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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ACRE UFAC
PR-REITORIA DE PESQUISA E PS-GRADUAO
MESTRADO EM LETRAS: LINGUAGEM E IDENTIDADE
REA DE CONCENTRAO: LINGUAGEM
LINHA DE PESQUISA: CULTURA E SOCIEDADE
INAUDVEIS E INVISVEIS:
Representaes de negros
na historiografia acreana
Rio Branco, Acre
2011
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ACRE UFAC
PR-REITORIA DE PESQUISA E PS-GRADUAO
MESTRADO EM LETRAS: LINGUAGEM E IDENTIDADE
REA DE CONCENTRAO: LINGUAGEM
LINHA DE PESQUISA: CULTURA E SOCIEDADE
INAUDVEIS E INVISVEIS:
Representaes de negros
na historiografia acreana
Rio Branco, Acre
2011
3
FLVIA RODRIGUES LIMA DA ROCHA
INAUDVEIS E INVISVEIS:
Representaes de negros
na historiografia acreana
Dissertao apresentada ao Programa de
Mestrado em Letras: Linguagem e
Identidade, da Universidade Federal do
Acre UFAC, como requisito para a
obteno do ttulo de Mestre em Letras.
Orientador: Professor Doutor Gerson
Rodrigues de Albuquerque
Rio Branco, Acre
2011
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5
FLVIA RODRIGUES LIMA DA ROCHA
INAUDVEIS E INVISVEIS:
Representaes de negros na historiografia
acreana
BANCA EXAMINADORA:
Prof. Dr. Gerson Rodrigues de Albuquerque Orientador Universidade Federal do Acre
Prof. Dr. Francisco Bento da Silva Membro Universidade Federal do Acre
Prof. Dra. Simone de Souza Lima Membro Universidade Federal do Acre
Rio Branco, Acre
2011
6
queles a quem ns pesquisadores
no temos ouvido nem visto,
nem tampouco dado vozes
em nossas pesquisas.
Em especial, aos negros do Acre.
7
AGRADECIMENTOS
Ao Esprito Santo, sem o qual eu jamais conseguiria sequer entrar no mestrado,
muito menos sair.
Aos meus pais, que sempre me ensinaram o valor da educao, tendo eles
prprios contribudo muito com a educao deste estado, atravs do ofcio de
professores. E por terem me presenteado com um notebook quando passei na seleo
deste mestrado. Ao meu irmo, que tambm seguiu a profisso da famlia, na rea de
Ingls, e que me ajudou com o abstract desta dissertao. Ao meu amado esposo, pelo
incentivo contnuo, pela presena sempre disponvel e pelas horas roubadas para a
pesquisa. Ao meu filho querido, pela compreenso da ausncia nas horas dedicadas a
este trabalho. s amigas queridas que sempre me apoiaram, inclusive com favores
impagveis, como Roslia e Ivonete, que me ajudaram na digitao; Tavifa e Jussara,
que me ajudaram, dentre outras coisas, nas entrevistas; Ceildes e muitas outras,
inclusive s colegas de mestrado, que nem cabem aqui, pelo apoio nas horas difceis.
s direes e coordenaes das escolas onde trabalhei durante os anos do
mestrado, Ozineide, Maria Raimunda, Evinaldo e Oneide, pela compreenso, pelo apoio
e, sobretudo, pela generosidade em cumprir a lei complementar n 39, que ampara o
professor que se esfora em aprimorar sua formao educacional, mesmo desafiando a
prpria Secretaria de Estado de Educao, que nas palavras de alguns de seus
representantes contemporneos declara que no tem interesse algum que seus
professores aperfeioem sua formao em Cursos de Mestrado. Aos meus alunos, pela
pacincia, pela compreenso e pelo apoio, em dividirem a professora com a
pesquisadora, que durante estes anos ocupou muito mais o espao do que a primeira.
Aos meus queridos colegas de historia que muito me ajudaram e incentivaram
no projeto inicial, com indicaes, emprstimos de livros e outra srie de gentilezas,
como Tereza Cruz, Gergia Lima, Jos Dourado, dentre outros. Especialmente mulher
negra Professora Doutora Maria Jos Bezerra, que muito me inspirou nesta pesquisa,
com seu grande incentivo, generosidade e boa vontade em contribuir para o alargamento
do conhecimento.
8
Aos professores do mestrado, que muito contriburam para a elevao de meus
conhecimentos e para meus progressos acadmicos.
banca que me examinou, Professores doutores, Francisco Bento da Silva e
Simone de Souza Lima, pelo tempo dedicado e pelas contribuies preciosas que muito
me ajudaram a lapidar meu texto, sendo a maioria delas incorporadas ao texto final,
sendo as que no assim o foram foi por razo de falta de tempo e no por descaso.
Aos Professores Doutores entrevistados, Valdir Calixto e Cleuza Ranzi, pela
generosidade e pela sabedoria destilada em minha pesquisa, que muito contriburam
para melhorar minha compreenso sobre meus estudos.
s minhas lideranas espirituais, Pra. Socorro Braga e Helen Braga, que foram
fundamentais em meus momentos de desistncia, lembrando-me que o conhecimento e
a sabedoria so ddivas divinas.
Um agradecimento especial ao meu orientador, Professor Doutor Gerson
Rodrigues de Albuquerque, que, com sua capacidade intelectual incomparvel, me
orienta desde a graduao, auxiliando-me desde o projeto inicial ao texto final.
Agradeo pelo tempo dedicado, por ter acreditado em meu projeto, remodelando-o a
uma conjuntura mais realista e adequada a este programa de mestrado. Muito obrigada
por no ter desistido de minha pesquisa mesmo em meus momentos de dormncia
acadmica, levando-me sempre a acordar e a retomar a caminhada at o momento final.
9
Um dia discursa a outro dia,
E uma noite revela conhecimento a outra noite.
No h linguagem, nem h palavras,
E deles no se ouve nenhum som;
No entanto, por toda a terra se faz ouvir a sua voz,
E as suas palavras, at aos confins do mundo.
(Salmos 19:2-3)
10
RESUMO
Esta pesquisa um estudo sobre o negro e suas representaes na historiografia acreana.
A partir da leitura e anlise de algumas obras que abordam a histria do Acre procura-se
identificar e compreender o tratamento que esta historiografia dispensou ao sujeito
negro, presente na formao histrica da regio, pontuando as formas de silenciamento
sobre essa presena e seus significados histricos. Alm disso, a modernidade posta
nesta pesquisa sob uma perspectiva diferenciada, que, ao invs de trazer ordem e
progresso, trouxe escravido e desumanidade, silenciando o negro como sujeito
histrico. Nesta dissertao as representaes historiogrficas ganham relevo,
especialmente, porque a fora da linguagem escrita tem subordinado outras formas de
percepo e de insero de diferentes grupos humanos no universo sociocultural
amaznico.
Palavras-chaves: discursos - negros historiografia Amaznia acreana
11
ABSTRACT
This research is focused on the nigger and his representations in the historiography of
Acre State. By reading and having some analysis of some works which talk about the
History of Acre it is tried to identify and understand the treatment this historiography
has dismissed to the black subject, who is present in the historic formation of this
region, setting out the ways of silencing about this presence and its historical meanings.
Besides, the modernity is put on this research under a differentiated perspective, which,
was supposed to bring order and progress, instead of that fact, has brought slavery and
inhumanity, silencing the nigger as a historic subject. In this thesis the historiographical
representations get some beard, especially, because the power of written langue has
subordinated other ways of perception and insertion of different human groups in the
amazonic sociocultural universe.
Key-words: speeches niggers historiography Acreana Amazon.
12
SUMRIO
INTRODUO ........................................................................................................... 13
CAPTULO I
Representaes sobre as origens histricas do Acre brasileiro ................................ 17
CAPTULO II
Negros e Amaznia acreana: dicotomias em livros didticos ....................................... 36
CAPTULO III
A subtrao do negro dos discursos historiogrficos oficiais no Acre .......................... 54
CONSIDERAES FINAIS ...................................................................................... 84
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ...................................................................... 88
13
INTRODUO
A presente dissertao o resultado de uma pesquisa acerca dos discursos sobre
o negro na historiografia acreana. A motivao inicial o conhecimento que tenho sobre
a presena negra na formao histrica e na histria do Acre, a partir de pesquisas que,
ainda que em pequena escala, evidenciam a importncia de afro-descendentes na
constituio histrica dessa regio. Busco tambm compreender o tratamento
dispensado ao sujeito negro na historiografia acreana, e ainda entender as causas de tais
tratamentos expressos na linguagem historiogrfica.
A iniciativa de realizar esta pesquisa partiu de minha insatisfao com o
silenciamento sobre os negros que fizeram e fazem parte da composio sociohistrica
do Acre. Esta observao vem sendo realizada desde minha graduao como licenciada
em histria pela Universidade Federal do Acre (UFAC ), principalmente atravs dos
estudos de Histria do Brasil e do Acre, onde as vertentes predominantes da
historiografia tm silenciado sobre a presena negra na regio acreana. Obras oficiais,
documentos, artigos e todo um aparato discursivo tem sido produzido acerca de histria
do Acre em sua formao e consolidao, onde reina um pesado silncio acerca da
questo.
A produo historiogrfica que exclui do processo de formao histrica do
Acre no somente os afro-descendentes, mas tambm outros grupos sociais, ou que lhes
relega papeis secundrios, passou a fazer parte de minhas reflexes desde uma pesquisa
que realizei em 2002, como graduanda em Histria, durante a organizao do Simpsio:
100 Anos de Revoluo Acreana1, momento no qual, estudando processos de
veteranos da Revoluo Acreana, produzidos pelo extinto Instituto Histrico e
Geogrfico do Acre e, atualmente, sob a guarda do Museu Universitrio da UFAC, pude
ter acesso a uma boa amostra de informaes sobre imigrantes que vieram colonizar o
Acre. Um dos itens dos processos dos veteranos com os quais trabalhei era a cor do
veterano que, em sua maioria, aparecia como branca ou parda. Rarssimas vezes
aparecia a cor morena e mais reduzida ainda a negra ou preta2.
1 Pesquisa proporcionada pela disciplina de Histria do Acre, ministrada pelo Prof. Dr. Gerson Rodrigues de Albuquerque. 2 Nos ltimos anos o IBGE vem agregando pretos e pardos categoria negros, mas durante muito tempo a cor parda foi usada como camuflagem para a cor negra, no revelada pelo enorme preconceito contra ela desenvolvido durante os sculos coloniais e consolidado posteriormente em um pas negro, porm racista.
