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Caderno Espaço Feminino, v.18, n.2, Ago./Dez. 2007 311 Angela M. S. M. Taddei. Mestre PPGMS UNIRIO. Cynthia Turack. Mestre PPGMS UNIRIO/CAPES. Lucia M. A. Ferreira. Professora Doutora PPGMS UNIRIO. Imagens da mulher na literatura e na Imagens da mulher na literatura e na Imagens da mulher na literatura e na Imagens da mulher na literatura e na Imagens da mulher na literatura e na imprensa no Brasil oitocentista imprensa no Brasil oitocentista imprensa no Brasil oitocentista imprensa no Brasil oitocentista imprensa no Brasil oitocentista 1 Angela M. S. M. Taddei Cynthia Turack Lucia M. A. Ferreira Resumo: Este artigo aborda memórias de mulheres no Brasil do século XIX através da análise do discurso literá- rio em O cortiço (1890), de Aluísio Azevedo, e do discurso da imprensa em O sexo feminino (1873); A mãi de familia (1879) e A familia (1890). Palavras-chave: Memórias. Mulheres. Discurso. Impren- sa e Literatura. Abstract: This article approaches memories on women in 19th century Brazil by means of the analysis of literary discourse in O cortiço (1890), by Aluísio Azevedo, and of press discourse in O sexo feminino (1873), A mãi de familia (1879) and A familia (1890). Keywords: Memories. Women. Discourse. Press and Li- teratura. 1 Trabalho desenvolvido no âm- bito do projeto Representa- ções no Discurso Midiático, do Programa de Pós-Graduação em Memória Social UNIRIO, apoiado pelo CNPq.

Imagens da mulher na literatura e na imprensa no Brasil oitocentista

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Imagens da mulher na literatura e na imprensa no Brasil oitocentistaAngela M. S. M. TaddeiCynthia TurackLucia M. A. Ferreira

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  • Caderno Espao Feminino, v.18, n.2, Ago./Dez. 2007 311

    Angela M. S. M. Taddei. Mestre PPGMS UNIRIO.Cynthia Turack. Mestre PPGMS UNIRIO/CAPES.Lucia M. A. Ferreira. Professora Doutora PPGMS UNIRIO.

    Imagens da mulher na literatura e naImagens da mulher na literatura e naImagens da mulher na literatura e naImagens da mulher na literatura e naImagens da mulher na literatura e naimprensa no Brasil oitocentistaimprensa no Brasil oitocentistaimprensa no Brasil oitocentistaimprensa no Brasil oitocentistaimprensa no Brasil oitocentista1

    Angela M. S. M. TaddeiCynthia Turack

    Lucia M. A. Ferreira

    Resumo: Este artigo aborda memrias de mulheres noBrasil do sculo XIX atravs da anlise do discurso liter-rio em O cortio (1890), de Alusio Azevedo, e do discursoda imprensa em O sexo feminino (1873); A mi de familia(1879) e A familia (1890).

    Palavras-chave: Memrias. Mulheres. Discurso. Impren-sa e Literatura.

    Abstract: This article approaches memories on women in19th century Brazil by means of the analysis of literarydiscourse in O cortio (1890), by Alusio Azevedo, and ofpress discourse in O sexo feminino (1873), A mi de familia(1879) and A familia (1890).

    Keywords: Memories. Women. Discourse. Press and Li-teratura.

    1 Trabalho desenvolvido no m-bito do projeto Representa-es no Discurso Miditico, doPrograma de Ps-Graduaoem Memria Social UNIRIO,apoiado pelo CNPq.

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    Mulher, Brasil, sculo XIX: a articulao dessastrs noes desencadeia em ns, habitantes do sculoXXI, uma profuso de imagens do feminino. Essasimagens no sentido mais amplo do termo, para almda iconicidade se ancoram em diferentes discur-sos: a iconografia de um Debret, por exemplo, queregistrou, em seu trao, o cotidiano das gentes da Cor-te; as impresses e perplexidades dos viajantes es-trangeiros face ao nosso modo de ser declinado nofeminino; os folhetins da imprensa e suas heronasromnticas; os textos literrios e alguns de seus per-sonagens emblemticos como a donzela tmida, amatrona bem-posta, rodeada de mucamas, a ama-de-leite escrava, a prostituta generosa. Todas essas figu-raes da mulher esto inscritas em nosso imaginriosocial, cristalizadas em discursos identitrios, muitasvezes beirando a estereotipia.

