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IMAGENS, PERCEPÇÕES E SIGNIFICADOS DO CORPO NAS CLASSES POPULARES Marília Salles Falci Medeiros * As feias que me desculpem, mas a beleza é fundamental! Vinícius de Moraes Este trabalho é resultado de uma pesquisa mais ampla que foi realizada no Setor de Cirurgias Reparadoras e Estética, obra social sobre a responsabilidade do doutor Ivo Pitanguy na Santa Casa de Misericórdia, situada na cidade do Rio de Janeiro. A pesquisa tem como objetivo refletir sobre a representação da imagem e os significados que as classes populares fazem do corpo e da beleza. Aparentemente, é até incompatível refletir sobre um objeto que é característico das classes médias e altas. Pensar a beleza e procurar o cuidado do corpo não é típico apenas das mulheres de classes abastadas da sociedade brasileira. A estética da beleza já é, no Brasil, um padrão nacional que passa por todas as classes, idades e, agora, também genêros. A beleza é uma indústria que pretende ampliar seus negócios vendendo a mercadoria estética para todos aqueles que podem comprar. Nossa intenção neste texto é procurar verificar como algumas histórias individuais podem nos transmitir significados que são reveladores de estilos de vida, dos modos de ser, expressões do padrão de gosto dos grupos populares. Escolhemos o corpo devido à possibilidade de sua mistificação. Para o observador comum, “pobre não pensa na beleza, não pode pensar na estética corporal”. Nesta pesquisa quisemos mostrar o contrário. Há um sentimento de igualação, necessidade de afirmação social em todas as classes, que passa pela necessidade de identificação com os valores Sociedade e Estado, Brasília, v. 19, n. 2, p. 409-439, jul./dez. 2004 * Professora do Departamento de Sociologia da Universidade Federal Fluminense (UFF). Artigo recebido em 30 ago. 2004; aprovado em 28 set. 2004.

IMAGENS, PERCEPÇÕES E SIGNIFICADOS DO CORPO NAS CLASSES POPULARES Marília Salles Falci Medeiros

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IMAGENS, PERCEPÇÕES E SIGNIFICADOS DOCORPO NAS CLASSES POPULARESMarília Salles Falci Medeiros

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  • 409Uma sociloga na cidade: Sylvia Ostrowestsky em Braslia

    Sociedade e Estado, Braslia, v. 19, n. 2, p. 401-408, jul./dez. 2004

    IMAGENS, PERCEPES E SIGNIFICADOS DOCORPO NAS CLASSES POPULARES

    Marlia Salles Falci Medeiros*

    As feias que me desculpem, mas a beleza fundamental!Vincius de Moraes

    Este trabalho resultado de uma pesquisa mais ampla que foirealizada no Setor de Cirurgias Reparadoras e Esttica, obra socialsobre a responsabilidade do doutor Ivo Pitanguy na Santa Casa deMisericrdia, situada na cidade do Rio de Janeiro. A pesquisa temcomo objetivo refletir sobre a representao da imagem e ossignificados que as classes populares fazem do corpo e da beleza.Aparentemente, at incompatvel refletir sobre um objeto que caracterstico das classes mdias e altas. Pensar a beleza e procuraro cuidado do corpo no tpico apenas das mulheres de classesabastadas da sociedade brasileira.

    A esttica da beleza j , no Brasil, um padro nacional quepassa por todas as classes, idades e, agora, tambm genros. A beleza uma indstria que pretende ampliar seus negcios vendendo amercadoria esttica para todos aqueles que podem comprar. Nossainteno neste texto procurar verificar como algumas histriasindividuais podem nos transmitir significados que so reveladores deestilos de vida, dos modos de ser, expresses do padro de gosto dosgrupos populares. Escolhemos o corpo devido possibilidade de suamistificao. Para o observador comum, pobre no pensa na beleza,no pode pensar na esttica corporal.

    Nesta pesquisa quisemos mostrar o contrrio. H umsentimento de igualao, necessidade de afirmao social em todasas classes, que passa pela necessidade de identificao com os valores

    Sociedade e Estado, Braslia, v. 19, n. 2, p. 409-439, jul./dez. 2004

    * Professora do Departamento de Sociologia da Universidade Federal Fluminense(UFF).

    Artigo recebido em 30 ago. 2004; aprovado em 28 set. 2004.

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    estandardizados na sociedade dominante. A busca da beleza maisuma expresso da identidade do povo brasileiro e, como disse Robertoda Matta, mais uma caracterstica tpica do povo e que faz oBrasil ser Brasil. Nossa hiptese que as classes populares noesto fora deste sentimento esttico geral e, tal como as outrascamadas da sociedade, tm anseios pela aquisio da beleza. Assim,para que a investigao pudesse melhor refletir a relao imagem ecorpo, torna-se importante refletir sobre o lugar que ocupa a belezana sociedade brasileira, qual o seu papel e significado social.

    O Brasil e o culto beleza

    O Brasil tambm conhecido internacionalmente pelos seusesteretipos de culto beleza. H aqui o que se pode chamar decultura do corpo. Contribui muito para esse cenrio a divulgaomiditica das cirurgias plsticas, a exportao de modelos para aspassarelas mundiais, as inmeras academias de ginstica, asexportaes de biqunis ousados e as msicas e danas que sodivulgadas em todo mundo exibindo canes sensuais acompanhadasde danas, apresentando a idia de uma cultura que denotasensualidade. Estamos dentro de uma cultura narcisista, envaidecidade si mesmo e que leva a vaidade e o culto do corpo ao extremo?Podemos responder a essas questes com nmeros, como nareportagem feita pelo jornalista William Waak1 em uma das emissorasde televiso de maior audincia do pas, que divulgou dados sobreuma pesquisa recente realizada pela Universidade de So Paulo sobreimagem e aparncia no Brasil:

    86 % das mulheres e 76 % dos homens brasileiros preocupam-se emmelhorar sua aparncia. Alm disso, 62 % das mulheres gostariam deparecer mais jovens, e 56% homens, tambm. S 30% das mulheresbrasileiras disseram gostar das prprias rugas; entre os homens,41% tm a mesma opinio.

    No temos dvidas que estamos diante de uma cultura onde ocorpo tem uma dimenso importante para a felicidade das pessoas e,dificilmente, no Brasil, o desgaste do corpo trazido pela velhice algo natural, que no se vive sem sofrimento:

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    No Brasil difcil da gente se assumir do jeito que a gente . difcilvalorizar as rugas do rosto, E se contentar somente com a idia deque elas so resultados da histria dos indivduos e portanto delasdevemos nos orgulhar. (Ventura, 2003)

    Ao analisar os resultados das pesquisas divulgadasrecentemente na mdia, constatamos que, quando se fala de beleza eaparncia, existe entre os brasileiros um componente prprio,particular, que nos destaca muito nas comparaes que se faz comoutros povos e pases. Para confirmar esta hiptese de que existe noBrasil uma forte preocupao com a aparncia e que esta questose tornou uma mania nacional, os dados abaixo podem servir desuporte:

    60 % dos brasileiros acham fundamental a aparncia fsica. Na mdiade outros pases, nem 25% das pessoas do tanta importncia aparncia.2

    O mais surpreendente destas pesquisas que nem a perfeioagrada: 100% das supermodelos, de grandes agncias estoinsatisfeitas com o que Deus generosamente lhes deu (Waak).

