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Immanuel Kant - Os Progressos Da Metafísica
Immanuel KANT OS PROGRESSOS
DA METAFSICA
Textos Filosficos edies 70
Pr o leitor directamente em contacto com textos marcantes da histria da filosofia
atravs de tradues feitas a partir dos respectivos originais,
por tradutores responsveis, acompanhadas de introdues
e notas explicativas foi o ponto de partida
para esta coleco. O seu mbito estender-se-
a todas as pocas e a todos os tipos e estilos de filosofia,
procurando incluir os textos mais significativos do pensamento filosfico
na sua multiplicidade e riqueza. Ser assim um reflexo da vibratilidade
do esprito filosfico perante o seu tempo, perante a cincia
e o problema do homem e do mundo.
Textos Filosficos Director da Coleco:
ARTUR MORO Professor no Departamento de Filosofia da Faculdade de Cincias
Humanas da Universidade Catlica Portuguesa \. Crtica da Razo Prtica
Immanuet Kant 2. Investigao sobre o Entendimento Humano
David Hume 3. Crepsculo dos dolos
Fredrich Nietzche 4. Discurso de Metafsica
Gottfried Whilhelm Leibniz 5. Os Progressos da Metafsica
Immanuel Kant 6. Regras para a Direco do Esprito
Ren Descartes 7. Fundamentao da Metafsica dos Costumes
Immanuel Kant 8. A Ideia da Fenomenologia
Edmund Husserl 9. Discurso do Mtodo
Ren Descartes 10. Ponto de Vista Explicativo da Minha Obra como Escritor
Sren Kierkegaard 11. A Filosofia na Idade Trgica dos Gregos
Fredrich Nietzche 12. Carta sobre Tolerncia
John Locke 13. Prolegmenos a Toda a Metafsica Pura
Immanuel Kant 14, Tratado da Reforma do Entendimento
Bento de Espinosa 15. Simbolismo: Seu Significado e Efeito
Alfred North Whitehead 16. Ensaio Sobre os Dados Imediatos da Conscincia
Henri Bergson 17. Enciclopdia das Cincias Filosficas em Epitome (vol. I)
Georg Wilhelm Fredrich Hegel 18. A Paz Perptua e Outros Opsculos
Immanuel Kant 19; Dilogo sobre a Felicidade
Santo Agostinho 20. Princpios sobre a Felicidade
Ludwig Feurbach 21. Enciclopdia das Cincias Filosficas em Epitome (vol. II)
Georg Wilhelm Fredrich Hegel 22. Manuscritos Econmico-Fitosficos
Karl Marx 23. Propedutica Filosfica
Georg Wilhelm Fredrich Hegel 24. O Anticristo
Fredrich Nietzche 25. Discurso sobre a Dignidade do Homem
Giovanni Pico delia Mirandola 26. Ecce Homo
Fredrich Nietzche . 27. O Materialismo Racional
Gaston Bachelard 28. Princpios Metafsicos da Cincia da Natureza
Immanuel Kant 29. Dilogo de um Filsofo Cristo edeum Filsofo Chins
Nicolas Malebranche 30. O Sistema da Vida tica
Georg Wilhelm Fredrich Hegel 31. Introduo Histria da Filosofia
Georg Wilhelm Fredrich Hegel 32. As Conferncias de Paris
Edmund Husserl 33. Teoria das Concepes do Mundo
Wilhelm Dilthey 34. A Religio nos Limites da Simples Razo
Immanuel Kant 35. Enciclopdia das Cincias Filosficas em Epitome (vol. HI)
Georg Wilhelm Fredrich Hegel 36. Investigaes Filosficas Sobre a Essncia da Liberdade Humana
F. W. J. Schelling 37. O Conflito da Faculdade
Immanuel Kant 38. Morte e Sobrevivncia
Max Scheler 39. A Razo na Histria
Georg Wilhelm Fredrich Hegel
Ttulo original: Ober die von der Knigl. Akademie der Wissenscliaften zu Berlin flir das Jahr 1791 ausgesetzte Preisfrage: Welches sind die wirklichen
Fortschritte, die Metaphysik seit Leibnitzens und Wolfs Zeiten in Deulschland gemacht hat?, Knigsberg 1804.
Edies 70, Lda.
Traduo: Artur Moro
Capa: Edies 7C.
Depsito legal n 90575 / 95
ISBN 972-44-0580-X
Todos os direitos reservados para a lngua portuguesa por Edies 70, Lda. / Lisboa / Portugal
EDIES 70, Lda. Rua Luciano Cordeiro, 123-2 Esq. - 1050 Lisboa
Telefs.: (01)3158752-3158753 Fax: (01)3158429
Esta obra est protegida pela lei. No pode ser reproduzida, no todo ou em parte, qualquer que seja o modo utilizado,
incluindo fotocpia e xerocpia, sem prvia autorizao do Editor. Qualquer transgresso Lei dos Direitos de Autor ser passvel
de procedimento judicial.
Immanuel KANT
OS PROGRESSOS
DA METAFSICA
acerca da pergunta da Academia Real de Cincias de Berlim: quais so os verdadeiros progressos que a Metafsica realizou
na Alemanha, desde os tempos de Leibniz e de Wolff?
edies 70
ADVERTNCIA DO TRADUTOR
A ocasio para Kant escrever o presente opsculo foi o concurso aberto pela Academia Real das Cincias de Berlim, em Janeiro de 1788, a propsito desta pergunta (originalmente formulada em francs): Quais so os progressos reais da meta-fsica na Alemanha desde a poca de Leibniz e de Wolfffr Como at ao expirar do prazo (1791) tivesse sido entregue apenas uma resposta, foi ele novamente prorrogado at Junho de 1795. Receberam-se ento umas trinta memrias e foram premiadas as de Schwab, Reinhold e Abitch, que foram ulte-ulteriormente publicadas.
Kant iniciou a sua resposta possivelmente no comeo de 1793> was nunca chegou a termin-la e dela restam-nos apenas projectos soltos e todos com a marca do inacabado. Tambm no sabemos qual a sua inteno ao encetar uma rplica a questo da Academia; talvez divisasse nesta ltima a altura de pr frente a frente a sua filosofia crtica, a filosofia dogmtica e a ontologia tradicional, na linha de Wolff Assim, apenas nos ficaram os disjecta membra de uma obra que nunca o chegou a ser, mas onde, no obstante o seu estado fragmentrio, lampejam os profundos vislumbres sobre o conhecimento humano, a reiterada afirmao da nossa finitude e o realce do alcance da nossa aco prtica.
9
A traduo baseia-se no texto que Rink publicou depois da morte de Kant em 1804 (tal como ele surge na edio da Academia, Kant's Schriften, XX, Kant's handschriftlicher Nachlass, VII, Berlim, W. de Gruyter 1942, pp. 259-351, e na edio de W. Weischedel, Kant-Werke, Wiesbaden, Insel Verlag 1958). Dele nos afirma o compilador: Existem trs manuscritos deste artigo, mas, infelizmente, nenhum est completo. Vi-me, pois, forado a tirar de um a primeira metade deste escrito, at ao fim do primeiro estdio; o outro fomeceu-me a segunda metade, desde o incio do segundo estdio at ao fim do artigo. Este manuscrito contm outra elaborao do tema, alis, com ligeiras variantes: da certa falta de unidade e de concordncia no trabalho que no podia deixar de se sentir aqui. e acol e que, nestas condies, era impossvel de todo suprimir. O terceiro manuscrito , de certo modo, o mais acabado, mas contm apenas o incio do conjunto. Restava-me, pois, para no agravar ainda mais o inconveniente assinalado em fundir fora verses diversas, reproduzir em apndice esta terceira transcri-o, ou suprimi-la por completo. Pareceu-me que esta ltima soluo prejudicaria arbitrariamente a expectativa de todos os amigos da filosofia crtica; escolhi, portanto, a primeira soluo. O apndice fornece igualmente algumas observaes de Kant, que se encontram na margem do manuscrito, bem como o comeo do segundo estdio, tirado do que eu chamei o primeiro manus-crito.
Na verso portuguesa, indicam-se as pginas da edio original de Rink, que igualmente reproduzida na edio da Academia de Berlim; alm disso, fez-se tambm a traduo das Lose Blatter (folhas soltas), com a meno das pginas do volume da Academia. O carcter lacunoso do original, com pensamentos interrompidos, frases incompletas, borres, etc., ressente-se necessariamente na trasladao para portugus; a maior preocupao foi ser fiel ao original, que est muito longe de primar pelo literrio, mas onde se debate um pensamento exigente e sem complacncias.
ARTUR MORO
10
PRIMEIRO MANUSCRITO
PREFCIO
/7 A Academia real das cincias pede que se enumerem os progressos de uma parte da filosofia, numa parte da Europa erudita e tambm para uma parte do sculo pre-sente.
Parece ser uma tarefa de fcil soluo, pois diz apenas respeito! histria; e assim como os progressos da astrono-mia e da qumica, enquanto cincias empricas, j encon-traram os seus historiadores, e tal como os da anlise mate-mtica ou da pura mecnica, que se fizeram no mesmo pas e na mesma poca, tambm depressa (se se quiser) encontraro os seus, parece, portanto, haver pouca difi-culdade relativamente cincia de que aqui se fala.
Is Mas esta cincia a metafsica o que altera total-mente a questo. um mar sem margens no qual o pro-gresso no deixa vestgio algum e cujo horizonte no encerra nenhuma meta visvel pela qual seja possvel per-ceber at que ponto dela nos aproximamos.Em vista
/ A 7, 8
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desta cincia, que quase sempre existiu apenas na Ideia (l), a tarefa proposta muito rdua e quase unicamente se pode duvidar da possibilidade da sua soluo; e, mesmo que se conseguisse alcanar, a condio prescrita ainda aumenta mais a dificuldade de expor concisamente os progressos que ela fez. Com efeito, a metafsica , segundo a sua essncia e inteno ltima, um todo completo: ou nada, ou tudo (2); o que se exige para o seu fim ltimo no pode, pois, como acontece na matemtica ou na cin-cia natural emprica que progridem sempre indefinida-mente, ser tratado de modo fragmentrio /9. Apesar de tudo, queremos tentar.
A primeira e mais necessria questo esta: o que que a razo pretende realmente com a metafsica? Que fim ltimo (3) visa ela na sua elaborao? Efectivamente, o grande fim ltimo, talvez o maior, mais ainda, o nico, que a razo pode ter em vista na sua especulao, porque todos os homens a tm maior ou menor parte, e no se compreende porque que, no obstante a sempre manifesta esterilidade dos seus esforos neste campo, era intil gritar-lhes que teriam, alguma vez, de deixar de rolar incessantemente esta pedra de Ssifo, se o interesse, que a razo a possui, no fosse o mais ntimo que ter se pode.
O fim ltimo, a que se vota toda a metafsica, fcil de descobrir e pode a este respeito estabelecer-se dela uma definio: a cincia /1 0 que opera, mediante a razo, a passagem do conhecimento do sensvel ao do supra--sensvel.
(!) A propsito da existncia em Ideia da metafsica, cf. CRP, Metodologia, Cap. 3, Arquitectnica, B 866 e no respectivo contexto.
(2) Frmula anloga pode ver-se nos Prolegmenos, Introdu-o, A 20, ed. port., p. 21.
