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II Encontro Nacional da Rede Alfredo de Carvalho Florianópolis, de 15 a 17 de abril de 2004 GT História das Mídia Impressa Coordenação: Prof. Luís Guilherme Tavares (NEHIB)

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II Encontro Nacional da Rede Alfredo de CarvalhoFlorianópolis, de 15 a 17 de abril de 2004

GT História das Mídia ImpressaCoordenação: Prof. Luís Guilherme Tavares (NEHIB)

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Imprensa e cidade: diários da vida bestaElton Antunes*

Resumo

O propósito deste artigo é delinear, a partir das falas dos próprios protagonistas do fazer jornalístico, as imagens da relação imprensa e cidade suscitadas pela movimentação editorial em Belo Horizonte nos anos 20 e 30, período historicamente caracterizado como principal momento de modernização da imprensa local. Nesse sentido, procedemos a um mapeamento das noções e associações simbólicas em torno do "urbano" e do jornalismo que organizavam as referências da prática dos grupos e indivíduos que atuavam no espaço da imprensa belo-horizontina. O trabalho verifica de que maneira a idéia de que as forças "materiais" e "espirituais" da cidade aparecem como condição e limite para a realização de um determinado projeto de imprensa, organizando uma “estrutura de sentimentos” e se inscrevendo como problema no relato daqueles que estiveram à frente da iniciativa de "modernizar” a imprensa mineira.

Palavras-chave: História da imprensa – jornalismo - cidade - Belo Horizonte

Imprensa e cidade: diários da vida besta

A Marinoni chega a cidade

A primeira impressora rotativa de um jornal privado em Belo Horizonte desembarcou na cidade no semestre inicial de 1927. Era uma "Marinoni", que chegava para a fundação do Diário da Manhã e impressionava os citadinos: eles viam ali um indicador palpável do fôlego do projeto editorial que brevemente se instalaria na capital. Conta-se que a impressora - a qual somente a Imprensa Oficial, responsável pela edição do Minas Gerais, órgão dos poderes do Estado, possuía semelhante - provocou grande alvoroço na cidade quando do seu desembarque, vinda do Rio de Janeiro, na estação da Central do Brasil.

A agitação era, sobretudo, dos que militavam na imprensa da capital à época, segundo eles marcada pela precariedade dos equipamentos gráficos e o pauperismo nos recursos disponíveis para tocar qualquer empreendimento jornalístico. A "Marinoni" estacionada na gare da Central custara a significativa importância de 200 contos de réis.

Mas nem só os homens de imprensa acorreram à estação ferroviária. Junto com a impressora chegavam também novos equipamentos gráficos que davam à carga um volume e peso gigantescos, raramente desembarcados na cidade. A chegada da "imprensa moderna" a BH era assim, antes mesmo que resultasse num novo jornal, também um fato que despertava a curiosidade dos habitantes.

Como o guindaste da estação não conseguisse mover a carga, enquanto se resolvia o que fazer, parte do equipamento mais leve era aos poucos transportada para as futuras oficinas do Diário da Manhã. A solução foi juntar ao esforço de uma turba de curiosos transformados em

* Professor do departamento de Comunicação Social da Universidade Federal de Minas Gerais, doutorando em “Comunicação e Cultura Contemporânea” na Universidade Federal da Bahia

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voluntários a força de oito juntas de bois trazidas da periferia da cidade "para puxar o caixote mais pesado, já que os mais possantes caminhões da cidade, convocados para a missão, sequer se arriscaram ao vexame de engasgar na subida da Bahia, diante de tanta gente, tão entusiasmados espectadores".(1) Entusiasmo tão grande que, combinando com a proximidade do carnaval, acabou por transformar o transporte da impressora num verdadeiro desfile de Momo. Foram oito horas até que os bois conseguissem puxar o equipamento da estação às oficinas, num percurso de pouco mais de dez quarteirões.

A história desse episódio encontra-se dispersa e compõe a memória coletiva produzida pelos indivíduos que viveram tal acontecimento ou dele tomaram conhecimento à época.(2) Tais relatos nos chamam a atenção pelas associações e imagens que os diversos narradores articulam e que expressam, a nosso ver, como determinadas percepções da experiência urbana estiveram no coração de uma perspectiva de vislumbrar a imprensa de Belo Horizonte nos anos 20 e 30, em geral como o seu principal momento de modernização. O propósito deste artigo é delinear, a partir das falas dos próprios protagonistas do fazer jornalístico, as imagens da relação imprensa e cidade que a movimentação editorial em Belo Horizonte nos anos 20 e 30 suscitou. Em suma, o interesse gira em torno de quais noções e associações simbólicas em torno do "urbano" e do jornalismo organizavam as referências da prática dos grupos e indivíduos que atuavam no espaço da imprensa. Com isso buscamos (re)produzir uma representação do mundo tal como os homens o vivenciavam/significavam e que ordenava sua prática social, suas obras e seu modo de ser. Em suma, investigamos uma "estrutura de sentimentos", num sentido tal como proposto por Raymond Williams (1989).

O levantamento empírico que sustenta tal reflexão consistiu na organização das representações que os homens atuantes na imprensa de Belo Horizonte na época estudada tinham da dinâmica desse incipiente campo cultural. Recorrendo a documentos escritos, artigos de jornal, relatos diversos, fragmentados e produzidos em função dessa percepção de uma imprensa em mudança, mapeamos uma sensibilidade, uma lógica particular de juntar cidade e a prática do jornalismo (ANTUNES, 1995)

.

Cidade, limites e possibilidades para os jornais

Um cronista de O Diário, em 1936, saúda a passagem do primeiro aniversário do jornal descrevendo o que, para ele, expressava o dilema central do fazer imprensa na Belo Horizonte dos anos 30.

"O Edgar Matta Machado arranca os cabelos. Falta de matéria. O dia decorreu morto, honestamente, sem reportagens. Nem uma homenagem a político evidente, nem um discurso, nem um ladrão de galinhas.

- Belo Horizonte é mesmo uma aldeia.(...) Dia de excesso de matéria. A Itália ganhou uma batalha,

Hauptmann não será eletrocutado, um bonde pegou um automóvel, o Sr. Fulano fez uma conferência, houve um assalto a importante estabelecimento comercial, o Macedo da publicidade encheu as páginas de anúncios. O Indiano quer por um clichê de Chico Preto em três colunas... Como é que no jornal pode caber tudo isso? E o Edgar arranca os cabelos, sem saber o que fazer. Um dia acaba careca."(3)

A cidade é como um suporte, o palco de ação da imprensa local que, de forma análoga a um pêndulo, oscila da profusão de acontecimentos e anúncios publicitários a publicar à carência absoluta do que noticiar diariamente. Os jornais, sugere-nos o cronista, caminham de acordo com o ritmo da cidade. E a Belo Horizonte da época, ao mesmo tempo em que reluta em oferecer-se como objeto da visada particular do jornalismo, parece experimentar ocasiões em que

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transborda mesmo, não cabe nas páginas dos periódicos. Os anos 20 e 30 são em geral apontados como momentos fundadores de uma

imprensa renovada, que experimenta processos de modernização editorial. Mas, afinal, a cidade aparece como aparece como limite ou torna-se a melhor possibilidade para engendrar a chamada imprensa de corte moderno? Quais as articulações que o ambiente urbano estabelece com as movimentações no espaço da imprensa local?

Nas representações dos "homens de imprensa" belorizontinos da terceira e quarta décadas do século XX, a cidade evidencia-se como par inseparável na reflexão que envolve a prática jornalística. Tais falas nos sugerem dois eixos temáticos que permitiriam discutir a relação imprensa/cidade da forma como era percebida pelos nossos protagonistas: o primeiro diz respeito àquilo que se constitui ou deve se constituir em objeto de atenção do novo jornalismo praticado na capital; o outro ponto salienta a percepção dos jornalistas do modo como essas mudanças na imprensa implicam uma nova forma de reportar os acontecimentos e as notícias nas páginas dos jornais. A nosso ver, esses dois vértices organizam uma imagem de cidade que orienta a prática dos agentes nas movimentações verificadas na imprensa de Belo Horizonte das décadas de 20 e 30. Permitir-nos-iam, pois, entabular uma reflexão em torno de uma proposta de jornalismo em discussão, ali e naquele momento, e sua interface com o ambiente urbano.

Em alguma medida, pode-se dizer que as mudanças que se operam na prática do jornalismo na capital mineira acompanham movimentações mais gerais que se fazem presentes nas diversas dimensões da vida social naquele momento. Não sem razão, em várias passagens os discursos em tela ressaltarão a ocorrência de um relativo desenvolvimento do jornalismo local como um dos resultados de um progresso sócio-econômico da cidade. Pedro Aleixo, protagonista desse processo, sustenta a idéia de que a cidade já organizava as condições materiais necessárias para o êxito de uma empresa jornalística como o Estado de Minas. A presença do periódico na primeira metade dos anos 30 valia como

"demonstração de vigor e de pujança da Capital mineira, em cuja vida o órgão de imprensa, lançado em 7 de março de 1928, integrou-se definitivamente, passando a ser, de então para cá, o registro exato dos mais variados acontecimentos que marcaram as boas e más vicissitudes da terra montanhesa".(4)

De fato, a historiografia da cidade situa o momento de passagem à República Nova como o da deflagração de um acentuado desenvolvimento urbano, que transforma a cidade no efetivo pólo econômico planejado quando de sua fundação.(3) As evidências de tal processo são várias: o crescimento físico-espacial da cidade, escapando para além dos limites do traçado original; o aumento significativo da instalação de estabelecimentos comerciais, industriais e de serviços; a quebra do isolamento da cidade em relação a outras regiões do estado e com outros estados através da inauguração de linhas telefônicas, construção de rodovias e ampliação do sistema ferroviário; a expansão da rede educacional e do acesso dos habitantes à educação básica, além do investimento na formação superior, com destaque para a criação em 1927 da Universidade de Minas Gerais; o grande aumento no número de habitantes.