    Mas, como explicar nossa preocupao excessiva com o corposem pensar nos custos da beleza? Se pensarmos sobre os dados, oBrasil virou o sexto maior mercado para produtos de beleza, emboranossa economia seja apenas a 11a do ranking internacional. O diretorde marketing de uma grande empresa de cosmticos no Brasilexplica:

    o mercado no Brasil tem crescido sempre a taxas bem maiores que oPIB (Produto Interno Bruto), e mesmo quando o PIB apresentaretrao, o mercado de cosmticos apresenta crescimento. Nosltimos anos, a soma das riquezas que o Brasil produziu, o PIB,cresceu em 7,5%, mas as indstrias e servios que ganham dinheirocom a nossa vontade de ficarmos mais bonitos cresceu 47%. (Waak)

    Como muito bem expressou um jornalista William Waak, aocomentar sobre a pesquisa da Universidade de So Paulo, citadaacima, no s no espelho que se pode examinar a vaidade brasileira,isto quer dizer que ela pode ser vista tambm em nmeros.

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    Se olharmos para o quadro das cirurgias plsticas, a pesquisacitada aponta, que o Brasil s perde para os Estados Unidos, que temquase 100 milhes a mais de habitantes. Assim, aqui so feitas 350mil cirurgias por ano, uma a cada trs minutos, e a metade delas parafins estticos. Somos tambm o segundo pas do mundo na aplicaoda toxina botulmica, um mtodo para evitar as rugas e deixar a peledo rosto parecendo mais jovem. E apenas num dos sales decabeleireiro mais procurados de So Paulo, 10 mil pessoas mudam acor dos cabelos por ano. Os preos, aponta a pesquisa, so dos maiscaros (Waak).

    No h dvida que os nmeros refletem a importncia da belezaem nosso pas. No se pode esquecer que a indstria da beleza notem s a dimenso do consumo. A expresso do jornalista explicabem o contedo de nossa indstria: graas nossa vontade deficar bonito, criamos um espao econmico com um grandiosomercado de trabalho que contempla todas as classes sociais, desdeos mdicos cirurgies plsticos, aos esteticistas mais qualificadosprofissionalmente, at as vendedoras ambulantes ou a domiclio navenda atravs de catlogos, oferecendo produtos de beleza. o queaponta a pesquisa:

    Existe um verdadeiro exrcito de dedicao a nos oferecer produtosde beleza: a maior fabricante de cosmticos no Brasil tem 800 milvendedores, quase o dobro do nmero de integrantes das ForasArmadas brasileiras. (Waak)

    Estamos diante de dados que nos permitem afirmar o fortepoder simblico da beleza em nosso pas. Podemos dizer que apreocupao com a imagem, o cuidado com o corpo umapreocupao que passa por todas as classes sociais. Para ficar bonito,um valor universal no pas, se impe enormes sacrifcios e esforos.A pergunta que os jornalistas se fazem, ser que exageramos naimportncia que damos beleza, estamos indo longe demais napreocupao com a imagem? Pretendemos responder essasperguntas procurando relacion-las com o processo de construoidentitria de um grupo que se submeteu a um processo de cirurgiaplstica na cidade do Rio de Janeiro.

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    O corpo como uma fbrica de sonhos

    Na introduo do livro Que Corpo Esse?, Villaa, Ges eKososvski (1999, p. 9) chamam a ateno sobre a prtica universalda transformao do corpo, mostrando que esta prtica no umcomportamento social recente:

    Transformar ou alterar o corpo um hbito comum a vrias culturas,nos mais diversos locais do planeta. Na maior parte das vezes, estaprtica tem relao com o padro esttico vigente em determinadogrupo social. So casos exemplares a reduo dos ps das mulhereschinesas at o princpio do sculo XX, o aumento dos lbios e aperfurao do nariz e das orelhas entre as tribos indgenas brasileiras;o alongamento do pescoo com anis de metal, entre as tribosasiticas; a criao de quelides faciais, entre as tribos africanas, etantas outras formas de interferncia (alterao) corporal.

    Os autores querem enfatizar que, na sociedadecontempornea, assistimos a uma exacerbao desta construocorporal onde o dado natural sofre desafios.

    Podemos dizer ento, que as sociedades contemporneas nose livraram do fetichismo das mercadorias, que pressupe afragilizao do sujeito e a valorizao das coisas. Permanece a antiga,e nem por isso menos importante, teoria do fetichismo da mercadoriaque Marx (1983) analisou ao tratar sobre as relaes sociais nocapitalismo, constatando que as relaes entre os homens soinvertidas e tomam a forma de coisa, havendo a personificao dascoisas e a coisificao das pessoas.

    Mesmo no que se convencionou chamar de ps-modernidadeainda permanece a fragilizao do indivduo e a valorizao das coisas,o que permitiu a Freud falar sobre a generalizao de uma culturanarcsica, que tem no corpo uma de suas mais modernas expressesde poder, pois est permitindo aos homens no s sua transformao,mas tambm um maior controle e avanos pela pesquisa gentica.Villaa, Ges e Kososvski (1999, p. 37) apontam o crescimento dofenmeno contemporneo que se refere ao excessivo cuidado com ocorpo:

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    (...) multiplicao de academias, das revistas, dos spas, dos centrosestticos, das clnicas de embelezamento, nos tratamentosfisioterpicos, tcnicas de ginsticas, onde a tnica o imperativo, oque se percebe nas chamadas: emagrecer, controle a boca, jogopesado contra a celulite e a flacidez, etc.

    O que est em jogo a imagem que se faz do corpo e as novasbuscas de sentido que, atravs do capitalismo contemporneo, sofacilitadas pelo surgimento das novas tecnologias. Estas vo permitiraos indivduos maior poder para alterarem suas imagens pelainterveno no corpo. O poder simblico do mito da beleza e o cultonarcisista retomam na ps-modernidade novos significados. Comoobservou o socilogo polons Zygmunt Bauman (1997), a marcada ps-modernidade a vontade de liberdade.

    Tendo em vista o surgimento das grandes inovaestecnolgicas, estas tornaram-se o paradigma deste sculo que seinicia. Com elas, um novo poder simblico se expressa tambm nafragmentao do sujeito, que se constri e se desconstri, chegandoJean Baudrillard (1990, p. 27) a mencionar a morte de sentido, sereferindo ao corpo sexuado, s intervenes no corpo, transformaosexual, liberdade que hoje os homens tm de transformar o seucorpo e mudar o seu significado.

    Nossa inteno no encaminhar nossas reflexes pelasanlises da contemporaneidade como construo e desconstruode novas estruturas simblicas. Pretendemos fixar nossa ateno noator social, nas suas percepes e procurar entender qual o lugarque ocupa seu corpo e sua imagem na constituio de sua identidadesocial. Para tanto, deixaremos as indagaes sobre as estruturasideolgicas contemporneas, pensadas quase sempre ao nvelmacrossociolgico das relaes culturais e polticas, inseridas nocontexto global das novas determinaes econmicas. Optamos poroutro caminho, que tem uma linguagem mais profunda a serinvestigada e, por isso, talvez mais difcil de ser percebida, por ser, svezes, disfarada e escondida, pois est inserida nas aes subjetivasdos indivduos e determinam fortemente suas prticas sociais.

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    Essa linguagem nos faz penetrar na esfera das representaes,dos valores e atitudes dos atores que, embora nos remeta a um espaoescorregadio e impreciso, possvel decifrar seus cdigos, pois elesso fundamentais para compreendermos os determinantes da aosocial. Saber o significado que os indivduos fazem de si, do seu corpoe o poder de sua imagem parte do processo de construo de suaidentidade social. Este um processo que os indivduos no podemfazer sozinhos, mas so reflexos e refletem as estruturas da sociedade,confrontando com os efeitos das foras sociais sofridos no interiordos indivduos.