(3) Uma definio de fim ltimo pode ver-se no par. 84 da CFJ, B 396.
/ A , 10
12
No sensvel, porm, integramos no s aquilo cuja representao se considera em relao aos sentidos, mas tambm ao entendimento, contanto que os puros conceitos deste ltimo se concebam apenas na sua aplicao a objec-tos dos sentidos, por conseguinte, em vista de uma expe-rincia possvel; portanto, o no-sensvel, por ex., o con-ceito de causa, que tem sua sede e origem no entendimento, pode, enquanto o meio do conhecimento de um objecto, dizer-se que pertence ao domnio do sensvel, isto , aos objectos (Objekte) (4) dos sentidos.
A ontologia (5) a cincia (enquanto parte da metaf-sica) que constitui um sistema de todos os conceitos do entendimento e dos princpios, mas s na medida em que se referem a objectos que podem ser dados aos sentidos e, portanto, justificados pela experincia. Ela /11 no toca no supra-sensvel que, no entanto, o fim ltimo da meta-fsica; insere-se nesta s como propedutica (6), como o vestbulo ou a antecmara da metafsica propriamente dita; e chama-se filosofia transcendental, porque contm as condies e os primeiros elementos de todo o nosso conhe-cimento a priori.
Pouco progresso nela se realizou desde os tempos de Aristteles. Assim como uma gramtica a anlise de uma
(4) No opsculo presente, a palavra portuguesa objecto verte o alemo Objekt e Gegenstand, referindo-se o primeiro termo a tudo o que pode ser e efectivamente objecto de conhecimento (por-que situado no mbito da experincia) e englobando o segundo, alm dos seres mundanos, tambm realidades que de nenhum modo, segundo Kant, se podem tornar Objekt. Quando no se incluir entre parnteses o vocbulo alemo, frente de objecto, porque se supe que o original tem em geral Gegenstand.
(s) Constitui uma definio critica da ontologia. Cf. CRP, Arquitectnica, B 873-874.
(6) A propsito da filosofia transcendental como propedutica da metafsica, et. CRP, Intr. VH, B 25-30.
/ A H
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forma lingustica nas suas regras elementares, ou a lgica, uma resoluo semelhante da forma de pensamento, assim tambm ela uma resoluo do conhecimento nos concei-tos que residem a priori no entendimento e tm o seu uso na experincia um sistema, cuja rdua elaborao se {>ode poupar, se se observarem simplesmente as regras do egtimo uso destes conceitos e princpios em vista do conhecimento de experincia, porque a experincia o confirma ou rectifica sempre o que no sucede quando se tenciona passar do sensvel para /12 o supra-sensvel; para tal propsito, deve, sem dvida, fazer-se com min-cia e cuidado a medida do poder do entendimento e dos seus princpios, a fim de saber de onde e com que basto poder a razo aventurar-se a passar dos objectos da expe-rincia para os que o no so.
Ora, no tocante ontologia, tem mritos incontestveis o famoso Wolff pela clareza e preciso na anlise daquela faculdade, mas no quanto extenso do seu conhecimento, porque a matria estava esgotada.
Mas a definio supra mencionada, que apenas indica o que se pretende com a metafsica e no o que nela se deve fazer, distingui-la-ia apenas das outras doutrinas como um ensinamento prprio da filosofia, no significado especfico da palavra, isto , doutrina da sabedoria (7), e prescreveria os seus princpios ao uso prtico absolutamente necessrio da razo o que /1 3 constitui apenas uma relao indi-recta metafsica entendida como uma cincia escolstica e um sistema de certos conhecimentos tericos a priori, e que se tornou uma ocupao imediata. Pelo que a defini-o da metafsica, segundo o conceito da escola (8), ser
C7) Cf. na CRPrat a referncia a esta doutrina da sabedoria, A 292.
(8) Na CRP, Arquitectnica, B 866-867, e na Lgica, Intr. III, A 23, menciona-se tambm a noo escolstica e a noo csmica.
/ A 12, 13
14
esta: o sistema de todos os princpios do conhecimento mediante conceitos da razo pura terica; ou, numa pala-vra: o sistema da filosofia pura terica.
No contm, pois, nenhumas doutrinas prticas da razo pura, mas as doutrinas tericas, que fundam a sua possibilidade. No contm proposies matemticas, isto , proposies que produzem o conhecimento racional pela construo dos conceitos, mas, sim, os princpios da pos-sibilidade de uma matemtica em geral (9). Nesta defini-o, porm, entende-se por razo unicamente a faculdade do conhecimento a priori, isto , que no emprico.
/ 1 4 Ora, a fim de se ter um critrio para avaliar o que recentemente aconteceu na metafsica, importa compa-rar, por um lado, o que desde sempre nela se fez e, por outro, ambos [os resultados] com o que a se deveria ter feito. Mas poderemos ter em conta e considerar como pro-gresso, isto , como um sucesso negativo, o retorno reflec-tido e intencional s mximas do modo de pensar (10), porque, mesmo que assim se tratasse apenas da eliminao de um erro muito enraizado e amplamente difundido quanto s suas consequncias, se pode operar algo para o maior bem da metafsica, da mesma maneira que aquele que, tendo-se transviado do recto caminho e havendo regressado ao lugar de que sara para retomar o seu com-passo, ao menos louvado por no ter prosseguido pela senda errada, nem ter ficado parado, mas ter volvido ao ponto de partida, para se orientar (l l).
I15 Os primeiros e mais antigos passos na metafsica no se ousaram como simples tentativas reflectidas, mas
(9) Sobre matemtica e filosofia, cf. CRP, Metodologia, Cap. I, sec. 1, B 740-766.
(10) Na CF], enumeram-se e so comentadas as mximas do modo de pensar, B 156-161.
(H) Kant desenvolveu profusamente a noo de orientao no opsculo: Que significa orientar-se no pensamento? (1786).
/ A 14, 15
15
ocorreram com plena confiana, sem antes se empreende-rem cuidadosas inquiries acerca da possibilidade do conhecimento a priori. Qual foi a causa de tal confiana da razo em si prpria? O sucesso presumido. Na matemtica, com efeito, a razo consegue conhecer a priori a constitui-o das coisas a priori, muito para alm de toda a expecta-tiva dos filsofos; porque no havia de caber filosofia o mesmo xito? (12) A matemtica evolui no terreno do sensvel em que a prpria razo pode construir os seus conceitos, isto , apresent-los (darstellen) a priori na intui-o e assim conhecer a priori os objectos; a filosofia, pelo contrrio, empreende um alargamento do conhecimento da razo por simples conceitos [num domnio] onde no possvel, como alm, pr diante de si os seus objectos, mas, por assim dizer, sobre ns pairam como no f16 ar; aos metafsicos no ocorreu, em vista da possibilidade do conhecimento a priori, fazer desta enorme diferena um problema importante. A extenso do conhecimento a priori, mesmo fora da matemtica, mediante simples conceitos e o seu contedo de verdade provam-se suficientemente pela consonncia de tais juzos e princpios com a experincia.
Ora, apesar de o supra-sensvel, para o qual tende, no entanto, o fim ltimo da razo na metafsica, no pos-suir solo algum para o conhecimento terico, os metafsi-cos prosseguiram mesmo assim confiadamente no seu caminho, guiados pelo fio condutor dos seus princpios ontolgicos, que so, sem dvida, de uma origem a priori, mas s valem para objectos da experincia; e embora a suposta aquisio de vistas transcendentes (iiberschwen-glicher Einsichten) por esta via no possa ser confirmada por experincia alguma, tambm no podia, justamente por se ater ao supra-sensvel, /1 7 ser impugnada por nenhuma experincia: importava apenas atender a que,
(12) Cf. nota 9, supra.
/ A i, 17
16
nos seus juzos, no se deixasse entrar nenhuma contradi-o consigo mesmo, o que perfeitamente factvel, mesmo
ue tais juzos e os conceitos que lhes subjazem possam, e resto, ser totalmente vazios.
Este rumo dos dogmticos, que provm de uma poca ainda mais antiga do que a de Plato e Aristteles e que engloba mesmo a de um Leibniz e de umWolff, , se no o correcto, pelo menos o mais natural segundo o fim da razo e a persuaso aparente de que tudo o que a razo empreende, por analogia com o procedimento que lhe trouxe o xito, lhe deve igualmente trazer o sucesso.
O segundo passo da metafsica, quase to antigo [como o primeiro], foi, pelo contrrio, um retrocesso, que teria sido sbio e vantajoso para a metafsica, se ele se prestasse a ser apenas ponto inicial de partida e no para a perma-necer, com a /1 8 resoluo de no buscar mais nenhum progresso, mas antes de o demandar numa nova direc-o (i 3).
Este retrocesso, que aniquila todos os projectos ulte-riores, baseava-se no insucesso total de todas as tentativas levadas a cabo na metafsica. Mas onde se podia conhecer o insucesso e o colapso dos seus grandes projectos? por-ventura a experincia, que os contradizia? De modo nenhum! Pois, o que a razo afirma como extenso a priori do seu conhecimento dos objectos da experincia possvel, tanto na matemtica como na ontologia, so passos reais em frente e devido aos quais ela est segura de ganhar terreno. No, so conquistas intentadas e supostas no campo do supra-sensvel, onde sobre a totalidade absoluta da natureza, por nenhum sentido apreendida, e igualmente
(13) Quanto histria filosfica da filosofia, cf. infira os fragmentos F3 c F5 das Lose Blatter (Folhas soltas); igualmente, o prefacio I ed. da CRP, e Prolegmenos, Intr. A3-22.
/ A l
17
sobre Deus, a liberdade e a imortalidade (14) que versa a questo, a qual concerne principalmente a estes trs ltimos objectos; a razo nutre a seu respeito um /19 interesse pr-tico e em vista deles fracassam todas as tentativas de exten-so eis o que divisamos no por um mais profundo conhecimento do supra-sensvel, enquanto metafsica supe-rior, que nos ensina o contrrio daquelas opinies, pois no as conhecemos como transcendentes (iiberschwenglich), mas, sim, pela existncia, na nossa razo, de princpios que opem a toda a proposio extensiva acerca de tais objectos uma proposio antagnica, aparentemente bem fundada, e porque a prpria razo que aniquila as suas tentativas (15).
Este rumo dos cpticos , naturalmente, algo de origem tardia, mas, apesar de tudo, assas antigo; e, ao mesmo tempo, continua a existir por toda a parte em muito boas cabeas, embora um interesse diferente do da razo pura obrigue muitos a dissimular aqui a impotncia da razo. A extenso da doutrina da dvida aos prprios princpios do conhecimento do sensvel e prpria /2 0 experincia, no pode considerar-se uma opinio sria, que teria tido lugar em alguma poca da filosofia, mas tornou-se talvez, para os dogmticos, um desafio a demonstrar os princpios a priori em que se baseia a prpria possibilidade da expe-rincia e, dada a incapacidade de tal conseguirem, a repre-sentar tambm a ltima como duvidosa.
O terceiro e mais recente passo que a metafsica deu e que deve decidir o seu destino a prpria crtica da razo pura, no tocante ao seu poder de alargar a priori o conhecimento humano em geral, quer em relao ao sen-
(14) Os objectos da metafsica so justamente Deus, a liber-dade e a imortalidade. Cf. CRP, Dial. tr., L. I, fim, B 395.
(15) Cf. a Antittica, CRP, Dial, tr., Cap. 2, sec. 2, B 448--465.
