Incidente Em Antares

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ERICO VERSSIMO

INCIDENTE EM ANTARES

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Copyright 1971 by Erico Verissimo Copyright 1988 by Herdeiros de Erico Verissimo Ilustrao de capa: Iber Camargo (detalhe) Foto de Geraldo Viola / Arq. Editora Globo Direitos mundiais de edio em lngua portuguesa cedidos a EDITORA GLOBO S.A. Rua Domingos Srgio dos Anjos, 277 CEP 05136-170 - Fax: (011) 864-0271, So Paulo, SP Brasil Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta edio pode ser utilizada ou reproduzida - em qualquer meio ou forma, seja mecnico ou eletrnico, fotocpia, gravao etc. - nem apropriada ou estocada em sistema de banco de dados, sem a expressa autorizao da editora. Impresso e acabamento: RR Donnelley & Sons Company - EUA

CIP-Brasil. Catalogao-na-fonte Cmara Brasileira do livro, SP Verssimo, Erico, 1905-1975. Incidente em Antares / Erico Verissimo. 45 ed. - So Paulo: Globo, 1995 ISBN 85-250-0590-8 1. Romance brasileiro I. Ttulo 88-05189 CDD-869935 ndices para catalogo sistemtico: 1. Romances: Sculo 20: Literatura brasileira 869-935 2. Sculo 20: Romances: Literatura brasileira 869.935

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Neste romance as personagens e localidades imaginrias aparecem disfaradas sob nomes fictcios, ao passo que as pessoas e os lugares que na realidade existem ou existiram, so designados pelos seus nomes verdadeiros. (Nota do Autor)

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primeira parte ANTARES

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IAfirmam os entendidos que os ossos fsseis recentemente encontrados numa escavao feita em terras do municpio de Antares, na fronteira do Brasil com a Argentina, pertenciam a um gliptodonte, animal antediluviano, que, segundo as reconstituies grficas da Paleontologia, era uma espcie de tatu gigante dotado duma carapaa inteiria e fixa, mais ou menos do tamanho dum Volkswagen, afora o formidvel rabo feio de tacape ricado de espiges pontiagudos. Calcula-se que durante o Pleistoceno, isto , h cerca de um milho de anos, no s gliptodontes como tambm megatrios habitavam essa regio diabsica da Amrica do Sul, onde s Deus sabe ao certo quando veio a formar-se o rio hoje conhecido pelo nome de Uruguai. Ignora-se, todavia, em que poca da Era Cenozica surgiram naquela zona do Brasil meridional os primeiros espcimes do Homo sapiens. Tudo nos leva a crer, entretanto, que esse problema jamais tenha preocupado os antarenses. O que at hoje ainda os deixa ocasionalmente irritados o fato de car-tgrafos, no s estrangeiros como tambm nacionais, n|o mencionarem nunca em seus mapas a cidade de Antares, como se So Borja fosse a nica localidade digna de nota naquelas paragens do Alto Uruguai. De pouco ou nada tm servido os memoriais assinados pelo Prefeito Municipal, pelos membros da Cmara de Vereadores e por outras pessoas gradas e repetidamente dirigidos ao Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica, protestando contra a acintosa omisso. O Pe. Gerncio Albuquerque, quando ainda vigrio da Matriz local, mais de uma vez encaminhou, mas em vo, idntica reclamao ao Instituto Histrico e Geogrfico do Rio Grande do Sul, do qual era membro correspondente. No entanto a verdade clara e pura que, a despeito da m vontade ou da ignorncia dos fazedores de cartas geogrficas, a cidade de Antares, sede do municpio do mesmo nome, l est, visvel e concreta, margem esquerda do grande rio. O incidente que se vai narrar, e de que Antares foi teatro na sexta-feira 13 de dezembro do ano de 1963, tornou essa localidade conhecida e de certo modo famosa da noite para o dia fama um tanto ambgua e efmera, verdade no s no Estado do Rio Grande do Sul como tambm no resto do Brasil e mesmo atravs de todo o mundo civilizado. Entretanto, esse fato, ao que parece, no sensibilizou at agora gegrafos e cartgrafos. To inslitos, lridos e ttricos e estes adjetivos foram catados no artigo alusivo quele dia aziago, escrito pelo jornalista Lucas Faia para o seu dirio A Verdade, porm jamais publicado, por motivos que oportunamente sero revelados to fantsticos foram esses acontecimentos, que o Pe. Gerncio chegou a exclamar, dentro de seu templo, que aquilo era o comeo do Juzo Final. Nesse momento de susto e angstia coletiva, um ctico gaiato, desses que costumam menosprezar a terra onde nasceram e vivem, murmurou: A troco de qu Deus havia de comear o Juzo Final logo neste cafund onde Judas perdeu as botas? Bem, mas no convm antecipar fatos nem ditos. Melhor ser contar primeiro,6

de maneira to sucinta e imparcial quanto possvel, a histria de Antares e de seus habitantes, para que se possa ter uma idia mais clara do palco, do cenrio e principalmente das personagens principais, bem como da comparsaxia, desse drama talvez indito nos anais da espcie humana.

IIO mais antigo documento escrito que se conhece referente ao lugar onde mais tarde viria a ser fundada essa comunidade da regio missioneira do Rio Grande do Sul, encontra-se no livro do naturalista francs Gaston Gontran dAuberville, intitulado Voyage Pittoresque au Sud du Brsil (1830-1831). Escreveu o ilustre cientista em seu dirio de viagem : 24 de abril. Cruzamos esta manh o Rio Uruguai, numa balsa, e entramos em territrio do Brasil. Estes campos verdes, duma beleza idlica, lembram os da nossa Provence. Aqui as pastagens so boas e o gado bovino, abundante. Os primeiros homens que encontramos, tanto os brancos como os ndios, me olham com uma curiosidade meio desconfiada, que acho justificvel, pois devem estranhar a minha indumentria, o meu aspecto fsico e principalmente a minha bagagem: as gaiolas em que trago os pssaros vivos que apanhei no Paraguai e na Argentina, e os sacos e caixas cheios das plantas e pedras que venho colecionando desde o momento em que pisei terras do Novo Mundo. Cerca das dez horas da manh, chegamos a um lugarejo pertencente comarca de So Borja e conhecido como Povinho da Caveira, formado por uma escassa dzia de ranchos pobres, perto da barranca do rio. A pouca distncia deles, situa-se a casa do proprietrio destas terras, que me recebeu com certa cortesia. E um homem ainda jovem, de compleio robusta, cabelos e barbas castanhos e pele clara. Tem um ar autoritrio, costuma falar muito alto, parece habituado a dar ordens e a ser obedecido. Chama-se Francisco Vacariano, nome provavelmente derivado da palavra vaca e que no me parece legtimo, mas adotado. A casa da estncia de gado do Sr. Vacariano apenas um rancho maior que os outros da povoao. Comunico-me com esse senhor no meu -precrio espanhol, e ele me responde na mesma lngua mas usando, uma vez que outra, palavras portuguesas. Almoamos ao meio-dia e o estancieiro nos serviu, numa grande marmita de ferro, pedaos de carne seca (aqui chamada charque) com farinha de mandioca, tudo misturado com gordura animal. O Sr. Vacariano imaginava que eu era uma espcie de mascate. Ficou desapontado quando verificou que eu no trazia tabaco, acar nem sal, gneros de que carece no momento. Expliquei-lhe que sou um cientista e o meu hospedeiro pareceu no me dar crdito, pois acha impossvel que um homem empreenda uma to longa e penosa viagem apenas para apanhar bichos e juntar plantas e pedras. Percebi que o Sr. Vacariano no confia nos homens do outro lado do rio nem parece gostar deles. Tal coisa no para estranhar-se, se levarmos em conta que recentemente o Brasil esteve envolvido numa guerra com a Argentina pela posse da7

chamada Banda Oriental. O meu guia, que um homem loquaz e grande conhecedor desta regio e desta gente, duma margem e outra do rio, assegurou-me que o meu hospedeiro no s herdou as sesmarias que a Coroa de Portugal concedeu ao seu av, no incio do povoamento desta provncia, como tambm se apossou pela fora de algumas lguas de campo -pertencentes a outros estancieiros vizinhos, que ps em fuga, sob ameaas. Contou-me ainda o dito guia que boa parte do rebanho de gado que o Sr. Vacariano hoje possui formado de descendentes dos bois e vacas que o seu pai roubou na Argentina, aproveitando a confuso de tempos de desordens e lutas intestinos no pas vizinho. O guia me pediu discrio absoluta, quanto a essas informaes, pois, ao que diz, o Sr. Vacariano um homem violento e vingativo. Fui informado de que os ndios deste pouoado pensam que sou um feiticeiro, e que o capataz do meu hospedeiro est convencido de que no passo de um bispo disfarado que aqui veio, a mandado do Papa, para estudar a possibilidade do restabelecimento das redues jesuticas que outro-ra floresceram nesta regio. O que, porm, mais me perturbou foram as palavras que o prprio Sr. Vacariano pronunciou, ao fim de nosso almoo. Reproduzo-as aqui, verbatim: Sabe o que fiz com o ltimo lotador de impostos que apareceu nestas terras! Mandei mat-lo e atirei seu corpo no rio. Felizmente, depois dessa ameaa soltou uma risada, deu-me uma palmada cordial nas costas e declarou que era um homem de boa-f e portanto acreditava em que eu era mesmo um colecionador de plantas e passarinhos, pois cada louco tem a sua mania. Passei a tarde herborizando nos arredores do povoado. A hora de recolher, o Sr. Vacariano prometeu proporcionar-me, ao amanhecer do dia seguinte, um espetculo inesquecvel. Passei a noite quase sem dormir, por causa dos mosquitos.

III25 de abril. Antes do nascer do sol montamos a cavalo, meu hospedeiro e eu, e nos dirigimos para uma vrzea, a uma escassa lgua de sua estncia, e apeamos perto dum bosque, onde ficamos espera do clarear do dia. Quando o sol apareceu, vi diante de mim uma plancie pantanosa cheia duma grande variedade de aves aquticas. Mal consegui esconder o meu pasmo e o meu jbilo, pois aquilo se me afigurava o sonho dourado dum naturalista. No primeiro relance, pude perceber ali graciosas garas, bis, grous, galinhas-dagua, patos, narcejas, alguns exemplares dum pssaro que, distncia, me pareceu do gnero Francoli-nus, mas dum tamanho acima do comum. Tive im.pe.tos de correr na direo daquele congresso de aves e apanhar as que pudesse, mas o Sr. Vacariano me segurou o brao, di-zendo-me que esperasse, pois havia algo e spedar que me queria mostrar. Pouco depois apontou para uma rvore des-folhada, a uns vinte metros de onde estvamos, e eu vi, empoleirada num dos seus galhos, uma gara dum alvor de neve, de linhas elegantes, e que em dado momento voltou a cabea na direo do sol nascente, perfilou-se, esticou o longo pescoo e soltou um assobio prolongado, duma suavidade8

indescritvel, a um tempo buclico e triste, lembrando o pfaro dum pastor. Era como se a ave estivesse cantando um hino ao dia nascente. Numa espcie de transe, eu pensava nas belezas que a imaginao criadora e dadivosa de Deus espalhou pelo universo, quando o Sr. Vacariano me disse que os ndios chamavam quela gara flauta do sol. (Tratava-se evidentemente de um exemplar da Ardea cyanocephala.) Voltamos para a estncia e durante o resto do dia colhi exemplares de graminceas e solanceas e outras plantas que encontrei naqueles prados paradisacos. O meu hospedeiro pareceu ter simpatizado comigo, pois quando lhe pedi emprestadas duas juntas de bois, para substituir os animais cansados que haviam puxado nossa carreta at ali, ele acedeu prontamente ao vieu pedido. A noite, depois do jantar, samos ambos a caminhar nos arredores da casa da estncia. Como para lhe pagar pelo formoso espetculo da manh, localizei no cu a constelao de Escorpio, que no hemisfrio austral comea a aparecer no horizonte, a leste, depois de 15 de abril, mostrei ao Sr. Vacariano a bela estrela chamada Antares, e disse-lhe que, embora no parecesse, ela era maior do que o Sol. O meu hospedeiro olhou para a estrela em silncio e mais tarde, quando chegamos a casa, murmurou: Antares.... Bonito nome. Para mim quer dizer lugar onde existem muitas antas, bem como nestas terras perto do rio. Pediu-me que escrevesse essa palavra, o que fiz, num pedacinho de papel, para o qual o Sr. Vacariano ficou olhando durante algum tempo, murmurando: Bonito nome para um povoado... melhor que Povinho da Caveira. Depois, guardando o papel no bolso, sorriu com seus fortes dentes de carnvoro e acrescentou: Mas no acredito que essa estrela seja mesmo maior que o Sol.