    A nosso ver, as indagaes sobre as representaes que osindivduos fazem do seu corpo e os significados que eles do para oprocesso de sua construo ou reconstruo esttica, podem sercompreendidas atravs de dois processos metodolgicos, ou duaslinguagens. A primeira compreende as discusses de ordem estrutural,as anlises no nvel das macroestruturas que inserem a beleza e ocorpo no mundo da produo e na teia das relaes econmicas e deconsumo. Aqui, as abordagens tericas que procuram relacionar ocorpo em um sentido, mais totalizante, enfatizam os processo sociaismacro como uma forma de expresso das ideologias mais formalizadasda sociedade,

    A segunda abordagem enfatiza o indivduo que busca avalorizao de si para poder se impor ao outro, e segue uma linguagemmais profunda, porque vem do interior dos indivduos e nos remeteaos fracassos e vitrias, fazendo-nos penetrar num mundo maissimblico, mais difuso escorregadio e impreciso. Mas no se podedizer que a investigao que procura salientar os aspectos maissubjetivos dos indivduos nas representaes sobre o corpo, no nostraga resultados to concretos e determinantes que explicam asdimenses macro da sociedade.

    A primeira abordagem, mais formalizada, reflete as grandesestruturas da sociedade, nos remete ao tempo, diacronia. A segundaabordagem nos leva a entender justamente os efeitos dessas estruturassobre os atores, no tempo sincrnico. Aqui, perceberemos o universo

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    da relao entre as regras, os valores e as resposta dos atores sestruturas da sociedade. Acontece que todo comportamento social,seja ele subjetivo ou no, sempre o resultado dessas duas linguagens,isto , a macro e a micro ao social so duas faces de uma mesmamoeda: neste processo dinmico que se estruturam as regras quenormatizam o grupo e que constroem as identidades individuais. J um bom ponto de partida, na anlise, separar o geral do particular,distinguindo o que do sujeito e o que da estrutura. Dito de outramaneira, deve-se, portanto, indagar como o corpo pode ser visto comomais um dos veculos para que um indivduo possa realizar suaidentidade social.

    O objeto de investigaoNosso objetivo descrever e analisar as percepes de um

    grupo constitudo por dois homens, sete mulheres e duas meninas,sobre suas experincias com a cirurgia plstica. Nossa inteno foicompreender como esses indivduos explicavam o significado que acirurgia plstica teve em suas vidas, na medida em que se submeterama uma interveno no corpo com o objetivo de corrigir ou repararaquilo que representavam como problemas. Isto quer dizer que nospredispomos a interpretar os microprocessos individuais quepossibilitaram a elaborao de um significado objetivo que permitiuaos pacientes chegarem a uma interveno cirrgica. Sabemos queas representaes sobre cirurgia quase sempre so marcadas poralgo que se aproxima de dor, doena, riscos de morte e outrossentimentos. Nossas indagaes situavam-se em dois sentidos e doismomentos:

    1) quais as principais motivaes das pessoas que as levarama se submeter a uma cirurgia plstica.

    2) como essas pessoas viviam a mudana e a experincia deuma nova imagem.

    Assim, nossa inteno era compreender a vivncia datradicional representao do antes e o depois da cirurgia esttica, e

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    ver como era vivido e como era representada pelos indivduos, nanova topografia do corpo, a nova imagem.

    As entrevistas foram realizadas fundamentalmente nos espaosda Santa Casa de Misericrdia do Rio de Janeiro durante os mesesde junho e julho. Nesse hospital est localizada uma obra social euma escola de prs-graduao em cirurgia esttica do doutor IvoPitanguy. Isto explica a composio social dos entrevistados, queso de famlias humildes, oriundas da periferia do Rio de Janeiro, ouainda pessoas do estratos mdios da sociedade. Essas soengenheiras, professoras, desenhistas industriais, ou esposas deprofissionais liberais que podem pagar algum valor pela cirurgiaesttica. importante observar que o preo cobrado a esses pacientes sempre muito inferior ao mercado de clnicas estticas da cidadedo Rio de Janeiro. A Santa Casa de Misericrdia, alm de ser umespao hospitalar, acolhe tambm uma escola onde realiza prticasde estudos e pesquisas da equipe mdica referida acima. Nessesentido, h tambm o desenvolvimento de um trabalho socialinteiramente gratuito de cirurgias reparadoras para os pacientespobres ou situados entre aqueles classificados de baixa renda. Emboraexista um riqussimo trabalho social realizado atravs das cirurgiasestticas, no se pode omitir que esses pacientes tambm so umgrande laboratrio de aprendizagem para a equipe de cirurgia. Ogrupo de cirurgia plstica da Santa Casa de Misericrdia ajuda etambm aprende muito com as cirurgias dos estratos pobres. importante informar que o doutor Pitanguy possui tambm uma famosaclnica na Rua Dona Mariana, situada num elegante bairro da cidadedo Rio de Janeiro, local onde so atendidos os ricos e famosos,pacientes poderosos nacionais e internacionais.

    O problema da pesquisa e o grupo analisado

    A Santa Casa de Misericrdia atende diariamente umamultiplicidade de pacientes interessado nas cirurgias plsticas comos mais variados objetivos. importante observar que os pacientesse compem heterogeneamente como categorias sociais distintas,

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    como idades, cores e sexos diferentes. Encontramos crianas, quasesempre acompanhadas de suas mes, ou adolescentes sozinhos,freqentando a clnica h anos, na busca de reparao de deficinciascongnitas. Encontramos mulheres do povo, trabalhadoras sentadasno banco de espera, em busca de uma nova imagem do corpo. NoBrasil, a beleza j deixou de ser coisa de mulher, o homem brasileiroj adquiriu tambm esta aspirao e, nos bancos de espera,encontramos tambm alguns homens. As idades dos homens emulheres variam muito, como tambm variam as classes sociais. Osgrupos de elite da sociedade, as altas classes mdias se dirigemdiretamente ao consultrio do famoso doutor Pitanguy. Fixamos nossapesquisa somente na Santa Casa de Misericrdia, pois o direito beleza, graas ao doutor Pitanguy chegou tambm para as classesmenos privilegiadas da sociedade. Como muito bem expressou asecretria do programa:

    Cirurgia plstica no mais s para milionrio, os pobres tambmpodem vir, s que vo ter que esperar numa fila, mas um dia serochamados. Aqui, beleza pode no ter preo.

    Para recortar a heterogeneidade do universo, dividimos osentrevistados em dois grupos: os pacientes de cirurgias reparadorase os pacientes das cirurgias plsticas.

    H uma grande diferena no s no procedimento mdico comotambm at na legislao referente a esses dois tipos de cirurgia.H, sobretudo, diferenas marcantes tambm nas representaes enas expectativas dos pacientes nesses dois procedimentos cirrgicos.

    A cirurgia reparadora caracterizada por uma ou vriasinterveno, que tm como objetivo a reconstituio de algum rgodo corpo, seja ele resultado de deformaes congnitas ou adquiridodurante a vida. Acreditamos que esta cirurgia est mais ligada relao do indivduo com a sade e a doena. Entre os casos dedeformao congnita, fizemos cinco entrevistas:

    - Duas meninas de nove e 13 anos, de classe mdia baixa,que esto h longo tempo esperando reconstituir uma orelha,pois nasceram com esta deficincia. Nessas mesmas

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    condies, entrevistamos tambm um jovem de 19 anos,que j estava em fase final de correo. importanteobservar que, nestes casos, o paciente passa por diversascirurgias, dada a sutileza que a reconstituio do rgo, eleva vrios anos freqentando a Santa Casa deMisericrdia.