/ A 19,20
18
svel ou ao supra-sensvel. Se ela realizou o que promete, a saber, determinar o alcance, o contedo e as fronteiras desse poder, se o levou a cabo na Alemanha e, justa-mente, desde a poca de Leibniz e de Wolff, ento resol-ver-se-ia o /21 problema posto pela Academia real das cincias.
H, pois, trs estdios que a filosofia devia percorrer em vista da metafsica. O primeiro era o estdio do dogma-tismo; o segundo, o do cepticismo; o terceiro, o do criti-cismo da razo pura. Esta ordem cronolgica funda-se na natureza da humana faculdade de conhecer. Depois de cobertos os dois primeiros, o estado da metafsica pode manter-se oscilante ao longo de muitas geraes, saltando de uma confiana ilimitada da razo em si mesma para a suspeita ilimitada e, de novo, desta para aquela. Mas, mediante uma crtica do seu prprio poder, colocar-se-ia ela num estado consistente, no s no exterior, mas tam-bm internamente, no precisando, alm disso, ou mesmo j nem sequer sendo capaz, de uma extenso ou de uma restrio.
/ A 21
19
/ " TRATADO
A soluo do problema em causa pode apresentar-se em duas seces: uma prope o elemento formal do pro-cedimento da razo, enquanto uma cincia teortica; a outra deriva deste procedimento o elemento material o fim ltimo, que a razo visa com a metafsica, quer ele seja ou no alcanado.
A primeira parte apresentar apenas os passos que recen-temente se deram em direco metafsica; a segunda, o prprio progresso da metafsica no campo da razo pura. A primeira contm o novo estado da filosofia transcenden-tal; a segunda, o da metafsica propriamente dita.
/ A 22
21
j2i PRIMEIRA SECO
HISTRIA DA FILOSOFIA TRANSCENDENTAL NA NOSSA POCA
O primeiro passo, que teve lugar nesta investigao da razo, foi a distino entre os juzos analticos e sintticos em geral (16). Se ela tivesse sido claramente conhecida nos tempos de Leibniz e de Wolff, encontraramos esta distino no s mencionada em qualquer Lgica ou Metafsica desde ento publicada, mas tambm sublinhada como importante. Com efeito, o juzo do primeiro tipo sempre um juzo a priori e conexo com a conscincia da sua necessidade. O segundo pode ser emprico e a lgica I24 no pode indicar a condio sob a qual teria lugar um juzo sinttico a priori.
(16) Sobre a distino entre juzos analticos e sintticos, cf. infra Suplemento I, A 155 e ss., CRP, Anal. dos Pr., Cap. 2, B 187--202 e Prolegmenos, par. 2-5.
/ A 23, 24
23
O segundo passo consiste em unicamente se ter knr ado a questo: como so possveis juzos sintticos a priori? Que eles existem, provam-no numerosos exemplos da cincia geral da natureza, e sobretudo da matemtica pura. Hume tem j o mrito de aduzir um caso, a saber, o da lei da causalidade, pelo qual meteu em dificuldades todos os metafsicos. Que aconteceria se ele, ou qualquer outro, tivesse proposto os [casos] na sua generalidade? Haveria que pr de lado toda a metafsica at se resolver a questo (17).
O terceiro passo o problema: Como possvel um conhecimento a priori por juzos sintticos? O conheci-mento um juzo do qual brota um conceito que tem realidade objectiva, isto , ao qual /2 5 se pode dar um objecto correspondente na experincia. Toda a experin-cia, porm, consta da intuio de um objecto, isto , de uma representao imediata e nica, pela qual o objecto dado como que ao conhecimento, e de um conceito, isto , de uma representao mediata numa caracterstica que comum a vrios objectos, podendo ele assim ser pensado. Por si s, nenhum dos dois tipos de represen-taes constitui um conhecimento; e se deve haver conhe-cimentos sintticos a priori, devem ento dar-se tambm intuies e conceitos a priori, de que importa, primeiro, explicar a sua possibilidade e, em seguida, demonstrar a sua realidade objectiva atravs do seu uso necessrio em vista da possibilidade da experincia (18).
Uma intuio, que deve ser possvel a priori, pode apenas concernir forma sob a qual o objecto intudo;
(17) Sobre Hume e a causalidade, cf. igualmente Prolegme-nos, A 7-10, 13-18, par. 27, A 97-98.
(18) Aqui, faz-se referncia s duas etapas sucessivas o momento metafsico e o momento transcendental cujo distino Kant indica na CRP, Deduo, par. 26, B 159-165.
/A 25
24
pois, representar-se algo a priori significa fazer-se dele uma representao antes da j 2 6 percepo, isto , antes da cons-cincia emprica e independentemente da mesma. Mas o emprico na percepo, a sensao ou a impresso (impres-sio), a matria da intuio, na qual, portanto, a intuio no seria uma representao a priori. Ora, uma tal intuio, que simplesmente concerne forma, chama-se intuio pura, a qual, se houver de ser possvel, ter de ser inde-pendente da experincia.
No , porm, a forma do objecto (Objekt), tal como em si, mas a forma do sujeito, a saber, do sentido, seja de que espcie for a representao de que ele capaz, a que torna possvel a intuio a priori. Com efeito, se a forma houvesse de tirar-se dos prprios objectos (von den Objekten), deveramos previamente percepcion-los e s nesta percepo nos poderamos tornar conscientes da sua natureza. Mas, ento, seria uma intuio emprica a priori. De se ela ou no /2 7 a priori em breve nos poderemos convencer, se atendermos a que o juzo, que atribui esta forma ao objecto (Objekt), traz ou no consigo a necessi-dade, pois, no ltimo caso, simplesmente emprico(19).
A forma do objecto (Objekt), tal como se pode repre-sentar apenas numa intuio a priori, no se funda, pois, na natureza (Beschaffenheit) do objecto (Objekt) em si, mas na constituio natural do sujeito, que capaz de instituir uma representao intuitiva do objecto; e este [elemento] subjectivo na natureza formal do sentido, enquanto receptividade (Empfnglichkeit) para a intuio de um objecto, aquilo que unicamente torna possvel a priori, isto , anteriormente a toda a percepo, a intuio a priori; e, doravante, esta ltima e a possibilidade de ju-
(19) A respeito de a priori e necessidade, cf. CRP (B), Int. I eH.
/A 26, 27
25
zos sintticos a priori podem compreender-se bem pelo lado da intuio.
/28 Pode, pois, saber-se a priori como e sob que forma os objectos dos sentidos sero intudos, a saber, segundo a forma subjectiva da sensibilidade, isto , da receptividade do sujeito para a intuio desses objectos (Objekte), e, rigorosamente, no se deveria dizer que a forma do objecto (Objekt) por ns representada na intuio pura, mas que se trata da condio simplesmente formal e subjectiva da sensibilidade, sob a qual intumos a priori os objectos dados.
Eis, pois, a natureza prpria da nossa intuio (humana), na medida em que nos possvel a representao dos objectos s como seres sensveis. Poderamos, sem dvida, imaginar uma espcie de representao imediata (directa) de um objecto que no intua os objectos (Objekte) segundo as condies da sensibilidade, mas s mediante o entendi-mento. Mas dela no temos nenhum conceito /2 9 con-sistente; contudo, importa pensar uma assim a fim de no sujeitarmos nossa forma de intuio todos os seres que tm uma faculdade de conhecer. Pois, pode acontecer que alguns seres mundanos consigam intuir os mesmos objectos sob outra forma; igualmente possvel que essa forma seja, e de modo necessrio, a mesma em todas as criaturas; e, no entanto, no discernimos melhor esta necessidade do que a possibilidade de um entendimento supremo que, isento, no seu conhecimento, de toda a sensibilidade e, ao mesmo tempo, da necessidade (Bediirfnis) de conhecer por conceitos, conhece perfeitamente os objectos na simples intuio (intelectual) (20).
Ora, a crtica da razo pura prova que as representa-es de espao e tempo so intuies puras e tais como
(20) Kant aborda aspectos da intuio humana (intuitos deri-vativus), na CRP, Est. tr., Abservaes gerais, par. 8, B 59-73.
/ A 2 , 2 9
26
exigamos que deveriam ser para servir de fundamento a priori a todo o nosso conhecimento das coisas, e posso /30 a ela votar-me confiadamente, sem me preocupar com as objeces.
Quero apenas observar ainda que, em relao ao sen-tido interno, o duplo Eu na conscincia de mim mesmo, a saber, o da intuio sensvel interna e o do sujeito pen-sante, parece a muitos pressupor dois sujeitos numa pes-soa.
Eis, pois, a teoria: espao e tempo nada mais so do que formas subjectivas da nossa intuio sensvel e de modo algum determinaes prprias dos objectos (Objekte) em si; e precisamente por isso, podemos determinar a priori estas nossas intuies pela conscincia da necessidade (Notwendigkeit) dos juzos quando os determinamos, como, por exemplo, na geometria. Determinar, porm, significa julgar sinteticamente.
Esta teoria pode chamar-se a doutrina da idealidade do espao e do tempo, porque so representados como algo que no est inerente /3 x s coisas em si doutrina que no simples hiptese de poder explicar a possibili-dade do conhecimento sinttico a priori, mas verdade demonstrada, porque absolutamente impossvel esten-der o seu conhecimento para alm do conceito dado sem recorrer a alguma intuio e, se tal alargamento deve ter lugar a priori, sem recorrer a uma intuio a priori; e uma intuio a priori , por seu turno, impossvel sem a procurar na constituio (Beschaffenheit) formal do sujeito, no na do objecto (Objekt), porque, sob o pressuposto da primeira, todos os objectos dos sentidos so representados na intui-o em conformidade com ela, por conseguinte, devem ser conhecidos a priori e, de acordo com esta natureza, como necessrios, ao passo que, se se aceitasse a ltima,
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os juzos sintticos a priori seriam empricos e contingen-tes o que contraditrio.
/32 No entanto, a idealidade do espao e do tempo simultaneamente uma doutrina da sua realidade perfeita em relao aos objectos dos sentidos (externos e interno) enquanto fenmenos, isto , como intuies, na medida em que a sua forma depende da natureza subjectiva dos senti-dos, cujo conhecimento, por se fundar em princpios a priori da intuio pura, permite uma cincia segura e demonstrvel; por conseguinte, o [elemento] subjectivo, o que concerne natureza da intuio sensvel quanto ao seu [elemento] material, a saber, a sensao (por exemplo, corpo colorido sob a luz, sonoro quando ressoa, ou cido se condimentado, etc.), permanece simplesmente subjec-tivo e no prope, na intuio emprica, nenhum conhe-cimento do objecto (Objekt), por conseguinte, nenhuma representao vlida para todos, e dele no pode fornecer exemplo algum por no conter, como o espao e tempo, dados para conhecimentos a priori /3 3 e por no se con-siderarem, em geral, como conhecimento dos objectos (Objekte).
Alm disso, h ainda a notar que um fenmeno, tomado em sentido transcendental, quando das coisas se diz so fenmenos (phaenomena) , um conceito com um significado inteiramente diverso de quando eu digo esta coisa aparece-me assim ou assado o que deve indicar a manifestao fsica, e se pode chamar aparna (Apparenz oder Schein) (2l). Pois, na linguagem da expe-
(21) A palavra portuguesa fenmeno traduz os termos Pha-nomenon e Erscheinung, que Kant nunca contunde. A Erscheinung o objecto indeterminado de uma intuio emprica, CUP, Est. tr., par. i; o Phanomenon a Erscheinung quando pensada e determi-nada, tornada objecto da percepo, e no apenas objecto da sen-sao (Ibid., par. 14).
