autores de textos verbais na pr-histria, certo que se pode extrair questes cientficas, estticas, a partir da produo grfica da arte rupestre. ***** Podemos ainda considerar como origem da Esttica a Antigidade grega, mesmo que no tivesse este nome, como j foi afirmado. No que os gregos tenham concebido um sistema esttico, mas certamente elaboraram determinados princpios que no se pode adjetivar de outra maneira que no seja de estticos, os quais podem ser encontrados em diversos pensadores. Aps o perodo mitolgico, ou seja, o perodo onde a viso do homem grego se delineava atravs de mitos, deu-se um perodo intermedirio entre aquele e o que foi denominado metafsico; trata-se do lapso de tempo e espao chamado de mitolgico-potico, onde os poetas como Hesodo,

12 Homero, os lricos ou os precursores do teatro como squilo e Sfocles falam de esttica cantando, sua maneira, o que entendiam como sendo a beleza. Nesse perodo, surge a beleza como atributo de traos e cores, na natureza e na figura feminina; posteriormente, os homens tambm podiam possu-la, quase sempre associada fora ou bondade. Mais tarde, a beleza passa a ser tambm qualidade de objetos, bem como da msica e

do canto, com os poetas lricos. a partir deles, tambm, que a beleza fsica comea a servinculada beleza moral. Com os trgicos, a beleza associada idia de morte, dando origem a uma esttica dramtica que, transitando em temas que buscam equilibrar loucura humana e esprito de justia, apresenta-os estruturados nas trs unidades, espao, tempo e ao. Com Pitgoras, inaugura-se o formalismo: os nmeros, as medidas, as figuras,

as dimenses postos a servio da harmonia, norma esttica proposta para aarticulao de elementos, aplicvel msica e geometria. Em Scrates, evolui um pouco mais o que anteriormente havia sido apenas entrevisto: a fuso

das idias de beleza e de bem, conceito denominado kalocagatia, o que viria a serconsolidado, posteriormente, por Plato. Para Scrates, belo o que cumpre sua finalidade; trata-se de uma esttica utilitria, mais preocupada com o contedo do que com a forma. Plato, na obra Hpias maior, dedicada especificamente ao belo, recapitula as propostas anteriores, ou seja, posiciona-se frente a conceitos estticos preexistentes. Nesta obra Plato define teses fundamentais para a histria da esttica, entre as quais se destaca a proposio de uma noo de beleza, um conceito de belo, belo em si, belo ideal e no s o belo como

atributo de alguma coisa. Importante tambm a transformao que faz sofrer o conceito debeleza utilitria, tomado de Scrates, ao vincular o belo ao bem, bem em si, acabado e perfeito, e no ao til, como queria Scrates; para Plato, a beleza suprema est no verdadeiro e no

bem. a definio do conceito de kalocagatia.H uma diferenciao entre belo e arte para Plato, pois o belo incorruptvel, est

no mundo das idias e confunde-se com o bem, enquanto que a arte uma tekn, existe no mundo do sensvel, matria. E se o mundo sensvel a cpia do mundo dasidias, a arte menor que beleza: faz coisas belas, mas no beleza em si. Ainda segundo suas teorias e sob influncia pitagrica - o ouvido e a vista transmitem as sensaes organizadas atravs das medidas, o metron; assim, a beleza nas artes est subordinada a elementos de

prazer e de ordem.

13 Se, para Plato, a realidade uma cpia imperfeita das idias, para Aristteles, seu discpulo, o importante a realidade, uma vez que as idias so abstratas; assim, para ele, quanto mais se materializa a coisa, mais real se torna o conhecimento e quanto mais a

imagem abstrata, mais genrico o conhecimento.Da mesma maneira que seus antecessores, Aristteles no deixou um sistema esttico, mas sim opinies sobre o belo e sobre a criao artstica, considerada sempre por ele uma tcnica, campo onde incluiu a msica, a poesia e o teatro, deixando de lado as artes plsticas. O valor da arte, para ele, residia no fato de ser uma atividade do homem e no por ter um valor em si mesma, uma vez que seus esforos estavam centrados na constituio do ser humano. Reduzida condio de tcnica, Aristteles diferenciava, como Plato, a arte do belo, que para ele era metafsico. Distingue o bem, que para ele tem uma finalidade, do belo, que no a tem. Separa ainda o belo moral (csmico, prtico ou til) do belo formal e, neste ltimo, destaca a importncia da matemtica, pois para ele o belo est condicionado a leis que tornam a forma bela, simetria e ao que chama de determinao, uma modalidade da ordem. Fundamental para o estudo de esttica so as formulaes de Aristteles sobre a tragdia e, em especial, um conceito que viria a ser recorrente na histria, diversas vezes utilizada na Filosofia e mais adiante na Psicanlise: a catharsis, a purgao das paixes atravs do

sofrimento, da tragdia, esta considerada por Aristteles como a iluso do verossmil.***** Na Idade Mdia, deu-se uma incompatibilidade entre o ideal cristo e a preocupao com a beleza, pelo fato de se acreditar que o belo suscitava o que sensvel e sensual no homem; esta espcie de temor caracterizava o sentimento de poca e foi o que levou S. Toms a declarar: Pulchritudo corporis est pulchritudo maledicta. Ainda no primeiro perodo medieval, Santo Agostinho, que filosofava para resolver os problemas da sua prpria existncia - sendo considerado o precursor do existencialismo - deixou reflexes sobre o signo e a beleza, inclusive a do corpo. Mas durante esse perodo, a maior contribuio foi a de S. Toms de Aquino. Ele distingue trs categorias de bem: o bem til, que no belo porque no desinteressado; o bem deleitvel, que pode levar ao pecado da luxria, atravs da lisonja; e o bem honesto, desinteressado e espiritual, como o belo da alma, onde o bem e o belo se confundem.

14 No seu sistema filosfico, so diversas as abordagens de beleza, sendo que de Aristteles toma duas das trs caractersticas a ela atribudas: a integridade ou perfeio e a justa

proporo ou harmonia.A terceira caracterstica tem em S. Toms mesmo sua origem e por isso merece destaque:

claritas, que claridade, que luz, luz que Deus, luz que cor, pois sem luz no h cor e a cortorna as coisas mais belas. esta esttica da luz que se presentifica na catedral gtica, mais precisamente, na luz passando atravs dos seus vitrais. De qualquer maneira, na Idade Mdia prepondera o valor utilitrio da arte, sendo que este sentido permanece na transio para o Renascimento, quando o ofcio de construir a beleza um ato de f e fru-la a contemplao do divino. A arte utilizada pedagogicamente para evangelizar, atravs da imitao da natureza ou de alegorias. ***** No Renascimento, a arte deixa de ser um meio para ser um fim em si mesma e a retomada dos ideais da Antigidade Clssica, com nova roupagem, substitui o misticismo medieval. O homem, como centro do universo, a idia fundamental, presente nas teorias e confirmado na produo artstica, onde a beleza sensual glorifica as manifestaes mais altas da arte. Nesse perodo histrico, surgem tratados sobre a arquitetura e escultura e mesmo sobre as cores, e o conceito de beleza passa (ou volta) a ser confundido com o de arte. A partir da tambm os estilos artsticos adquirem caractersticas prprias em regies diferenciadas, de acordo com as influncias e o pensamento do respectivo contexto: na Espanha, permanecem resqucios medievais, dado o sentimento nacional de religiosidade, o qual disputa espao com as influncias estrangeiras; na Frana, a partir do sculo XVIII e por influncia do racionalismo, a sensibilidade deve subordinar-se razo e s leis dela emanadas. Em torno deste perodo da histria, diversificam-se as correntes filosficas e muitos so os estudiosos que se ocupam com questes como as sensaes, a sensibilidade, a beleza e a arte, em maior ou menor proporo. A partir de Baungarten, a Esttica passa a ser considerada uma disciplina especfica, o que torna mais objetiva a busca terica, ainda que dentro da Filosofia. Desde que adquiriu o status de rea especfica do conhecimento, o termo esttica foi se ampliando cada vez mais, quer para designar as teorias do belo e da arte, quer para compreender as teorias mais recentes que j no remetem a beleza sensao ou a arte ao

sentimento, como nem mesmo ligam a arte beleza.

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***** Em pleno sculo XX, um francs, terico da significao, chamado Algirdas Julien Greimas, resgata o sentido de esttica como inicialmente proposto por Baungarten, pautado na noo de

percepo de sensaes, concede-lhe nova roupagem e o aprofunda, na medida em queestabelece relaes recprocas entre o sensvel e o inteligvel. Esta espcie de trnsito entre o cognitivo e as sensaes o que possibilita o acesso do sujeito ao mundo, independentemente da cara que este mundo tem, bonita ou feia. Isto porque Greimas se afasta de um conceito de esttica vinculado ao belo e se aproxima da Esttica como estesia - percepo atravs dos sentidos, do mundo exterior, anloga ao conceito de Baungarten. Trata-se da experincia do prazer ou mesmo do

desprazer, das percepes dos sentidos, da sensualidade e da sensibilidade.Nada mais adequado do que esta ampliao, uma vez que, na produo artstica contempornea, verifica-se a presena do jocoso, do irnico, do escatolgico, da transgresso, da descontinuidade, da pluralidade, das interfaces, da atemporalidade, da arte virtual, do chocante, do forte,

dessacralizao, em relao arte e ao artista.Enfim, a arte contempornea produz o que alguns chamam de antiarte. necessrio, pois, ampliar os mecanismos de percepo e recepo, bem como a disposio para a reflexo sobre a contemporaneidade.

