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Immanuel Kant
Introdução ao Pensamento de Kant: A resposta à questão «O que é o homem?»
PRÓLOGO
Kant é um filósofo cujo pensamento foi por diversas vezes interpretado como o mais qualificado
"certificado de óbito" que se passou à metafísica. Esta reputação está, contudo, longe da verdade.
Como veremos. Kant irá suprimir um determinado tipo de metafísica mas não a metafísica.
O que é a metafísica? É uma disciplina cujos objectos de estudo são realidades que transcendem o
campo da nossa experiência. Para Kant os problemas metafísicos são, fundamentalmente, três: Deus.
Imortalidade da alma e liberdade. Ao longo da sua história a metafísica tem sido a tentativa de
responder cientificamente a estas três questões essenciais da razão humana.
Qual a situação da metafísica no tempo de Kant? O quadro não é famoso: ela é um campo de
disputas constantes e intermináveis, nenhuma tese obtém unanimidade, reina a discórdia. Esta
ausência de consenso não é, contudo, um dado recente mas sim uma constante da própria história da
metafísica. A aventura metafísica, desde os seus primórdios, tem sido a sucessão de "guerras
internas" que bloquearam o seu desenvolvimento e arruinaram o seu crédito junto da comunidade
dos sábios e dos intelectuais. Contudo, nota imediatamente Kant, o descrédito e o desprezo de que
são alvo os metafísicos não deve conduzir-nos ao desprezo e à indiferença perante os problemas de
que trata a metafísica: Deus, liberdade e imortalidade da alma. A metafísica apesar do descrédito em
que caiu é um "destino singular da razão humana", corresponde a uma vocação natural, que não pode
ser recusada. É próprio do homem procurar resposta para os grandes problemas metafísicos. A
metafísica é uma necessidade humana que nunca desaparecerá.
Ao longo da sua história a metafísica tem tido uma pretensão fundamental: constituir-se como
conhecimento científico de realidades que estão para lá da experiência. O que tem acontecido até
agora? A metafísica, ao contrário da Física e da Matemática, não conseguiu encontrar o caminho do
conhecimento seguro e digno de crédito. Então temos razões para duvidar da possibilidade de um
conhecimento científico de realidades metafísicas. Até agora a metafísica não conseguiu constituir-
se como ciência. Será que esse insucesso se deve à incapacidade dos pensadores que abordaram os
problemas metafísicos ou será que isso se deve ao facto de a metafísica não poder ser mesmo uma
ciência? A resposta de Kant é muito simples: a razão humana não pode evitar as questões metafísicas
— são o seu destino — mas não é capaz de lhes dar uma resposta científica. Ao colocar a questão da
cientificidade da metafísica Kant não esconde que a resposta está dada: a metafísica não é uma
ciência. Tatará simplesmente de mostrar por que razão ela não o pode ser. Assim iremos ver Kant
perguntar em que condições é possível o conhecimento científico, ou seja, como conhecemos e o que
podemos conhecer cientificamente. Definidas e explicitadas as condições gerais do conhecimento
científico demonstra-se ao mesmo tempo que não podemos conhecer realidades metafísicas.
A explicação essencial da falta de credibilidade da metafísica tem a ver com o facto de que os
filósofos, que a pretenderam transformar numa ciência, usaram de uma forma dogmática uma
faculdade chamada razão. Confiaram cegamente nas capacidades desta e não investigaram se estava
no poder da razão responder cientificamente às questões metafísicas. Se o tivessem feito
descobririam que a solução científica desses problemas ultrapassa o poder da razão.
Para evitar que cada qual fabrique uma metafísica a seu modo (para evitar, no fundo, que a filosofia
seja um interminável campo de batalhas, em que todos se reconhecem vencedores e em que nada de
positivo se produz) Kant vai criticar (analisar, determinar capacidades e limites) não este ou aquele
filósofo mas sim a própria Razão. Daí a obra que descreve este "julgamento", a Crítica da Razão
Pura, merecer o nome de "Autocrítica da Razão".
A análise dos poderes e limites da própria Razão vai determinar que ela é incapaz de resolver as
questões metafísicas de forma científica e que só pode justificar a sua crença nas realidades
metafísicas. Assim, julgava Kant, já não se poderá escrever metafísica ao gosto de cada filósofo mas
sim de acordo com as capacidades da razão enquanto tal.
A atitude de Kant acerca da metafísica corresponde a um projecto de reabilitação. Não podemos ver
em Kant o "coveiro" da metafísica: a negação da metafísica enquanto ciência não implica a negação
da metafísica. Bem pelo contrário, só negando à metafísica um estatuto que ela não pode nem nunca
poderá ter — o estatuto de ciência — é que poderemos constituir uma metafísica adequada às
capacidades da razão humana e, portanto, legítima, digna de crédito. A filosofia kantiana tem uma
intenção vincadamente metafísica: o seu objectivo é o de reformar essa disciplina, dar-lhe
credibilidade. Ao longo desta unidade veremos que Kant demonstra o que a metafísica não pode ser
(uma ciência) 11 para mostrar o que ela pode ser (uma crença ou fé racional). Deus, liberdade e
imortalidade só podem ser objectos de uma fé ou crença para a qual encontraremos, como mais tarde
se verá, razões ou justificações de ordem moral.
É a esse longo percurso que nos conduzirá do momento negativo — a negação de que a metafísica
possa ser uma ciência — ao momento positivo — a afirmação da metafísica como fé racional — que
iremos dar início.
Galileu, retraio de Justus Sustermans.
' Apesar de os textos introdutórios da Crítica da Razão Pura darem a impressão de o problema da
cientificidade da metafísica ser uma questão em aberto — Kant cria aparentemente um certo
"suspense" — a verdade é que a sorte da metafísica já está traçada antes de o tribunal da razão iniciar
o seu processo. Kant, sem o dar explicitamente a entender empreende a investigação transcendental
do conhecimento — a análise das condições que nos permitem conhecer — para justificar aquilo que
na sua mente é um dado adquirido: a metafísica não é uma ciência.
É a partir do sucesso de ciências — Matemática, Física e Lógica — cuja validade considera
indubitável, que Kant justifica o fracasso da metafísica na sua tentativa de se constituir como ciência
ou conhecimento puramente racional do supra-sensível.
Kant parte de um facto (Faktum): Matemática e Física (essencialmente esta) são ciências
constituídas. A metafísica não. Sobre ela não podemos dizer: "Aqui a tendes, podeis estudá-la."
Acerca da Matemática e da Física não faz sentido perguntar se são possíveis como ciências uma vez
que de facto estão constituídas como tais. A única coisa que devemos perguntar é: "Como é possível
o conhecimento científico?" para justificarmos esse facto que é a ciência. Quanto à metafísica Kant
perguntará se ela é possível como ciência (e não como é possível pois ela não é uma ciência
constituída) para justificar um facto: a metafísica não é uma ciência.
PRIMEIRA PARTE
A resposta à questão «O que posso conhecer?»
1.A "REVOLUÇÃO COPERNICIANA": UM NOVO MODO DE ENTENDER O
CONHECIMENTO
Com a designação "Revolução Coperniciana" Kant refere a decisão de Copérnico, inauguradora de
uma nova cosmologia: a passagem do modelo geocêntrico ao modelo heliocêntrico. Por que razão é
esta decisão tão importante para Kant? Por que razão se lhe refere simbolicamente para expressar a
atitude da sua filosofia face ao conhecimento?
Na base da substituição referida está a exigência da Razão(1) de não se subordinar à ordem sensível,
à experiência, mas, ao contrário, subordinar a experiência, os dados empíricos, a princípios e formas
impostos pela própria Razão, i. e., pela nossa faculdade de conhecimento em geral. Copérnico
considerava o modelo geocêntrico (que a princípio defendeu) como "monstruoso", demasiado
complexo, exagera-damente complicado. Parecia-lhe antinatural que um sistema tão complicado
fosse o espelho da Natureza. Então a recusa do geocentrismo é uma exigência da Razão, uma
decisão de autonomia da parte desta. Esta rebelião não é a defesa de um sistema já estabelecido e
considerado melhor que o ptolomaico ou geocêntrico. Nessa revolta contra a complexidade a que a
dependência da Razão face à experiência nos condenava, a Razão tira de si mesma o princípio a que
deve obedecer o conhecimento da Natureza. Tal princípio, também conhecido por princípio de
economia, diz: "A Natureza age pelas vias mais simples." Este princípio não foi tirado da
experiência (esta dá-nos uma multiplicidade complexa de fenómenos). Foi a Razão que o pôs como
fundamento da investigação da Natureza. Foi esta simplicidade defendida por Copérnico que levou
Galileu e sobretudo Kepler e Newton a concluírem a nova astronomia e cosmologia.
Em suma, segundo o próprio Copérnico, o seu abandono do sistema geocêntrico (que retirava os
seus princípios mais gerais da observação imediata ou empírica, ie., subordinava a Razão à
experiência) deveu-se sobretudo ao facto de ele chocar o princípio de economia, princípio racional
por excelência. O que motiva a revolução é a vontade de autonomia da Razão face à experiência,
embora isso não implique virar as costas ao plano empírico. A revolução metodológica consiste em
rejeitar que a experiência possa fornecer à Razão os princípios do seu conhecimento. Nesta mudança
de método está o fundamento de toda a ciência. São os fenómenos que se devem regular pela Razão
e não esta pelos fenómenos.
Só na Razão, faculdade de conhecimento em geral, estão as estruturas a priori que permitem a
constituição do conhecimento objectivo, universal ou necessário e possibilitam um outro
conhecimento que não o meramente factual ou empírico.
Tal como Copérnico substituiu o geocentrismo pela ideia de que a Terra girava em torno do Sol,
Kant substituiu uma concepção passiva do conhecimento que fez deste registo da realidade pela ideia
de que a nossa faculdade de conhecimento impõe as suas formas e as suas leis à realidade, não sendo
determinada pelos objectos. Só esta revolução metodológica permite fundamentar o conhecimento
científico.