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rincia, os objectos dos sentidos, visto que os posso com-parar apenas com outros objectos dos sentidos, por ex., o cu com todas as suas estrelas, embora seja justamente um simples fenmeno (Erscheinung), so pensados como coi-sas em si; e ao dizer-se que ele tem o aspecto (Anschein) de uma abbada, a aparncia (Schein) significa aqui o [elemento] subjectivo na representao de uma coisa, o que pode ser uma causa de, num juzo, falsamente o con-siderar objectivo.
/3 4 E assim a proposio todas as representaes dos sentidos nos do apenas a conhecer os objectos como fenmenos (Erscheinungen) no coincide com o juzo de que elas contm unicamente a aparncia (Schein) dos objectos, como afirmaria o idealista (22).
Mas, na teoria de todos os objectos dos sentidos, enquanto simples fenmenos, o que mais estranho e surpreendente que eu, enquanto objecto do sentido interno, isto , considerado como alma, posso conhecer-me a mim mesmo unicamente como fenmeno, e no segundo o que eu sou enquanto coisa em si; e, no entanto, a repre-sentao do tempo, como simples intuio interna e for-mal a priori, que subjaz a todo o conhecimento de mim mesmo, no proporciona nenhuma outra espcie de expli-cao da possibilidade de reconhecer essa forma como condio da autoconscincia.
O [elemento] subjectivo na forma da sensibilidade, que subjaz a priori a toda a intuio dos objectos (Objekte), tornou-nos /3 5 possvel ter um conhecimento a priori dos objectos tal como eles nos aparecem. Queremos, agora, determinar ainda mais esta expresso, definindo o [ele-mento] subjectivo como o tipo de representao, segundo
(22) Sobre a confuso idealista, cf. tambm CRP, Est. tr. par. 8, Dl, B 69-71, e tambm Proiegmenos, A 62-71, par. 49, A 139-142.
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o qual o nosso sentido afectado pelos objectos, externos ou interno (isto , por ns mesmos), a fim de podermos dizer que os conhecemos to s como fenmenos.
'Sou consciente de mim mesmo' um pensamento que contm j um duplo eu, o eu como sujeito e o eu como objecto (Objekt). absolutamente impossvel expli-car, embora seja um facto (Factum) indubitvel, como possvel que eu, o eu penso, seja para mim mesmo um objecto (da intuio) e possa assim distinguir-me de mim mesmo; mas isso revela um poder de tal modo elevado sobre toda a intuio sensvel que tem por consequncia, enquanto fundamento da possibilidade de um entendi-mento, a total separao relativamente a todo o animal, ao qual no temos nenhum motivo para lhe atribuir a capacidade de a si mesmo /3 6 dizer: Eu, e que transparece numa infinidade de representaes e conceitos esponta-neamente formados (selbstgemachten). No se tenciona assim afirmar uma dupla personalidade; apenas o Eu, que pensa e intui, a pessoa; mas o Eu do objecto (Objekt), que por mim intudo, , analogamente aos outros objectos fora de mim, a coisa.
Do Eu no primeiro sentido (do sujeito da apercepo), do Eu lgico, enquanto representao a priori, nada mais se pode absolutamente conhecer quanto ao seu ser e sua constituio natural; , por assim dizer, e similarmente ao substancial (das Substantiate), o que permanece quando tirei todos os acidentes que lhe so inerentes, mas que no se pode absolutamente conhecer mais, porque os aciden-tes eram justamente aquilo em que eu podia conhecer a sua natureza.
\ i l Mas o Eu, na segunda acepo (como sujeito da percepo), o Eu psicolgico, enquanto conscincia emp-rica, capaz de mltiplos conhecimentos, entre os quais a forma da intuio interna, o tempo, a que subjaz a
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priori a todas as percepes (23) e sua ligao, cuja apreen-so (apprehensio) conforme maneira como o sujeito por tal afectado, isto , condio do tempo, pois o Eu sensvel determinado pelo Eu intelectual para a recep-o da mesma na conscincia.
Toda a observao psicolgica interna, por ns empreendida, nos pode servir de prova e exemplo de que isso assim, pois se exige que, pela ateno, afectemos o sentido interno o que, em parte, pode ir at ao grau da fadiga (os pensamentos, enquanto determinaes efec-tivas da faculdade representativa, pertencem tambm representao emprica do nosso estado) para termos pri-meiramente na intuio de ns mesmos um /3 8 conheci-mento do que nos apresenta o sentido interno, conheci-mento que, em seguida, unicamente nos representa a ns como nos aparecemos, ao passo que o Eu lgico revela o sujeito tal como em si, numa conscincia pura, no como receptividade mas como pura espontaneidade, sendo, porm, incapaz de conhecer a sua natureza.
Dos conceitos a priori
A forma subjectiva da sensibilidade, se se aplicar, como tal deve acontecer, segundo a teoria dos seus objectos enquanto fenmenos, a objectos (Objekte) enquanto suas formas, suscita na sua determinao uma representao que dela inseparvel, a saber, a do composto. Com efeito, no nos podemos representar um determinado espao seno ao tra-lo, isto , ao juntarmos um espao a outro, e o mesmo se passa com o tempo.
(23) Sobre o tempo como forma do sentido interno e condi-o formal a priori de todos os fenmenos em geral, cf. CRP, Est. tr., par. 6, b e c, B 49-53.
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Ii9 Ora, a representao de um composto enquanto tal no simples intuio, mas exige o conceito de uma composio, ao aplicar-se intuio no espao e no tempo. Portanto, este conceito (juntamente com o do seu con-trrio, o simples) um conceito que no tirado das intui-es como uma representao parcial nelas contida, mas um conceito fundamental (Gmndbegriff) e, sem dvida, a priori, por fim, o nico conceito fundamental a priori que subjaz originariamente, no entendimento, a todos os conceitos de objectos dos sentidos.
Haver, pois, no entendimento, tantos conceitos a priori, sob os quais devem estar os objectos dados nos sen-tidos, quantas so as espcies de composio (sntese) com conscincia, isto , quantas as espcies de unidade sinttica da apercepo do diverso dado na intuio.
/40 Ora, estes conceitos so os puros conceitos de entendimento de todos os objectos que podem apresen-tar-se aos nossos sentidos; representados sob o nome de categorias por Aristteles, embora mesclados com con-ceitos de outra espcie e, sob o nome de predicamentos pelos escolsticos, com o mesmo defeito, teriam podido apresentar-se num quadro sistematicamente organizado, se o que a lgica ensina da multiplicidade na forma dosjuzos se tivesse previamente proposto na conexo de um sis-tema.
O entendimento manifesta o seu poder simplesmente nos juzos, os quais nada mais so do que a unidade da conscincia na relao dos conceitos em geral, sem decidir se essa unidade analtica ou sinttica (24) Ora, os puros conceitos do entendimento de objectos em geral dados na intuio so justamente as mesmas funes lgi-cas, mas s enquanto representam a priori a unidade sin-
(24) Kant fala da unidade sinttica e analtica na CRP, Ded. tr., B, par. 16.
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ttica da apercepo /4 1 do mltiplo dado numa intuio em geral; portanto, o quadro das categorias podia deli-near-se inteiramente de modo paralelo quele quadro lgico (25), o que nunca aconteceu, porm, antes do apa-recimento da Crtica da razo pura.
Mas importa observar que as categorias ou, como agora usualmente se chamam, os predicamentos, no pres-supem nenhuma espcie determinada da intuio (como, por exemplo, a nica que a ns, homens, possvel) como o espao e o tempo, que sensvel, mas so unicamente formas de pensamento (Denkformen) para o conceito de um objecto da intuio em geral, seja esta de que espcie for, mesmo que fosse uma intuio supra-sensvel, da qual no nos podemos fazer especificamente conceito algum. Pois, temos sempre de nos fazer, por meio do entendi-mento puro, um conceito de um objecto acerca do qual queremos julgar algo a priori, mesmo se, depois, desco-brirmos que transcendente (iiberschwenglich) e nenhuma realidade objectiva /42 lhe pode ser atribuda; pelo que a categoria no , por si mesma, dependente das formas da sensibilidade, espao e tempo, mas pode tambm a si sujeitar outras formas no pensveis para ns, se elas disserem simplesmente respeito ao [elemento] subjectivo que precede a priori todo o conhecimento e torna possveis os juzos sintticos a priori,
Pertencem ainda s categorias, enquanto conceitos originrios do entendimento, os predicveis como pro-venientes daquela sua composio, por conseguinte, con-ceitos a priori derivados dos conceitos do entendimento, ou puros ou sensivelmente condicionados; dos primeiros poma dar-se como exemplo a existncia (Dasein) repre-sentada como quantidade, isto , a durao, ou a mudana como existncia com determinaes opostas; e [como
(25) Cf. CRP, Anal. dos Conceitos, par. io.
/ A 41, 42
33 r.u."i
exemplo] dos segundos, o conceito de movimento enquanto mudana de lugar no espao; e poderiam igualmente enu-merar-se de um modo completo e representar-se sistema-ticamente num quadro.
/43 A filosofia transcendental, isto , a doutrina da possibilidade de todo o conhecimento a priori em geral, que a crtica da razo pura, cujos elementos foram hoje em dia integralmente expostos, tem por objectivo o fun-damento (Grundung) de uma metafsica; o fim desta, por seu turno, enquanto fim ltimo da razo pura, intenta a sua extenso da fronteira do sensvel ao mbito do supra--sensvel, o que constitui uma ultrapassagem (Uberschritt) que, para no ser um salto perigoso, e no sendo tambm um avanar contnuo na mesma ordem dos princpios, torna imperiosa, na fronteira dos dois domnios, a sus-peita que trava o progresso.
I44 Daqui se segue a diviso dos estdios da razo pura em doutrina da cincia, como progresso assegurado, a doutrina da dvida, enquanto paragem, e a dou-trina da sabedoria, como ultrapassagem para o fim ltimo da metafsica, de maneira que a primeira conter uma doutrina teortico-dogmtica, a segunda uma disciplina cptica, e a terceira uma [disciplina] prtico-dogmtica.
/ A 43, 44
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/45 PRIMEIRA SECO Da extenso do uso teortico-dogmtico da
razo pura
O contedo desta seco a proposio: o mbito do conhecimento terico da razo pura no se estende alm dos objectos dos sentidos.
Nesta proposio, considerada como juzo exponvel, esto contidas duas proposies:
i) a razo, enquanto faculdade do conhecimento das coisas a priori estende-se aos objectos dos sentidos;
2) no seu uso teortico, capaz de [produzir] con-ceitos, mas nunca um /4 6 conhecimento teortico do que no pode ser objecto dos sentidos.
prova da primeira proposio pertence tambm o exame de como possvel um conhecimento a priori de objectos dos sentidos, porque, sem isso, no podemos estar certos de se os juzos acerca de tais objectos so efectivamente conhecimentos; mas, no tocante sua propriedade de serem juzos a priori, ela anuncia-se a si mesma mediante a conscincia da sua necessidade.