    Nosso trabalho pretende reconstruir uma memriasocial das identidades femininas do sculo XIX noBrasil, tendo como ponto de partida o discurso daliteratura e o discurso da imprensa, tomados comolugares de memria na acepo de Pierre Nora2. Os luga-res, assim referidos, no se conectam necessariamente geografia. Alm dos arquivos, bibliotecas e museus casas de memria e poder3, guardies do patrimniomaterial e imaterial de um certo grupo social em umcerto espao-tempo outras instncias, em diversifi-cados suportes, registram, fixam e preservam o quedeve, pode e precisa ser lembrado. A literatura e aimprensa, favorecidas pelo teor de permanncia dosenunciados escritos, apresentam-se como espaos pri-vilegiados de fixao do memorvel.

    Literatura e imprensa no sculo XIX:Literatura e imprensa no sculo XIX:Literatura e imprensa no sculo XIX:Literatura e imprensa no sculo XIX:Literatura e imprensa no sculo XIX:uma notcia breveuma notcia breveuma notcia breveuma notcia breveuma notcia breve

    No Brasil oitocentista, os vnculos entre o textoliterrio e o texto jornalstico mostravam-se bastanteestreitos: muitos articulistas de jornais eram ou se tor-

    2 NORA, Pierre. Entre a mem-ria e a histria: a problemticados lugares. Projeto Histria.Revista do Programa de Es-tudos Ps-Graduados emHistria e do Departamentode Histria, PUC-SP, dez.93.

    3 CHAGAS, Mario. Casas e por-tas da memria e do patri-mnio. In: GONDAR, J;DODEBEI, Vera (Org.), O que memria social? Rio de Janei-ro: Contra Capa/ Programa dePs-Graduao em MemriaSocial da UNIRIO, 2005.

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    naram escritores consagrados. A atuao de Jos deAlencar, primeiro na seo forense e, em seguida, comocronista no Correio Mercantil, um dos exemplos destaestreita relao. Suas crnicas na seo Ao Correr daPena de 1854 a 1855 refletem os interesses, os com-portamentos e as mudanas por que passava a socie-dade do Rio de Janeiro. Em 1856, transfere-se para oDirio do Rio de Janeiro, onde viria a ser redator-chefe epublicaria, alm das crnicas, o romance Cinco minutos.Da mesma forma, a atuao de Machado de Assis,tanto como cronista e romancista, quanto como crti-co, reflete a estreita relao entre a imprensa e a lite-ratura oitocentistas. Machado foi freqente colabora-dor em o Dirio do Rio de Janeiro, A Semana Illustrada, OGlobo, Gazeta de Notcias, O Cruzeiro, Semana Illustrada,Jornal das Famlias, tendo escrito para vrios peridicosao mesmo tempo4.

    A existncia desse duplo papel de jornalista/es-critor se deveu no apenas ao fato de o discursojornalstico no ter encontrado ainda sua especifici-dade, mas tambm porque o jornal se constitua, viafolhetim, num veculo de publicao de obras literri-as, numa alternativa vivel diante de um mercado edi-torial ainda incipiente. Mas esta relao tinha mo du-pla e dela se beneficiou a imprensa, impulsionada pelosucesso dos folhetins e o conseqente aumento davenda de suas edies.