O termo Razão é aqui utilizado significando o conjunto das faculdades de conhecimento. Por uma
questão de simplificação pode substituir-se pela expressão "o espírito humano".
Como mais adiante veremos, Kant irá referir-se à razão em sentido mais restrito, como faculdade do
sujeito humano que produz ideias, distinguindo-a de outras duas faculdades (o entendimento, que
produz conceitos, e a sensibilidade, que nos dá intuições)
2. A DEFINIÇÃO DE CONHECIMENTO CIENTÍFICO
Para Kant, falar de ciência é falar de um determinado conjunto de conhecimentos que se exprimem
em enunciados a que dá o nome de juízos sintéticos apriori.
Um conhecimento científico é expresso num juízo, constitui uma síntese ou unidade e não deriva da
experiência.
Para melhor se entender o que é um juízo científico, Kant distingue-o dos juízos analítico e sintético
a posteriori.
Todos os juízos consistem na relação entre um sujeito e um predicado, podendo este ser afirmado ou
negado do sujeito. A relação, como veremos imediatamente, assume várias formas e tem
fundamentos diversos.
2. l. O juízo analítico
Que relação existe entre o sujeito e o predicado? O predicado está contido no sujeito e portanto basta
analisar o sujeito para explicitar ou revelar o predicado. É um juízo explicativo, pois o predicado
somente explica aquilo em que o sujeito consiste, revela a sua essência.
E um juízo de identidade ou uma tautologia, pois no predicado repete-se por outras palavras o que o
sujeito é, o conceito do sujeito. Por isso mesmo não é um juízo cognitivo ou extensivo. É um juízo
fundado no princípio de não contradição porque na análise do sujeito o predicado ou predicados
obtidos só têm validade se não contradisserem, se não entrarem em contradição com o sujeito,
melhor dizendo, com o conceito que constitui o sujeito do juízo.
É um juízo universal e necessário porque aquilo que se diz do sujeito vale para todos os tempos e
lugares e não pode deixar de ser assim.
Exemplo: "O triângulo é um polígono de três ângulos."
Por simples análise do sujeito obtém-se o predicado: dizer "triângulo" e "polígono de três ângulos" é
o mesmo (tautologia, repetição). O predicado nada acrescenta ao sujeito, unicamente explicita o que
neste já está implícito.
Esta explicitação nada de novo nos faz conhecer, não aumenta o nosso conhecimento: não produz
um juízo cognitivo.
O predicado assim obtido não contradiz o conceito do sujeito, pois o que ele enuncia é precisamente
aquilo em que o sujeito consiste. Posso atribuir P a S porque P não contradiz S.
Por isso mesmo este juízo vale universalmente e é necessário. É por ser necessário que tem validade
universal. Um triângulo tem de ser, não pode não ser um polígono de três ângulos. Ninguém pode
pôr em causa o que este juízo enuncia.
2.2. Juízo sintético a posteriori
Coloca-nos numa situação contrária à do juízo analítico. Como o próprio termo o indica, não é
apriori (independente da experiência, i. e., universal e necessário).
Sendo sintético, a atribuição do predicado ao sujeito não é resultado de uma inspecção ou análise
lógica do sujeito. Aqui o predicado é algo que se acrescenta ao sujeito, não se deduz deste porque
não está contido no seu conceito. O predicado acrescenta-se ao sujeito, não se tira deste.
Exemplo: "Todos os habitantes desta casa são velhos."
É um juízo sintético, pois não podemos obter o predicado "velhos" por simples análise lógica do
conceito do sujeito "habitantes desta casa". A ligação entre "velhos" e "todos os habitantes desta
casa" é o resultado de várias observações num certo espaço e num certo tempo. A atribuição do
predicado ao sujeito tem o seu fundamento na experiência. O predicado "velhos" não pode surgir da
consideração pura e simples do conceito "habitantes desta casa". Por palavras simples, eu preciso de
os ver para dizer o que são.
O juízo sintético a posteriori não é um juízo propriamente científico, embora aumente o nosso
conhecimento, pois nele o predicado acrescenta algo ao sujeito, é uma novidade e não uma repetição.
É um juízo cognitivo mas não é um juízo que exprima um conhecimento científico. Porquê? Porque,
segundo Kant, a ciência consiste em juízos cuja universalidade ou necessidade é estrita, isto é, não
admite excepções: é assim e sempre foi e será assim. Se é verdade que neste momento todos os
habitantes da casa são velhos, é possível (muito provável) que no futuro surjam habitantes jovens e
que no passado elementos jovens a tenham habitado. Assim não há uma ligação necessária entre os
dois objectos da minha experiência. Não é possível dizer que os habitantes desta casa sempre foram
e sempre serão velhos. Os juízos sintéticos a posteriori são contingentes (não necessários), pois se é
contraditório que o triângulo tenha mais de três ângulos (é assim e não pode ser de outro modo) não
é contraditório ou impossível que a casa venha a ter habitantes jovens. Se agora isso não acontece
não faz sentido dizer que há impossibilidade lógica ou real desse acontecimento.
Os juízos sintéticos a posteriori, uma vez que não são independentes da experiência, não são nem
necessários nem universais em sentido estrito. São juízos de facto, dependentes da observação, só
válidos para quem observa e valendo somente para o momento ou o tempo da observação.
2.3. Juízo sintético apriori
Se não existissem juízos deste tipo não poderíamos falar de conhecimento científico.
Os analíticos são tautológicos, não cognitivos, pois, apesar de universais e necessários (a priori), não
fazem mais do que explicitar o já dado no conceito do sujeito e dele não nos fazem sair.
Os juízos sintéticos a posteriori fazem-nos sair do conceito pois acrescentam-lhe algo que ele não
contém por si, mas, embora aumentem o nosso conhecimento, não nos fornecem senão um
conhecimento factual, empírico, contingente, em suma, não científico.
Os juízos sintéticos a priori não serão juízos analíticos porque aumentarão o nosso conhecimento
nem juízos a posteriori porque serão absolutamente universais e necessários, i. e., de validade
independente da experiência.
Exemplo de Kant: "Todo o acontecimento tem uma causa."
O juízo é sintético pois o predicado (tem uma causa) não está contido no conceito de acontecimento.
O predicado só estaria contido no sujeito se em vez de acontecimento falássemos de efeito: "Todo o
efeito tem uma causa."
No juízo "Todo o acontecimento tem uma causa" eu atribuo o predicado ao sujeito mas para isso não
recorro, em termos de validade e de fundamentação, à experiência, à observação. A experiência já o
sabemos é limitada, limita-se ao aqui e agora, não pode dizer: "todos os acontecimentos" porque não
temos a possibilidade de intuição empírica de todos os fenómenos, passados, actuais e futuros. Além
disso, dizer que "tudo o que acontece tem uma causa" é afirmar que todos os acontecimentos
passados, presentes e futuros tiveram, têm e terão uma causa. Este juízo necessário não pode, como é
óbvio, derivar da experiência: não é, portanto, um juízo sintético a posterior mas sim sintético a
priori.
3. A DOUTRINA KANTIANA DO CONHECIMENTO
A "Revolução Coperniciana" coloca o "objecto" na dependência do sujeito, pois, como em seguida
se verá, é o sujeito que, mediante o seu equipamento cognitivo (formas da sensibilidade e do
entendimento), constitui o objecto de conhecimento propriamente dito. Daí a investigação
transcendental perguntar pelas condições a priori do conhecimento. A gnosiologia kantiana consiste
numa reflexão sobre as condições que tornam possível o conhecimento. Kant não duvida em
momento algum da possibilidade do conhecimento. Ciências como a física e a matemática provam
que o conhecimento é um facto indiscutível. Por haver de facto conhecimentos científicos, Kant não
perguntará se é possível o conhecimento, mas sim como é ele possível. Trata-se, por conseguinte, de
esclarecer as condições de possibilidade de um facto (o conhecimento científico) e não de mostrar se
há ou não conhecimentos científicos.
Vejamos então como o sujeito constrói a objectividade, ou seja, como é que a sensibilidade e o
entendimento colaboram na constituição do conhecimento científico.
3.1. A "Estética Transcendental": o estudo do papel da sensibilidade no processo de conhecimento
Para haver conhecimento é preciso, como é óbvio, que haja coisas para conhecer. Isto implica que
temos de entrar em contacto com elas, i. e., receber "informações" ou dados delas provenientes.
Como começa o conhecimento? Segundo Kant ele começa com a intuição. A intuição é o acto pelo
qual recebemos dados ou algo para conhecer. De acordo com Kant é a intuição que nos dá objectos,
ou seja, aquilo que podemos conhecer*".
Como é que intuímos, ou seja, quais as condições que tornam possível entrar em contacto directo
com as coisas e receber delas "informações" ou dados (objectos)?
Segundo Kant toda a nossa intuição está condicionada por duas formas: o espaço e o tempo. Estas
duas formas são estruturas da sensibilidade. Logo toda a nossa intuição será simplesmente sensível:
só temos intuição de realidades sensíveis ou empíricas, ou seja, de realidades que podemos
espacializar e temporalizar. Assim, todo o conhecimento começa com a intuição sensível, ou seja,
com a recepção de dados ou impressões sensíveis mediante duas formas com as quais a sensibilidade
está "equipada": o espaço e o tempo. Intuir é, portanto, receber dados empíricos, espacializando-os e
temporalizando-os.
Exemplificando:
Um automóvel, passa em frente à minha casa ao meio-dia, fazendo muito barulho e buzinando
constantemente. O automóvel provoca em mim uma determinada impressão sensível. Eu recebo esta
impressão sensível de uma determinada forma, isto é, espacializo-a e temporalizo-a porque me refiro
ao barulho do automóvel, como verificando-se em frente à minha casa (espacialização) e a uma
determinada hora (temporalização). Assim vê-se que a intuição sensível consiste em estabelecer uma
relação espácio-temporal entre as impressões sensíveis provenientes das coisas (no exemplo, do
automóvel).