    - Uma mulher de 39 anos que tinha uma doena congnitachamada fibromatose; solteira, de classe mdia baixa,embora seja pedagoga.

    - Um rapaz de 34 anos, desenhista industrial (designer), ex-modelo fotogrfico, classe mdia; adquiriu um cncer depele na ponta do nariz, que mudou sua vida profissional esua identidade social.

    A cirurgia esttica caracterizada por uma interveno quetem como objetivo corrigir as marcas do tempo. Visa claramente abusca da beleza, atravs do resgate no corpo de perdas ou marcasque incomodam. Nesta categoria entrevistamos:

    - Uma engenheira, de 35 anos, cujas mamas cresceram muitoaps a maternidade; classe mdia.

    - Uma senhora do povo, com mais de 50 anos, domstica,que fez um lifting de rosto.

    - Uma senhora de mais de 60 anos que fez uma cirurgia deplpebras, classe mdia, esposa de mdico.

    - Uma senhora argentina, 35 anos, classe mdia, cirurgia deabdome.

    Entrevistamos fora da Santa Casa:

    - Uma professora universitria, 42 anos, classe mdia, fezuma cirurgia de abdmen e busto conjuntamente e procurouo grupo do doutor Pitanguy para corrigir os erros mdicosocorridos em sua cirurgia.

    - Uma secretria.

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    Nos nove casos entrevistados, procuramos saber como estesindivduos representavam o processo cirrgico a que haviam sesubmetido e como se sentiam antes e depois da interveno.

    A construo do conceito de identidade

    Acreditamos que a teoria sobre a construo do processo deidentidade possa nos ajudar a interpretar e refletir sobre as percepesque o grupo observado tem sobre os efeitos de uma cirurgia esttica.Isto porque acreditamos que a identidade prpria da constituiodo sujeito. Ela trs o desejo de existir, de ser reconhecido e anecessidade de identificao com o outro. Mas o que identidade ecomo podemos defini-la?

    O conceito de identidade aparece sempre como um conceitoglobal, sempre impregnado de acepes muito diferentes. Tendo sidooriginado na psicologia, o conceito entrou recentemente no vocabulriodas outras cincias, em particular na sociologia, por isso, no tarefafcil reconstruir o conceito sem correr o risco de empobrec-lo.

    Ser necessrio retomar o conceito de identidade social eprocurar operacionaliz-lo para compreendermos os significadossimblicos que estimulam os indivduos na busca da transformaodo corpo.

    Segundo Sylvia Ostrowetsky, a identidade um sentimentoque surge da necessidade da construo do sujeito, algo simblicoque vem de fora, vem da sociedade e produz no indivduo anecessidade de se identificar. Para a autora, a construo do processoidentitrio do indivduo, em contato com a realidade social, passaobrigatoriamente por dois eixos: o eixo da similitude e o eixo dadiferena.

    O eixo da similitude o processo que liga o indivduo aosentimento de igualao. O indivduo sente a necessidade de ser igualao outro. Esta percepo, que une duas coisas parecidas, produzuma sensao no indivduo de se sentir igual a todos; um sentimentoque tem a caracterstica fusional.

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    O eixo da diferena um segundo movimento que o indivduofaz ainda pela comparatividade e, ao contrrio da igualao, sente anecessidade de ser diferente, ter uma identidade. Este movimentoproduz a conscincia do sujeito, sobre sua singularidade sua diferena.O processo identitrio definido por Sylvia Ostrowetsky (1990) comouma dialtica entre estes dois espaos, interior e exterior. Nestepensamento, a identidade vista como um processo dinmico emque o indivduo se constri sempre em relao ao outro e estcondenado a se constituir entre o singular e o plural.

    Claude Dubar tenta operacionalizar este sentimento simblicoque caracteriza o sentimento de identidade e vai procurar pensar oconceito na sua prtica emprica:

    A identidade constituda de duas faces, aparentementecontraditrias, mas que em lugar de se exclurem, se constroem e seintegram mutuamente. Assim, a identidade tem uma face objetiva eoutra subjetiva, que se relacionam e se integram.Nossa inteno neste estudo procurar entender como se

    articulam o processo objetivo e subjetivo, que pode influenciar ospacientes a construrem um significado prprio, particular, que justifiquea busca da cirurgia esttica.

    As percepes sociais, que se realizam no eixo subjetivo dasrelaes sociais, situam-se no campo simblico e expressam diferentesformas de perceber, de olhar, de descrever, de conceituar e valoraras experincias sociais do indivduo em relao imagem que o sujeitofaz de si e de seu corpo. Estas percepes esto ligadas praticamentes experincias do indivduo e s suas relaes originrias, com afamlia. J as percepes objetivas do indivduo esto ligadas confrontao que o indivduo faz com as outras instituies dasociedade, como a escola e o trabalho.

    Analisando o conceito de identidade social, Claude Dubarprocurou relacion-lo ao processo de socializao. atravs dasocializao, que se pode entender a formao das identidades. Hinicialmente um processo de aprendizagem e, depois, de mudana,portanto uma dupla transao dos sentimentos dos indivduos para

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    que possam se identificar. Claude Dubar definiu esse processo comouma transao subjetiva e uma transao objetiva do indivduo como mundo social.

    Pierre Tap (1979) vai explicar melhor esses dois processos. Oprocesso de construo identitria passa por dois movimentos: aidentificao, processo pelo qual o indivduo se integra dentro deum conjunto mais vasto ao qual ele tende a se fundir; e a identizao,processo pelo qual o indivduo tende a se diferenciar, a tornar-seautnomo, a entrar num movimento de totalidade e se afirmar pelaseparao.

    Podemos dizer que esses dois processos de construoidentitria verifica-se naqueles que procuram interferir no corpo nabusca de uma imagem esttica idealizada. A cirurgia esttica podeatuar naqueles que, sentindo-se portadores de uma marcadepreciadora, um defeito no corpo, procuram a reparao para setornarem indivduos iguais aos outros. Este movimento de identificao caracterizado pela busca de similitude e pode ser encontrado nosentrevistados que se classificam como pacientes de uma cirurgiareparadora. Como observou Goffman (1985), ser portador de umaanomalia fsica interfere na imagem que o indivduo faz de si mesmoe interfere nas relaes sociais realizadas em pblico. A cirurgiaplstica tem contribudo muito para a realizao deste desejo de, pelomenos, ser igual aos outros.

    O nariz no se pode tampar, camuflar, cobrir. Nariz nariz, todo mundotem, e eu tambm tenho que recuperar o meu, seno .... quem quevai agentar me olhar? Nem eu mesmo me agento sem ele.(Desenhista industrial, 30 anos)

    O movimento de similitude o mecanismo que mais se aproximado desejo de normalidade, de uma representao de beleza e sade.Por outro lado, a identidade se afirma tambm pela diferena. Estesegundo processo exercitado por aqueles que ultrapassam osentimento de semelhana, de igualdade em relao ao outro epropem impor-se agora pela originalidade de sua aparncia, por umideal de beleza pessoal. O indivduo no quer ser apenas igual aos

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    outros, mas quer ser tambm original, quer ser diferente. Estemecanismo pode ser compreendido atravs de uma entrevistadaquando diz:

    O problema no ser s bonito; o problema no ser comum. Minhame cansou de dizer que o peito da mulher para isso mesmo,amamentar, todas as mulheres que deram de mamar so assim mesmo,tero o peito cado. Parece at que eles crescem mais depois damaternidade e a gente tambm engorda. Mas eu no quis ficar assim,eu posso ser me sem ter as mamas feias. Eu sofri muito temposentindo a minha decadncia. (Engenheira, 35 anos )Eu me sentia muito mal com todas aquelas rugas no rosto, meescondia dos outros, no me olhava. Depois a gente via a televiso,as mulheres, artistas to bonitas, eu sofria muito. (Empregadadomstica, 60 anos).