IVOutro documento, pouqussimo conhecido mas tambm importante, sobre o que se poderia chamar de pr-histria de Antares uma carta escrita pelo P. Juan Bautista Otero, S. J., ao provincial de sua ordem, em Buenos Aires. Conta o missionrio nessa missiva, datada de 4 de dezembro de 1832, que cruzou o Rio Uruguai e chegou ao Povinho da Caveira onde pediu e obteve permisso do dono daquelas terras, um certo Sr. Francisco Bacariano (sic) para fazer casamentos e batizados. Eis um trecho da referida carta: Aqui vivem muitos ndios e ndias em estado de indi-gncia e, o que ainda pior, em pecaminosa mancebia. Por outro lado, a ausncia de mulheres da raa branca neste aldeamento leva os homens de origem portuguesa a servirem-se dessas indgenas para a satisfao de sua luxria. O prprio Sr. Bacariano, segundo me informou pessoa digna de f, pai de quase uma dezena de filhos naturais com vrias destas svcolas, mas no os batiza nem legitima. Horroriza-me a idia de que um dia quando adultas, essas criaturas venham, sem o saber, a cometer incesto. Este , porm, um problema que por ora temos de deixar nas mos misericordiosas de Deus. Assim, nestes ltimos trs dias tenho celebrado muitos casamentos e batizado grande nmero de pagos, no s crianas como tambm adultos. Ontem, domingo,9

rezei uma missa ao ar livre, com aprecivel concorrncia. O Sr. Bacariano no me parece ter muito respeito pela nossa religio ou por qualquer outra, mas apesar disso me tem tratado com considerao e at facilitado o meu trabalho apostolar. Perguntei-lhe, com o devido respeito, se no pretendia casar-se, e ele me respondeu que, dentro de poucos meses, iria a Alegrete para contrair npcias com uma moa, de nome Anglica, filha dum abastado estancieiro daquela localidade.

VQue esse casamento se realizou, fato fora de dvida, pois seu registro se encontra nos velhos livros da Matriz de Alegrete. Chico Vacariano teve com sua esposa legtima ao todo sete descendentes-, entre homens e mulheres. Para grande alegria sua, nasceu-lhe primeiro um filho macho, que recebeu o nome de Antnio Maria. Um ano aps o nascimento do primognito, teve Francisco Vacariano de enfrentar um longo perodo de dificuldades e agruras, durante o qual se viu mais de uma vez na iminncia de perder suas terras, seu gado e o resto de seus bens. Foi por ocasio da chamada Guerra dos Farrapos deflagrada por milhares de homens daquela provncia que se 3rgueram em armas contra o governo imperial, ento nas mos dum Regente, pois o prncipe Dom Pedro, herdeiro do trono, no atingira ainda a maioridade. Francisco Vacariano jamais tomou uma posio definida nessa luta. Se por um lado estava convencido da justia da causa revolucionria, por outro o fato de os rebeldes haverem proclamado a Repblica do Piratini lhe causava um certo desagrado, que ele exprimiu sua mulher nestas palavras: Um imperador uma espcie de pai que a gente tem. Numa repblica me parece que todo o mundo fica meio rfo.... Assim, Chico Vacariano como mais tarde viria a dizer com malcia um de seus inimigos tratou de jogar com pau de dois bicos. Abrigava altemadamente em suas terras ora tropas revolucionrias ora tropas legalistas. Atendeu as requisies de cavalos, gado e mantimentos que lhe faziam ambas as faces. De resto, como poderia dizer no a maiorias armadas? O que muito o favoreceu nesse jogo dplice foi o fato de o Povinho da Caveira ser uma localidade de difcil acesso, pouco lembrada pela revoluo e completamente esquecida pelo resto do mundo. Mesmo assim, duma feita Chico Vacariano e seus familiares tiveram de cruzar o rio s pressas, refugiando-se durante mais de um ano na Argentina. A guerra civil durou quase um decnio inteiro. Vacariano costumava dizer que aquela campanha era a principal responsvel pelos seus primeiros cabelos brancos e pelas precoces rugas que lhe vincavam a face. Terminada definitivamente a luta, Chico voltou ao pago, reconstruiu a sua casa, que na sua ausncia quase virar tapera, e tratou de refazer aos poucos o seu rebanho bovino e recuperar o seu prestgio pessoal naquela regio. O tratado de paz entre os Farrapos e os Imperiais tinha sido10

firmado com tanta dignidade e patriotismo, de ambas as partes, que duma simples leitura de seus termos no se poderia deduzir quem tinha sido o vencedor e quem o vencido. Nunca ningum perguntou a Chico Vacariano, pelo menos cara a cara, de que lado havia ele pelejado durante a guerra civil. E esse foi um assunto que o senhor de Povinho da Caveira sempre evitou pelo resto de sua vida natural. O Povinho foi elevado a vila por alvar de 25 de maio de 1853, data em que recebeu oficialmente o nome de An-tares. Pouca gente entendeu a razo dessa mudana ou o sentido da nova denominao. Muitos, como Chico Vacariano, imaginavam que Antares significava lugar das antas. Houve at quem pensasse tratar-se do nome de um general brasileiro, heri de alguma daquelas muitas guerras contra os castelhanos. Durante mais de dez anos Francisco Vacariano como havia j acontecido desde 1829 no primitivo Povinho foi a autoridade suprema e inconteste na vila. Nem mesmo o governo provincial tentava intervir na vida daquela pequena comunidade ribeirinha, que ainda fazia parte do municpio de So Borja.

VINo vero de 1860 chegou ao conhecimento de Chico Vacariano que um certo Anacleto Campolargo, criador de gado e homem de posses, natural de Uruguaiana, ia comprar terras nas proximidades de Antares. Murmurava-se que esses Campolargos eram descendentes por linha reta dum tropeiro paulista que entrara um dia numa furna do cerro do Jarau talvez na famosa Salamanca da antiga lenda encontrando l um fabuloso tesouro, pois de outro modo ningum podia explicar como um modesto negociante de mulas andasse sempre com a sua guaiaca cheia de onas de ouro, rutilantes como sis. Mesmo sem jamais ter visto a cara de Anacleto Campolargo, o senhor de Antares fez o possvel para que a transao no se consumasse. No quero intrusos por aqui! dizia. Ora, essas terras que Campolargo queria adquirir pertenciam a um chefe poltico de So Borja, homem influente, amigo ntimo do governador da provncia. Chico Vacariano no teve outro remdio seno engolir o sapo, segundo uma expresso sua. Consumada a transao, Anacleto Campolargo mandou logo construir uma grande residncia de alvenaria em Antares, na praa do Imprio, naquele tempo pouco mais que um potreiro onde cavalos e vacas pastavam. A primeira vez em que Chico Vacariano e Anacleto Campolargo se defrontaram nessa praa, os homens que por ali se encontravam tiveram a impresso de que os dois estancieiros iam bater-se num duelo mortal. Foi um momento de trepidante expectativa. Os dois homens estacaram de repente, frente a frente, olharam-se, mediram-se da cabea aos ps, e foi dio primeira vista. Chegaram ambos a levar a mo cintura, como para arrancar as adagas. Nesse exato momento o vigrio surgiu porta da igreja, exclamando: No! Pelo amor de Deus! No!11

Nenhum dos dois potentados parecia amar a Deus e muito menos ao vigrio. Contiveram-se, porm, cada qual uma secreta razo particular, e depois retomaram ambos seu caminho, seguindo em sentidos opostos. Foi assim que entre as duas dinastias antarenses, a dos Vacarianos e a dos Campolargos, comeou uma feroz rivalidade, que deveria durar quase sete decnios, com perodos de maior ou menor intensidade, ao sabor de acontecimentos de ordem poltica, econmica ou puramente pessoal.

VIIPouco a pouco Anacleto Campolargo foi conquistando amigos e impondo-se ao respeito e estima de boa parte da populao antarense. Era o primeiro homem na histria daquela comunidade que ousava enfrentar o Chico Vaca como lhe chamavam pelas costas os seus desafetos. Agressivo, opinitico, autoritrio, o patriarca do cl dos Vacarianos era um sujeito sem tato. Suas palavras em geral soavam como chicotadas. O maioral dos Campolargos, porm, sinuoso e macio, cultivava o murmrio, sabia manipular suas emoes e modular o tom da voz de acordo com a sua convenincia e os seus propsitos. Tinha um ar paternal, freqentemente chamava o interlocutor de meu filho, se estava diante dum jovem, ou de meu chefe, se falava com um ancio. (J provou deste fumo? No? especial. Tem palha? Pois faa um crioulo. Pode ficar com esse naco. Ora, obrigado por qu?) Homem de algumas letras, Anacleto Campolargo organizou na vila o Partido Conservador, o que bastou para que Chico Vacariano, at ento um tanto indiferente em matria de poltica, tratasse de organizar o Partido Liberal. Assim, Antares passou a ter dois senhores igualmente poderosos. Era exatamente essa igualdade de foras que impedia as duas faces de se empenharem em batalhas campais de extermnio. Continuando uma velha tradio, nas missas de domingo e dias santos, os conservadores sentavam-se nos bancos da direita, frente do altar-mor, e os liberais nos da esquerda. Em seus sermes, pregados com voz trmula, o vigrio fazia acrobacias de retrica para no dizer nada que pudesse, mesmo de leve, descontentar qualquer dos dois grupos. Quando algum lhe perguntava em particular para qual dos dois proceres antarenses inclinavam-se as suas simpatias, o proco sussurrava, olhando dum lado para outro, a medo-, Deus o meu nico chefe e a Igreja a minha nica poltica. Neutralidade, entretanto, era uma palavra inexistente no vocabulrio poltico e social de An-tares. O forasteiro que ali chegasse, mesmo para uma visita breve, era praticamente obrigado a tomar logo partido. Tanto os Campolargos como os Vacarianos eram criadores de gado e de cavalos. Foi, porm, o velho Anacleto o primeiro que comeou a criao de ovelhas naqueles campos. Chico Vaca havia muito possua lavouras de trigo, li-nho e arroz, razo por que era o mais rico senhor de escravos em toda a regio.

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VIIIQuando o Brasil entrou em guerra com o Paraguai, Vacarianos e Campolargos enrolaram os seus estandartes tribais e, sombra da bandeira do Imprio, lutaram juntos contra a indiada de Solano Lopes. Chico Vacariano queixou-se-. S no me agrada que desta vez temos castelhanos peleando de nosso lado. Referia-se s foras da Argentina e da Repblica Oriental do Uruguai, que haviam formado com o Brasil a Trplice Aliana, para enfrentar o temvel ditador paraguaio. Como Anacleto e Francisco tivessem j passado da idade militar, cada um deles mandou dois de seus filhos alistarem-se como Voluntrios da Ptria. A guerra durou de 1865 a 1870. Foram tempos de tristeza, apreenses e durezas para os habitantes de Antares. S depois que a campanha terminou que chegou vila a notcia de que Antnio Maria, o primognito de Chico Va-cariano, havia tombado morto na batalha de Lomas Valen-tinas. Os dois Campolargos voltaram vivos mas estropiados. Benjamim, o mais velho, que havia perdido um olho num combate corpo a corpo, trazia as divisas de major e uma medalha militar. Seu irmo Gaudncio tivera de amputar um brao. Anto Vacariano, que deixara a mo esquerda enterrada em solo paraguaio, voltara feito coronel e tambm condecorado por atos de bravura. Foram esses trs antarenses recebidos em sua terra com honras de heris. Cada qual contava as suas estrias da campanha algumas horripilantes, outras pitorescas e at jocosas. Num ponto, porm, Benjamim Campolargo e Anto Vacariano discordavam. que cada um deles reclamava para si a dbia glria de ter matado com um pontao de lana o ditador Solano Lopes, na batalha de Cerro-Cor. A Histria, porm, desmentiu ambos.