Só é possível a intuição de realidades que possam ser enquadradas no espaço e no tempo. Essas
realidades são sensíveis porque posso referir-me a elas como acontecendo num determinado lugar —
ocupam esse lugar — e num determinado momento — acontecem agora, aconteceram antes,
acontecerão depois. As realidades não espacializáveis nem temporalizáveis escapam à nossa
intuição, não estão em relação efectiva connosco, não temos qualquer experiência delas. E o caso de
Deus, realidade metafísica: sendo incorpóreo não está em lugar algum, não podemos dele dizer que
está "aqui", "ali" ou "acolá" (não o podemos espacializar); sendo eterno não podemos referir-nos a
ele como existindo "agora", como tendo existido "antes", etc., (não é temporalizável).
Já sabemos qual a função do espaço e do tempo. São a nossa maneira de intuir, de receber dados
empíricos ou sensações provenientes das coisas, nada podendo nós intuir sem essas duas formas da
nossa sensibilidade.
(1) Note-se que a intuição não é conhecimento propriamente dito: ela não nos dá conhecimentos mas
simplesmente os objectos do conhecimento.
Qual a sua natureza? São estruturas universais e necessárias: universais, porque toda a nossa intuição
ou experiência é condicionada por elas; necessárias porque sem elas não nos é possível ter
experiência significativa das coisas. Estamos, ao nível da nossa sensibilidade, constituídos de tal
modo por estas duas formas que não podemos dizer: "Algo aconteceu em lugar nenhum e em
momento nenhum." Tudo aquilo que é objecto da nossa experiência tem de ser enquadrável
mediante essas duas formas.
Já sabemos que universal e necessário são, em Kant, sinónimos de a priori. Espaço e tempo são
formas a priori da sensibilidade. Tentemos clarificar este aspecto:
O espaço não é algo que se obtenha a partir da experiência ou intuição empírica. Não é por eu intuir
determinadas coisas como situadas aqui, ali e acolá, que eu formo a "noção" de espaço. Bem pelo
contrário, o espaço tem de ser uma estrutura da minha sensibilidade, porque ao dizer aqui, ali e
acolá, eu já estou a espacializar. Com o tempo verifica-se o mesmo. Eu recebo determinadas
impressões, umas agora, outras depois, e isso significa que receber os dados sensíveis implica
temporalizá-los. Deste modo, a intuição do tempo não deriva da intuição dos dados empíricos, mas é
condição a priori da experiência que tenho.
Espaço e tempo são as formas da nossa intuição, são a maneira como intuímos, ou seja, como
recebemos os dados sensíveis. Não são o conteúdo da intuição sensível, ou seja, não são aquilo que
intuímos, não são objectos da intuição: espaço e tempo não são dados sensíveis nem coisas. Por
outras palavras, aquilo que torna possível a intuição (recepção) dos dados empíricos não pode ser de
natureza empírica.
Em suma: espaço e tempo são a condição de possibilidade a priori (não empírica) de qualquer
experiência. Não são objectos de nenhuma intuição empírica mas aquilo que torna possível a
intuição empírica de objectos. Não são dados empíricos mas a "linguagem" que usamos para falar
dos dados empíricos. A esses dados empíricos enquadrados no espaço e no tempo, espacializados e
temporalizados, dá Kant o nome de fenómenos. Estes são os objectos da intuição sensível'"
1 Note-se que usamos, de uma forma liberal, os termos "intuição sensível" e "intuição empírica"
como idênticos, para facilitar a exposição. Tal identificação embora tolerável não é absolutamente
correcta. Em Kant, rigorosamente falando, a intuição sensível é a unidade entre a intuição pura — o
espaço e o tempo — e a intuição empírica. A intuição sensível não é sem mais a intuição empírica: é
a intuição empírica enquanto condicionada por duas formas puras (e. t.).
Espaço e tempo: formas da intuição e intuições a priori
Embora fale mais do espaço e do tempo como formas a priori da intuição empírica Kant também
lhes dá o nome de intuições a priori ou puras. Que quer dizer? Intuir só e simplesmente o espaço e o
tempo não é intuir nada de empírico. Espaço e tempo são formas puras. Ao intuí-los eu antecipo
muito simplesmente o modo como receberei os dados empíricos ou sensações: recebê-los-ei
espacializando-os e temporalizando-os.
Espaço e tempo não são intuições dos objectos mas sim, em termos rigorosos, a intuição das
condições segundo as quais as coisas se manifestam e produzem em mim sensações. Ao intuir o
espaço e o tempo, eu não intuo as coisas ou a sua manifestação. Intuo simplesmente a forma dessa
manifestação, a maneira segundo a qual poderei receber as impressões sensíveis que as coisas
provocam, a forma de as coisas se relacionarem comigo, com a minha sensibilidade.
Dizer que espaço e tempo são intuições a priori é dizer, previamente à manifestação das coisas, que
elas têm de aparecer num determinado espaço e num determinado tempo, caso contrário não se
poderiam relacionar com a minha sensibilidade, ser coisas para mim ou fenómenos.
Assim se pode compreender que as formas puras da sensibilidade são, por si mesmas, formas vazias,
puras possibilidades ou, como Kant diz, intuições formais, quadros de recepção das impressões
sensíveis. A intuição formal espácio-temporal não fornece qualquer conteúdo. As impressões
sensíveis dão-se num enquadramento espácio-temporal (só neste enquadramento as coisas
impressionam o sujeito), mas não são dadas pelo espaço e pelo tempo. Em linguagem kantiana, a
intuição pura, condição de possibilidade da intuição empírica ou sensação, não dá objectos mas
possibilita que eles sejam dados.
• CONCLUSÕES FUNDAMENTAIS DA "ESTÉTICA TRANSCENDENTAL"
Esta parte da Crítica da Razão Pura tem o nome de Estética (do grego aisthésis que significa
sensação) transcendental (significa condição de possibilidade a priori de algo) porque investiga as
condições a priori que tornam possível a recepção de impressões sensíveis ou sensações.
Essa investigação chegou a várias conclusões importantes:
1 — Todo o conhecimento começa com a experiência.
Para conhecermos é preciso que algo nos seja dado. Ora é a intuição que nos dá objectos, ou seja,
algo para conhecer. Toda a nossa intuição é sensível consistindo na recepção de dados empíricos ou
impressões sensíveis mediante duas formas que temos de as receber: o espaço e o tempo. A
experiência é precisamente esta recepção, espácio-temporalmente condicionada, de dados empíricos.
Sem ela nada teremos para conhecer, não haverá objectos para o nosso conhecimento. Por isso todo
o conhecimento começa com ela.
2 — Espaço e tempo não são coisas nem impressões sensíveis.
São as formas que tenho de "falar" das coisas e de organizar ou relacionar as impressões sensíveis.
São, portanto, formas do sujeito (da sensibilidade do sujeito) que lhe permitem intuir os objectos. Só
há experiência ou intuição empírica das coisas porque no sujeito há duas formas (espaço e tempo)
que permitem receber as impressões sensíveis.
3 — Espaço e tempo são formas "a priori".
Como tornam possível a experiência ou a intuição sensível não derivam desta. Sendo "a priori",
espaço e tempo são, portanto, também estruturas transcendentais, o que significa que são a condição
de possibilidade não empírica de qualquer experiência.
Segundo Kant, a intuição corresponde a uma relação imediata com as coisas e verifica-se quando
algum objecto nos é dado. Isto significa que intuir é a capacidade de receber deteminados dados.
Portanto, a intuição humana não é criadora ou produtora das coisas com as quais se relaciona. Se a
intuição é uma capacidade receptiva, temos de perguntar em que condição é possível a recepção dos
dados. Só o é se estivermos "equipados" com determinadas estruturas receptivas, isto é, se houver
em nós determinadas formas de recepção. A essas formas dá Kant o nome de espaço e tempo.
Espaço e tempo são formas a priori da sensibilidade, não derivam da intuição das coisas, mas são a
condição que torna possível essa intuição.
Espaço e tempo são assim a forma e não o conteúdo da intuição, no sentido em que sem elas não
poderíamos estabelecer qualquer relação entre aquilo que nos é dado, ou seja, a recepção dos dados
não faria sentido.
Assim, de um lado temos as impressões sensíveis (a que Kant chama a matéria do fenómeno) e do
outro a forma de receber essas impressões e de as relacionar (a forma do fenómeno). Os dados ou
impressões sensíveis são aquilo que intuímos e o espaço e tempo são a forma como intuímos. Assim,
o fenómeno será o dado sensível, espacializado e temporalizado.
4 — Embora dotada de formas a priori, a sensibilidade define-se como capacidade receptiva das
impressões mediante certas condições.
As formas da sensibilidade são o modo de recepção dos objectos, melhor dizendo, das impressões
que as coisas provocam, são os quadros da receptividade. São o contributo do sujeito na constituição
da intuição sensível. Se relacionar as impressões em termos espácio-temporais denota uma certa
actividade, é, contudo, a receptividade que caracteriza propriamente a sensibilidade.
5 — Intuímos as coisas simplesmente como elas nos aparecem, e não em si.
A intuição possível ao homem é a captação das impressões, das propriedades das coisas que posso
expressar em termos espácio-temporais. Em linguagem kantiana, a sensibilidade intui fenómenos,
aquilo que se pode enquadrar no espaço e no tempo e não as coisas em si (fora das coordenadas
espácio-temporais). Temos assim estabelecida uma distinção fulcral da filosofia kantiana: a distinção
fenómeno-coisa em si.
6 — Os juízos sintéticos a priori são possíveis em Matemática porque o espaço e o tempo são
intuições a priori ou formas a priori da sensibilidade.