14
Entretanto, em estudos paralelos percebemos a presena negra em diferentes
contextos da vida do territrio acreano, ainda que nas entrelinhas de certos textos ou na
produo iconogrfica que contrariava as verses oficiais. No final do sculo XIX e
incio do XX, por exemplo, quando ocorreram diversas revoltas na recente repblica
brasileira, uma das frequentes e consideradas das mais terrveis punies era o desterro
dos revoltosos para a Amaznia, regio na qual se encontrava o Acre. Assim, vrios
envolvidos em episdios como a da Revolta da Vacina e Revolta da Chibata, entre
outros, a grande maioria composta por afrodescendentes foram deslocados para a
Amaznia acreana3.
Acompanhando esparsas referncias sobre a presena de afrodescendentes no
processo de colonizao acreana tambm temos a presena do negro como encarregado
de ndios e desbravadores dos rios acreanos, como caso de Manuel Urbano da
Encarnao, o chamado preto bom. Alguns negros tornaram-se referncias nos relatos
oficiais da Revoluo Acreana, como Pio Nazrio e Capito Ciraco; percebemos
ainda a presena negra na formao de vrios povoados acreanos como o da Unio
Baiana, na BR-317, e a Rua frica (atual 1 de Maio), no 2 Distrito da cidade de Rio
Branco. Podemos notar tambm essa presena na formao de vrios elementos da
cultura acreana como na fundao da religio da floresta, o Santo Daime, fundada e
divulgada por negros colonizadores do Acre, como os irmos Costa, Irineu Serra e
Daniel Matos. Dentre esses elementos temos tambm a capoeira, trazida para o Acre na
dcada de 70 pelo negro Natlio Miranda dos Santos, o Baiano4.
Percebemos, ento, que a questo tnica foi silenciada pelo discurso das instituies
oficiais e pela produo historiogrfica que aborda a formao e os processos histricos
que constituram o Acre. Sabemos, entretanto, que nenhum discurso ingnuo e
desinteressado, mas que historicamente produzido, de acordo com a perspectiva de
quem os produz.
O texto aqui a ser apresentado sofreu diversos recortes, arranjos e redefinies.
Minha primeira inteno era a de escrever uma histria sobre a presena negra no Acre,
demarcada pelo perodo da colonizao acreana. Entretanto, esta era uma pesquisa com
foco em Linguagem e Identidade, portanto, depois de receber as contribuies das aulas
3 SILVA, Francisco Bento da. Acre, a ptria dos proscritos: prises e desterros para as regies do Acre em 1904 e 1910. Curitiba: Universidade Federal do Paran, 2010. Tese de Doutorado em Histria. 4 FUNDAO PALMARES. Negros no Acre. Rio Branco, Acre. [s.n.; ca. 1999].
15
ministradas, com suas informaes e discusses conceituais e metodolgicas e de muita
orientao a pesquisa definiu-se pelo estudo sobre o negro na historiografia acreana.
Uma das disciplinas que muito contriburam para minhas reflexes foi a de
Discursos, Sujeitos e Identidades, ministrada pelas Professoras Doutoras Vernica
Maria Kamel de Oliveira e Maria do Rosrio Gregolin, que me fizeram compreender a
noo de discurso como algo que sempre uma construo histrica, datada e secular.
Outra disciplina de grande importncia para o desenvolvimento de minha pesquisa foi
Linguagem, Sociedade e Diversidade Amaznica, ministrada pelo Professor Doutor
Gerson Rodrigues de Albuquerque. Esta disciplina possibilitou compreender a noo de
que a Amaznia uma regio heterognea e multifacetada em suas manifestaes
culturais e que seu sentido singularizado uma inveno do mercado, como nos aponta
Neide Gondim.
Durante o curso, foi possvel manter contato com autores como Stuart Hall e Paul
Gilroy, que discutem a questo do negro no contexto moderno. A longa discusso sobre
colonialismo e suas consequncias, sobre modernidade, ps-modernidade e
modernidade tardia, encontradas em autores como Frantz Fanon, Edward Said, douard
Glissant e Nestor Canclini dentre outros, que, ultrapassando a disciplina citada,
alcanaram os debates e discusses no mbito do Simpsio Linguagens e Identidades
da/na Amaznia Sul Ocidental, contriburam para a ampliao de minhas reflexes
acerca da temtica em estudo.
Sendo assim, o texto a seguir o resultado de uma pesquisa onde o principal sujeito
de estudo o negro no contexto da historiografia acreana. Ou seja, o tratamento que a
escrita da histria tem dado questo tnica. Ressalte-se que, para o desenvolvimento
desta pesquisa, selecionamos quatro obras historiogrficas, sendo duas acadmicas:
Formao Histrica do Acre, de Leandro Tocantins, e Razes do Acre, de Cleusa Ranzi;
e duas didticas: Acre: uma histria em construo, de Valdir Calixto, Josu Fernandes
de Souza e Jos Dourado de Souza, e Histria do Acre: novos temas, novas abordagens,
de Carlos Alberto de Souza. A escolha destas obras est diretamente ligada sua grande
circulao no Estado do Acre, podendo ento ser consideradas como algumas das obras
mais lidas, mais estudadas e influentes em reproduzir a historia do Estado do Acre.
Alm disso, a escolha por trabalhar apenas com as ltimas edies de cada uma destas
obras deveu-se ao fato de no haver mudana relevante de uma edio para outra no que
diz respeito ao discurso que se projeta sobre o negro no Acre, que o centro de minha
pesquisa.
16
O primeiro captulo percorre os contedos das obras historiogrficas em estudo, a
comear por Formao histrica do Acre, em verso editada pela Grfica do Senado
Federal. A obra uma radiografia da formao histrica do Acre, desde os primeiros
exploradores/colonizadores at os tratados que deram a esse territrio a nacionalidade
brasileira. A segunda obra em anlise Razes do Acre, de Cleusa Ranzi, adaptao de
sua dissertao de mestrado, tambm dos anos 1980. Essa publicao apresenta algumas
inovaes na forma de escrever a histria no Acre, pois aborda personagens ainda no
mencionados na formao do Estado do Acre.
O segundo captulo estuda dois livros didticos de histria do Acre. Sendo que, o
primiero foi produzido por um grupo de professores da Universidade Federal do Acre,
no incio dos anos 1980, e publicado pela Fundao de Desenvolvimento de Recursos
Humanos de Cultura e do Desporto. O mesmo, tambm ligada ao Estado do Acre,
contm uma linguagem mais acessvel e abrange temticas outrora silenciadas pela
historiografia amazonialista. Por fim, a ltima obra em estudo o livro didtico, que
desde os anos 1990 ganhou as escolas de rede bsica. Escrita pelo professor Carlos
Alberto Alves de Souza, uma proposta de ruptura com as formas de escrever a histria
acreana.
O terceiro captulo se volta para a anlise acerca do tratamento dado ao negro na
historiografia acreana, geralmente, marcada pelo mesmo vis da historiografia brasileira
que silenciou sobre o pano de fundo dos significados da influncia de africanos e/ou
seus descendentes na formao histrica brasileira e de todo o continente americano.
Busca-se, ento, neste captulo, compreender os motivos historicos do silenciamento do
negro nos discursos oficiais, representados no apenas pela historiografia acreana, mas
por todo um conjunto discursivo e no localizado, mas generalizado. Relacionado-se
intensamente este silenciamento do negro com o advento da modernidade.
17
CAPTULO I
Representaes sobre as origens histricas do Acre brasileiro
PARA UM NEGRO
Para um negro
A cor da pele
uma sombra
Muitas vezes mais forte
Que um soco.
Para um negro a cor da pele
uma faca
Que atinge
Muito mais em cheio
O corao.
(Ado Ventura)
18
A formao histrica ou as razes do Acre esto no cerne das reflexes que
pautaram grande parte dos estudos historiogrficos sobre a Amaznia acreana. A partir
dessa ideia de origem e, principalmente, seguindo a linear e evolutiva trajetria da
formao da sociedade acreana muito se escreveu e se inseriu de forma profunda nos
imaginrios que acompanham leituras e interpretaes sobre essa regio. O objetivo
deste captulo trazer a lume os principais aspectos de duas obras que se propem a
fazer uma abordagem sobre a formao histrica do Acre, tendo como autores Leandro
Tocantins e Cleusa Ranzi.
Leandro Tocantins e a Formao histrica do Acre
Formao Histrica do Acre, cuja primeira edio foi publicada em 1961,
projetou Leandro Tocantins como historiador em um amplo cenrio, tanto nacional
quanto internacional, aps longos oito anos de intensa e vasta pesquisa. Mais de uma
dcada depois, foi publicada a segunda edio (1973), sob a gide do governo militar. A
obra retornou em forma de edio especial, em comemorao ao centenrio de Plcido
de Castro, por decreto do presidente Emlio Garrastazu Mdici e portaria do ministro
acreano Jarbas Passarinho. Poucos anos depois, em 1979, editou-se a obra pela terceira
vez, por indicativa do ento governador do Acre, Geraldo Mesquita, por reconhecer em
a Formao do Estado do Acre o papel que deve desempenhar na educao e na cultura
acreanas (TOCANTINS, 2001: 17).
Em seus escritos Tocantins trata de exaltar a epopia acreana, onde a geografia
condiciona e naturaliza a ocupao do territrio acreano por brasileiros. Influenciado
por Euclides da Cunha e por Craveiro Costa, o autor expe a facilidade de acesso a essa
regio pelos brasileiros em contraposio situao boliviana. Afirma que o Acre era o
Destino Manifesto do Brasil. Alis, a obra repleta de comparaes entre o processo
de ocupao do territrio do Acre com a Marcha para o Oeste nos Estados Unidos da
Amrica do Norte. E quanto legitimao desta ocupao, interessante notar o firme
posicionamento do autor em afirmar brasileiro o Acre e que este no deve nada para a
Bolvia, uma vez que este territrio foi ocupado e teve sua selva domada pelos bravos
nordestinos, que se adaptaram regio.
Alm disso, no contexto da obra o autor reconhece a legitimidade do Acre como
brasileiro por sua identidade intensa com o Brasil, atravs da lngua, costumes e
19
sentimentos de pertencimento. Afirma ainda que a regio acreana mais brasileira do
que as demais regies que passam por um processo de europeizao dentro do pas.
Tocantins afirma que seu objetivo narrar fatos e fazer a anlise de fatores que
contriburam para a criao do Acre como drama fronteirio no campo do
expansionismo demogrfico indicado pelo rumo dos rios, como reas de trabalho onde
se formou a sociedade padro da borracha.