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UMA PINCELADA DE SEMITICA O que Semitica?Antes de tudo, este o ttulo de um livro de Lcia Santaella, que bem melhor responder a esta questo especfica, pois nele ela dedica-se apenas a respond-la, ainda que se declare impotente para concluir tal tarefa, remetendo o leitor para outras leituras. Do mesmo modo, Winfried Nth, em dois trabalhos, quais sejam eles, Panorama da Semitica e Semitica no sculo XX, responde, de um modo respeitvel, aparente simplicidade da questo. Isto tudo me lembra meu querido sobrinho neurocirurgio, o Dr. Marcelo Linhares que, em visita, durante meu postdoc Paris, fez a mesma aparentemente singela questo. Ouviu tentativas de respostas durante a noite inteira... E na noite seguinte, ao encontrarmos brasileiros na Opera Bastille, percebendo que faziam a mesma pergunta, exclamou, balanando a cabea entre as mos, temendo participar de nova pregao: - No! Eles fizeram aquela pergunta (o que Semitica)! Existem muitas histrias sobre apenas o que Semitica, sem entrar no que seja Semitica, propriamente dita. Exemplos: ainda do livro da Santaella, anteriormente citado, ela coloca: seria o estudo dos smios? Ou uma especialidade em Cames? Meu prprio filho, subsidiado por primo Paulo (aquele que gente), dizia que eu era uma semi-ota, mas que, a partir da defesa do doutorado, passaria a ser uma ota inteira. Tambm h o caso da vizinha de poltrona de avio, quando eu estava rumo ao congresso internacional realizado no Mxico, em 1997, que perguntou, ao saber que me destinava ao congresso de Semitica, se eu era oftalmologista... E isto verdico!!! Encerrando as brincadeiras, embora algumas verdadeiras, e com elas procurando tirar lies o fato que Semitica uma palavra e um conceito desconhecidos. Isto porque ela uma nova, em termos de organizao em sociedade cientfica, ao menos rea de conhecimentos (para no contrapor aos que no aceitam cham-la de cincia). Mas, com tantos senes ( ou no cincia? uma rea nova, de fato?

existem vrias Semiticas?), parece haver mesmo necessidade de algumas palavras sobreSemitica, neste livro; por outro lado, como se est pretendendo tambm atingir um pblico leigo, alm de estudantes que no tenham tido Semitica anteriormente no seu currculo, mais evidente ainda parece haver a necessidade de apresentar algumas idias sobre o assunto; e remeter os leitores mais interessados a fontes mais completas, profundas ou especficas.

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***** A primeira questo que surge, geralmente, quando se pronuncia a palavra Semitica, a seguinte: o que existe em comum entre Semitica e Semiologia, este ltimo, um termo mais conhecido dos leigos? De acordo com o francs Roger Odin, poder-se-ia escrever um livro para estudar em detalhes a totalidade das definies propostas para cada uma destas duas palavras; no entanto, ele apresenta trs possibilidades. A primeira hiptese seria a de consider-las sinnimos, sendo apenas diferenciadas pelo fato de semiologia ser um termo de origem europia e Semitica, de origem norte-americana. A segunda possibilidade apontada por Odin, para diferenci-las, consiste em se reservar a palavra semiologia para a tradio saussureana (teorias dos seguidores do suo Ferdinand de Saussure), e Semitica para a tradio peirceana (teorias dos seguidores do norte-americano Charles Saunders Peirce), no apenas para diferenciar seus pais fundadores, mas para distinguir seus modelos tericos e corpos de referncia: estruturalismo no caso da semiologia e pragmatismo, no da Semitica. A terceira relao entre semiologia e Semitica apontada por Odin diz que, na Frana, Semitica freqentemente usada para designar as teorias propostas pelo francs A. J. Greimas, as quais pretendem dar conta do fenmeno da produo de sentido em geral, diferenciando-a assim da semiologia europia, que se ocupa do estudo da estruturao das linguagens, alm da sua produo de sentidos. Mas, para os iniciados, esta polmica entre os termos Semiologia e Semitica passou a ser um episdio histrico a partir de 1969, quando Roman Jakobson props - e a Associao Internacional de Semitica aceitou a adoo do termo comum Semitica para

designar todo o campo de estudo abarcado tanto pela semiologia quanto pela Semitica. *****E o que Semitica (volta a tal pergunta)...? A palavra Semitica derivada do grego semeion, que significa signo. E signo significa tudo aquilo ou todo aquele que significa, de um modo simplista.

18 So inmeros os estudiosos que vm tentando definir Semitica, at porque, como j pode ser observado anteriormente, existem vrias correntes tericas dentro da Semitica, e cada uma delas a define de acordo com sua viso especfica. Algumas dessas conceituaes so complexas; todavia, pode-se iniciar por definies sucintas, no podendo evitar simplificaes grosseiras e lacunares, conforme palavras de Lcia Santaella. Semitica a cincia geral dos signos; tambm pode ser considerada a cincia da significao, ou cincia que estuda todas as

linguagens; ou ainda, cincia que tem por objeto de investigao todas as linguagens possveis, ouseja, que tem por objetivo o exame dos modos de constituio de todo e qualquer fenmeno de produo de significao e de sentido, se usarmos palavras da j citada estudiosa Lcia Santaella. Pode ser ainda definida como a cincia geral de todos os sistemas de signos atravs dos quais estabelece-se a comunicao entre os homens, usando-se palavras de T. Coelho Netto; ou conforme Odin, inspirado em Greimas: teoria geral dos sistemas de comunicao, capaz de possibilitar

o estudo do conjunto dos processos de produo de sentidos, seja intervindonas linguagens verbais, no verbais ou no mundo natural. Semitica tambm pode ser considerada como um conjunto de meios que tornam possvel o conhecimento de uma grandeza manifesta qualquer que se prope conhecer, tal qual aparece durante e depois de sua descrio, se considerarmos a definio do Dicionrio de Semitica de A. J. Greimas e J. Courts. Ou a cincia dos signos e dos processos significativos (semiose)

na natureza e na cultura, conforme Nth. Porm, o prprio Winfried Nth pondera, a seguir,seu conceito integrador, reconhecendo que esta definio no aceita por todos os estudiosos da rea. Enfim, so muitos os modos de conceituar esse campo de estudo que recente, em termos histricos, enquanto conhecimento sistematizado, embora remonte s cavernas seu objeto de estudo, qual seja, o fenmeno da significao. E, por outro lado, o prprio estudo das linguagens verbais e noverbais remontam a Plato, embora no organizados no contexto de uma rea especfica de investigao. ***** Na Histria Antiga, esses estudos situavam-se no mbito da Filosofia; na Idade Mdia, nos domnios de vertentes da Filosofia Teologia e Lgica, bem como da Gramtica e da Retrica; da em diante, dentro de diversas correntes filosficas e da Filologia; modernamente, na Lingstica, na Teoria Literria, na Antropologia, na Semiologia e nas chamadas cincias da Comunicao e da Informao,

19 at essas diversas vertentes se encontrarem em um esturio caudaloso e desembocarem em um mar comum, denominado Semitica, j na segunda metade do sculo XX. Da o questionamento a respeito de ser ou no a Semitica uma cincia recente. ***** Outra questo polmica diz respeito a ser ou no a Semitica uma cincia. Alguns propem como pressuposto para considerar qualquer conjunto de conhecimentos acumulados e em desenvolvimento como cincia, o fato de existir um objeto de estudo definido, um

mtodo de investigao prprio e uma base terica comum.Ora, o que contemporaneamente se considera Semitica no atende a nenhum dos trs pressupostos. No existe um objeto de estudo para a Semitica: poder-se-ia dizer as linguagens; mas como delimitar linguagens, quando hoje se fala da ecossemitica, da sociossemitica, da biossemitica e da semitica da cultura? Conseqentemente, essa diversidade de objetos de estudo exige equivalente multiplicidade de instrumentos de investigao. O mesmo vai ocorrer, como se pode deduzir, do referencial terico necessrio para dar conta desse mundo significante. Ou seja, os fundamentos semiticos estaro associados ora a bases tericas das cincias da vida, ou das cincias sociais, ou da Fsica, da Filosofia, ou de uma ou mais subdivises de alguma dessas cincias, como a Esttica, para dar conta da especificidade de cada objeto de estudo. Assim sendo, permanece a polmica. Como se j no bastassem essas interrogaes (Semitica ou Semiologia? recente ou remota? cincia ou no?), a Semitica contempornea apresenta escolas ou linhas tericas distintas, o que j foi evidenciado quando da apresentao de definies, pois cada definio encerra um modo particular de descrever o que seria a rea de estudo, na dependncia da matriz terica a qual se filia seu autor. Existem, portanto, diversas linhas tericas dentro da Semitica, mas vamos fazer umas poucas consideraes apenas sobre trs delas, que so as mais conhecidas no Brasil. Uma delas a chamada Semitica Russa, Semitica Sovitica ou Semitica da Europa Oriental, sendo que depois de vrios desenvolvimentos nas teorias e aps algumas mudanas geopolticas havidas naquela regio da Europa, hoje conhecida como Semitica da Cultura. Dizem os autores, entre eles Bris Schneidermann, autor do livro Semitica Russa, que na segunda metade do sculo XIX, na Rssia, embora no existisse ainda essa rea de conhecimento estruturada, j havia uma conscincia semitica, que perdurou praticamente at Stlin assumir o poder. Essa conscincia se no nasceu, ao menos seus princpios estavam presentes nos estudos do grupo que ficou