Todos os juízos da Matemática são construídos com base no espaço (geometria) e no tempo (a série
numérica 1,2,3 baseia-se na sucessão temporal: 2 depois de l e antes de 3, ou seja, o número surge
pela adição sucessiva da unidade no tempo). Versando os juízos matemáticos sobre o espaço e o
tempo e sendo estes estruturas a priori do sujeito, i. e., independentes da experiência, esses juízos
podem ser universais e necessários, não dependentes da intuição empírica quanto à sua validade.
Exemplo no caso da Geometria: "A linha recta é a distância mais curta entre dois pontos." Este juízo
é sintético (no conceito de linha recta — conjunto de pontos alinhados — não está contida a ideia de
distância) e a priori (é verdadeiro sem que seja preciso medir todas as distâncias, i. e., sem que seja
necessário recorrer à experiência. Por isso é universal e necessário, supondo, já que fala de distância,
a intuição a priori do espaço).
3.2.A "Analítica transcendental": o papel do entendimento no processo cognitivo
Vimos qual o contributo da sensibilidade para a constituição da objectividade, ou seja, para a
constituição do conhecimento científico : sem ela e as suas formas a priori não teríamos objectos
para conhecer.
Qual a razão de ser da "entrada em cena" deste novo actor do processo de conhecimento que é o
entendimento?
Tal tem a ver com o facto de que embora sem a sensibilidade a ciência não tenha objectos aquela não
nos pode dar conhecimento científico dos objectos. Explicitaremos este ponto mais tarde. Por agora
vejamos com que estruturas ou formas está o entendimento apetrechado, e qual a sua natureza e
origem.
3.2.1. A "dedução metafísica "(1) das categorias
As categorias são conceitos a priori do entendimento: não derivam da experiência.
Ao contrário dos conceitos empíricos (gato, árvore, homem, etc.), não têm origem no processo
abstractivo que parte da observação empírica. A sua origem é a priori, reside na espontaneidade
produtora do entendimento. Ora, os conceitos fundamentais do entendimento, as categorias, são em
número de doze. Qual o fio condutor que levou Kant à descoberta destes conceitos e só destes? É
isso que Kant nos explica naquilo a que chamou "dedução metafísica" dos conceitos puros do
entendimento.
Vejamos sucintamente em que consiste.
Usar um conceito é, segundo Kant, fazer um juízo por meio desse conceito. Posto que o
entendimento é a faculdade de usar conceitos, pode dizer-se, por conseguinte, que é a faculdade de
formular juízos. Se assim é, parece que podemos descobrir as categorias ou conceitos puros
mediante um exame das formas dos próprios juízos. Kant crê que, atendendo à sua estrutura lógica,
são possíveis quatro formas diferentes de juízos e que em cada uma destas formas se dá a
possibilidade de três tipos de juízos diferentes.
Vejamos o cso dos juízos sob a forma de relação
Juízos sob a forma de relação
Juízo categórico: "Esta mesa é amarela." Aqui faz-se uma distinção entre a coisa e uma das suas
propriedades ("amarela"). A impossibilidade de identificar a coisa com as suas propriedades torna-se
patente pelo facto de o conceito "propriedade", para não perder todo o seu significado, ter de ser uma
propriedade de alguma coisa. Esta distinção, sem a qual o juízo categórico não seria possível, pois
confundir-se-ia sujeito e predicado, é possibilitada por um conceito puro do entendimento (o
conceito de substância). Para distinguirmos a coisa das suas propriedades, o sujeito do predicado,
devemos conceber a coisa ou o sujeito como substância, isto é, como algo que possui atributos,
propriedades, que é o suporte delas, o seu substrato, o que subjaz a todas elas, mas que não se reduz
a nenhuma delas.
Se não possuíssemos o conceito de substância e não o aplicássemos a um determinado conjunto de
sensações, não poderíamos formular proposições como "a rosa é roxa", "a rosa é fragrante". Em
todas estas proposições concebemos a rosa como substância, e a cor, o odor, como propriedades
suas.
Prescinda-se do conceito de substância e não poderemos emitir juízos, falar acerca das coisas, já que
sempre que formulamos um juízo com um sujeito e um predicado ("os gatos são mamíferos", "os
corpos são pesados") concebemos o sujeito como substância e os predicados como propriedades ou
acidentes daquela. A categoria "substância" é um conceito puro do entendimento e por isso uma
categoria pois não formámos o conceito "substância" por abstracção. Ao contrário, é por meio do
conceito "substância" que distinguimos no âmbito empírico as coisas e as propriedades das coisas.
Juízo hipotético: "Se está a chover então o cais está molhado." Este juízo não pode ser formulado a
não ser por intermédio do conceito de causa ou de dependência. Na verdade ele exprime uma relação
causal entre o facto de chover e o estado do cais. Sem o conceito de causa só poderíamos dizer que
depois de chover o cais ficou molhado, só poderíamos expressar uma relação de sucessão temporal.
Neste juízo não nos limitamos a dizer "está a chover" e "o cais está molhado", i. e., não nos
limitamos à observação dos acontecimentos, deixando-os desligados mas dizemos que um depende
de outro. O conceito de causa não procede ou deriva da experiência, é um conceito a priori do
entendimento, uma vez que nos permite expressar como causalmente ligado o que é dado
empiricamente sem conexão ou ligação necessária.
Juízo disjuntivo: Se P é verdadeiro então Q é falso.
P Q
"as reuniões são presididas "as reuniões não são
pelo presidente" presididas pelo presidente"
O contrário é também verdadeiro: "Se P é falso então Q é verdadeiro." "P" e "Q" dependem um do
outro; afectam-se mutuamente. Diz então Kant que o juízo disjuntivo expressa a categoria de
comunidade.
3.2.2. A dedução transcendental das categorias: a demonstração de que as categorias são necessárias
para a constituição da objectividade ou do conhecimento científico
Referida a origem não empírica das categorias, vejamos qual o seu papel no acto de conhecimento.
Uma coisa é a origem das categorias e outra a sua função ou uso. Kant diz que as categorias, formas
a priori do entendimento, são as condições que tornam possível o conhecimento objectivo, a ligação
ou síntese necessária dos fenómenos. A dedução (demonstração) transcendental das categorias (das
categorias como condições de possibilidade a priori do conhecimento objectivo) é a parte mais
importante da Analítica porque nos fala do momento decisivo na constituição da objectividade.
Vejamos então o papel do entendimento e das suas formas (sobretudo o conceito de causa) no
processo de conhecimento.
Foi dito que a sensibilidade é a faculdade que mediante as suas formas ou estruturas a priori nos
permite receber dados ou impressões sensíveis e assim termos objectos para conhecer. Mas a
sensibilidade só intui, não conhece, não constitui conhecimentos científicos. Assim, a sensibilidade é
necessária para que possa haver conhecimento científico — sem ela, ou seja, sem a intuição sensível,
nada nos seria dado para conhecer — mas não é suficiente (não produz conhecimentos científicos).
Por que razão é a sensibilidade indispensável e, contudo, insuficiente?
Para isto se tornar compreensível adiantemos a definição geral de conhecimento científico.
Conhecer cientificamente é estabelecer relações necessárias ou causais — de dependência — entre
os dados ou objectos ao alcance do sujeito,de modo a tornar previsível e controlável o seu
comportamento.
Consideremos duas impressões sensíveis — aumento de temperatura, A, e dilatação de um corpo, B.
A sensibilidade recebe estas impressões e estabelece entre elas uma relação espácio-temporal:
verifica que se deu um aumento de temperatura num determinado lugar e a determinada hora e que
depois, no mesmo lugar, se verifica a dilatação de determinado corpo.
Como se vê, quando eu digo que A acontece antes de B num determinado lugar, limito-me a dizer
que algo acontece de certa forma, mas não porque acontece assim.
Ora, o conhecimento científico, em sentido estrito, é explicativo. Explicar é indicar a causa de algo.
Conhecer cientificamente um fenómeno como a dilatação de um corpo não é simplesmente dizer que
aconteceu depois do aumento da temperatura num determinado lugar. É dizer que o aumento da
temperatura é a causa ou a explicação da dilatação de um corpo. A sensibilidade só estabelece entre
estes dois dados sensíveis uma relação de sucessão temporal, "desconhecendo" que os dois estão
necessariamente ligados, não "vendo" que um não acontece simplesmente antes e o outro depois,
mas que um acontece como efeito de outro.
Isto só é possível quando o entendimento aplica o conceito de causa. Este conceito permite
estabelecer relações de dependência entre dois fenómenos transformando um em causa e outro em
efeito. Se, por exemplo, A é causa e B é efeito, isso quer dizer que B depende de A, que não pode
acontecer sem ele e que sempre que se verifica A necessariamente irá suceder B. Conhecer
cientificamente para Kant é então estabelecer, entre dois dados sensíveis que a sensibilidade situa no
espaço e no tempo, uma relação de causalidade que torna um dependente de outro porque é causado
por aquele..
A sensibilidade intui, recebe os dados sensíveis dando-lhes uma forma espacio temporal. O
entendimento conhece aquilo que a sensibilidade põe ao seu dispor ligando necessariamente
mediante o conceito de causa os dados sensíveis. Sem este conceito, forma intelectual do sujeito, não
há conhecimento. Por isso se diz que o conhecimento a priori (universal e necessário) não deriva da
experiência, dos objectos, mas sim do sujeito. [O conceito de causa é uma estrutura transcendental
do entendimento sendo condição de possibilidade da ciência]
Kant e David Hume
Para David Hume, o conceito de causa não tem qualquer validade objectiva nem fundamento
racional.
Que regularmente vejamos ou tenhamos visto B acontecer depois de A não nos permite estabelecer
uma relação causal objectiva, ou seja, que B acontecerá necessariamente depois de A. A experiência
— para Hume o único critério quanto ao conhecimento dos factos — permite-me captar uma
sucessão regular entre dois fenómenos mas não uma sucessão necessária (ou seja, só permite ver o
que acontece aqui e agora e não o que sempre acontecerá). Pela experiência sabemos que sempre no
passado a água ferveu mas não é legítimo concluir que no futuro sempre ferverá. E contudo
acreditamos — e é, útil que acredi-
temos — que o aquecimento da água é a causa necessárria da sua fervura. Porquê?