A obra est organizada em dois volumes, doze partes e setenta e dois captulos.
Sendo a mesma iniciada pelas dedicatrias e agradecimento, seguidos de nota
explicativa e os prefcios das edies anteriores e, ainda, a introduo do autor antes de
dar incio primeira parte. O primeiro volume composto por oito partes e quarenta e
quatro captulos, reservando-se os demais para o segundo volume, que tambm tem
incio com apresentao e prefcios.
Formao histrica do Acre, como afirma o prprio autor, no se prope a
escrever uma histria do Acre, mas to somente sobre seu processo de formao
histrica, tendo em vista que uma narrativa de histria do Acre exigiria uma abordagem
de fatos mais recentes e a obra culmina com o Tratado de 1909, que colocou um termo
s divergncias de limites entre Brasil e Peru, inclusive com base em uma negociao
muito mais difcil que a negociao do Tratado de Petrpolis, entre o Brasil e a Bolvia.
Assim, seu recorte temporal entre o processo demarcatrio e explorao econmica da
regio acreana at os tratados que a regularizam como efetivamente brasileira.
Tocantins afirma ter um compromisso explcito com a verdade dos fatos e
orgulha-se de ser imparcial: Porque foi histria o que procurei fazer, imparcialmente
preso ao documento, aos fatores geogrficos, polticos, sociais, geopolticos,
econmicos, ecolgicos, e humanos, que dizem respeito Bolvia e ao Brasil, no caso
do Acre ((TOCANTINS, 2001: 16). Ainda na introduo o autor afirma ter uma
abordagem metodolgica aristotlica: primeiro, investigar os fenmenos e registr-los;
a segunda parte compreende a elucidao por meio do estudo comparativo dos fatos; e a
terceira a recriao artstica dos fatos em forma de fico (TOCANTINS, 2001: 34-
35), ou seja, Tocantins inicia a produo de sua obra por meio de sua longa pesquisa por
meio da investigao dos acontecimentos, que ele chama de fenmeno, os quais
registra, para posterior compreenso, para ento transformar seu conhecimento em
escrita, atravs de uma linguagem quase potica, chegando ento o autor a denominar
sua escrita como arte ficcional.
20
As fontes de pesquisa de Tocantins reportam-se, em sua quase totalidade, a
documentos oficiais encontrados em arquivos, centros de documentao e bibliotecas
nacionais e internacionais, fontes essas dotadas de uma perspectiva etnocntrica de
classe dominante. A forte influncia euclidiana na escrita de Tocantins como o
determinismo geogrfico sobre a construo social da regio, o carter valente e
desbravador dos nordestinos em meio a natureza selvagem, tambm denuncia sua linha
terica na produo desta obra.
Quanto ao tempo histrico, o autor prope uma temporalidade linear em que h
uma srie de fatos encadeados, prprios da gnese das civilizaes, que intervm,
imprimindo rumos imponderveis; ou a cristalizao dos fatos no decorrer dos tempos
quando ento vem o desfecho inevitvel e definitivo (TOCANTINS, 2001: 33).
Assim, Tocantins afirma que cada fato deve ser apreciado como um componente deste
todo linear que a histria, no podendo ser compreendido isoladamente.
No corpo principal de sua obra Tocantins trata de narrar o contexto europeu
moderno no qual sua temtica se insere, como as disputas entre Portugal e Espanha por
rotas martimas que os levassem at as ndias. Disputas estas que transformam toda uma
mentalidade medieval e levam o homem a romper seus limites, bem como a romper os
limites geogrficos de seu conhecimento chegando at o Novo Mundo. Esta parte
inicial trata ainda dos primeiros Tratados de diviso das novas terras encontradas e a
encontrar entre Portugal e Espanha, como as Bulas papais e o Tratado de Tordesilhas
(1494).
Na sequncia trata dos Tratados que se seguiram, um em substituio ao outro,
na diviso do mundo entre os pases ibricos, como o Tratado de Madri (1750) e o de
Santo Idelfonso (1777), quando as duas potncias europias erravam em seu prprio
favor. Foi quando ocorreu tambm a Unio Ibrica, que muito favoreceu a ampliao
territorial de Portugal. Alm disso, o conhecido e hereditrio fato da Espanha no
ocupar suas reas demarcadas sempre geraram argumentos para que Portugal e,
posteriormente, o Brasil, as ocupasse e as consagrasse como suas.
A terceira parte, que tem por ttulo O desencantamento do Eldorado, conta que,
embora no se tenha encontrado ouro na Amaznia, a intensa busca deste metal
precioso foi a causa principal das primeiras exploraes regio, que aps longos anos
frustrados em busca do Eldorado passaram a se dedicar s drogas do serto e,
posteriormente, explorao da borracha.
21
A quarta parte, Antecedentes histricos, apresenta os antecedentes histricos dos
conflitos efetivos entre bolivianos e brasileiros em torno da questo do territrio
acreano. Sendo um pouco mais longa que as partes anteriores, esta quarta parte comea
por narrar os primeiros contatos da indstria capitalista com a borracha, por meio de
seus primeiros exploradores, como os naturalistas, que vinham em carter exploratrio,
cientfico e atravs de contatos com os prprios nativos que j conheciam e usavam a
goma elstica, embora ainda que de forma muito rudimentar, mas que deram, a partir
da, noes de uso do produto para a indstria.
Em seguida o autor expe um pouco da hidrografia dos rios Purus e Juru, para
logo em seguida estender mais um pouco da exposio sobre suas primeiras exploraes
da Amaznia acreana, essencialmente geogrficas, mas j tendo um sentido mercantil,
destacando-se nestas primeiras aventuras Manoel Urbano da Encarnao, o preto que
tinha great natural intelligence, no julgamento do gegrafo ingls Chandless, a quem
mais tarde serviu de guia (TOCANTINS, 2001: 130), e destacando tambm o prprio
Chandless, que muito pesquisou sobre esta regio.
Logo adiante o texto nos apresenta uma reflexo sobre a Revoluo Industrial e
a insero da Amaznia neste contexto, principalmente aps o processo de
vulcanizao, fazendo da borracha amaznica um dos produtos de primeira necessidade
no mercado externo e com isto gerando uma sociedade extratora no Acre. Logo a seguir,
o autor afirma terminada a fase de devassamento geogrfico (1866) para dar lugar a uma
fase com objetivos econmicos bem definidos, apresentando, ento, os pioneiros desta
nova fase, como o maranhense Antnio R. Pereira Labre (1887) e o cearense Joo
Gabriel de Carvalho Melo (1878), em uma exaltao tremenda da saga nordestina.
A parte cinco deste volume comea com uma discusso sobre o Tratado de
Ayacucho, realizado sob grande desconhecimento geogrfico e seus sucessivos e
fracassados processos demarcatrios, inclusive o de Taumaturgo de Azevedo, que, uma
vez liderando esse processo pelo lado brasileiro, pediu uma reviso de suas autoridades
nacionais para este caso visto a grande riqueza de ocupao brasileira na regio,
entretanto, suas reivindicaes no foram atendidas e seu sucessor, o tenente Cunha
Gomes, no teve a mesma preocupao. Outra temtica desta quinta parte sobre o
Ministro Plenipotencirio boliviano Jos Paravicini, que, muito preocupado com a
explorao econmica de brasileiros em regio incontestavelmente boliviana, tomou
vrias atitudes para ocupar e governar o territrio.
22
interessante notar a abordagem que o autor faz sobre o governador do
Amazonas, Ramalho Jnior, que muito lucrava com a ocupao brasileira da regio
acreana, da suas investidas na ocupao e no domnio da regio. Porm, por outro lado,
seu instvel governo no podia se indispor com o governo federal que rejeitava o
territrio em litgio e dava Bolvia total garantia de governo sobre o mesmo. Diante de
tal situao, Ramalho Jnior buscava mecanismos para apoiar a ocupao brasileira do
territrio, mas de uma forma discreta e sem envolvimentos aparentes, de forma que no
comprometesse sua relao com o governo federal.
A parte seis trata do governo do espanhol Luiz Galvez em seu Estado
Independente do Acre. Com um amplo acervo deste personagem, Tocantins nos expe a
gnese de seu envolvimento no caso do Acre, a princpio como reprter e por fim como
representante do Governo do Amazonas e seus interesses na regio do Acre.
A stima parte aborda a retomada do domnio boliviano na regio e seus acordos
com grandes seringalistas a fim de legalizar territrios ocupados por brasileiros. A parte
seguinte uma explanao sobre a Expedio dos Poetas. Aps a partida de Galvez, o
territrio em questo sofreu uma srie de ataques e contra-ataques entre bolivianos e
brasileiros que no aceitavam o governo boliviano na regio. Diante de seus
compromissos de campanha para com os comerciantes amazonenses, Silvrio Jos Neri,
sucessor de Ramalho Jnior, financiou tacitamente uma onerosa expedio militar
regio do Acre composta por intelectuais amazonense e liderada por homens da regio.
A nona parte, intitulada Cortina do Imperialismo Econmico, trata da tentativa
de arrendamento do Acre pelo Governo da Bolvia capitalistas europeus e norte-
americanos atravs do Bolivian Syndicate, acreditando ser esta a nica soluo para o
caso do Acre, territrio sobre o qual eles no conseguiam manter o controle. Assim, D.
Felix Aramayo, Ministro da Bolvia em Londres, assina contrato com o Sindicato.
Apesar desta situao ser indita na Amrica ps-colonial, aquela situao era bastante
comum para a Europa que vivia a era do imperialismo econmico e justificava-se em
ocupar o Acre para lhe trazer progresso, defesa, integrao nacional e civilizao.
Muitos governos latino-americanos no aceitaram o Sindicato, bem como segmentos do
prprio Governo boliviano, que viam neste Sindicato uma ameaa soberania nacional,
tratando-o como um verdadeiro cavalo de tria.
A dcima parte, A Grande Revoluo, trata da participao de Plcido de Castro
na guerra do Acre contra a Bolvia, que vai culminar na vitria do exrcito acreano
sobre o boliviano, garantindo ao Brasil o territrio do Acre. A sesso comea lembrando
23
a paz em que vivia o territrio desde a Expedio dos Poetas, na rotina do trabalho dos
seringais e na cobrana aduaneira em Puerto Alonso, bem como das endemias que
assolavam a populao. Neste nterim, embora sob protesto da Bolvia, Rodrigo de
Carvalho assume uma aduana amazonense no territrio, sob a alegao de que aquela
borracha tambm passava por Manaus. Apesar de manter boas relaes com as
autoridades de Puerto Alonso, Carvalho buscava, em vo, organizar um novo motim
contra a Bolvia, mas faltava uma liderana forte e eficaz para levar a revolta adiante.