/ A 45, 46
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Para que uma representao seja conhecimento (en-tendo aqui sempre um conhecimento terico), preciso que o conceito e a intuio de um objecto estejam ligados na mesma representao, de maneira que o primeiro seja representado tal como ele em si contm a ltima. Se, pois, um conceito um conceito tirado da representao sen-svel, isto , se emprico, contm como caracterstica (Merkmal)(26), quer dizer, como representao /47 par-cial, algo que j estava compreendido (begriffen) na intui-o sensvel e que s pela forma lgica, a saber, segundo a generalidade, se distingue da intuio dos sentidos; por exemplo, o conceito de um animal quadrpede na representao de um cavalo.
Mas, se o conceito uma categoria, um puro conceito do entendimento, reside inteiramente fora de toda a intui-o; e, contudo, h que submeter-lhe uma intuio se ele houver de ser utilizado como conhecimento; e se este conhecimento tiver de ser um conhecimento a priori, importa submeter-lhe uma intuio pura e, certamente, em conformidade com a unidade sinttica da apercepo do mltiplo da intuio, a qual pensada pela categoria, isto , a faculdade representativa deve submeter ao puro conceito de entendimento um esquema a priori, sem o que no poderia ter nenhum objecto e, por conseguinte, no serviria para conhecimento algum (2').
Ora, uma vez que todo o conhecimento, de que o homem capaz, sensvel, e visto que a sua intuio a priori /4 8 o espao ou o tempo, ambos representando os objectos apenas como objectos dos sentidos e no como coisas em geral, o nosso conhecimento terico em geral,
(26) A propsito da noo de caracterstica, d. Lgica VIII, A 84-98.
(27) Sobre a noo de esquema, cf. CRP, An. dos Pr., Cap. I, B 176-187.
/ A *\ *
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embora possa ser conhecimento a priori, restringe-se con-tudo aos objectos dos sentidos e pode proceder de modo, sem dvida, dogmtico no interior deste mbito, mediante leis que ele prescreve a priori natureza enquanto totali-dade dos objectos dos sentidos, mas sem jamais ir alm desta esfera, para se alargar teoricamente com os seus conceitos.
O conhecimento dos objectos dos sentidos enquanto tais, isto , por intermdio de representaes empricas de que se consciente (por percepes ligadas), a expe-rincia (28). Por consequncia, o nosso conhecimento te-rico nunca vai alm do campo da experincia. Ora, visto que todo o conhecimento terico deve estar em conso-nncia com a experincia, isso s possvel de uma ou de outra maneira, a saber, ou a experincia o fundamento do nosso I49 conhecimento, ou o conhecimento o fun-damento da experincia. Portanto, se existe um conheci-mento sinttico a priori, a nica sada que ele deve conter as condies a priori da possibilidade da experincia em geral. Mas, por isso, contm ele tambm as condies da possibilidade dos objectos da experincia em geral; com efeito, s pela experincia podem eles ser, para ns, objec-tos cognoscveis. Porm, os princpios (Prinzipien) a priori, s em virtude dos quais a experincia possvel, so as formas dos objectos, espao e tempo, e as categorias, que encerram a unidade sinttica da conscincia a priori, en-quanto nelas podem ser subsumidas representaes emp-ricas.
A tarefa mais elevada da filosofia transcendental , pois: como possvel a experincia?
O princpio (Grundsatz) de que todo o conhecimento no depende s da experincia concerne a uma quaestio
(28) Kant fala da experincia na CRP, An. dos Pr., 3.0, Analo-gias da Experincia, b 218-219.
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facti, portanto, no vem aqui a propsito, e o facto reco-nhecido /5- sem hesitao. Mas a questo de se ele se deve derivar (ableiten) unicamente da experincia, como princpio supremo do conhecimento, uma quaestio iuris; a resposta afirmativa introduziria o empirismo da filosofia transcendental; a negao, o seu racionalismo.
O primeiro uma contradio consigo mesmo; pois, se todo o conhecimento de origem emprica, ento sem prejuzo da reflexo e do seu princpio lgico, segundo o princpio de contradio, reflexo que sempre possvel fundar a priori no entendimento e que sempre pode admitir-se, o [elemento] sinttico do conheci-mento, que constitui o essencial da experincia, simples-mente emprico e s possvel como conhecimento a pos-teriori; e a filosofia transcendental ela mesma uma absur-didade (Unding).
Mas como, apesar de tudo, impossvel contestar proposies que prescrevem a priori as regras da experin-cia possvel, por exemplo, toda a mudana tem a sua causa, a sua estrita generalidade e necessidade, e assim tambm o seu /51 carcter sinttico, o empirismo, que faz passar toda a unidade sinttica das representaes no nosso conhe-cimento por simples questo de hbito, de todo insus-tentvel, e existe uma filosofia transcendental solidamente fundada na nossa razo, pois, se se quisesse represent-la como a si mesma se aniquilando, introduzir-se-ia um outro problema, absolutamente insolvel. Como que os objectos dos sentidos obtm o nexo e a regularidade da sua coexistncia de modo a ser possvel ao entendi-mento apreend-los sob leis universais e a descobrir a sua unidade segundo princpios, unidade que o princpio de contradio s por si no satisfaz, eis porque, neste mo-mento, se deve apelar inevitavelmente para o raciona-lismo.
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Se, pois, nos vemos compelidos a buscar um princpio a priori da possibilidade da experincia, a questo, ento, esta: /52 qual? Todas as representaes que constituem uma experincia podem atribuir-se sensibilidade, excepto uma s, ou seja, a do composto (des Zusammengesetzten) enquanto tal.
Visto que a composio no pode cair sob os sentidos, mas ns prprios a devemos fazer, no depende ento da receptividade da sensibilidade, mas da espontaneidade do entendimento, como conceito a priori.
Espao e tempo, subjectivamente considerados, so formas da sensibilidade, mas para deles, enquanto objec-tos (Objekte) da intuio pura, se fazer um conceito (sem o qual nada a seu respeito poderamos dizer), exige-se a priori o conceito de um composto, por conseguinte, da composio (sntese) do diverso, por consequncia, a uni-dade sinttica da apercepo na ligao deste diverso, uni-dade da conscincia que, segundo a diversidade das repre-sentaes intuitivas dos objectos no espao e no tempo, exige diversas funes para os /53 ligar, e chamam-se elas categorias; e so conceitos a priori do entendimento que, sem dvida, por si ss, no fundam ainda nenhum conhe-cimento de um objecto em geral, mas, sim, do que dado na intuio emprica o que seria, ento, a experincia. Mas o emprico, isto , aquilo pelo qual um objecto representado, quanto sua existncia (Dasein), como dado, chama-se sensao (sensatio, impressio)(29), que constitui a matria da experincia e se chama, quando ligada conscincia, percepo (3 ); a ela se deve ainda acrescentar a forma, isto , a unidade sinttica da sua apercepo no entendimento (forma que, por conseguinte,
(29) Sobre a sensao, cf. CRP, Est. tr., par. i. (30) A propsito da percepo, cf. CRP, An. dos Pr., Cap. II,
sec. 3, 2.
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pensada a priori), a fim de suscitar a experincia enquanto conhecimento emprico; para isso, visto que no percebe-mos imediatamente o prprio espao e tempo como aquilo em que temos de assinalar, mediante conceitos, o seu lugar a cada objecto (Objekt) da percepo, so necessrios princpios a priori, segundo puros conceitos do entendi-mento, que I5* provam a sua realidade pela intuio sen-svel e, em ligao com esta, pela sua forma dada a priori, tornam possvel a experincia, a qual um conhecimento a posteriori totalmente certo.
Contra esta certeza levanta-se, porm, no tocante experincia externa, uma dvida importante: no de que o conhecimento dos objectos (Objekte) por meio dela seja talvez incerto, mas de se o objecto (Objekt), que pomos fora de ns, no poderia possivelmente estar sempre em ns e, assim, seja impossvel reconhecer com certeza algo fora de ns enquanto tal. A metafsica, se esta questo ficasse totalmente por decidir, nada perderia dos seus pro-gressos, porque as percepes a partir das quais, e tambm da forma da intuio nelas [presente], constitumos a expe-rincia segundo princpios, mediante as categorias, podem estar sempre em ns; e se a elas corresponde /5 5 ou no algo fora de ns no modificaria em nada a extenso do conhecimento, pois, se no pudermos ater-nos aos objectos (Objekte), podemos ater-nos simplesmente nossa per-cepo, que est sempre em ns.
Daqui se segue o princpio da diviso de toda a meta-fsica: do supra-sensvel, pelo que toca ao poder especula-tivo da razo, nenhum conhecimento possvel (noume-norum non datur scientia) (31).
(31) Dos nomenos no h cincia. Sobre os nomenos, cf.
/ A 34, 55
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Eis o que, muito recentemente, aconteceu e tinha de acontecer na filosofia transcendental antes de a razo (Vemunft) ter podido dar um passo na metafsica propria-mente dita, mais ainda, um passo apenas em direco a ela, enquanto que a filosofia leibnizio-wolffiana prosseguia confiadamente o seu caminho na Alemanha, numa outra parte, julgando ter posto nas mos dos filsofos, alm do velho princpio aristotlico de contradio, uma nova bssola para /5 6 orientao, a saber, o princpio de razo suficiente (Satz des zureichenden Grundes) da existncia das coisas, por oposio sua simples possibilidade segundo conceitos, e o princpio da diferena entre as representaes obscuras, claras, mas ainda confusas, e as representaes distintas, para a discriminao entre a intuio e conheci-mento mediante conceitos. Entretanto, porm, com todo este trabalho, permaneceu sempre, sem saber, apenas no campo da lgica e no deu nenhum passo em direco metafsica e menos ainda dentro dela, provando assim que no tivera nenhum conhecimento distinto da diferena entre juzos sintticos e analticos.
A proposio Tudo tem a sua razo que se conecta com esta Tudo uma consequncia s pode pertencer lgica, e a diferena s pode existir entre os juzos que so pensados problematicamente e os que devem ter valor assertrico; e tal distino simplesmente analtica, pois, se houvesse de valer para todas as coisas, /5 7 a saber, que todas as coisas deveriam considerar-se ape-nas como consequncias da existncia de uma outra, a
CRP, An. dos Pr., Cap. Ill, B 294-315 e Prolegmenos, par. 32,
E conscientemente que opto, doravante, pelo termo nomenos (em vez do difundido vocbulo nmenos); com efeito, o termo kantiano noumena (em latim intelligibilia) deriva, por ttanslitcra3o, do grego voopcva e no pode dar em portugus seno nomenos, por transformao do ditongo ou em u.