O crescimento da população é dos dados mais representativos da "pujança" que adquire a capital. Eram cerca de 55 mil habitantes em 1920, 80 mil em 1925, 140 mil em 1930 e quase 215 mil seriam contabilizados pelo censo de 1940. Correia Dias identifica nesse período um processo de diversificação ocupacional que alcança também as chamadas profissões intelectuais. Tal processo permite o início de uma profissionalização, ainda que incipiente, dentro do jornalismo da cidade. Além disso, a diversificação das atividades produtivas da cidade e do Estado, a expansão industrial que induz algum incremento no mercado publicitário e a preeminência do debate político no período, marcado por forte polarização ideológica, criam condições que predispõem a um certo fervilhamento organizacional e ideológico no espaço da imprensa. Não se pode esquecer também

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que, combinado a estes fatores, o período colhe os primeiros resultados de um esforço de educação popular produzido durante o governo Antônio Carlos. Ainda que deva ser lida com alguma reserva, essa ação produz conseqüências para uma possível ampliação dos públicos leitores. O número de pessoas consideradas alfabetizadas vai, num crescendo permanente desde meados da década de 20, atingir 66,5% da população da capital em 1940, contra o índice de 27% relativo ao conjunto do estado. Nesse contexto, o período assiste a uma certa estabilidade no desenvolvimento da imprensa da capital, marcado sobretudo por uma perenidade maior dos jornais frente à fugacidade dos empreendimentos editoriais até então surgidos na cidade.(5) Por fim, a expansão do periodismo por esta época não deve ser tomada como característica exclusiva de Belo Horizonte. Além do Rio de Janeiro e São Paulo, os dois pólos econômico-culturais mais importantes, outros centros do país, como Porto Alegre, Recife e Bahia, experimentam também, num processo que se prolonga através das quatro primeiras décadas do século, o crescimento da chamada imprensa "noticiosa".(6)

A dinâmica da imprensa local no período poderia ser apreciada como resultado de mudanças na configuração social e econômica da capital. Tal perspectiva, em alguma medida, estaria corroborando teses clássicas da sociologia urbana que vislumbram a cidade e produtos considerados típicos do ambiente urbano - tais como, ciência, arte, literatura, liberdade pessoal, ampliação dos horizontes individuais - como motor do desenvolvimento humano(7).

As críticas a essa vertente analítica são por demais conhecidas: proposições válidas para cidades industriais típicas são generalizadas para o conjunto do fenômeno urbano; a distinção entre rural e urbano não está nitidamente ligada à diferença entre grupos primários e secundários como sugerirá esta análise, já que os primeiros têm persistência e também integram a vida urbana; dentre outras questões.(8) Todavia, essa idéia de causalidade, na qual a cidade torna-se uma potência indutora de efeitos diversos na vida social e gera uma "cultura" específica de tipo urbano, parece ter pontos importantes de contato com a percepção corrente acerca da imprensa belorizontina no início do segundo quartel do século.

Um conjunto de indicadores de desenvolvimento da cidade são "escolhidos" pelos jornalistas para colocar em tela a nova situação da imprensa. Tais referências de progresso do meio urbano sugerem o privilégio de uma ordem de fenômenos muito próxima da idéia de formação de uma "cultura urbana" específica. De certa forma, apoiados em impressões acerca de variáveis da evolução demográfica e sócio-econômica de Belo Horizonte, nossos protagonistas procuram relacionar as movimentações no espaço da imprensa a fatores representativos de modificações na vida quotidiana e cultural. Alguns cronistas, por exemplo, vão sugerir que a imprensa moderna é uma imposição do patamar alcançado pela cidade do ponto de vista do seu "desenvolvimento cultural". O editorial de fundação do Diário da Manhã, em 1927, afirma que "o desenvolvimento da cidade impunha o aparecimento de órgão de publicidade afastado da dependência do governo".(9) Os responsáveis pelo jornal O Debate, em 1934, permanecem nesse viés acentuando que a idéia de editar um vespertino, "à altura do desenvolvimento cultural de Belo Horizonte", levou a mudanças no jornal. Quais seriam, então, as evidências de desenvolvimento cultural citadino organizadoras, para os "homens de imprensa", de uma realidade social a qual exige e garante as mudanças que se processam no campo da imprensa diária da capital?

Belo Horizonte, ao abandonar o primeiro quartel do século XX, começava a superar um certo bucolismo de sua paisagem. Esse traço urbano, combinado com o moralismo e o convencionalismo ritualista das práticas coletivas dos habitantes dos segmentos médios e de elite da cidade, e somado a uma organização marcantemente patrimonialista da política, conformava um sufocante ambiente para o convívio e desenvolvimento intelectual.(10) O mosaico das representações dos jornalistas da imprensa local esboça um quadro que confere visibilidade significativa a um conjunto de hábitos e costumes sociais. Aponta-se com ênfase a emergência de práticas que, organizadoras da vida quotidiana e cultural dos habitantes da cidade, atuam como pressuposto e resultado dessa oxigenação do ambiente urbano.

É o caso do crescente e disseminado hábito de ir ao cinema. Contemporânea da criação do cinematógrafo, Belo Horizonte tinha na assistência de filmes, na década de 20, atividade

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regular dentre os segmentos médios e da elite local - "o bonde conduz freqüentadores de cinema,"(11) diz a crônica. O costume de freqüentar as salas de exibição da cidade era programa cotidiano obrigatório e distintivo da vida cultural desses segmentos sociais. O negócio do cinema, por sua vez, encontrava-se em franca expansão no final dos anos 20 e anos iniciais da nova fase republicana, com a inauguração de novos espaços sendo acontecimento periódico. Salas tradicionais, mas que não ofereciam mais condições de atender satisfatoriamente ao público devido ao acanhamento de suas acomodações, eram rapidamente substituídas.

O cinema será fonte inesgotável para a imprensa da época. Do ponto de vista econômico, as exibidoras patrocinam boa parte dos anúncios publicitários nos jornais, destacando a programação, horários e lançamentos. Constituem-se num dos primeiros segmentos publicitários organizados e cativos. Já como uma espécie de "pauta", colunas e, com grande freqüência, páginas diárias inteiras são dedicadas a críticas e informes cinematográficos. Eventualmente, o hábito de ir ao cinema podia fornecer até mesmo material para as páginas policiais: o acúmulo de gente, por exemplo, em frente ao Cine Odeon, na Rua da Bahia, na "sessão da Fox" às 8 da noite, no fim dos anos 20, bloqueava o tráfego e obrigava a intervenção da polícia.

"Cenas de vandalismo. A rua da Bahia esteve ontem agitada por tropelias da polícia. Estudantes espancados covardemente a bengalão e cassetete"(14).

O cinematógrafo aparece como objeto de atenção dos jornais por se constituir num costume de um conjunto expressivo dos citadinos das camadas de elite e médias urbanas.

Além de alimentar a crônica jornalística, a recém aclamada "sétima arte" fornecia também uma perspectiva de enquadramento e abordagem discursiva. O cinema, na prática do jornalismo, produzia uma espécie de "grade" simbólica (temáticas, figuras sociais típicas etc.), que era recurso freqüente na construção dos textos dos jornais.

"Os filmes de Joan Crawford, que são sempre bons de se ver, porque mostram alegres e bonitas meninas com bonitos vestidos, estão educando a mocidade feminina no sentido do horror ao homem rico e civilizado, que quer divertir-se e escolhe para isso as mais doces companhias",(15)

escrevia Drummond em sua crônica diária.Mas o cinema rivalizava com o futebol dentre as paixões que arrebatavam os hábitos

dos habitantes da capital. No período em questão, os registros apontam para uma mudança importante no contexto do futebol. Perdia força o esporte cultivado pela juventude das camadas sócio-econômicas privilegiadas nos clubes tradicionais. A própria transformação da definição do esporte de "ludopédio" para futebol, na escrita da imprensa, sugere a incorporação do esporte nas hostes das preferências populares.(16) O esporte focalizado pelos diários rivaliza com o futebol de rua e dos campinhos de periferia, talvez a principal atividade de lazer das camadas pobres da sociedade local. A atenção dos diários é, no final dos anos 20, pela ascensão do esporte na cidade como um espetáculo de massas.(17) É nessa condição que tal modalidade esportiva parece ganhar nova dimensão no rol das práticas objeto de atenção privilegiada dos jornais. Por essa época, praticar e, sobretudo, assistir ao futebol vai consagrando-se, segundo os cronistas, como um dos costumes mais generalizados em Belo Horizonte.

Um correr de olhos nos diários do período permite a constatação de que o novo jornalismo, com olhos voltados para temas locais e do cotidiano, acompanha com grande destaque os eventos relacionados ao futebol. O escritor e jornalista João Alphonsus atenta para o fenômeno em várias passagens de sua obra literária - pródiga no registro do ambiente social de Belo Horizonte dos anos 30. É recorrente a presença desse esporte na organização da cotidianidade da população. O futebol foi, por exemplo, para indivíduos das camadas mais pobres, uma forma de adquirir status social. Os jornais alimentam essa nova condição.

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"Ah, o Leôncio. Está bem, agora; ganhando a vida com o pé. De amador de futebol suburbano passou a profissional, comandante da linha dianteira do Lusitano F.C. Veja só, coronel: aquele rapaz estava se perdendo como simples servente de pedreiro! Um centro-avante de primeira, com aquele corpo fino, aquelas pernas compridas... Quando os jornais falarem nas escapadas sensacionais de Leon na porta do gol, o senhor já sabe: é ele! Me admira que o senhor ainda não tenha visto o retrato dele nos jornais. É o homem do dia. Leon!"(18)

As páginas ou suplementos esportivos são dos recursos mais utilizados pelos periódicos para atrair a atenção dos leitores. No caso do futebol, a cobertura das partidas e do cotidiano desse esporte na capital merecem um destaque nas páginas dos jornais só comparável à crônica política. Um match entre Atlético e Palestra, duas das principais agremiações da cidade, provocava uma semana de crônicas e reportagens nos periódicos com manchetes diárias. Segundo rememora o jornalista, Plínio Barreto, relembrando sua infância,

"foi nesta época, já tão distante, que o nosso futebol começou a ganhar impulso maior, surgindo para a crônica esportiva da cidade o clássico Palestra x Atlético. Até então a coisa se resumia em Atlético x América. A ascensão do `time verde do Barro Preto` era a causa do entusiasmo diferente que então passou a envolver o chamado 'balípodo' ou 'ludopédio'".(19)

É certo que o futebol vai ganhando na cidade a projeção de uma das mais populares práticas sociais. Afinal, "o futebol não impunha exigências. A bola e as onze camisas adquiriam-se mediante rateio. Era esporte de pobre, daí sua popularidade".(20) Mas a atenção que a "nova" imprensa passa a dispensar ao fenômeno, e a repercussão que constrói nas páginas diárias de cobertura esportiva, parece ter menos a ver com a ascensão da prática do esporte, já popular como forma de diversão entre o conjunto da população, do que com um novo enfoque construído sobre os eventos que expressavam a vida e os costumes dos citadinos. A prática e a assistência do futebol - o futebol espetáculo de massas - eram das mais concorridas atividades em Belo Horizonte, à semelhança do que ocorria também noutras capitais. Todavia, essa prática só passa a constituir "fato jornalístico", ou se tornar objeto da cobertura sistemática do periodismo, quando o futebol é visto como um acontecimento que marca o ritmo da capital, adentra a hierarquia da vida quotidiana e ganha preeminência na organização dos hábitos das pessoas. A expansão da figura do "torcedor" e a incipiente profissionalização dos jogadores são fenômenos característicos desse processo.