Para Tocantins, os prprios bolivianos seriam os responsveis pelo estabelecimento de
um clima favorvel revoluo ao cobrar impostos em espcie, em funo da falta de
moeda e de borracha naquela poca do ano, em que as chuvas impediam os trabalhos de
extrao do ltex. E nessa cobrana eram eles, os bolivianos, que ditavam preos s
mercadorias dos seringueiros acreanos. A partir dai, Leandro Tocantins descreve todos
os conhecidos processos e batalhas entre brasileiros e bolivianos, sem fazer nenhuma
meno sobre as diferenas tnicas dos muitos sujeitos sociais envolvidos nos conflitos,
ocultados sob o rtulo de seringueiros ou generalizados como nordestinos, categorias
homogeneas que ocultam a diversidade dos sujeitos no contexto envolvidos, inclusive
de negros, fator esse que busco compreender posteriormente, no terceiro captulo.
A dcima primeira parte dessa imensa obra trata dos antecedentes e da
formulao do Tratado de Petrpolis (17/11/1903) pelo Baro do Rio Branco. Nos
termos desse tratado, o Acre seria negociado com a Bolvia cedendo esse territrio
amaznico ao Brasil em troca de dois milhes de libras esterlinas, bem como a
construo de um caminho de ferro do Madeira ao Mamor e, ainda, a liberdade de
trnsito fluvial e terrestre e a transferncia de terras no Mato Grosso e no Amazonas, o
que muito levanta protesto no Brasil e faz com que o senador Rui Barbosa se retire do
caso. Tocantins pontua que, no Brasil, as opinies sobre o Tratado de Petrpolis se
dividiram de acordo com as convenincias polticas de cada um. Rio Branco justifica
sua obra afirmando que a construo da estrada de ferro favoreceria tambm ao Brasil,
bem como os territrios cedidos Bolvia eram alagadios e no habitados por
brasileiros, ao contrrio do Acre, afirmando ainda que muito maior seriam os gastos
com uma guerra.
A ltima parte desta obra trata da questo com o Peru, que tambm reivindicava
parte do territrio do Acre. O autor comea por explicar o porqu de Rio Branco no ter
aceitado negociar paralelamente com a Bolvia e o Peru, afirmando que as bases de
reivindicaes destas duas naes eram muito diferentes e por isso as negociaes
24
poderiam levar muito mais tempo. Enquanto a Bolvia negociava com o Brasil, o Peru
pediu arbitragem Argentina sobre seus limites territoriais com a Bolvia (1902).
Tocantins afirma que a ocupao do homem civilizado neste territrio deu-se na
segunda metade do sculo XIX devido ao caucho, sob explorao peruana e que no
incio do sculo XX os peruanos j possuam centros de relativa atividade comercial no
Juru, levando-os a instalar uma Comisaria para cobrar impostos dos brasileiros ali
instalados e exigir sua regularizao (1903). Percebemos, ento, nesta afirmao do
autor, mais uma vez o ocultamento ou, no mnimo, a marginalizao de sujeitos
variados j presentes na Amaznia acreana mesmo antes do recorte econmico acima
citado, uma vez que o civilizado se estende simplesmente ao colonizador/explorador,
excluindo assim uma grande variedade de povos presentes na Amaznia de ento,
considerados no civilizados e, consequentemente sem importncia para os discursos
oficiais acerca da regio.
A situao entre acreanos e peruanos fica bastante tensa e o Peru exige do Brasil
um territrio muito maior do que o negociado no Tratado de Petrpolis, que o Peru no
aceita, por ter sido feito antes de sair o resultado da arbitragem da Argentina.
interessante notar a caricatural imagem dos peruanos apresentada por Leandro
Tocantins que os aponta como devastadores de florestas e promovedores de violentas
correrias contra os grupos indgenas, isetando o brasileiro de tais crimes, como se ele
no os tivesse cometido, mas apenas o outro/estrangeiro, talvez como uma forma de
justificar o domnio brasileiro sobre a regio, atravs de sua chegada pacfica. O
Baro do Rio Branco recebe um estudo jurdico do internacionalista Bassett Moore,
sobre a questo das fronteiras entre o Brasil e o Peru, publicando nos Estados Unidos a
fim de esclarecer a opinio pblica internacional sobre essa questo. Aps longas
prorrogaes do modus vivendi, tenses e conflitos, Brasil e Peru assinam um Tratado
de limites entre suas fronteiras, com base no uti possidetis, fixados pelas comisses
mistas. Assim, o Departamento do Alto Acre no sofreria redues territoriais e os
Departamentos do Alto Purus e do Alto Juru perderiam os territrios habitados
exclusivamente por peruanos.
Essa longa, porm necessria contextualizao descritiva dos escritos de
Leandro Tocantins sobre a formao histrica do Acre torna evidente um silncio que,
tomado como regra, tem acompanhado muitos outros discursos sobre a trajetria
histrica da Amaznia acreana. O silncio de autor sobre a presena negra nas
dinmicas dos deslocamentos de mulheres e homens para essa regio no pode ser
25
tratado como inocente ou como parte de uma retrica de esprito do tempo que tem
servido como escudo para ocultar escolhas metodolgicas e polticas, especialmente,
para autores preocupados com a verdade dos fatos e imbudos numa f inabalvel
acerca dos procedimentos da cincia histrica, mas tambm para outros que anunciam
novas abordagens e no conseguem chegar a meio caminho da obra de Tocantins,
presos nas malhas desse mesmo silncio e nos limites de suas pesquisas e formulaes
tericas.
Cercado de ampla pesquisa documental, domnio da literatura e de inmeros
escritos sobre o Acre, Leandro Tocantins original em muitos aspectos, muito embora
reproduza muitas das questes que acompanham os textos de Craveiro Costa, Genesco
de Castro e Cludio de Arajo Lima, entre outros, no tocante a epopia da conquista do
Acre, cujo marco fundador o trabalho do Instituto Histrico e Geogrfico do Acre
(IHGA), desde fins dos anos 1920. Seu texto tem um grande valor histrico e literrio,
pois tambm nos apresenta inovaes do ponto de vista de que lanou mo do uso da
literatura para a reconstituio de fatos, como no trecho a seguir em que narra o
momento que um grupo de seringalistas brasileiros convidam Plcido de Castro para
assumir o comando do levante armado contra a Bolvia:
Rodrigo de Carvalho, pensa logo em entregar-lhe o basto de comando, e vai
sua espera, em companhia de Jos Galdino Assis Marinho e Joaquim Alves
Maia, land lords de importncia social no rio Acre. Plcido ouviu em silncio
os trs cavalheiros. Sua resposta vaga nada adiantou sobre o que realmente
pretendia fazer, em vista do inesperado convite. Referiu-se, de passagem, ao
trato profissional que teria de cumprir no Juru, solicitando, porm, um prazo
de trs dias para dar resposta (TOCANTINS, 1979: 92).
Em nota explicativa reconstituio deste fato, Tocantins reconhece
textualmente ter se baseado na obra Plcido de Castro de Cludio de Arajo Lima, no
rol de outros textos como As quatro insurreies acreanas, tornando evidente o
inovador uso de fontes no convencionais pelos historiadores de ento. Tambm
diferente da maior parte de seus contemporneos, Tocantins leva o caso do Acre alm
da luta do homem contra a floresta, estendendo-o aos quadros polticos nacionais e
internacionais. Tocantins manuseou o arquivo pessoal de Galvez, transformando a
imagem desse personagem de aventureiro estrangeiro num homem altamente culto e
capacitado para liderar o Estado Independente do Acre. Outra fonte original usada pelo
autor foram as cartas de diferentes pessoas envolvidas nas contendas pelo Acre, dentre
outros documentos at ento no explorados historicamente. A problemtica levantada
26
em torno dos limites fronteirios entre Brasil e Peru tambm compe o arsenal de
inovaes trazidas por Tocantins, que revelou personagens outrora ocultados, como o
ministro Assis Brasil, dentre outros.
A leitura atenta do conjunto da obra possibilita uma ampliao das reflexes
sobre sujeitos sociais que foram cristalizados como heris no mbito da historiografia
acreana e mesmo na produo literria e musical da regio. No cuidadoso trato com as
fontes documentais que propiciam as descries histricas do texto principal e das
inmeras e criteriosas notas de rodap, Tocantins permite ao leitor atento perceber as
contradies e os limites da condio humana dos heris do Acre:
No decorrer de seus apontamentos, Plcido de Castro julga com severidade
alguns de seus companheiros de revoluo, especialmente Rodrigo de
Carvalho e Gentil Norberto, que passam ambos os dias em discusses
estreis e roca de insultos, indo certas vezes a conceitos desprimorosos.
Rodrigo de Carvalho depois da Revoluo, e j no exerccio de um
tabelionato em Xapuri, lugar que arranjou com a proteo de Rio Branco, fez,
por sua vez, srias acusaes a Plcido: Plcido no honesto; feroz e
sanguinrio e esta qualidade recebeu-a nos campos do Rio Grande do Sul,
quando serviu com Gumercindo Saraiva e Aparcio. Plcido para aqui veio
com passagem paga; nada possua, pelo contrrio, em Manaus at no Hotel
estava em atraso, hoje no s a famlia est rica no Rio Grande do Sul como
tambm ele rico; ele foi perseguidor de Nicolas Suarez e hoje so aliados, e
s andam de passar contrabando pelo Abua. Pesa-me dizer tudo isto a V.
Ex. (Carta ao Baro do Rio Branco, de Xapuri, 10-8-1906. Arquivo do Baro
do Rio Branco, Itamarati). Em carta anterior, escrita do Rio de Janeiro, em 4-
3-1905, Rodrigo de Carvalho revela ao Baro que Plcido (em cujas mos
Carvalho entregara o arquivo da antiga Delegao boliviana, onde se
encontravam ttulos das propriedades do Acre, encaminhados pelos
proprietrios do rio para legalizao), locupletara-se de sua posio e da
posse desses papis, obtendo dois seringais: O descaminho desse arquivo
aproveitou muito a Plcido que comprou 2 seringais [...] Aproveita muito
Alves Braga que teve sentenas favorveis de extorses de seringais
(Arquivo cit.). Assim, todas as figuras da Revoluo acusavam-se
mutuamente... (TOCANTINS, 1979: 105-106).