    Estas declaraes enfatizam que a identidade um sentimento,que no pode ser apreendida diretamente, mas somente pelasrepresentaes que o indivduo faz de si em relao aos outros. Aidentidade permite observar que h no indivduo um espao interior eum olhar exterior. H no jogo diferencial das comparaes umimportante mecanismo para o indivduo se qualificar, se denominar,se identificar em relao ao outro. Assim, podemos verificar comoeste sentimento passa pela representao do corpo. Nas comparaesaparece uma nova linguagem, que pode ser expressa pelas diversasintervenes onde se verificam os efeitos reais na transformaoesttica.

    O processo de construo identitria no se faz sozinho. Existea necessidade do reconhecimento de si para os indivduos poderemse impor ao outro, isto , ser reconhecido pelo outro. Neste sentido,primeiramente proporemos observar como os indivduos soreconhecidos pela famlia. aqui que se constri a imagem bsicada criana, para depois se confrontar com os outros da sociedade.Assim, neste estudo procuramos construir as variveis de nossaobservao, que ficaro entre os dois eixos de percepo: astransaes objetivas e subjetivas que o sujeito faz com o seu prprio

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    corpo, em busca do reconhecimento de si e perante a necessidadede ser reconhecido.

    O significado pessoal das cirurgias estticas: uma justificativapossvel

    O significado das cirurgias estticas deve ser compreendidodentro de um processo de construo identitria, no qual os indivduosso impulsionados a trabalhar sua subjetividade, que se revela atravsdo corpo.

    Nossa hiptese que a cirurgia esttica ocupa um lugarprivilegiado no processo de reconhecimento dos indivduos, pois elapode ser um valioso instrumento de imposio dos indivduos em umasociedade que concebe a beleza como um valor fundamental.Acreditamos que a to intensa busca pela beleza do corpo no Brasilpode tambm ser explicada pela necessidade de o indivduo buscarestratgias para conseguir interaes positivas numa sociedade degrandes desigualdades sociais. Interessa-nos, portanto descrever aspercepes subjetivas e objetivas do sujeito sobre seu corpo,organizando o processo de observao atravs das seguintes variveisa serem reconstrudas:

    1) As transaes subjetivas do indivduo em relao ao corpo(o antes da cirurgia):

    - a imagem que o sujeito faz de seu corpo e sua deficincia;- a imagem que a famlia fez de sua deficincia;

    - o significado ou justificativa para a cirurgia.2) As transaes objetivas, isto , o mundo vivido pelo

    paciente:

    Descrever as experincias vividas pelo sujeito com suaimagem. Aqui pretendemos entender as interaes positivase negativas do sujeito na escola, no trabalho e em outrosespaos pblicos.

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    3) O reconhecimento de si (o depois da cirurgia):Entender como o indivduo se sentiu com a nova topografiado corpo, depois da cirurgia (Dubar, p. 259).3

    O significado da cirurgia plstica (o antes)H uma clara diferena entre os processos simblicos que so

    construdos pelos pacientes da cirurgia reparadora e aquelessubmetidos cirurgia esttica. Por esta razo analisaremos,primeiramente, as percepes dos pacientes submetidos reparaode uma deformidade.

    As transaes objetivasNa cirurgia reparadora, o corpo dever ser reconstrudo do

    ponto de vista objetivo para o paciente curar uma doena. Adeformao s vezes tratada como doena.

    O exrcito no aceitou a minha doena. (Rapaz que nasceu sem aorelha esquerda)

    H razes objetivas que levam os indivduos portadores deuma deformidade a perderem o prprio emprego:

    Com uma pinta negra bem na ponta do meu nariz, impossvel exercerminha profisso de modelo. Quando apareceu, eu pensei que erauma pinta, uma queimadura de sol. No incio dava para disfarar.Mas isso foi muito no incio, porque logo ela comeou a crescer e,depois, a sangrar. Sem saber o que era, logo perdi o emprego. Ficavainseguro, disfarando. (Desenhista industrial, ex-modelo, 34 anos)

    H tambm o caso daqueles que no conseguem nem sequerrealizar um ideal, pois a sociedade ainda no integra o deficiente,como podemos ver no discurso de um adolescente em processo dereconstituio da orelha esquerda:

    Eu sempre sonhei em ser militar. Esperava entrar no exrcito paraservir e depois ficar l para fazer uma carreira. No pude servir, com oproblema da minha orelha fui julgado incapaz. J fiz vrias cirurgiasmas ainda no terminou. (Adolescente)

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    As transaes subjetivasDo ponto de vista subjetivo importante observar que h uma

    trajetria vivida pelos indivduos que pode ser definidora de suaidentidade. No o indivduo que caracteriza sua relao com adeformidade. O sentimento de deformao interiorizadoprimeiramente na famlia para, depois, ser vivida externamente. Adeformao vivida subjetivamente, conforme a criana experimentasua aceitao dentro do prprio seio familiar:

    Quando a menina nasceu, j com a deficincia, me perguntaram namaternidade se eu aceitaria minha filha de qualquer jeito. Ela no sno tinha a orelha direita, como tambm tinha a face direitacompletamente deformada, afundada, um horror.

    As pessoas me perguntavam se eu no queria me livrar dela (a filhasem orelha) perguntavam tambm se eu fiz algum pecado para elanascer assim, se no tomei algum remdio.

    Por causa dela eu tive que perder o trabalho, no posso mais trabalharfora , tive que arrumar um jeito de trabalhar em casa mesmo. Tenhoque traz-la sempre aqui (Santa Casa), quase todo dia. (Me de umajovem)Alm de culpabilizar a deficincia da filha, esta senhora

    expressa claramente o sofrimento e o peso que para as famlias adeformao congnita e o doloroso processo de reconstituio dorgo na cirurgia reparadora. O processo subjetivo construdo defora para dentro e depende da concepo da famlia em aceitar adeformao do filho:

    Todo mundo sempre pergunta pela orelha da minha filha, hoje mesmono nibus perguntaram. assim, eles no nos deixam esquecer, temsempre uma pergunta...

    Do ponto de vista subjetivo, essas classificaes que voformar as bases fundamentais do processo de identidade do indivduo.A percepo da marca depreciadora no corpo produz no indivduoimensos sofrimentos e segregao, at mesmo dentro da famlia.Primeiro sofre um processo de acusao e depois a perplexidade dadescoberta da diferena: Porque isso aconteceu comigo?

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    H tambm o desejo compulsivo das pessoas quererem usarexatamente o rgo deficiente:

    Ela adora brinco mas no pode usar o brinco. Depois de algumascorrees, ela j quis logo usar brincos. Ela adora brincos.

    Os defeitos vitais, at mesmo estruturais do corpo, seescondidos doem menos que aqueles mais visveis. Assim, uma mesofre mais pela deformao da orelha da filha do que pelos problemasde coluna que podem agravar a estrutura geral do corpo. A visibilidade que incomoda mais e impede o sujeito de realizar o processo deidentificao com o outro. O sentimento inicial que despertadorefere-se necessidade do processo de igualao, ser igual ao outro,possuir as mesmas identificaes.