É nesse período, fim dos anos 20, que se tornam populares os chamados "placards"(21), afixados à porta dos jornais. Neles a redação informava, em forma telegráfica, novidades no transcurso de partidas de futebol disputadas noutras cidades e que chegavam pelo rádio ou telefone. Há uma, como de hábito, cativante crônica de Drummond evidenciando a importância do futebol na cidade, e o papel da imprensa para que ele comece a se tornar um espetáculo ritualizado de massas.

"Domingo, à tarde, na forma do antigo costume, eu ia ver os bichos do Parque Municipal (cansado de lidar com gente nos outros dias da semana), quando avistei grande multidão parada na Avenida Afonso Pena. Meu primeiro pensamento foi continuar no bonde; o segundo foi descer e perguntar as causas da aglomeração. Desci, e soube que toda aquela gente estava acompanhando, pelo telefone, o jogo dos mineiros na Capital do país. Onze mineiros batiam bola no Rio de Janeiro; dois mil mineiros escutavam, em Belo Horizonte, o eco longínquo dessa bola e experimentavam uma patriótica emoção.

(...)"Para mim, o melhor jogador do mundo, chutando fora do meu campo de vista, deixa-me frio e silencioso.

Os meus patrícios, porém, rasgaram-se anteontem de gozo, imaginando os tiros de Nariz, e sentiram na espinha o frio clássico da emoção,

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quando o telefone anunciou que Carlos Brant, machucando-se no joelho, deixara o combate. Alguns pensaram em comprar iodo para o herói e outros gritavam para Carazzo que não chutasse fora. A centenas de quilômetros, eles assistiam ao jogo sem pagar entrada. E havia quem reclamasse contra o juiz, acusando-o de venal. Um sujeito puxou-me pelo paletó, indignado, e declarou-me. 'o Sr. está vendo que pouca vergonha. Aquela penalidade de Evaristo não foi marcada'. Eu olhei para os lados, à procura de Evaristo e da penalidade; vi apenas a multidão de cabeças e de entusiasmo; e fugi."(22)

Vale acenar também para o fenômeno do carnaval como costume citadino que desperta a atenção dos periódicos. Apesar de ser uma festa popular de momento bem delimitado no ano, nem por isso possui menor impacto na cobertura realizada pela imprensa à época. Desde alguns meses que antecediam a festa e durante o período que envolvia o chamado "reinado de Momo", os jornais voltavam-se com particular atenção para o acontecimento. Além de artigos em profusão, os diários promoviam inclusive uma série de atividades carnavalescas, como "batalhas de confete" e encontro de blocos, vinculando essa ação à presença e inserção de cada periódico no cotidiano da cidade. O destaque dos jornais é, obviamente, para as manifestações festivas que envolvem a pequena burguesia urbana, com rara menção a comemoração patrocinada por segmentos mais pobres da população. A organização de blocos, os tradicionais corsos e os bailes recebem acolhida e divulgação generosa dos diários. Em alguns momentos a dinâmica da festa carnavalesca serve até mesmo para justificar as mudanças que ocorrem na imprensa. É o que sugere o articulista do Diário da Tarde em crônica da primeira edição do jornal.

"Diário da Tarde, jornal essencialmente brasileiro, aguardou o sábado-gordo para se apresentar a amável população da capital. Ele veio de mãos dadas com El Rey Momo, e ambos foram recebidos com as mesmas manifestações alegres de encorajamento e de aplauso.

Não se pode estranhar, em absoluto, o caráter de acontecimento sensacional que se emprestou à chegada das duas ilustres personalidades. Ao contrário, nada mais lógico e natural: - Belo Horizonte, cidade tradicionalmente pacata e burguesa, já muito que se ressentia da falta de um vespertino que tivesse realmente essa feição - leve, ágil, noticioso - e de um carnaval que fosse verdadeiramente carnaval."(23)

Carnaval, cinema, futebol. São práticas significativas que se fazem presente na capital desde os anos iniciais de sua fundação. O que parece acontecer de novidade agora é que estas atividades começam a adquirir traços - como o alargamento da participação de setores que têm acesso à fruição dessas atividades e uma certa integração cultural dos diferentes setores - fundamentais à emergência posterior do que se convencionou chamar cultura popular de massa.(24).

Tais práticas parecem representar, na capital mineira, a introdução dos primeiros passos de "um movimento de unificação cultural, projetando na escala da nação fatos que antes ocorriam no âmbito das regiões" e, com isso, possibilitando "o surgimento de condições para realizar, difundir e 'normalizar' uma série de aspirações, inovações, pressentimentos gerados no decênio de 1920". (25)

Assim como ocorria com a imprensa local, também o futebol, cinema e carnaval tinham como contraponto permanente a dinâmica e atenção dispensada às mesmas atividades nas cidades do Rio de Janeiro e, em menor grau, São Paulo. Através dessas "pontes", a vida cultural da cidade adquiria ares menos intimistas e estabelecia contatos e rede de relações com outros ambientes distantes e mais cosmopolitas.

A vida social em Belo Horizonte, na visão expressa nos jornais, ganhava novos ares através da ritualização e performance pública dessas práticas culturais. A entrada da cidade no concerto nacional da modernização não se dava, todavia, somente nas referências aos hábitos relacionados ao cinema, carnaval e futebol. Ao que parece, também não procedia mais a reclamação

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de Drummond, por ocasião da semana modernista de 1922, segundo a qual o que era escândalo na capital paulista não chegava a atingir a capital mineira. Belo Horizonte agora tinha seu próprio estoque de escândalos.

É que outro aspecto estruturante da "nova realidade social" da cidade, para os "homens de imprensa", é o relato dos fenômenos relacionados ao conflito social e à criminalidade. A movimentação no periodismo local inicia por essa época a construção de sua idéia de marginalidade social, traduzida nas abundantes matérias dedicadas à cobertura policial.

As diversas manifestações de conflito social têm participação expressiva na constituição do cotidiano da cidade desde a sua fundação. Afinal, já dessa época um amplo "mundo da desordem", experimentado pela população mais pobre, choca-se com a ordem que o planejamento da cidade tenta impor.(26) Prostitutas, "desocupados", moradores das cafuas, os pobres em geral ganham visibilidade e passam a ocupar espaço destacado nos jornais com o redirecionamento editorial das publicações. A crônica da marginalidade social segue de perto, como atesta o simples folhear dos jornais do período, o volume de material dedicado à política e ao futebol, e obtém atenção e repercussão entusiasmada junto aos leitores.

Estrela nas páginas dos jornais, o destaque dado ao noticiário policial para consolidação da nova fase da imprensa local, é, entretanto, mais dissimulado, marginal como seu tema. A idéia da força da crônica policial no periodismo transparece nas entrelinhas da memória de uma vida boêmia da capital. Sugere-se ali o lugar que "o mundo da desordem" ocupava nos acontecimentos que seriam objeto das notícias.

"A vida boêmia de todas as cidades sempre foi o habitar de tipos singulares. Prostitutas, cafetinas, gigolôs e gente endinheirada sempre serviram de fonte inspiradora de escritores e artistas. Uma vez ou outra corria pela cidade a notícia de um caso pitoresco. Ficávamos sabendo dos atritos e desavenças, das brigas entre amantes, que costumavam ocorrer na madrugada. Se não se alastravam na letra de forma do jornal, corriam de boca em boca até o comentário chegar ao Bar do Ponto".(27)

Mapear esse setor da vida urbana tornava-se atividade do noticiário de polícia através de "visitas à 2ª Delegacia, conversas com lunfas ou mulheres da Zona, através das grades, a cara do delegado, antipática, secarrona, desdenhosa, desconfiada".(28)

Algumas passagens do romance "Rola Moça", de João Alphonsus, são também elucidativas da realidade que o olhar dos jornais passa a construir no seu encontro com a temática da marginalidade social. O personagem Anfrísio, bacharel em direito e funcionário público, observa de sua casa, a única "burguesa" nas imediações da favela do "Rola Moça", morro na zona sul da cidade, os eventos cotidianos que se desenvolvem no local. Um deles, a morte de um dos habitantes da vila, é pródiga no insinuar essa nova perspectiva adotada pelos emergentes jornais noticiosos da capital. Ao narrar os acontecimentos a um amigo,

"Anfrísio abriu um jornal que conservara na mão durante o enterro:- Leia esta notícia do falecimento. Se já leu, repita atentamente a

leitura.O outro leu:SR. ANTÔNIO PIO DA COSTA CÂNDIDO'Faleceu ontem repentinamente nesta capital o Sr. Antônio Pio da

Costa Cândido, chefe de tradicional família da cidade de Montanha. Natural daquela cidade, para essa Capital veio ao tempo do antigo Curral del-Rey, tendo participado da construção da nova cidade, então nascente.

Passando a exercer funções na repartição dos Correios de Belo Horizonte, no desempenho do cargo que lhe coube, fê-lo dando sempre provas de seu caráter probo, enérgico e independente (...)

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Falecendo na avançada idade de oitenta anos, pai dos saudosos mineiros Drs. João Cândido e Antônio Cândido Filho, deixa os seguinte filhos vivos: (...)

Seu enterramento realizar-se-á hoje às 16 horas, saindo da rua Montanha, 17, para o Cemitério do Bom-Fim.

(...) Agora, vire a página do jornal e procure o DIA POLICIAL. Olhe aí.

FALECEU NA VIA PÚBLICA - Populares encontraram na manhã de hoje, nas imediações do Sanatório Montanhês, no Rola-Moça, o cadáver de um homem. Comunicado o fato à polícia, esta fez remover o cadáver para o necrotério.