IXGraas aos bons ofcios e ao prestgio poltico de Ana-cleto Campolargo, amigo de figures do governo da provncia, Antares foi separada de So Borja e elevada categoria de cidade e sede de municpio, por Lei Provincial de 15 de maio de 1878. Ora, esse fora sempre um dos projetos mais caros a Chico Vacariano, agora j prximo dos oitenta anos. A idia, porm, de que tudo se tinha conseguido por obra exclusiva de seu maior inimigo, deixou-o de tal maneira abalado que, uma semana antes de comearem os festejos com que se celebraria o grande evento, Chico Vaca caiu morto, fulminado pelo que um mdico de So Borja diagnosticou como um ataque de cabea dos brabos. Num gesto cavalheiresco, Anacleto transferiu os festejos para dezembro daquele ano, e at mandou em nome da famlia Cam-polargo uma coroa de flores para o defunto. Os Vacarianos recv saram a homenagem, vendo no gesto um intolervel debique. Dezembro chegou, a cidade preparava-se para as grandes comemoraes quando se espalhou a notcia de que o velho Campolargo, que estava na estncia, fora picado por uma jararaca, tendo morrido em menos de meia hora, apesar das benzeduras de suas negras velhas e das ervas e un-gentos de seu curandeiro bugre.13

Assim, quando entrou o ano de 1879, os dois grandes cls de Antares tinham sua frente novos chefes. Benjamim, o caolho, era o patriarca dos Campolargos e Anto, o maneta, o maioral dos Vacarianos dois quarentes na fora da vida. Ambos haviam jurado em silncio, junto aos cadveres paternos, continuar aquela luta de famlia at ao fim do Tempo.

XQuando, anos mais tarde, a Princesa Isabel assinou o decreto em que se abolia a escravatura no Brasil, Anto Va-cariano disse a seus familiares que esse ato de loucura ia precipitar o fim do Imprio. Foi com relutncia que, pelo menos formalmente, liberou seus escravos. Ora, Benjamim Campolargo, que havia alguns anos fundara o Grmio Republicano de Antares, exultou com a notcia da Abolio, e mais tarde soltou vivas e foguetes ao saber que a Repblica fora finalmente proclamada no Brasil. Durante dias Antares esteve em p de guerra. Mulheres e crianas foram proibidas de sair rua. Na praa trocaram-se insultos e tiros. As vidraas do prdio do Grmio Republicano foram partidas a pedradas e balaos por monarquistas enraivecidos. Um petardo explodiu contra a porta da residncia dos Vacarianos. Houve cabeas quebradas e outros ferimentos corporais, leves uns, graves outros; morte, porm, nenhuma. Fosse como fosse, o Imprio havia cado e os Vacaria-nos no tiveram outro remdio seno resignar-se. E, como faziam sempre que sofriam algum revs, fecharam a casa da cidade e refugiaram-se na estncia, onde curtiram a sua vergonha, o seu despeito e o seu rancor. Anto verteu s escondidas algumas lgrimas quando soube que os republicanos haviam mandado o velho imperador para o exlio. Este pas est perdido! disse aos membros de sua famlia. O remdio agora esperar a hora de fazer uma revoluo e reconduzir o Velho ao trono. Xisto, o primeiro Vacariano na ordem de sucesso, resmungou: Essa repblica no se agenta nas pernas. Dizem que o barulho j comeou no Rio de Janeiro. Em 1890 a Matriz de Antares, cuja construo tinha sido iniciada havia vinte anos, foi inaugurada por ocasio da Festa do Divino Esprito Santo. Benjamim Campolargo, Imperador Festeiro, mandou carnear seis de suas reses para dar churrasco ao povo, organizou uma quermesse e fez queimar fogos de artifcio vindos da capital do Estado. Os Vacarianos, que tinham prometido dar um sino de bronze para o novo templo, recusaram cumprir a promessa. Quando o vigrio timidamente os interpelou, alegando que a Igreja nada tinha a ver com a poltica, Anto retrucou truculento: Padre, nesse assunto nem Deus pode se dar o luxo de ser neutro!

XIOs historiadores de Antares, que no so muitos, at hoje temem lembrar certos14

fatos desagradveis da crnica desse municpio. Num ponto, porm, parecem todos de acordo. A revoluo federalista, que irrompeu em 1893, foi sem a menor dvida o mais cruel e sangrento perodo da luta hereditria entre as duas famlias antarenses rivais. Anto Vacariano e seus irmos, filhos, cunhados e sobrinhos, partidrios apaixonados do famoso tribuno do Imprio, Gaspar da Silveira Martins, tomaram o lado dos revolucionrios e, num golpe de surpresa, apossaram-se de Antares. Os Cam-polargos, porm, no tardaram a reagir e, ajudados por foras republicanas vindas de So Borja, retomaram a cidade. O combate travou-se ao anoitecer. A tropa dos Vacarianos retirou-se, com algumas baixas, e em desordem. Anto, que tinha ficado para trs comandando uma dzia de companheiros numa operao de retaguarda, para proteger a fuga do grosso de sua fora, foi feito prisioneiro. Trazido presena de Benjamim Campolargo, trocou com este palavras e frases virulentas. O comandante vencedor, porm, recobrou a calma e disse: Sou um homem de bem. Respeito o direito dos prisioneiros de guerra. Vou poupar a sua vida, apesar de todas as barbaridades que voc e seus bandidos praticaram enquanto estavam de donos da cidade. Anto Vacariano encarou firme o adversrio e replicou : No peo nem aceito favor de nenhum caolho filho da puta! Me soltem, me devolvam a minha adaga e venham de um a um, que eu mostro quem macho e quem no . Benjamim sacudiu a cabea e soltou a sua risadinha gutural. No sou prevalecido. No brigo com maneta. Como nica resposta Anto escarrou-lhe na cara. E neste ponto as verses divergem. Afirmam alguns cronistas que, cego de dio, Benjamim tirou sua faca da bainha, precipitou-se sobre o inimigo e sangrou-o ali mesmo. Outros dizem que mandou um de seus homens degolar o prisioneiro mais tarde, a frio. A verdade que Anto Vacariano foi assassinado naquela noite, e seu corpo, envolto num lenol, enterrado no cemitrio local, numa sepultura rasa e sem marca.

XIIA vingana dos Vacarianos no tardou. Meses depois, as foras federalistas, comandadas por Xisto, retomaram Antares e conseguiram prender Terzio, o mais novo dos Campolargos. Xisto mandou reunir na praa os homens da cidade e ordenou que mulheres e crianas ficassem fechadas em suas casas. De mos amarradas s costas, Terzio foi trazido sua presena, em meio de grave silncio. Ao redor dos dois adversrios agrupavam-se aqueles guerreiros barbudos, sujos, suados e alguns at com a pele e as vestes ensangentadas do ltimo combate. do conhecimento geral bradou Xisto Vacariano que os Campolargos assassinaram covardemente o meu mano Anto, que no teve nem o consolo de15

morrer como homem, peleando de arma na mo. Foi miseravelmente sangrado como um boi no matadouro. Pois agora chegou a nossa hora. Este Campolargo vai pagar pelos crimes do seu irmo e de todos os cachorros sarnentos de sua raa maldita! Terzio estava livido. Mal moveu os lbios quando disse: Guerra guerra. No peo clemncia. No pedes nem te dou, corno filho duma gr-puta! Seguiu-se uma cena digna do pincel e da imaginao dum Hieronymus Bosch. Xisto mandou amarrar o prisioneiro pelas pernas e pendur-lo no galho duma rvore, com a cabea a poucos centmetros do solo. Depois acercou-se de sua vtima, empunhando um grande funil de lata, cujo longo bico lhe enfiou s cegas no nus, profundamente. Com a cara contrada de dor e vergonha, Terzio cerrou os dentes mas no deixou escapar o menor gemido. Nenhum daqueles homens parecia saber ao certo o que Xisto pretendia fazer. Um deles cochichou ao ouvido dum companheiro: Acho que o coronel vai dar uma lavagem de Pimenta e mostarda nesse pica-pau. Os planos de Xisto, porm, eram mais terrveis. Todos compreenderam o que ele ia fazer quando gritou: Tragam o tempero pra salada! e dois de seus homens, vindos do quintal do casaro dos Vacarianos, aproximaram-se, conduzindo com todo o cuidado, para no se queimarem, uma grande chaleira de ferro cheia de azeite em ebulio. O cu estava azul e limpo. Uma brisa de primavera boba nas folhas das rvores e nas rosas de todo o ano que cobriam a cerca, ao lado da residncia, agora deserta, dos Campolargos. Havia um grande silncio na praa ensolarada. Xisto murmurou: Sabes o que vou te fazer, sacri-panta? Te incendiar as tripas. A uma ordem sua, os dois homens comearam a despejar lentamente no funil todo o contedo da chaleira. Terzio Campolargo soltou um urro e comeou a estrebuchar. Apenas um homem, de todos quantos assistiam cena, soltou uma risada. Os outros se mantiveram num silncio taciturno. Romualdo, o mais moo dos Vacarianos, acercou-se do chefe da famlia e protestou: Mas isso uma barbaridade, mano! Sem desviar o olhar da vtima, que continuava a berrar e espernear como um porco que est sendo sangrado, replicou: Precisas aprender a lidar com o inimigo, menino. Se a coisa te faz mal ao estmago, toma um chzinho de erva-doce e vai pra casa te deitar. A agonia de Terzio foi de curta durao. Quando suas convulses cessaram, Xisto olhou para o cu, aliviado. Vieram contar-lhe ento que o vigrio, que estava na igreja, rezando, lhe pedia o corpo do jovem Campolargo para a encomendao e o sepultamento. Xisto sacudiu negativamente a cabea. Encomendar pra qu? Se esse pica-pau tinha mesmo alma, a esta hora ela j entrou nos quintos do inferno. Disse isto, voltou as costas para o cadver e tornou sua casa, onde o esperava um assado de paleta de ovelha, que ele comeu com a tranqilidade dum justo.