    A estreita vinculao entre literatura e imprensano se configurou somente nos peridicos de pblicomais amplo. No final do sculo XIX, acompanhandoas tendncias europias, surgiu no Brasil a imprensafeminina, inaugurando no apenas um novo espaopblico em que se falava mulher, mas tambm umespao de expresso para a palavra da mulher. Vriosjornais e revistas foram publicados por associaesliterrias femininas, abrindo-se, ento, para as mulhe-res a possibilidade de atuar no jornalismo e na litera-tura, redutos majoritariamente marcados pelo prota-gonismo masculino. No entanto, no mbito restrito da

    4 SODR, Nelson Werneck.Histria da imprensa no Brasil. 4.ed. Rio de Janeiro: Mauad,1999. MOREL, Marco; BAR-ROS, Mariana Monteiro de.Palavra, imagem e poder osurgimento da imprensa noBrasil do sculo XIX. Rio deJaneiro: DP&A, 2003.

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    5 HALL, Stuart. A identidade cul-tural na ps-modernidade. 3. ed.Rio de Janeiro: DP&A, 1999.

    imprensa feminina, eram enunciadas falas que ecoa-vam condies de produo e formaes discursivasdspares. Se, por um lado, algumas publicaes tenta-vam normatizar os papis sociais de esposa, me edona de casa, como, por exemplo, os peridicos Jornaldas Famlias e A Mi de Famlia, em outras era possvelouvir veementes argumentos favorveis emancipa-o da mulher e ao direito ao voto, como no peridicoO sexo feminino, e mesmo no A famlia.

    Das bases tericasDas bases tericasDas bases tericasDas bases tericasDas bases tericas

    Se nosso propsito reconstruir uma memria dasidentidades femininas presentes no discurso literrioe no discurso jornalstico do final do Oitocentos, hque se explicitar as escolhas tericas que instrumen-talizaro nosso percurso. A saber, as categorias de me-mria, identidade e discurso.

    O conceito de memria que alicerar nossa refle-xo se inspira nas formulaes tericas de MauriceHalbwachs que, em 1925, ao publicar Les cadres sociauxde la mmoire, sublinhou que a memria, longe de seruma reconstituio fidedigna de acontecimentos pre-tritos ambio inalcanvel de uma certa histria, configura-se como uma construo seletiva, nojogo dialtico entre o lembrar e o esquecer. Enquantoatividade urdida no presente e voltada para uma outradimenso temporal seja o passado, seja o futuro , o fenmeno da memria, permeado de historicidade, mutante e plural: pressupe supresses, acrscimos,expurgos e revalorizaes. Assim, tentaremos mapearuma dentre muitas das memrias possveis das mulhe-res brasileiras do Oitocentos.

    Por outro lado, o conceito de identidade a ser porns endossado se afasta do de sujeito do Iluminismorelatado por Hall5, cujos traos so a centralidade, aimutabilidade e o essencialismo, e se aproxima da no-o de identidade fragmentada, mltipla e cambianteque inaugura o ps-moderno. E embora tenhamos que

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    nos haver com recortes discursivos de um espao-tempo o Brasil oitocentista em que a identidadefeminina era biologicamente definida, socialmente aces-sria e politicamente irrelevante, estaremos procurade espasmos de no-conformidade.

    No que diz respeito ao discurso, vamos privilegi-ar o conceito de Pcheux6 que preconiza o discursocomo acontecimento, ou seja, marcado por aspectossociais e histricos especficos e pela ideologia pre-dominante no momento em que o sujeito enuncia. Noobstante sua complexidade, torna-se possvel nos apro-ximarmos do acontecimento discursivo por interm-dio dos registros textuais, nos quais prevalece o pres-suposto da lngua. Dito em outras palavras, para pro-cedermos anlise de recortes discursivos, devemosconsiderar sua materialidade lingstica, pois a partirdela que identificamos as formaes discursivasprevalentes. Foucault7 define formao discursivacomo os diferentes modos possveis de se discursivizardeterminado objeto, levando-se em considerao osespaos sociais, histricos e ideolgicos nos quais osujeito enunciador est inserido. A ideologia, impres-cindvel para o conceito de formao discursiva, entendida aqui como a viso de mundo de certo gru-po social localizado em certo espao-tempo. Em ou-tras palavras, a ideologia (ou as ideologias) (so) umaforma de significao. Em meio aos discursos elencadosneste artigo, podemos considerar algumas formaesideolgicas presentes nas formaes discursivas queconstroem sentidos sobre as mulheres do Oitocentos:em sntese, formaes discursivas geradas pela cin-cia, pela religio e pelos movimentos libertrios dofinal do sculo XIX.