I A 56, 57
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razo suficiente, que, no entanto, se tinha em vista, no se encontraria em lado algum; contra esta absurdidade procurou-se, em seguida, refgio na proposio de que uma coisa (ens a se) teria sempre uma razo da sua existn-cia, mas t-la-ia em si mesma, isto , que ela existiria como uma consequncia de si mesma. Por aqui se v, se a absur-didade no se torna manifesta, que o princpio no poderia ter validade para as coisas, mas unicamente para os juzos e, evidentemente, s para os analticos. Por exemplo, a proposio Todo o corpo divisvel tem certa-mente uma razo (Grund) e, claro, em si mesma, isto , pode ver-se como a concluso do predicado a partir do conceito do sujeito, segundo o princpio de contradio, por conseguinte, segundo o princpio dos juzos analticos; est, portanto, simplesmente fundada num princpio a priori da lgica e no d passo algum no campo da metaf-sica, onde est /5 8 em jogo a extenso do conhecimento a priori, para o que nada contribuem os juzos analticos. Mas, se o pretenso metafsico (32) quisesse, alm do prin-cpio de contradio, introduzir tambm o princpio igualmente lgico da razo [suficiente], no teria ainda enumerado plenamente a modalidade dos juzos; com efeito, deveria tambm acrescentar o princpio de exclu-so de um intermdio entre dois juzos contraditoriamente opostos, pois, s ento teria exposto os princpios lgicos de possibilidade, de verdade ou de realidade (Wirklichkeit) lgica, e de necessidade dos juzos, nos juzos problemti-cos, assertricos e apodcticos, enquanto todos eles se encontram sob um nico princpio, a saber, o princpio dos juzos analticos. Esta omisso demonstra que o pr-prio metafsico no estava de todo esclarecido em lgica, no tocante exaustividade da diviso.
(32) Neste contexto, Kant visa Eberhard.
/ A 5 8
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I59 Quanto ao princpio leibniziano da diferena lgica entre a indistino e a claridade das representaes, assere ele que a primeira espcie de representaes, por ns chamada simples intuio, efectivamente apenas o conceito confuso do seu objecto, por conseguinte, a intui-o no difere especificamente do conceito das coisas, mas s segundo o grau da conscincia, de maneira que, por exemplo, a intuio de um corpo acompanhada pela uni-versal conscincia de todas as representaes a contidas forneceria o conceito de tal corpo como de um agregado de mnadas: em contrapartida, o filsofo crtico observar que, desse modo, a proposio os corpos constam de mnadas podia provir da experincia, simplesmente por desmembramento da percepo, se apenas pudssemos dispor de uma vista assas penetrante (com a devida cons-cincia das representaes parciais). Mas, porque a coexis-tncia destas mnadas representada como possvel j 6 0 unicamente no espao, este metafsico da velha guarda deve apresentar-nos o espao como uma representao simplesmente emprica e confusa da justaposio do ml-tiplo reciprocamente exterior.
Mas, como est ele ento em estado de declarar como apodctica a priori a proposio o espao tem trs dimenses? Pois, nem pela mais clara conscincia de todas as representaes parciais de um corpo poderia con-cluir que assim deve ser, mas, quando muito, apenas que isso tal como lho ensina a percepo. Se, porm, ele considera o espao com a sua propriedade das trs dimen-ses como o fundamento necessrio e a priori de toda a representao dos corpos, como explicar ento esta neces-sidade, que ele, contudo, no poder escamotear, visto que esta espcie de representao, segundo a sua prpria afirmao, de origem simplesmente emprica, que no suscita necessidade alguma? Mas, se pretender tambm I61 esquivar-se a esta exigncia e admitir o espao com a
/ A 59, 60,61
43
sua propriedade, se bem que isso lhe seja fornecido com aquela representao pretensamente confusa, demonstra--lhe ento a geometria, por conseguinte, a razo, no mediante conceitos que pairam no ar, mas pela construo dos conceitos, que o espao e, assim, tambm o que o enche, o corpo, no consta absolutamente de partes sim-ples; no entanto, se quisssemos para ns tornar compreen-svel, por simples conceitos, a possibilidade do corpo, deve-ramos, sem dvida, comeando pelas partes e da ascen-dendo ao composto, pr na base o simples, tornando-se por fim foroso admitir que a intuio (tal como a repre-sentao do espao) e o conceito constituem, segundo a espcie, modos de representao totalmente diversos, e que a primeira no pode transformar-se no ltimo mediante a simples dissipao da confuso da representao j 6 2 . O mesmo se diga tambm a propsito da representao do tempo!
De como proporcionar realidade objectiva aos puros conceitos do entendimento e da razo
Representar um puro conceito do entendimento como pensvel num objecto de experincia possvel significa con-ferir-lhe realidade objectiva e, em geral, apresent-lo (darstellen). Quando isso no se pode levar a cabo, o con-ceito vazio, isto , no chega a nenhum conhecimento. Esta operao chama-se esquematismo, quando a realidade objectiva directamente (directe) atribuda ao conceito por meio da intuio a ele correspondente, isto , quando o conceito apresentado imediatamente; se, porm, no puder ser apresentado de modo imediato, mas s nas suas consequncias (indirccte), a operao pode cha-
/ A ,
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mar-se a simbolizao do conceito (3 3). O primeiro caso ocorre nos conceitos do sensvel; o segundo um recurso de emergncia para l6i conceitos do supra-sen-svel, que, portanto, no podem ser genuinamente apre-sentados, nem dados em nenhuma experincia possvel, mas pertencem necessariamente a um conhecimento, ainda que seja possvel s como [conhecimento] prtico.
O smbolo de uma ideia (ou de um conceito de razo) uma representao do objecto segundo a analogia, isto , segundo a relao a certas consequncias idntica quela que o objecto tem em si mesmo com as suas prprias con-sequncias, embora os objectos sejam de espcie inteira-mente diversa, por exemplo, ao representar-me certos produtos da natureza, como as coisas organizadas, animais ou plantas, em relao sua causa, como represento um relgio em relao ao homem, enquanto criador, a saber, a relao de causalidade, enquanto categoria, a mesma nos dois casos, mas o sujeito desta relao permanece para mim desconhecido na sua constituio interna /6 4 ; portanto, s ele me pode ser apresentado, no, porm, a ltima.
Deste modo, no posso ter verdadeiramente nenhum conhecimento terico do supra-sensvel, isto , de Deus, mas, apesar de tudo, posso ter um conhecimento por ana-logia, e, sem dvida, a que razo necessrio pensar; esto-lhe subjacentes as categorias, porque pertencem necessariamente forma do pensamento, esteja ele dirigido para o sensvel ou para o supra-sensvel, apesar de, e pre-cisamente em virtude de, por si mesmas, no determina-rem nenhum objecto e no constituirem nenhum conhe-cimento.
(33) A propsito de esquematismo c simbolizao, cf. CFJ, par. 59.
/ A 63, 64
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Da falcia de tentar garantir realidade objectiva aos conceitos de entendimento, prescindindo da sensibilidade
Segundo os simples conceitos do entendimento, uma contradio pensar como exteriores uma outra duas coisas que, no entanto, seriam de todo idnticas, rela-tivamente a todas as determinaes internas (da quantidade e da qualidade) j 6 S ; sempre apenas uma e mesma coisa duas vezes pensada (numericamente una).
Este o princpio dos indiscernveis de Leibniz, ao qual no concede a menor importncia mas que, no entanto, ofende asperamente a razo, porque inconceb-vel que uma gota de gua num lugar deva impedir *[ue uma gota perfeitamente semelhante se possa encontrar noutro lugar. Mas este escndalo prova logo que, para serem conhecidas, coisas no espao se devem representar no apenas como coisas em si, mediante conceitos do entendimento, mas tambm como fenmenos, segundo a sua intuio sensvel, e que o espao no , como Leibniz supunha, uma constituio ou relao das coisas em si, e que puros conceitos do entendimento por si ss no proporcionam conhecimento algum.
/ A 65
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/ SEGUNDA SECO Do que se conseguiu, desde a poca de Leibniz e
de Wolff, em relao ao objecto da metafsica, isto , do seu fim ltimo
Neste perodo, podem repartir-se os progressos da metafsica por trs estdios: o primeiro o do avano terico e dogmtico; o segundo, o da paragem cptica; o terceiro, o da efectivao prtico-dogmtica do seu caminho e da consecuo pela metafsica do seu fim ltimo (*). O pri-meiro decorre simplesmente no interior das fronteiras da I61 ontologia; o segundo, dentro dos [limites] da cosmolo-gia transcendental ou pura, que, enquanto doutrina da natureza, isto , cosmologia aplicada, tambm considera a metafsica da natureza corporal e a da natureza pensante, aquela como objecto dos sentidos externos, esta como objecto do sentido interno (physica et psychologia rationalis), segundo o que nelas cognoscvel a priori. O terceiro est-
(*) Ver acima.
/ A 66, 67
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dio o da teologia, com todos os conhecimentos a priori que a conduzem e a tornam necessria. Omite-se aqui, com razo, uma psicologia emprica que, segundo o uso universitrio, se imiscui episodicamente na metafsica.
/es Primeiro estdio da metafsica no tempo e no pais designados
O que concerne anlise dos puros conceitos de entendimento e dos princpios a priori utilizados para o conhecimento da experincia constitui a ontologia; no pode negar-se aos dois filsofos nomeados, sobretudo ao ilustre Wolff, o grande mrito de terem exercido maior clareza, preciso e esforo pela solidez demonstrativa do que alguma vez acontecera antes, ou fora da Alemanha, no domnio da metafsica. Mesmo sem denunciar a falta de I69 acabamento, visto que nenhuma crtica estabelecera um quadro das categorias segundo um princpio firme, a carncia de toda a intuio a priori, que no era reconhecida como princpio e que Leibniz, pelo contrrio, intelectuali-zara, isto , transformara em simples conceitos confusos, foi, no entanto, a causa de ele considerar impossvel o que no podia representar por simples conceitos do enten-dimento, e de estabelecer princpios que violentam o bom senso e no possuem solidez. O que- se segue inclui exem-plos da aberrao [resultante] de tais princpios.
i) O princpio da identidade dos indiscernveis (principium identitatis indiscemibilium) [afirma] que, se de A e de B, que so totalmente idnticos do ponto de vista de todas as suas determinaes internas (da qualidade e da quantidade), formarmos um conceito de como se fos-sem duas coisas, nos enganamos e que temos de as tomar como uma s e mesma coisa /70 (numero eadem). Que, no entanto, as podemos distinguir pelos lugares no espao,
/ A , 69, 70
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visto espaos perfeitamente semelhantes e iguais poderem ser representados como exteriores um ao outro, sem que por isso seja lcito afirmar que um s e mesmo espao (porque, assim, poderamos reduzir todo o espao infinito a uma polegada cbica, e at a menos), eis o que ele no podia conceder, pois, admitia apenas uma distino por conceitos e no queria reconhecer um modo de represen-tao especificamente diverso desse, a saber, a intuio a priori; julgava ele, pelo contrrio, ter de a resolver em simples conceitos de coexistncia ou sucesso e assim vio-lentava o bom senso, que jamais se deixar convencer de que, se uma gota de gua estiver num lugar, ela impedir que uma outra gota inteiramente semelhante e igual exista noutro lugar.