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XIIISeis meses mais tarde os Campolargos retomaram An-tares num ataque de surpresa, noite. Os Vacarianos retiraram-se com a sua tropa, deixando para trs, mortos ou feridos, vrios companheiros. E quando, horas depois do combate, Xisto conseguiu reunir os seus homens no topo duma coxilha e comeou a chamar pelos irmos, deu pela falta de Romualdo e ficou frio. Quem que viu o Romualdo por ltimo? Ningum se lembrava. Xisto deu-o por perdido, encolheu os ombros e pensou: na guerra como na guerra... Mais tarde ficou-se sabendo que Romualdo na hora do inesperado ataque dos pica-paus estava na cama com uma china e, no tendo tempo de fugir, fora capturado. Benjamim Campolargo esfregou as mos num contentamento frentico. Tinha chegado a desejada hora de vingar a morte de Terzio. No dia seguinte, por volta das oito da manh (era j outono, dia frio e triste, cu cor de plo de capivara) Benjamim tratou de saber do vigrio em que rvore seu irmo havia sido torturado. O padre deu-lhe a informao, mas disse: Por tudo quanto existe de mais sagrado na vida, pelo amor de sua me e de seu falecido pai, eu lhe suplico que no sacrifique esse moo. No foi ele quem matou o Terzio. Benjamim sorriu: Padre disse ele com brandura eu lhe juro por Deus Nosso Senhor que no vou matar o Romualdo. O sacerdote arregalou os olhos, surpreso. Jura mesmo? O outro ergueu a voz: Juro! Aqui na frente dos meus companheiros! Pela honra da minha me, da minha mulher e das minhas irms, juro que vou soltar o moo, e vivo! O vigrio ficou pensativo, incrdulo ainda, mas nada disse. Lavou simbolicamente as mos e voltou para a igreja. Romualdo Vacariano foi trazido presena de Benjamim Campolargo, que exclamou: Tirem toda a roupa desse sujeitinho! Trs de seus homens obedeceram ordem. As botas tambm... Bom. Agora amarrem ele na mesma rvore onde penduraram o meu irmo. Assim no! Com a barriga contra o tronco, as pernas abertas... Isso! Um crculo duns cento e poucos homens formava uma espcie de muro ao redor da rvore. Como no dia da tortura e morte de Terzio, todas as mulheres e crianas tinham sido fechadas nas suas casas. Os companheiros entreolha-vam-se, sem saber ao certo o que seu chefe ia fazer. Benjamim chamou um dos seus companheiros, um negro alto e corpulento, e lhe disse: Elesbo, voc quem vai fazer o servio no moo. O preto levou a mo faca. Era um exmio degolador. Benjamim sacudiu negativamente a cabea. No. O instrumento no esse, mas o que voc tem entre as pernas. Elesbo no entendeu imediatamente o que o seu comandante queria. Quando compreendeu, murmurou, constrangido : Ora, coronel, eu nunca fiz dessas coisas.17

Mas vai fazet agora. E uma ordem. Por que logo eu? Porque sim. Aqui na frente de todo o mundo? exatamente isso que eu quero: testemunhas. Elesbo olhou para o homem nu e depois para o seu comandante : Me prenda, coronel, me rebaixe de posto, mas uma coisa dessas eu no fao. Degolar diferente... Num timo Benjamim examinou mentalmente a difcil conjuntura. Por um lado no podia ser desautorizado na frente dos seus prprios comandados; por outro, no queria castigar e talvez perder um companheiro do valor do Elesbo. Quem salvou a situao foi um caboclo parrudo e mal-encarado, o Polidoro, contumaz barranqueador de guas, que se apresentou voluntrio para executar a tarefa. Est bem disse o chefe Campolargo. Est na mesa. Sirva-se. E o caboclo violentou Romualdo. Uns trs ou quatro homens soltaram risadinhas. Outros, porm a maioria retiraram-se do local para no assistirem cena degradante. Um capito bigodudo chegou a gritar: Isso no se faz a um macho, coronel! Por que no mata logo o miservel? Benjamim, que saboreava o espetculo, no deu a menor ateno ao protesto. Consumado o ato, gritou: Agora soltem a moa! Dois soldados desamarraram Romualdo, que deu alguns passos, cambaleante, como se estivesse bbedo, a cara aparvalhada. De repente soltou um urro, como um animal ferido de morte e, nu como estava, saiu a correr na direo do rio, atirou-se no cho, no alto da barranca, e rolou declive abaixo, at cair ngua. Ps-se a nadar, e, a uns trinta metros da margem, deixou-se afundar. Seu corpo jamais foi encontrado. Depois desses atos de violncia e perversidade ningum podia sequer imaginar que fosse um dia possvel para Va-carianos e Campolargos voltarem a viver na mesma cidade. Terminada a revoluo, com a vitria dos republicanos, Xisto Vacariano emigrou com todo o seu cl para a Argentina, onde permaneceu por dois anos. Durante essa longa ausncia, um amigo seu, homem de bem e neutro em poltica, tomou conta da estncia e dos outros negcios dos Vacarianos e, com o auxlio de amigos influentes, conseguiu evitar que os Campolargos se apossassem discriciona-riamente dos bens mveis, imveis e semoventes de seus velhos adversrios.

XIVEm 1898 Xisto Vacarianotomou um vapor em Buenos Aires e viajou at ao Rio de Janeiro onde conta-se se avistou com o senador Pinheiro Machado, figura prestigiosa da poltica nacional. Eram velhos conhecidos. Havia alguns anos, o prcer republicano hospedara-se na estncia dos vacarianos e, hora do jantar conversa vai, conversa vem , acabaram descobrindo que Pinheiro Machado, que ?e alistara18

com apenas dezesseis anos como Voluntrio da ratria, durante a Guerra do Paraguai, havia servido no regimento de que Xisto Vacariano era oficial. Comemoraram a descoberta bebendo vinho do Porto e Xisto deu de presente ao futuro senador da Repblica um de seus cavalos de purosangue e um par de estribos de prata feitos na Blgica. Xisto valia-se agora desta amizade para tentar resolver a sua situao e a de toda a sua famlia. Pinheiro Machado escutou-o com ateno e prometeu amansar os Campolar-gos, pelos quais confessou no morria de amores, apesar de eles serem seus correligionrios. Mandou uma carta a Jlio de Castilhos ento Presidente do Estado explicando-lhe a situao e pedindo a sua intercesso no assunto. Castilhos escreveu a Benjamim Campolargo reco-mendando-lhe fizesse vista grossa ao reaparecimento dos seus inimigos Vacarianos em Antares. Benjamim levou alguns dias para digerir essa carta. Respondeu, porm, a ela declarando que faria como seu prezado chefe e amigo pedia. Tinha antes escrito ordenava mas passou a carta a limpo para trocar o verbo. Assim os Vacarianos foram voltando pouco a pouco para Antares. com todos os membros de suas famlias. Naquelas primeiras semanas aps a volta dos proscritos (termo usado por um jornalista republicano local) no s a populao de Antares como a prpria cidade casas, muros, caladas, plantas, pedras pareciam viver em estado de extrema tenso, na expectativa do primeiro encontro fsico entre um Campolargo e um Vacariano. Xisto e Benjamim defrontaram-se uma tarde frente do Grmio Republicano. O primeiro pigarreou forte. O outro fuzilou o inimigo com um olhar de seu nico olho vlido. Nada disseram nem fizeram. Cada qual seguiu seu caminho e Antares e os antarenses respiraram desoprimidos.

XVAntares celebrou com grandes festas a entrada do sculo xx. Armou-se no centro da praa um carrossel, de propriedade dum espanhol residente em Uruguaiana. tarde houve Cavalhadas e noite quermesse. Acenderam-se fogueiras onde se assaram batatas-doces e lingias. Num grande tablado erguido frente da Matriz, houve danas a noite inteira, ao som de msicas tocadas pelos melhores san-foneiros da cidade e redondezas. meia-noite em ponto o sino da igreja rompeu a badalar festivamente, homens davam tiros de pistola para o ar, foguetes de lgrimas espocavam nas alturas, derramando sobre os telhados e o rio chuveiros de estrelas multicores. Homens, mulheres e crianas abraavam-se gritando, chorando e rindo. Benjamim Campolar go, que assistia festa da sacada de sua residncia, desce para a praa e confraternizou com o povo. Sentou-se con. a esposa cabeceira duma mesa de cinqenta metros de comprimento, ali ao ar livre, e deu incio grande ceia carne de gado, ovelha e porco, galinhas e patos assados, pratarraos de arroz de carreteiro e, no firn, sobremesas feitas pelas melhores doceiras da cidade. E, a todas essas, d-lhe vinho, d-lhe cachaa, d-lhe cerveja... Os Vacarianos, esses celebraram o grande acontecimento em famlia, sem se19

misturarem com a canalha republicana. A pessoa escolhida pelo intendente para falar em nome da municipalidade um professor saudou o sculo xx como a era da Luz e do Progresso, a qual, merc das novas invenes e descobertas do saber humano, haver de proporcionar aos povos de todas as naes do Universo uma vida de conforto, fartara e harmonia, como nunca na Histria da Humanidade. J quase ao clarear do dia, intoxicados de bebidas alcolicas, dois machos do cl dos Campolargos primos-irmos ainda na casa dos vinte estranharam-se, trocaram primeiro palavres, depois bofetadas e finalmente facadas. Um deles recebeu um pontao de faca no ventre (superficial) e o outro deixou no cho da praa um naco de seu brao esquerdo. O velho Benjamim teve de intervir pessoalmente, ajudado por dois irmos, para evitar que o conflito se generalizasse num pega pra capar desastroso. Ao saber do incidente, no dia seguinte, Xisto Vacaria-no sorriu e disse: Comeou bem pra ns esse tal de sculo xx.

XVIA esta altura da presente narrativa natural que o leitor esteja inclinado a perguntar se no existiam em Antares homens de bem e de paz, com comportamento e sentimentos cristos. A pergunta pertinente e a resposta, sem a menor dvida, afirmativa. Havia, sim, e muitos. Desgraadamente seus ditos, feitos e gestos no foram recolhidos pela histria oficial. Apenas uns poucos deles incorporaram-se tradio oral da cidade e do municipio-, os restantes perderam-se para sempre no olvido. Os livros escolares, cujo objetivo ensinar-nos a histria da nossa terra e do nosso povo, so em geral escritos num esprito maniquesta, seguindo as clssicas antteses os bons e os maus, os heris e os covardes, os santos e os bandidos. Via de regra, no se empregam nesses compndios as cores intermedirias, pois os seus autores parecem desconhecer a virtude dos matizes e o truismo de que a Histria no pode ser escrita apenas em preto e branco. Por motivos puramente de economia de espao uma vez que o objetivo desta narrativa tecer um sumrio pano de fundo histrico contra o qual apresentar oportunamente os macabros eventos daquela sexta-feira 13 de dezembro do ano de 1963 estas pginas lamentavelmente tm seguido o esprito dos citados livros escolares, focando de preferncia as duas grandes oligarquias que em Antares, durante cerca de setenta anos, disputaram o predomnio poltico, social e econmico. Ficaram assim na penumbra do segundo, do terceiro e do ltimo plano todos aqueles que para usar duma expresso de Spengler no fazem mas sofrem a Histria, a saber: estancieiros menores, agricultores de minifndios, membros das profisses liberais e do magistrio e ministrio pblicos, funcionrios do governo, comerciantes, artesos e por fim essa massamorda humana composta de prias brancos, caboclos, mulatos, pretos, curibocas, mamelucos gente sem profisso certa, changadores,20

ndios vagos, mendigos, gentinha molambenta e descala, que vivia num plano mais vegetal ou animal do que humano, e cuja situao era em geral aceita pelos privilegiados como parte duma ordem natural, dum ato divino irrevogvel.