A explicação de Hume baseia-se em factores psicológicos. Transformamos uma sucessão temporal
regular em relação causal ou necessária devido ao costume ou ao hábito: habituados a ver que B
sucede regularmente a A acreditamos que A é a causa necessária de B, i. e., que sempre assim será.
O conceito de causa é o resultado de uma ilusão psicológica.
Na verdade, acontece é que por nos habituarmos a ver dois objectos sucederem-se um ao outro do
mesmo modo, criamos a tendência para crer que aparecendo o primeiro, aparecerá também o
segundo. Nada mais ilusório do que esta relação de dependência, porque transformou-se uma relação
de mera sucessão temporal (o antes e o depois) em relação causal. Não há, segundo Hume, qualquer
fundamento objectivo na experiência que confirme esta relação. Assim, o princípio de causalidade
considerado um princípio racional e objectivo nada mais é do que uma crença subjectiva, o produto
de um hábito, a transformação de uma expectativa em realidade.
Negando a origem a priori do conceito de causa e do princípio de causalidade, Hume rejeita um
instrumento no qual a metafísica tradicional se baseava para as suas especulações. Kant reconhece,
como será explicitado, que o conceito de causa não pode ter um uso metafísico ou transcendente mas
assume o seu carácter a priori — estrutura objectiva do espírito humano. Assim, evita que a
possibilidade do conhecimento científico seja atingida no seu ponto vital.
3.3.Os limites do conhecimento: não é possível o conhecimento científico de realidades
metafísicas.
O conhecimento científico, embora não tenha o seu fundamento na experiência, começa com ela e
por isso só pode ser conhecimento de realidades empíricas.
Conhecer é estabelecer relações de causalidade entre aquilo que se relaciona com o sujeito. Como é
que as coisas se podem relacionar comigo? Se se manifestarem no espaço e no tempo, ou seja, se eu
as puder espacializar e temporalizar mediante as formas da minha sensibilidade. Isto quer dizer que o
conhecimento científico não é produzido pela sensibilidade, mas só pode ser acerca dos dados que
esta recebe. Todo o conhecimento possível ao homem está limitado ao campo dos objectos que eu
posso enquadrar no espaço e no tempo, aos dados da intuição empírica ou sensível.
Assim, os dados sensíveis são o que a sensibilidade coloca ao dispor do entendimento e do seu
conceito por excelência: o conceito de causa. A relação causal que este estabelece, está limitada aos
dados sensíveis ou fenómenos. O vínculo causa-efeito consistirá então em explicar um fenómeno
mediante outro, fazendo de um a causa do outro, e nunca poderá consistir em explicar um fenómeno
mediante algo que não seja fenómeno. O conceito de causa só pode, portanto, ter um uso imanente,
limitado aos dados sensíveis, só pode funcionar no interior desses limites espácio-temporais. Por
isso, nunca se poderá considerar científica uma afirmação do género: "Deus é causa disto ou
daquilo". Só podemos atribuir a propriedade de causar isto ou aquilo (este ou aquele fenómeno) a
algo que também seja fenómeno.
Conclusão: a metafísica enquanto pretensa ciência de realidades que transcendem o plano espácio-
temporal, que não podem ser nele enquadradas pela nossa sensibilidade, não tem direito ao título da
ciência.
Se eu pretendesse demonstrar a existência de Deus como causa do mundo (do conjunto dos
fenómenos), estaria a usar o conceito de causa de uma forma ilegítima (uso transcendente e não
imanente). O conceito de causa só serve para estabelecer relações entre as coisas que comigo se
relacionam (os fenómenos), ou seja, para relacionar um fenómeno (uma realidade sensível) com
outra realidade que só pode, por sua vez, ser fenómeno. Se fazemos de Deus causa do mundo e
julgamos assim demonstrar a sua existência estamos a iludir-nos porque Deus, sendo concebido
como eterno e incorpóreo, não é enquadrável no espaço e no tempo, não é fenómeno. Ora aquilo que
consideramos ser causa e aquilo que consideramos ser efeito têm ambos de pertencer ao plano do
espaço e do tempo, têm de ser fenómenos. Não pode, pois, haver um conhecimento científico de
Deus, realidade metafísica, transcendente, supra-sensível.
1 — Todo o conhecimento começa com a experiência.
2 — O conhecimento científico não deriva da experiência (não tem o seu fundamento nela), mas sim
de certas formas a priori do sujeito que conhece.
3 — O conhecimento científico, embora não tenha o seu fundamento na experiência, começa com
ela e por isso só pode ser conhecimento de realidades empíricas ou sensíveis.
3.3.1. Uma distinção crucial: A distinção fenómeno-númeno
Só podemos conhecer mediante as categorias aquilo que nos é dado pela sensibilidade, ou seja,
aquilo que podemos intuir. Só das realidades enquadráveis no espaço e no tempo podemos ter
conhecimento científico.
Kant esclarece de imediato que reduzir o campo da actividade do conhecimento ao plano
fenoménico — ao que podemos intuir — não pode significar uma redução da realidade ao que a
sensibilidade capta e o entendimento conhece. Dizer que só conhecemos os fenómenos — os dados
sensíveis — não impede que pensemos em realidades que não estão ao alcance da intuição sensível.
Assim introduz Kant o conceito de númeno.
Kant afirma que o conceito de númeno pode entender-se em dois sentidos:
Se considerarmos uma coisa enquanto não é objecto da nossa intuição sensível, i. e., abstraindo do
nosso modo próprio de intuir, então temos o númeno
em sentido negativo (aquilo que não é objecto da intuição sensível).
Se considerarmos uma coisa como objecto de uma intuição intelectual — a
qual não está em nosso poder temos o conceito de númeno em sentido positivo.
Assim, dado que a nossa intuição é simplesmente sensível — dado que só podemos intuir realidades
sensíveis — aquilo a que chamamos númeno só pode por nós ser entendido em sentido negativo: o
númeno é aquilo que não pode ser pensado como objecto da intuição sensível, é um "conceito-
limite" (assinala os limites da sensibilidade e da função cognitiva das categorias do entendimento).
O númeno é o inverso do fenómeno: é algo que não é dado na intuição sensível.
Para quê falar então do númeno ou da coisa-em-si (Ding-an-sich)? Para impedir que se considerem
os fenómenos como a totalidade do real. O facto indiscutível de só podermos conhecer os fenómenos
não pode querer dizer que só existem os fenómenos. A investigação sobre o modo como podemos
conhecer e sobre o que podemos conhecer disse-nos que só podíamos conhecer as realidades
sensíveis e ao mesmo tempo proibiu-nos de transgredir os limites do nosso conhecimento
interditando-nos qualquer afirmação ou negação peremptória sobre as realidades que não podemos
conhecer. Não podemos afirmar nem negar a existência dos númenos ou coisas-em-si: Podemos
contudo legitimamente pensar ou supor que existem realidades que transcendem o plano espácio-
temporal, i. e., realidades que não são fenómenos.
O conhecimento científico tem limites. Está limitado ao plano dos fenómenos. Ora falar de limites é
supor que se pode pensar que há algo para lá desses limites. O plano da realidade que ultrapassa o
nosso poder de conhecimento e que podemos pensar tem o nome de númeno ou de mundo
numénico. Assim não faz sentido reduzir a realidade (o que existe) ao que nos é possível conhecer (o
mundo dos fenómenos). Seria arrogância do ser humano (finito e limitado como é) dizer: "Só existe
aquilo que eu posso conhecer." A realidade não pode reduzir-se ao mundo dos fenómenos (ao plano
dos objectos que, enquadrados no espaço e no tempo, são relacionados em termos de causa e efeito
pelo entendimento). Para lá dessa dimensão é legítmo pensar que existe uma outra (o mundo dos
númenos) porque só assim faz sentido falar de limites do conhecimento científico.
O fenómeno é a coisa tal como é para mim — é a coisa enquanto objecto do meu conhecimento e
submetida às condições que tornam possível conhecê-la. Falar das coisas enquanto são para mim é já
supor por contraste a existência das coisas tais como são em si mesmas. Podemos pensar a coisa em
si como númeno, i. e., como objecto que não é dado na intuição sensível.
Em suma, não há, em termos teóricos, qualquer determinação positiva acerca dos númenos, não
podemos conhecer as coisas enquanto númenos. O númeno é pensável: o conceito de uma coisa que
não pode ser pensada como objecto da intuição sensível mas como coisa em si mesma não é
contraditório porque embora a intuição sensível seja a única forma de intuição humana não podemos
afirmar que ela é o único tipo de intuição possível.
CONCLUSÕES ESSENCIAIS DA “ANALÍTICA TRANSCENDENTAL”
1.Os conceitos do entendimento denominados categorias não derivam da experiência, não são
abstracções ou generalidades formadas a partir da experiência.
São conceitos a príori, i. e., puras formas do entendimento. O fio condutor para a descoberta destes
conceitos puros ou categorias é a análise do acto fundamental do entendimento: o juízo. Como o acto
de julgar pressupõe o uso de conceitos, i. e., formulamos juízos mediante essas estruturas do
entendimento, descobriremos quais e quantas são as categorias a partir da análise dos diversos tipos
de juízos. Kant não se refere a juízos concretos ou particulares, cujo número é indefinido, mas a
tipos de juízos de acordo com a sua forma lógica. Cada tipo de juízo está determinado por um
conceito a priori ou categoria de tal modo que de cada tipo lógico de juízo é possível deduzir sem
recurso à experiência a categoria correspondente e determinante. Como os tipos lógicos de juízos são
doze — de acordo com a lógica formal do seu tempo — Kant conclui que as categorias
fundamentais do entendimento são também doze. O que essencialmente devemos reter desta
dedução "metafísica" das categorias é que elas têm uma origem a priori, são estruturas universais e
necessárias sem as quais o entendimento não formularia juízos. As categorias são formas para o
exercício da nossa faculdade de julgar. Mais do que simples representações mentais (poderíamos
confundi-las com ideias inatas) são os actos fundamentais da nossa mente ou intelecto.