( (1) "Antes de mais nada um ato de heroísmo", Estado de Minas. Belo Horizonte, 08 de março de 1977. Caderno Comemorativo. P.1.(2) O relato dessa história encontra-se disperso em diversos artigos e livros de memória de alguns de seus protagonistas. Uma boa descrição do ocorrido encontra-se na edição comemorativa dos 50 anos do Estado de Minas, op.cit.(3) Lucilio Mariano, Vida de Jornal, O Diário. 06/02/36, p.3(4) Pedro Aleixo, Página de evocação, Estado de Minas. 07/03/53, p3. 2ª Seção.(

(5) Alguns do principais diários do período foram o Correio Mineiro, fundado em 11 de novembro de 1926 encerrou suas atividades em 8 de agosto de 1936; o Diário da Manhã, de 16 de julho de 1927 a fevereiro de 1928; Estado de Minas, de 7 de março de 1928, e o Diário da Tarde, de 14 de fevereiro de 1931, que circulam ainda hoje; Diário Mineiro circulou de junho de 1929 até pouco depois do final do movimento revolucionário de 1930; Folha da Noite, de 1º de abril de 1929 a 6 de setembro de 1930; Jornal da Manhã, de 27 de outubro de 1931 a 27 de setembro de 1932; Correio do Povo, de 26 de janeiro de 1932 a 20 de novembro de 1933; O Debate, de março de 1934 a março de 1937; Folha de Minas, de 14 de outubro de 1934 até 1965; O Diário, de fevereiro de 1935 até janeiro de 1965.(6) Segundo levantamento do Departamento Nacional de Estatísticas, publicado no Minas Gerais de 21/04/32), a imprensa noticiosa, considerada como aquela voltada para serviços informativos de caráter amplo e público leitor diversificado, em comparação a segmentos especializados como a imprensa científica, operária, religiosa e literária, é a que mais cresce em termos absolutos numa comparação entre os anos de 1912 e 1930. Desde a época da monarquia, de 1825 até 1929, foram fundados 2.953 periódicos, sendo que entre 1920 e 1929, ocorre a maior concentração (2.105) de publicações criadas.(7) O conjunto dessas elaborações teve seu principal expoente na chamada Escola de Chicago. Os processos de industrialização e a urbanização acelerados, calçados em variáveis como tamanho físico, concentração demográfica, evolução tecnológica e tipo de organização social, seriam os móveis característicos responsáveis pelo fato do desenvolvimento da imprensa. A cidade é apontada como variável explicativa independente que gera efeitos profundos na vida social, com destaque para novos tipos de comportamento humano.(8) Sobre as limitações da análise do fenômeno urbano pela Escola de Chicago ver as críticas de Ruben George Oliven, Urbanização e mudança social no Brasil. Petrópolis, Vozes, 1980.(9) Diário da Manhã, Diário da manhã. 16/07/27, p.1(10) "Foi em confronto com esse ambiente que se articulou a nova geração intelectual dos anos 20" conforme argumenta Fernando Correia dias, Literatura e(m) mudança: tentativa de periodização, Revista do Conselho Estadual de Cultura de Minas Gerais. II Seminário sobre a cultura mineira (período contemporâneo). Belo Horizonte, 1980. p.123-147.(11) Carlos Drummond de Andrade, Vamos ver a cidade, Minas Gerais. 16/05/30, In: Revista do Arquivo Público Mineiro. Ano XXXV, Belo Horizonte, 1984, p.65-66.(14) Diário da Manhã, 21/07/27, conforme referência de Márcio da Rocha Galdino, op cit.(15) Carlos Drummond. Garotas modernas e noivas ingênuas. Minas Gerais, 08/07/31, p.15. In: Revista do Arquivo Público Mineiro, op. cit. p.138-39.(16) Carlos Drummond de Andrade registra tal situação no poema A língua e o fato, Poesia e prosa. Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1988. p.738.(17) Uma interessante introdução a uma abordagem sociológica do fenômeno do futebol no país, com a indicação de uma série de aspectos que alcançam a realidade belorizontina do esporte pode ser encontrada em Anatol Rosenfeld, O futebol no Brasil, Argumento. Ano 1, nº4, fev.74. Paz e Terra, Rio de Janeiro.(18) João Alphonsus, Totônio Pacheco. Rio de Janeiro, Imago/MEC, 1976.p.170(19) Plínio Barreto, Renhida luta no field do Barro Preto. Estado de Minas. 08/03/77, p.5.(20) Delso Renault. Chão e alma de Minas. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1988. p.165(21) Tudo indica que os "placards" foram criação do paulistano O Estado de São Paulo em 1919, quando a redação enviou um correspondente à capital federal para cobrir uma partida da selecionado brasileiro. O repórter enviava, através do telefone, informações que eram expostas na fachada do prédio a cada minuto ou de acordo com o desenrolar da partida: um ataque perigoso, escanteio, gol etc. A referência é de Nicolau Sevcenko, Orfeu extático na metrópole. São Paulo, Companhia das Letras, 1992. P.66.(22) Carlos Drummond de Andrade. Enquanto os mineiros jogavam. Minas Gerais. 21/07/31. In: Revista, op.cit. p. 155.

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A necrópsia revelou tratar-se de morte por insuficiência cardíaca. Entrando em diligência, pode a Delegacia de Segurança Pessoal identificar o morto. Trata-se do operário Antônio Cândido, de oitenta anos de idade, residente num barracão daquelas imediações.

O corpo será enterrado hoje.(...) O homem que depois de morto virou dois. Bom título para uma

novela. Se eu quisesse escrever novelas. Os elementos estão aí, oferecidos pela realidade. A família enlutada forneceu os dados, para a notícia solene, da seção social, ocultando porém o humilde cargo posto que exerceu: carteiro. O repórter foi na delegacia e apanhou na vala comum do livro de pequenos incidentes anônimos o falecimento chapa: na via pública. O terreiro foi transformado em via pública, já que é assim que os cadáveres humildes são encontrados pelos populares. Ninguém morre dentro de sua moradia para ser encontrado por populares. Note que, apesar de identificado, o repórter do DIA POLICIAL não lhe deu maior importância: o corpo será enterrado hoje. Corpo anônimo e humilde, literalmente corpo: lama".(29)

O acontecimento e a visada do jornalismo. A interseção de ambos produzindo a notícia policial é esplendidamente mostrada pelo autor de Rola Moça. Noutro momento da estória Anfrísio, ao deparar com o relato no jornal de um ritual de macumba ocorrido na favela, constata que "a maior parte da notícia é imaginação do repórter". Mas o caso lhe provoca a lembrança de outro episódio, onde um jornalista, no afã de realizar uma reportagem sobre os terreiros de macumba, se meteu numa "trágica aventura", que lhe causou a morte. Camilo, o repórter do jornal, buscava reportagens sensacionais, "cada vez mais palpitantes e pitorescas". Mergulha no ambiente da macumba em busca de uma série de artigos de grande repercussão.

O repórter envolve-se com uma Mãe de Santo, a mulata Josefa, com quem se casa. Ambos morrem três anos depois. O narrador conta então a reavaliação do ocorrido que Anfrísio faz em suas reminiscências:

"falavam de uma atração doentia pelas excentricidades, marca de sua psicologia e revelada na própria vivacidade jornalística, uma assombrosa facilidade de apreender estranhos pedaços de realidade para a fome inestancável do noticiário. Entretanto Anfrísio, com a memória provocada para todas as circunstâncias, sentia que havia naquilo mais do que o de que se falava. Sim, a vingança da macumba contra quem a penetrara com intuito de sensacionalismo de imprensa. Vingança dentro da pura realidade. Sem literatura. Ou a literatura estaria na maneira do bacharel encarar o fenômeno."(30)

Ao que podemos complementar: ou a crônica policial residia na maneira do novo jornalismo olhar a "marginalidade"?

(23) A cidade em pleno reinado da folia. Diário da Tarde. 14/02/31, p.1(24) Segundo Renato Ortiz, uma série de processos culturais verificados nas quatro primeiras décadas do século deixam antever elementos que, rearticulados a partir dos anos 40, responderão pela emergência de uma cultura popular de massa no Brasil. A moderna tradição brasileira. São Paulo, Brasiliense, 1988.(25) Antônio Cândido, A revolução de 1930 e a cultura, Novos Estudos Cebrap. São Paulo, v2,4,p.27-36, abril 84.(26) Sobre os conflitos entre as chamadas "classes perigosas" e a ordem urbana imposta pelo poder público nas primeiras décadas da cidade ver o trabalho de Luciana Andrade, Ordem pública e desviantes sociais em Belo Horizonte (1897-1930). Belo Horizonte, Fafich/UFMG, 1987. Tese de Mestrado.(27) Delso Renault, op.cit, p.34.(28) Cyro dos Anjos. A menina do sobrado. Rio de Janeiro, José Olympio/MEC, 1979.p.331-32.(29) João Alphonsus, Rola Moça. Rio de Janeiro, Imago/MEC, 1976. p.123-25.(30) Idem, p.146-151.

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Novos olhares para novos objetosCinema, futebol, carnaval e faits-divers. Na sua "nova" realidade, aparecem como

efeitos da urbanização sobre a vida quotidiana e cultural. Constituintes do ambiente urbano, são invocados pelos "homens de imprensa" para justificar as movimentações que se processam no jornalismo da capital. Tal perspectiva se evidencia em ações como a da estratégia adotada pela Folha de Minas que, logo após seu lançamento em 1934, para ampliar seu público na disputa com outros diários da capital, passa a dedicar todos os dias uma página com informações dirigidas a bairros específicos de Belo Horizonte. Indicador dessa aproximação do jornal com o cotidiano local é também a expansão do espaço dedicado aos pequenos anúncios feitos pelos próprios leitores nos principais jornais. Fonte de receita para os periódicos, era sobretudo uma forma de capitalizar o interesse específico de indivíduos por informações variadas de serviços prestados na cidade para a ampliação do público leitor do jornal.

A cidade, pois, numa primeira aproximação, seria responsável pela emergência de uma nova forma de cultura. Como amálgama de características tais como tamanho, densidade, permanência e heterogeneidade social, e essa nova forma de cultura, a cidade patrocinaria a emergência do que Wirth (1982) chamou de modo de vida urbano. Tal processo social seria caracterizado pela disseminação de papéis sociais altamente fragmentados, predominância de contatos secundários sobre os primários, isolamento, superficialidade, anonimato, relações sociais transitórias e com fins instrumentais, inexistência de um controle social direto, diversidade e fugacidade dos envolvimentos sociais, afrouxamento dos laços familiais e competição individualista.(31) Esses traços presentes no modo de vida urbano explicariam a existência de uma propensão dos citadinos para instituírem novos mecanismos de comunicação. Tais instrumentos, como a imprensa diária, é que tornariam possível a revitalização do contato social restringido, tonificando laços de associação entre indivíduos e grupos.

Haveria, nas condições de existência urbana, mudanças significativas no modo de vida, nas estratégias de sobrevivência, nos comportamentos, representações simbólicas e nas práticas dos diferentes grupos e classes sociais. A cidade seria um fator causal importante para o entendimento das relações sociais. A recuperação dessa orientação analítica clássica da sociologia, e as elaborações que avança na sua abordagem do fenômeno da cidade, são importantes, sobretudo, porque realçam o significado de alterações na sociabilidade, na vida quotidiana e cultural. Essa visão "mais demográfica" da cidade aponta para as conseqüências que o "modo de vida urbano" traz ao plano das relações sociais e da sociabilidade, oferecendo pistas teóricas importantes para entendimento do fenômeno da imprensa.

É necessário, porém, verificar como a realidade em tela, a do ambiente urbano em sua interação com a prática jornalística, confere fôlego ou aponta limitações a essa perspectiva.

Nesse sentido, retomamos o outro ponto de ancoragem que sustenta a interface imprensa/cidade na visão dos jornalistas da capital nas décadas de 20 e 30. Passamos agora a indicar não mais os elementos que evidenciam os novos objetos de atenção do periodismo local, instituídos numa suposta relação entre imprensa e vida quotidiana e cultural da cidade, mas quais os novos olhares indicados pelos jornalistas para que o jornalismo lide com os acontecimentos da cidade. Noutros termos, nos discursos acerca da disseminação e assimilação de novas técnicas e procedimentos editoriais, já incorporadas, segundo os jornalistas, em outros centros do país, também se projeta uma imagem da relação imprensa/cidade.