    Agora ela j pode fazer at um rabo de cavalo. (Me da menina de 13anos)

    A trajetria do indivduo para superar o sentimento demonstruosidade que a deformao lhe d comea no momento queele chega Santa Casa, onde fundamental o encontro da criana edas famlias com outras que so portadoras dos mesmos problemas.O encontro com o outro ameniza o sofrimento da famlia e faz nascera esperana:

    Aqui foi muito bom para ns, pois encontramos crianas portadorasdos mesmos problemas dela e at mesmo pior do que os dela.

    Para que os indivduos possam conseguir a difcil tarefa dasinteraes em pblico, eles tm que construir um significado que lhespermita enfrentar o outro, mesmo como diferente.

    A religio me ajudou muito a me aceitar. Ficar boa, boa mesmo eu novou ficar, mas j est bom para mim do jeito que j est . procurarviver o melhor possvel. (Mulher com fibromatose)

    Na cirurgia reparadora, o paciente vive um longo processo eele no espera a reconstruo perfeita do rgo deformado. Se osmdicos conseguirem atenuar a deformao, isso j vivido pelo

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    paciente como vitria. Na cirurgia esttica, ao contrrio, o pacienteespera, com a correo, atingir a perfeio da forma:

    No agentava mais meu corpo, vim aqui para tirar essa barriga, elame incomodou anos, mas tambm eu no quero o meu corpo marcado.No fao cirurgia para agradar ningum. para me sentir bem que eufiz a cirurgia. Se ficar mal feita, no resolver o meu problema. (Mulherargentina)Depois de tudo que eu vivi consegui um peito melhor do que eutinha antes. Hoje ele pequeno, mas eu sempre tive eles grandes, eusempre quis um peito como eu o tenho hoje. (Engenheira)

    A cirurgia esttica

    A cirurgia esttica fundamentada num desejo de corrigir asmarcas do tempo, o exagero de determinados rgos, como as mamasou o nariz, para o indivduo realizar um ideal de beleza. H aqui aconstruo pessoal de um desejo e de um padro de beleza.Transaes objetivas

    Do ponto de vista objetivo, a construo deste padro vem defora para dentro, h um padro de beleza padronizado pela sociedade,uma moda que cobra diariamente dos indivduos a sua realizao. ORio de Janeiro tem suas imagens difundidas por todo mundo, revelandoum repertrio de concepes sobre sua beleza natural e o modo deser carioca. No imaginrio sobre a cidade, quase sempre se confundea beleza das praias e das montanhas com a sensualidade das cariocas.O carnaval representa a alegria do modo carioca de viver e a belezado corpo fundamental, sendo atualmente altamente explorada pelamdia, pelas atrizes de televiso, que se tornam os modelos e o padrodos sonhos de beleza nacional.

    Por outro lado, a prpria topografia da cidade e a necessidadede desfrutar da paisagem, do sol, do prazer de viver beira do mar, adescontrao das infinitas praias da cidade levam as pessoas da cidadea se identificarem com os corpos e associ-los ao espetculo doclima e da natureza. O Rio uma cidade de solicitaes sensuais e o

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    corpo ocupa aqui um forte lugar de destaque no imaginrio da cidade.A descontrao, o corpo e o desejo de beleza aqui so exacerbados.H, portanto, um estmulo aos cuidados do corpo. Os esteretiposculturais so utilizados ou acentuados por ilustradores e cartunistasde jornais de grande circulao que apresentam os contornos dasmontanhas cariocas como se fossem silhuetas gigantescas de corposfemininos. Trata-se de um imaginrio paradoxal acentuado por umarealidade social marcada pela pobreza estampada na favelizaodesenfreada e na crescente violncia urbana. Contudo, necessrioinvestigar nas histrias individuais dos entrevistados quais so ossignificados ou as justificativas que os levaram cirurgia esttica.

    Transaes subjetivasNa relao com o corpo, o sujeito tem a sensao de posse.

    Mas freqente encontrarmos representaes simblicas quedemonstram a perda do controle do corpo, pelo envelhecimento epela doena. Neste sentido, a identidade do indivduo se fragmenta,na representao do que eu era e do que sou hoje. Da anecessidade da busca de resgate da juventude perdida e a necessidadedos indivduos superarem a dualidade da representao de si ebuscarem um resgate inicialmente no corpo para poderem reencontrara si mesmos. O corpo a fachada que se expe e sem uma boaaparncia no adianta riqueza, saber ou outra coisa qualquer. Este o domnio simblico e o poder que exerce a aparncia para o grupode cirurgias estticas que estudamos. Para provarem que podeminterferir no tempo e na natureza, os pacientes da Santa Casaconstroem uma justificativa para superar a dolorosa experincia deuma cirurgia esttica.

    Assim, a interveno resgata o domnio do corpo como sedesafiasse o tempo e a lei da gravidade. Para isso, os pacientesconstroem uma representao do mdico, um condutor sagrado capazde resgatar a imagem perdida, atravs de uma poderosa mquina dotempo, capaz no s de vencer a natureza mas tambm as leis dagravidade. O paciente o representa como um salvador, que tem as

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    mos sagradas, capaz de conduzir s coisas boas do mundo. Sagradosaqui so a beleza e o mdico capaz de construir ou reconstru-la. comum no Brasil as artistas de televiso afirmarem:

    O meu rosto foi o Pitanguy quem o fez, ele um cientista da beleza.(Depoimento de uma clebre atriz brasileira, 53 anos plastificada)A equipe da Santa Casa foi maravilhosa, trata as ricas do mesmo jeitoque as pobres, se no fosse a equipe que me atendeu, eu jamaisarriscaria uma cirurgia no rosto. (Depoimento de uma atriz de televiso,56 ano plastificada )

    So vrias as histrias, mas, em geral, podemos agrup-lasnas seguintes representaes: sentimento de estar bem, rito depassagem, superao da insegurana nas relaes afetivas.

    a) O sentimento de estar bemHoje, quando se fala em beleza, para mim, no s os cuidadosestticos, procurar me sentir bem comigo mesma. No para euagradar ningum, para eu agradar eu mesma. eu poder me olharno espelho, o que no fazia h muito tempo, no tem nada de luxo.

    Esta entrevista mostra claramente que, hoje, ao se pensar embeleza no se pode trat-la somente como vaidade ou cuidadosestticos. Como muito bem mostrou um mdico entrevistado napesquisa realizada pela Universidade de So Paulo, estar bem jfaz grande parte dos objetivos de grande maioria dos pacientes dacirurgia esttica:

    (...) um estar bem que vai alm do corpo, atinge a alma dos indivduos,resgata a auto-estima, produz segurana e pode contribuir paraatenuar as angstias. J vi alguns casos em que os pacientes adquiremequilbrio e at mesmo segurana de si.

    necessrio, primeiro, o sujeito estar bem em relao a siprprio para, depois, poder se sentir bem com os outros. A sondagemencomendada pela Avon afirma que se enganam aqueles que pensamque as brasileiras se arrumam s para agradar ou causar inveja ssuas rivais:

    A esmagadora maioria se embeleza principalmente para si prpria.

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    Apenas 19% das brasileiras se enfeitam para os outros.

    b) Um rito de passagemUma cirurgia pode significar a passagem de uma etapa de

    vida para outra muito melhor. o que nos disse mais uma profissionalda beleza, uma enfermeira, esteticista, da Santa Casa de Misericrdia.