20 conhecido como Crculo Lingstico de Moscou. Foi a que surgiu o chamado formalismo russo, dada a preocupao daqueles estudiosos com a forma lingstica. O Crculo Lingstico de Moscou inspirou a criao do Crculo Lingstico de Praga, anos mais tarde, j entre as dcadas de 20 e 40. Em ambos, havia a predominncia de estudos acerca da linguagem verbal, com nfase na anlise sinttica, especialmente da poesia. Entretanto, j havia o prenncio da possibilidade de estender os princpios da estruturao da linguagem verbal para o estudo de outros cdigos estticos, como a pintura, o teatro, o cinema e a arte popular. A esse respeito, uma figura fundamental foi Roman Jakobson, que participou de ambos os grupos, alm de ter deixado claro, em suas obras, a possibilidade do trnsito entre sistemas distintos, a partir de um modelo comum, at ento usado nos estudos das lnguas naturais. Com a chegada de Stlin ao poder supremo, deu-se o fechamento do regime na ento URSS, sendo que, como acontece nessas situaes de cerceamento de liberdades individuais e de grupos, ficam sob suspeio todos os modos de comunicar. E, neste caso, no foi diferente: o regime poltico passou a interferir tanto na produo artstica como na terica, principalmente nos estudos lingsticos. Mais tarde, na dcada de 50, fundado em Moscou o Instituto de Semitica da URSS, havendo a retomada de estudos anteriores e novos desenvolvimentos. Em 1970, a nova gerao de semioticistas soviticos passa a denominar a linha especfica adotada por eles de Semitica da Cultura, pelo fato de terem como princpio investigar os sistemas de signos sempre levando em

conta seu respectivo contexto cultural. Na atualidade, os princpios adotados por essesestudiosos ultrapassaram os limites da Europa Oriental e a Semitica da Cultura est presente em diversas regies do mundo. Outra das trs linhas ou escolas mais reconhecidas no mbito da Semitica chamada de Semitica Americana ou, simplesmente, Semitica Peirceana. Isto porque seu fundador foi o norte-americano Charles Saunders Peirce (1839-1914), o qual deixou uma vasta produo terica que talvez no tenha sido mesmo, at hoje, completamente explorada. O ponto de partida de Peirce no foi a lngua natural, como foi o caso das outras linhas tericas da Semitica. Peirce, que era filsofo e matemtico, criou uma teoria dos signos associada lgica, cuja funo seria a de classificar e descrever todos os tipos de signos. Se para Goethe tudo na vida ritmo, para Peirce, tudo no mundo signo: os objetos, as idias e o prprio ser humano so entidades semiticas. Este princpio chamado por seus seguidores de viso semitica universal do mundo ou viso pansemitica do mundo, pois ele sequer admitia uma classificao entre entidades semiticas e no semiticas.

21 Para dar conta de classificar todos os fenmenos desse mundo inteiro semitico, ou seja, para desenvolver a classificao de todos os signos, Peirce criou apenas trs categorias; e teve a necessidade tambm de inventar novas palavras para designar essas categorias. Essas palavras foram traduzidas para o portugus como primeiridade, secundidade, terceiridade, repectivamente, do ingls

Firstness, Secondness e Thirdness. Estas categorias constituem a base das teorias doautor, pois so esses os termos que designam as nicas trs possibilidades de se

enquadrarem todos os fenmenos da natureza e da cultura, includo opensamento, os conhecimentos, e o prprio ser humano. As categorias de Peirce podem ser assim sintetizadas: primeiridade, como sendo a capacidade contemplativa do ser humano; o ato de apenas ver os fenmenos; o acaso; o espontneo; secundidade, como a capacidade para distinguir e discriminar as experincias, ou a reao aos fatos concretos; terceiridade, a capacidade de generalizar os fatos e organiz-los em categorias; neste nvel, d-se, segundo ele, a mediao, o crescimento, a aquisio. Essa tricotomia um modelo terico que possibilita a aplicao em diversas reas do conhecimento. Do mesmo modo, outra tricotomia pregada por Peirce as noes de cone, ndice e smbolo tem servido para aproximar e inter-relacionar a Semitica com as chamadas cincias cognitivas. A grande divulgadora e estudiosa da obra de Peirce no Brasil Lcia Santaella, que j conta duas dezenas de livros publicados com base em teorias peirceanas. Como essas brevssimas noes podem mostrar, a Semitica peirceana, a exemplo de outras escolas semiticas, usa uma terminologia hermtica, o que muitas vezes afasta interessados no estudo do fenmeno da significao. E sua construo terica to original em relao a estudos sobre linguagens e significao com base na Lingstica, o que levou Roger Odin, outro francs, estudiosos da significao, a afirmar que a Semitica de Charles Saunders Peirce quase nada tem a ver com a semiologia de Ferdinand de Saussure. A ltima fonte terica semitica contempornea, de acordo com a classificao de Santaella, em trs origens distintas, nasceu e vem se desenvolvendo com mais consistncia na Europa ocidental; conhecida como Semitica Saussureana (por conta de Ferdinand de Saussure), Semitica da Europa Ocidental (para diferenci-la da semitica de origem sovitica), Semitica Francesa (mesmo que vrios de seus seguidores sejam de outras nacionalidades), Semitica Visual (pelo fato de o estudo da visualidade estar muito bem desenvolvidos pelo grupo da chamada cole de Paris) e, mais recentemente, para se referir a desenvolvimentos posteriores, usa-se a expresso Semitica

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Greimasiana, para designar os adeptos das teorias propostas pelo francs Algirdas Julien Greimase seu grupo de pesquisadores. As linhas tericas, no mbito das cincias, desenvolvem-se como dinastias: determinado cientista professa princpios especficos, utiliza um mtodo aplicvel a outros objetos de estudo ou descobre certas propriedades de um elemento; seus assistentes acompanham-no, sucedem-no, fazem novas descobertas, associam-se a outra gerao de discpulos; estes, por sua vez, continuam os estudos, aprofundando-os ou, s vezes, mudando seus rumos. E a ela, associa-se outra gerao e assim, sucessivamente. Isto fica evidente na vertente francesa da Semitica. Seu pai fundador, o suo Ferdinand de Saussure (1857-1915), partiu do estudo da linguagem; criou a Lingstica, que tinha como objeto no apenas o estudo de sinais, mas da matriz do comportamento e pensamento humanos, uma vez que considerava a linguagem como a formatao de atos, vontades, sentimentos, emoes e projetos, ou seja, um dos principais fundamentos das sociedades humanas. Saussure, percebendo a possibilidade de estender vrias das proposies adotadas para a anlise da lngua natural para outros sistemas de significao, props e termo Semiologia para designar o estudo geral de todos os sistemas de signos; contudo, fora o estudo mesmo das lnguas naturais, apenas alguns estudos foram feitos, ainda assim, muito associados lingstica ou, como uma disciplina anexa a ela, conforme disse, mais tarde, Greimas. Na segunda gerao dessa abordagem terica destaca-se o dinamarqus Louis Hjelmslev (1899-1965), que estudou o isomorfismo entre diversos sistemas de signos, vindo a propor critrios para considerar outros sistemas, que no os das lnguas naturais, como linguagem. sua a denominao que designa plano da expresso e plano do contedo ao que Saussure havia chamado, respectivamente, de significante e significado, termos esses mais familiares aos leigos. Alguns o criticam por apenas mudar a terminologia adotada por Saussure neste e em outros fenmenos da significao. Outro nome de destaque o francs Roland Barthes (1915-1980), que agrega a noo de sujeito e o sentido cultural ao processo de significao. Dedica-se aos estudos do mito, da lngua, do teatro, da fotografia, do cinema, da arquitetura, da pintura, da propaganda, da moda e at da medicina e da msica. Tanto Hjelmslev quanto Barthes tm diversas obras publicadas em portugus. Um personagem de grande relevncia nesta gerao ps-saussurre o de Algirdas Julien Greimas (1917-1992). Ele cria um grupo de pesquisadores dedicado sociolingstica, cujos interesses estavam voltados tanto para a cincia especulativa quanto para a cincia aplicada, tendo inicialmente como objeto de estudo o texto literrio. Deixou importantes fundamentos tericos para seus seguidores em ensaios e livros.