    Uma vez delimitado o arcabouo terico de quevamos lanar mo, enunciemos os textos que integramnosso corpus: o jornal A mi de famlia8, referente aoano de 1879, cujo discurso mdico e higienista tinhacunho predominantemente normatizador; o romancenaturalista O cortio9, de Alusio Azevedo, publicado

    6 PCHEUX, Michel. O discur-so: estrutura ou acontecimen-to. 4. ed. Campinas, SP: Pon-tes, 2006.

    7 FOUCAULT, Michel. A arque-ologia do saber. 7. ed. Rio de Ja-neiro: Forense Universitria,2004.

    8 A mi de famlia: jornal scien-tfico, litterario e illustrado. Veicu-lado na cidade do Rio de Ja-neiro entre 1879 e 1888, o pe-ridico publicado pelo mdi-co Carlos Costa era voltadopara as dignas senhoras, quesendo j ou devendo ser misde familia bem devem com-pre-hender o sublime encargoque lhes confiado (Apresen-tao, A mi de famlia, n. 1, 1879 Biblioteca Nacional / Catlo-go de peridicos raros, 2007).

    9 No romance O Cortio, de Alu-sio Azevedo, a ao se passano Rio de Janeiro, no bairrode Botafogo, antes da Procla-mao da Repblica. O enre-do polariza o cortio So Ro-mo, de propriedade do imi-grante portugus Joo Ro-mo, onde habita gente co-mum, de pouca qualificaoprofissional e vrias etnias a escrava Bertoleza, o casal por-tugus Jernimo/Piedade, omulato Firmo, a Rita Baiana, amenina Pombinha e o so-brado de Miranda, comer-ciante portugus que se tornabaro.

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    em 1890 e saudado como um dos primeiros registrosda gente mida na nossa literatura; e enunciados vei-culados na imprensa, tematizando a mulher, publica-dos nos peridicos O sexo feminino10, em 1873, e Afamlia, em 189011. Passemos, ento, anlise dos re-cortes discursivos.

    Mulher-me: a identidade biologicamente definidaMulher-me: a identidade biologicamente definidaMulher-me: a identidade biologicamente definidaMulher-me: a identidade biologicamente definidaMulher-me: a identidade biologicamente definida

    Nosso primeiro fragmento foi extrado do jornalA mi de famlia cujo discurso, permeado por noesmdicas, tentava conscientizar as mulheres da impor-tncia de sua funo materna. Tomemos o seguinterecorte:

    H deveres de tal ordem impostos pela prpria natureza, que ano serem cumpridos, collocam as mulheres em condio inferior de outros animaes...A organisao anatmica da mulher lhe indica qual o papel quelhe traou o Creador, o de ser mi!... (Palestra do Medico VIII,M.F., n 8, 1879).12

    Atravessado pelas formaes discursivas biolgicae religiosa, condizentes com o sculo XIX, o discursodo mdico Carlos Costa considera ser me uma ca-racterstica inerente condio feminina. Para tanto,utiliza a formao anatmica das mulheres como justi-ficativa. Na seqncia, enfatiza a importncia daamamentao para o pleno cumprimento do papelmaterno:

    Se a mulher nasceu para ser mi; se durante nove mezes ellareparte seu sangue com o embryo; depois com o feto e, maistarde, com o filho, porque no continuar ella a dar-lhe essemesmo sangue que a natureza transformou em um liquido, con-tido em seus seios sob o nome de leite?!...Se a ovelha, a cabra e outros animaes o fazem, sem que ningumlhes tivesse aconselhado, porque ser preciso que se diga mu-lher, que tem a felicidade de possuir uma intelligencia: no sers

    10 O sexo feminino: semanriolitterario, recreativo e noticioso es-pecialmente dedicado aos interessesda mulher, publicado entre 1873e 1889, contava com a colabo-rao de diversas senhoras edas filhas de sua proprietria eredatora, Francisca Senhorinhada Motta Diniz. (BibliotecaNacional / Catlogo de peri-dicos raros, 2007).