XVIITinha razo o editorialista do semanrio A Verdade (fundado em 1902) quando escreveu que o Progresso se aproximava de Antares com botas de sete lguas. Nos tempos em que a localidade era ainda conhecida pelo nome de Povinho da Caveira, Chico Vacariano, seu fundador, sempre que tinha de mandar um recado, verbal ou escrito, a uma pessoa que morasse longe, valia-se dum portador, dum chas-que, dum prprio. Em fins do sculo xix, Antares gozava j dos benefcios e facilidades do telgrafo, isso para no falar no servio postal. Estradas de ferro ligavam muitas cidades do Rio Grande do Sul umas s outras, e o apito de suas locomotivas assustava os bichos do campo e do mato, ao mesmo tempo que a fumaa de suas chamins sujava aqueles ares puros. No parecia otimismo exagerado esperar-se que dentro duns dez anos, no mximo, seus trilhos fossem estendidos at a Antares. Agora, na primeira dcada do novo sculo, surgia o telefone, que Xisto Vacariano afirmava ter sido inventado por Dom Pedro II, com a colaborao dum mecnico norte-americano, seu amigo particular. O primeiro a instalar na sua casa um desses aparelhos foi Benjamim Campolargo, que corria sempre na dianteira de seu rival, em matria de empreendimentos progressistas. Os prprios e os chasques continuavam ativos e uteis. As mulheres, as crianas e os velhos usavam como veculos de transporte a aranha, a diligncia e outras carruagens de trao animal. Carretas ainda rechinavam, ronceiras puxadas por bois lerdos, atravs daquelas campinas. Os antarenses em sua maioria achavam e nisso no eram diferentes de outros campeiros do Rio Grande do Sul que o nico meio de locomoo digno dum homem macho continuava a ser o cavalo. Em certos casos tinha-se a impresso de que esse animal era um prolongamento do corpo do cavaleiro, assim como a pistola ou o revlver faziam j parte da sua anatomia. Quando se instalou em Antares a primeira usina eltrica, Xisto Vacariano, sentado cabeceira de sua mesa hora do jantar, disse aos filhos: No Povinho, o av de vocs vivia muito bem se alumiando com lmpada de leo de peixe e vela de sebo. A mquina mais complicada que ele conhecia era o monjolo. Pra mim, lampio de querosene ou acetilene j luxo demais. Ningum me convence de mandar botar na minha casa a tal de luz eltrica. Dizem que esse negcio d choque, pode at matar uma pessoa. Quando, no inverno de 1912, o intendente mandou instalar luz eltrica nas ruas da cidade, o velho Eusbio Reis, que durante mais de vinte e cinco anos exercera sozinho as funes de acendedor de lampies, caiu numa to grande depresso nervosa, que numa madrugada de julho enforcou-se num dos postes da iluminao moderna, e seu corpo amanheceu hirto, coberto de geada, balanando-se dum lado para outro, sacudido pelo vento gelado que soprava das bandas dos Andes.21

Para surpresa geral, foi um Vacariano quem, em 1911, trouxe para Antares o primeiro automvel, um Oldsmobile, que mandara vir de Buenos Aires. Depois de aprender a dirigir o veculo, um dos seus maiores prazeres era passear nele, de tolda arriada, pela cidade, apertando provocadora-mente na buzina de fonfom sempre que passava pela frente do solar dos Campolargos. Estes no tardaram em mandar buscar da Alemanha um automvel Benz.

XVIIIComo o Dr. Jlio de Castilhos estivesse seriamente enfermo, o bacharel em Direito Dr. Antnio Augusto Borges de Medeiros, que havia sido seu chefe de polcia, sucedera-o em 1898 como Presidente do Estado, bem como no de chefe do Partido Republicano gacho. Castilhos faleceu em 1903, durante a operao de garganta a que fora submetido. Benjamim Campolargo, acompanhado de dois de seus filhos, embarcou s pressas para Porto Alegre, a fim de assistir s exquias de seu chefe e amigo. Chegou tarde, mas aproveitou a oportunidade para visitar o Dr. Borges de Medeiros, que ainda no conhecia pessoalmente. Achou-o seco, formal mas digno. Ouviu, de vrias pessoas importantes da capital, os maiores elogios ao carter do presidente. Ningum mais probo, ningum mais justo, ningum mais sbio dizia-se. Um verdadeiro varo de Plutarco afirmavam os edtorialstas de A Federao, o rgo oficial do Partido Republicano Rio-Grandense. Benjamim Campolargo, graas talvez a uma autovacina, voltou para Antares incontami-nado pelas virtudes morais de seu chefe. Continuou a perseguir a oposio, a coagir juizes, promotores e jurados. Governava despoticamente o municpio de Antares, onde os maragatos eram minoria. Tornou-se assim, como tantos outros chefes polticos municipais do Rio Grande do Sul, uma espcie de prncipe eleitor. Reeleito em 1903, 1913 e 1918, Borges de Medeiros exerceu durante vinte anos a sua ditadura cientfica de inspirao positivista, fechado no palcio do governo e quase divinizado como um Lama do Tibete. Sem recursos humanos para enfrentar seus inimigos crnicos, os Vacarianos agora competiam com eles em outros terrenos que no o da poltica. Todos os fins de ano, quando se tratava de eleger uma nova diretoria para o Clube Comercial, a mais fina sociedade local, havia sempre uma chapa apresentada pelos Campolargos, a oficial, e outra pelos Vacarianos. O pleito era precedido de propaganda, cabala, presses de toda sorte, e at de suborno. No dia da eleio os eleitores compareciam sede do clube armados de punhais e revlveres, e era raro o ano em que no houvesse bate-boca, troca de insultos, de bofetadas e at de tiros. Desde 1915 o futebol o salutar esporte breto, segundo um redator de A Verdade tornara-se popular em Antares. Os Campolargos haviam fundado o Esportivo Mis-sioneiro e os Vacarianos favoreciam o Fronteira F. C. No se tem notcia duma partida entre esses dois adversrios que no haja terminado sem luta corporal entre seus torcedores, isso para no falar nas trocas de caneladas e pechadas entre os jogadores, em disputa da bola. Conta-se a seguinte estria, que parece ter sido j incorporada ao folclore futebolstico gacho. O Fronteira e o22

Missioneiro defrontavam-se numa partida decisiva de campeonato, o jogo aproximava-se do final e nenhuma das duas esquadras conseguira ainda marcar um ponto sequer. No ltimo minuto do jogo, Pollito, atacante do Missioneiro um argentino contrabandeado do outro lado do rio, a peso de ouro driblou quase toda a defesa do Fronteira e ia na certa marcar um tento quando um Vacariano bombachudo que estava ali por perto saltou rpido para dentro do gramado, rebolou no ar o seu lao e pealou o castelhano, que caiu de costas, batendo com a nuca no cho. O goleiro do Fronteira saltou para agarrar a bola, mas um dos Campolargos alvejou-a com um tiro de revlver, e o balo se desinflou com um longo suspiro nas mos do keeper, que soltou um berro de horror. O pblico invadiu o campo e ento comeou uma verdadeira batalha campal que durou mais de meia hora, pois soldados da polcia municipal, chamados para impor a paz, acabaram tomando partido e participando do entrevero.

XIXA Primeira Guerra Mundial chegou a Antares principalmente atravs das pginas rseas do Correio do Povo. Pela primeira vez em mais de cinqenta anos Campolargos e Vacarianos encontravam-se por assim dizer do mesmo lado, na mesma trincheira, alvejando simbolicamente um inimigo comum, os boches. Xisto e Benjamim admiravam a Frana, detestavam a Alemanha e consideravam o Kaiser um bandido desalmado, um brbaro. Papagaiando frases de jornais e folhetos de propaganda, ambos afirmavam que os Aliados deviam a qualquer preo salvar a Civilizao das garras sanguinrias dos hunos. A dcada de 20 trouxe para Antares muito progresso, tanto de ordem material como intelectual. Durante esse ps-guerra, o ritmo de construes de casas particulares acelerou-se. Os Vacarianos reformaram o seu casaro uma simples meia-sola, disseram os seus desafetos. Os Campolargos construram um slido palacete de dois andares. Em 1924 uma firma norte-americana instalou um frigorfico nos arredores da cidade o que levou o editorialista do dirio local a afirmar que Antares, at ento um municpio exclusivamente agropastoril, comeava auspiciosamente a industrializar-se. O telgrafo, o cinema, os jornais e revistas que vinham de fora, a estrada de ferro e, depois de 1925, o rdio contriburam decisivamente para aproximar o mundo de Antares ou vice-versa. Forasteiros tambm muito faziam pelo progresso social e cultural da cidade: magistrados, promotores pblicos, funcionrios do governo estadual e federal, caixeiros-viajantes... Era, porm, de lamentar que Antares no possusse, como So Borja, uma guarnio militar federal, um batalho que fosse. Em 1925 os Vacarianos haviam comprado o primeiro sedan Chrysler que jamais sentou suas rodas nas ruas de Antares. Numa espcie de esperada represlia, os23

Campolargos no tardaram a adquirir na Argentina um Studeba-ker preto que, na opinio de seus rivais, tinha o aspecto dum carro fnebre. Foi tambm nesse ano de 1925 que a polcia descobriu e prendeu o primeiro comunista da histria de Antares, um certo Mrio Pinho, um tipgrafo, natural de Santiago do Boqueiro, homem plido e triste que se gabava de ter lido de fio a pavio, em traduo espanhola, O Capital de Karl Marx. O agente do olho de Moscou passou um ms na cadeia e, depois de solto, mudou-se para Santa Maria. Nos bailes do Clube Comercial moas e rapazes das Melhores famlias locais danavam o charleston, sob o olhar crtico das matronas. Num sarau de arte, no solar dos Cam-polargos, um forasteiro recitou versos modernos que ningum entendeu de Oswald e Mrio de Andrade. Antares, pois, atualizava-se, integrando-se na Era do jazz.

XXEm 1923 os partidrios do Dr. Assis Brasil aliana de maragatos com dissidentes do Partido Republicano haviam feito a sua revoluo, protestando contra mais uma reeleio do Dr. Borges de Medeiros, confirmada pela Assemblia estadual, mas considerada pela oposio uma farsa fraudulenta, pois o candidato oficial republicano alegavam seus inimigos no obtivera os trs quartos da votao total exigidos nesse caso pela Constituio. Xisto V acariano a princpio pensara em ficar sossegado em sua estncia (no tinha muita simpatia pessoal por Assis Brasil), mas como lhe tivesse chegado aos ouvidos o rumor de que Benjamim Campolargo ia mandar prender todos os Vacarianos machos, decidiu ir para a coxlha com os filhos, irmos, genros, netos, sobrinhos, amigos, pees e demais cumpinchas: cento e vinte homens ao todo. Embora j na quadra dos oitenta, Xisto mantinha-se ainda ereto em cima do cavalo, e sentia-se apto para enfrentar mais uma campanha em sua vida. Assim, os Vacarianos se juntaram s foras de Honrio Lemes. Evidenciara-se desde o primeiro momento da revoluo que o nmero de combatentes republicanos era consideravelmente maior e mais bem armado que o dos bandoleiros, pois o governo estadual, alm de seus partidrios civis que formavam as tropas irregulares, contava tambm com o apoio da sua Brigada Militar, fora bem armada e aguerrida. O velho Vacariano explicava aos seus comandados: O Gen. Honrio tem razo. O plano no dar combate de frente aos chimangos, mas negacear, atacar de surpresa, fugir na hora do aperto e voltar depois quando menos nos esperarem. O nosso chefe conhece a Serra do Caver como a palma de suas mos. O inimigo no ousa atacar o homem no cho dele. Assim, vamos embromando esses borgistas para provocar uma interveno federal. O Presidente da Repblica no gosta do Borjoca. Est louco pra meter sua cucharra na nossa panela. No se teve notcia de nenhum combate, nem mesmo duma escaramua passageira, entre os guerreiros dos Vacarianos e os dos Campolargos. A interveno federal foi finalmente feita no Rio Grande do Sul e dela resultou24

um tratado de paz. Benjamim Campolargo cantou vitria, mas Xisto Vacariano disse: Bobagem desse caolho caduco! Quem ganhou a parada fomos ns. Com meia dzia de espingardas descalibradas, revlveres enferrujados e lanas de guajuvira, os assisistas conseguiram o que queriam: esse tratado que reforma a Constituio do Estado, que os castilhistas consideravam intocvel, e probe a reeleio do Chimango!