23 Greimas foi um dos semioticistas que se manteve mais fiel s idias estruturalistas de Saussure, sendo que o objetivo principal do projeto semitico de Greimas o de estudar o

discurso com base na idia de que uma estrutura narrativa se manifesta em qualquer tipo de texto, sendo que a palavra texto extrapola, de acordo com essa linhaterica, a condio exclusiva de texto verbal. Para Greimas e seus discpulos, um ritual ou um bal podem ser considerados textos ou discursos. Em decorrncia, ele e seu grupo ocuparam-se e seus seguidores ainda hoje se ocupam do estudo do espao, da arquitetura, da pintura, da teologia, da televiso e do cinema, da publicidade e da moda, do direito e de outras cincias sociais, sempre considerando cada manifestao, em qualquer dessas reas, como textos. Em sua obra A Semitica no Sculo XX, Winfried Nth afirma que apenas um esboo grosseiro das idias de Greimas poderia ser apresentado, em um captulo. Menor ainda nossa ambio nestas poucas linhas, no s em relao a Greimas, mas a toda a Semitica. Afinal, apenas

uma pincelada de Semitica, conforme prometido.

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UM MODELO PARA LER IMAGENSPara penetrar na complexidade da imagem, com vistas a uma leitura que contemple o seu todo, ou para que se perceba integralmente seu plano de expresso, ou seja, tudo aquilo que perceptvel ao olhar, necessrio vasculhar o texto, inicialmente tentando definir a linha ou as

linhas que determinam a macroestrutura da imagem visual, tambm chamada deestrutura bsica. uma diagonal? um eixo vertical? Diagonais que se cruzam, horizontais paralelas, figuras geomtricas, ngulos ou um ponto central? Estas so as primeiras indagaes que devem suscitar uma imagem. Isto porque a estrutura bsica da imagem vai dar sustentao composio visual no seu todo e, portanto, ser fundamental no jogo de decodificao dos significados. Definida a estrutura bsica da imagem, parte-se para a observao das mincias, ou seja, para a identificao de seus elementos constitutivos, como linhas, pontos, cores, planos, formas, cor, luz, dimenso, volume, textura. Que elementos do origem ao texto visual? E como se apresentam outros elementos, que no podem ser chamados de constitutivos porque no compem a imagem, mas que tambm geram efeitos de sentido, como o suporte, o recorte e a moldura? Alis, aqui cabe um parnteses: quando falamos em moldura, no sentido amplo, no s aquela madeira ou metal, decorado ou pintado, mas tudo o que est em torno, que dialoga com a obra. Onde esto esses elementos mnimos constitutivos e significantes? Este o foco do segundo grupo de

indagaes que cada um deve fazer a si mesmo, diante de uma imagem.Entre os elementos constitutivos estabelecem-se relaes. Assim sendo, identificados os elementos constitutivos, buscam-se as articulaes entre esses elementos, momentnea e mentalmente desfeitas, quando da investigao do rol de elementos que constituem a imagem. As relaes, articulaes ou regras de combinao entre os elementos constitutivos da imagem so chamadas

procedimentos relacionais.Essas relaes podem ser encontradas entre elementos, entre elementos e bloco de elementos, entre blocos de elementos entre si; tambm um mesmo elemento pode estar articulado de modos diferentes. Por exemplo, entre vrias circunferncias que compusessem uma imagem, elas poderiam estar relacionadas pela repetio ou rebatimento das formas; por outro lado, as mesmas circunferncias poderiam estar relacionadas pelo contraste de dimenses e de cores; poderiam, ainda, estar relacionadas de modo eqidistante, gerando ritmo, considerando-se o fundo dessas figuras; e poderiam se relacionar

25 atravs do procedimento de repetio atravs da textura, fosse entre as circunferncias ou deste bloco de circunferncias com o seu fundo. Para clarear um pouco esta composio intrincada que a imagem, poderemos fazer analogias, que so bastante simplistas, mas tm funcionado. Uma das comparaes prope pensar na imagem como um texto verbal, onde os elementos constitutivos seriam as palavras, e os procedimentos relacionais corresponderiam sintaxe, ou seja, ao modo de organizar as palavras entre si. Mas preciso cuidado, pois existem distines para alm do aspecto visual de ambos os textos. Uma delas que nem a escrita nem a leitura da imagem so lineares; a outra que cada elemento no concorda com apenas um outro elemento, como j foi mostrado acima; ao contrrio, ele geralmente est articulado com diversos elementos, como que formando uma teia. E a terceira, bem, um papo para outro captulo... trata-se da obedincia s regras gramaticais, que j h muito no funcionam quanto s imagens... Outra comparao pode ser feita entre a criao ou a leitura de uma imagem e um produto culinrio, um bolo, por exemplo: os elementos constitutivos da imagem seriam os ingredientes, e os procedimentos relacionais, o modo de fazer... Enfim, esta proposta para ler imagens faz um desmonte, em busca dos efeitos de sentido, das significaes. Desconstruindo e reconstruindo a imagem, as articulaes entre os elementos so processadas. A leitura passa a ser um processamento das relaes, onde a cadeia de significaes remontada, com base em determinadas regras de combinao, selecionadas para construir a imagem, que so os procedimentos relacionais adotados pelo sujeito criador. Como esto organizados

os elementos no texto? Eis a pergunta seguinte.Elementos mnimos constituintes articulados atravs de regras so as marcas da concepo do texto visual que, nele deixadas intuitiva ou conscientemente, revelam o momento vivido e as pretenses do seu produtor. Em cada texto visual est registrado um discurso, evidenciando uma viso especfica, a do seu criador. A imagem mostra a sua viso de mundo, suas relaes com o seu contexto, alm da sua capacidade de manipulao do cdigo ao qual pertence a imagem. Todavia, qualquer que seja o contexto e a concepo de mundo do produtor e independentemente do cdigo que se utilizar para a manifestao, expresso e contedo, correlacionados, estaro sempre no seu

texto, visveis e ou audveis.Assim, o que o leitor ou o enunciatrio da imagem tem diante de si o texto esttico, que o prprio universo de sua leitura. Isso caracteriza a autonomia da imagem: os procedimentos relacionais esto ali registrados, e so essas relaes que a definem como tal, pois to logo o criador termine o seu

26 trabalho, ele no mais lhe pertence. A imagem passa a falar por si mesma,

independentemente do que seu autor teria querido dizer.O leitor fica, ento, dispensado de pesquisar a histria e o contexto do autor da imagem, pois os dados indicativos desses e de outros contedos esto na prpria imagem. Por isso o leitor de um texto visual deve transitar incansavelmente de um ou mais elementos mnimos para outros elementos, de um tipo ou de vrios procedimentos para outro ou outros, de elementos para procedimentos e viceversa, deles para o todo da imagem. Em seguida, retorna do todo ao que pode parecer

detalhe, ou seja, ao que algumas vezes no fica visvel diante de um primeiro ou segundo olhar.Munido de seus sentidos e de sua capacidade cognitiva, segue o leitor na direo do desvelamento de novos conhecimentos, atravs de renovadas significaes que encontra, transitando das partes para o todo e do conjunto do texto esttico para seus componentes. So as inmeras trilhas que se entrecruzam no visvel da imagem (plano de expresso) ao mesmo tempo em que tecem a significao (plano do contedo); da a necessidade de observar minuciosamente toda a imagem, resgatando pontos relevantes para, a partir deles, recriar, traduzindo uma teia de elementos e procedimentos significantes que, como tal, construda por meio de linhas paralelas, concntricas, todas relacionadas.

Tudo isto necessrio para que se chegue aos incontveis sentidos de um texto, ao que quer dizer a imagem, ao plano do contedo.Os elementos constitutivos do texto esttico no devem ser considerados como um vocabulrio autosuficiente apenas, pois estes elementos no adquirem sentido no isolamento, mas sempre e somente na relao. A descoberta dessas relaes vai conduzir o leitor aos efeitos de sentido, ou ao plano do contedo. O acesso s imagens estticas no , de modo algum, um processo simples; talvez seja to complexo quanto o universo mesmo dos produtos visuais. O que se prope um referencial

mnimo para a leitura da imagem; parmetros passveis de utilizao na leitura de diversasimagens; uma abordagem que oriente para um modo de ver diferente do habitual; uma estrutura bsica a ser guarnecida com outros conhecimentos, tanto os j trazidos na bagagem do leitor, quanto aqueles que ele se sentir instigado a buscar a partir da provocao proposta pelo texto esttico diante de si.