    11 A Famlia: jornal litterario dedi-cado a educaao da mae de famliafoi publicado entre 1888 e1898, inicialmente em S. Pau-lo, e, em seguida, no Rio deJaneiro. Sua proprietria eredadora foi Josefina lvaresde Azevedo (Biblioteca Naci-onal / Catlogo de peridicosraros, 2007).

    12 Procuramos, na medida dopossvel, manter a grafia comque os artigos foram publica-dos. provvel, no entanto,que haja algumas inconsistn-cias j que os textos foram co-piados mo do acervo daBiblioteca Nacional.

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    verdadeiramente mi, sem que alleites teu filho? (Palestra doMedico IX, M.F., n9, 1879).

    O mdico constri e ordena o discurso de maneiracronolgica: parte do momento da concepo, passan-do pelas fases de formao da criana embrio,feto e filho para, finalmente, culminar no nas-cimento. Em todas as etapas est expressa a noo deprovimento, de alimentao por intermdio da me:sangue que se transforma em leite.

    Em um discurso de matriz evolucionista, Dr. CarlosCosta compara as mulheres-mes a outros mamferos,preconizando a amamentao como uma prtica natu-ral do sexo feminino. Aps apresentar tais argumen-tos, por que as mulheres se negariam a amamentarseus filhos?

    Entretanto, a negligencia, o egosmo, a indolncia, a servil sub-misso s etiquetas sociaes, a vaidade e o luxo impedem s misde cumprirem o sacrosanto dever que lhes imposto pela nature-za.[...] Com effeito, durante a gravidez, muitas senhoras no sevestem, no se alimentam segundo os sbios preceitos da hygiene(Palestra do Medico IX, M.F., n9, 1879).

    A explicao do mdico enumera vrios obstcu-los que inviabilizam a amamentao materna: negli-gencia, egosmo e indolncia, por parte das mu-lheres, seriam conseqncias diretas da servil sub-misso s etiquetas sociaes, da vaidade e do luxo.Na concepo do redator, esses empecilhos ama-mentao se manifestavam pelo hbito de as senhorasburguesas vestirem coletes apertados e se alimenta-rem mal, seguindo, assim, os ditames da sociedade fran-cesa que influenciava o pas na poca. Esse fato setornava ainda mais grave durante o perodo da gesta-o, pois, da inapropriao do vesturio decorreria adeformao dos seios, podendo, at mesmo, impedira secreo lctea. Por outro lado, a dieta inadequada

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    teria efeitos negativos sobre a qualidade do leite ma-terno. notvel percebermos a estrutura do argu-mento construdo pelo redator: a obedincia a modis-mos sociais prejudicaria a funo biolgica das mu-lheres, ou seja, prejudicaria o ser me, nica identi-dade feminina projetada pelo discurso do jornal.

    Mulheres possveis em Mulheres possveis em Mulheres possveis em Mulheres possveis em Mulheres possveis em O cortioO cortioO cortioO cortioO cortio

    No mbito da fico, a prevalncia de uma forma-o discursiva calcada no determinismo biolgicoeclode no romance de Alusio Azevedo, obraparadigmtica de nosso naturalismo literrio. Aqui, noentanto, o tom outro: exortao pedaggica do Dr.Carlos Costa, no peridico A mi de famlia, corres-ponde a constatao categrica de que estas mulheresficcionais esto irremediavelmente marcadas pelafinitude. Tm um corpo que amadurece, reproduz,degenera e morre. Independente de variveis comoposio social, grau de instruo, nacionalidade ou etnia,o clamor dos sentidos atropela os princpios da razo,as regras de conduta e as normas sociais. A mulataRita Baiana, por exemplo, sntese da sensualidade bra-sileira no romance, se afasta tanto da vocao de es-posa e me quanto da sujeio ao macho. Suas paixespassam ao largo de laos institucionais:

    Casar? protestou Rita. Nessa no cai a filha de meu pai! Ca-sar? Libra! Para qu? Para arranjar cativeiro? Um marido pior que o diabo; pensa logo que a gente escrava! (O cortio:72)