XXIEm meados da dcada de 20 vrias mudanas eram j visveis e audveis no modo de vida tanto dos Campolargos como dos Vacarianos. No comeo do sculo, membros das geraes mais novas dessas duas poderosas famlias tinham sido mandados estudar em Porto Alegre. Muitos voltaram para casa depois de terminado pelo menos o curso ginasial, e alguns obtiveram at diplomas de doutor em Direito, Medicina ou Engenharia, embora poucos deles chegassem a exercer essas profisses. Fos%e como fosse, todos traziam para Antares uma viso mais larga do mundo e da vida, e uns poucos podiam at ser considerados, se no intelectuais, pelo menos intelectualizados. Haviam adquirido 0 hbito da leitura, da msica, do teatro e alguns deles pouqussimos, verdade compravam pinturas para pendurar nas paredes de suas residncias, nas quais at ento s se viam tristes retratos de antepassados mortos, com solenes molduras douradas. Um jovem Campolargo de maneiras civilizadas chegou a publicar no jornal da terra um poema de sua autoria. (O velho Vacariano leu-o em voz alta e comentou, seco e certo: Esse menino fresco.) Em maio de 1926 causou os comentrios mais desencontrados na cidade a notcia de que o herdeiro do trono dos Campolargos, Zzimo, tinha embarcado para Buenos Aires com sua esposa e prima-irm Quitria, para assistirem a alguns espetculos da temporada lrica do Teatro Coln. At fins do sculo anterior os Vacarianos e os Campolargos haviam cultivado deliberadamente a endogamia, no com a finalidade de manter a pureza de suas estirpes, mas por motivos prticos, principalmente de ordem econmica. Queriam evitar, no caso das heranas, no s a diviso das terras do cl como tambm complicaes nos inventrios. Esses casamentos entre primos e primas quase sempre sem amor e nem mesmo desejo eram no raro ajustados pelos pais dos jovens, em conclios familiares. Com raras excees, finda a minguada lua-de-mel, a mulher ficava em casa a engordar, a ter filhos e a cuidar (ou no) deles, ao passo que o marido passava boa parte da noite no Clube Comercial, jogando pquer, ou na casa da amante, com a qual, continuando uma tradio centenria, tambm tinha filhos, que no reconhecia legalmente. O advogado que, por morte dum Vacariano ou dum Campolargo, ousasse apresentar-se como patrono dum filho natural do falecido, arriscava levar um tiro ou uma surra exemplar. Durante a segunda dcada do novo sculo, porm, membros de outras famlias locais e at mesmo forasteiros, haviam comeado a entrar nas cidadelas dos Vacarianos e dos Campolargos, pela porta do casamento. O velho Benjamim25

observava alarmado a tendncia das novas geraes de sua tribo a produzir mais rebentos do sexo feminino que do masculino. Quando ele morresse, Zzimo filho que lhe nascera quando ele tinha j 56 anos ocuparia o seu lugar. Mas... e depois? Seu sucessor tinha apenas quatro filhas. Era o diacho. E o olho legtimo de Benjamim Campolargo entristecia quando ele pensava nessas coisas. Tanto ele como Xisto relutavam em aceitar a idia de que j no eram os senhores absolutos e discricionrios dentro de seus feudos. As geraes novas rebelavam-se contra as idias dos seus maiores em matria de costumes e rituais domsticos. Chegavam a criticar, por antiquados, os seus mtodos de trabalho campeiro, vejam s aonde chegamos! Assim, ao findar a dcada de 20 os dois senhores de Antares pareciam-se um pouco com os gliptodontes e os me-gatrios no fim do Pleistoceno, isto , eram dois representantes de espcies animais em processo de extino. Mas, como de se supor tenha acontecido com os monstros ante-diluvianos, Xisto e Benjamim no pareciam ter conscincia de seu drama.

XXIIA revoluo militar irrompida em So Paulo, em 1924, contra o governo do Presidente Artur Bernardes, ecoou no Rio Grande do Sul em localidades muito prximas a Antares, como So Borja, So Lus e Santo ngelo, onde se revoltaram respectivamente dois regimentos de cavalaria e um batalho ferrovirio, este ltimo sob o comando dum capito de Engenharia, Lus Carlos Prestes. O velho Campolargo chegou a organizar um corpo de voluntrios para defender a sua cidade, caso ela fosse atacada. Como, porm, os insurgentes de Prestes, depois de darem combate s foras legalistas, abandonaram o Estado, rumo de Catanduvas, onde deviam reunir-se aos rebeldes de So Paulo Antares foi poupada aos desastres de mais uma guerra, e sua populao continuou a viver a vidinha de sempre. Um dia, no princpio do vero de 1925, apareceu sorrateiro em Antares um membro da prestigiosa famlia Vargas, de So Borja. Chamava-se Getlio, tinha quarenta e dois anos de idade, era bacharel em Direito e ocupava ento uma cadeira de deputado na Cmara Federal, como representante do Partido Republicano de seu Estado. Homem sereno, de feies e maneiras agradveis, sabia usar a cabea com lcida frieza e possua qualidades carismticas ainda no de todo reveladas plena e publicamente. Dizia pouco mas perguntava muito. Frio, solerte, sabia jogar com dois fatores importantes na vida: o tempo e as fraquezas humanas. Usou de artimanhas tais, que naquele dia conseguiu reunir Xisto Vacariano e Benjamim Campolargo na casa dum amigo comum, homem apolitico e geralmente benquis-to na cidade. Quando os dois strapas locais deram pela coisa, estavam j frente a frente, fechados a chave com o Dr. Getlio numa sala de visitas que o calor de janeiro transformava num forno aceso, com a colaborao de cortinas de veludo, guardanapos de croche e tapetes felpudos. Um ventilador girava e zumbia, incuo,26

em cima duma mesinha com tampo de mrmore, ao lado dum vaso de alabastro com flores artificiais. Os dois velhos inimigos naturalmente no se apertaram as mos e nem sequer rosnaram a menor palavra um para o outro. Estavam ambos meio desarvorados. Aquilo ento era coisa que se fizesse? Olhavam para Getlio Vargas com uma expresso de censura em que se mesclavam surpresa e zanga. O deputado de So Borja, abrindo o seu sorriso mais sedutor, de excelentes dentes, convidou-os a sentarem-se, perguntando-lhes se queriam beber alguma coisa gelada. Nenhum dos dois queria. Sentaram-se com uma certa relutncia pesada, cada qual na sua poltrona, separados por trs metros de tapete. Getlio Vargas acendeu com pachorra o seu charuto e por alguns instantes permaneceu silencioso a olhar, de um para outro, os dois velhos, como um rbitro que, no meio da arena, prepara-se para anunciar ao pblico a luta de boxe que se vai travar entre dois campees de peso-pesado. Perdoem-me pela traio disse ele. Quando os fins so bons, s vezes temos de fechar os olhos natureza dos meios. Foi essa a nica maneira que encontrei para juntar numa mesma sala dois antigos adversrios pessoais e polticos. Fez uma pausa pontuada por baforadas da fumaa do charuto e ps-se a andar dum lado para outro. Estou aqui a mandado de meu pai. O velho Manuel me fez portador dum pedido ao senhor, Cel. Xisto, e ao senhor, Cel. Benjamim. Os amigos ho de concordar em que os tempos esto mudando. O mundo se encontra diante da porteira duma nova Era. Essas rivalidades entre maragatos e republicanos sero um dia coisas do passado. Precisamos pacificar definitivamente o Rio Grande para podermos enfrentar unidos o que vem por a... Nenhum dos dois chefes antarenses perguntou o que era que vinha por a. Mantiveram-se silenciosos e emburra-dos, bufando de calor. Getlio ergueu a cabea e soltou uma baforada de fumaa na direo do lustre de vidrilhos que pendia do centro do teto. Benjamim que, por insistncia de seus familiares, consentira em usar um olho de vidro para substituir o que perdera na Guerra do Paraguai com o olho natural fit iva obsessivamente a escarradeira de loua pintada que tinha a seus ps. Xisto tamborilava nervosamente com os dedos de ambas as mos nos braos da poltrona, enquanto seus lbios murchos e arroxeados se pre-gueavam, deixando escapar uma espcie de assobio que no passava duma ventosidade sem melodia. Pois o velho Manuel apela para os senhores tornou a falar o emissrio de So Borja para que faam as pazes, apertem-se as mos, esqueam as diferenas e os agravos do passado e daqui por diante trabalhem juntos pelo progresso e pela grandeza de nossa terra. No h nenhum desdouro nessa reconciliao, cuja iniciativa no partiu de nenhum dos prezados amigos aqui presentes. Foi um vizinho, um republicano, que se lembrou disso, com a melhor das intenes. Se no quiserem fazer as pazes em ateno ao meu pai ou a mim, reconciliem-se ento pelo amor ao Rio Grande. Getlio continuou a falar sem nfase oratria, macio e persuasivo. O Rio Grande estava destinado a cumprir no Brasil uma grande misso em prol da unidade nacional.27

Para isso, entretanto, era preciso primeiro recuperar a sua hegemonia poltica perdida aps o assassinio do Senador Pinheiro Machado.

XXIIINo passou despercebido ao jovem deputado o efeito mgico produzido pelo nome de Pinheiro Machado no Cel. Xisto, que, ao ouvi-lo, pigarreou enquanto a plpebra de seu olho esquerdo tremia nervosamente. Quem governa o Brasil prosseguiu Getlio so ora os mineiros ora os paulistas, a famosa frmula caf com leite. Soltou uma risada. No justo que o chimarro tenha tambm a sua vez? Falou durante mais dez minutos, concluindo assim: Pois agora me digam sinceramente que que ganham sendo inimigos? Quem perde Antares e o Rio Grande. Voltou-se para Xisto Vacariano. Autorizo ao senhor, coronel, a dizer publicamente, a quem quiser, que foi meu pai, que fui eu, dois republicanos, que o procuraram para fazer esta proposta de paz. Que me diz, Cel. Benjamim? O maioral dos Campolargos parecia ainda hipnotizado pela escarradeira. Finalmente ergueu o olho bom para o moo de So Borja e murmurou: Ps ..., vago mas j meio inclinado ao sim. O cacique dos Vacarianos, que at ento estiver sentado meio de lado, mexeu-se na poltrona e transferiu o peso do busto para o outro hemisfrio das ndegas, e seu assobio sem msica foi substitudo por uma espcie de prolongado ronco, que tanto podia ser um princpio de assentimento como o rosnar do cachorro prestes a morder. Getlio tornou a fazer um apelo: Vamos, apertem-se as mos! O que passou, passou. Os dois ancios levantaram-se com certa m vontade, aproximaram-se um do outro com passos arrastados e lentos e, sem se olharem cara a cara, trocaram o simulacro dum aperto de mos. Getlio ento abraou-os a ambos, agradeceu-lhes e felicitou-os pelo gesto, em seu nome e no de seu pai. Seguiu-se um momento de constrangido silncio em que nenhum dos dois adversrios crnicos parecia querer ser o primeiro a dirigir a palavra ao outro. Por fim o Cel. Campolargo, fazendo um esforo sobre si mesmo, olhou enviesado para Xisto e murmurou: Como vai a sua patroa? Apanhado de surpresa, pois havia mais de sessenta anos que no trocava uma palavra sequer com aquele Campolargo, Xisto ficou meio estonteado, como se tivesse sido abruptamente agredido pelo outro. Mas, recompondo-se, respondeu automaticamente: Bem. E a sua? U... morreu o ano passado. No sabia? Benjamim encabulou. Tinha esquecido o bito por completo.28

Desculpe! Meus psames. Getlio Vargas interveio: Bom, vamos agora ao tratado de paz. Acho necessrio, indispensvel mesmo, que mandemos publicar no s no jornal local, como tambm no Correio do Povo, no Dirio do Interior de Santa Maria e no Correio do Sul de Bag uma declarao conjunta, assinada por ambos os amigos, explicando ao eleitorado do Rio Grande o motivo e o sentido desta reconciliao. Levou a mo ao bolso interno do casaco. Tenho aqui um manifesto j preparado. Vou ler para ver se os amigos esto de acordo com os seus termos ...