2 — Se as categorias não derivam da experiênca dos objectos, têm, contudo, uma importante
relação com os objectos da experiência (os dados empíricos).
Com efeito, sem elas não é possível conhecimento algum. Sem a aplicação das categorias aos dados
da intuição sensível não temos mais do que sensações dsligadas e dispersas. As categorias são
estruturas transcendentes porque são a condição de possibilidade a priori do conhecimento científico
dos dados empíricos. Se o espaço e o tempo eram estruturas transcendentais por serem a condição a
priori que tornava possível a intuição sensível, as categorias do entendimento são-no por tornarem
possível o conhecimento científico dos dados intuídos.
3·- O conhecimento científico implica a relação entre entendimento e sensibilidade.
A sensibilidade é uma faculdade receptiva (intui) e dá-nos objectos — os fenómenos que constituem,
por assim dizer, a matéria ou o conteúdo do conhecimento. O entendimento é uma faculdade
essencialmente activa "espontânea", mas não é dotada do poder de intuir (não há intuição intelectual
mas simplesmente sensível). A sensibilidade dá ao entendimento a matéria ou o conteúdo do
conhecimento (os dados intuídos, i. e., espacializados e temporaliza-dos, mas desligados). O
entendimento constitui o conhecimento científico — a ligação necessária, a síntese ou unificação dos
fenómenos que estavam dispersos — mediante as categorias. É ele que nos dá a forma do
conhecimento. As leis que regem o comportamento dos fenómenos — a ordem e a legalidade natural
— derivam do entendimento do sujeito cognoscente. Por isso, embora o conhecimento científico
comece com a experiência — a intuição ou recepção dos dados sensíveis — ele não deriva dela.
4 - O conhecimento científico começa com a experiência (só ela nos dá objectos)e embora não
derive dela (o seu fundamento está nas estruturas não empíricas do entendimento) só pode ser
conhecimento das realidades sensíveis ou feno-ménicas (daquilo que nos é dado para conhecer).
Conhecer cientificamente é essencialmente estabelecer relações causais ou necessárias (um vínculo
de dependência) entre os objectos ou dados que estão ao alcance do sujeito.
Os objectos ou dados que estão ao nosso alcance são os que podemos intuir. Porquê? Porque só a
intuição "nos dá objectos" como diz Kant. Ora como a intuição só é, no nosso caso, possível
mediante duas formas a priori da sensibilidade os objectos que estão ao nosso alcance são os dados
ou impressões sensíveis. Só podemos conhecer cientificamente o que podemos intuir. Como a nossa
intuição é sensível ou empírica só haverá conhecimento científico de dados sensíveis, de dados
espácio-temporalmente enquadrados (os fenómenos). As coisas em si são as "coisas" que não
podemos espacializar nem temporali-zar. É impossível conhecer o que não é objecto da nossa
intuição. O conhecimento científico limita-se à explicação do que acontece ou se dá no plano
espácio-temporal.
Isto não quer dizer que o conhecimento científico seja empírico. Para que isso acontecesse teria de
derivar da experiência, da intuição empírica. Ora isso não acontece. A relação causal ou científica
significa que usamos um conceito (o de causa) para ligar os dados que a sensibilidade deixara
desligados no espaço e no tempo. Esse conceito ou estrutura é transcendental (torna possível a priori
o conhecimento científico). Não tem a sua origem na experiência mas no entendimento: tem uma
origem intelectual, é um produto do nosso intelecto ou entendimento.
Se o conceito de causa não é empírico (não deriva da intuição dos dados empíricos) e se sem ele não
podemos estabelecer relações causais ou científicas entre os fenómenos então o conhecimento
científico embora limitado aos dados empíricos não é de natureza empírica. Só conhecemos objectos
empíricos mas não os conhecemos de modo empírico.
Por isso é legítimo falar de juízos sintéticos a priori ou científicos. Exemplo de um juízo sintético a
priori: Sempre que aumenta a temperatura produz-se a dilatação de um corpo.Traduzindo: a causa da
dilatação de um corpo é sempre um determinado aumento de temperatura. Há aqui uma ligação ou
síntese causal entre A e B. Como o conceito que permite essa ligação ou síntese não deriva da
experiência, este juízo exprime uma síntese a priori, não empírica: é um juízo sintético a priori.
Consideremos o seguinte juízo: "A luz do Sol aquece a pedra." Este juízo não constituiria um
conhecimento objectivo (necessário, universal) se eu simplesmente associasse duas representações
ou fenómenos (a aparição do sol e o aquecimento da pedra). Estaríamos perante um juízo a que
Kant, nos Prolegómenos, chama juízo perceptivo, de percepção. Seria então correcto dizer não "o sol
aquece a pedra" mas antes "o Sol atinge a pedra com os seus raios, ela aquece". Estou a associar dois
estados ou representações subjectivas mas não estou a unificá-los, a determiná-los, a ligá-los
necessariamente. Para isso é necessário o entendimento e a categoria da causalidade. No juízo de
percepção a associação das duas representações não faz com que estas transcendam o seu carácter
subjectivo, acidental, contingente. Ligadas pelo conceito de causa (necessário e universal), essas
representações são ligadas "no objecto", ou seja, é-nos permitido constituir um enunciado (uma lei
científica) segundo o qual todas as vezes que o sol incide na pedra, durante um certo tempo, esta é
necessariamente aquecida. Os dois fenómenos deixam de estar um para o outro numa mera relação
de sucessão temporal. Estão ligados segundo uma relação causal. Estão necessariamente ligados pois
não há causa sem efeito e vice-versa e esta ligação feita pelo sujeito impõe-se ao sujeito, torna-se
objectiva.
5 - O conceito de causa, tão utilizado pela tradição racionalista na solução de problemas metafísicos
e na explicação metafísica de fenómenos ou acontecimentos, não pode ter um uso transcendente mas
tão só imanente (ligando necessariamente os objectos que estão no interior do plano espácio-
temporal e só esses).
O conceito de causa é um conceito unificador e sintético, ou seja, liga certos dados estabelecendo
uma relação causa-efeito entre eles. Esse conjunto de dados que ele permite ligar (essa diversidade
ou multiplicidade) não é recebido (intuído) pelo entendimento. Este, por si só, só tem o poder de
formar conceitos mas não o de intuir. Quem recebe esses dados? A sensibilidade porque está
equipada com estruturas receptivas adequadas: o espaço e o tempo, as formas que nos permitem
entrar em contacto com as coisas. Assim, os dados sensíveis são a diversidade ou multiplicidade que
a sensibilidade coloca ao dispor do entendimento e do seu conceito por excelência: o conceito de
causa. Deste modo, a aplicação do conceito de causa, a relação causal que este estabelece, está
limitada aos dados sensíveis ou fenómenos. O vínculo causa-efeito consistirá então em explicar um
fenómeno mediante outro, fazendo de um a causa do outro e nunca poderá consistir em explicar um
fenómeno mediante algo que não seja fenómeno. O conceito de causa só pode, portanto, ter um uso
imanente, limitado aos dados sensíveis, só pode funcionar no interior desses limites espácio-
temporais. Por isso, nunca se poderá considerar científica uma afirmação do género: "Deus é causa
disto ou daquilo." Só podemos atribuir a propriedade de causar isto ou aquilo (este ou aquele
fenómeno) a algo que também seja fenómeno. Deus é uma realidade metafísica, não-fenoménica.
Relacionar em termos causais — usando o conceito de causa-realidades sensíveis e uma realidade
metafísica como Deus é um abuso, algo ilegítimo, mera especulação que só conduz a ilusões. De
Deus não há intuição alguma. Como o conceito de causa só estabelece relações entre dados
intuitivos, falar de Deus como causa seja do que for não faz sentido, é falar sem saber o que se diz.
6 - Podemos pensar que a realidade não se reduz ao plano dos fenómenos: a distinção fenómeno-
númeno corresponde à distinção entre o cognoscível e o pensável.
O fenómeno é aquilo que está ao alcance da nossa intuição (a intuição empírica ou sensível). Por
isso pode ser objecto de conhecimento porque o entendimento conhece (estabelece relações causais)
os dados sensíveis ou empíricos.
O númeno é aquilo que não podemos enquadrar no espaço e no tempo e que, portanto, não pode ser
objecto de uma intuição sensível, a única que nos é possível; por isso mesmo e uma vez que todo o
conhecimento começa com a experiência (a intuição sensível) o plano dos númenos(1) é inacessível
ao nosso conhecimento.
Como o homem só impõe limites ao seu conhecimento e não à realidade podemos pensar que
existem realidades que não podemos conhecer: essas realidades que transcendem o nosso
conhecimento são os númenos. O plano dos númenos não é impensável mas simplesmente
incognoscível. Distinguir, estabelecer a diferença entre númeno e o fenómeno, é distinguir o que
pode ser pensado como existente daquilo que existe como podendo ser conhecido.
(" O plano dos númenos é o das realidades metafísicas em geral: Deus, por exemplo, é uma
realidade numénica, não-fenoménica.
8 - A gnosiologia kantiana é um idealismo (racionalismo) transcendental.