    A associao entre casamento e escravido no uma mera metfora j que o tempo em que transcorrea narrativa anterior Abolio da Escravatura. Apro-ximar casamento e escravido sublinha o cerceamentodo desejo, a privao da liberdade, o apagamento damulher enquanto ser autnomo. desse apagamentoque nos fala o narrador, em discurso indireto livre, ao

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    relatar a mal-sucedida tentativa de Pombinha, a flordo cortio, para conformar-se e enformar-se medio-cridade do marido, juridicamente considerado o cabe-a do casal:

    Pobre Pombinha! (...) a princpio, para conservar-se mulherhonesta, tentou perdoar-lhe a falta de esprito, os gostos rasos e asua risonha e fatigante palermice de homem sem ideal; ouviu-lhe, resignada, as confidncias banais nas horas ntimas do ma-trimnio; [...] e fingiu ligar interesse ao que ele fazia, ao que eledizia, ao que ele ganhava, ao que ele pensava e ao que ele conse-guia com pacincia na sua vida estreita de negociante rotineiro;mas, de repente, zs! Faltou-lhe o equilbrio e a msera escorre-gou, caindo nos braos de um bomio de talento, libertino e poe-ta, jogador e capoeira (O cortio: 245-6).

    O escorrego de Pombinha, inevitvel respostada natureza, plenamente justificado pelo narrador.Diferente das outras moradoras do cortio, Pombinha loura, bela e letrada; apenas circunstancialmente per-tence quele universo de despossudos. Alada con-dio de uma das protagonistas da trama, as mutaesidentitrias de Pombinha so espetaculares: meninaimpbere, parceira lsbica, mulher casada, mulher adl-tera, prostituta afortunada (na acepo etimolgica deter sorte e no sentido de enriquecer). A transforma-o de Pombinha, de virgem do cortio mundana,passa necessariamente pelo corpo, seu primeiro e lti-mo bem, que ela aprende a gerir, dele auferindo pra-zeres e lucros.

    Pombinha, s com trs meses de cama franca, (...) fez maravi-lhas na arte; (...) sabia beber, gota a gota, pela boca do homemmais avarento, todo o dinheiro que a vtima pudesse dar de si (Ocortio: 247).

    Em contraste com o percurso de Pombinha e suaemancipao ainda que por caminhos questionveis, est o percurso de Bertoleza: mulher negra, escra-

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    va, amsia e caixeira de Joo Romo. O discurso deBertoleza aqui reproduzido refere-se ao momento emque a escrava, depois de trabalhar por anos a fio, se dconta de que ser descartada:

    Ah! Agora no me enxergo! Agora eu no presto para nada!Porm, quando voc precisou de mim, no lhe ficava mal servir-se de meu corpo e agentar a sua casa com meu trabalho! Entoa negra servia para um tudo; agora no presta para mais nada,e atira-se com ela no monturo do cisco! No! Assim tambmDeus no manda! (De Bertoleza para Joo Romo, O corti-o: 241).

    A notar, nesse recorte, o tom veemente de Bertole-za, em contraste com a subservincia sem questiona-mentos que caracteriza o personagem desde o incioda narrativa. O entendimento de que nunca deixara deser um corpo a servio de Joo Romo leva Bertolezaa proferir este rompante de revolta. Trata-se de umato de volio inequvoco, discursivamente marcadopela repetio de partculas negativas em sete ocor-rncias: um no quero decisivo. No entanto, no eplogodo romance, ao se dar conta da traio de Joo Romo,o protesto de Bertoleza extravasa o espao discursivopara se afirmar no gesto extremo do suicdio.