Drummond é sempre um bom ponto de partida. Podemos iniciar esse rápido percurso com a percepção que o poeta tem das mudanças que ocorrem à volta da sua mesa no jornal. No relato de sua experiência na redação do Estado de Minas, ele faz esta caracterização:

"Servi vagamente na redação, nos primeiros dias, sob o comando do meu amigo Antônio Leal da Costa, correspondente de `O Jornal` e homem verdadeiramente encantador, que fora chamado a arrumar as coisas no matutino,

( (31) Louis Wirth, op. cit.

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dada a sua grande experiência no ofício".(32)

A imprensa local organiza seu novo modus vivendi a partir da orientação dos protagonistas de um fazer jornalístico considerado modelo do periodismo moderno à época. E uma categoria importante para o fazer jornalístico de agora em diante parece ser a idéia de um necessário planejamento das atividades. Talvez os rudimentos de uma "mentalidade gerencial" e de uma racionalização, a partir daí crescente, da atividade jornalística.(33) Um bilhete deixado pelo jornalista Antônio Leal Costa, que chefia a redação do Estado de Minas, para o redator Carlos Drummond de Andrade, sugere as transformações que ocorrem nessa esfera.

"Você poderia fazer para hoje uma nota para a 1ª página, sobre a inauguração das conferências pedagógicas, mostrando a influência que devem ter sobre a formação da nova mentalidade do professorado, indispensável à execução prática da reforma? Não precisa ser coisa muito grande: apenas um pouco maior do que os tópicos. Poderá também fazer considerações sobre a complexidade da reforma, acentuando que os seus resultados integrais só poderão se manifestar mais tarde, isto, porém, se algum reformador futuro não desmantelar a obra que agora se inicia. Muito afetuosamente, Leal."(34)

Não se pode mais aguardar que a cidade espontaneamente gere as notícias. É preciso perscrutar a realidade produzindo os fatos jornalísticos. O próprio Drummond, em seu retorno ao Diários Associados, em 1934, arrisca-se a apresentar coordenadas para o efetivar o "bom" periodismo.

O poeta assume o papel de um cronista com o olhar voltado para o cotidiano da cidade. Através de colunas como "Bar do Ponto" - ponto nevrálgico na construção da sociabilidade da boêmia da capital que, sugestivamente, expandiu-se para as páginas dos jornais - e com pseudônimos, Drummond propõe-se a ser um comentarista que, com rapidez e sensibilidade, observará o desenrolar da vida da cidade. É o que assegura seu "programa" na coluna "Um minuto apenas".

"Nesta seção se falará de moda, de sentimentos que passam com ela, de atrizes bonitas de cinema, de poetas que não usam entorpecentes nem os fabricam, e de mil outros assuntos terrestres. A senha será: Frivolidade, que, às vezes se confunde com Espírito, outras vezes (sem parecer) é mais grave que um tratado de Finanças. A seção será curta, como a vida, mas sem as complicações da vida, como o telefone não-automático, o calo pisado na rua (...)"(35)

Frivolidade e planejamento são senhas para entendimento do sentido almejado para o periodismo da capital. Tais aspectos do fazer da imprensa renovada na Belo Horizonte dos anos 20 e 30 têm como escora, no discurso dos "homens de imprensa", uma pretensa "nova realidade" da cidade. Transformações acentuadas no ambiente urbano teriam como tradução, no espaço específico da imprensa, a introdução de novas técnicas de trabalho jornalístico até então incipientes na cidade.

O Estado de Minas vem a público em 1928 apostando em referências de ruptura com o quadro tradicional do jornalismo.

(32) Carlos Drummond de Andrade, Um parente que faz cinqüenta anos, Estado de Minas. 09/07/77, p.1. Caderno comemorativo.(33) Só se pode falar efetivamente do desenvolvimento de uma mentalidade gerencial e da racionalidade capitalista na esfera cultural a partir dos anos 60, quando começa a se conformar uma efetiva indústria cultural e um mercado de bens simbólicos. Até então, talvez a expressão mais adequada para os "empresários" da imprensa seja a de "capitães da indústria". Sobre isso ver a discussão de Renato Ortiz, op. cit.(34) Carlos Drummond de Andrade, Um parente, op. cit.(35) Carlos Drummond de Andrade, Um minuto apenas. Minas Gerais. 9 de junho de 1931. p.13. In: Revista, op.cit. p.99

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"Tudo evoluiu. E o velho artigo de fundo, puxado a adjetivos sonoros, recheado de idéias gerais - evidentemente já passou de moda. Não o tolerariam os leitores de hoje; nem nós seríamos capazes de escrevê-lo."(36)

O que vale agora é o entendimento de que "the ordinary man is more interested in news than he is in political doctrines or abstract ideas"(37). Qual a razão desse novo sentido? Um ano depois, como que a justificar o projeto em andamento, o jornal busca responder qual o papel que almeja cumprir na sociedade da época e o modelo buscado para o periodismo local.

"Na época do `sensacionismo americano`, nos dias febris em que vivemos, a função precípua da imprensa é informar. O melhor jornal é aquele que possui maior cópia de notícias certas e reais, aquele que mais completamente pode satisfazer à curiosidade dos leitores. A investigação da reportagem deve ser elevada ao extremo: a sua única barreira será a consciência limpa do jornalista, o seu escrúpulo, a sua disciplina profissional.

(...) O máximo de publicidade, pela forma mais comunicativa, eis o objetivo da imprensa moderna. Os jornais mais típicos da época são os norte-americanos, lançando edições completas de duas em duas horas, com o noticiário integral de tudo o que se passou de importante no mundo, nos últimos momentos.

As seções dos diários se multiplicam ao extremo, com a máxima perfeição, para que neles se contenha, afinal, noticiário que possa interessar à totalidade das classes sociais, e que satisfaça a todos os paladares e desejos.

Informar implica esclarecer. A primeira função abrange metade, pelo menos, da segunda. De modo que a tarefa do jornalista se reduz sensivelmente

Passaram-se os tempos dos terríveis e massudos artigos de fundo, cuidadosamente construídos com aspectos de edificação de cimento armado. Hoje o público pede é nota ligeira, o comentário rápido e incisivo, que apenas complete a notícia, com os dados e conhecimentos que ao homem de imprensa devem assistir melhor por força do 'metier'. As exigências da vida agitada de hoje são muitas para que possa alguém recostar-se descansadamente por 4 colunas pesadas de jornal para ler, no fim das contas, uma coisa morna e sem sabor, que melhor ficaria se condensada em meio palmo de coluna. O artigalhão espanta como um troglodita. Qualquer pessoa preferirá atingir o último andar de um 'sky scrapper' a pé, do que engolir um desses monstros diariamente. Os editoriais para serem lidos devem resumir-se o mais possível; e assim mesmo é quase certo que só despertarão a curiosidade e o ânimo de uma minoria selecionada. A obra jornalística há de ser viva, rápida, impressionante e leve. Nada de confundir livro ou enciclopédia com jornal."(38)

Dias febris, nota ligeira. Vida agitada, comentário rápido. As alterações que se presentificam na imprensa local teriam a ver com ritmo da vida urbana, com as sensações e experiências que provoca em seu habitante. A imprensa, pois, deveria acompanhar e estimular no citadino a formação de uma nova sensibilidade para a vida da cidade. Já em 1927 o fundador do Diário da Manhã, Augusto de Lima Júnior, recomenda a Cyro dos Anjos:

"Escreva com fogo! disse - Quero movimento, ação, sensacionalismo! Precisamos sacudir Belo Horizonte! (...) O `Diário da Manhã` saiu em julho daquele ano, fez sucesso, pela novidade da paginação e pela vivacidade do serviço

(36) O Estado de Minas, Estado de Minas. 07/03/28. p.1(37) Robert Park, The natural history of newspaper. In: Robert Park e Ernest Burgess, op. cit. p.91.(38) Pra que serve o jornal?, Estado de Minas. 07/03/29. p.1

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telegráfico e do noticiário. E principalmente pela malícia dos sueltos, das notas, das charges".(39)

Não há jornal da cidade que, a partir de então, não reafirme uma nova lógica de operação. Trata-se de informar e distrair um leitor cada vez mais curioso. O abandono de técnicas jornalísticas marcadas pelo gênero opinativo, em face da ascensão de procedimentos que iriam se convencionar com o nome de "jornalismo informativo", marcam o discurso da imprensa. O Estado de Minas, em 1930, é quem enfatiza:

"(...) Batalhamos para formar no maior estado do país um órgão de imprensa moderno, vibrante, informativo, de acordo com as novas regras do jornalismo, em que o noticiário ocupa primeiro lugar."(40)

Era necessário impor mudanças ao tradicional fazer jornalístico para que ele pudesse acompanhar e descrever para os habitantes da cidade novas condições de vida material e de representação, marcadas pela contingência e fragmentação dos contatos sociais. Belo Horizonte, aposta-se, vivia sua modernização, com todos os elementos de estranhamento da experiência quotidiana que tal processo propicia a seus habitantes. Daí, um novo padrão para o jornalismo se mostra necessário.

"Ontem a reportagem, bisonha, mal descia as ruas à busca de notícias, deixando-se, o mais das vezes, ficar na redação à espera da espontaneidade dos interessados."(41)

Na multiplicidade de ocorrências diariamente produzidas no espaço urbano, o jornalismo cumpriria para o citadino o papel de recolher os episódios, os fragmentos e lançá-los numa nova ordem, a ordem do jornal. É dessa maneira que se alterariam tanto o objeto de atenção dos jornais quanto a forma de reportar eventos para as páginas dos periódicos.

"`O Debate`, como jornal moderno, leve e completo, dará informações abundantes sobre os principais acontecimentos, colhidos à última hora na capital do país e transmitidas imediatamente para a nossa redação".(42)

Aceleração do ritmo social, velocidade, eis alguns aspectos marcantes nessa percepção da imprensa na capital. São processos que se distinguem no próprio fluxo imposto à produção dos periódicos e do equipamento social que em torno dele gravita: as linhas férreas, que aceleram a distribuição das folhas para outros centros; a rotativa, que incrementa fantasticamente a impressão das gazetas; a fotografia e a possibilidade de registro instantâneo de eventos; o telégrafo e o telefone permitindo a transmissão veloz e imediata de informes sobre acontecimentos recém ocorridos à grande distância. O progresso técnico permite, enfim, acelerar o processo de produção jornalístico para que os jornais pulem das impressoras às mãos dos leitores com informações colhidas em lapsos de tempo cada vez menores, se comparados aos padrões até então vigentes. As empresas editoras destacam o serviço de entrega na casa do assinante, em geral até as 7 horas da manhã, servindo como mais um instrumento de marcação do novo ritmo social adotado pela imprensa. O garoto vendedor de jornais exemplifica o novo ritmo da imprensa e vira matéria de jornal.