XXIVMomentos depois os dois velhos estavam em suas respectivas casas. Vacariano refletia, desapontado: Acho que deixei me embrulhar por aquele deputadinho de borra. Deu famlia reunida para ouvi-lo a sua verso do encontro. Afirmou que tinha relutado muito, imposto condies, deixado bem claro que aquilo no era casamento, e que ele continuava a ser federalista, corno sempre. Benjamim Campolargo no estava de todo descontente com o acordo que firmara. Getlio Vargas bem podia ser o homem j escolhido pelo Dr. Borges de Medeiros para substitu-lo no governo do Estado. Talvez ele, Benjamim, tivesse acabado de atender a um pedido do futuro presidente do Rio Grande do Sul. Em casa tambm mentiu, dando a sua verso do fato. Ao fim do relato disse: Me tragam lcool para eu me desinfetar. Toquei a mo dum Vacariano. Dizem que falta de vergonha doena contagiosa. Pouco mais disse pelo resto de sua vida, que foi de apenas algumas horas, ^aquele mesmo dia teve um edema agudo de pulmo e faleceu ao anoitecer. Xisto, que logo aps a reunio se havia retirado para a estncia, morreu menos de uma semana mais tarde, com o ventre rasgado pela cornada dum boi xucro que seu leno vermelho provocara. Antares entrou assim no seu Eoceno poltico. Vacarianos e Campolargos honrando o tratado de paz trocaram-se condolncias e custosas coroas de flores. Tibrio fe ningum nunca ficou sabendo ao certo por que o velho Xisto dera ao seu primognito o nome dum imperador romano de to equvoca fama) assumiu a chefia da famlia. No houve problemas de inventrio. No apareceu nenhum advogado cabresteando filhos ou filhas naturais do velho Xisto, embora os houvesse s pencas. Quanto a Zzimo, o nico descendente macho do falecido Benjamim por linha reta, era um homem sem nenhuma vocao para a liderana. Tinha terminado o curso gi-nasial e feito dois anos de Direito. Gostava de ler, era meio indolente homem de boa paz. Ficou desconcertado quando se viu feito patriarca do cl dos Campolargos. Respondeu a essa situao com elicas intestinais que duraram uma semana. Por sorte ou desgraa sua e neste particular as opinies em Antares dividiam-se sua mulher Quitria, uma Campolargo tanto por parte de pai como de me, era uma criatura enrgica e inteligente, senhora de razoveis leituras, e at duma certa astcia poltica, de maneira que, depois da morte do velho Benjamim, embora Zzimo29

empunhasse, sem o menor garbo, o cetro de patriarca, D. Quita como ela gostava de ser chamada, pois detestava, por antigo, o nome avoengo que recebera em batismo passara a ser a eminncia parda, o poder por trs do trono. Eram bastante cordiais suas relaes com a mulher de Tibrio Vacariano, D. Briolanja, conhecida na intimidade como Lanja outra que tambm no gostava do prprio nome de sabor arcaico. Nunca haviam tido nenhum atrito. Visitavam-se. Estimavam-se at. Trocavam-se receitas de doces, bolos e tric. Lanja era o tipo da dona de casa, ocupada e preocupada com os filhos, os netos e os deveres domsticos, isso para no falar na sua devoo ao marido. Pode-se afirmar que as boas relaes humanas entre essas duas damas contriburam, mais que qualquer outro fator, para a consolidao da paz entre Campolargos e Vacarianos.

XXVQuando em novembro de 1926 chegou a Antares a notcia de que Getlio Vargas havia sido feito Ministro da Fazenda do gabinete de Washington Lus, que sucedera Artur Bernardes na presidncia da Repblica, Tibrio Vacariano sorriu e, como se estivesse falando dum foguete, disse a um amigo: L se foi o Baixinho! Vai subir muito alto antes de estourar. No se enganava. Getlio Vargas foi eleito presidente de seu prprio Estado quando Borges de Medeiros chegou ao termo de seu quinto mandato. Graas ao seu esprito conciliatrio e sua habilidade poltica, conseguiu o novo governante criar no Rio Grande um to ameno clima poltico, que tornou possvel a aliana de libertadores com republicanos numa Frente nica que apoiou a candidatura de Vargas presidncia da Repblica, resultante duma desavena entre os polticos de So Paulo e os de Minas Gerais pois estes no aceitavam o candidato que Washington Lus havia indicado intransigentemente para substitu-lo. Consumada a Aliana Liberal em todo o Brasil, maragatos e pica-paus, cerrando fileiras no Rio Grande do Sul, de braos dados, Tibrio Vacariano exclamou: Esse Get-lio nasceu mesmo com o rabo virado pra Lua! E atirou-se com entusiasmo propaganda eleitoral do homenzinho de So Bor ja. (Que diria o falecido Xisto se me visse trabalhando pela candidatura dum republicano?) No dia das eleies nacionais ajudou os pica-paus a falsificar atas, fazendo todos os defuntos do cemitrio local votar no seu candidato. Andava de mesa eleitoral em mesa eleitoral, oferecendo sugestes no sentido de aumentar fraudulentamente o nmero de votos favorveis a Getlio Vargas. (Imaginem eu, um maragato, querendo ensinar o Padre-Nosso ao vigrio, brincava ele com os republicanos, mestres em fraudes daquela espcie.) Os fiscais do candidato oficial, em geral funcionrios pblicos federais que exerciam essa funo a contragosto, faziam vista grossa a todas essas bandalheiras.

XXVI30

Quando em 1930 o Congresso Nacional proclamou a vitria eleitoral do candidato de Washington Lus, Tibrio Vacariano berrou na praa de Antares-. Fomos esbulhados! Esses ladres s nos podiam vencer em eleies fraudulentas! Agora s h um caminho: a revoluo! E aqueles meses durante os quais os jornais falavam com insistncia duma arrancada das foras do Rio Grande do Sul para derrubar o autocrata que ousava impor nao um candidato prprio foram tempos de impacincia, tanto para Campolargos como para Vacarianos, cavalos de guerra que mordiam o freio e escarvavam o cho. indoceis, e s no se precipitavam em pico galope rumo da capital federal porque suas rdeas estavam em mos indecisas. No Rio e em So Paulo j fazem troa de ns. Dizem que somos parlapates, que a nossa decantada bravura pura farofa! Zzimo Campolargo, esse parecia j disposto a aceitar o fato consumado. De resto, o Dr. Borges de Medeiros, chefe de seu partido, no lhe parecia nada entusiasmado com a idia duma subverso da ordem. E Zzimo assim se deixou ficar na sua vidoca, lendo lenta e interminavelmente os jornais, indo de vez em quando ao cinema (gostava especialmente dos filmes de cow-boys), tomando o seu chi-marro habitual e relendo romances de Camilo Castelo Branco, Machado de Assis e Ea de Queiroz. Tibrio, porm, no se conteve. Embarcou para Porto Alegre, confabulou com o prprio Getlio Vargas, achou-o vago, ambguo e ficou irritado: Mas como o negcio, Presidente? Vamos ou no vamos? O Homem sorriu: Devagar com o andor, coronel. Tibrio voltou para Antares decepcionado. Depositava agora as suas esperanas blicas em Oswaldo Aranha, figura fascinante que lhe parecia mais gauchamente afoito que o precavido e manhoso poltico de So Borja. Em princpios de outubro daquele ano, quando lhes chegou finalmente a esperada senha telegrfica (O que que h?) Tibrio tinha j organizado a sua tropa. E alegrava-lhe o corao ver entre seus soldados mais lenos vermelhos do que brancos. Um dia lhe chegou a ordem de marchar. E uma das maiores decepes de sua vida foi que a batalha campal de Itarar que poderia ter sido uma das maiores da Histria do Brasil, no chegou a travar-se. Havia, porm, um Vacariano entre os membros da Legio Bento Gonalves que, depois da vitria da revoluo, amarraram seus cavalos no obelisco da Av. Rio Branco. Como observou algum, no bastara aos gachos derrubar o governo federal: era preciso tambm, numa afirmao de machismo guasca, ridicularizar aquele smbolo flico da cidade So Sebastio do Rio de Janeiro.

XXVIIZzimo Campolargo seguira tambm rumo de Itarar com o Corpo Provisrio de Antares, comandado por Tibrio Vacariano. No levava a srio o seu uniforme caqui nem as suas divisas de major. No se considerava diminudo e, muito menos,31

engrandecido por servir sob as ordens dum Vacariano. Tudo aquilo lhe era indiferente. E que muito do que nele parecia pura apatia era um pouco ceticismo e um certo horror teatralidade. Em 1932, quando os paulistas fizeram a sua revoluo, exigindo uma Constituio nova para o pas e eleies presidenciais pois lhes parecia que o governo provisrio de Vargas estava ficando crnico Tibrio Vacariano de novo formou seus batalhes, para defender a legalidade, segundo ele para forrar o poncho, murmuravam so-capa seus desafetos, que conheciam todas as tramias que o filho de Xisto fazia com as suas famosas requisies de guerra. Zzimo Campolargo, entretanto, simpatizava com a revoluo constitucionalista. Nada, porm, podia nem mesmo queria fazer de concreto a favor dela. Limitava-se a escutar s escondidas o noticirio sobre a guerra civil divulgado pelas estaes de rdio dos revoltosos. Entre os muitos bens e obrigaes que lhe haviam cabido por morte do pai, herdara tambm, embora a contragosto, a fidelidade poltica que o velho Benjamim votava ao Dr. Borges de Medeiros, e da qual ele, Zzimo, participava duma maneira apenas intelectual, morna e distante. Quando se divulgou a notcia de que o velho chefe republicano, num gesto simblico mas dum grande sentido moral, havia ido para a coxilha de armas na mo, cumprindo um compromisso assumido com os revolucionrios paulistas Zzimo Campolargo, que gostava de imaginar-se um homem liberto de mitos e smbolos julgou-se no dever de juntar-se ao dolo poltico de seu falecido pai. Preparou-se para isso, mas com to pouco entusiasmo e tamanho vagar, que na vspera de deixar Antares para ir ao encontro do pequeno grupo que acompanhava o Dr. Borges de Medeiros, chegou-lhe a notcia de que o histrico varo da propaganda republicana havia sido feito prisioneiro por tropas fiis a Getlio Vargas, depois do combate de Cerro Alegre. Como na cidade era bastante conhecida a sua posio ante aquela guerra civil, Zzimo Campolargo no hesitou em cruzar o rio, buscando asilo na Argentina. D. Quitria, porm, permaneceu em Antares, para tomar conta da famlia e de seus negcios, e de vez em quando ia a Buenos Aires visitar o marido. Tibrio Vacariano fazia vista grossa a essas idas e vindas. Gostava dos Campolargos. Dizia aos ntimos que nesse casal era a mulher quem carregava os cojones. Zzimo voltou para Antares em princpios de 1933. Quando ele e Tibrio se encontraram na rua pela primeira vez, apertaram-se as mos, abraaram-se e o Vacariano, com um risinho entre sarcstico e afetuoso, perguntou: U? Onde andou metido todo esse tempo? Na estncia?