/71 O seu princpio da razo suficiente visto que ele no julgava vivel submeter ao ltimo nenhuma intui-o a priori, mas reduzia a representao do mesmo a simples conceito a priori, tirou a consequncia de que todas as coisas, metafisicamente consideradas, eram compostas de realidade (Realitt) e negao, de ser e no-ser, tal como em Demcrito, todas as coisas, no espao universal, de tomos e de vazio; e a razo (Grund) de uma negao no podia ser outra a no ser que nenhuma razo existe pela qual algo deva ser posto, a saber, que nenhuma realidade existe; e, assim, a partir de todo o mal dito metafsico, em unio com o bem de toda a espcie, produziu um mundo unicamente de luz e sombras, sem atender a que, para mergulhar um espao na sombra, deve a haver um corpo, por conseguinte, algo de real que impea a luz de penetrar /72 no espao. Segundo ele, a dor teria apenas como razo a ausncia de prazer; o vcio, unica-mente a carncia de impulsos para a virtude; e o repouso de um corpo movido, apenas a inexistncia de fora motriz, porque, segundo simples conceitos, uma realidade = a no pode opor-se realidade = b, mas to-s ausncia = O,
/ A 71, 72
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sem tomar em considerao que, na intuio, por exemplo, na externa a priori, ou seja, no espao, uma oposio do real (da fora motriz) a um outro real, quer dizer, uma fora motriz agindo em sentido contrrio (e assim tam-bm, por analogia, na intuio interna, motivos reais entre si antagnicos num sujeito) podem estar unidas e que a consequncia, cognoscvel a priori, deste conflito das rea-lidades poderia ser uma negao; mas, claro, para esse fim, teria de admitir direces opostas entre /7 3 si, as ^uais s se podem representar na intuio, no em simples concei-tos; e, em seguida, surgiu o princpio, que esbarra contra o senso comum e at contra a moral, de que todo o mal enquanto razo = O, quer dizer, simples limitao ou, como dizem os metafsicos, o formal das coisas. Por o ter posto num simples conceito, o seu princpio da razo suficiente no lhe prestou a mnima ajuda para ultrapassar o princpio de contradio, princpio dos juzos analticos, e assim se alargar sinteticamente a priori pela razo.
3) O seu sistema da harmonia preestabelecida, embora visasse especificamente a explicao da comuni-dade entre a alma e o corpo, devia previamente e em geral estar dirigido para a elucidao da possibilidade de unio de substncias diferentes, [unio] pela qual consti-tuem /7 4 um todo, e era certamente inevitvel que a se fosse parar, porque as substncias, j em virtude dos seus conceitos, mesmo quando nada mais se lhes acrescenta, devem representar-se como completamente isoladas; com efeito, visto que a nenhuma delas pode, devido sua subsis-tncia, estar inerente acidente algum que se funda numa outra substncia, mas, embora existam ainda outras, aquela, porm, em nada pode depender desta, mesmo se todas dependessem de uma terceira (o ser originrio) como efei-tos de uma causa, no h nenhuma razo para que os aci-dentes de uma substncia devam fundar-se numa outra exterior da mesma espcie, em considerao do seu estado.
/ A 73, 74
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Se, pois, devem, apesar de tudo, enquanto substncias do mundo, constituir uma comunidade, esta s deve ser ideal, e no pode haver nenhum influxo real (fsico), porque este supe a possibilidade da aco /75 recproca, como se elas se compreendessem a partir da sua simples existncia (o que no ), ou seja, h que admitir o autor da existncia como um artista que, ocasionalmente, ou j no comeo do mundo, modifica ou dispe estas substncias em si plenamente isoladas, de maneira que se harmonizam entre si, de modo semelhante conexo de efeito e causa, como se realmente influssem umas nas outras. Assim devia nas-cer o systema harmoniae praestabilitae (j que o sistema das causas ocasionais no parece ser to adequado para a expli-cao a partir de um princpio nico), o mais admirvel figmento que alguma vez a filosofia inventou, s porque tudo se devia explicar e entender mediante conceitos.
Se, pelo contrrio, se admitir a pura intuio do espao, tal como este funda a priori todas as relaes exteriores /76 e constitui um nico espao, ento, todas as substncias se encontram ligadas por relaes que tornam possvel a influncia fsica e formam um todo, de modo que todos os seres, enquanto coisas no espao, constituem conjun-tamente um s mundo, e no pode haver vrios mundos exteriores uns aos outros, ao passo que a proposio sobre a unidade do mundo, se houver de sustentar-se por simples conceitos, sem se basear naquela intuio, de modo algum se pode provar.
4) A sua monadologia. Segundo simples conceitos, todas as substncias do mundo so ou simples, ou com-postas de simples. Com efeito, a composio apenas uma relao sem a qual, no entanto, elas deveriam conservar, como substncias, a sua existncia; mas o que resta, se eu eliminar toda a composio, o simples. Por conseguinte, todos os corpos, se forem pensados unicamente pelo /77 entendimento como agregados de substncias, constam de
/ A 75, 76, 77
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substncias simples. Todas as substncias, porm, alm das relaes recprocas, e das foras pelas quais podem exercer influncia umas sobre as outras, devem ter certas determi-naes reais que lhes so intrinsecamente inerentes, isto , no basta atribuir-lhes acidentes, que consistem apenas em relaes exteriores, mas importa ainda conceder-lhes aque-les que se relacionam simplesmente com o sujeito, ou seja, intrnsecos. Mas no conhecemos nenhumas determinaes, que possam atribuir-se a um ser simples, a no ser as repre-sentaes e o que delas depende; porm, visto que estas no se podem atribuir aos corpos, devem, no entanto, atribuir-se s suas partes simples, se no se quiser consider-las como substncias intrinsecamente de todo vazias. Mas, substn-cias simples, que tm em si a capacidade de representaes /78, so por Leibniz chamadas mnadas. Por conseguinte, os corpos constam de mnadas, enquanto espelhos do uni-verso, isto , dotadas de faculdades de representao, que se distinguem das de substncias pensantes unicamente pela ausncia da conscincia e, por isso, se chamam mnadas sonolentas; delas no sabemos se o destino as deve um dia despertar; talvez j as tenha trazido pouco a pouco em nmero infinito para a viglia e de novo as tenha deixado mergulhar na sonolncia para, depois, de novo as desper-tar e as elevar gradualmente como animais at s almas humanas, e assim sucessivamente at graus superiores; uma espcie de mundo encantado, que este homem famoso pde ser levado a supor s porque s representaes dos sentidos, enquanto fenmenos, no as tomou, como devia, por um modo de representao inteiramente diverso de todos os I19 conceitos, a saber, a intuio, mas por um conhecimento, somente confuso, mediante conceitos, que tinham a sua sede no entendimento, e no na sensibilidade.
O princpio da identidade dos indiscemveis, o princpio da razo suficiente, o sistefna da harmonia preestabelecida, final-mente a monadologia, constituem a novidade que Leibniz e,
/ A 78, 79
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depois dele, Wolff, cujo mrito de metafsico foi muito maior na filosofia prtica, tentaram introduzir na metaf-sica da filosofia terica. Se estas suas tentativas merecem chamar-se progressos, mesmo se no se impugnar que para tal eles possam ter contribudo, eis o que, no fim deste estdio, se pode submeter ao juzo dos que no se deixam a transviar com grandes nomes.
/80 parte terico-dogmtica da metafsica pertence igualmente a doutrina racional geral da natureza, isto , a filosofia pura sobre os objectos dos sentidos, os dos sen-tidos externos, ou seja, a doutrina racional dos corpos, ou do sentido interno, a doutrina racional da alma, mediante as quais se aplicam os princpios da possibilidade de uma experincia em geral a uma dupla espcie de percepes, sem pr nenhum outro fundamento emprico alm da mera existncia de semelhantes objectos. Em ambos os casos, s pode haver tanta cincia quanta a matemtica, isto , a construo dos conceitos, que a se pode aplicar, pelo que o espacial dos objectos da fsica presta-se mais ao a priori do que a forma do tempo, que subjaz intuio pelo sentido interno, [forma] que s tem uma dimenso.
Os conceitos de espao cheio e vazio, de movimento e de fora motriz, podem e devem, na fsica racional, rela-cionar-se com os seus princpios a priori, /81 ao passo que, na psicologia racional, nada mais representa princpios a priori seno o conceito da imaterialidade de uma subs-tncia pensante, o conceito da sua mudana e da identidade da pessoa no meio das mudanas; tudo o mais somente psicologia emprica, ou antes, antropologia, porque se pode provar que nos impossvel saber se o princpio vital no homem (a alma) tem e qual a sua capacidade, sem corpo, no pensamento; e tudo aqui equivale a conheci-mento emprico, isto , a um conhecimento que podemos
/A o, si
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adquirir na vida, por conseguinte, na unio da alma com o corpo, e que inadequado para o fim ltimo da metafsica de tentar uma transio do sensvel para o supra-sensvel, H que enfrent-la na segunda poca da tentativa da razo' pura na filosofia, que vamos agora apresentar.
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[SEGUNDO MANUSCRITO]
/2 SEGUNDO ESTDIO DA METAFSICA
No primeiro estdio da metafsica, que se pode cha-mar o da ontologia, porque ensina no a investigar o essencial dos nossos conceitos das coisas mediante a anlise das suas caractersticas o que a tarefa da lgica , mas de que modo e que conceitos a priori formamos ns das coisas, para neles subsumir o que nos pode ser dado na intuio em geral, o que, por sua vez, de nenhuma outra maneira podia acontecer seno enquanto a forma da intui-o a priori nos torna esses objectos (Objekte) cognosc-veis /8 J no espao e no tempo simplesmente como fenme-nos, no como coisas em si nesse estdio, pois, a razo v-se provocada a um progresso incessante em direco ao incondicionado, numa srie de condies reciproca-mente subordinadas, que, sem fim, de novo esto condicio-nadas, porque cada espao e cada tempo nunca pode ser representado de outro modo a no ser como parte de um dado espao ou tempo ainda maior, em que se devem, no
/ A 2, 83
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entanto, procurar as condies do que nos dado em cada intuio para alcanar o incondicionado.
O segundo grande progresso que se exige metafsica ir do condicionado nos objectos da experincia possvel ao incondicionado e estender o seu conhecimento at ao acabamento da srie pela razo (pois, o que acontecera at ento acontecera mediante o entendimento e a facul-dade de julgar); e, por conseguinte, o estdio que ela agora deve percorrer poder chamar-se o da cosmologia trans-cendental, /8 4 porque espao e tempo devem considerar-se, na sua grandeza total, como conjunto de todas as condies e representados como os receptculos de todas as coisas reais reunidas, e assim a totalidade destas, na medida em que enchem (o espao e o tempo), deve representar-se sob o conceito de um mundo.
As condies sintticas (principia) da possibilidade das coisas, isto , os seus princpios de determinao (principia essendi), buscam-se aqui para os condicionados (principiata), e, sem dvida, na totalidade da srie ascendente, em que esto subordinadas umas s outras, a fim de alcanar o incondicionado (principium, quod non est principiatum). Eis o que exige a razo para a si mesma se satisfazer. Nenhuma necessidade (Not) tem por parte da srie ascendente da condio ao condicionado, porque a no precisa de nenhuma totalidade absoluta, e esta pode permanecer como sequncia sempre inacabada, porque as sequncias /8 5 se do espontaneamente se somente for dado o funda-mento supremo, de que elas dependem.
Ora, pensa-se que no espao e no tempo tudo con-dicionado e que o incondicionado na srie ascendente das condies absolutamente inatingvel. Pensar como incon-dicionado o conceito de um todo absoluto do puramente condicionado encerra uma contradio; o incondicionado s pode, pois, considerar-se como membro da srie; e limita-a enquanto fundamento, o qual em si mesmo no
/ A 84 85
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nenhuma consequncia de outro fundamento; e a insus-ceptibilidade de fundamento (Unergrundlichkeit), que per-vade todas as classes de categorias, na medida em que elas se aplicam relao entre as consequncias e os seus prin-cpios, o que embaraa a razo consigo mesma num con-flito jamais resolvido, enquanto os objectos no espao e no tempo se tomarem por coisas em si e no por simples fenmenos, o que era inevitvel antes da poca da crtica racional pura; por isso, tese e anttese /8 6 aniquilavam-se incessantemente uma outra e lanavam forosamente a razo no mais desesperanado cepticismo, que se revelou lamentvel para a metafsica, pois, ao no conseguir satis-fazer nos objectos dos sentidos a sua exigncia do incondi-cionado, no era de pensar numa passagem para o supra--sensvel, que, no obstante, constitui o seu fim ltimo (*).