Por idealismo transcendental entende-se uma doutrina que afirma que o sujeito constrói o objecto de
conhecimento mediante as suas estruturas transcendentais. Tal significa que só podemos conhecer
fenómenos, isto é, as coisas adequadas à nossa forma de conhecer. Sendo as coisas em si mesmas
incognoscí-veis, nós nunca saberemos se a nossa representação das coisas corresponde ao que elas
são em si. Vê-se que o idealismo transcendental não nega a existência das coisas em si mesmas, não
transforma o mundo no conjunto das representações do sujeito. É, portanto, um idealismo
gnosiológico e não ontológico. Com efeito, a própria existência da coisa em si é uma afirmação
necessária porque é ela a causa ou a origem do dado, isto é, da matéria do fenómeno, desencadeando
assim os mecanismos das formas do conhecimento. Acreditar que as coisas existem realmente e que
elas são em certa medida condição do processo de conhecimento, é uma afirmação própria de um
realismo empírico. Se o objecto do conhecimento é uma representação para nós, a realidade não se
reduz aos fenómenos e por isso o idealismo transcendental ao não negar a existência de coisas fora
do sujeito é um realismo empírico.
3.4.A "dialéctica transcendental": a crítica das pretensões da razão pura teórica
Estabelecido o modo como conhecemos e o que podemos conhecer estamos em condições de
perceber o que, em geral, Kant entende por "crítica da razão pura". Devemos começar por esclarecer
que a expressão "razão pura" mais do que uma faculdade designa uma atitude dessa faculdade a que
chamamos razão e um modo de conceber o seu funcionamento. Chama--se pura à razão desligada da
sensibilidade e, por conseguinte, sem qualquer ligação com a experiência ou a intuição empírica. A
tradição racionalista, inspirada sobretudo em Descartes e tendo Wolff como expoente máximo no
tempo de Kant, acreditava na possibilidade de um conhecimento puramente racional, que fosse obra
exclusiva da razão. Partidário, tal como é próprio do Iluminismo, da ideia de autonomia da razão,
Kant não vai, contudo, admitir que a "pureza" da razão no plano do conhecimento seja defensável, i,
e., rejeitará a possibilidade de constituir conhecimento sem o contributo da sensibilidade.
Assim, a exposição anterior sobre o modo como sensibilidade e entendimento não podiam
isoladamente produzir conhecimentos lançou as bases ou os fundamentos da crítica da razão pura, i.
e., da crítica de uma atitude da razão que julga que à margem da sensibilidade — desprezando o
contributo desta — pode conhecer. Esclarecido o âmbito legítimo de aplicação do conhecimento,
como ele começa, de onde deriva, podemos criticar a razão que pretende, no que respeita ao
conhecimento, ser pura. Por isso se compreende que, explicitamente, na obra Crítica da Razão Pura,
a razão pura seja criticada só depois de na "Estética e Analítica transcendentais" termos definido as
condições e os limites do conhecimento.
A crítica das pretensões da razão pura no plano teórico, i. e., no plano do conhecimento, — feita com
objectivo de "chamar a razão à razão", convidá-la à humildade — assenta em dois princípios
essenciais:
A — Nenhuma faculdade pode conhecer seja o quer for sozinha, por si só. O entendimento, a
faculdade que propriamente falando conhece cientificamente (porque só ele pode estabelecer
relações necessárias entre os dados sensíveis, os fenómenos) precisa do contributo da sensibilidade:
só esta mediante as suas formas a priori recebe as impressões ou dados sensíveis às quais o
entendimento, que não tem o poder de intuir, aplicará os seus conceitos, ligando os dados sensíveis
B — O conhecimento científico começa com a recepção das impressões sensíveis, ;'. e., com a
experiência e embora não derive dela mas sim das formas a priori do sujeito, só pode ter como
objecto os dados sensíveis: o conhecimento científico de realidades metafísicas é impossível.
3.4.1 A razão pura nada pode conhecer: não é possível um conhecimento puramente racional
O adjectivo "pura" com o qual se qualifica a razão indica que esta não tem qualquer ligação com a
sensibilidade e, por conseguinte, com a experiência (intuição emprírica).
Poderá ela, nestas condições, constituir conhecimentos acerca do mundo fenoménico ou sensível?
É óbvio que não. Com efeito, todo o conhecimento começa com a intuição empírica. Desprezando o
contributo da sensibilidade — a única faculdade que nos dá objectos — a razão nada tem para
conhecer. A doutrina kantiana sobre o conhecimento, ao estabelecer que só podemos conhecer o que
podemos intuir, negou a possibilidade de um conhecimento puramente racional (de um
conhecimento que a razão constituiria sem qualquer recurso à sensibilidade).
E quanto às realidades metafísicas terá a razão pura melhor destino?
Apesar de as questões metafísicas serem aquelas que fundamentalmente interessam à razão, a análise
efectuada anteriormente sobre o modo como conhecemos e sobre o que podemos conhecer impõe
uma resposta negativa.
Como só podemos conhecer aquilo que podemos intuir (e só temos intuição de realidades empíricas)
a razão pura não pode conhecer realidades metafísicas.
A razão tem o destino de não poder fugir às questões metafísicas e ao mesmo tempo de não lhes
poder responder.
Na "Dialéctica transcendental" Kant fala de novas formas a priori, de novas estruturas
transcendentais do sujeito. Tais formas são denominadas ideias. Será que mediante estas formas
poderemos realizar o conhecimento absoluto? Não. Quanto a esse aspecto as conclusões da Analítica
são definitivas: a sensibilidade intui, o entendimento conhece. A razão pensa mas não conhece.
Mas será que a limitação do nosso conhecimento (só conhecemos o que podemos intuir) nos
satisfaz? Não, e a razão, faculdade entendida em sentido estrito, é a voz dessa insatisfação.
O que o entendimento consegue no plano do conhecimento não satisfaz a razão. Esta deseja
explicações definitivas, absolutas. Ora, o entendimento, ao explicar os fenómenos, encontra como
causa de um fenómeno sempre outro fenómeno, nunca atingido, já que não ultrapassa o plano dos
objectos espacio-temporalmente enquadrados, a causa última ou incondicionada de todos os
fenómenos.
A razão, dada a sua vontade de conhecimento absoluto, exige que não fiquemos pelo que é
condicionado e encontremos o que é incondicionado. Isso não quer dizer que este incondicionado —
esta é causa última de tudo — exista ou se possa alcançar.
Não podendo conhecer realidades metafísicas como forma ela a ideia de tais realidades absolutas ou
incondicionadas?
A razão, dada a sua tendência metafísica, unicamente supõe ou admite que a série das condições ou
causas está dependente de uma causa que de nada depende. Ao formar a ideia de uma causa
incondicionada de todos os fenómenos, a razão pura está a formar a ideia de Deus. A ideia de Deus
não deriva da experiência pois é o resultado da insatisfação da razão com explicações que como
causa dos fenómenos encontram sempre uma realidade fenoménica, i. e., condicionada. A ideia de
Deus, forma a priori da razão pura, surge como resultado da vontade de absoluto que anima a razão
humana, exprimindo a sua vocação essencialmente metafísica. Traduz o desejo de absoluto mas nada
mais. Com efeito, para haver conhecimento de Deus este teria de ser objecto da nossa intuição (só
conhecemos o que intuímos). Podemos pensar Deus — podemos pensar em uma causa última de
tudo — mas não o podemos conhecer. O que vale para a ideia de Deus, vale para as outras duas
ideias da razão pura: as ideias de Alma e de Mundo. Dado não podermos ter qualquer intuição das
realidades que essas ideias representam podemos somente pensá-las. Em termos kantianos, as ideias
da razão não têm um uso constitutivo, não permitem constituir conhecimentos.
3.4.2. Não podendo ter um uso constitutivo a razão pura vai ter um uso legítimo: o uso regulador
Não podendo constituir conhecimento — não tendo um uso constitutivo pois este está reservado ao
entendimento dentro de limites empíricos — será a razão uma faculdade absolutamente desligada do
processo de conhecimento? Não terá ela nenhum uso? Será supérflua?
A resposta de Kant é a de que, embora não produzindo conhecimentos, a razão vai ser útil à
actividade científica do entendimento (a "faculdade dos conhecimentos"). Para isso bastará analisar o
papel que a ideia de Deus desempenha. Mas antes de tornar explícito esse papel, definamos em
termos gerais a utilidade da razão. Essa utilidade vai consistir em regular a actividade cognitiva do
entendimento. Regular vem do latim "regula" que significa "regra". Dizer que a razão tem um uso
regulador quer dizer que ela vai estabelecer uma regra que oriente a actividade epistémica ou
científica do entendimento.
O que diz essa regra? Como contribui ela para o processo de conhecimento?
Essa regra geral diz o seguinte: "Conhece como se fosse possível atingir o conhecimento absoluto."
A razão convida o entendimento a estabelecer relações causais entre os fenómenos como se fosse
possível prolongar a série das causas condicionadas até encontrar a causa última de todos os
fenómenos.
Para encontrar a causa de todas as coisas, i. e., da totalidade dos fenómenos, teríamos de ultrapassar
o plano das realidades sensíveis ou espácio-temporais. Já sabemos que isso é impossível: o
conhecimento científico é limitado. A omnisciência (o conhecimento total) está fora do nosso
alcance. Pensamos que pertence a Deus, caso este exista. Logo agir como se fosse possível o
conhecimento absoluto é, para o entendimento, agir orientado pela ideia de Deus: é agir como se
fosse possível sermos tal como pensamos que Deus é (omnisciente).
O conhecimento absoluto simbolizado por Deus'" é um ideal irrealizável. Contudo, querer realizá-lo
tem consequências positivas. Com efeito, o entendimento ao procurá-lo vai considerar sempre
provisórios os seus conhecimentos, não se satisfará nunca com as explicações alcançadas. E de
explicação em explicação vai progredindo no conhecimento do mundo dos fenómenos, como se um
dia fosse possível explicá-lo definitiva e totalmente.
A vantagem da regra da razão, a vantagem deste ideal inalcançável, é a de que impede que o
entendimento se satisfaça com as explicações já alcançadas e tente, no seio do espaço e do tempo, no
plano dos fenómenos, encontrar causas cada vez mais amplas, i. e., que expliquem um número cada
vez maior de fenómenos. Querer o absoluto é a forma de fazer avançar o conhecimento relativo.