A descrio histrica de Leandro Tocantins emerge, portanto, como uma leitura
que pode levar a outras reflexes sobre os acontecimentos da Revoluo Acreana,
mas, no obstante sua incansvel capacidade de obter fontes das mais diversas para a
elaborao de Formao Histrica do Acre, dentre elas a produo literria, esse autor
27
no somente ignorou, como ajudou a colocar uma pesada p de cal sobre a presena de
negros de origem africana ou seus descendentes nas origens do Acre e da Amaznia
acreana, ocislando entre a inovao e a tradio, no decorrer de toda a sua obra, tanto
em mtodo quanto em linguagem.
Cleusa Ranzi e as razes do Acre
Uma outra produo historiogrfica que se assenta na perspectiva de
desenvolver uma abordagem sobre a formao histrica do Acre o livro Razes do
Acre5, de Cleusa Ranzi, graduada em Histria pela Universidade de Passo Fundo UPF
e mestre em Histria da Cultura Brasileira pela PUC RS. Desde 1975, quando
ingressou na Universidade Federal do Acre UFAC, como professora de Histria,
Ranzi tem procurado compreender mais do contexto scio-cultural do Acre. O presente
trabalho fruto de um momento de vida e tarefa acadmica apresentada como
dissertao de mestrado, em 1981, com a inteno de fornecer subsdios queles que
buscam compreender as bases da formao do Acre e os aspectos norteadores que
marcaram a primeira fase de construo deste Estado.
A primeira edio desta obra, em 1986, contou com a parceria da Secretaria de
Educao do Estado e teve uma tiragem de 1.200 exemplares, com o objetivo de
divulgar e permitir o acesso do estudo para um pblico mais amplo; foi feita uma
doao de 600 exemplares para bibliotecas de escolas municipais buscando,
principalmente, dar a educadores uma base de apoio na compreenso de aspectos no
processo formador da realidade do meio seringueiro. A segunda edio, de 1992, contou
com apoio da Livraria/Editora Paim, para sua materializao. No entanto, aps a mesma
ter se esgotado, em razo da baixa tiragem, e sua constante procura, a Editora da
Universidade Federal do Acre, Edufac, props uma reedio da mesma. Segundo a
autora, nesta atual edio a inteno foi de ampliar a obra, de forma a produzir uma
edio revisada, que possibilitasse registrar aspectos ps 1912, de maneira a reportar
avanos e a nossa percepo do Acre hoje e em sintonia de servir como elemento
motivador para se estudar cada vez mais e em diferentes nuances e enfoques a sociedade
dos seringais (RANZI, 2008: 9).
5 RANZI, Cleusa Maria Damo. Razes do Acre. 3. ed. Rio Branco: Edufac, 2008.
28
A edio com a qual trabalho a terceira, que, embora tenha como tema central
a formao histrica do Acre, notamos a questo ambiental perpassando toda essa
temtica no decorrer da edio. Percebemos isto na linguagem da autora, que, desde sua
dedicatria no incio da obra at suas reflexes finais, aborda esta questo de maneira
atenuante e relacionando-a intimamente com a formao do estado acreano. Ainda na
introduo do livro a autora diz que referenciado no passado comum indgena-
seringueiro-extrator-produtor o que se pretende contribuir com o ideal de organizar
um espao que quer inovar, em termos de sustentabilidade florestal, sem perder os
rumos e as referncias de suas escolhas, reconhecidas como iniciativas potenciais no
aprimoramento compromissado com a causa dos valores florestais (RANZI, 2008: 10).
E na finalizao da obra afirma que Desde suas razes, a natureza e a mata so as
propulsoras da organizao econmico-social e da vida do Acre (RANZI, 2008: 285).
A perspectiva da autora contribuir para a apropriao de uma viso sobre a
formao do Acre, bastante presente e viva na memria de diferentes sujeitos que
vivenciaram e intercambiaram o contexto que vai de 1879 a 1912. Viso essa que,
segundo ela, foi concebida como forma de fortalecer as origens e dignificar as gentes do
Acre, que se situa como espao dinmico, criativo e que busca incrementar seu valioso
humano-florestal (RANZI, 2008: 109). Alm disso, a autora espera que esse material
de estudo tenha o alcance til para conhecer, e reconhecer-se nas singularidades do
viver e do sentir da sociedade dos seringais, e em bem conhecendo cooperar para bem
gerir e bem cuidar deste patrimnio florestal que referncia cultural do Acre, do Brasil
e da Humanidade (RANZI, 2008: 15).
Mantendo a mesma inteno de colocar em evidncia os elementos centrais
presentes na obra, lanada para a anlise do livro de Leandro Tocantins, especialmente,
para situar o ponto chave da temtica de estudo proposta nesta dissertao,
apresentaremos uma sntese dos assuntos e das formas como Ranzi apresenta sua
construo intelectual a respeito das razes do Acre.
O primeiro captulo da obra, como j anuncia o prprio ttulo, Aspectos da
evoluo scio-econmica-poltica do Acre, no perodo de 1870 a 1912, registra, antes
de tudo, os aspectos da evoluo scio-econmica que fundamentaram o processo de
desbravamento e ocupao da regio. O captulo tem incio com uma
contextualizao do sculo XIX, onde a borracha recebe grande importncia devido
Revoluo Industrial, motivo pelo qual novos espaos florestais amaznicos foram
desbravados, conquistados e fixados ao Brasil (RANZI, 2008: 20). interessante notar
29
que a Amaznia exposta como regio desabitada, quando sabemos que ela era
imensamente povoada por diversos grupos indgenas. Este captulo tambm caracteriza
a geografia da regio quanto sua hidrografia, flora, dentre outros pontos relevantes
dessa temtica.
Em seguida, o captulo registra a ocupao pioneira atravs dos encarregados
de ndios, destacando-se nessa misso Joo da Cunha Corra e Manoel Urbano da
Encarnao, o preto bom, bem como das investidas de cientistas europeus, como
William Chandless, e ainda as investidas do governo amazonense, em busca de
encontrar uma comunicao com a Bolvia para transporte bovino. Aps 1866 encerra-
se a fase de expedies na regio para dar incio fase de explorao/ocupao, com a
autora destacando Antonio Rodrigues Pereira Labre e Joo Gabriel de Carvalho e
Mello, sertanejos, cuja condio de vida se tornara insustentvel e por isso foram
obrigados a se deslocar para a Amaznia. Deslocamento esse que se realizou de
improviso, justamente quando ocorria a valorizao progressiva da matria-prima ltex,
abundante no Acre.
Assim, a autora estende o captulo enumerando as vrias causas que provocaram
a ocupao nordestina, principalmente a cearense, para a Amaznia, instalando-se de
forma dispersa na imensa floresta. A ocupao do Purus diferenciada da que ocorreu
mo Juru, onde o nativo fez resistncia muito mais intensa, tornando esse processo
muito mais difcil. Por fim, a obra apresenta o processo de anexao do Acre ao Brasil,
expondo os primeiros tratados e demarcao das fronteiras, bem como as tentativas de
ocupao boliviana do territrio e a rejeio dos brasileiros que j habitavam o lugar.
Apresenta tambm as aes de Galvez e de Plcido Castro e ainda a problemtica
questo de limites com o Peru, resolvida posterior ao Tratado de Petrpolis (1903).
Ainda neste captulo, vemos a importncia da borracha na formao do Acre, que,
segundo a autora, tem sua formao exclusiva no extrativismo do ltex. E vemos ainda
o processo de declnio do primeiro ciclo da borracha na regio. interessante notar
que a proposta de todo o captulo de harmonia entre o homem e o meio, sem graves
tenses ou conflitos entre estes.
Cleusa Ranzi segue as cronologias da histria da expanso do capitalismo
industrial europeu para a regio. Logo de incio, quando aborda o trabalho dos primeiros
exploradores, deixa escapar um dos mais significativos elementos para se pensar a
dispora africana pela regio amaznica e as muitas misturas que se estabeleceram na
regio: a marcante presena afroindgena, no dizer do professor Agenor Sarraf Pacheco,
30
nos processos de articulao do contato da sociedade nacional com os diferentes
grupos indgenas que habitavam o rio Purus e a prpria insero desse rio no caminho
da expanso da economia do ltex.
No segundo captulo a autora prossegue analisando os elementos formadores da
nova sociedade, ressaltando a participao efetiva de cada componente humano na
organizao desta. Nesse item, Ranzi apega-se de forma acrtica cristalizada ideia do
nordestino como fundador legtimo do Acre. Dentre esses nordestinos, os cearenses
teriam papel relevante, em detrimento dos demais sujeitos que se deslocaram e foram
deslocados para a regio. Nesse contexto de chegada dos fundadores do Acre, a
autora destaca que o nativo, por seus conhecimentos da floresta, deixou seu legado
sociedade acreana, assim como ajudou o portugus a formar o homem regional
amaznico e, em termos econmicos, constituiu a fora de trabalho exclusiva daquele
momento (RANZI, 2008: 76). O genocdio indgena no um assunto muito
trabalhado na obra, chegando a ser suavizado como meros atritos entre os locais e os
adventcios (RANZI, 2008: 75).
Percebe-se ento uma viso que reflete a noo do ndio que oferece ao
colonizador sua sabedoria milenar quanto aos recursos florestais, bem como sua mo-
de-obra, sem grandes resistncias, tenses e conflitos. interessante notar que a autora
afirma que a participao indgena na formao do povo acreano pequena, devido
expulso destes, no inserindo nessa anlise as constantes correrias e matanas dos
nativos. Mais uma vez, assim como em Tocantins, reproduzindo a ideia de relao
pacfica entre colonizador e nativo e de fcil dominao do primeiro sobre o segundo.
Atualizando sua anlise, Ranzi aborda a educao institucionalizada, ampliada
no Governo da Floresta, como o fator de redeno para os grupos indgenas. Dentre as
vrias trocas culturais entre o nativo e o colonizador, mencionada a contribuio
nordestina quanto a agricultura, que muito melhorou devido a insero de tcnicas
agrcolas. Numa perspectiva romntica a autora insiste que alm de legar ao acreano a
cincia da mata, o indgena tambm era dono de uma grande riqueza espiritual, que
muito vai amenizar as necessidades religiosas dos que ali chegavam, desapropriados de
seus espaos originais de reproduo religiosa, formando assim um forte sincretismo
religioso.
Afirma que a crescente poltica de valorizao dos povos indgenas tm
contribudo para tirar-lhes da marginalizao, dando-lhes o poder de voz e voto na
defesa de seus interesses e direitos, fazendo com que aos poucos a sociedade dos
31
brancos os respeite mais e os acolha efetivamente como parceiros, em unidade efetiva
de pertencimento de uma comunidade humana (RANZI, 2008: 95).