XXVIIIQuando em 1934 o Brasil adotou uma nova Constituio e Getlio Vargas foi eleito Presidente da Repblica pela Assemblia Constituinte, por um perodo de quatro anos, Tibrio Vacariano fez sua primeira visita ao Rio de Janeiro. Teve um rpido colquio com o Presidente, que o recebeu com afabilidade, no Palcio do32

Catete, declarandc-lhe: O senhor, coronel, o meu homem de confiana em Antares. Tibrio aproveitou a oportunidade para conseguir com o chefe da nao bons empregos em reparties pblicas federais para alguns de seus parentes e amigos. Fez esses pedidos como quem quer dar a entender que ele, Vacariano, no queria nada para si mesmo, pois Deus me livre, Prendente, de abusar duma amizade.... Passou um ms na capital federal, conheceu-lhe a vida noturna, fez relaes, insinuou-se nos bastidores da poltica e ficou estonteado quando teve uma viso do mundo dos negcios e especialmente do submundo das negociatas. Guardou a impresso de que o Rio era como uma daquelas localidades do Far West americano que ele conhecia de fitas de cinema nos tempos da corrida para o ouro. Na capital do Brasil havia ouro flor do solo. Os primeiros faiscadores vindos de todos os quadrantes do pas mexiam no cascalho das reparties pblicas e principalmente no dos ministrios. Alguns haviam j encontrado veios riqussimos. Era uma luta de apetites, choques de interesses, um torneio de prestgio, um jogo de pistoles. Muitos dos capites e soldados da revoluo que levara Vargas ao poder, cobravam agora o seu soldo de guerra. Um amigo de Tibrio, um gaucho cnico, que ganhara um lucrativo cartrio, lhe disse um dia, comentando aquele garimpo alucinado: Para conseguir o que quer, Tib, essa gente capaz de tudo, at de usar meios decentes e legais. Tibrio Vacariano voltou para casa com a cabea cheia de planos efervescentes. Conclura que havia chegado a sua hora de tirar o p do lodo, isto , livrar-se por uns tempos da vidinha pacata, segura mas medocre e montona que levava em Antares. Afinal de contas um homem s vive uma vez. Tinha j entrado na quadra dos quarenta, sentia-se em pleno meio-dia da vida. O Rio de Janeiro fervia permanentemente de fmeas jovens e apetitosas, algumas delas fceis. Pela primeira vez Tibrio havia atentado na beleza do cenrio da grande metrpole. Ota cidade linda! costumava dizer aos amigos. Em Antares encontrou tantos problemas e tarefas ato-caiados sua espera, que se deixou envolver por eles e pela rotina, e acabou guardando seus projetos cariocas em alguma recndita gaveta de seu ser. Algumas vezes, porm, quando estava em cima dum cavalo, na estncia, parando rodeio ou simplesmente cruzando uma invernada, passavam-lhe pelo campo da memria imagens fugidias como essas que a gente mal v pela janela dum trem em movimento. O Corcovado... a pedra da Gvea... ondas batendo na pedra do Arpoador... as areias de Copacabana... caras, coxas, seios, pernas, ndegas de mulheres, sob pra-sis coloridos... peles reluzentes de leo de coco... e o sol e o mar e as montanhas... Pota que me pariu! Que que eu estou fazendo aqui neste fim de mundo, fedendo a creolina e levando esta vida de baguai? Nessas ocasies Tib Vacariano entregava-se a algo que tinha todo o jeito duma saudade. Precisava voltar quela California!

XXIX33

E voltou mesmo, em 1938, depois de proclamado o Estado Novo, que lhe pareceu um golpe genial do Baixinho para continuar no poder sem os trambolhos do Congresso e dos partidos polticos. Antes de embarcar, conversou longamente com Zzimo, que o escutou num silncio entre tristonho e constrangido: Precisas compreender, homem, que os tempos mudaram. E, num tom quase de colegial lendo um editorial de jornal, acrescentou: preciso reformar as velhas estruturas chamadas democrticas liberais. O Getlio compreendeu a coisa. Somos um pas subdesenvolvido de analfabetos e indolentes. indispensvel unificar e organizar a nao com punho de ferro. V o caso da Itlia... O Mussolini acabou com a anarquia, implantando a ordem e o respeito autoridade, e os trens j partem e chegam dentro do horrio. No sabia que tinhas aderido ao fascismo sorriu Zzimo. Qual fascismo qual nada! Sou um realista e como tal simpatizo com os regimes autoritrios. Sempre simpatizei, tu sabes. Mesmo no tempo do Dr. Borges de Medeiros? homem, estamos na era do avio e do rdio e tu me vens com o borgismo! Naquela poca eu era pouco mais que um rapazola inexperiente. E se me meti na revoluo de 23 foi s para seguir o meu velho pai. Mas no desconverses. O Hitler reergueu a Alemanha, aboliu todos os partidos (menos o dele, naturalmente), botou pra fora do pas os judeus que, como se sabe, so os culpados dessas guerras e intrigas polticas e financeiras internacionais, homens gananciosos e sem ptria. Tambm no sabia que tinhas virado racista. Racista eu? Ora, no sejas bobo. Sabes como trato a minha negrada. Eles me adoram. Mamei nos peitos duma negra-mina. Me criei no meio de moleques pretos retintos. Quando leio esses casos de dio racial nos Estados Unidos, comento a coisa com a Lanja e lhe digo que no Brasil a gente, graas a Deus, no tem esses problemas, pois aqui o negro conhece o seu lugar. Logo ao chegar ao Rio, em maio de 1938, a primeira coisa que Tibrio fez foi visitar Getlio Vargas e reafirmar-lhe a sua solidariedade pessoal e poltica. Nessa ocasio o ditador lhe disse: Pois me alegro de ver que o amigo compreendeu o esprito do Estado Novo, que no fundo puro castilhismo. Tibrio, que havia herdado do pai uma antipatia invencvel pela figura de Jlio de Casthos e por suas idias polticas, limitou-se a dizer: Mas claro, Presidente, s no v isso quem no quer! Naquele mesmo ano o chefe do cl dos Vacarianos comprou um apartamento na Av. Atlntica com o auxlio dum emprstimo conseguido rapidamente no Banco do Brasil, graas a um carto com umas palavrinhas do Homem. Pretendia dali por diante passar uma parte do ano no Rio e a outra em Antares, evitando assim explicava os invernos midos das barrancas do Uruguai, que j comeava a sentir nos ossos.

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XXXEm 1940 estava j funcionando a mquina que ele montara para ganhar dinheiro. Associado a um primo seu e amigo ntimo, formado em Direito, Tibrio abrira um escritrio de advocacia administrativa e comeara a vender a mais curiosamente abstrata das mercadorias: influncia. Era um negcio em que no empatava nenhum capital em dinheiro. Jogava com o seu prestgio pessoal, suas boas relaes com indivduos colocados em postos-chave na engrenagem governamental. Sabia-se que ele tinha trnsito livre no Catete e em vrios ministrios, e isso lhe valia boas comisses pagas com muito boa vontade por quem quer que estivesse interessado em movimentar requerimentos encalhados no mar de sargao das reparties pblicas. Esquentado, autoritrio a princpio cometeu o erro de empregar nessas gestes o que ele chamava de sistema gacho e ir levando tudo e todos por diante a grito no mais.... O primo foi franco com ele: Olha, Tib, no te esqueas que no ests na tua estncia onde mandas e desmandas, gritas com os teus pees e eles baixam a cabea e te obedecem. Esse negcio de bancar o valento no d resultado aqui no Rio. Os nortistas, os nordestinos e os mineiros so, sem dvida alguma, to machos como ns e nos levam a vantagem de serem muito mais espertos e habilidosos. Ou tu mudas de ttica ou acabamos dando com os burros ngua. Tibrio no gostou da crtica mas procurou aproveitar a lio. Mudou de mtodo. Aos poucos aprendeu a pacienta, a blandcia, a sinuosidade. Recalcou suas cargas de cavalaria ancestrais. Pode-se at dizer que no Rio completou 0 seu aprendizado de pedestre. No esqueceu, entretanto, flue de vez em quando, em casos extremos, quando todos os outros recursos se esgotam, dava bom resultado segurar o sacripanta pelas lapelas, apert-lo contra uma parede e rosnar: Te quebro a cara, cafajeste! Gestos violentos como esse, porm, se foram tornando cada vez mais raros. Aos quarenta e dois anos, era Tibrio Vacariano um homem alto e corpulento, de cabea leonina, cara larga dum moreno claro, olhos meio enviesados e escuros, denunciando antepassados bugres, denncia essa confirmada pelos malares um pouco salientes e pela basta cabeleira negra e lisa. Trajava com essa elegncia da fronteira, de que era exemplo tpico o Dr. Jos Antnio Flores da Cunha camisas e gravatas de seda, ternos de linho branco, chapu panama. Era um bom contador de causos. Suas anedotas e relatos picarescos, temperados aqui e ali com castelhanismos oportunos, faziam sucesso, contribuindo para que o filho do falecido Xisto Vacariano se tornasse uma figura popular em certos crculos sociais do Rio de Janeiro, onde era considerado um boa bola. Tinha fama de generoso, pois as pessoas no chegavam a perceber bem que suas ddivas eram mais verbais que concretas. Tibrio sabia administrar muito bem a sua generosidade, exercendo-a apenas com pessoas que lhe estavam sendo ou pudessem um dia vir a ser-lhe teis. Era visto com freqncia na madrugada dos cassinos, na companhia de belas mulheres. Jogava roleta com alguma sorte. Teve uma amante hngara, que acabou abandonando por cara.35

Alm da advocacia administrativa, ganhava dinheiro em transaes imobilirias e ocasionalmente no cmbio negro. A Segunda Guerra Mundial proporcionou-lhe oportunidades para bons negcios, uns lcitos, outros ilcitos. Habituara-se a viver sombra do Banco do Brasil, do qual conseguia emprstimos para amigos e scios, e para si mesmo. E, como tantos de seus pares, j possua, num banco de Zurique, uma conta corrente numerada, cada vez mais gorda em dlares. Em 1931 entrara no que considerava um verdadeiro negcio da China. Estabeleceu uma fbrica de seda nos arredores de Antares. Constava ela apenas dum grande barraco de madeira s margens do Uruguai, sem nenhuma mquina, apenas com mesas e prateleiras, e uma porta que dava para o rio e trs na fachada. noite vinham da margem argentina barcas carregadas de peas de seda, de origem vria, e que eram levadas para a fbrica, onde uns cinco ou seis empregados as enrolavam em rtulos Seda Flor da Fronteira Indstria Nacional e depois as expediam para muitas partes do Estado e para Santa Catarina e Paran. Os guardas aduaneiros protegiam esse contrabando. Eram gente do Tib, todos bem remunerados pelo caudilho. Ano aps ano, mal entrava o ms de novembro, Tibrio punha-se a caminho do Rio Grande do Sul, de Antares e das suas terras, onde tornava a ser o estancieiro, o patro, o homem que manda, desmanda e grita. Aliviava assim o peito e a cabea de todos os improprios e mpetos agressivos reprimidos durante seus meses de atividade civilizada no Rio de Janeiro, no convvio com gente do asfalto e da areia da praia. De quando em vez, durante o vero, ia cidade para conversar com seus amigos e prepostos. O prefeito de Antares era um primo-irmo seu, pois o interventor federal no nomeava ningum para cargos pblicos dentro daquele municpio sem antes consultar o seu cacique. Quando, em fins de abril ou princpios de maio de cada ano, embarcava de volta capital federal, Tibrio Va-cariano, ao vestir a sua roupa de linho ou tropical, envergava tambm a sua personalidade carioca. J se habituara a esse tipo de vida, e achava at um sabor esquisito nessa duplicidade. D. Briolanja, que detestava o Rio de Janeiro com um provincianismo talvez animado por uma centelha de orgulho farroupilha, via com resignada apreenso as transformaes por que passava o marido. Nada dizia, porm. Tinha o hbito, que mais parecia um vcio, do silncio. Voltava-se inteira para os filhos e os sobrinhos e para as suas atividades de dona de casa. Sabia tambm que, se interpelasse o marido por causa daquela sua vida de cassinos e aventuras erticas (recebia s vezes cartas annimas) ele lhe perguntaria, como j fizera uma vez: Por acaso est te faltando alguma coisa, Lanja?

XXXIQuando em 1943 um grupo de intelectuais e polticos mineiros publicou um manifesto pedindo a volta do Brasil ao regime democrtico, Tibrio Vacariano interpretou isso como a primeira fissura visvel no baluarte do Estado Novo, cujos fundamentos sentia ele estavam sendo aos poucos solapados pelo trabalho36

subterrneo de seus inimigos. A prpria Histria como lhe havia dito um amigo de boas letras conspirava contra o regime getulista, cujas contradies eram demasiado visveis e haviam ficado ainda mais gritantes quando, no ano seguinte,