"Antes do sol nascer, quando a cidade ainda ostenta vestígios do dia

(39) Ciro dos Anjos, op. cit. p.327(40) Estado de Minas, Estado de Minas. 07/03/30. p.1(41) O Estado de Minas, Estado de Minas. 07/03/36. p.1(42) O nosso aparecimento, O Debate. 16/03/34. p.2

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anterior, já vai ele, mãos nos bolsos, olhos cosendo ao chão, gorro meio ao lado, a caminho do jornal da manhã que deverá sair antes dos trens se porem em marcha para o interior do Estado"(43)

Nessa renovação da produção jornalística inevitavelmente altera-se o papel e importância do repórter. Este deve constituir como eixo de sua ação o apreço pela observação efêmera e ligeira, em compasso com a aceleração do fluxo do tempo. Deve, enfim, vivenciar a cidade sob nova percepção. Tal perspectiva é atestada em artigo que discutia as tarefas dessa função em 1932, no Minas Gerais.

"Em nossa terra, os rapazes que principiam no jornalismo como noticiaristas - os 'focas' - têm vergonha de que se lhes dê o nome de 'repórteres'. Julgam que a reportagem é uma função subalterna, sem mérito e sem importância, feita unicamente das pequenas informações diárias e do noticiário trivial".

"(...) O jornalista moderno não disserta nem julga: vê, informa-se, descreve, pinta ao vivo, surpreende os fatos, revela os acontecimentos."

(...) "Mas logo se vê que o bom repórter dum grande jornal não pode ser qualquer borrador de papel. Ser repórter é viver dentro da vida tumultuosa e multiforme duma grande cidade."

"(...) Na reportagem consiste a essência e a força da imprensa moderna."(44)

A reportagem mostra-se o eixo desse periodismo renovado. Tal concepção parece revelar tamanha força entre os "homens de imprensa" que nem mesmo um jornal que funciona como órgão de agremiação política, como o Diário de Minas, deixa de, ainda que com ponderações, saudar e buscar assimilar as novas tendências.

"Tendo em conta a inegável americanização de métodos e processos que vai influindo na imprensa do mundo inteiro, procuramos dar, na elaboração deste matutino, um lugar de relevo à coleta de informações locais, do país e do estrangeiro."(45)

Para uma cotidianidade marcada pela vida "nervosa", "agitada", por dias "febris" onde passam uma procissão de homens e eventos, em processos cujo tempo é cada vez mais "acelerado", exige-se, pois, uma nova imprensa. Sua base será um jornalismo no qual a produção do seu olhar/narrativa específicos deverão se adequar a esse ritmo e feição da cidade. Fortuito, rápido, observações breves, colado aos acontecimentos que se sucedem na cena urbana, o jornalismo buscará ser imagem e semelhança de uma nova sensibilidade e percepção dos homens. Uma referência, longa porém elucidativa, às reflexões promovidas por articulistas dos jornais Diário da Tarde e Estado de Minas, acerta com precisão as novas maneiras de atuar que se impõe à imprensa na sua interface com uma cidade em "tempo de progresso". O jornal, para eles, faz parte e dá forma ao

"quotidianismo de uma agitação intensa, procurando resumir os fatos, exprimir aspirações, surpreender os acontecimentos na sua simultaneidade e na sua trepidação.

A atualidade, o informe, a notícia, o comentário, dentro do conceito oportuno e próprio, traçados com a leveza que não exclui a seriedade, eis o feitio adequado a um jornal vespertino que visa sobretudo bem informar e bem orientar.

(43) O pequeno vendedor de jornais, Diário de Minas. 6/8/30(44) O repórter, Minas Gerais. 21/04/32.(45) O jornal - Como o imaginamos, Estado de Minas. 07/03/36.

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Para isso, recorreremos a todas as inovações informativas - o rádio e o telefone, o telégrafo e a correspondência - ativando o quanto possível as informações dessa procedência, de modo que o belorizontino, todas as tardes, saberá o que de sensacional e novo, curioso ou importante, ocorre no Brasil e no mundo.

Mas, a reportagem é a movimentação de um jornal moderno. E o `Diário da Tarde` desenvolverá, pela atividade dos seus repórteres, os serviços informativos, destacando e singularizando a notícia de sensação ou o fato novo e palpitante."(46)

"Faltava o jornal moderno que servisse à curiosidade inquieta do leitor, que desse ao público, cada manhã, as últimas notícias da cidade, do país e do mundo, colhidas através de uma reportagem ágil, vigilante e segura".(47)

"Quando as notícias não podem mais se transmitir de vizinho a vizinho, como nos bons tempos de vida plácida, o jornal fica sendo a fonte de informações. E todos têm o seu jornal, que lhes dá pela manhã o primeiro contato diário com o mundo.

O 'Estado de Minas' adaptou-se prontamente a essa indeclinável feição da imprensa moderna - a informação. A vertigem do tempo não comporta mais os órgãos doutrinários, serenos e solenes na pregação de sua fé ou agressivos e vibrantes na polêmica. A tendência imperiosa é da objetividade, muitas vezes fria e sem nervos, mas, ao cabo, sempre uma exigência do público. Pelo menos, estará nisso a única conciliação possível entre as inúmeras inclinações da multidão de leitores de que o jornal precisa e que é a multidão apressada, sem tempo para deter-se num artigo de fundo com a mesma pachorra de quem medita um capítulo da `Imitação de Cristo`. Há hoje uma íntima relação entre o jornal e o bonde, entre o jornal e a sala de espera.

(...) Neles os homens de negócio e os operários, os curiosos e os políticos recolhem os dados de que precisam para orientar sua atividade.

(...) O repórter ágil e vivaz substituiu o ensaísta da câmara lenta. O acontecimento obscureceu a prédica. Alguns poderão não gostar da transformação mas a esses se deverá dizer que o que a determinou não foi o gosto, e sim o tempo. Enfim adquiriu o jornalismo uma técnica própria e autônoma, criando-se também para ele uma categoria das mais nobres nos quadros da atividade intelectual."(48)

Parece evidente que os elementos que delineiam uma imagem de cidade, na percepção dos indivíduos que fazem a imprensa de Belo Horizonte, se aproximam, em larga medida, da idéia de que a prática periodística tem que acompanhar um processo de reeducação dos sentidos do citadino. Tal noção permite-nos fazer uma analogia com as perspectivas analíticas que Bresciani (1991) agrupou e chamou de "quarta porta de entrada" dos estudos sobre a questão urbana. É uma perspectiva que reúne reflexões sobre o fenômeno da cidade atentas à formação de uma nova sensibilidade do habitante do meio urbano.(49)

Uma nova porta de entradaAs perspectivas analíticas enfeixadas nessa "porta de entrada" tem como solo

comum o entendimento de que o ambiente urbano produz um contexto propício à emergência de novas formas de experiências. Essas experiências são marcadas por características como

(46) Palavras simples e sinceras, Diário da Tarde. 14/02/31. p.1(47) Dario de Almeida Magalhães, Órgão de Informação, Estado de Minas. 08/03/36. p.1(48) Milton Campos, A imprensa de ontem e a de hoje. Estado de Minas. 08/03/36. p.1(49) Maria Stella Bresciani, As sete portas da cidade, Espaço e Debates. nº 34. São Paulo, 1991. Sobre a formação de uma sensibilidade do indivíduo com a expansão das cidades ver, também da mesma autora, Metrópoles: as faces do monstro urbano (as cidades no século XIX), Revista Brasileira de História. SP, v.5, nº8/9, set.1984/abr.1985.

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fragmentação, contingência, descontinuidade e de instituição do individualismo como um valor fundamental da vida social. Simmel e Benjamim são vistos como autores recorrentes nesse olhar que percebe a cidade como campo por excelência da experiência moderna.

Nesse viés, a cidade, por um lado, é apresentada como corporificação de um processo de aceleração do ritmo de vida responsável por mutações avassaladoras sobre o conjunto das disposições mentais dos indivíduos. A readequação psicossocial do ser metropolitano exige a mobilização crescente de energias ou, na incapacidade dessa resposta, redunda em mecanismos como a atitude blasé.(50) De toda forma, essa visão de cidade destaca o isolamento e uma perda de conexão que passam a ser condições básicas de uma nova forma de percepção dos citadinos. Face ao adensamento urbano, ao crescimento demográfico acelerado, o indivíduo dentro da "multidão" própria do ambiente citadino, torna-se parceiro da solidão, de um isolamento essencial.

Por outro lado, o ambiente metropolitano permite a liberação do indivíduo do controle e supervisão por outras pessoas, gerando aversão à sujeição de seu comportamento na intimidade por códigos morais diferentes do seu parâmetro pessoal. Nesse quadro de referência, o homem da cidade é aquele que desenvolve um processo permanente de individualização, em busca da identificação progressiva de interesses próprios. "Simmel está desde o primeiro momento associando a cidade moderna, a metrópole, à possibilidade intelectual de libertação e realização do indivíduo no sentido pleno da amplitude do pensamento, do 'cultivo' interior, aprimoramento da subjetividade. Trata-se da libertação, pelo pensamento, traduzida na reserva e no estranhamento ao controle provinciano".(51)

Assim, novos objetos e um novo olhar na imprensa da capital são processos que andam lado a lado com o desenvolvimento urbano, segundo a visão dos cronistas. A cidade, seja no crescimento de seus indicadores demográficos ou na expansão de sua topografia, seja por mudanças no campo político e econômico, impõe nova configuração aos contatos físico e sociais de seus habitantes. E, no mesmo movimento, o fenômeno urbano engendra novas formas culturais responsáveis pela remodelação do comportamento citadino.

Não podemos nos esquecer, contudo, que a fala do jornalista que abriu essa parte do trabalho, se apontava Belo Horizonte como um terreno fértil para germinar e crescer uma imprensa renovada, também imputava à cidade a condição de dique fundamental para o exercício de uma prática editorial "mais moderna". Dessa forma, as possibilidades abertas à ação dos diários no desenvolvimento material e espiritual da capital constituem apenas um dos sentidos de movimento do pêndulo. Não há como compreender o que se verifica na cidade, na perspectiva dos "homens de imprensa", desconsiderando o vaivém desses discursos. Como contraponto à perspectiva da cidade exemplo de progresso surge a dúvida: será mesmo a capital capaz de propiciar uma vida vertiginosa nos anos 30? Belo Horizonte do Diário da Manhã, do Correio Mineiro, do Estado de Minas, da Folha de Minas com estilo e ares de metrópole?