    Mulheres de viva vozMulheres de viva vozMulheres de viva vozMulheres de viva vozMulheres de viva voz

    Se uma representao de escrava expressa, ao me-nos no eplogo de O cortio, o que ela no quer, outrasmulheres, fora da fico, foram enfticas em dizer oque queriam em alguns dos peridicos da imprensafeminina da segunda metade do sculo XIX. Eramvozes que clamavam por melhores condies de edu-cao para as mulheres e por sua conseqente eman-cipao. Exemplifiquemos com Francisca Senhorinhada Mota Diniz, criadora do jornal O sexo feminino, quecirculou primeiramente em Minas Gerais e depois noRio de Janeiro. Em matria publicada em 25 de outu-

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    bro de 1873, possivelmente de autoria de D. Francisca,o peridico divulga seus objetivos construindo umlibelo a favor da emancipao feminina:

    [...] Queremos nossa emancipao e a regenerao dos costu-mes./Queremos a instruco pura para conhecermos nossos di-reitos, e delles utilizarmos em ocasio opportuna./Queremosconhecer os negcios de nosso casal para bem administrarmosquando a isso formos obrigadas./Queremos enfim saber o quefazemos, o porque o pelo que das cousas. /Queremos ser compa-nheiras de nossos maridos e no escravas./Queremos saber ocomo se fazem os negcios fora de casa./S o que no queremos continuar a viver enganadas (O sexo feminino, outubro de1873).

    Construindo uma rede de sentidos que ecoa osideais de liberdade e igualdade dos movimentos dofinal do sculo XIX, este discurso de O sexo femininoremete a uma formao discursiva em que a igualdadeentre os sexos desejada e se imagina possvel. Emtom peremptrio, discursivamente marcado pela repe-tio do verbo querer seis ocorrncias na forma afir-mativa e uma na forma negativa no modo da certe-za que o indicativo, a enunciao apresenta um su-jeito-mulher que se atribui o papel de porta-voz deoutras mulheres usa-se a primeira pessoa do pluralcom valor inclusivo. Diferentemente do que acontecenos outros fragmentos discursivos analisados, aqui nose denuncia apenas a situao subalterna da mulherem uma sociedade patriarcal: para alm da constataode sua menoridade social, reivindicam-se seus direitos educao, gesto do patrimnio amealhado, parti-cipao como co-protagonista na sociedade familiar no mais como escrava, mas como companhei-ra.

    Mas isso no tudo: para alm das reivindicaesvinculadas instruo e ao gerenciamento do ncleofamiliar, outras vozes femininas chegaram a reclamaro direito ao voto. Este o caso do exemplo a seguir,

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    do jornal A famlia, de 1890, que muitas vezes, no en-tanto, veiculou posies extremamente conservado-ras:

    [...] claro est que as nossas aptides no podem ser delimitadaspelos preconceitos de sexo, principalmente nos casos em que te-nhamos de afirmar a nossa soberania pelo direito ao voto. Odireito de votar no pode, no deve, no justo que tenha outrarestrio alm da emancipao intelectual, da conscincia do ato,da faculdade de discriminao.Ainda mesmo o que no admito que no tenhamos odireito de sermos votadas, devemos possuir o de voto, isto , o dalivre escolha daqueles que sero chamados a reger os destinos dasociedade em que vivemos, e que alentamos com a vida e educa-o de nossos filhos (O sexo feminino, outubro de 1873).

    A voz que conclama luta pela emancipao femi-nina e o direito ao voto anuncia, de fato, a deciso detranspor a fronteira entre o espao privado tradici-onalmente reservado ao feminino e o espao p-blico dominado desde sempre pelo homem paraatuar mais decididamente no mundo, no apenas nosnegcios fora de casa, mas igualmente no destinoda sociedade. O tom exortativo dos enunciados ante-cipa o seu efeito como prtica discursiva historica-mente situada que ter, como sabemos, conseqnci-as nas transformaes sociais havidas em fins do s-culo XIX e ao longo de todo sculo XX. Como cons-tatou Michelle Perrot13 acerca das mudanas sociaisna Europa, a irrupo de uma presena e de uma falafemininas em locais que lhes eram at ento proibidosou pouco familiares uma inovao do sculo XIXque muda o horizonte sonoro.