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ABAIXO AS REGRASH pouco, ao falar das diferenas entre o texto verbal e o texto visual, lembramos das regras ou normas da gramtica, aquelas que permitiram ao nosso professor de portugus nos tirar pontos, ou nos rodar, ou riscar nosso trabalho, ou passar por cima com tinta vermelha sobre nossos erros, ou escrever

aquele esperado C com perna bem comprida, nas questes de prova. Todo mundosabe o qu uma destas coisas, ao menos, dependendo da idade que hoje temos. E agora, que no temos mais professor, continuamos errando, sem ter quem nos corrija...

Por que cometemos erros? Porque existem regras para cumprir. Ou, no caso dalinguagem verbal, porque existe a gramtica, um conjunto de leis ou regras, que regulam o uso das palavras em um determinado idioma. Assim sendo, na linguagem verbal h o certo e o errado (o que est de acordo com as regras da gramtica ou no); o professor ensina e depois corrige o que fizemos diferente do que foi ensinado por ele e pelo livro que, por analogia, tambm chamado de GRAMTICA. Antigamente, existiam os chamados cnones em arte, que eram equivalentes s regras gramaticais: os olhos deveriam estar no limite entre 1/3 e 2/3 da cabea, de cima para baixo; o corpo deveria medir sete vezes a dimenso da cabea e assim, sucessivamente. A acreditavam os gregos, os romanos e mais tarde, os artistas do Renascimento, estava garantida a beleza. Mas muitos experimentaram usar os tais cnones e no conseguiram bons resultados... O que se percebe que, no mbito do sistema visual, no existem regras especficas, j h muito tempo. Ao contrrio, quanto mais original a imagem, quanto mais ela conseguiu um modo de se sustentar (ao mesmo tempo, cumprindo suas funes e quebrando as normas estticas vigentes). Por exemplo, na publicidade, o primeiro a ultrapassar os limites da moldura do outdoor incorreu em uma violao de uma norma estabelecida. O precursor de anncios com cheiro, em revistas, tambm. Existe o habitual, o estabelecido, o qu tacitamente aceito e reconhecido enquanto tal, seja uma embalagem, um cartaz, uma capa de CD. Isto a norma, ou a regra, ou o paradigma esttico. Criar algo alm disto significa quebrar, violar, romper ou desobedecer as normas, regras ou paradigmas. Percebam: todos estes verbos, violar, desobedecer, por exemplo, nos levam noo de infringir leis, nos levam idia de marginalidade. Porm, nas linguagens visuais, bidimensionais ou tridimensionais, quanto mais violada a norma vigente, tanto mais original,

criativo e... eloqente a imagem; porque ela se diferencia das demais da sua classe; ela sedestaca...

28 Por este motivo, devemos ter cuidado ao fazer a transposio ou as analogias entre texto verbal e texto visual. Alm das diferenas j conhecidas, certas palavras prprias do fenmeno de comunicao verbal, ao serem utilizadas no mbito do visual, deveriam merecer uma referncia qualquer para distingui-la, seja um grifo, um rodap explicativo, umas aspas. Porque no existe

uma gramtica do visual; no existindo gramtica, inexiste uma sintaxe; no existindogramtica nem sintaxe, inexiste uma linguagem visual... apenas, uma linguagem visual, com linguagem entre aspas, quer dizer, uma espcie de linguagem que no exatamente o que se pensa quando se diz linguagem. Deu para entender? Ora, o uso j consagrou a expresso linguagem visual. No entanto, esta falta de cerimnia ao nos apropriarmos de uma terminologia importada de outro sistema, dada a nossa prpria incapacidade de gerar palavras mais adequadas para designar nosso trabalho, merece, no mnimo, um reparo, uma demonstrao pblica de que sabemos que se trata de uma apropriao. Se indevida ou no, isto outro papo... ***** Ao voltar para a questo das regras estticas, vigentes e/ou consagradas, encontramos em um escrito do pensador alemo Walter Benjamin, uma referncia ao contexto scio-cultural europeu da primeira metade do sculo, na qual ele dizia que o povo frua, sem criticar, aquilo que

era convencional; o que era verdadeiramente novo era criticado com repugnncia. Segundo Benjamin, a massa populacional necessitava da ligao entre a obra frudae a experincia vivida e apresentava, como exemplo, o fato de o pblico de sua poca reagir positivamente diante de um Chaplin e negativamente diante de um Picasso, ambos seus contemporneos. O que haveria de diferente entre o cinema de Chaplin e a pintura de Picasso, a ponto de fazer com que o pblico reagisse de maneira oposta? O cinema um cdigo de massa e a pintura no o ? O cdigo audiovisual pode ser usado como uma mdia para a massa populacional, mas o visual tambm pode ser assim entendido: a ttulo de exemplo, todo o acervo da humanidade na forma de arte sacra teve e ainda tem a massa como fruidora. Em perodos histricos onde a maioria da populao no tinha a compreenso do texto escrito, era o cdigo visual que cumpria o papel de disseminador dos contedos bblicos. O problema estaria na temtica? Seriam os temas chaplinianos mais prximos do cotidiano vivido pelo homem de ento do que os temas de Picasso, como prope Benjamim? O tema da guerra,

29 expresso em Guernica, um dos trabalhos mais divulgados da obra de Picasso, poderia ser considerado como distanciado da experincia vivida pelo homem da primeira metade do sculo na Europa? E a sua pomba da paz, identicamente conhecida? No! Os temas de ambos estavam muito presentes na vida cotidiana; mas a resposta do pblico com relao obra de Picasso pode estar ligada impossibilidade de compreend-la, decorrente da falta de conhecimentos de paradigmas estticos para a leitura; assim, o pblico reagia reacionariamente, afastando-se, na verdade, daquilo que no entendia. Eis a uma situao que coincide com o que se v e se ouve em relao produo cultural na realidade brasileira contempornea. Como exemplo, pode ser citada a reao de boa parte do pblico, quando da realizao de cada Bienal de So Paulo. Predomina a perplexidade diante da

vanguarda artstica; e a imprensa muitas vezes refora a viso do senso comum, destacandocomo excentricidade o que na verdade se caracteriza como violao da norma esttica. Mas as questes envolvendo compreenso ou da rejeio de produtos estticos esto relacionados diretamente ao problema dos paradigmas ou regras estticas. Vejamos: provavelmente, a massa fruidora reagia positivamente diante de Chaplin, no por estar mais prximo da sua experincia de vida, mas pelo fato de conseguir fazer uma determinada leitura de sua obra, adequada ou no ao potencial de significados que Chaplin oferece. Ou seja, a massa lia Chaplin com referenciais do cinema literrio, prendendo-se apenas ao enredo, aos paradigmas ou regras do cinema voltado para o divertimento, historinha com happy end, vivenciada no contexto do descompromisso caracterstico da busca de lazer. As pessoas no percebiam a quebra da norma esttica por trs da potica de Chaplin. Claro: se ele iludiu censores, porque no iria entorpecer as massas? Em relao a Picasso, pelo fato de ele propor novos paradigmas estticos, explicitamente, ou seja, novas formas de apresentar seus temas, ou nova forma de uso do cdigo, quebrando a norma esttica ento vigente para a leitura do cdigo pictrico, havia a rejeio. As pessoas no estavam instrumentalizadas para o tipo de leitura que sua obra exigia; nem tinham um outro referencial anterior para adotar. Por outro lado, o que ocorria, com o cinema de Chaplin, que dele no era feita uma leitura esttica; ele era visto, principalmente, como entretenimento. E ltima anlise, ambos, Chaplin e Picasso quebraram os paradigmas estticos de seu tempo, respectivamente, no cinema e nas artes plsticas. Porm, Picasso violou a normas estabelecidas e o pblico o rejeitou, pois no possua um referencial alternativo para compreend-lo. No caso de Chaplin, ele foi interpretado com referenciais de paradigmas ou regras vigentes, diferentes daqueles que ele propunha, mas ainda assim pode ser