    No se pode subestimar o que uma cirurgia plstica pode significar,as pacientes daqui entram em outro mundo, comeam a reviverhbitos que, com o tempo, elas foram obrigadas a perder. Por exemplo,poder ir a praia, usar um biquni. Isto para elas muito importante.

    c) Insegurana nas relaes afetivas, o papel da famliaGrande parte das cirurgias estticas era feita por mulheres

    que perderam a antiga forma do corpo e que por isso, s vezes, socobradas pelos maridos. A perda da antiga forma ou o envelhecimentoproduz efeitos negativos na relao do casal.

    Ele engenheiro como eu era, mas, com a gravidez, tive que ficar emcasa, minhas mamas caram, cresceram muito e eu engordei. Vivi nestasituao mais de 10 anos. Eu era super insatisfeita, e com a cirurgiacomecei a mudar. Hoje trabalho e sinto-me muito bem com meu corpo.(Engenheira, 35 anos )

    Entre as entrevistadas havia algumas mulheres que s depoisda cirurgia esttica comearam a pensar em se relacionar com umnamorado e, at mesmo, em se casar.

    Tenho mais de 60 anos, agora quem sabe eu posso arrumar um marido,deixei passar o tempo, agora com a cirurgia quem sabe ainda possoarrumar um namorado, depois um marido. Eu gostaria que fosse umpastor da Igreja Universal.L em casa todos diziam que eu era to feia com estes caroos norosto, que eu nem pensava de me casar. Agora eu sinto que issopode acontecer. (Pedagoga, 40 anos)

    Fica, pois, evidente que na relao afetiva com o marido ounamorado que se revela claramente o processo de desvalorizao desi pelos defeitos colocados no corpo. A grande importncia depositada

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    no corpo mais do que uma vaidade , sobretudo, uma alternativapara a busca do outro, ou a atenuao da angstia e, at mesmo, asuperao do sentimento de rejeio. O corpo , portanto, o veculodas trocas sexuais e afetivas, e objeto de um grande poder simblicona revelao do ser. A imagem que o indivduo faz do corpo podefacilitar ou at determinar interaes positivas na relao a dois. oque podemos analisar nas falas de duas entrevistadas:

    Detestava a luz, em minhas relaes amorosas jamais mostrava omeu corpo, vivia me cobrindo, me escondendo. Depois da cirurgiaao contrrio, agora fao questo de mostr-lo, com luz acesa e tudo.(Secretria)Depois da cirurgia, comecei a me vestir melhor, deixei meu cabelocrescer um pouco, comecei a gostar de me cuidar, a minha vida mudoutanto... Aquela imagem que eu tinha antes eu quero esquecer, hojetodo mundo me cumprimenta na rua, me convida para as festas naigreja, vendo muito mais os meus produtos. (Empregada domstica vendedora de produtos Avon)

    O processo de constituir-se como sujeito no se faz s peloesprito, passa, sobretudo, pelo corpo. No se pode negar que, no Riode Janeiro, o corpo est muito ligado ao processo de subjetivao dosujeito, como to bem expressou Tucherman (1999):

    Certamente que se constituir como sujeito requer do indivduo aconstituio de si como objeto de cuidado; inversamente, cadacultura ir designar o que precisa ser cuidado.

    Concluses

    Para a cultura brasileira, a beleza um capital simblico degrande poder social e o corpo a marca desse poder social. Assim,no s a beleza, mas o investimento que se faz na aparncia, queproduz interaes positivas. O corpo pode expressar a marca deuma afirmao social e pode desencadear um processo de equilbriopessoal. A cirurgia esttica, assim como a cirurgia reparadora, permitea construo e a reconstruo identitria, resgatando uma identidadefragmentria, marcada por algum traumatismo no corpo,comprometendo a aparncia do indivduo.

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    Grande parte dos entrevistados ficou feliz com os resultados,mas nem todos conseguiram chegar ao paraso atravs do bisturi docirurgio plstico. Embora o corpo fosse o foco visado pelo sujeito,aps a cirurgia sua dimenso individual no se alterou. No era ocorpo o problema, mas algo externo ao corpo ou interno ao indivduo que precisava mudar. A cirurgia no alterou sua insatisfaoexistencial. Ela inclusive provocou maior insatisfao. Iremos exportrs histrias modelares.

    1) Glria: uma identidade vitoriosaNascida na periferia do Rio de Janeiro, de origem humilde, ex-

    empregada domstica, vivendo de uma penso deixada por seu pai,funcionrio da Rede Ferroviria Federal, chegou aos 58 anos e noconseguiu se casar. Parece que o espao mais importante de suasinteraes so os cultos da igreja protestante. Conheci esta senhorasentada na sala de espera da Santa Casa de Misericrdia esperandouma consulta para fazer a ltima reviso de sua cirurgia: liftingcompleto de face.

    Procurei entrevist-la, porque soube pelas outras pacientes queseu caso foi uma grande vitria mdica, pois j estava com acentuadasmarcas no rosto, longas rugas na testa e pescoo, sulcos profundosentre os lbios que lhe davam uma aparncia de pessoa triste eangustiada. Vi suas fotos anteriores, que ela exibiu com grandesatisfao por saber que aquela fisionomia fazia parte do passado.Outro tempo que ela s queria se lembrar para repetir: Eu venci!Tive coragem de vir aqui e o doutor Marcos me operou.

    O caso desta senhora importante, pois mostra uma cirurgiaque obteve muito xito, no s mdico, mas por ela ter gostado doresultado. Conversando com ela, pude perceber que no se podesuperestimar a vaidade feminina e atribu-la a somente aquelasmulheres que tm recursos econmicos e podem desfrutar domodismo de construir o corpo. O que a levou busca da beleza?Insatisfeita com a prpria aparncia, ela viveu muitos anos se

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    desvalorizando, assistindo chegada progressiva da velhice nocorpo:

    H muito tempo eu tinha perdido minha alegria de viver, no gostavado meu rosto e vivia me escondendo. Eu via as artistas to bonitas,porque que elas podem fazer a plstica e eu no posso? A, soube daSanta Casa, vim aqui e todos me atenderam muito bem, o resultado este e no podia ficar melhor. Agora j me sinto outra pessoa, pensoat em namorar, arrumar um casamento para mim.

    Neste relato percebi que no se pode subestimar o que umamudana de aparncia pode fazer na vida de uma mulher, e nemsentir que h uma preocupao excessiva com a aparncia. Existemmulheres que ficam to felizes e mudam tanto depois da cirurgia, quefazem coisas que nunca conseguiram realizar ao longo de toda suatrajetria de vida.

    2) Mrcia: uma identidade resignadaMrcia professora primria, nas escolas do 1 e 2 graus da

    Prefeitura do Rio de Janeiro. Originria de uma famlia pobre, commuito esforo conseguiu um diploma de pedagoga, em umauniversidade particular, na periferia da cidade. Nasceu comfibromatose, uma doena que lhe produz inmeros caroos no corpo,sobretudo no rosto. So caroos que, mesmo sendo retirados, acabamvoltando, dando uma pssima imagem pessoa. Mrcia no podiaseguir o culto do corpo, porque sua doena lhe trazia inmerossacrifcios e lhe impunha vrios limites.

    Essa situao no a impediu de procurar de alguma formamelhorar sua aparncia, sua imagem esttica. Sempre subestimoumuito seu corpo e sofreu inmeros dissabores. Fiquei curiosa emsaber como conseguiu superar seus limites e adquirir uma profisso,morar sozinha e fazer um curso universitrio. Na entrevista percebique ela uma pessoa de muita f, freqenta a igreja com muitaregularidade. A f e a religio podem ter tido um papel muitoimportante, sendo o seu elemento de equilbrio para aceitar a doena:

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    Sempre tive muita f e sei que nada para Deus impossvel. A religiome ajudou muito a aceitar a minha aparncia.Mrcia freqenta a Santa Casa de Misericrdia h algunss

    anos e j passou por vrias cirurgias na face para retirar os caroosproduzidos pela fibromatose. No entanto, sua expectativa no aforma perfeita, j se sente feliz com a atenuao de suas imperfeies.