Lembremos que os indivíduos que povoam os hábitos de freqüentar futebol, cinema, bailes de carnaval, registrados como novos temas dos jornais, dizem respeito majoritariamente ao grupo social formado pelos estratos médios urbanos. São, sobretudo, os citadinos ligados a profissões liberais de formação superior e muitas vezes vinculados à burocracia estatal, apesar de todos estes costumes terem relação também com as práticas culturais e de lazer das camadas populares. Em suma, os protagonistas centrais dessas práticas visadas pela imprensa diária são também os leitores em potencial dos jornais.

E é exatamente no registro da experiência citadina do "seu leitor" que a "moderna", "febril", "inebriante" Belo Horizonte parece claudicar como uma realidade inquestionável. O Diário da Tarde, nesse sentido, dá como que um depoimento dessa ambigüidade através de uma crônica publicada em 1931. O jornal relata as dificuldades para que a pequena burguesia urbana tivesse acesso a uma vida cultural ativa numa cidade como a Belo Horizonte da época.

Reclamando da falta de opções para lazer na cidade, o narrador inicia o relato

(50) Conforme Georg Simmel, A metrópole e a vida mental, in Otávio Velho, op. cit.(51) Helena Bomeny, Mineiridade dos modernista. Tese de doutorado, Iuperj, 1991. p.39.

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identificando exatamente a ocupação social típica dos setores médios da sociedade da capital: o funcionário público. O ritmo do seu trabalho é o ritmo da cidade.

"Belo Horizonte é, toda ela, um grande livro de ponto. Com os indefectíveis minutos de atraso. (...) Ninguém se liberta do contágio alarmante do funcionário público. E os amanuenses somos eu, você, e as meninas bonitas que olhamos, furtivamente, nos bondes que levam às secretarias a grande fauna de estômagos mal alimentados. Quando não é pior: a maior parte, leitor imaginário, pertence ao número dos `contratados`.

Quando não amanuense e contratados de uma secretaria, pelo menos funcionário público da vida sem dinheiro. O que não deixa de ser o mesmo".(52)

A ocupação burocrática se confunde com a necessidade de administração da rala vida cultural na cidade. O amanuense/leitor imaginário prossegue seu itinerário. Depois de aventar a possibilidade de passar pelo parque municipal, intenção logo abandonada já que lá nada acontece e a vida apenas "escorre", retorna para

"um itinerário certo, de segunda a sábado: o trabalho e depois do trabalho, se há dinheiro, cinema, e se não há, o doce lar e uma viagem ao Bar do Ponto, onde se comentam as novidades políticas do último mês. E no domingo, doce lar outra vez.

E a vida, incerta, caminha devagar pelas ladeiras enormes. (Até parece literatura)."(53)

O jornalista segue seu desfiar do entediante cotidiano da cidade que, apesar de "grande cidade", em nada se assemelha às opções oferecidas por metrópoles como Rio de Janeiro e São Paulo. Os dois principais centros urbanos do país, certamente já visitados e muito percorridos imaginariamente através da imprensa destes estados, como que lembravam de um estilo e ritmo de vida do qual os belorizontinos se viam privados.

O contraste é feito, por exemplo, com a figura dos esportes náuticos, ou mesmo a mais "inofensiva" natação, que na capital mineira não se constituíam em opções.(54)

"Os banhos de sol, que dão alegria e até saúde, segundo os clínicos, jamais foram praticados em Belo Horizonte. E a natação é um esporte proibido. Só há dois recursos: a fazenda do Acaba Mundo e o córrego do Arrudas. Mas, naquela, a iniciativa é particular e no córrego do Arrudas a Polícia não consente que os meninos pobres de arrabalde se banhem nas suas águas barrentas. Resultado: as meninas da Praça tem uma cor doentia e os rapazes também.

O América anunciou que iria construir uma piscina para os sócios. Falou-se em fazer o mesmo no Parque Municipal. Mas os projetos foram esquecidos. E essa coisa tão vulgar em outras cidades, continua a ser, para nós, um problema de metafísica. O Prado Mineiro não comporta uma pista de corridas. Mas na Pampulha, oh! na Pampulha vai haver uma do outro mundo.

Projetos, projetos, projetos".(55)

Não se percebe, pois, a cidade de vida vertiginosa aventada anteriormente. No máximo, um sonho de urbe. O ritmo acelerado, as mudanças nos costumes, a efervescência do mundo urbano escapam ao relato do cronista. E, da melancolia que brota da imagem dos passeios

(52) À sombra das secretarias, Belo Horizonte aprendeu a esconder-se da vida ao ar livre, Diário da Tarde. 20/02/31, p.1(53) Idem.(54) Sobre a discussão acerca do papel dos esportes na redefinição da vida urbana e a percepção do citadino ver Nicolau Sevcenko, op. cit.(55) Idem.

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impossíveis trilhados na cidade projetada, resta o que a cidade vivida parece oferecer como consolo: cinema e futebol.

"Uma coisa, porém, ainda consola boa parte do povo: o futebol. Mas a maioria não conhece outra diversão que fuja do cinema. Mário, Ninão e Canhoto enchem nossas tardes mais bonitas de gritos, torcedores e vitórias esportivas. Pic-nics, passeios ao campo, nada disso. O futebol é rei."(56)

Futebol, cinema, carnaval, o próprio acontecimento sensacional e escandaloso da crônica policial, parecem ser, ao mesmo tempo, prova do desenvolvimento cultural da cidade, que impõe a imprensa moderna, mas também evidência de que somente a realidade dessas práticas na capital não sustentam um jornalismo inovador. A cidade, reclamam agora os jornalistas, não gerava o elemento básico dessa nova imprensa: notícia.

"As notícias eram escassas há 50 anos, em uma cidadezinha despretensiosa, onde só existiam duas indústrias (...) o comércio não se arriscava aos grandes empreendimentos, por medo da falência, e o povo se referia à Praça Raul Soares como um lugar longínquo, onde existia até morro, no local onde hoje fica a fonte luminosa. Tudo se resumia à burocracia estatal e ao seu bairro, o dos Funcionários, pequenas áreas da Floresta, o centro com seus bondes no Bar do Ponto e os estudantes".(57)

Quase nada de metrópole, tudo que lembrava província. Belo Horizonte, ao abrir e adentrar o segundo quartel do século, marcava, assim, uma certa ambigüidade na sensibilidade dos protagonistas da imprensa. Afinal, a progressista Belo Horizonte ainda guardava dentro de si um "cidadezinha qualquer", como diria o poeta. Uma cidadezinha onde as atividades quotidianas seguem num ritmo cadenciado, marcando o passo da "vida besta".

Nesse sentido, a Belo Horizonte do progresso ladeia e se confunde com a capital provinciana. Analogamente, podemos dizer que são representações polarizadas pelo que Hardman chamou de perspectivas eufórico-diurno-iluminista e melancólico-noturno-romântica, configurações típico-ideais no interior de um mesmo continuum mental feito de múltiplas e contraditórias combinações.(58) Pois, se não se trata de cotejar a "grande cidade" narrada anteriormente com uma pretensa cidade real, tampouco nos propomos a tomar como descrição da realidade a capital meio ronceira agora apresentada. De fato, a historiografia da cidade, como já apontáramos anteriormente, indica que, na conjunção dos anos 20 e 30, Belo Horizonte experimenta uma aceleração no seu processo de urbanização e industrialização. Processo esse que resulta em novas condições de vida material e cultural, embora ainda muito aquém da cidade desejada pelos jornalistas. A dimensão provinciana da capital sugerida nos discursos não deixa de ser, em alguma medida, também realidade efetiva desse meio urbano. Todavia, tais condições não podem ser traduzidas como a de uma situação de insulamento da cidade. Belo Horizonte, desde o momento mesmo de sua fundação, não estava à margem da ordem histórico-cultural que se impunha no país, articulada à expansão mundial do sistema capitalista. Tal processo, e todas as suas decorrências, (56) Idem.(57) Tempo de fato e mito, Estado de Minas. 08/03/77, p.4. Caderno comemorativo.(58) "Esse continuum apresentaria duas polaridades básicas, remetidas, à maneira de tipos ideais, a concepções de mundo que se desenvolveram como verdadeiras tradições fundantes do processo de modernidade: formas culturais híbridas e combinadas movimentavam-se - por aproximação ou por oposição - entre, de um lado, o que poderíamos nomear como sendo um pólo eufórico-diurno-iluminista, lugar de adesão plena e incontida aos valores próprias da civilização técnica e industrial, numa configuração que lembra determinada sorte de deslumbramento reificado, responsável pela produção, em alguns casos, de certas utopias tecnológicas futuristas; e, de outro lado, na extremidade oposta, o que chamaríamos de pólo melancólico-noturno-romântico, lugar por excelência da rejeição, às vezes sob o signo da revolta, mas, de todo modo, agônica e desesperada, do mundo fabricado nas fornalhas da revolução industrial, figurando, assim, imagens emblemáticas de máquinas satânicas e criaturas monstruosas, em todas as suas possíveis variantes, herdadas, na origem, de tradição anticapitalista e anticivilização moderna própria do romantismo". Francisco Foot Hardman, Antigos Modernistas, in Adauto Novaes (org.), Tempo e história. São Paulo, Companhia das Letras. 1993. p.292.

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como alterações significativas na percepção espaço-temporal das pessoas, tinham incidência também sobre a cotidianidade dos habitantes da capital. Não era estranho ao belorizontino dos segmentos médios, por exemplo, o contato com inovações tecnológicas que estavam no centro dessas transformações: a eletricidade é equipamento urbano desde os primórdios da capital; a intensificação das trocas materiais e simbólicas tem na expansão de linhas férreas um poderoso aliado; o telégrafo, o linotipo, a rotativa, o aperfeiçoamento da fotografia, o cinema influenciavam e organizavam sobremaneira o ritmo da vida urbana. O traçado e a concepção urbanística da capital, por sua vez, calcados num ideal de engenharia pública que traduzia uma perspectiva de progresso e modernização industrial, impunha efetivamente formatos e condições materiais de vida à população distintos das cidades construídas sem o ideal do planejamento. Tais fenômenos se dão articulados e no interior do processo de construção de fato do Estado Nacional, deflagrado com a República no século XIX, e que implica ações de homogeneização e padronização vistos como necessário à edificação de uma identidade nacional. Além disso, não se pode esquecer, Belo Horizonte convive e se produz também, desde as primeiras horas, através da ação de dois personagens emblemáticos dessa "vida moderna" em expansão: o imigrante e o movimento operário.(59) Pode-se, certamente, discutir se esses elementos estão configurados no interior de um processo de formação de uma sociedade urbano/industrial ou se restringem, nesse momento, à difusão cultural de um gênero de vida, o burguês ocidental, tipicamente citadino.(60)

Todavia, não buscamos contrapor cidade física/cidade imaginada. Nosso objetivo foi o de revolver um conjunto de idéias que, no ato de plasmar imagens de cidade, produz coordenadas simbólicas poderosas para desencadear e possibilitar uma prática cultural específica. Em suma, trata-se de perceber aspectos da lógica de um sistema de significações que organiza a prática do jornalismo e, a nosso ver, se constitui em elemento essencial para o entendimento da movimentação ocorrida no mundo da imprensa local.