Ainda no leque de composio tnico-social do Acre, a autora, segue de perto as
trilhas da viso amazonialista, situando a presena portuguesa como um dos fortes
componentes da formao do territrio acreano. Para ela, esse territrio recebeu
diversos imigrantes de diferentes nacionalidades, com uma natural predominncia
portuguesa, que vieram para a Amaznia, como comerciantes, missionrios,
funcionrios pblicos, dentre outras atividades. Mantendo a cronologia geral de
ocupao oficial da Amaznia, classifica a ao dos portugueses na regio em dois
perodos: o de 1600 a 1850, marcado pela fase da conquista, defesa e explorao,
quando contavam com a mo-de-obra indgena, em condies escravocratas, para
retirar da mata os recursos econmicos necessrios ao seu desenvolvimento.
E o segundo momento, entre 1850 e 1912, caracterizou-se, essencialmente, pela
procura intensa do produto gumfero, que possibilitou o desenvolvimento econmico e a
conseqente expanso regional. Nesta ltima fase, o portugus atuou principalmente
como comerciante-aviador estabelecido em Belm ou Manaus, sendo poucos os que se
transformaram em seringalistas. Assim, a ao portuguesa no Acre organizou a
produo, possibilitando a ampliao da empresa extratora e comercializadora da
borracha. Registra ainda a participao dos srios e dos libaneses na formao do Acre,
aqui chegados por iniciativa e com recursos prprios, exerceram uma atividade
comercial importante ao longo dos rios no interior da Amaznia, conhecidos como
regates (RANZI, 2008: 110), era uma segunda opo de comrcio para os produtores
de borracha, que, embora considerada ilcita e arriscada, era muito praticada. Assim, a
participao comercial do srio e do libans marca a formao da maioria dos
municpios do Estado (RANZI, 2008: 111).
Nessa abordagem sobre a ocupao da regio, de forma inovadora, a autora
registra que a presena de negros ou afrodescendentes - como algo que pouco existiu
na formao geral do Acre (RANZI, 2008: 111), devido sua fraca presena: alm
disso, normas proibitivas foram estipuladas aos brancos que se mestiassem com os
negros, ao mesmo tempo em que ofereciam estmulos e dignidade para as unies entre
brancos e nativos (RANZI, 2008: 114).
Nessa direo, interessante a posio do negro na compreenso da autora que
afirma: por sua vez a condio de braal escravocrata fez com que a maioria de seus
valores culturais fosse truncada, pela imposio dos padres de cultura do colonizador
32
portugus que, juntamente com os elementos de origem nativa, conseguiu se sobrepor e
caracterizar a cultura amaznica (RANZI, 2008: 114), assim, as presenas
espordicas que tiveram na regio, mesmo aps a abolio, se dispersaram entre os
nordestinos e seus padres culturais africanos foram suplantados pela predominncia
cultural nativo-nordestina que, basicamente, se fez presente na regio, tendo ento, o
negro, segundo a autora, pequena representao scio-econmico-cultural na regio
(RANZI, 2008: 115).
Anunciando uma espcie de embranquecimento social na formao histrica
do Acre,a autora compe paradoxos, fundamentalmente, ao destacar a presena
nordestina como formadora essencial da sociedade acreana, principalmente para o
cearense, o litorneo do engenho, formado pela miscigenao do portugus com o
negro (RANZI, 2008: 116). Assim, traa um perfil social, econmico e cultura deste
sujeito nordestino, exaltando-o sempre frente ao seu meio, como um heri
acostumado a vencer os limites que a geografia lhe impe, inclusive migrando quando
no lhe resta outra forma de sobrevivncia.
Nessa lgica, o nordestino de Ranzi segue os passos dos nordestinos da
historiografia tradicional, deslocando-se para a Amaznia em busca de dias melhores.
Deslocamento esse, feito em condies to precrias que a autora, reproduzindo outros
estudiosos da temtica, compara os navios negreiros os gaiolas, que transportavam
esse desterrado para a regio. Outra caracterstica dessa migrao a esperana de
retorno para o nordeste, onde ficara a famlia com a promessa de um retorno para um
recomeo que, na grande maioria dos casos, era tambm uma frustrao. Assim,
segundo Ranzi, nos traos da sabedoria e do jeito nordestino de ser que as razes
humanas e scio-culturais da sociedade do Acre est calcada (RANZI, 2008: 133-134).
A representao historiogrfica da autora aproxima-se do ufanismo de
Tocantins, pontuando que da alma do sertanejo cearense foram cunhados os valores
essenciais do acreano. Os demais seres humanos que se deslocaram para esse territrio,
tm, junto com os nativos, ajudado a aperfeioar a sociedade acreana. (RANZI, 2008:
134). A lgica que preside essa concluso, a mesma que silenciou sobre a presena
negra na regio, posto que conferiu ao abstrato termo nordestino o status de uma
categoria tnica, como forma de ocultar as diferenas e as tenses entre os diferentes
sujeitos ai presentes.
E diversas outras partes e captulos do livro, Ranzi deixa passar em branco a
possibilidade de inserir uma reflexo que leve em considerao a presena negra na
33
Amaznia acreana. Isso se evidencia na discusso das estruturas e relaes de produo
que vigoravam no seringal, sempre em prejuzo do seringueiro, ltimo elo na cadeia de
aviamento. Nesse ponto, assim como o nordestino, o termo seringueiro mantido
como uma categoria que oculta as diferenas tnicas no interior dos seringais, ocultando
com isso outras tenses e conflitos a subjacentes e contribuindo para reforar a ideia da
ausncia de negros no Acre.
A autora compara a estrutura de sustentao da ordem no seringal da relao
entre a casa grande e senzala, na economia colonial, com o sistema patriarcal,
encontrado em ambos os espaos, como necessrios para a manuteno da ordem, sem a
qual toda a estrutura estaria em risco. Aborda a hierrquica sociedade do seringal, a
comear, evidentemente, pelo seringalista, seguido de seus funcionrios
administrativos, como o gerente, o guarda-livros e o caixeiro, complementados por
funcionrios auxiliares indispensveis na manuteno do seringal, como caadores,
mariscadores e canoeiro, dentre outros; havendo tambm um grupo mediador, o dos
comboieiros, seguido do mateiro e do toqueiro.
E, posteriormente, o ltimo componente dessa rede social, o seringueiro,
apresentando, inclusive, seu modo de vida, de trabalho duro, seu isolamento, seus
desafios naturais, incluindo a os conflitos com os indgenas e sua condio de sade,
bem como seus desafios econmicos, postos principalmente pelo monoplio comercial
do seringalista. A autora afirma tambm que tudo no seringal era montado em carter
provisrio (RANZI, 2008: 176), j que o nordestino expatriado nutria a esperana de
voltar para casa. Mais adiante, aborda a situao do seringueiro ps-1912, quando a
queda de preo da borracha gerou a necessidade de serem buscadas novas formas de
subsistncia, em detrimento do extrativismo (RANZI, 2008: 170). O que fica evidente,
na forma de lidar com as questes centrais desse processo de formao do Acre
que Ranzi no apenas assume o discurso da ausncia do negro na regio, mas outros
clichs e jarges to fortemente presentes na historiografia amazonialista, tais como o
isolamento da regio e do homem na regio, a fraqueza do seringueiro e sua
condio de vtima frente ao determinismo geogrfico (a selva esmagadora) e
econmico (o domnio do patro), tirando-lhe a possibilidade de sujeito histrico
atuante em seu prprio enredo.
Discutindo a questo dos transportes e das formas de abastecimento na regio,
Ranzi afirma que a inexistncia de atividades agrcolas e pastoris aumentava ainda
mais a subordinao ao rio para o provimento geral, bem como facilitava as atividades
34
de comrcio marginais e o monoplio do abastecimento (RANZI, 2008: 205).
Encontramos aqui duas atividades comerciais opostas: o aviamento, realizada pelo
seringalista, que formava um circuito fechado de obrigaes e dependncias (RANZI,
2008: 220) e o regato, atividade marginal e ilegal para a legislao do barraco e
realizada como forma de resistncia explorao do patro. Novamente nenhuma
palavra sobre os componentes tnicos e as tenses da derivadas.
Por fim, a autora de Razes do Acre, assinala os aspectos distintivos da
sociedade como o importante papel desempenhado pela mulher no processo de
formao social e as peculiaridades da constituio dos primeiros ncleos urbanos.
Observa que a riqueza produzida no Acre no contribuiu para a formao de grandes
centros urbanos, como no Amazonas e no Par, nem sequer contribuiu para melhorar a
qualidade de vida das pessoas, sendo que at mesmo os donos dos seringais no
usufruam de grandes confortos, preferindo investir em ricas moradias fora da regio. O
texto nos trs tambm a importncia do papel feminino na melhoria da qualidade de
vida do seringueiro, trazendo-lhe mais conforto, companhia, bem como sua importncia
no processo de fixao na regio. mulher atribuda uma infinidade de funes
essenciais, como a de seringueira, agricultura, curandeira, domstica, reprodutora, sendo
assim, posta como elemento humanizador do seringal. Tambm nesse tocante, Ranzi
lana seu olhar para as fontes e os referenciais tericos dos autores da historiografia
tradicional, formulando uma descrio histrica que silencia sobre a condio
feminina, em especial, da mulher negra na regio.
Novamente so expostos modos de vida do seringueiro, bem como suas
produes culturais, religiosas e sociais. E, por fim, a autora discorre sobre a formao
dos primeiros ncleos urbanos, expondo-os como processos singulares no contexto
brasileiro, j que os ncleos urbanos no Acre surgiram de maneira artificial, explicada
em parte pela necessidade de atender a uma exigncia poltico-administrativa que
possibilitasse assegurar, em termos definitivos, o territrio que, militar, poltica e
diplomaticamente havia sido conquistado (RANZI, 2008: 249).
Em suas consideraes finais, Ranzi, afirma que aps um longo tempo de muitas
dificuldades presenciamos uma retomada a marcar a regio com iniciativas scio-
poltico-econmico-culturais inovadoras em favor da vida e da floresta, que identifica
originalmente a regio, isso atravs de um Governo da Floresta, que quer fazer com
que esse cadinho da Amaznia seja um bom lugar para se viver, e experienciar formas
de interao com a mata e com seu potencial humano-florestal (RANZI, 2008: 265).