    3) Wanda: uma identidade em conflito com a aparnciaWanda tem 42 anos e professora universitria. Divorciada

    h 12 anos, ela se sente vtima da cirurgia esttica. Ela no fez suacirurgia com a equipe do doutor Pitanguy na Santa Casa deMisericrdia. Ao contrrio, foi at l para fazer uma avaliao doserros cometidos na cirurgia realizada numa clnica da cidade de SoGonalo, na periferia do Rio de Janeiro.

    Eu era uma pessoa que no tinha o corpo padro, mas que conviviacom este corpo muito bem. Hoje, depois da cirurgia, eu deixei deconviver bem com este corpo, pois este corpo deixou de ser o corpopadro, no para a sociedade mas para mim. Eu estava muito afim defazer a cirurgia plstica porque eu tinha um objetivo, no porque eraa cirurgia plstica mas porque era a minha vida. O que ele me cortoufoi muito mais que a pele do meu abdome, que hoje me impede deengravidar, ele cortou a minha vida. Chorava muito quando via meucorpo, quando ia tomar banho e sentia muita culpa por ter feito estacirurgia plstica.

    Para a entrevistada, a cirurgia marca uma passagem, o antese o depois descritos de forma angustiada e profundamente revoltadapor causa dos resultados de uma cirurgia dupla de mamas e abdome.Como a entrevistada justifica as transaes positivas que a levaram cirurgia plstica?

    A cirurgia representou para Wanda um processo de retomadade uma fase da vida, na qual diversas experincias no foram felizes.Como militante sindical, viveu derrotas polticas, teve vrias infecesgeradas por crises de angstia, solido como resultado de separaese divrcio. Um acidente de automvel a obrigou a tomar cortisona

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    por um longo tempo, o que resultou num processo progressivo deaumento de peso. Chegou a engordar mais de 10 quilos, o que, parasua altura, foi excessivo. Como j tinha naturalmente mamas grandese desproporcionais para o corpo, com o aumento de peso estas vierama incomod-la, pressionando a coluna.

    Mas no foi exatamente o problema das mamas que aimpulsionou para fazer a plstica. Como declarou vrias vezes naentrevista, a cirurgia para ela representou uma retomada de vida.Wanda foi aprovada para fazer um curso de ps-graduao em umadas melhores universidades do Brasil, na cidade de Campinas, comum orientador valorizado por ela e ganhou uma bolsa de estudos dequatro anos. A cirurgia surgiu como mais um componente para arenovao da vida. Fez um longo planejamento, seguiu dietas,emagreceu e fez economias para pagar o cirurgio. Estava confianteno profissional e controlava inclusive os riscos previsveis que poderiamsurgir, durante a cirurgia. Jamais poderia pensar que todos os seusproblemas surgiriam no ps-operatrio, por negligncia da equipemdica. Contraiu flebite nos braos por erro do anestesista e foivitimada por um mamilo necrosado, que comprometeu toda a estticada mama por ausncia de assepsia no ps-operatrio. Hoje temdificuldade de ficar ereta, pois a cirurgia do abdmen retirou excessode msculos, impedindo-a de engravidar.

    O depois da cirurgia tem sido uma longa luta jurdica, pois elaabriu um processo contra o mdico responsvel. Em virtude do malfsico, moral e psquico de que foi vtima, hoje sente-sepsicologicamente impossibilitada de refazer as correes necessrias.No s as cicatrizes visveis, mas tambm as invisveis a impedemde ser feliz e ela no se sente mais capaz de confiar em outra equipemdica. Saiu do processo cirrgico sem encontrar o paraso, comomuitas conseguiram encontrar uma outra dimenso da vida.Traumatizada com a relao com o mdico e impossibilitada de fazera correo dos defeitos, vive e se alimenta moralmente da batalhajurdica que travou com o seu mdico. Teve que estudar as leis paraela mesma fazer e escrever sua defesa.

    Wanda descreve com um imenso sofrimento a neglignciamdica que comprometeu o seu corpo no ps-operatrio:

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    Sociedade e Estado, Braslia, v. 19, n. 2, p. 409-439 jul./dez. 2004

    Descobri que muitas mulheres tm problemas em decorrncia dacirurgia plstica, que elas no tm conscincia de que estes problemasso falhas dos mdicos. Elas so convencidas que os resultados sodecorrentes do corpo delas. O meu mdico disse que a cicatriz domeu abdome est assim porque minha pele escurece.

    Segundo ela, os cirurgies impem sua opinio esttica sobreo resultado final da cirurgia e algumas pacientes acabam sendosubmetidas e enganadas pelo discurso mdico:

    Eles impem o discurso deles s mulheres do povo. Invertem asreclamaes, quando elas existem, e dizem que a paciente que temuma expectativa acima do normal.

    Na batalha judicial travada contra o erro mdico, a professoradescobriu uma entidade corporativa, que fecha as explicaescientficas para o leigo. Da forma como narrou sua experincia, osmdicos so colocados como mfias da sade, um protegendo ooutro, comprando os advogados de defesa e impedindo a criao deuma jurisprudncia capaz de legislar sobre os erros mdicos.

    Um professor da rea jurdica da Universidade Federal do Riode Janeiro explica para a entrevistada o que est por trs dasaparncias:

    A briga em que voc entrou no contra pessoas, mas contra acriao de uma jurisprudncia. Ento todas as clnicas tm um caixa2. Compram, pagam jurados, mdicos, advogados para impedirem acriao de uma jurisprudncia capaz de proteger as vtimas dos errosmdicos.

    Aguardando o parecer da justia, Wanda est agoraconseguindo trabalhar, fazendo terapia analtica, e comea a namorar,s que nesse resgate da vida afetiva, no poder engravidar. Terminaa entrevista com a seguinte fala mostrando claramente sua identidadedividida:

    Eu no sou isso que eles me fizeram ser, eu sou outro, carrego aquelecorpo antigo, sem marcas sem cicatrizes, como um ideal do que perdi.

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    Sociedade e Estado, Braslia, v. 19, n. 2, p. 409-439, jul./dez. 2004

    Marlia Salles Falci Medeiros

    Notas

    1 Disponvel em: , Matrias Especiais.2 O cuidado das brasileiras com a aparncia est quantificado numa

    pesquisa com 21 mil mulheres, de 24 pases, concluda recentemente. Asondagem foi encomendada pela Avon, uma das maiores multinacionaisna rea de cosmticos, e serve para auxiliar a companhia a traar suasestratgias nos quatro cantos do mundo. Os resultados desta pesquisaso surpreendentes e confirmam: no h mulheres to preocupadas coma aparncia quanto as brasileiras. Pesquisa divulgada pela revista Veja,nmero 1818, 3 de setembro de 2003.

    3 O termo transao utilizado no sentido que Claude Dubar, fundamentadonas teorias de Jean Piaget, o definiu: O termo usado (neste captulo)em sentido largo, incluindo a transao com o outro dentro de um sistemade ao e a transao consigo mesmo dentro de um processo biogrfico.O uso de um ter se justifica pela estrutura comum de processos relacionale biogrfico. (p. 259).

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  • 439Imagens, percepes e significados do corpo nas classes populares

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