Nesse sentido, seria importante juntar novamente aquilo que a ligeira análise feita até aqui separou: Belo Horizonte, traduzida simultaneamente em cosmopolita e provinciana. Uma cidade que se materializa na aspiração de espaço propício ao desenvolvimento cultural e na percepção de um ambiente provinciano. A capital é, pois, uma espécie de solução onde restam dissolvidas essas duas perspectivas de vislumbrar a relação imprensa/cidade.

A experiência da cidadeBelo Horizonte é o palco e cenário da construção de identidades dos intelectuais, luta

empreendida desde a sua inauguração.(61) Planejada para se tornar centro de unificação política, indutor de desenvolvimento econômico e irradiador de cultura, a capital ainda se mostrava profundamente provinciana nos twenties. Até então, a intelectualidade da capital ainda "sofria do insulamento, do isolamento do 'cosmos'. A atividade intelectual se alimenta do mundo, dos grandes centros, do acesso à informação, do diálogo, do convívio estreito com a produção universal. Ser intelectual na Belo Horizonte pequena, interiorana e distante era estar condenado ao isolamento da 'corte' que interessava. O Rio de Janeiro e São Paulo, mais do que exercer fascínio, lembravam aos mineiros aquilo a que estavam condenados: ao provincianismo tão distante de tudo que as obras universais traziam aos olhos e sentidos do homem de letras. Condenados estavam ainda à convivência com o limite que a formação interiorana impõe, e ao drama de, sendo provincianos, sentirem e pulsarem intelectualmente pelo mundo".(62)

(59) Sobre a presença da classe operária em Belo Horizonte nas três primeiras décadas da cidade ver Maria Auxiliadora Faria e Yonne de Souza Grossi, A classe operária em Belo Horizonte (1897-1920), V Seminário de estudos mineiros. Belo Horizonte, PROED, 1982.(60) O novo gênero de vida diferencia a população urbana em níveis econômicos, "porém muito mais culturalmente, sendo que as camadas superiores adotam como sinal distintivo o requinte e um arremedo de cultura intelectual. Sobre isso ver Maria Isaura Pereira de Queiroz, Cultura, sociedade rural, sociedade urbana no Brasil. São Paulo, LTC/EDUSP, 1978.(61) Helena Bomeny, Cidade, República, Mineiridade, Dados - Revista de Ciências Sociais. Rio de Janeiro, vol.30, nº 2, 1987, p187-206.(62) Idem p.192

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A tensão entre o isolamento e o impulso ao cosmopolitismo é caminho inescapável para explicação de como é produzido o mundo da "Rua da Bahia". Pedacinho de metrópole, fragmento de vida cosmopolita, ponto nevrálgico da cidade, a rua metaforiza o coração e cérebro de Belo Horizonte. Reproduzia para a intelectualidade, como forma de amenizar o isolamento, a sensação cosmopolita negada por aquele meio urbano. Assim, não passaria de uma espécie de miragem a idéia de que Belo Horizonte era capaz de garantir a emergência da individualidade do cidadão urbano, no sentido proposto por Simmel, ou mesmo das formas culturais urbanas, pensadas pela Escola de Chicago. A lógica do "mundo rural", com tudo que tem de personalismo, tradicional na conformação das relações sociais, transfere-se para relações que permeiam o espaço urbano da capital. Para esse segmento social existia, na realidade, a convivência entre o universo urbano como valor face a uma situação ainda com a marca do provinciano, numa polaridade que é própria ao fenômeno urbano em suas variantes latino-americanas.(63)

Por esse caminho, talvez possamos ver na imprensa um dos mecanismos acionados para diluir a realidade de isolamento que a capital impunha à vida intelectual. Um artifício, uma forma de ampliar uma experiência que, a rigor, se chocava com os limites sociais, culturais e institucionais impostos pela cidade. A imprensa tornava-se uma das formas de pulsar intelectualmente o mundo.

Ocorre, todavia, que a visão da Belo Horizonte provinciana carrega também suas convenções. Na impossibilidade de significar desenvolvimento, progresso, a cidade pode não ser percebida somente como obstáculo a formas modernas de experiência. A Belo Horizonte que falta, a metrópole que poderia desenvolver um tipo de imprensa "moderna" não é, necessariamente, mais desejada do que a cidade vivida pelos "homens de imprensa".

O escritor Cyro dos Anjos, expoente do periodismo local, parece nos alertar para tal questão. Quando de sua mudança para Belo Horizonte, em 1923, vindo do interior após concluir o colegial, ele constata que "embasbacado não fiquei, mas entusiasmo sentia. Uma coisa era ter estado em Belo Horizonte passageiramente, e outra, habitá-la, gozá-la".(64) E sentir a cidade é experimentá-la em toda a ambigüidade que promove na sensibilidade dos indivíduos.

"Largas e vazias eram as ruas de Belo Horizonte em 1923, mas tudo me parecia trepidação, formigamento, em contraste com o paradeiro que Santana me deixara na retina. (...) Desapontamentos viriam. O mundo que me esperava não conferia com o imaginado".(65)

Vendo Santana no contraluz, não duvida: Belo Horizonte servia-lhe como metrópole. Ansioso pelo footing na Praça da Liberdade, gozando imaginariamente as sessões possíveis no cinema da capital, apossando-se, enfim, de um status de cidadão metropolitano, o protagonista perceberia, em seguida, outra face da cidade. A Belo Horizonte com a qual se deparava produzia também um distanciamento nas relações afetivas com os amigos, que na capital não mantinham o mesmo entusiasmo da amizade cultivada no interior. Além disso, a capital parecia perpetrar uma sensação de impotência e estranhamento ante a lógica de funcionamento das relações nessa sociedade. Vazios também pareciam os contatos naquela cidade em face do espaço coletivamente apropriado da comunidade perdida.

"A pequena metrópole crescia, avolumava-se, esmagava-me. (...) Imersos no seu mundo novo, que nada tinha de comum com o meu, os amigos deixavam-me outra vez tão solitário como dois anos antes, ao partirem de Santana."

"Em Santana, o Largo de Cima, o de Baixo, a Rua do Bispo - velha

(63) Conforme hipótese desenvolvida por Richard Morse e citada por Helena Bomeny, Guardiães da razão. Rio de Janeiro, UFRJ/Tempo Brasileiro, 1994. p.65.(64) Cyro dos Anjos, op. cit., p.199(65) Idem, p.199

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estrutura emoldurada pelo hábito - infundia-me confiança, apaziguava-me. Penduravam-se das coisas o mormaço e o tédio, mas o mundo físico sustinha de certo modo o mundo moral. Na álgida Belo Horizonte, não havia escoras. Se me via só, a cidade avultava dentro de mim, ensoberbava-se, negando o afeto que eu, mendigo orgulhoso, pedia sem estender a mão".(66)

Se Belo Horizonte não era o Rio de Janeiro almejado em muitos momentos, não se assemelhava à melancolicamente lembrada Santana de outrora. Mas podia ser vivida como metrópole, no sentido de produzir algum tipo de estranhamento para a vida dos habitantes. Uma cidade superficial, "a 'cidade racionalista' que liquida as referências individuais e coletivas. O individual, o qualitativo, o heterogêneo são excluídos do espaço urbano".(67)

(66) Idem, p.275(67) Olgária Matos, Os arcanos do inteiramente outro. São Paulo, Brasiliense, 1989. p.79

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Para os protagonistas da imprensa o que importaria, nesse caso, seria que os jornais lhes possibilitassem estabelecer contatos sociais que o mundo de pessoas aparentemente estranhas da cidade impedia. Em alguma medida, a imprensa poderia, pois, ser vista também como um instrumento para desenvolver alguma forma de senso comunitário dentre aquele agrupamento de jornalistas. Ela permitiria aos seus praticantes instituir ligações com o ambiente urbano de forma que o processo de diferenciação e "anonimato" fosse contrabalançado pela emergência de novas formas de reciprocidade social. A esse restrito núcleo intelectual a imprensa possibilitaria resguardar uma cidade onde os habitantes se auto-reconheçam e sejam reconhecidos pelos outros. Em suma, ajudaria a estabelecer espaços de convivência e sociabilidade em tese perdidos. Subtraídos não somente pelo crescimento espacial da cidade, mas pela emergência de novos ritmos

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de vida e formas de experiência social.A relação imprensa/cidade poderia estar, pois, sendo definida também pela

referência a uma percepção dos jornalistas de planos variados de convivência. Fazer imprensa na Belo Horizonte dos anos 20 e 30 seria, por um lado, a possibilidade de alcançar ares cosmopolitas e, por outro lado, a reconstituição de alguma sorte de senso comunitário. A renovação da imprensa coloca em perspectiva a possibilidade de progressiva liberação dos indivíduos de laços de dependência pessoal mas pode também servir de anteparo para a condição de estrangeiro no mundo urbano, de solitário num "mundo de estranhos". Diante de uma virtual impossibilidade de manutenção de antigos modos de solidariedade comunitária e territorial, o fazer imprensa poderia representar novos laços de associação.

Assim, o jornal é para os "homens de imprensa" uma maneira de possuir e exprimir a cidade. O dilema dos jornalistas, que se traduzirá nas suas representações em dilema do espaço da imprensa local, é se confrontar com uma espécie de fome que têm da cidade e um certo paradoxo do "olho maior que a barriga". A imprensa renovada que se presentifica por esta ocasião em Belo Horizonte percebe a cidade como sua parceira indeclinável na instalação da modernidade editorial. Mas, talvez até por verem essa modernização da imprensa pelas lentes da imprensa dita "nacional" - a de Rio e São Paulo - acreditam que a sua prática aspira a mais do que pode a sua cidade.

Talvez, percebendo o virtual processo de nacionalização da imprensa dos centros principais, os homens da imprensa de Minas estejam começando a se debater com o problema de buscar o espaço particular da imprensa da capital mineira. E, nesse processo, a representação que fazem os jornalistas da relação imprensa/cidade não se baseia numa percepção uniformizadora da sua experiência. A ambigüidade e a variação são modulações mais evidentes dessas mudanças, vistas de dentro, no periodismo da capital. E a cidade, aos invés de simples realidade espacial ou demográfica, mero contexto de ação ou responsável por um estado de espírito específico, torna-se uma das formas de se pensar a questão da renovação da imprensa. A partir do seu dilema particular os "homens de imprensa" de Belo Horizonte deixam um rastro, uma pegada: a experiência da cidade aparece como a lógica das novas práticas jornalísticas.

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