    Rumo a uma snteseRumo a uma snteseRumo a uma snteseRumo a uma snteseRumo a uma sntese

    Nesta reflexo, tomamos o discurso como aconte-cimento atravessado pelo imaginrio, pela histria epela ideologia. Em diferentes superfcies discursivas

    13 PERROT, Michelle. As mu-lheres ou os silncios da histria.Bauru, SP: EDUSC, 2005, p.9.

  • Angela M. S. M. Taddei, Cynthia Turack, Lcia M. A . Ferreira

    Caderno Espao Feminino, v.18, n.2, Ago./Dez. 2007 323

    a narrativa ficcional e o discurso jornalstico elicitamos significados que projetam identidades fe-mininas possveis no final do sculo XIX: aquelasplasmadas pelas lies do higienismo; as que enxer-gam o casamento como escravido e dele fogem, es-colhendo viver margem; as que chegam autonomiavia prostituio, como Pombinha; aquelas que, como aescrava Bertoleza, encontram na morte a nica formade recusar o que lhes impe o status quo; aquelas quepercebem ser possvel transpor as barreiras que asimpedem de alcanar o espao pblico.

    As imagens femininas que emanam de nosso acer-vo discursivo tm em comum lampejos de revolta:ajustam-se mal, para desagrado do Dr. Carlos Costa,aos papis de esposa e me, identidade nica einquestionvel de toda mulher de bem na tradio dacultura ocidental. So mulheres que protestamcanhestra ou abertamente contra a submisso ao ma-cho. De viva voz ou mediadas por um narrador. Mu-lheres brancas, pardas ou negras. Letradas ou iletradas.Mulheres possveis.

    Como toda memria construo pressupeuma operao seletiva do que deve ser lembrado e doque pode ser esquecido , o que apresentamos aquicomo imagens da mulher no final do sculo XIX noBrasil se vincula a um vis, a uma escolha. No excluioutros olhares nem outras histrias. Nem mesmo asde donzelas suspirantes, mes cannicas, amas-de-lei-te dedicadas e mundanas de bom corao. Fiquemos,pois, atentos, ao ecoar de outras vozes...

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  • Imagens da mulher na literatura e na imprensa no Brasil oitocentista

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  • Caderno Espao Feminino, v.18, n.2, Ago./Dez. 2007 325

    As representaes femininas no romanceAs representaes femininas no romanceAs representaes femininas no romanceAs representaes femininas no romanceAs representaes femininas no romanceanarquista anarquista anarquista anarquista anarquista Idelogo,Idelogo,Idelogo,Idelogo,Idelogo, de Fbio Luz de Fbio Luz de Fbio Luz de Fbio Luz de Fbio Luz

    Luciane Munhoz de OmenaMaria Aparecida Munhoz de Omena

    Altino Silveira Silva

    Resumo: No presente artigo, analisaremos as estratgiasde afirmao social das mulheres no incio do sculo XXa partir do romance anarquista Idelogo, de Fbio Luz. Dis-cutiremos as aes particulares que o romancista desenhoupara as trs personagens centrais: Martha, Eulina e Elsa,levando-se em considerao, a relao dialtica entre indi-vduos e outros indivduos; entre esses e as estruturas, comonos sugere o individualismo metodolgico.

    Palavras-chave: Mulher. Educao. Anarquismo. Poder.

    Abstract: In the present article, well analyze women taticsof social statement from anarchist novel Ideologist by F-bio Luz. We will discuss the particular actions which thewriter has drawn to the main three characters: Martha,Eulina and Elsa. We will also consider the dialecticrelationship among individuals and other individuals;among these ones and the structures, as the methodologicalindividualism suggests to us.

    Keywords: Woman. Politics. Anarchism. Power.

    Luciane Munhoz de Omena. Doutora pelo programa de Ps-Graduaoem Histria Social da FFLCH/USP, sob orientao do professor Dr.Norberto Luiz Guarinello e projeto financiado pela Fundao de Ampa-ro Pesquisa do Estado de So Paulo/FAPESP. Docente na UFG.Maria Aparecida Munhoz de Omena. Doutora no Programa de Ps-Gradu-ao em Teoria da Literatura do IBILCE/UNESP Campus de so Josdo Rio Preto.Altino Silveira Silva. Especialista em Histria (UFES), Especialista emDireito Material e Processual do Trabalho (ESA) e Bacharel em Direito(FDV).