35
Encantada, com a ordem poltica implantada no Acre, desde fins da dcada de 1990,
Ranzi procurou atualizar sua obra, mas manteve um estranho silncio sobre a
presena negra ou afrodescendente na formao histrica da regio.
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CAPTULO II
Negros e Amaznia acreana: dicotomias em livros didticos
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Na dcada de 1980 comeou a surgir uma srie de preocupaes com a
formulao de materiais didticos sobre a histria do Acre. Datam dessa poca os
esforos das secretarias de estado e municpios em prover as escolas com material que
desse conta dessa discusso. Desse modo, alm de cursos preparatrios, os gestores
pblicos comearam a estimular e financiar a elaborao de textos e obras. Nesse
contexto, herdando parte das discusses que estava em voga surgiram os dois mais
conhecidos livros didticos no campo da historiografia local, apresentados a seguir.
Construindo a histria regional
Acre: uma Histria em construo6, uma obra didtica que aborda a histria do
Acre, desde seu perodo de ocupao, a princpio por indgenas e posteriormente por
investidores e exploradores da empresa gumfera. Tratando inclusive alguns pontos que
retratam o modo de vida nos seringais acreanos, e expondo ainda uma srie de tratados
que legaliza a posse deste territrio ao governo da Bolvia bem como os conflitos que o
tornou brasileiro. Alm disso, a obra trata tambm do Acre ps-Tratado de Petrpolis
(1903) e suas lutas para tornar-se autnomo, discutindo, inclusive um pouco de sua
evoluo poltica. A obra aborda tambm um assunto no inserido at ento nos textos
didticos, que a evoluo das comunicaes e dos transportes acreanos. E por fim, os
autores tratam tambm a evoluo poltica do Acre at meados da dcada de 1980,
quando do lanamento desse livro.
Segundo seus prprios autores, o livro contribuir para despertar nos colegas
professores a mesma conscincia crtica, norteadora da anlise que esteve presente em
sua elaborao. Alm disso, tambm uma tentativa de explicitar o dinamismo de uma
histria buscada com os instrumentos da cincia e que envolve a todos, inclusive aos
autores, em sua prpria dinmica. Por isso, entendem que necessrio engendrar o
processo participativo do saber, complet-lo, aprimor-lo, reconstitu-lo, critic-lo,
revis-lo para que outros possam superar, aperfeioar e democratizar a cincia
(CALIXTO et al, 1985. p. IX). Sob essa perspectiva, buscam compreender a sociedade
acreana em sua dinmica especfica, inserida, sem dvidas, num amplo contexto de
6 CALIXTO, Valdir de Oliveira, SOUZA, Josu Fernandes, e SOUZA, Jos Dourado. Acre: uma Histria em construo. Rio Branco: Fundao de Desenvolvimento de Recursos Humanos de Cultura e do Desporto, 1985. 241 p.
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mudana que caracterizariam a vida dos povos a partir da segunda metade do sculo
XIX (CALIXTO et al, 1985. p. XIII).
Percebemos durante toda a obra, inclusive em suas fontes e autores com os quais
dialoga, a forte presena de um referencial terico que se auto-define como marxista,
como forma de compreender a histria como uma cincia em uma construo dinmica
pelos homens que a produzem condicionados pelas posies e papeis assumidos na
sociedade em que vivem (CALIXTO et al, 1985. p. 2). Desse modo, ao longo do texto,
vo surgindo diversos conceitos que visam explicar a realidade a partir do referencial da
luta de classes como motor da histria, na forma pontuada por Marx. Bem como a
ideologia dominante envolvendo e manipulando aqueles que compem a
infraestrutura. Percebe-se tambm a grande valorizao predominante do eixo
econmico no decorrer de toda a obra como mais um elemento a representar a linha
marxista pela qual a mesma pensada e produzida.
Em entrevista recentemente realizada, Valdir Calixto, um dos autores do livro,
conta que, em sua origem, a obra foi encomendada pela Secretaria de Educao e
Cultura do Estado, devido a necessidade de um livro didtico sobre histria do Acre
para o ento 2 grau. Embora Calixto no fosse acreano, era um amante da histria do
Acre e para auxili-lo em suas limitaes de conhecimento desta histria montou um
grupo de estudo com seus, ento, alunos Jos Dourado e Josu Fernandes, para a
elaborao de todo o material que resultou na edio do livro.
Calixto afirmou tambm que essa obra factualmente escrita sobre a obra de
Leandro Tocantins, Formao histrica do Acre, mas com uma nova abordagem e uma
nova linguagem, j que a linha terico-metodolgica adotada era outra bem diferente
em todos os sentidos. Afirma ainda que, embora tivesse recebido propostas para montar
uma segunda edio, ele preferiu encerr-la nesta edio nica por acreditar que a obra
era fruto de um tempo e que uma segunda edio lhe deixaria fora de contexto.
De todo o esforo para sua produo resultou a conscincia de que esta obra
apenas se propunha a uma tentativa de anlise em bases no tradicionais (CALIXTO et
al, 1985. p. XIII), visando superar as tradicionais posturas metodolgicas positivista e
historicista tradicional. Acre: uma historia em construo , acima de tudo, uma
proposta de anlise do processo histrico vivido e experienciado, sobretudo, pela
coletividade trabalhadora acreana. Por isso no se trata de uma histria supostamente
neutra, mas, parafraseando Karl Marx, os autores lembram-nos que a histria so os
homens que a fazem, mas a fazem em situaes concretas e em condies scio-
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histricas, em que ocupam e desempenham determinados papis ao produzirem os
meios materiais de sua subsistncia (CALIXTO et al, 1985. p. XIII).
Na introduo obra, os autores se contrapem radicalmente ao positivismo e o
historicismo ainda to predominantes na historiografia brasileira, pois afirmam que sua
preocupao essencial em relatar de modo exato os acontecimentos de natureza poltica,
militar e, de maneira especial, os diplomticos, geram uma produo historiografia
vazia de crtica cientfica. Alm disso, a idia de que a memria individual ou coletiva
simplesmente registra os acontecimentos e que o papel do historiador deveria se
restringir reproduo ou reconstituio daquela memria transcrita nos documentos
nada acrescenta compreenso do passado e do presente regional. Em contraposio a
essa viso, os autores propem que a memria no registra simplesmente, mas constri
o objeto, neste caso o fato histrico, tendo em vista que o homem, como ser poltico,
no inerte, esttico, ser petrificado, sem paixes e sem interesses determinados
(CALIXTO et al, 1985. p. 2).
O livro est organizado em dez unidades, subdivididas em tpicos. Ao final de
cada unidade aparecem leituras complementares, que so textos ou fragmentos de
textos, fontes de diferentes naturezas, produzidos por diversos sujeitos construtores de
histria, trazendo aos leitores, uma amplitude mais abrangente dos temas em estudo.
Alm disso, ao final de cada unidade h tambm um exerccio didtico tambm a fim
de ampliar a discusso sobre os temas estudados. A obra inicia-se com as suas devidas
dedicatrias, seguida de uma pgina reservada a depoimentos de estudantes acerca de
seus conceitos sobre histria.
Os autores abordam aspectos da histria dos povos pr-colombianos: de sua
chegada Amrica, de seu processo de transformao cultural, da extrema diversidade
tnica, que posteriormente se condensar simples categoria ndios, bem como da
dificuldade em se estudar os povos amaznicos, devido a dificuldade em fontes. Logo a
seguir traado um breve histrico do etnocdio no Novo Mundo, j que, segundo os
autores o projeto colonizador no prev um lugar para a existncia e sobrevivncia do
nativo. Era preciso dominar, destruir, exterminar fria e sistematicamente cada etnia,
afirmar a superioridade do branco europeu e decretar a inferioridade do nativo. O
mximo de apreo (ao nativo) era considerar extico o seu modo de vida (CALIXTO et
al, 1985. p. 7). Assim sendo, na Amrica espanhola, sedentos de tesouros, os europeus
aniquilaram as civilizaes Asteca, Maia e Inca.
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Ainda na primeira unidade da obra os autores da obra afirma que no Brasil
Colonial grupos inteiros tombavam pelas guerras, pelas epidemias, pelas entradas e
bandeiras, bem como pelo processo de desintegrao cultural. Durante o perodo
Imperial prevaleceu a idia de assimilar o elemento nativo sociedade nacional,
libertando-o da escravido, porm atrelando-o nova relao social: catequizando-o,
localizando-o, engajando-o no servio militar, dentre outros. Neste perodo tambm
ocorre a imigrao, o que tambm vai promover enormes chacinas, j que as terras que
os imigrantes passam a invadir eram ocupadas por povos indgenas. criado ento o
Servio de Proteo aos ndios (1910), que tambm processualmente se descaracteriza e
se corrompe de seu objetivo original. Em sua substituio, j no perodo militar criada
a Fundao Nacional do ndio (Funai), que tambm busca integrar o ndio sociedade
brasileira, principalmente trazendo-o para setores produtivos da economia do pas.
Tratando especificamente da questo indgenas no Acre, procuram focalizar esta
regio como um dos maiores redutos de povos indgenas da Amaznia (CALIXTO et
al, 1985. p. 15), tendo sua histria de extino, assimilao e integrao de tais grupos
estreitamente ligada expropriao territorial, nas fases e formas que a expanso
econmica da sociedade nacional desencadeou na regio (CALIXTO et al, 1985. p. 15-
16), sobretudo quando das frentes extrativista e pecuria que utilizaram das correrias
ou da explorao do trabalho indgena. Alm disso, os autores denunciam tambm o
descaso da Funai, consequncia do descaso poltico do governo federal e de suas
polticas para ocupao/desocupao do Acre. Analisam ainda, aspectos dos modos de
vida das comunidades indgenas amaznicas entre os sculos XVI e XVIII, como
lngua, ocupao territorial, alimentao, moblias, armas, e organizao poltico-social.
Discutindo os processos migratrios desde os extratores de drogas do serto s
expedies cientficas, quando ento se descobre o ltex e algumas de suas
possibilidades para o mercado consumidor, os autores contextualizam que, no princpio,
o Amazonas procura incentivar e financiar a migrao de nordestinos para se fixarem
em seus ncleos de colonizao (CALIXTO et al, 1985. p. 42), porm essa iniciativa no
deu grandes resultados, sendo que a maior parte daqueles que se deslocaram para a
regio passou a empreender a extrao do ltex, buscando um rpido enriquecimento
que lhes proporcionassem voltar terra natal. Nesse processo, fazem referncia ao
conhecido caso particular de Joo Gabriel de Carvalho e Mello, modelo de migrao
nordestina bem sucedida, utilizado ainda para expor a simbiose entre empresas
comerciais de navegao Casas comerciais (casas aviadoras)-Seringalista-Seringueiro.