Ora, se progredirmos, na srie ascendente, do condi-cionado para as condies num todo csmico a fim de atingirmos o incondicionado, ento, no conhecimento terico-dogmtico de um todo csmico dado, deparam-se as seguintes contradies da razo consigo mesma /87 , ver-dadeiras ou simplesmente aparentes: em primeiro lugar, segundo as ideias matemticas da composio ou diviso do homogneo; em segundo lugar, segundo as [ideias] din-micas da fundamentao da existncia do condicionado na existncia incondicionada.
[I. No tocante grandeza extensiva do mundo, na medida do mesmo, isto , relativamente adio da uni-
(*) A proposio o conjunto de todas as condies no tempo e no espao incondicionado falsa. Pois, se tudo condicionado no espao e no tempo (no interior), ento nenhum todo possvel. Portanto, os que admitem um todo absoluto de condies puramente condicionadas contradizem-se a si mesmos, quer o considerem como limitado (finito) ou ilimitado (infinito); e, no entanto, o espao deve olhar-se como um todo assim, bem como o tempo decorrido (nota de Kant.)
/ A 8, 87
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dadc homognea e igual enquanto [unidade] de medida para dele se obter um conceito determinado e, claro est: a) da sua grandeza no espao e b) da sua grandeza no tempo, enquanto ambas so dadas, a ltima deve medir o tempo decorrido da sua durao, de uma e de outra a razo afirma com igual fundamento que infinita e que, apesar de tudo, no infinita e, portanto, finita. Mas o que notvel! a prova das duas no pode fazer-se directamente, mas s de modo apaggico, isto , mediante a refutao do contrrio. Donde
/88 a) A tese: o mundo infinito quanto grandeza no espao, pois, se fosse finito, seria limitado pelo espao vazio, que infinito, mas nada de existente em si, supondo, porm, a existncia de algo como objecto de percepo possvel; a saber, de um espao que nada contm de real e que, no entanto, seria continente enquanto fronteira do real, isto , como a ltima condio notvel do que se limita reciprocamente no espao o que se contradiz, pois, o espao vazio no se pode percepcionar nem traz em si uma existncia (Dasein) (evidencivel). b) A ant-tese: o mundo tambm infinito segundo o tempo decor-rido. Pois, se tivesse um comeo, teria fludo antes dele um tempo vazio, o que faria, no entanto, do nascimento do mundo, por conseguinte, do nada anterior, um objecto de experincia possvel o que contraditrio.
/89 II. No concernente grandeza intensiva, isto , do grau em que esta enche o espao ou o tempo, revela-se a seguinte antinomia, a) Tese: as coisas corporais no espao constam de partes simples, pois, se o contrrio se admitir, as partes seriam substncias; mas, se toda a sua composio se reduzisse a uma simples relao, ento nada restaria a no ser o simples espao como simples sujeito de todas as relaes. Por conseguinte, os corpos no constariam de substncias, o que contradiz a hiptese. b) Anttese: os corpos no constam de partes simples.]
/ A 88, 89
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Segundo as primeiras [ideias], depara-se uma antino-mia por, no conceito de grandeza das coisas do mundo, tanto no espao como no tempo, podermos elevar-nos desde as partes dadas de modo inteiramente condicionado ao todo incondicionado na composio, ou descer, por diviso, do todo dado para as partes /90 incondicionalmente pensadas. Assim, no tocante ao primeiro [caso], cai-se inevitavelmente em contradio consigo mesmo quer se admita que o mundo infinito ou finito segundo o espao e o tempo decorrido. Pois, se o mundo, como o espao e o tempo decorrido que ele ocupa, dado como grandeza infinita, ento uma grandeza dada, que jamais pode ser dada inteiramente o que se contradiz. Se cada corpo ou cada tempo, na mudana do estado das coisas, consta de partes simples, preciso ento, visto tanto o espao como o tempo serem divisveis at ao infinito (o que a matemtica prova), que seja dada uma multido (Menge) infinita, a qual, porm, segundo o seu conceito, jamais pode ser inteiramente dada o que igualmente se contradiz.
O mesmo se passa com a segunda classe das ideias do incondicionado dinmico. Pois, diz-se por um lado: no existe / 9 ' liberdade, mas tudo no mundo acontece segundo a necessidade natural. Com efeito, na srie dos efeitos, em relao s suas causas, impera totalmente o mecanismo natu-ral, isto , toda a mudana predeterminada pelo estado anterior. Por outro lado, a esta afirmao universal ope-se a anttese: certos eventos devem poder pensar-se como possveis pela Uberdade e no podem submeter-se todos lei da necessidade natural porque, de outro modo, tudo teria lugar s condicionadamente e, por conseguinte, nada de incondicionado se encontraria na srie das causas; mas admitir uma totalidade das condies numa srie do pura-mente condicionado uma contradio.
Por fim, a tese, alis, bastante clara, atinente classe dinmica, a saber, que na srie das causas nem tudo pode
/ A 90, 91
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ser contingente, mas pode, no entanto, haver algum ser existindo de modo absolutamente necessrio, admite no obstante a anttese, segundo a qual /92 nenhum ser por ns sempre pensvel pode ser pensado como causa absoluta-mente necessria aos outros seres mundanos; oposio fun-dada, porque pertenceria ento s coisas do mundo en-quanto membro na srie ascendente dos efeitos e das cau-sas, na qual nenhuma causalidade incondicionada, mas que aqui deveria, porm, assumir-se como incondicio-nada o que se contradiz.
Observao: Se a tese o mundo infinito em si deve equivaler a: ele maior do que todo o nmero (em comparao com uma dada medida), ento a tese falsa, pois, um nmero infinito uma contradio. Se signi-ficar: ele no infinito, isso bem verdade, mas ento no se sabe o que ele . Se eu disser ele finito igualmente falso, porque a sua fronteira no nenhum objecto de experincia possvel. Afirmo, pois, que no concernente a um espao dado e tambm a um tempo decorrido, exigido s por oposio. Mas, ento, ambas as proposies so falsas, porque a experincia possvel no tem uma fronteira nem pode ser infinita, I9* e o mundo enquanto fenmeno unicamente o objecto (Objekt) da experincia possvel.
Aqui se apresentam, pois, as seguintes observaes: Em primeiro lugar, a proposio para todo o con-
dicionado deve haver um absolutamente incondicionado vale como princpio de todas as coisas, assim como a sua conexo pensada pela razo pura, isto , como a das coisas em si mesmas. Ora, no uso da mesma, descobre-se que ela no pode aplicar-se sem contradio aos objectos no espao e no tempo; por conseguinte, nenhuma escapa-
/ A 92, 93
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tria para esta contradio possvel a no ser admitir que os objectos no espao e no tempo, enquanto objectos (Objekte) da experincia possvel, no se devem conside-rar como coisas em si, mas como simples fenmenos, cuja foima se funda na disposio subjectiva da nossa maneira de os intuir.
A antinomia da razo pura reconduz, pois, /9 4 ine-vitavelmente quela limitao do nosso conhecimento, e o que antes se demonstrou a priori, dogmaticamente, na Analtica, confirma-se aqui irrefutavelmente, na Dialc-tica, por assim dizer mediante um experimento da razo, que ela institui por seu prprio poder. No no espao e no tempo que vai encontrar o incondicionado, de que a razo precisa; resta-lhe apenas progredir indefinidamente nas condies, sem esperar pr termo a tal progresso.
Em segundo lugar, o antagonismo destas suas proposi-es no simplesmente lgico, de contraposio analtica (contradictorie oppositorum), isto , uma simples contradi-o, pois, se uma delas fosse verdadeira, seria a outra neces-sariamente falsa, e vice-versa, por exemplo, o mundo infinito quanto ao espao, comparada com a proposio con-trria: ele no infinito no espao mas um [antagonismo] transcendental, de oposio sinttica (contrarie /95 opposito-rum), por exemplo: o mundo finito segundo o espao, pro->osio que diz mais do que o exigido para a oposio gica, pois, no assere apenas que o incondicionado no
se encontra na progresso para as condies, mas ainda que esta srie de condies reciprocamente subordinadas constitui, no entanto, um todo absoluto; duas proposi-es que, por isso mesmo, podem ser ambas falsas como, em lgica, dois juzos opostos entre si enquanto contrrios (contrarie opposita) e que efectivamente so, visto que se fala de fenmenos como de coisas em si.
Em terceiro lugar, a tese e a anttese podem tambm con-ter menos do que se exige para a oposio lgica e assim
/ A M, 95
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ser ambas verdadeiras como, em lgica, dois juzos opos-tos entre si simplesmente pela diferena dos sujeitos (indi-cia subcontraria) , tal como acontece efectivamente com a antinomia dos princpios dinmicos, quando /9 6 o sujeito dos juzos opostos tomado em ambos num signi-ficado diferente; por exemplo, o conceito da causa enquanto causa phaenomenon na tese: toda a causalidade dos fenmenos no mundo sensvel est submetida ao mecanismo da natureza, parece estar em contradio com a anttese: alguma cau-salidade destes fenmenos no est submetida a esta lei; mas esta contradio no se depara aqui necessariamente, pois, na anttese, o sujeito pode ser tomado num sentido diverso do que acontece na tese, a saber, o mesmo sujeito pode pensar-se como causa noumenon e, ento, ambas as pro-posies podem ser verdadeiras, e o mesmo sujeito pode, como coisa em si, ser liberto da determinao da necessi-dade natural, ele que, enquanto fenmeno, em relao mesma aco, no , no entanto, livre. E o mesmo se passa com o conceito de um ser necessrio.
I91 Em quarto lugar, esta antinomia da razo pura, que parece forosamente suscitar o estado de repouso cptico da razo pura, leva por fim, mediante a crtica, a progressos dogmticos da mesma, pois se revela que um tal nomeno, enquanto coisa em si, realmente cognos-cvel e at segundo as suas leis, pelo menos do ponto de vista prtico, embora ele seja supra-sensvel.
A liberdade do livre arbtrio este supra-sensvel que, mediante leis morais, dado como real (wirklich) no sujeito, mas tambm, sob o aspecto prtico, como deter-minante em relao ao objecto (Objekt), [supra-sensvel] que, sob o aspecto teortico, no seria cognoscvel o que, no obstante, constitui o verdadeiro fim ltimo da metafsica.
A possibilidade de um tal progresso da razo com as ideias dinmicas funda-se no facto de que nelas a composi-o da conexo prpria do efeito com /9 8 a sua causa, ou
/ A 96, 97, 98
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do contingente com o necessrio, no pode ser uma liga-o do homogneo, como na sntese matemtica, mas princpio e consequncia, a condio e o condicionado, podem ser de espcie diferente e, deste modo, no pro-gresso do condicionado para a condio, do sensvel para o supra-sensvel, enquanto condio suprema, pode ter lugar uma u