30 compreendido. A leitura da obra de Chaplin, com a devida percepo das

violaes das regras estabelecidas, s foi feita anos mais tarde.Se ainda hoje, quando se comemoraram cem anos de cinema, massa faltam referenciais para fruir esteticamente uma obra cinematogrfica, prendendo-se muitas vezes apenas ao enredo, mais difcil ainda seria haver uma apreciao esttica diante de uma nova potica cinematogrfica que surgia. Como o cinema inicialmente retratava o cotidiano do mundo natural, fazia-se dele a mesma leitura que se fazia dos fatos do dia-a-dia; este era o referencial anterior para a leitura de Chaplin. Analisemos ainda um pouco mais a questo da quebra de paradigmas ou da violao da regra ou da norma esttica, agora tomando como referncia, ainda no cinema, o ritmo (porque o ritmo est

presente no s na msica: h ritmo na dana, no teatro, na poesia, na pintura, no cinema, na televiso, e mesmo nas fachadas dos prdios e casas). O ritmo acelerado caracterstico da poca atual, onde no se pode perder tempo; e o ritmo um elemento esttico que s acontece no tempo. Nosso padro esttico de ritmo, portanto, o do videoclipe. Assim, quem se dispuser a romper com esta norma estabelecida, tem que arcar com o nus de nadar contra a corrente, para tentar impor uma nova esttica, uma nova regra. No caso do cinema e de outras linguagens que tambm tm pressa criar imagens com ritmos mais lentos desafia o tempo do cinema moderno, com filmes amplos, detalhistas, um verdadeiro antdoto esttica do videoclipe. A esttica do videoclipe a esttica do ritmo acelerado, tudo paralelamente e ao mesmo tempo, em termos tanto de som como em termos de tempo de exposio de imagem, dificultando a possibilidade de reflexo sobre o que lhe est sendo apresentado, j que se trata de um cdigo audiovisual, que prope simultnea e sucessivamente uma srie de significados: hbrido e acontece no tempo. Essa diversidade exigiria um tempo maior, ou um ritmo mais lento, para a leitura da complexidade das articulaes de sentido. No entanto, predomina nos meios audiovisuais, o ritmo acelerado da esttica do videoclipe. Tal ritmo faz com que as pessoas se habituem a ele e, em conseqncia, a no conseguir e a no gostar de refletir. Esse ritmo rpido passa a ser a norma esttica, porque os espectadores vm sendo condicionados pela televiso e pela prpria vida a receb-lo desta forma. Um criador de imagens que restitui ao filme um tempo hoje considerado lento, quebra com a norma esttica vigente, vindo a ser enquadrado em um movimento denominado neo-realista, o que por si s j diz muito. ****

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Para encerrar este papo sobre quebra de paradigmas estticos, ou violao das regras visuais vigentes, faamos am paralelo com o que nos mostra Thomas S. Kuhn, no seu livro A Estrutura das Revolues Cientficas. Como o ttulo diz, ele se refere histria da cincia, mas sua premissa serve para todos os campos da atividade humana onde h criao. Isto porque o novo assusta, o

novo ameaa, o novo, no mnimo, causa estranhamento.Neste estudo, Kuhn comprova, com exemplos de fatos envolvendo as descobertas e as histrias de vida de diversos cientistas, como Arquimedes, Newton e Galileu, que quando uma nova descoberta contraria o paradigma aceito pelo que chama de cincia normal, h um mal estar na comunidade cientfica. De uma maneira mais ou menos enftica, a nova descoberta e seu autor no so prontamente aceitos, at porque novos paradigmas sempre colocam em questo aqueles anteriormente vigentes. Para Kuhn, a cincia normal aquela que se ocupa com os quebra-cabeas, ou seja, com variaes em torno de um mesmo - e antigo paradigma. Diante de um novo paradigma, toda a comunidade cientfica se retrai diante da ameaa que significa o novo paradigma, gerando uma crise que enfraquece as regras dos quebra-cabeas em vigor, de tal modo que acaba permitindo a emergncia de um novo paradigma. Assim, gradativamente, o novo paradigma, as novas normas vo se estabelecendo, e a comunidade cientfica comea a produzir quebra-cabeas sobre a nova descoberta... at o surgimento de uma nova quebra de paradigmas... possvel estabelecer uma analogia entre um novo paradigma cientfico e uma nova norma esttica, na arte ou no design: trata-se sempre de questionar o que est posto, o

habitual, buscando novos princpios, uma nova ordem. natural, portanto, que violao de uma ordem estabelecida cause estranhamento, no mnimo. Mas se sabe tambm que questo de tempo a aceitao. Ainda mais no campo davisualidade, onde h a cumplicidade do olhar, pois a viso tem uma enorme capacidade de adaptao...

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FORMAS MATISSIANASAo se observar as reaes das pessoas diante das imagens em geral, percebe-se que dominante, no senso comum, a idia de que a arte abstrata de difcil legibilidade. Complementando essa noo, entendem que tanto mais se compreende uma imagem quanto mais reprodutora do mundo natural ela . Assim, o critrio para a escolha deste Matisse, entre tantas outras imagens, deu-se em virtude do seu distanciamento de uma imagem natural anloga, ou de sua proximidade do que genericamente considerado abstrao. Para torn-la ainda mais distante de referentes anteriores, omite-se, inicial e propositadamente, seu ttulo verbal. Tudo isto para tentar mostrar que tal texto no exclusivamente simblico, a saber, no composto por elementos cuja significao convencionada e aleatria. Tambm no se trata de seu oposto, ou seja, no uma imitao perfeita de algo que se pretendeu re-presentar. Na sua breve leitura que se segue, pode ser percebido que no se trata do relato descritivo de uma histria ou de uma cena literria, acerca de referentes do mundo real, como pessoas, seus atos ou sentimentos, nem sobre a flora, fauna ou coisas construdas pelo homem. Antes, trata-se do relato de percepes dos elementos constitutivos e de sua estruturao, atravs de procedimentos relacionais, no texto imagtico. E das idas e vindas do olhar sobre uma imagem que, mesmo aparentemente abstrata, permite emergir efeitos de sentido. O que se v? Um suporte, um plano, em forma de retngulo, cuja maior dimenso a horizontal. Sobre o retngulo do suporte, dois outros retngulos cujos maiores lados so os verticais, de dimenses equivalentes entre si e guardando, tambm entre si, um pequeno distanciamento. Sobre o retngulo da esquerda, mais um retngulo, igual quanto a altura em relao ao qual ele se sobrepe e um pouco menor na largura. Tomando quase toda a rea deste retngulo sobreposto h uma forma recortada que, sendo vazada, permite a visualizao de rea igual no retngulo de fundo. Contrastando com as retas descritas at aqui, esta forma composta quase que apenas por curvas; a exceo a base. Sobre o retngulo da direita, h uma forma semelhante, tambm com contornos curvilneos e base reta. Comparando-se as formas, a altura de ambas igual, bem como, aproximadamente a rea de ambas, que ocupam praticamente a mesma rea no plano ou nos respectivos retngulos que lhes servem de fundo, tomando-os quase totalmente. A diferena

que a da esquerda, vazada, deixa o olhar atravess-la, podendo perceber a rea do retngulo do fundo; a forma da direita, por estar sobreposta ao seu respectivo plano,

33 encobre-o com sua rea. As duas formas rebatem-se: competem entre si, ao

mesmo tempo em que dialogam.Quanto aos contornos, so semelhantes, mas no iguais. A curva intermediria e a curva inferior do contorno esquerdo da figura da esquerda so mais pronunciadas do que as curvas do contorno equivalente da figura da direita; quanto ao contorno esquerdo, h duas curvas a mais na figura da direita. Quanto s cores, alm do suporte branco, so usados dois tons de azul, um muito claro e o outro muito forte. A figura da esquerda, recortada em um retngulo azul escuro, sobreposto a outro retngulo azul claro, assume a cor do seu plano de fundo; a figura da direita em azul forte, colada sobre o seu respectivo retngulo, retira dele a rea que ela delimita. As duas formas provocam, no olhar, procedimentos comparativos quanto s linhas, aos planos, s cores, s dimenses, aos movimentos; trata-se da busca de identificao de igualdades e de diferenas. Agora, pode-se acrescentar o ttulo verbal da obra: Formas. Sab-lo agora altera, de alguma maneira, a leitura? Mas o que esta obra indica, o que ela mostra? Este texto imagtico estuda basicamente o contraste: contraste de curvas e retas, contraste de ritmo, de movimento; contraste de planos, contraste de cores; jogo de equilbrio atravs do contraste das cores e da posio das formas; presena/ausncia; positivo/negativo: dualidade. Como pode ser observado, no h uma total arbitrariedade neste texto imagtico; os azuis so mesmo azuis; um azul, infinito, finito em outro azul, em outro plano ou em outra forma. As formas no so outra coisa seno formas, formas azuis; semelhantes, mas no iguais. Elas esto ali e podem ser lidas por pessoas que falem qualquer lngua, porque o significado est no como elas so construdas, portanto, na obra. Os que procuram penetrar na imagem visual pelo seu enunciado global podero ver, graas percepo gestltica, dois torsos, alis dois torsos femininos, j que as curvas das cinturas e dos quadrs so bastante acentuadas. Justamente nesse jogo de contrastes do torso que essa imagem nos diz algo. As formas dos nus agem como actantes, ou seja, de personagens que participam do processo, ainda que sem intencionalidade. E nessa espcie de agir mostram, pelo contraste, a dualidade, e pelas semelhanas, a possibilidade de comparao. Comparando-se, observa-se a dualidade das coisas, a dualidade do ser humano; a dualidade, talvez, da mulher. O ttulo da obra Formas (ou Formes, em francs, no original) e o vocbulo alemo gestalt quer dizer forma. So as diferenas entre as formas, formas das coisas, formas de vida, humanas ou no. So os contrastes, as diferenas. E a harmonia, o movimento, o equilbrio conseguem estar igualmente presentes em ambas as formas, que so diferentes entre si.