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H tambm um relato sobre os gaiolas, bem como a contextualizao do processo
migratrio em mbito nacional.
Mantendo-se condicionados a uma lgica de tempo linear e evolutiva, os autores
passam a contextualizar o sistema de aviamento de produo da borracha. Partindo do
princpio de que o seringueiro no podia desviar de forma alguma seu trabalho da
produo gumfera, o sistema de aviamento era essencial para tal processo produtivo,
sem o qual poderia simplesmente desmoronar e que, por sua vez, contribua apenas para
a reproduo do capital e sustentao do poder do patro. Nesse sentido, destacam o
papel das casas aviadoras bem como apresentam o aviamento interno, como resposta
aos seringais de menor porte, monopolizando a produo desses seringais j que no era
compensatrio para as grandes casas comerciais de Belm e Manaus suprirem essas
firmas de pequeno porte.
desse modo que surge o seringal em sua estrutura e funcionamento, a diviso
social e tcnica do trabalho, enfim, o poder do padro simbolizado na imponncia do
barraco e a submisso do seringueiro que, morando em toscas barracas, viviam para se
escravizar, no dizer de Euclides da Cunha (CALIXTO et al, 1985. p. 68).
Os autores expem como eram fundados e montados os seringais por aqueles
que se constituam na prpria razo de ser do seringal enquanto unidade produtiva
voltada para o mercado externo: o patro-seringalista e o trabalhador extrator-
manufatureiro (o seringueiro) (CALIXTO et al, 1985. p. 20). Assim sendo, alm de
examinar um por um os elementos componentes do seringal: o barraco, representao
de poder, vigilncia e espao de circulao de riqueza; bem como a colocao, as
estradas de seringa e a barraca do seringueiro, prximo da qual se localizava o pequeno
tapiri, onde se efetuava o processo de coagulao do ltex, espaos estes que, no dizer
euclidiano, o seringueiro produzia e se escravizava, examinam tambm as categorias
profissionais integrantes do seringal, procurando posicion-las quanto diviso social e
tcnica do trabalho.
Como possvel acompanhar, em momento algum os autores propem outros
recortes temporais e seguem discutindo com base nas mesmas periodizaes da histria
oficial e com base nos mesmos acontecimentos histricos, sem uma discusso
metodolgica sobre a prpria inveno desses acontecimentos. Mais que isso,
insistindo na abordagem de nossa temtica, sem nenhuma reflexo sobre a questo da
presena negra em meio s camadas de nordestinos e seringueiros presentes na
regio.
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Seguindo os passos de Tocantins e Ranzi, os autores de Acre: uma histria em
construo, abordam a questo da demarcao das fronteiras acreanas, traando as
caractersticas gerais da geografia deste Estado. Abordam o processo de partilha
territorial desde os tempos coloniais, desde a Bula Intercoetera (1493) at o Tratado de
Santo Ildefonso (1777), sendo que nenhum desses acordos dava ao Brasil o territrio
acreano, mas, em sua maioria, j trazia em si o princpio do uti possidetis, o que muito
preocupava a Bolvia, j que no conseguia populao significante para ocupar o
territrio e ao mesmo tempo j tinha conhecimento de que o mesmo era ocupado por
brasileiros. Por fim exposto nesta unidade o Tratado de Ayacucho, que em muito
favoreceu ao Brasil, embora ainda assegurasse Bolvia o territrio acreano; entretanto,
este acordo dependia do reconhecimento das linhas fronteirias dos dois pases, ficando
ainda este territrio em tenso litgio, como vo destacando na obra.
no mbito dessas marcaes historiogrficas que aparecem as insurreies
pela incorporao do Acre ao Brasil. Nessa direo, partem do princpio de que
revoltas, insurreies e revolues so fenmenos que brotam e se desenvolvem em
sociedades espacial e historicamente condicionadas e que nenhuma ao desprovida
de significado social mesmo quando praticada pelo inconsciente coletivo (CALIXTO et
al, 1985. p. 107).
Os autores situam os cem dias de Paravicini, que instala no Acre uma alfndega
com o aval do governo federal, para a tristeza do governo do Amazonas, que no tinha
sequer permitido o acesso ao Acre ao antecessor de Paravicini, D. Velarde. Entretanto,
as condies da poltica interna boliviana exigem a volta de Paravicini ao cargo de
Ministro Plenipotencirio no Rio de Janeiro e seu substituto, Moiss Saltivanez
convidado a se retirar pelos insurgentes brasileiros. Nesse processo foram
fundamentais os interesses amazonenses que, segundo os autores, prejudicados pela
nova alfndega, incitaram os brasileiros que ali estavam instalados a se revoltarem
contra os poderes bolivianos.
Fazendo eco com as aspiraes ufanistas, encontradas nos acreanismos do
presente, os autores tratam de ressaltar que, embora interrompida, a misso boliviana
no saiu de mos abanando, pois arrecadou uma pequena fortuna com a alfndega. Logo
aps esse episdio entra em cena os primeiros anncios do acordo boliviano com os
EUA, quanto ao territrio em litgio. Como denunciante desse acordo secreto surge o
espanhol Luiz Galvez, que segue para o territrio acreano com o apoio/financiamento,
ainda que secreto do governador do Amazonas para liderar uma insurreio contra a
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Bolvia, culminando da o Estado Independente do Acre, que tem breve fim, com a
deposio de Galvez e sua deportao e o reempossamento da autoridade boliviana
sobre a regio.
Ainda sobre a questo do Acre, Calixto e sua equipe abordam a substanciao
dos acordos bolivianos com capitalistas estrangeiros na forma do Bolivian Syndicate,
quando organiza-se a insurreio liderada por Plcido de Castro. Assim como fizeram
com Galvez, os autores traam uma breve considerao sobre esse personagem e
seguem discutindo as batalhas entre brasileiros e bolivianos por ele lideradas, baseadas
em emboscadas e tcnicas de guerrilhas at a rendio da delegao boliviana em
Puerto Alonso, ltimo reduto boliviano. Em seguida, retratam os acordos de paz entre
Brasil e Bolvia, atravs do Tratado de Petrpolis (1903). E por fim, o assassinato de
Plcido de Castro, em 1908.
A partir da, os autores constituem uma leitura para alm da formao
histrica e passam a analisar a luta pela autonomia, surgida aps o Tratado de
Petrpolis, quando o Acre passou a ser um Territrio Federal, para desgosto do estado
do Amazonas e, principalmente, dos grandes proprietrios regionais. Mais uma vez,
seguindo os passos das marcaes da historiografia tradicional, os autores abordam as
reformas jurdico-administrativas e a evoluo poltica do Acre. Nessa direo,
assumem o discurso autonomista dando nfase discusso de que, enquanto o Acre
rendia muitos dividendos Unio, sua autonomia poltica no interessava, sendo que,
somente aps a crise da borracha, o governo federal no hesitou em tornar o seu
territrio uma unidade federativa autnoma. Segundo a obra, para os autores, essa
conquista tanto foi do Movimento dos Autonomistas, composto por variados cidados
acreanos, como dos debates polticos, encerrados com a aprovao do projeto do
deputado Jos Guiomard dos Santos, que elevava o Acre categoria de Estado.
Em seguida passam a contextualizar a evoluo das comunicaes e dos meios
de transportes no Acre e, posteriormente, retomam a questo da evoluo poltica do
Acre, inserindo o debate sobre o Acre no mbito do contexto nacional e internacional,
apresentando uma linha cronolgica do processo poltico deste Estado, desde que ele
tornou-se Territrio brasileiro at o incio dos anos 1980, abordando a questo das lutas
pela autonomia do Acre, conquistada, mas rapidamente abortada pelo golpe militar, que
deu de volta para a Unio o governo do Acre. Discutem ainda alguns aspectos dos
movimentos sociais e de resistncia ditadura militar, bem como o incio da reabertura
poltica no estado.
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Acre: uma histria em construo foi uma das primeiras obras elaboradas com
fins didticos no Estado do Acre. Sendo to grande a necessidade de uma obra com esta
caracterstica que a prpria Secretaria de Educao e Cultura encomendou sua
produo, pois at ento o que se tinha sobre histria do Acre eram extensas obras
acadmicas com volume e linguagem inacessveis rede de ensino bsico. No obstante
sua importncia, no entanto, os marcos cronolgicos e o silncio com relao presena
dos negros na Amaznia acreana, evidenciam a manuteno da mesma estrutura
presente na produo historiogrfica qual seus autores se propunham dar combate.
A emergncia de representaes sobre novos temas, nova abordagem
Histria do Acre: novos temas, nova abordagem7, de autoria do Carlos Alberto
Alves de Souza, professor da Universidade Federal do Acre UFAC, da rea de
histria, teve sua primeira edio publicada em 1992, com o ttulo Histria do Acre.
Tempos depois foi publicada uma edio resumida, direcionada para estudos de
concursos, e, dez anos aps a primeira publicao, surgiu Histria do Acre: novos
temas, nova abordagem, revisada, atualizada e ampliada.
O objetivo desta obra exposto pelo prprio autor que revela ser o de buscar
contribuir para o ensino de Histria do Acre. Entretanto, sabemos que o ensino da
histria do estado acreano j h tempos disseminado na rede educacional, desde a
academia, onde ganha uma amplitude muito mais intensa s escolas de ensino bsico.
Organizada em 20 captulos e 372 itens contnuos entre os captulos, a obra manteve
ainda alguns captulos da verso inicial, que tratam da evoluo poltica e administrativa
do Acre e do processo de sua anexao ao Brasil. Entretanto, esses temas ganharam uma
nova anlise do autor, que, em se tratando de livro didtico, procurou desmitificar
questes que, segundo ele, j deveriam ter sido repensadas em tempos atrs (SOUZA,
2002, p. 21).
interessante notar que, embora Souza trate da poltica do Acre, ele no o faz de
forma linear nem a expe como centro de seus estudos, mas apenas como parte
constitutiva da construo da histria do Acre. Nos captulos que tratam dessa questo
intercalada por outros referentes histria econmica e cultural do Estado do Acre, o
7 SOUZA, Carlos Alberto de. Histria do Acre: novos temas, nova abordagem. Rio Branco: Editor Carlos Alberto Alves de Souza, 2002. 212 p.
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autor tem a inteno de apresentar questes novas acerca da Histria do Acre, na
tentativa de demonstrar que a nossa histria pode ser infinitamente tratada de diversas
maneir