Querer o impossível é a forma de fazer avançar o conhecimento possível.
Na procura sempre frustrada da unidade total, o entendimento não se fixa no adquirido, nas
objectivações já efectuadas, e procura para cada dado condições cada vez mais englo-bantes. Por
outras palavras, embora impossibilitado de legitimamente transcender os limites da experiência, o
entendimento não tem, dentro desses limites, qualquer fronteira. Não há fronteiras para o
conhecimento científico (a experiência é sempre fonte de novidade, de novas coisas para
compreender, e isso prova-o a história da ciência) embora este se constitua dentro de limites —
espácio-temporais — que não é legítimo transpor.
(1) Deus é uma realidade metafísica cuja existência não podemos demonstrar. A ideia de Deus (tal
como as outras ideias) é uma forma ou estrutura de uma faculdade do sujeito: a razão. É portanto
uma estrutura ou forma do sujeito e não algo que transcende este. Deus é transcendente; a ideia de
Deus é uma estrutura transcendental do sujeito.
Se é transcendental, a ideia de Deus é condição de possibilidade a priori de algo. De quê? Não do
conhecimento mas sim do progresso do conhecimento. A ideia de Deus é um ideal porque representa
um ser que supomos omnisciente, que não só supomos criador de tudo mas também conhecedor de
tudo. Agir como se fosse possível conhecer tudo absoluta e definitivamente, ter a chave que explica
o mistério de todas as coisas, é agir segundo a ideia de Deus. É essa a regra que a razão dá ao
entendimento para que este nunca perca a sua dinâmica cognitiva. Assim, a razão é condição de
possibilidade do progresso do conhecimento científico.
3.4.3. A "ilusão transcendental" ou os perigos do uso regulador da razão
A razão é desejo de conhecimento absoluto. Sabemos já que a faculdade que conhece é o
entendimento e que a razão orienta ou regula a actividade cognitiva do entendimento. De que forma?
Como é que as ideias regulam a tarefa do entendimento?
Em termos imagéticos, podemos dizer que o entendimento fala e só compreende a linguagem dos
objectos. Para cumprir a função de dinamizar a actividade do entendimento a razão apresenta as
ideias sob a forma de objectos. Se a razão na sua lucidez crítica sabe que tal objecto é um simples
objecto em ideia e não real, o entendimento, no seu pendor objec-tivante, ilude-se e julga que a razão
lhe apresenta um objecto real. Ilusão, pois só é possível a objectividade imanente, sempre
incompleta.
Esta ilusão não é uma ilusão de óptica, mas, tal como esta, o facto de ser denunciada não impede que
seja inevitável. Uma vara que mergulhamos na água, mesmo que saibamos que não é assim, parecer-
nos-á sempre quebrada. A que se deve o carácter inevitável da ilusão transcendental? Primeiramente
deve dizer-se que a ilusão transcendental consiste em julgar que através dos conceitos de
entendimento podemos conhecer realidades que não são dadas na intuição sensível. Por paradoxal
que pareça, a ilusão tem a sua raiz na actividade reguladora da razão.
O entendimento ilude-se porque uma vez que a ideia é, por natureza, aquilo a que nenhum objecto
empírico corresponde ou se adequa, ele toma o objecto em ideia por objecto real supra-sensível. Só
uma reflexão profunda sobre as fontes do conhecimento e os seus limites pode denunciar esta ilusão
e evitar que o seu carácter inevitável se torne prejudicial. É inevitável que a ideia se apresente como
objecto, mas é denunciável confundi-la com o objecto real, porque para a ideia ser realmente objecto
teria de ser dada numa intuição que correspondesse àquilo que ela representa. Ora a intuição está
limitada aos objectos espácio-temporais: não é possível intuir as realidades que as ideias
representam.
3.4.4. A dialéctica da razão pura teórica: o mau uso ou o dogmatismo da razão
Útil na sua função reguladora da actividade científica do entendimento, a razão cede, contudo,
muitas vezes, à tentação de se pronunciar em termos científicos sobre os grandes problemas da
metafísica. Confunde a sua necessidade subjectiva (o conhecimento de realidades metafísicas) com a
realidade objectiva. Por outras palavras, ilude-se: transforma a necessidade de conhecer, por
exemplo Deus, em afirmação da realidade objectiva de Deus. É analogamente o mesmo que
transformar o desejo de comer em comida. Esquece que uma coisa é pensar e outra é conhecer, ou
seja, especula. Quando pretende ter mais do que um uso regulador a razão pura teórica torna-se razão
puramente especulativa ou dialéctica.
Veremos em que consiste este mau uso da razão a propósito de um problema metafísico essencial: o
da liberdade.
A razão pura julga que com base na sua simples capacidade argumentativa pode resolver as questões
metafísicas que a assediam. «Suspensa no ar», perdendo de vista a análise das condições e dos
limites do conhecimento, sem qualquer referência à experiência, a razão empreende com convicção a
solução do problema da liberdade («Há liberdade ou não há liberdade?»).
Contudo, vai acabar por chegar a um impasse, a uma contradição consigo própria, vai envolver-se
numa «teia de aranha mental». Essa teia tem o nome de antinomia, contradição profunda da razão
consigo mesma.
Vimos que o bom uso da razão consiste na regulação da actividade da única faculdade que pode
constituir conhecimento: o entendimento. Contudo, muitas vezes, a razão pura não se conforma com
esta útil, mas a seu ver, demasiado humilde função. Dada a sua irresistível ou inelutável vocação
metafísica, a razão pura sente que não pode abdicar da tentativa de responder às questões
metafísicas. Estas são, por definição, as questões naturais ou fundamentais da razão. Apesar das
conclusões a que chegou a análise sobre o modo como conhecemos e sobre o que podemos
conhecer, a razão não se resigna a esse destino. Pensa que as questões metafísicas (liberdade,
imortalidade, Deus) aguardam uma resposta, uma demonstração racional,;'. e., da razão.
Esta tendência irreprimível da razão está na origem daquilo a que, escolhendo a questão da
liberdade, iremos assistir: a dialéctica da razão pura, ou seja, o conflito ou a contradição da razão
consigo própria. Uma razão que se contradiz a si própria torna-se "irracional", torna-se des-razão.
Escolhendo, como exemplo, o problema metafísico da liberdade, vejamos, como confiando
cegamente na sua capacidade de argumentação e de demonstração, a razão vai manipular conceitos e
princípios enredando-se a si mesma.
A antinomia da liberdade
Problema a resolver — "Há ou não há liberdade?"
Definição do conceito de liberdade — Liberdade é a capacidade de produzir efeitos
sem ser efeito de nada. Assim, definindo liberdade nestes termos, ela será sinónimo
de causa não condicionada por nenhuma outra, de causa primeira.
Princípio que orienta a argumentação:— "Tudo tem uma causa."
A desorientação da razão — Para se poder falar de contradição da razão consigo
mesma tem de lhe acontecer o seguinte: retirar ou deduzir do princípio anteriormente
referido conclusões que se neguem uma à outra.
Como vai acontecer isso?
O princípio "tudo tem uma causa" pode ser interpretado como querendo dizer que todas as coisas
têm uma causa. Se assim é, a causa de todas as coisas não pode ser efeito de nada porque se fosse
causada por algo já não seria causa de todas as coisas (haveria algo de que ela não seria causa).
Temos assim de admitir que para haver uma causa de tudo (de todas as coisas) tem de haver uma
causa livre, não condicionada por nenhuma outra, ou seja, uma causa que produz efeitos sem ser
efeito de nenhuma outra.
Há liberdade ou causalidade livre.
Contudo, o mesmo princípio — "Tudo tem uma causa" — pode também ser interpretado como
querendo dizer que não há nenhuma coisa que não tenha uma causa. Cada coisa é ao mesmo tempo
causa de certos efeitos e efeito de certas causas. Assim falando das coisas em particular e não das
coisas em geral — como era o caso da primeira interpretação — devemos concluir que não há
nenhuma causa incondicionada, não há nenhuma causa que produza efeitos sem por sua vez ser
efeito de outra causa. Não há liberdade ou causalidade livre.
PRINCÍPIO: TUDO TEM UMA CAUSA
Se tudo tem uma causa devíamos encontrar a causa de tudo. Ora isso só é possível se houver uma
causa absolutamente primeira que de nada seja efeito. Na verdade, se a causa de tudo fosse efeito de
outra causa haveria algo que ela não causa e então não seria causa de tudo. Tem de haver portanto
uma causa absolutamente espontânea, não condicionada por nenhuma causa, isto é, livre. Há
causalidade livre, há liberdade. Eis a demonstração da tese.
Se tudo tem uma causa então não podemos afirmar a existência de uma causa que ao mesmo tempo
não seja efeito de outra, i.e., causada por outros. Se dizemos que há uma causa que não é efeito de
nada estamos a dizer que essa causa não tem por sua vez uma causa. Mas o princípio ao qual
devemos obedecer diz que tudo tem uma causa. Por conseguinte, não pode haver causalidade livre,
uma causalidade independente de qualquer outra causa. Não há liberdade. Eis a demonstração da
antítese.
A razão torna-se antinómica ou contraditória quando querendo resolver questões que ultrapassam as
suas capacidades (e as de qualquer faculdade humana) se deixa enredar nas suas próprias habilidades
especulativas, ficando desorientada, completamente à deriva. Com efeito, as duas conclusões
contraditórias a que chegou, ao argumentar desconhecendo os seus limites, parecem ambas válidas.
Melhor dizendo, nenhuma dedução é logicamente mais correcta do que a outra. Mas, escândalo dos
escândalos, anulam-se uma à outra. A razão fica sem saber o que fazer. A sua capacidade
argumentativa ou especulativa, na qual tanta confiança depositava, acabou por a conduzir a um beco
do qual não a pode tirar. A aventura da razão pura teórica no domínio metafísico nunca chega a bom
termo. É uma navegação num oceano tempestuoso, sem