34 De uma maneira geral, qualquer texto , em princpio, um gerador de efeitos de sentidos diversos. Mas no caso da imagem esttica, dada a natureza dos cdigos utilizados, a dimenso expressiva cada vez mais deixa de ser representao para tornar-se presentificao. sutil a diferena: enquanto representar estar no lugar de outra coisa, presentificar quer dizer ter semelhanas com outra imagem ou coisa, mas sendo uma nova imagem ou coisa, original e autnoma. Um exemplo uma foto 3x4; ela no nos representa; ela nos presentifica: muda a dimenso, a textura, a profundidade, a cor... Assim, o significado no est fora do texto, em uma imagem anterior; o contedo de uma imagem esttica est na nova imagem e no em uma exterior e anterior, que estaria sendo, supostamente, na nova imagem re-(a)presentada. Em sntese, a expresso j contedo, em si. No estudo da significao na imagem, a adoo da segmentao do texto em elementos, procedimentos, planos, se d, metodologicamente, para efeitos de anlise. O desconstruir e o reconstruir a imagem, sempre consideradas as inter-relaes desses elementos e planos, o recriar o texto, reconstituindo-o a partir dos dados oferecidos pelo plano da expresso e seu relacionar com o plano do contedo, so estratgias s quais se recorre na busca de meios para uma reeducao da cognio mediada pelos sentidos, atravs da diversificao dos modos de ver - e, por que no, tambm dos modos de ouvir - na tentativa de propiciar uma compreenso mais abrangente da imagem. Consiste em uma espcie de traduo das operaes cientficas de anlise-sntese, ainda que com princpios e dinmica diferenciados, em funo do objeto de estudo. Cada imagem impe ao estudioso o modo de ser conhecida, ou seja, ela ilumina a escolha dos procedimentos metodolgicos e no vice-versa. Desse semiotizar o objeto de estudo que se determina o modo de decompor o todo em elementos, para melhor conhec-los e apreend-los em suas articulaes; paralelamente encontramse as relaes dos elementos do todo, o que consiste em reconstituir, a cada momento, uma viso do todo que agregue a complexidade das partes. Trata-se de um processo de anlise que busca a significao, que deve estar disponvel tanto aos profissionais de diversas reas quanto aos leigos, e que pode ser usado tanto para a compreenso de um cartaz, como de uma cena teatral ou o traado urbanstico de uma cidade.

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UM ENTERRO SEM CAIXOEnterro na Rede um dos quadros da srie Os Retirantes, pintado em 1944 pelo brasileiro Cndido Portinari, srie que hoje pertence ao acervo do Museu de Arte Moderna de So Paulo. O que se v? Observe-se, primeiramente, os elementos constitutivos. Depois, a combinao entre elementos e procedimentos relacionais. Para que se possa mostrar visualmente o jogo entre os elementos constitutivos, utilizamos um esquema visual que apresenta as figuras que nele se estruturam. Nesse esquema so destacados um a um os planos de profundidade propostos, diferenciao que feita atravs do uso de linhas e cores especficas para contornar e destacar a estrutura de cada um deles. No primeiro plano de profundidade, mais prximo do olhar, a planta dos ps da mulher central ajoelhada, de costas, evidencia-se pela proximidade do espectador, pela centralizao e pelo ngulo de viso proposto; o olhar percebe a totalidade da planta dos ps porque est na mesma altura que ela. As pernas em escoro esto atrs da planta dos ps, escondidas, o que atrai a direo do olhar para os ps, dado o destaque que apresentam, efeito que reforado por suas dimenses avantajadas.

A posio dos ps indica a forma que est destacada em toda a imagem: o ngulo, elemento que vai se repetir sucessivas vezes, algumas delas formandotringulos, como no caso dos ps da mulher central. Os contornos das partes internas e externas dos ps no so paralelos e por estarem eles postos, qual mos postas em orao, compem a diagonalidade da obra e formam dois ngulos que se sobrepem e remetem o olhar ao centro da tela onde se situa, oculto atrs desta mulher, a personagem principal da cena, o morto. Tambm no centro da tela, o ngulo formado pelos ps da mulher central, rebatido por um grande ngulo - na verdade, um tringulo - que se origina do lenol ou rede, situado no terceiro plano de profundidade. O corpo da mulher central est no segundo plano de profundidade do quadro. Sua saia apresenta dobras que formam ngulos, os quais aparecem tambm no contorno desta pea do seu traje. O mesmo ocorre na blusa: ngulos esto presentes, nas dobras e no contorno. Seus braos abertos formam outro grande ngulo, que paralelo e que se sobrepe ao ngulo formado pela rede. Nos dedos das mos desta mulher visualizam-se pequenos ngulos, agudos entre os dedos e retos nos terminais. A cabeleira desta mulher, tambm no segundo plano de profundidade, ainda que concebida por pinceladas sinuosas, pode ser vista, considerando-se seu contorno, como uma forma triangular. Outros ngulos so percebidos nas linhas ambguas - estampa ou dobra? - das mangas da sua blusa. O

ngulo formado pelos braos desta mulher remete o olhar para seu

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vrtice, no tronco do corpo dela mesma, o qual oculta o centro da rede, lugar onde est o morto.No terceiro plano de profundidade, localizam-se a rede e seus carregadores, duas figuras masculinas. O pano da rede apresenta, acima da cabea da mulher, um suposto quadrado em tom mais claro, que tendo uma parte encoberta, deixa aparente, no seu contorno, um ngulo que rebatido nas diversas formas angulares do fundo, na parte superior da tela. A rede forma um tringulo issceles cujo maior lado o superior, horizontal e quase paralelo ao pau no qual est amarrada, bem como linha que delimita o cho. Uma ponta do pano, esquerda, sai do vrtice em direo ao centro inferior da rede; as linhas das dobras do ngulo da direita tomam a mesma direo, indicando o local onde est depositado o defunto. Tambm no terceiro plano de profundidade, encontram-se dois carregadores; estando em marcha, as aberturas das pernas de cada um do origem a dois ngulos dispostos em sentido inverso ao ngulo inferior oculto da rede por eles ladeado. H uma complementaridade entre os trs, pois o ngulo central como que se encaixa, distncia, nas formas dos ngulos que se estruturam nas pernas dos carregadores. Mais dois ntidos ngulos aparecem nos contornos do brao direito do carregador da direita, bem menos sutis do que os que esto nas suas mos e nos que surgem do contraste entre luz e sombra nas dobras de sua vestimenta. Neste homem ainda podem ser observados ngulos nos ps, no joelho direito e entre a coxa e a perna esquerda. A deformao da sua cabea construda atravs de linhas angulosas, onde se destaca o nariz. O homem da esquerda delineado tambm atravs de linhas angulosas: nos ps, nas dobras da cala e da blusa, no encontro entre brao e cintura, nas mos e na cabea. Um msculo anguloso salienta-se no seu brao direito. Em contraste com as retas predominantes na tela, encontram-se algumas linhas sinuosas. Elas esto no brao direito do homem da esquerda, sobre seu ombro e na amarrao da rede. Se o olhar percorrer a tela, partindo deste ponto, vai encontrar linhas curvas nos terminais dos msculos expostos deste homem, em algumas dobras da saia da mulher central e nos seus dedos dos ps, nos terminais dos msculos das pernas do homem da direita, semelhantes aos do homem da esquerda, e nos contornos da mulher da direita, no quarto plano de profundidade. No entanto, se se desenhar este percurso, vai-se observar que se trata de um trajeto anguloso. Ao chegar ao quarto plano de profundidade, vai-se deparar com a mulher da direita, j mencionada por suas linhas curvas, como encontradas nas paralelas das dobras da saia, embora seja quebrada a linha que demarca o contorno desta saia. Ela possui linhas curvas tambm no contorno do

37 brao visvel, o direito, e na cabea. Mas sua imagem tambm apresenta linhas retas e ngulos, que so vistos, formando tringulos, a partir do delineamento do seu brao: um formado pelas linhas interiores do brao, pescoo e queixo e o outro, que em posio inversa e dimenso semelhante, repete-se na manga. Nas mos desta mulher, aparecem ngulos nos contornos, mais explcitos do que os que expressam seus ossos e msculos. O fundo do quadro considerado o quinto plano de profundidade. Na parte inferior da tela, uma linha horizontal descendente demarca o cho, sobre o qual aparecem pedras e sombras angulosas. Quanto parte superior do fundo, ela composta por planos de profundidades sobrepostos, delineados, preponderantemente, por linhas retas. Em alguns desses planos de profundidade, repetem-se pinceladas em forma de sucessivos pontos, gerando uma textura grosseira, a qual rebatida na saia da mulher central. Destaca-se, no todo da obra, os fortes contornos em preto, preto das trevas e do sentido negativo que, por outro lado, pe em evidncia e delineia os elementos e formas que compem o quadro. Este preto, especialmente nos msculos expostos e nas dobras das

roupas, funciona tambm para dar profundidade, pois sombra, e para compor a textura. Os contornos pretos esto ausentes no fundo, o que evita que figura e fundo semisturem. A maior parte da tela monocromtica, apresentando diversos tons de cinza que tendem ora a azuis diversos, ora aos verdes claros. O cinzento predominante d a idia de cinza, o que resta depois de um incndio, ou de cadver, o que restou depois da vida. Na parte inferior da tela, aparece a terra nua, um barro alaranjado, cuja cor contrasta com o resto do quadro, reala mltiplos sentidos - da aridez da terra seca e das vidas secas ao sangue da dor e do sofrimento, passando pelo alaranjado da chama do fogo. O laranja tambm uma cor quente, ponto de equilbrio entre o amarelo e o vermelho. Assim sendo, a terra laranja presentificao de equilbrio, equilbrio s vezes inatingvel. Esta cor, em contraste com os cinzas diversificados, assenta a parte cinza das cinzas sobre o laranja das chamas; evita a monotonia no quadro e d peso composio plstica. A luminosidade vem do alto e da esquerda, determinando o clareamento das partes das vestes que a ela se expem, bem como um ponto de luz na cabea da mulher central. O local de origem da luz condiciona as partes sombreadas. Azuis claros e lmpidos salpicam o traje da mulher da direita, sendo um azul da mesma tonalidade do da gua de um pequeno lago, sua direita, semi-seco. As retas e os ngulos dos contornos, geram uma gestualidade veemente e pattica, sendo que a veemncia reiterada atravs do vigor das pinceladas. As retas fazem com que os contornos sejam

38 grosseiros, originando seres que parecem ser talhados machado na madeira; tanto estas linhas como as poucas curvas que contrastam com elas so usadas na deformao da figura humana.

O equilbrio axial central determinado, principalmente, pela forma decorrente da posio assumida pela mulher central. A composio apresentauma simetria que no absoluta: h simetria na mulher central, nos dois carregadores, na rede. A quebra da simetria gerada pela localizao da segunda mulher, direita da tela. A diagonalidade presente na estrutura do quadro contrasta com as linhas horizontais do cho, do lado superior do ngulo formado pela rede e pela vara paralela a ele. Retas, originando ngulos, esto presentes de modo recorrente na estrutura da obra. Por vezes, o ngulo fica mais evidente por aparecer sublinhado com o uso da cor preta. O elemento plstico chave da tela o ngulo, que presentifica uma cunha, objeto cortante, ou uma seta ou uma ponta de flecha. O ngulo pode ser tambm considerado uma figura incompleta, imperfeita, que pede o que falta, o que no h. O ngulo tambm pode ser visto como uma presentificaao de boca ou receptculo. Adotandose esse modo de olhar, observa-se a inter-relao entre expresso, no nvel da manifestao, e significao, no nvel do contedo. Os ps da mulher central, vincados por linhas diversas, assim como a superdimenso dos demais membros e os msculos evidentes aludem atividade braal, no cultivo da terra. Ps

descalos reforam esta idia e presentificam uma noo de pobreza. Aforma dos ps, grandes, retangulares, com toda a base em contato com o solo, parece colar o ser humano quele cho, quela realidade. uma verso da expresso verbal com os ps no cho, que pode ser entendido como o estado de quem deixou os sonhos de lado. A partir de uma linha vertical imaginria, traada do centro da borda superior da tela at os ps da mulher central, percorrida pelo olhar, far com que ele passe pelos vrtices dos dois grandes ngulos - o que formado pelos braos abertos da mulher central e o que d o contorno rede - e estabelece o eixo da composio plstica. O vrtice do ngulo, formado pelos braos da mulher e o inferior do tringulo, que a rede, so quase coincidentes, sobrepostos. Esta coincidncia, reiterada pelo fato de estar a

rede prenhe do morto, podem indicar que esta mulher a me do defunto.Ou teria sido ele quem fertilizou seu ventre? So inmeros os efeitos de sentido que pode causar uma nica figura, o tringulo, tantas quantas forem as relaes que forem estabelecidas entre tal figura e outros elementos da imagem.

39 Sob esta linha esto situados, alm do morto, contedo da rede e da mulher central, a mo esquerda do homem da esquerda, que cria ambigidade ao se parecer com uma caveira. Esta mo/caveira explicita o destino daquele que est contido na rede, alis, o destino de todos ns, lembrando que, mesmo em condies subumanas, aquelas personagens so to humanas quanto o apreciador da obra. Todos temos um crnio, o que nos iguala, independentemente das aparncias externas. Percebe-se que a gestualidade da mulher central deixa em aberto seu(s) sentimento(s). Pelo fato de seu rosto no estar aparente, resta a dvida, a ambigidade, a ambivalncia: imprecao e/ou splica? Revolta ou pedido de clemncia? Na abertura da rede, outro efeito de sentido: boca, boca aberta, sedenta de gua e justia. A mo esquerda do homem da esquerda, alm de poder ser vista como uma caveira, pode ser, agora, uma lngua nesta boca; lngua de fora, idia de cansao, de chegada aos limites, de rendio. A mo direita do homem da esquerda indica o cho, que lhe perpendicular, isto , o cho, a terra, a realidade, o destino. A mo direita do outro homem, o da direita, confunde-se com a vara que carrega no ombro, na qual descansa esta mo. Ela parece estar recoberta por uma atadura, que amarra a mo e o homem ao pau que carrega, prendendo-o na mesma realidade e conduzindo-o ao mesmo fim.

A vara, como figurativizao de lana, atravessa o quadro; ela paralela linha da terra, da realidade, da morte; ambas as linhas, horizontais, do estabilidade composio, contrastando com a diagonalidade dosngulos e com a emocionalidade da tela, para qual estes ngulos contribuem. Os terminais retos dos dedos da mulher central remetem idia de castrao ou de final abrupto. Cabeas pequenas em relao ao corpo e barrigas retradas, aliadas aos membros superdesenvolvidos aludem ao excesso de trabalho, em troca de pouca comida e sua conseqncia: crebros pouco desenvolvidos.

O peso do corpo do defunto que d a forma de tringulo rede, pois ela flexvel, de pano; assim, a forma triangular que o tecido da rede adquire, denota um defunto minguado, amontoado no fundo da rede. A redepode ser vista, tambm, como um buraco, cova ou receptculo. Outra espcie de metfora uma pedra no caminho, na parte inferior da tela, com valor de obstculo, cujo sentido reforado pela forma angulosa que esta pedra apresenta.

40 O fundo superior formado por efeitos de superposio de superfcies em diferentes tons de cinza esverdeados, onde o preto dos contornos est ausente; a direo das superfcies dada pelas pinceladas. So os infinitos horizontes de esperana, to diversificados quanto inatingveis. A linha da vara que usam os carregadores para conduzir a rede nela amarrada e a linha da terra, ambas levemente descendentes, articuladas forma da postura arqueada do homem da direita e da mulher da direita formam um sintagma, dando a idia de determinada direo: para frente e para baixo. Indica a necessidade de continuar a caminhada, para a frente, mas para baixo, na direo da terra ou do inferior, no sentido descendente ou decadente. A rede, formada por uma espcie de lenol e a imagem da mulher da direita, considerando-se em especial o vu que lhe encobre a cabea e as pinceladas azuis, cor que remete Virgem Maria, do origem a outro sintagma, que evoca a paixo de Cristo. Pode ser includo neste sintagma, igualmente, a gua, o lquido do mesmo azul que o da roupa desta mulher, insuficiente para cobrir a cavidade do lago, podem ser as lgrimas que ela no verte. O pequeno lago, parcialmente seco, ao mesmo tempo metfora e metonmia de seca.

Tanto os ngulos com abertura para os cus quanto aqueles com abertura para a terra podem dar a idia de cunha, ferindo pelo vrtice, agresso, violao, ou, pelo lado oposto, pela abertura do ngulo, a idia de abertura mesmo, de vulnerabilidade, de rendio, fragilidade, aceitao do estupro inevitvel. Neste entrecruzamento de significados atravs dos ngulos, pode-seentrever a ausncia de justia social terrena e tambm, da justia celeste ou sua invocao. um jogo de foras, de foras desiguais; um jogo no qual j se sabe de antemo quem o ganhador e quem o derrotado. E o que resta? A submisso, estampada no rosto dos dois homens. Em sntese, a tela apresenta dois homens carregando sobre os ombros um pedao de pau, do qual pende um pano, ou uma rede, conforme o ttulo do quadro indica. As duas extremidades da rede, amarradas s pontas do pau, permitem que o pano fique pendurado, como uma bolsa, e que ela sustente um contedo. O contedo no se v, mas interrelacionando-se o ttulo da obra gestualidade das mulheres presentes na cena (ambas de joe